UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
NÍVEL MESTRADO
RÉGIS FRANCO CASARIN
O PROBABILISMO NA SCHOLASTICA COLONIALIS
SEGUNDO DIEGO DE AVENDAÑO
SÃO LEOPOLDO
2012
Régis Franco Casarin
O PROBABILISMO NA SCHOLASTICA COLONIALIS
SEGUNDO DIEGO DE AVENDAÑO
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre,
pelo Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – UNISINOS.
Área de Atuação: Filosofia
Orientador: Prof. Dr. Alfredo S. Culleton
São Leopoldo
2012
AGRADECIMENTOS
Primeiramente os meus agradecimentos vão para a CAPES/PROSUP por terme possibilitado realizar esses estudos graças à bolsa que me otorgou.
Os meus agradecimentos vão também para a comissão de bolsas da
Unisinos e ao PPG de Filosofia da Unisinos que me consideraram apto para ser
beneficiado com uma bolsa de estudos da CAPES/PROSUP.
Um especial agradecimento ao meu orientador e mentor Prof. Dr. Alfredo S.
Culleton, por ter me ajudado a direcionar minhas atenções e esforços intelectuais à
linha de pesquisa da presente dissertação, ao convidar-me a fazer parte do grupo de
pesquisa e estudo Scholastica Colonialis; e pela paciência, amizade e proximidade
demonstrado ao longo desses dois anos de estudos. Assim também agradeço aos
meus colegas deste entusiasmado grupo e principalmente ao Prof. Dr. Roberto Pich,
coordenador do grupo, que tanto me ajudou com as suas pontuais e acertadas
sugestões.
Agradeço aos meus familiares pelo apoio moral e com especial carinho a
minha noiva, Bárbara, pela ajuda na revisão do texto, amor e grande paciência
palpável ao longo da elaboração desta dissertação; especialmente naqueles
momentos que não lhe podia dedicar toda a atenção que lhe era devida em pró dos
meus estudos.
Por último, mas não menos importante, agradeço a Deus, que me possibilitou
estar concluindo esta etapa da minha vida, seja pelo dom da vida e da saúde, como
pela trajetória da minha vida que foi me direcionando a minha situação atual.
RESUMO
Trata-se de um estudo histórico-epistemológico sobre o Probabilismo do Sec.
XVI-XVIII desenvolvido na América Colonial, especialmente no Peru, tendo por base
o primeiro volume do Thesaurus Indicus de Diego de Avendaño, s.i. Divide-se em
três partes: Antecedentes; Tensão moral nas colônias; e O Thesaurus Indicus. Além
de ver a relevância histórica e influência deste sistema moral nas colônias
espanholas, adentra-se na problemática dos sistemas morais, com especial ênfase
no Probabilismo e se expõe, a modo ilustrativo, não sem antes conhecer um pouco
Diego de Avendaño, a administração da justiça nas Índias, relatada no Volume I do
Thesaurus. Conclui-se que a obra estudada está completamente permeada pelo
Probabilismo.
Palavras-chave: Probabilismo. Diego de Avendaño. Escolástica Colonial.
Probabiliorismo. Tuciorismo.
ABSTRACT
This is a historical-epistemological study on the XVII-XVIII century's
probabilism developed in Colonial America, especially in Peru, based on Diego de
Avendaño's first volume of his Thesaurus Indicus. It is divided into three sections:
Background; moral tension in the colonies, and the Thesaurus Indicus. Besides
seeing the historical significance and influence of this moral system in the Spanish
colonies, enters into the problem of moral systems, with particular emphasis on
probabilism and exposes as an illustration, not without knowing a little of Diego de
Avendaño, the management of justice in the Indias, reported in Volume I of the
Thesaurus. We conclude that the work in study is totally permeated by the
probabilism.
Keywords: Probabilism.
Probabiliorism. Tuciorism.
Diego
de
Avendaño.
Colonial
Scholastic.
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS ........................................................................................ 4
RESUMO .......................................................................................................... 5
abstract ............................................................................................................. 6
Índice ................................................................................................................ 7
Introdução ......................................................................................................... 9
Capítulo 1 ....................................................................................................... 17
Antecedentes .................................................................................................. 17
1.
Ambientação histórica das ideias na península ibérica. ..................... 17
2.
Escolástica na América colonial, séculos XVI e xvIi. .......................... 20
3.
Pressupostos ético-jurídicos da segunda escolástica. ....................... 23
Capítulo 2 ....................................................................................................... 28
TENSÃO MORAL NAS COLÔNIAS AMERICANAS ....................................... 28
1.
A lei POSITIVA na segunda escolástica............................................. 28
1.1. A Lei em Tomás de Aquino. ........................................................... 28
1.2. A lei em João Duns Escoto. ........................................................... 32
2.
Sistemas morais. ................................................................................ 35
2.1. Tuciorismo ...................................................................................... 36
2.2. O Probabilismo. .............................................................................. 39
2.2.1. Origem e etapas do Probabilismo. .............................................. 44
2.2.2. O Probabilismo no Peru. ............................................................. 46
2.3. Probabiliorismo: objeções ao Probabilismo. ................................... 48
Capítulo 3 ....................................................................................................... 53
O Thesaurus Indicus ....................................................................................... 53
1.
O espanhol- peruano Diego de Avendaño, S.I.: moralista e jurista. ... 53
1.1. Avendaño, espanhol-peruano. ....................................................... 56
1.2. Avendaño, moralista e jurista. ........................................................ 58
2.
Os Thesauri e o Thesaurus Indicus. ................................................... 62
2.1. Fontes. ........................................................................................... 65
2.2. Estrutura do Thesaurus Indicus: Tomus I. ...................................... 71
3.
O probabilismo no thesaurus: a Administração da justiça. ................. 76
Conclusão ....................................................................................................... 85
Bibliografia – referências ................................................................................ 90
9
INTRODUÇÃO
Como adequar a ação do homem às leis? Autêntico problema incrustado em
toda ação humana. Como a lei (concepção clássica) é uma “ordinatio rationis” e, por
tanto, “ninguém é obrigado por nenhum preceito (norma), a não ser mediante o
1
conhecimento de tal preceito” ; por isso a promulgação da lei é condição
imprescindível para sua obrigatoriedade. É esse conhecimento que fará obrigatório a
lei.
No contexto da colonização americana, a primeira função do homem era
agradar a Deus, para assim alcançar a Salvação Eterna. Por este motivo, o homem
deve ter certeza, antes de passar a fazer uma ação, que será uma ação moralmente
boa. Mas, nem sempre o homem tem certeza da moralidade da ação que projeta ou
de se, na situação concreta, a lei é aplicável. “Lex dubia, nom obligat”. O que fazer
quando o homem não tem certeza da bondade do ato que planeja realizar? Mais
importante ainda: o que dizer quando tanto a realização do ato ou a omissão se
apresentam como moralmente duvidosos? Conforme os moralistas passar à ação
em tal situação já seria moralmente errado, porque representaria um desprezo à
norma moral.
Seria necessário passar deste estado de dúvida ao de certeza moral, pelo
menos na prática. Tanto o realizar como o não realizar uma ação é uma decisão
moral; por isso pretender deixar de lado tal dilema não é escapar do problema, já é
uma opção moral. Como quebrar este dilema? Como passar da dúvida à certeza
moral na adequação da ação humana à lei?
1
“Nullus ligatur per praeceptum aliquod, nisi mediante scientia illus praecepti”: Tomás de Aquino, De
Veritate, 17, 3.
10
Como é sabida, a preocupação pela verdade foi uma das principais
características do pensamento grego. Por exemplo, foi desenvolvida a lógica como
meio seguro para chegar à verdade.
Como contrapartida, surgiram os sofistas, os quais pouco se importavam com
a verdade e sim prevalecer sobre o adversário doutrinal. Apareceram também o
dogmatismo e o cepticismo, duas posições antagônicas.
Como reação a estas doutrinas surgiu o probabilismo, oposto aos dois e ao
mesmo tempo intermediário entre os dois, o qual defendia que não podíamos ter
certeza absoluta da conveniência de um predicado a um sujeito, por isso, o máximo
que podem chegar os critérios de verdade, é a serem credíveis. Em outras palavras,
o conhecimento é só aproximado, provável. Deste modo, a probabilidade consistirá
em um conjunto de motivos suficientemente sólidos para aceitar prudentemente um
juízo.
Este probabilismo teórico respondia a uma época grega de corte racionalista.
Por mais paradóxico que possa parecer, o homem grego e racionalista não teve
problema em aceitar o Destino como motor da sua vida. Na Idade Média, com o
cristianismo o Destino será desbancado por Deus, a quem se deve agradar. Sendo
um Deus que se revelou como a Verdade2, o buscar e descobrir a Verdade já não
será um problema, pois se “ens et verum convertuntur (ente e verdadeiro se
convertem)” e “ens et bonum convertuntur (ente e bom se convertem)”, então “verum
et bonum convertuntur (verdadeiro e bom se convertem)”. Com isso o problema
passa a ser como conseguir o bem, para assim agradar a Deus e conseguir a
salvação eterna, ou seja, um problema de moral3.
2
Cf. João 14,6.
Cf. García Muñoz, A., Diego de Avendaño (1594-1698); Filosofía, moralidad, derecho y política en el
Perú colonial, Fondo Ed. UNMSM, 2003, p. 64-65
3
11
O contexto cultural e ideológico daquela Idade Média se instalará em grande
parte na época da conquista americana e consequentemente, nas próprias colônias.
E com ele, dito problema moral: como adequar a ação moral do homem às leis, já
que só assim será possível agradar a Deus.
Uma hipótese que levanto como solução deste problema e que tomo como
hipótese central deste estudo versa sobre a obrigatoriedade da lei, ou seja, para o
probabilismo a obrigatoriedade e força da lei está na vontade (querer) da autoridade
e não na ação em si. Isso permitirá que se possa discutir sobre a finalidade de
certas leis, pois o querer do legislador pode ser reduzido à opinião e ao tratar de
seres humanos, tem-se sempre a possibilidade da falha na hora de legislar.
Diante da dúvida moral, produzido pelo dilema acima descrito, os moralistas
do séc. XVI e XVII criaram os assim chamados “sistemas morais”.
Por um lado o tuciorismo, segundo o qual, o homem deverá atuar sempre em
base ao que ele julgue mais certo, ou seja, apegando-se ao maior cumprimento da
lei. Mas nem sempre ficaria claro ao sujeito se a intenção do legislador seria a de
obrigá-lo também em determinada e precisa ocasião. Por outro lado, sustentar que o
homem deve guiar-se pela maior aproximação à lei ocasiona outro problema: como
medir esta aproximação?
Por isso surgirão outras soluções. Em casos de dúvida, o homem pode optar
por qualquer resposta, inclusive a mais afastada da lei, ou seja, “in dubio libertas (na
dúvida, liberdade)”: o laxismo.
De um lado dos extremos encontramos o tuciorismo (certeza) e do outro o
seu antagônico, o laxismo (liberdade total). Uma possível resposta a esta tensão, a
este conflito ante a lei se encontra o “Probabilismo”. É um sistema que tem por base
12
a virtude da prudência, mas se atua prudentemente quando o juízo de consciência
está apoiado em uma razão que seja verdadeiramente provável, mesmo que seja
menos
provável
que
a
opinião
que
expresse
a
instância
da
lei,
que
consequentemente aparece como a “mais provável”. “Qui probabiliter agit, prudenter
4
agit” : é o princípio do sistema. Isso implica em que o alcance deste sistema
depende do sentido que se dê ao termo ‘probabiliter’.
Ou seja, o raciocínio do probabilista seguiria mais ou menos estes passos: 1.
Para agir é preciso certeza sobre a moralidade da ação; 2. Faltando a certeza, só há
opinião; 3. Tanto o agir como o não agir implica responsabilidade moral; 4. Logo,
para eleger entre ambas opções, faltando certeza, terá de decidir-se baseando-se
na opinião provável; 5. Por outro lado, uma opinião, por mais que seja mais ou
muito provável, não é certeza; 6.conclui-se, portanto, com certeza, uma opinião
meramente provável – inclusive uma menos provável – e não necessariamente a
muito ou a mais provável. Mesmo que somente prática, se obtêm assim a certeza
necessária, uma “segurança de consciência”, da qual Avendaño tanto menciona,
para o ato moral.
Entender essas discussões e debates morais é fundamental para entender
Diego de Avendaño e ainda mais, é imprescindível para entender o século XVII,
tanto na Europa como nas Colônias.
Basta dar uma rápida olhada às páginas da sua principal obra, o Thesaurus
Indicus, para convencer-se da inegável adesão de Diego de Avendaño (1594-1688)
ao probabilismo. Esta obra está dividida, grosso modo em seis volumes. A parte
central da obra parece estar localizada no terceiro volume, que foram publicados em
Amberes em 1668. A sua redação, toda em latim, levou quase sete anos.
4
“Quem age com probabilidade, prudentemente age”.
13
Desde a sua publicação no sec. XVII, o texto nunca foi reeditado, nem sequer
traduzido aos idiomas vernáculos até inícios do sec. XXI, quando encontramos uma
tradução ao espanhol por parte do Dr. Ángel García Muñoz. Ao português nunca foi
traduzido. É de se destacar este fato, devido à importância ética, jurídica, política e
filosófica desta monumental obra foi destacada por todos os estudiosos e
historiadores do pensamento colonial hispano-americano. Maria Luisa Rivara de
Tuesta o caracterizou como “um clássico do pensamento ético hispano-americano” e
o espanhol Francisco Guil Blanes o descreveu como “a mais representativa figura do
pensamento filosófico do Peru do sec. XVII”5.
A importância de Avendaño e do probabilismo no Peru foi diretamente
confirmada nos arquivos do sec. XVIII pela tese de bacharel do historiador Manuel
Burga (UNMSM, 1969), na qual investigou nove inventários de bibliotecas jesuítas
realizados no momento da sua expulsão do vice-reinado peruano (1767). O registro
dá conta da existência de um total de 82 exemplares das obras de Avendaño, que o
coloca entre os 38 autores encontrados com mais frequência em tais bibliotecas
(entre Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Santo Agostinho e Suárez). E destes
38, são registrados pelo menos 7 que são probabilistas (Diana, Sánchez, Escobar,
Vásquez, Castro Palao, Caramuel e Avendaño). Tendo-se em conta que os jesuítas
monopolizavam a educação da elite colonial peruana, tal registro nos proporciona
uma prova importantíssima da magnitude da influência de Avendaño e do
probabilismo naquele meio6. Tendo em conta que o centro intelectual colonial no
sec. XVI e XVII era o vice-reinado do Peru, devido às Universidades da época, é
uma temática de suma importância para toda a colônia americana, especialmente a
de colonização ibero-americana.
O seu trabalho intelectual proporcionou um extenso e apaixonado debate
público, que se estendeu ao longo dos séculos XVII, XVIII e começos do XIX, em
torno a dois problemas associados à filosofia moral e política, a saber: debate sobre
5
Cf. García Muñoz, A., Diego de Avendaño (1594-1698); Filosofía, moralidad, derecho y política en el
Perú colonial, Fondo Ed. UNMSM, 2003, p. 14.
6
Cf. Ibdem p. 14.
14
o probabilismo e a reflexão sobre o Estado Teocrático. Além de originar uma
massiva produção intelectual em tal período, não só na América, mas também na
Europa, desembocaram em verdadeiros escândalos de ordem religioso (condenação
do probabilismo pelo VI Concílio Limense em 1772, sob acusação de “laxismo”
moral) e de ordem político (expulsão dos jesuítas pela Coroa, acusando-os de
questionar a autoridade do rei e justificar o “regicídio”).
Esta dissertação se justifica também como parte de um projeto muito maior e
mais importante: a Scholastica Colonialis (sec. XVI-XVIII).
Trata-se de um projeto integrado de COOPERAÇÃO INTERNACIONAL,
aprovado pela CAPES/Brasil7, e em curso, para desdobramento inicial por um
período de dois anos, incluindo cinco equipes de trabalho: Brasil (equipe líder,
PUCRS e UNISINOS), Chile (PUC-Chile), Peru (PUC-Peru), Portugal (Gabinete de
Filosofia Medieval, Universidade do Porto) e Espanha (Universidade de Salamanca).
Ao mesmo tempo, o projeto é fomentado pela Société Internationale pour l’Étude de
la Philosophie Médiévale (SIEPM) e é executado precipuamente por medievalistas.
Sendo a “Escolástica Colonial”, como se viu acima, assim como a Segunda
Escolástica ou Escolástica Barroca uma continuação da Filosofia da Idade Média.
É um estudo que se situa no período não só menos pesquisado e mais
ignorado da história da filosofia na América Latina, mas, talvez, do período mais
ignorado da história filosófica em geral. Tal projeto pretende, para os limites
demarcados, (a) verificar e catalogar manuscritos e textos impressos antigos, (b)
propiciar investigação e análise dos materiais, (c) discutir e comentar em perspectiva
histórico-sistemática as fontes encontradas e (d) ao menos em parte digitalizá-los e
editá-los para comunidades de pesquisa em história da filosofia, sobretudo filosofia
medieval, renascentista e moderna.
7
Mais exatamente, pelo Programa Geral de Cooperação Internacional (PGCI) da CAPES.
15
E pela sua importância no período histórico e influência do probabilismo nos
dias de hoje, principalmente como origem da casuística na moral, escolhi
desenvolver o meu estudo nesse autor.
Com esse estudo busco primeiramente, conhecer e analisar histórica e
epistemologicamente o probabilismo na América Colonial dos séc. XVI-XVIII,
segundo Diego de Avendaño, centrando-me no primeiro volume do Thesaurus
Indicus.
Outros objetivos secundários, resgatar um filósofo de destaque no referente
ao probabilismo na América Colonial; compreender as origens da casuística atual;
conhecer a realidade jurídica e legal, a administração da justiça nas colônias.
Este estudo versa sobre duas vertentes: histórica e ideológica. Por este
motivo vejo a necessidade de começar o meu estudo a partir da história para chegar
e entender melhor o objeto central desta investigação.
O estudo partirá de uma ambientação histórica das ideias que circulavam pela
península ibérica primeiramente e, posteriormente, darei uma olhada sobre a
influência da Segunda Escolástica nas colônias, especialmente no Peru. Um período
herdeiro da Escolástica e que trouxe consigo um modo de pensar e de agir muito
peculiar, especialmente quanto à forma de ver e administrar a justiça, assim como o
modus vivendi nas colônias espanholas e a sua visão do mundo.
Em um segundo momento, o estudo versará sobre a tensão moral reinante na
época. Para isso, faço algumas observações sobre as concepções de lei nos dois
autores mais influentes dentro do cristianismo: Tomás de Aquino y Duns Escoto.
Passo a expor histórica e epistemologicamente os sistemas morais, parando e
adentrando-me com mais detalhe e cuidado no Probabilismo. Termino essa parte
16
com o levantamento de algumas objeções a este sistema lançadas por alguns
probabilioristas.
Uma vez que as bases gnosiológicas do probabilismo foram postas, me
adentro mais propriamente no Thesaurus Indicus do nosso autor. Faço
primeiramente uma exposição da vida e obra de Diego de Avendaño, para em
seguida ver a Obra em si, sua estrutura interna e o conteúdo do primeiro volume,
expondo e analisando, a modo ilustrativo, um dos aspectos, senão o mais
importante, no qual se percebe nitidamente a influência do Probabilismo. Finalmente
exponho algumas conclusões e levanto alguns interrogantes para futuros estudos.
17
CAPÍTULO 1
ANTECEDENTES
1. AMBIENTAÇÃO HISTÓRICA DAS IDEIAS NA PENÍNSULA
IBÉRICA.
Entre o final do séc. XV e séculos XVI e metade do XVII se produziram
grandes mudanças na península ibérica, em todos os campos, mas aqui nos
deteremos no filosófico. O descobrimento da América e a revitalização da
Escolástica ou Filosofia Perene contribuíram significativamente para essas
mudanças.
O séc. XIII foi o século que sonhou e ergueu as maravilhosas catedrais
góticas e estabeleceu com golpe genial as grandes Universidades, deu também à
humanidade A Divina Comédia de Dante e a Suma Teológica de Tomás de Aquino e
foi o século da Filosofia Escolástica, por antonomásia. Se bem no séc. anterior, se
conheceram nas suas fontes alguns dos imortais Diálogos de Platão e alguns dos
tratados do Organon de Aristóteles, foi no XIII, graças aos grandes pensadores
daquela gloriosa centúria, as doutrinas desses titãs da filosofia foram sofrendo uma
maior sistematização, uma purificação benéfica e proveitosa e uma elaboração lenta
e progressiva.
Mas dita filosofia que havia crescido e se desenvolvido tão robustamente ao
lado do Doutor Angélico, sofre interferências tão sensíveis que chegaram a debilitarse. A pesar de parecer tão perene, foi desprestigiada pelos filósofos dos séculos
seguintes, com excessos sofísticos, em alguns casos, e outros, com estéreis
sutilezas, nos ambientes que ainda contava com valores pensantes. Tanto foi assim,
18
que ao final do séc. XV a Escolástica se encontrava praticamente abandonada,
morta.
Processo que foi recobrado por pensadores da península ibérica no séc. XVI,
que souberam apreciar a grande riqueza daquela filosofia, a pesar de haver tantos
pensadores de prestígio a desprestigiavam, catalogando-a como retrógada e inútil,
principalmente no nascente meio renascentista. Essa reação contra o grande
desprezo que os renascentistas sentiam contra a Escolástica teve seu auge entre os
ibéricos, graças a tão exímios pensadores. Entre eles pode-se citar a Domingo de
Soto e Domingo Báñez, Francisco Vitoria e Melchor Cano, Francisco de Toledo e
Francisco Suárez, Gabriel Vázquez e Juan de Lugo. Aqui se deu um autêntico
Renascimento na área do pensamento filosófico e teológico, em contrapartida ao
Renascimento comumente estudado nos livros de história e que foi exclusivamente
artístico e literário.
E foi na época em que Espanha dedicava às assim chamadas Índias seus
conquistadores e colonizadores, que a filosofia espanhola adquiria o seu maior
desenvolvimento e inesperado florescimento. Enquanto uns, com machados e
espingardas em mãos, se aventuravam e abriam novas rotas pelas impenetráveis
selvas americanas, para oferecer ao seu rei novas terras; outros abriam rotas
inesperadas, e revelavam a existência de novos e maravilhosíssimos horizontes,
graças ao pensar profundo, que foi a prerrogativa mais excelsa dos homens daquele
século, que pode ser considerado a Idade Áurea Espanhola. Pois, do mesmo modo
que o século antes de Cristo foi para a Grécia e se denominou ‘Século de Péricles’,
e o XVII D.C. foi para a França, e com razão foi chamado de “o séc. de Luis XIV”, o
séc. XVI e grande parte do seguinte foram para a Espanha.
Situamo-nos em uma época de tamanha importância para o pensamento
filosófico, no qual jamais povo algum teve um florescimento filosófico tão compacto,
firme, luminoso e numeroso, em uma linha, e múltiplo ao mesmo tempo, pois houve,
ainda que em menor número, escolásticos degenerados (inícios do sec. XVI),
19
aristotélicos alexandritas (Juan Ginés de Sepúlveda), aristotélicos rigorosos (Pedro
Simón Abril) e pensadores antagônicos a esses mencionados, como os
antiaristotélicos (Hernando de Herrera), assim como platonistas (León, o Hebreo e
Inca Garcilaso). É de destacar-se também o nascimento, nessa centúria, de alguns
8
sistemas filosóficos próprios dessas terras, como o vivismo (escola de Juan Vives )
9
10
e o suarezismo (Francisco Suárez ). Mas a filosofia que predomina na península é
11
o peripatetismo escolástico .
Não é possível consignar todos os escolásticos hispânicos; são mil duzentas
e quarenta e três obras filosóficas, na Espanha daquela época. Pode-se vê-las
resenhadas na reveladora obra que com o título de Filosofia espanhola e portuguesa
de 1500 a 1650, Repertório de fontes impressas, publicou a “Junta del Centenário de
Suárez”, e consta ser um elenco bastante incompleto. Mesmo prescindindo da sua
qualidade, o número de por si só é surpreendente; é de ter-se em conta que não se
trata de folhetos e sim de livros em fólios e de obras extensas12.
Existe uma legião de autores, distribuídos especialmente em três escolas:
tomista dominicana, com Domingo Soto, Domingo Báñez, Francisco Vitoria13,
8
QUEIROZ COBRA, Rubem. Vives, disponível em: <http://www.cobra.pages.nom.br/fmp-vives.html>
Publicado em 13/01/2002. Acessado em 20/09/2012
9
SUAREZISMO, In: ABBAGNANO, N.; Dicionário de Filosofia; São Paulo: Ed. Martins Fontes,
2007. P. 921. Para conhecer um pouco sobre essa rica e importante doutrina do sec. XVI, consultar:
CARDOSO
DE
CASTRO,
J;
Suarezismo.
Disponível
em:
<http://www.filoinfo.bemvindo.net/filosofia/modules/lexico/entry.php?entryID=1059> publicado em 11-05-2009. Acessado em
20-09-2012. Para entender a disputa que houve entre o neotomismo e o suarezismo, ler: FABRO, C.;
Opere Complete, vol. IV: Neotomismo e Suaresismo. Segni, Itália: Ed. Del Verbo Incarnato, 2005.
10
Biografías
y
vidas;
Francisco
Suárez.
Disponível
em:
<http://www.biografiasyvidas.com/biografia/s/suarez_francisco.htm> Acessado em 20/09/2012.
11
Aquele rico manancial arrancando de Platão e Aristóteles, principalmente, e purificado através dos
séculos e através das maravilhosas disquisições de St. Agostinho e Santo Tomás, desemboca bem
represado, abundante e cristalino, na filosofia espanhola dos séculos XVI e XVII (cf. FURLONG, G.;
Nacimiento de la filosofia en el Río de la Plata; Buenos Aires: Ed. Guillermo Graft, 1952. P. 40).
Para saber mais sobre a escola peripatética cf. ARISTOTELISMO, in: ABBAGNANO, N.; Dicionário
de Filosofia; São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007. P. 79.
12
cf. FURLONG, G.; Nacimiento y desarrollo de la filosofia en el Río de la Plata; Buenos Aires:
Ed. Guillermo Graft, 1952. P. 40-41.
13
Merece uma menção especial esse dominicano, porque a ele, como professor de teologia da
prestigiosa Universidade de Salamanca, se atribui o renascimento da Escolástica na Espanha e sua
expansão para toda a cristandade. Como é sabido ele foi o primeiro a substituir o Livro das
Sentenças, de Pedro Lombardo, pela Suma Teológica, do Aquinate, algo que logo foi seguido pelas
outras universidades europeias e das Índias; longe de ater-se servilmente à obra do Doutor Angélico,
20
Melchor Cano, Juan Martínez del Prado y Juan de Santo Tomás; tomista jesuítica ou
suarezismo, com Francisco Suárez, Francisco de Toledo, Pedro de Fonseca, Gabriel
Vázquez; escotista, com Pedro de Hermosilla e Antônio de Córdoba, entre outros.
A partir da metade do sec. XVII com uma forte influência das ideias de
Descartes a escolástica entrou em declínio e posteriormente fracassou. Essa
entrada das ideias cartesianas é uma comprovação da liberdade de ideias que havia
na península.
2. ESCOLÁSTICA NA AMÉRICA COLONIAL, SÉCULOS XVI E
XVII.
Agora é preciso dar uma olhada, mesmo que rápida, à realidade filosófica das
índias. Que correntes circulavam por essas terras? Quais eram as ideias que as
povoavam e que vieram com os colonizadores? Que filósofos eram as referências
intelectuais? Sem dúvida, não é uma tarefa fácil apresentar sucintamente o que foi a
ciência filosófica na América Espanhola; se poderia sintetizar em uma frase: “foi o
que foi a atividade correlativa na Metrópole; foi o que foi a atividade análoga nos
países da culta Europa”14.
Para o novo mundo não veio só o método escolástico, mas também as
doutrinas e os sistemas das escolas espanholas independentes, como o cristicismo
de Vives15, o cepticismo do Brocense16 e o armonicismo de Fox Morcillo17. Inclusivo
introduziu nas aulas o costume de que os alunos completassem as doutrinas do Texto com as
explicações do mestre. O êxito foi tal que a ele se pode atribuir o renascimento da Escolástica (cf.
FURLONG, G.; Nacimiento y desarrollo de la filosofia en el Río de la Plata; Buenos Aires: Ed.
Guillermo Graft, 1952. P. 41).
14
FURLONG, G.; Nacimiento y desarrollo de la filosofía… P. 51.
15
Para saber mais ver em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Juan_Luis_Vives>. Acessado em 22/09/2012.
16
Seu nome de batismo era Francisco Sánchez de las Brozas. Cf. em
<http://es.wikipedia.org/wiki/Francisco_S%C3%A1nchez_de_las_Brozas>. Acessado em 22/09/2012.
17
Para mais informações acessar <http://es.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A1n_Fox_Morcillo>.
Acessado em 22/09/2012. Escreveu vários comentários a Platão, entre eles o Comentário ao Timeu,
como pode-se ver em <http://books.google.com.br/books?id=zIjwL5JGjWIC&pg=PR1&hl=ptBR&source=gbs_selected_pages&cad=3#v=onepage&q&f=false>. Acessado em 22/09/2012.
21
a influência de Lulio se fez sentir. Os escritos desses pensadores, em particular o
Arte General de Pedro de Guevara, o Apparatus e o Pandoxium e o Matheis Audax
de Juan Caramuel, o Organon dialecticum de Francisco Sánchez, estavam em todas
as bibliotecas, do México até Buenos Aires. Havia também escrito não escolásticos,
como Erasmo e Gassendi, Bacon de Verulamio e Descartes, Hugo Grocio e
Malebranche, Newton e Wolff, Bayle e Boscovich, Duhamel e Berthier; estes eram
conhecidos na América espanhola, podem não terem tido seguidores, mas leitores
certamente.
Nomes como Tomás de Aquino, Duns Scoto, Santo Agostinho e Francisco
Suárez eram os que ressoavam como mais frequência e ênfase, nas aulas dos
claustros, inicialmente e depois universidades de México, Lima, Córdoba. Mas não
foi nenhum escrito ligado a algum desses exímios escolásticos o primeiro a vincular
filosoficamente o Novo como o Velho Mundo e sim o de um nominalista, acérrimo
opositor às ideias de Aristóteles, Alonso Ortiz, canônigo de Toledo, em seu Tratados
(1493). Merece destaque o célebre bispo de Chiapas, Bartolomeu de las Casas, que
em uma publicação de 1552 defende os indígenas, no qual prova o não dever dá-los
aos espanhóis em encomenda, nem em feudo, nem em vassalagem, de nenhum
modo. A partir de 1554 se editam e reeditam obras puramente filosóficas do
agostinho, Alonso de la Vera Cruz. A ele se devem os méritos da entrada, do
primeiro contato da juventude americana com a filosofia peripatética.
Como se viu anteriormente um dos grandes responsáveis pelo renascimento
escolástico foi Francisco de Vitoria. Alguns de seus discípulos diretos em Salamanca
vieram para a América, como o Frei Domingo de Mendoza, autor de vários tratados
teológicos e que garantem que sabia de memória a Suma Teológica do Aquinate.
Em 1588, o então bispo de Venezuela, Pedro de Oña, publicou seus Commentaria
super universam Aristotelis Logicam (livro em folio de 305 folhas) e em 1592,
publicou Super primum librum Physicae auscultationis Aristotelis. Não menos
influente foi o aristotélico Antônio Rubio, que em 1605 deu a conhecer os seus
Comentários da Lógica de Aristóteles, que a chamou de Lógica Mexicana, por haver
sido escrita no México. Tal foi a sua importância que pouco depois se tornou texto
22
oficial da Universidade Complutense. Já de volta a Europa publicou vários livros,
sempre de cunho aristotélico18.
Outro autor de grande influência na América do séc. XVI, que teve inúmeros e
destacados alunos foi Luis Vives. Como nos diz o historiador Marcial Solana, nas
suas doutrinas se harmonizam, com singular acerto, o cristianismo, a filosofia
aristotélica e o cristicismo, característica do Renascimento. Busca harmonizar a
tradição especulativa cristão-aristotélica com as novas correntes críticas e as suas
doutrinas são muito mais voltadas para a ética do que para a abstração metafísica19.
Indo mais concretamente ao Peru cabe destacar o chileno Alonso Briceño
(1587-1668)20. Seguidor da escola escotista, escreveu as Celebriores controversiae
in Primum Sententiarum Scoti e uma Apologia das doutrinas do doutor sutil. Foi
professor na Universidade de São Marcos, em Lima. No Peru, houve sem dúvida
uma maior influência do jesuíta Francisco Suárez; do século XVI ao XIX foi o autor
mais lembrado em terras americanas. Mas certamente ele não foi o filósofo exclusivo
da América. Molina, Vázquez, Valencia entre outros pensadores de peso, contavam
com seguidores e discípulos entusiasmados. Tanto foi assim que se formaram
grupos de alunos, espécie de bandos, uns seguiam Suárez, outros Vázquez; grupos,
estes, protegidos pelo geral da Companhia. O jesuíta Nicolás de Olea (1635-1705) é
um claro exemplo dessa pluralidade de pensadores. Autor de um Manual de filosofia
(1687) e Curso de Artes (1693) era simpatizante das ideias e princípios cartesianos
e o introduz no Peru. Cabe um especial destaque o jesuíta Juan de Solórzano y
Pereyra (1575-1655), formado em direito em Salamanca, posteriormente se
transladou para o Peru e se tornou o jurista de maior influência no direito indiano e
suas obras, Política Indiana (1647) e De Indiarum Iure (1628-1639) foram uma das
principais fontes de Diego de Avendaño.
18
Cf. FURLONG, G.; Nacimiento y desarrollo de la filosofía… p. 57-58.
Cf. Ibid., p. 59.
20
Cf. MÚÑOZ GARCÍA, A., Alonso Briceño, Filósofo de Venezuela e América. Patio de Letras, Lima,
Ano
II,
v.
II,
n.
1,
2004,
pp.
115-130.
Disponível
em
Acessado
<http://sisbib.unmsm.edu.pe/bibvirtualdata/publicaciones/patio_letras/n1_2004/a12.pdf>.
em
23/09/2012.
Mais
informações
sobre
este
filósofo
disponível
em
<http://ramonurdanetavenezuela.blogspot.com.br/2012/03/presencia-inmortal-de-alonsobriceno.html>. Acessado em 23/09/2012.
19
23
Não obstante a influência desses filósofos, o maior predomínio foi realmente
de Tomás de Aquino. Podemos citar apenas alguns para exemplificar: Pérez de
Menacho (1565-1626), Cristóbal de Cuba y Arce (1648-1711), Leonardo de Peñafiel
(1597-1652), Juan Sebastián de la Parra (1546-1622), Diego de Avendaño (15941688) y Diego Álvarez de Paz (1549-1620).
3. PRESSUPOSTOS ÉTICO-JURÍDICOS DA SEGUNDA
ESCOLÁSTICA.
O conquistador espanhol chega às índias com uma mentalidade bastante
peculiar, especialmente no que diz respeito ao âmbito jurídico e moral21, que faz a
colonização espanhola ser singular. Por este motivo, julgo necessário expor, mesmo
que brevemente, estes pressupostos para poder entender melhor a temática que
estamos tratando nessa dissertação.
O primeiro aspecto a ser tomado em conta é a autoridade. Não existem saltos
na história e sim continuidade, com seus momentos de crises, mas não saltos. A
concepção colonial da autoridade passa por quatro culturas: grega, romana, judaica
e cristã. Os gregos mesmo sendo um povo racionalista não tiveram inconveniente
em aceitar o destino como motor das suas vidas. O romano, principal herdeiro da
cultura grega, também não. Mais ainda, chegou a praticar uma espécie de teocracia,
na quase divinização do Imperador. Junto com isso, houve uma certa simbiose entre
o ‘fas’ (direito sagrado) e o ‘ius’ (lei humana), por isso, conceberam a autoridade
como compêndio dos dois poderes: humano e divino; dando primazia ao ‘fas’.
Essa cultura deu lugar ao cristianismo, que é herdeira da cultura bíblica
judaica, na qual a toda autoridade vem de Deus, como se pode ver ao longo do
antigo testamento, já que todo o mundo depende de Deus, como sua criatura e lhe
21
Aqui moral, do latim mos, moris, e ética, do grego ethos,ou, tem a mesma concepção: costumes.
Até então a separação entre ética e moral não se havia dado. Por este motivo, neste trabalho ‘moral’
e ‘ética’ tem o mesmo significado, podendo ser usado um ou outro vocábulo para designar o mesmo
conceito, a saber: ciência do agir humano.
24
está submetido como único poder legítimo. Assim a autoridade humana nada mais é
que delegada por Deus; consequentemente, submeter-se a essa autoridade é uma
obrigação e um mérito de caráter religioso, já que em última instância se está
submetendo a Deus.
As mudanças introduzidas pelo cristianismo e que teve o seu auge na Idade
Média, adotaram não poucos elementos da cultura greco-romana. O cristão aceita a
autoridade civil do Imperador, mas esta está submetida à autoridade espiritual e civil
do Papa, já que este último a recebeu diretamente de Cristo, através dos apóstolos.
Assim o poder civil fica submetido ao eclesiástico, pois ao contrário dos romanos, o
Imperador não é chefe da Igreja, mas o seu filho. A partir de Cristo o centro do
império não está mais no Imperador, mas “reside em Cristo e no seu vigário, e se
transfere pelo Papa ao Príncipe secular”22. Isso não eximia o cristão de submeter-se
ao Imperador, ao contrário, reforçava ainda mais a sua autoridade. Fica bastante
claro na carta do apóstolo Paulo aos romanos: “Todos deverão se submeter às
autoridades superiores, que não há autoridade a não ser por Deus... quem resiste à
autoridade, resiste à disposição de Deus, e aqueles que resistem atraem sobre si a
condenação”23.
A liberdade do homem estava por encima do Destino, mas esta deveria estar
submetida às leis de Deus e dos homens. O Destino dos gregos fica desbancado
por um Deus que tem presciência da sorte eterna do homem. Esta já não
dependeria do destino, mas da retidão de uma vida que deveria acomodar-se às leis
humanas e divinas. Com isso era preciso um órgão que vigiasse o cumprimento das
leis. Desde Fernando III, rei de Castilha de 1217 a 1230, tanto a vigilância como a
administração da justiça ficaram aos cuidados do Tribunal de Corte ou Audiência,
que era presidido pelo próprio rei. Aos poucos essa tarefa foi delegada a um grupo
de ouvidores (personagens importantíssimos na colônia e que se verá na obra de
Avendaño) ou juízes, que estava composto, inicialmente (1371) por 7 pessoas: 3
bispos e 4 leigos; posteriormente (1387) aumentou-se para 6 bispos e 10 letrados,
22
23
BARTOLUS DE SAXOFERRATO, Opera Omnia, Veneza, 1596, vol. 10, 95r.
Cf. Rom. 13, 1s.
25
que na sua maioria eram sacerdotes, visto que os clérigos eram praticamente os
únicos litterati.
Outros dois elementos importantíssimos que encontramos na obra de
Avendaño e que precisamos olhar a sua carga histórica para compreendê-los
melhor. Trata-se da barbárie e escravidão. Conceitos que tem a sua origem na
época clássica e tiveram sua continuidade ao longo dos séculos. O mundo da Grécia
se reduz à polis, sinal da sua supremacia sobre os outros povos, incapazes por
natureza de conseguirem a perfeição do seu povo. Para isso precisamos explicar o
porquê dessa incapacidade.
Animal racional (“rationalis”, de “reor” – “pensar” ou “falar” – e este de “resis”
e “rema”, “palavra”) é o animal da palavra, o animal capaz de expressar a
verdade, o justo e o injusto. Homem era só o da “polis” grega. Os outros
nem sequer sabiam falar grego. O verbo “baréo” significa “estar
entorpecido”. Com o qual, aqueles que não sabiam falar grego e os faziam
com dificuldade e como que tartamudeando – “bar-bar” – os chamaram
“bárbaros”: era lógico que estes, ignorando a língua grega, incapazes de
discernir o bem e a verdade, fossem por tanto irracionais, não humanos;
24
incivis, estrangeiros, irracionais, não-homens, selvagens, como animais .
Por tratar-se de uma incapacidade natural, na concepção grega, esta
distinção entre gregos e bárbaros se considerou baseada no Direito Natural.
Consequentemente, por não ser racional e como um prêmio, por justiça o bárbaro
não pertence a si mesmo, mas a outro que o poderá conduzir à racionalidade. Em
outras palavras, para o mundo grego, todo não grego estava excluído, por direito
natural, da perfeição da “polis”.
Os romanos, por sua vez, estenderam esse conceito ao Império Romano, ou
seja, os seus cidadãos, únicos com direito, eram os ‘cives’, os ‘civiles’, ou seja, os
que tinham ‘civilização’. Os que não pertenciam ao Império eram os bárbaros. Os
romanos, fundadores do direito para todos os homens, ou seja, para os ‘civiles’,
creiam-se com direito a toda conquista para ampliar o seu império a custa dos não24
MUÑOZ GARCÍA, A., Diego de Avendaño (1594-1698): Filosofia, moralidad, derecho y política en
el Perú colonial, Fondo Editorial de la UNMSM, 2003, p. 83. (a tradução é minha). Múñoz García faz
um resumo das ideias de Aristóteles expressadas em Política, 1, 1252b 12.
26
humanos-bárbaros e incapazes de governarem-se, conforme eles pensavam. Se
Grécia os havia excluído da polis, Roma os excluiu do Direito e do Império.
Com o passar do tempo, Roma é invadida e conquistada pelos assim
denominados bárbaros. Ao contrário do que o Império pensasse, estes bárbaros
resultaram ser um povo com as suas próprias leis, língua e tradições. A grande
diferença entre ambos estava na base, pois estes eram nômades. Ao contrário do
que fizera Roma com Grécia, não impuseram a sua cultura ao Império Romano, pois
ao serem nômades, seus reis não eram senhores de terras e sim caudilhos de
pessoas. Isso lhes facilitou respeitar a cultura romana, principalmente as suas leis;
assim aceitaram a idiossincrasia, direito e cidadania dos vencidos, redatando leis
para os romanos (leges romanae) e leis para os bárbaros (leges barbarorum). Com o
tempo eles adotam conduta e mentalidade dos vencidos, são absorvidos pelo
Império e se ‘civilizam’.
Esse Império, com o tempo também, de romano passou a ser Sacro Romano
Império. Aqui temos por um lado ‘romano’, que considerará bárbaro todo aquele que
não pertence à Europa, e por outro ‘Sacro’ Império, que considerará hereges,
pagãos e bárbaros a todos aqueles que não comungarem com a religião oficial.
Essa concepção da civilização impulsiona o Sacro Romano Império a maiores
conquistas, pois agora não é só uma questão de civilização, mas se trata da própria
salvação. A escravidão é resultado do pecado e o único que pode liberar do pecado
é Cristo; é por tanto lógico e útil que os cristãos rejam aos não cristãos e os façam
escravos para, assim como o grego os conduziria à sabedoria, à razão, o cristão o
conduzirá a Cristo, à conversão e à salvação.
Tratando-se o Thesaurus de uma obra de caráter ético-jurídico, outro
elemento imprescindível a ser considerado é o marco jurídico herdado aos
colonizadores. Marco este que não é outro que o Direito Romano, produto do
império romano, adicionando um elemento novo, na Idade Média: o Direito
Eclesiástico. Ambos, civil e eclesiástico, vigentes na Idade Média, seguirão em
27
grande parte da época colonial. A influência e aplicação destes dois direitos era tal
que para assumir algum cargo era necessário haver estudado, pelo menos 10 anos,
um dos dois direitos25. Assim como no Império Romano o ‘fas’ estava por encima do
‘ius’, na Idade Média e no período colonial o Direito Eclesiástico ou Canônico tinha
primazia sobre o Direito Civil. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que o Rei
era soberano das pessoas, era súdito da Igreja, do Papa. Assim se justifica a
doação das terras das Índias aos reis espanhóis, fazendo-os reis ao modo romano,
no qual são senhores de terras, e ao modo godo ou bárbaro, no qual são senhores
de pessoas.
25
Cf. Lei 2, lib. 3, tít. 9 de los Alcaldes Ordinarios, 1566: ENCINAS III, pp. 9-10. In MUÑOZ GARCÍA,
A., Diego de Avendaño (1594-1698)... p. 91-92.
28
CAPÍTULO 2
TENSÃO MORAL NAS COLÔNIAS AMERICANAS
1. A LEI POSITIVA NA SEGUNDA ESCOLÁSTICA.
Um dos elementos peculiares vistos anteriormente foi a autoridade. Tal
autoridade só se dá no cumprimento de leis. Foi visto o desenvolvimento e a carga
que esta concepção teve ao longo da história. Agora é preciso centrarmo-nos mais
especificamente na concepção de ‘lei’. Especialmente no que diz respeito à herança
deixada pelos filósofos medievais de maior influência referente a essa concepção.
No primeiro capítulo vimos que entre os autores mais citados nas universidades
americanas se encontravam João Duns Scoto e Tomás de Aquino. Este último
chegou com força nas índias, já que Francisco de Vitória, um dos maiores
propulsores da academia nas colônias, foi o primeiro a comentar a Suma Teológica.
Para entender melhor o que Avendaño entendia por lei é preciso dar uma
olhada nessa concepção a partir do olhar destes dois gigantes da filosofia e de
grande impacto nas colônias.
1.1.
A Lei em Tomás de Aquino.
Lei é “uma regra e medida de nossos atos segundo a qual se é induzido a agir
ou dei xar de agir”26, por esse motivo a lei pertence à razão, já que a regra e medida
dos nossos atos é a razão, que constitui o primeiro princípio do agir humano, pois
primeiro se conhece para depois agir. Tendo em conta que o próprio da razão é nos
ordenar ao fim, àquilo que nos é próprio por natureza. Resulta que para Tomás de
26
AQUINATE, I-II, q. 90, a. 1.
29
Aquino o fim da lei, ou seja, a sua causa final, a motivação da lei, o porquê da lei é a
orientação ao bem comum. Ao mesmo tempo em que é medida e regra do nosso
agir, para que possa ter força de obrigação, deve ser promulgada, deve ser dada a
conhecer, isso por um lado e por outro, não pode ser feito por qualquer indivíduo,
pois ao ter como fim o bem comum, só poderá ser promulgada pela comunidade ou
por aquele que a represente. Deste modo se pode chegar a uma definição mais
precisa, na qual lei é “quaedam rationes ordinatio ad bonum commune, ab eo Qui
curam communitates habet promulgata”27.
É de destacar o papel de primazia que o Aquinate dá à razão. A lei não é
única, existem quatro tipos de lei: Eterna, Natural, Humana ou positiva e Divina.
Entendamos o que cada uma significa. Lei Eterna é o “desígnio do governo do
mundo que existe em Deus como monarca do universo”28 e como a inteligência
divina não concebe nada no tempo, mas o seu conceito é eterno, por isso esse tipo
de lei deve ser chamada de eterna. Em outras palavras, é a lei que desde a
eternidade Deus fez para governar, reger, dirigir o mundo que Ele vai criar no tempo,
ou seja, ela tem por instrumento a Divina Providência, que é o modo desta lei se
manifestar no mundo. Nada do que acontece no mundo, deixa de ter por causa
Deus mesmo. Não há nada no universo que escape ao governo de Deus, por tanto
que escape da lei eterna.
Este governo do mundo não se dá de igual modo em todos os seres criados,
por ex. um passarinho não é regido do mesmo modo que uma pedra é regida e nem
como regerá ao homem. O governo do mundo se faz através da natureza de cada
ser, no qual se entende por natureza a razão de certa arte divina intrínseca aos
entes que os faz mover-se por si mesmos ao seu próprio fim, ou seja, o princípio de
ação de cada ser rumo ao próprio fim. Por tanto, dentro dessa lei eterna há algo
direcionado mais especificamente para o ser humano, ao modo peculiar de ser do
ser humano e aqui entra a lei natural, que nada mais é que “a participação da lei
27
AQUINATE, I-II, q. 90, a. 4. “Ordem ou prescrição da razão para o bem comum, promulgada por
quem tem a seu cargo o cuidado da comunidade” (tradução minha).
28
Id. I-II, q.91, a.1.
30
eterna na criatura racional”29, ou seja, a lei natural é o instrumento do governo divino
sobre o ser humano. Esta participação, por tanto, se dá ao modo humano de ser,
segundo a sua própria natureza: animal racional, ou seja, dotado de inteligência e
vontade (livre arbítrio); ao contrário dos outros animais, por isso se pode dizer
também que a Lei Natural é o reflexo legislativo para o homem da lei eterna.
O criador nos fez capazes de captar por nós mesmos, pelos nossos próprios
instrumentos, ou seja, através da nossa razão (prática), porque é voltada à ação, a
lei que é nossa, a lei natural. Isso acontece, por exemplo, do seguinte modo: nós
percebemos, constatamos que todo ser humano quer e pretende preservar a própria
vida, então nós com o uso da razão dizemos: ‘toda pessoa tem direito à vida’. O que
cabe destacar aqui é que chegamos à lei natural através da razão, por isso a lei
natural é uma lei racional, voltada exclusivamente ao homem.
A lei natural para este autor não é um hábito, no sentido próprio do termo,
pois lei é um produto da razão e o hábito, essencialmente falando, pertence ao
âmbito dos meios de ação, ou seja, à vontade. Mas em um sentido mais amplo, no
qual pode-se chamar hábito o conteúdo de um hábito, pode-se dizer que a lei natural
é um hábito, assim como se chama fé ao que se admite por fé. Tomás de Aquino,
com a clareza que lhe é próprio, explica porque pode ser considerada um hábito:
“dado que, às vezes, os preceitos da lei natural são em ato pela razão e, às vezes,
estão na razão só de modo habitual”30. A lei natural está na razão não como hábito
da consciência, mas como ato da razão prática, ou seja, os seus preceitos são
princípios da lei moral que o homem conhece desde o início dos seus raciocínios
práticos, como se viu acima. Assim conclui-se que o agir reto e verdadeiro está na
ação de acordo com a razão prática.
Para o agir humano não basta os preceitos da lei natural é preciso de uma lei
mais concreta, mais particular que parta dos princípios da lei natural. Transcrevo a
29
30
Id. Q. 91, a.2.
Id. I-II, q. 94, a.1.
31
seguir o corpus do a. 3 da q. 90 da I-II da Suma Teológica, no qual o doutor angélico
nos mostra a necessidade de uma lei positiva, chamada por ele de lei humana:
Como já foi exposto (q.90, a. 1, ad. 2), a lei é um parecer da razão prática.
Pois bem, o processo da razão prática é semelhante ao da especulativa,
pois uma e outra conduzem a determinadas conclusões partindo de
determinados princípios, como se viu acima (Ib). De acordo com isso,
devemos dizer que, assim como na ordem especulativa partimos de
princípios indemonstráveis naturalmente conhecidos para obter as
conclusões das diversas ciências, cujo conhecimento não nos é inato,
senão que o adquirimos através do trabalho da razão. Assim também, na
ordem prática, a razão humana deve partir dos preceitos da lei natural como
de princípios gerais e indemonstráveis, para chegar a assentar disposições
mais particulares. E estas disposições particulares descobertas pela razão
humana recebem o nome de leis humanas, supostas as outras condições
que se requerem para constituir a lei, conforme dito anteriormente (Ib. a. 231
4) .
Veremos mais adiante que se bem as leis positivas partem de princípios
gerais para chegar a disposições particulares, no probabilismo a análise parte de
circunstâncias particulares para ver a adequação ou não a esta lei positiva.
A função primordial da lei positiva para Tomás de Aquino é a de disciplinar os
indivíduos propensos ao vício e rebeldes de uma sociedade que por si só não
conseguem chegar à virtude. Eles precisam ser retraídos através da força e do
medo a uma penalização, que a disciplina da lei lhes impõe, para que pouco a
pouco, acostumados a viver sobre a medida da lei se convençam da utilidade da
virtude e vivam conforme ela. Por este motivo, a saber, pela paz e virtude dos
homens a lei humana se faz necessária. Mas de onde essa lei tira essa força e esse
poder de obrigação? Essa força sai da justiça da própria lei; uma lei é justa quando é
conforme à reta razão. Ora, a primeira regra da razão é a lei natural; por tanto, a lei
positiva humana só será justa e terá força de lei na medida em que derive da lei
natural. Consequentemente se não for de acordo em algo à lei natural, está não será
lei, mas corrupção da lei.
31
Id. I-II, q. 91, a.3.
32
O quarto tipo de lei é a lei divina, que nada mais é que a aplicação da lei
humana nos assuntos religiosos. Como o fim último do ser humano é a felicidade e
bem-aventurança eterna precisa-se de uma lei dada por Deus e que vise à salvação
eterna do homem.
1.2.
A lei em João Duns Escoto.
Assim como o Aquinate, Escoto concebe a lei como uma ordinatio rationis e
não como um simples comando da autoridade relevante. Por outro lado, ele o segue
também ao conceber a razão prática como uma potência que age de acordo com
uma estrutura de dois níveis. Tal razão é dotada de uma synteresis, que é um hábito
natural através do qual a razão prática possui os seus princípios práticos, os quais
ele chama de ‘lei natural’.
Como bom medievalista, o homem tem um fim sobrenatural, que é o amor
consubstanciado, primariamente em Deus e, secundariamente, em si mesmo e nos
outros. Isso faz Escoto distinguir entre preceitos que pertencem estritamente à lei
natural (preceitos de primeira tábua), como os que se referem direta e
imediatamente a Deus, porque só Deus é bondade infinita, e preceitos da lei natural
em sentido lato (preceitos da segunda tábua), que são todos os que dependem de
uma ordem criada, portanto afetada de radical contingência, ou seja, bens finitos.
Esses preceitos só obrigam na medida em que são ‘consonantes’ (consonans) com
o primeiro princípio estritamente obrigatório da lei natural. Mas essa vontade divina
não é caprichosa e sim harmônica com ditames da razão e da ordem. Ela como
fonte e origem de toda criação é, por isso mesmo, regra e norma suprema de toda
ordem nela compreendida.
Se para Tomás de Aquino a razão tem primazia sobre a vontade, aqui sucede
o contrário. A vontade joga um papel importantíssimo na moral escotista, para ele a
vontade é appetitus cum ratione liber, ou seja, ela tem poder de autodeterminação,
não é a razão que a condiciona, só ela pode limitar a si mesma. Desse modo, a
33
vontade, essencialmente livre, representa o vértice da perfeição e a essência moral
do homem, ou seja, homines sunt voluntates32. Essa nova concepção de vontade
muda o foco da moral. Tomando por base a Aristóteles a potência genuinamente
racional é a vontade e não a razão, já que a potência racional é a potência capaz de
opostos33. Ludger Honnefeder explica como isso se dá na concepção escotista:
Caso se relacione a capacidade para opostos não com o objeto da potência,
mas com o modo de operação, a saber, o da escolha (modus eliciendi),
nesse caso advém somente à vontade relacionar-se simultaneamente
(simul) com opostos, seja isso no modo da liberdade na determinação do
querer (libertas specificationis), portanto da liberdade de querer (velle) algo
ou de não querer algo (nolle), ou na liberdade do exercício de querer
(libertas exercitii), a saber, na liberdade de querer (velle) (desse ou daquele
34
modo) ou, porém, de abster-se de querer (non velle) .
Nesse sentido a potência da razão não possui tal capacidade, pois quando
algo se lhe apresenta, e esta estando ativa, conhece necessariamente aquilo que se
dá a conhecer, não tem como rejeitar conhecer, assim como acontece com o olho,
assim que ele abre ele vê necessariamente o que se apresenta à sua frente. E outro
objeto só pode ser conhecido posterior, mas não simultaneamente. Por outro lado,
como a razão é determinada pelo objeto conhecido e não por si mesma, não pode
operar nada para fora. Assim, a vontade, que se determina, é a potência ativa e
prática, ou seja, a que efetiva nossas ações.
Ao mesmo tempo em que o Doutor sutil dá primazia à vontade sobre a razão
ele não rebaixa esta última para elevar a primeira. A prioridade da origem cabe à
razão, porque para querer é preciso primeiro conhecer, saber. Mas ao ser raiz
antecedente da vontade, ela é essencialmente ordenada a um ato de vontade, de
ação, o que faz notar a superioridade da vontade sobre a razão (intelecto). Ao
mesmo tempo em que a volição procede evidentemente da intelecção que lhe
fornece a sua matéria, a própria intelecção procede também da volição, que lhe
regula o trabalho:
32
Cf. BARBOSA DA COSTA FREITAS, M.; Duns Escoto perante às recentes investigações históricocrítica; LusoSofia press: Covilhã, 2008, p. 11.
33
Cf. Met. IX, q. 15; Oph. IV 677-699.
34
HONNEFELDER, L., João Duns Scotus; Ed. Loyola, São Paulo, 2010. P. 160.
34
É evidente que o intelecto não é a causa integral da vontade, porque, como
a primeira intelecção é causada por uma causa meramente natural e a
intelecção não é livre, por uma semelhante necessidade causaria, além
disso, tudo aquilo que causa e, desta maneira, uma vez que teríamos uma
circularidade nos atos do intelecto e da vontade, todo o processo seria
meramente de necessidade natural; ora, dado que isto é inconsequente, a
fim de salvarmos a liberdade no Homem, deve dizer-se que a referida
intelecção não é a causa total da volição, mas que relativamente ao próprio
35
ser a vontade, a única que é livre, é a causa principal.
O papel da razão consiste em apresentar o objeto à vontade, mas não em
incliná-la a querê-lo. Consequentemente, como a vontade é a potência essencial e
propriamente racional, a inteligência só pode apresentar-lhe a lei e o resto fica a
cargo da vontade (voluntas). Se para Tomás o papel normativo está no objeto
conhecido pela razão prática, para Escoto, apesar de dar uma primazia à vontade,
não lhe atribui exclusivamente o papel de causa eficiente. Para o doctor sutiles a
vontade e a razão são concausas da ação moral, e isso é que permite que cada
potência siga a sua própria natureza, ou seja, “a vontade determina a si mesma a
partir de si para o ato que se relaciona com o bem que o intelecto lhe mostra”36.
A diferença capital entre Scotus e Tomás de Aquino está no fato em que a
razão, para o primeiro, não se torna prática, como acontece para o segundo,
seguindo Aristóteles, já que ela determina o desejo dado naturalmente de forma
prévia bem como seu fim quanto à ação concreta, pondo assim o agir em curso. A
vontade por sua parte é a que decide quanto a querer o bem mostrado pela razão ou
abster-se de querer. A diferença está que a razão é um desejo natural e a vontade é
um querer livre. Se para o Aquinate uma ação era moralmente boa só na medida em
que essa fosse adequada à reta razão, entendendo-a como razão prática, nos é
lícito perguntar em que consiste uma ação moral para Duns Scotus. Tendo a
vontade como centro e não mais a razão, fica claro que ela não estará nessa
conformidade, então aonde está?
35
Ord. II, d. 49, q. ex latere (Vivès, XXI): “Quod autem intellectio non sit totalis causa volitionis, patet,
quia cum prima intellectio causetur a causa mere naturali, et intellectio sit non libera, ulterius simili
necessitate causaret quidquid causaret, et sic, quomodocumque circuli fierent in actibus intellectus et
voluntatis, totus processus esset mere necessitate naturali; quod cum sit inconviens, ut salvetur
libertas in homine, oportet dicere posita intellectione, nonhabere causam totalem volitionis, sed
principaliorem respectu eius esse voluntatem quae sola libera est.”
36
HONNEFELDER, L., João Duns Scotus; Ed. Loyola, São Paulo, 2010. P. 166-167.
35
Uma ação, portanto, é moralmente boa não porque ela aperfeiçoa a
natureza moral e o desejo natural próprio a ela, mas porque ela preenche o
critério da conformidade (convenientia, respectivamente conformitas), a
saber, corresponde ao ser humano como um ente que quer livremente e se
determina como tal através da razão, e parte de um juízo que julga a
conformidade da ação segundo o objeto e as circunstâncias com o bem que
37
a vontade quer na forma de affectio iustitiae .
Graças a essa autodeterminação da vontade o leva a entender a lei natural
como um princípio superior autoevidente do conhecimento prático, o qual deve ser
ordenado, na forma de synderesis como posse habitual, à razão, e não à vontade.
2. SISTEMAS MORAIS.
No contexto da colonização americana, a primeira função do homem era
agradar a Deus, para assim alcançar a Salvação Eterna. Por este motivo, as suas
ações devem ser moralmente boas. Mas, nem sempre o homem tem certeza da
moralidade da ação que projeta ou de se, na situação concreta, a lei é aplicável.
Aqui é onde reside o problema central do ato moral: o que fazer quando não
se tem certeza da bondade do ato que planeja realizar? Mais importante ainda: o
que dizer quando tanto a realização do ato ou a omissão se apresentam como
moralmente duvidosos? Conforme os moralistas passar à ação em tal situação já
seria moralmente errado, porque representaria um desprezo à norma moral.
Seria necessário passar deste estado de dúvida ao de certeza moral, pelo
menos na prática. Tanto o realizar como o não realizar uma ação é uma decisão
moral; por isso pretender deixar de lado tal dilema não é escapar do problema, já é
uma opção moral.
O contexto cultural e ideológico daquela Idade Média se instalará em grande
parte na época da conquista americana e consequentemente, nas próprias colônias,
37
Ibid., p. 169. Para mais informações ler nessa mesma obra pp. 162-165.
36
só que agora há um agravante, o encontro com o ‘novo’. E com ele, dito problema
moral: como adequar a ação moral do homem às leis, já que só assim será possível
agradar a Deus.
O sec. XVI conhece outra problemática. A consciência se encontra como em
conflito com a obrigação moral. Em um contexto histórico de multiplicidade e
complexidade jurídicas, se destaca o princípio de que só a lei certa é obrigatória.
Nos casos duvidosos, se propõe uma análise cuidadosa das opiniões em conflito,
umas a favor da lei, outras a favor da liberdade.
Diante da dúvida moral, produzido por esses dilemas, os moralistas do séc.
XVI criaram os assim chamados “sistemas morais”. Haverá dois grandes grupos, o
primeiro (tuciorismo absoluto, tuciorismo mitigado e probabiliorismo) coloca mais
ênfase na objetividade da lei. O segundo grupo (laxismo, probabilismo) coloca em
primeiro plano a instância da subjetividade, que se expressa na liberdade de
determinar o juízo de consciência na eleição a realizar ‘aqui e agora’.
Onde os dois extremos são ocupados, de um lado, pelo tuciorismo absoluto e
do outro, pelo laxismo. Os outros sistemas estarão mais ou menos próximos do
centro, tendo como extremos a objetividade da lei de um lado e a subjetividade,
como liberdade plena, do outro.
2.1.
Tuciorismo
Como ficou expressado anteriormente o seguimento de uma lei ou norma era
mais que um mero cumprimento legal ou medo de uma multa ou uma penalização
de caráter civil, tinha um caráter escatológico.
37
Dentro de um contexto de reforma e contrarreforma, no descobrimento do
Novo Mundo, onde Espanha, a Católica, estava na vanguarda e com a obrigação de
não desviar as ovelhas do redil. Dentro do catolicismo, havia uma certeza: fora da
Igreja, não há salvação. Tal salvação só vem através dos sacramentos, com
principal ênfase para Batismo, Eucaristia e Confissão. Dentro da confissão havia
duas situações: fiéis que vão se confessar dos pecados já cometidos, nesses casos
os confessores tinham que ter instrução adequada para saber se era ou não pecado
e qual o caráter do pecado; e fiéis que iam pedir conselhos de caráteres jurídicos e
econômicos, especialmente, mais que sexuais, nesses casos, os confessores
precisavam ter a preparação correspondente. Como muitos sacerdotes, os
confessores ordinários, tinham formação eclesiástica básica, diante de situações de
dúvida perante o certo ou errado, se adota uma postura mais próxima à lei, à
autoridade, para evitar o erro, já que, além da confissão dos próprios pecados, era
preciso a absolvição por parte do confessor.
Assim nasce o tuciorismo, que vem de tutior, do latim, mais seguro, ou seja,
tem como princípio fundamental, o seguinte: na dúvida se deverá optar pela parte
mais segura. Entende-se por mais segura, a opinião que propõe a lei ou norma
objetiva. Em caso de dúvida, se deve obrar conforme diga a lei, supondo-se que é o
mais seguro.
No sentido extremista afirma-se que basta haver uma pequena probabilidade
de existência de lei, para estar obrigados ao cumprimento da mesma. Um posição
menos extrema e mais difundida, mas tuciorista também (tuciorismo mitigado) afirma
que a consciência deveria conformar-se sempre com a opinião provável que a lei
propõe. Os escolásticos da Idade Média, ao abordar o problema da consciência
duvidosa, afirmam simplesmente que ninguém pode agir com dúvida, mas deve
procurar mediante reflexão e consulta chegar a uma certeza prática; caso contrário,
prescrevem que o sujeito se abstenha de agir ou que escolha a opinião mais segura,
ou seja, que exclua o perigo de infração (mesmo material) da lei.
38
O maior representante tuciorista foi Juan Alfonso de Polanco, S.J. (151738
1576) , quem com sua principal obra: Breve directorium ad confessarii et confitentis
munus rectè obeundum, publicado em Lisboa, no ano de 1556, escrito inicialmente
em latim e traduzido ao espanhol e português39. Percebe-se que foi uma obra
bastante consultada e seguida no séc. XVI, pois pelos registros em dez anos já
havia traduções para línguas vernáculas. Como o próprio título da obra diz, tratavase de diretrizes para confessores, como cuidados que devia ter com sua pessoa,
sua ciência, prudência, bondade, segredo de confissão e cuidados que devia de ter
com o penitente, referente a ajudas de diversa índole, como ajudá-lo a ter contrição,
na hora da satisfação. Posteriormente trata da finalidade da confissão, dos
mandamentos, questões práticas, como perguntas para auxiliar o penitente, pecados
capitais, excomunhão, etc... percebe-se que é uma obra bastante completa.
Este livro, que em definitivo, era um manual de moral e como tal ditava
princípios a seguir, e muitas vezes, especialmente em casos que geravam dúvida de
consciência nos penitentes, se tornava de difícil aplicação. Transcrevo, a modo de
exemplo, o Capítulo “Do sétimo mandamento, não furtarás, ao qual se junta ao
décimo, não desejarás as coisas do teu próximo”, parágrafo ‘Das obras’:
Se furtou, e quanto: se a acquirio alguma cousa injustamente, como per
symomonia, ou de naufragio, ou per engano em comprar e vender,
conmetendoo ou na substancia da cousa, ou na quantidade, ou qualidade,
ou preço della: se usou de contratos usurarios, ou fez companhias, ou
cambios injustos:se per força tomou has cousas alheas, ou has suas a
aquelle quem quietamente has possuia: se usou de moeda falsa, ainda que
per outros foβe enganado: se não restituio ho que achou, nam sendo cousa
que seu donoja deixava por perdida: se usou denganos no jogo, ou sejugou
soomente por causa do ganho: se fez algum damno aas cousas de seu
proximo: se ho que era comum a propriou pera si: se pos tributos injustos,
ou hos requereo: se nam trabalhou fielmente estando com alguém per
soldada, ou jornal: se como pobre pedio nam tendo neceβidade: se foy
40
gastador ou prodigo, que he outro exremo contrario avareza .
38
Nascido em 16 de dezembro de 1517, em Burgos (Espanha), cofundador da Societatis Iesu,
ganhou logo a confiança de Inácio de Loyola (Fundador), dado a suas qualidades e virtudes. Chegou
a ser secretário pessoal de Inácio de Loyola e posteriormente Vigário Geral da Congregação. Após
desempenhar vários cargos de confiança do Superiores Gerais e ter sido um reconhecido diretor
espiritual,
morreu
em
21
de
dezembro
de
1576.
Cf.
http://www.conspiration.de/syre/english/dez/e1221.html. Consultado em 11-01-2013.
39
Breve Directorio de Confessores e Penitentes copilado per mestre Ioam Polanco; Lisboa, 1566.
40
“Se furtou, e quando: se a adquiriu alguma coisa injustamente, como por simonia, ou de naufrágio,
ou por engano em comprar e vender, cometendo ou na substancia da coisa, ou na quantidade, ou na
39
Como se pode ver são princípios bastante gerais e simplificados, que não visa
a situação concreta. Quesito cada vez mais importante com tudo o que trouxe o
descobrimento do Novo Mundo. Por outro lado, continua a dificuldade de existirem
leis e regras que já na sua origem geram dúvida de consciência, como várias
passagens do texto transcrito acima.
2.2.
O Probabilismo.
Uma vez ambientados no mundo filosófico e doutrinal da segunda escolástica
na península ibérica e na América, especialmente no Peru, é conveniente
adentrarmos na temática mais própria dessa dissertação: o probabilismo. Antes de
mergulhar no pensamento do nosso autor, vejo a necessidade de ambientar o
probabilismo.
Como é sabido, a preocupação pela verdade foi uma das principais
características do pensamento grego. Por exemplo, foi desenvolvida a lógica como
meio seguro para chegar à verdade, um instrumento imprescindível.
Como contrapartida, surgiram os sofistas, os quais pouco se importavam com
a verdade e sim prevalecer sobre o adversário doutrinal, onde a opinião tinha um
papel de suma importância. Apareceram também o dogmatismo e o cepticismo.
Como reação a estas doutrinas surgiu o probabilismo, oposto aos dois e ao mesmo
tempo intermediário entre os dois, o qual defendia que não podíamos ter certeza
absoluta da conveniência de um predicado a um sujeito, por isso, o máximo que
podem chegar os critérios de verdade, é a serem credíveis. Em outras palavras, o
qualidade, ou preço dela: se usou de contratos usurarios, ou fez companhias, ou cambios injustos: se
por força tomou as coisas alheias, ou as suas a aquele quem quietamente as possuía: se usou de
moeda falsa,ainda que por outro fosse enganado: se não restituiu o que achou, não sendo coisa que
seu dono já deixava por perdida:se usou de enganos no jogo, ou se julgou somente por causa do
ganho: se fez algum dano as coisas de seu próximo: se o que era comum se aproprio para si: se por
tributos injustos, ou os requeriu: se não trabalhou fielmente estando com alguém por ‘soldada’, ou
jornal: se como pobre pediu não tendo necessidade: se foi gastador ou prodigo, que e outro extremo
contrario avareza.” JUAN DE POLANCO, Directorio de Confessores e Penitentes, Lisboa, 1556, p.
40v-41v. Disponível em http://bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFL036933/ULFL036933_item1/P117.html
Acessado em 11-01-2013.
40
conhecimento é só aproximado, provável. Deste modo, a probabilidade consistirá em
um conjunto de motivos suficientemente sólidos para aceitar prudentemente um
juízo.
Este probabilismo teórico respondia a uma época grega de corte racionalista.
Por mais paradóxico que possa parecer, o homem grego e racionalista não teve
problema em aceitar o Destino como motor da sua vida. Na Idade Média, com o
cristianismo o Destino será desbancado por Deus, a quem se deve agradar. Sendo
um Deus que se revelou como a Verdade41, o buscar e descobrir a Verdade já não
será um problema, pois se “ens et verum convertuntur (ente e verdadeiro se
convertem)” e “ens et bonum convertuntur (ente e bom se convertem)”, então “verum
et bonum convertuntur (verdadeiro e bom se convertem)”. Com isso o problema
passa a ser como conseguir o bem, para assim agradar a Deus e conseguir a
salvação eterna, ou seja, um problema de moral42.
O contexto cultural e ideológico daquela Idade Média se instalará em grande
parte na época da conquista americana e consequentemente, nas próprias colônias.
E com ele, dito problema moral: como adequar a ação moral do homem às leis, já
que só assim será possível agradar a Deus.
Entramos assim no probabilismo que nos interessa: o moral. É um sistema
que tem por base a virtude da prudência, mas se atua prudentemente quando o
juízo de consciência está apoiado em uma razão que seja verdadeiramente
provável, mesmo que seja menos provável que a opinião que expresse a instância
da lei, que consequentemente aparece como a “mais provável”. “Qui probabiliter
agit, prudenter agit”43: é o princípio do sistema. Isso implica que o alcance deste
sistema depende do sentido que se dê ao termino ‘probabiliter’. Não é necessário
confrontar as probabilidades opostas, estas permanecem cada uma por si mesmas,
41
Cf. João 14,6.
Cf. García Muñoz, A., Diego de Avendaño (1594-1698); Filosofía, moralidad, derecho y política en
el Perú colonial, Fondo Ed. UNMSM, 2003, p. 64-65
43
“Quem age com probabilidade, prudentemente age”.
42
41
assim a maior probabilidade de uma opinião não elimina a probabilidade da opinião
oposta, mesmo que seja menos provável.
Mas o que é uma opinião provável? Em que consiste este probabilismo
moral? Quais são os elementos epistemológicos do probabilismo? Qualquer opinião
é provável? Quais eram as condições para que uma opinião fosse considerada apta
a ser seguida como provável?44
Fica claro para os historiadores e filósofos que houve uma mudança de
postura frente aos casos de consciências duvidosos, se antes, os conselheiros, que
em sua maioria eram sacerdotes confessores, aconselhavam o mais seguro, o mais
próximo à lei, como já foi visto. A partir de certo momento, se toma uma atitude ante
os casos de consciência duvidosa mais favorável à liberdade45. Diante disso, qual o
objetivo do probabilismo, ou melhor, qual o objetivo primário ao dar primazia à
liberdade ante à lei? O objetivo primário é tirar seja o penitente, o dirigido, o
legislado, a final de contas, dessa dúvida, ou seja, gerar certeza, ao menos prática,
já que certeza especulativa não é possível, pois se trata de uma opinião. Levando,
nesse caso concreto, o penitente à certeza prática, ele poderá agir sem peso na
consciência, pois não estará obrando contra a lei, em definitiva, não estará pecando.
Diante disso temos duas situações: ações que caem baixo a leis que não
geram dúvidas e ações que caem baixo à leis que geram dúvidas e, por tanto,
pertencem ao âmbito da liberdade, pois como já foi visto, ‘lex dubbia, non obligat’.
No primeiro caso, temos três situações: ou são obrigatórias ou permitidas ou
proibidas. Não tem como escapar disso, se a lei não deixa espaço a dúvida ou
44
Para solucionar esses questionamentos vou valer-me das palestras ministradas pelo Prof. Dr. Luis
Bacigalupo (PUC-Peru) em 9-11-2012, na UNISINOS – RS, titulada “O Probabilismo e os Jesuítas”, e
em 12-11-2012, no “IV Colóquio Internacional de Filosofia Medieval da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul” titulada “Un ensayo sobre retórica, probabilismo y modernidad
jesuita”. As palestras foram transcritas por mim.
45
Nesse estudo não tratarei essa questão, as causas dessa mudança. Para maiores informações
sobre essa mudança de postura pode-se ver em: MARYKS, R. A.; Saint Cicero and the Jesuits: The
Influence of the Liberal Arts on the Adoption of Moral Probabilism (Catholic Christendom, 1300-1700);
Ashgate Publishing Ltd, Hampshire, 2008.
42
interpretações, como por exemplo: entra-se em um local e nele há uma placa
‘proibido fumar’, no caso de não cumprir a prescrição, receberei uma penalização.
Não tem espaço a outras leituras desta lei. No segundo caso, ao cair no domínio da
liberdade, temos a seguinte situação: ter-se-á a opção de omiti-la ou realizá-la sem
peso de consciência, pois não há perigo de agir contra a lei, pois estamos fora do
seu domínio.
A questão é determinar o que está sob o domínio da lei e o que está sob o
domínio da liberdade. Nesse caso, há duas formas de emitir um juízo sobre a ação
possível a ser realizada: objetiva ou subjetiva. Objetivamente falando se vê a clareza
ou não da lei; no primeiro caso, se cumpre ou não e pronto, não há maiores
problemas, pois tomando a lei clara e, portanto, verdadeira, como critério de juízo a
ação será boa ou má; no segundo caso, a lei não é nem falsa, nem verdadeira, é
simplesmente provável, assim poderá haver mais de uma opinião divergente sobre a
aplicação ou não da lei. Do lado subjetivo temos a consciência46 que vai julgar e
assentir; no primeiro caso, a consciência é ‘certa e firme’; no segundo, ‘duvidosa’ ou
‘provável’.
A consciência provável, apoiada em opiniões prováveis, vai em busca da
verdade prática, ou seja, mais que uma verdade entendida como adequação, tratase de uma verdade como acontecimento. Estamos diante de duas ou mais opiniões
prováveis, mas nem toda opinião é provável, para ser provável são necessários três
elementos: 1) Estar apoiada em uma razão ou fundamento sólido47; 2) Não se deve
seguir dela nenhum absurdo; 3) Não deve opor-se às Escrituras, Tradição, Pais da
Igreja, definições explícitas da Igreja sobre o tema, nem à reta razão.
46
Para adentrar-se mais nesse tema e tipos de consciência pode-se ler: BETTENCOURT, E.;
“Consciência e Moralidade: os diversos tipos de consciência”, em Revista Pergunte e
Responderemos,
PR
040/1961.
Publicado
em
30-05-07:
http://melhorsobre.blogspot.com.br/2007/05/conscincia-os-diversos-tipos-de.html. Acessado em 1601-2013.
47
Entende-se por ‘argumento sólido’: ausência total de malícia no ato volitivo, seria o que Kant chama
de Boa Vontade (BACIGALUPO, Conferência).
43
Uma vez confirmada como opinião provável deve-se observar-se os seguintes
pontos deônticos:
1) É obrigatório (queremos) fazer o bem e evitar o mal. Isso está na
sinderese, ou seja, desejo natural pelo bem. 2) Uma ação tem valor ético
quando se realiza com boa intenção e baixo certas circunstâncias que
legitima a ação. A isso se chama Scientia Moralis. 3) A aplicação dos dois
elementos anteriores deve ser feita a um caso concreto. Essa é a chave
para atuar com certeza moral, pois no ponto dois ainda se está no nível
48
especulativo, só aqui passo da dúvida especulativa para a certeza prática .
O probabilismo é um sistema casuístico, que tem como ferramenta a retórica,
para conduzir a consciência provável à certeza prática, através da persuasão. Tem
dois fundamentos: 1) o agente deve seguir o mandato da sua consciência mesmo
estando errado, ou seja, a convicção do agente é o seu fundamento; 2) só se
admitem dúvidas racionais49. Ela vive e se alimenta incerteza especulativa. O juiz é
a própria razão, tendo assim uma autonomia da razão, ou seja, somos juízes das
nossas próprias ações.
Pode-se dizer, para concluir, que o raciocínio do probabilista seguiria mais ou
menos estes passos: 1) Para agir é preciso certeza sobre a moralidade da ação; 2)
Faltando a certeza, só há opinião; 3) Tanto o agir como o não agir implica
responsabilidade moral; 4) Logo, para eleger entre ambas as opções, faltando
certeza, terá de decidir baseando-se na opinião provável; 5) Por outro lado, uma
opinião, por mais que seja mais ou muito provável, não é certeza; 6) conclui-se,
portanto, com certeza, uma opinião meramente provável – talvez uma menos
provável – e não necessariamente a muito ou a mais provável. Mesmo que somente
prática se obtém assim a certeza necessária, uma “segurança de consciência”, da
qual Avendaño tanto menciona, para o ato moral.
48
BACIGALUPO, L.; “O Probabilismo e os Jesuítas”, palestra ministrada em 9-11-2012, na
UNISINOS – RS.
49
Entende-se por dúvida racional: a) uma dúvida que não discute a hipótese da sindérese, ou seja,
não vá contra o bem; b) discute a aplicação da tese da ciência moral ao caso concreto; c) quando a
tese da ciência moral não brinda conhecimento, mas só opinião; uma vez que produza conhecimento.
44
Finalmente, pode-se afirmar que a tese probabilista é a seguinte: “Se é lícito
seguir uma opinião provável no especulativo, sem risco de errar. Pois as opiniões
contrárias coexistem. Já que é lícito segui-lo no específico, será lícito seguir uma
opinião solidamente provável no prático”50.
2.2.1. Origem e etapas do Probabilismo.
As origens dessa doutrina moral são datadas no séc. XVI, mais
concretamente no ano 1577, com a publicação em Salamanca, do Comentário a
Sum. Th. I-II, por parte de Bartolomeu de Medina (1527-1580)51, no qual trata os
problemas de Moral fundamental e expõe, com especial atenção, a doutrina das
‘opiniões’, mais ou menos ‘prováveis’. Já os probabilistas da época veem no
comentário à Suma Teológica I-II, q. 19, a. 6 o certificado de nascimento do
probabilismo. Aqui me limito a transcrever a sua célebre sentença52: “sou do parecer
que se uma opinião é provável, é lícito segui-la, mesmo que a opinião contrária seja
mais provável”53.
Para Deman houve dois fatores históricos que contribuíram significativamente
para a origem do Probabilismo, que serviram de base e fizeram assim possível esta
50
BACIGALUPO, L.; “O Probabilismo e os Jesuítas”, palestra ministrada em 9-11-2012, na
UNISINOS – RS.
51
Teólogo dominicano español, um dos grandes Mestres da escola tomista de Salamanca do s. XVI.
Nasceu em Medina de Rioseco (Valladolid) em 1528. Entrou na Ordem dos Predicadores em
Salamanca, onde recebeu sua formação religiosa e intelectual no momento mais álgido da escola
teológica salmantina. Teve por mestre a Francisco de Vitoria. Ali ensinou até a sua morte, em 1580.
Medina comenta a Summa Theologiae do Aquinate de modo profundo e pessoal, manifestando
sensibilidade aos problemas da sua época, especialmente em âmbito moral (cf. C. J. PINTO DE
OLIVEIRA;
Bartolomé
Medina.
Disponível
em
<http://www.canalsocial.net/Ger/ficha_GER.asp?id=2286&cat=biografiasuelta>. Acessado em 26-092012).
52
Não é o meu objetivo entrar na polêmica entre jesuítas e dominicanos sobre a origem desta
doutrina. Cf. M. M. GORCE, “Medina (Barthélemy de), 482; 485; in J. DE BLIC, A propos des origines
du probabilisme, BevSR: 10 (1930), p. 659.
53
MEDINA, Bartolomeu, Expositio in I-II Angelici Doctoris, Salamanca, 1577, q. 19, aa. 5-6.
45
nova síntese moral: o uso das Quodlibetales VIII, a. 13 de São Tomás54 e, de modo
especial, a argumentação usada na Escola de Salamanca55.
No trecho mencionado do Quodlibet, o Aquinate trata o problema da
consciência duvidosa: Utrum quando sunt diversae opiniones de aliquo facto, ille qui
sequitur minus tutam, peccet, sicut de pluritate praebendarum56. Aqui o problema
reside na possibilidade de seguir ou não a opinião menos segura. Para Tomás de
Aquino se pode faltar à moral de dois modos: indo contra a lei ou indo contra a
consciência. De aqui se desprende duas possibilidades. No primeiro caso, se a
opinião dos doutores diz que não é possível ter várias prebendas, peca quem as
aceita porque vai contra a lei, mesmo que o faça contra a consciência. Por outro
lado, se os doutores defendam o contrário, Tomás de Aquino apresenta três
possibilidades: a) a consciência certa segue sem duvidar a opinião dos doutores; b)
a consciência errônea existe quando alguém pensa que não é permitido e as aceita,
pecando porque vai contra sua consciência, mesmo que não seja contra a lei; c) a
consciência duvidosa existe quando não se tem certeza57.
Essa passagem foi muito usada pelos probabilistas e por isso teve grande
influência no surgimento, que se apresentou como um sistema para solucionar
dúvidas de consciência. Para Deman, a causa que colaborou para o seu surgimento
está na corrupção do original latino (até o s. XVIII), onde substituíram seu por sed58.
Aceitada essa leitura, com sed, se afirma que há certeza, apesar da dúvida. Isso é
possível, porque se trata de dois níveis: dúvida especulativa contra a certeza prática.
Assim, é suficiente a certeza prática para agir. Contra os tucioristas, a certeza tinha
que se produzir nos dois âmbitos para poder agir moralmente bem.
54
Cf. DEMAN, Th.; Eclaircissements sur Quodlibet VIII, a. 13; Divus Thomas (Piacenza), 12 (1935),
42-61.
55
Cf. Id.; Probabilisme, 457-481.
56
8
AQUINATE, Quaestiones Quodlibetales VIII, a. 13 (Marietti), Roma, 1948 .
57
Cf. Ibid.
58
O texto usado até então era o seguinte: ... aut non habet conscientiam de contrario sed
certitudinem (citado por Tirso GONZALEZ, Fundamentum Theologiae Moralis, Colonia, 1694: Dis. 9,
cap. 2, par. 2, p. 139).
46
Por outro lado, é de comum acordo, que Salamanca é o berço do
probabilismo, graças à metodologia usada por eles. Salamanca havia se
especializado em uma casuística refinada, na qual se analisavam muitos casos
particulares, especialmente no âmbito sacramental, como o trato entre o confessor e
o penitente. Para solucionar certos casos se recorria muitas vezes à opinião dos
Magistri. Assim, o objetivismo medieval fica em segundo plano e se adota uma
postura mais subjetivista e extrínseca frente à moral. Nessa linha a opinião dos
Magistri se torna lei e a sua aceitação coloca a consciência em estado de certeza
para agir. Tal certeza está fundada na autoridade extrínseca e não necessariamente
na adesão à verdade. Esta tendência extrínseca é o fio condutor que une o
probabilismo e a Escola de Salamanca.
Já em 1772, Juan Lope del Rodó59, partidário do probabiliorismo, em sua obra
Ideia sucinta do Probabilismo, descreve três grandes etapas do probabilismo: origem
em Salamanca, como já foi tratado (1577-1620), o auge (1620-1642) e a decadência
(a partir de 1642). No segundo período se produz um grande auge da literatura
probabilista; tanto foi que alguns historiadores chegam a dizer que o “mundo ficou
probabilista” (Lope del Rodó, 1772: 7).
Já a decadência é conhecida pela
publicação da obra do jesuíta Daniel Concina Teologia Cristã Dogmático Moral
(1749), que censura seu modo laxo de opinar na moral.
2.2.2. O Probabilismo no Peru.
Avançando mais na minha pesquisa, vejo a necessidade de dar uma breve
olhada no que representou a doutrina probabilista na terra do autor estudado.
Parece que o Probabilismo chegou ao Peru junto à Companhia de Jesus no início do
s. XVII, conforme alguns estudiosos peruanos. Felipe Barreda y Laos no seu livro
Vida Intelectual del Virreinato Peruano60, foi o primeiro estudioso republicano que
destacou o papel do Probabilismo como uma das principais fontes dos debates
59
LOPE DEL RODO, J., 1772, La Idea sucinta del Probabilismo, razones que establecen el
probabilismo, que contiene la historia abreviada de su origen, progresos y decadencia: el examen
crítico que lo establecen, y un resumen de los argumentos que lo impugna, Lima, 1772.
60
Lima, UNMSM, 1964. Um clássico dos estudos coloniais no Peru.
47
coloniais,
mostrando
recentemente,
Luis
assim
de
a
hegemonia
Bacigalupo
do
escreveu
pensamento
um
ensaio,
colonial.
Mas
Probabilismo
y
Modernidad61, no qual critica a interpretação desenvolvida por Barreda y Laos sobre
o significado histórico do probabilismo no desenvolvimento cultural peruano.
Para Bacigalupo, Barreda vê a escolástica como uma doutrina monolítica e
não como um fenômeno cultural complexo que recolhe e sintetiza diferentes
doutrinas teológicas e filosóficas. Esse fato faz com que Barreda veja a modernidade
peruana só como resultado da decadência da escolástica e deixa de lado as
diversas disputas internas, não percebendo assim a vitalidade progressiva que isso
significava. Pois ele não entende como uma atividade decadente poderia significar
uma real ameaça política para o regime colonial, como o rei Carlos III manifesta no
seu Tomo Regio62. Ao contrário, para ele, baseando-se nos debates dentro do VI
Concílio de Lima, sustenta que o probabilismo constituiu umas das principais fontes
da modernidade peruana, em outras palavras, não se pode pensar o Peru nos dias
de hoje sem o probabilismo.
Nas terras andinas esta doutrina moral jogou um papel importantíssimo.
Tendo em conta a famosa sentença romana - A Lei se acata, mas não se cumpre –
o probabilismo foi empregado para fazer uma releitura das novas posições,
circunstâncias encontradas no novo mundo, nesse sentido constituiu um esforço por
aproximar as consciências à lei e não em distanciá-las. Como se viu, a sua origem
se deve a uma busca por adequar os casos particulares (não presentes nas leis) à
tabela universal de valores, ao bem moral, e onde melhor que o novo mundo, com
tudo o que leva consigo essa palavra ‘novo mundo’, para aplicar esse critério. Diante
de tantas novas circunstâncias, casos parecidos na sua base aos encontrados no
velho mundo, mas muito diferentes na sua equipagem, no seu contexto, nos seus
61
Cf. BACIGALUPO, L., Probabilismo y Modernidad; em ARMAS ASIN, F.; La
Construcción de la Iglesia en los Andes, Lima, Ed. PUCP. 1999, pp. 257-300.
62
Publicada em 21 de agosto de 1769, na qual ordenou a imediata convocação de Concílios
Eclesiásticos em todos os reinos das Índias. Tais concílios deveriam tratar de exterminar as novas
doutrinas relaxadas pelas antigas da Igreja e infundir nos súditos, como antídoto contra o regicídio,
amor e respeito aos superiores, fazendo-os ver que isso era uma obrigação religiosa e não só civil e
natural (cf. MACERA, P., “Probabilismo en el Perú durante el siglo XVIII”, em Nueva corónica,
UNMSM, Lima, 1963, p. 95).
48
acidentes, metafisicamente falando. Acidentes estes, que eram mais ou menos
inerentes à substância (ação moral concreta).
Assim percebe-se que o probabilismo tenta dar conta da confluência de dois
eventos, por um lado, a concepção clássica de lex romana, como uma ordinatio
rationis, (Tomás, mas não necessariamente a romana) na qual ninguém está
obrigado por preceito algum, a não ser mediante o conhecimento de tal preceito; e
por outro lado, a emergência de casos inauditos nesse novo mundo. Pode-se ver
que se trata de uma prática que responde a uma situação particular, muito mais que
uma construção doutrinária imposta pelo império ou Escola de Salamanca. Deste
modo o probabilismo constitui-se como um sistema moral que promete a
possibilidade de decifrar os códigos e encontrar semelhanças entre o reino
ultramarino e o peninsular. E aqui entra Diego de Avendaño, como o primeiro grande
esforço de decifrar esses problemas, pois estuda casos de lei emitidas pelo Rei e
que são inaplicáveis nessas terras, por deixar de lado as particularidades dos casos
emergentes e inauditos à sensibilidade hispânica.
2.3.
Probabiliorismo: objeções ao Probabilismo.
Nasce como uma resposta e em oposição ao Probabilismo, acusando-o de
dar muito espaço para uma posição mais relaxada diante da lei, proposto pelo Geral
da Companhia de Jesus, Pe. Tirso González, S.J. Tem um caráter objetivo, de maior
aproximação à lei, mas deixando um espaço à subjetividade, ponto fundamental do
Probabilismo e que já estava enraizado na sociedade colonial e europeia
principalmente63.
Defende que para adotar uma opinião oposta à obligatoriedade da lei, requerse que esta não seja apenas provável, mas deve ser mais provável que a sua
opositora, ou seja, mais próxima à lei, já que não é a liberdade que fundamenta a lei,
63
Cf. ILLANES, J.L.; IGNASI SARANYANA, J., Historia de la teología, B.A.C., Madrid, 1995, p. 210.
49
mas ao contrário, a lei prevalece sobre a liberdade. A esta doutrina chamou-se de
probabiliorismo, de probabilior, ‘mais provável’.
O Fundador e um primeiro propagador dessa doutrina foi o XIII Prepósito
Geral dos Jesuítas, o Pe. Tirso González de Santalla, S.J. (1624-1705)64.
Aproveitou-se da sua ascenção ao máximo cargo da Companhia para proibir o
ensinamento do Probabilismo e defender e buscar institucionalizar o Probabiliorismo
como sistema moral oficial nas universidades. Escreveu uma primeira edição em
1674, mas não foi aprovada pelos censores da Companhia de Jesus (probabilistas,
todos eles). Não obstante, com o apoio e aprovação do Papa Inocêncio XI (16111689)65, ferrenho opositor do probabilismo com a bula Sanctissimus Dominus,
publicou em 1694, a obra emblemática do Probabiliorismo: Fundamentum
Theologiae moralis id est, tractatus theologicus de recto usu opinionum
probabilium66. Tirso González, s.j. era um caso praticamente isolado dentro da
companhia, já os dominicanos o adotaram como sistema oficial.
Em Fundamentum Theologiae moralis prega-se que ninguém deve seguir a
libertade em contra da lei, ou seja, a lei está acima da liberdade. Para isso, o
primeiro capítulo trata sobre a definição e compreensão do sentido de uma opinião
provável. Ao longo da obra ele vai expondo a sua opinião a favor do seguimento da
lei por acima da liberdade em diversas circunstâncias. Não é o caso analisar a obra,
pois não é o objeto desse trabalho. No momento, basta dizer que é uma obra que
coloca a lei por cima da liberdade e que em casos de dúvida se deve seguir a
opinião mais provável e mais segura, ou seja, a mais próxima da lei. Acusando o
64
Para mais informações cf. http://es.wikipedia.org/wiki/Tirso_Gonz%C3%A1lez_de_Santalla.
Acessado em 14-01-2013.
65
Para
mais
informações
ver:
http://es.wikipedia.org/wiki/Inocencio_XI
e
http://ec.aciprensa.com/i/inocencioXI.htm. Acessado em 14-01-2013.
66
GONZALEZ, T.; Fundamentum Theologiae moralis id est, tractatus theologicus de recto usu
opinionum probabilium. Roma, 1694. Pode-se encontrá-la on-line, totalmente digitalizada:
http://books.google.com.br/books/about/Thyrsi_Gonzalez_Fundamentum_theologiae_m.html?id=2ItJA
AAAcAAJ&redir_esc=y. Acessado em 14-01-2013. Essa obra gerou grandes polêmicas sobre a
disputa da opinião provável. Santo Alfonso de Ligourio, defensor do equiprobabilismo, a qualificou de
extremadamente rigorosa. A disputa nos sec. XVI-XVIII sobre a opinião provável será objeto de um
estudo futuro.
50
probabilismo de ser uma doutrina que promovia condutas relaxadas e laxas, já que
bastava a opinião ser provável para ser seguida.
Se bem Tirso González, foi um dos precursores dessa doutrina, Daniel
Concina, o.p. (1687-1756)67 foi o mais lido e tomado como autor oficial em muitas
faculdades de moral e direito da América colonial e europa, especialmente Itália.
Moreu dez anos antes da expulsão dos jesuítas das américas e já era bastante
conhecido e seguido como um autor seguro em matéria de moral. As suas obras
sobre esse assunto são História do Probabilismo e Rigorismo (1743)68 e Ad
Theologiam Christianam dogmático-moralem apparatus (1751)69, essa última, escrita
em 10 tomos, na qual dedica o volume 2 ao probabilismo e à consciência duvidosa.
Tornou-se um dos maiores opositores do probabilismo.
Como autor de teologia moral, escreve a cristãos e já no prólogo se observa a
densidade da crítica e objeções ao probabilismo:
E para propor-te uma Suma a mais ajustada de quanto estou para dizer-te,
sabes, que sempre foi e sempre será um o caminho, que leva ao Reino da
Glória eterna, e se chama Lei de verdade. (a) De quase dois séculos para
cá, assim como para penetrar no Novo Mundo, também para subir ao Céu
se descubriu um novo caminho, chamado CAMINHO DE MENOR
PROBABILIDADE. Aquele é estreita, rigorosa, semeada de cruzes, de
tribulações, de penitências. Essa é espaçosa, doce, benigna, abundante de
gostos, conveniências e prazeres. [...] Esses sostêm, que para merecer a
Glória, não é preciso caminhar pelo caminho da verdade; mas só pelo da
70
menor probabilidade, que nosso entendimento nos representa .
67
Nasceu na região do Friuli, na Itália, no ano de 1687. Mesmo que com o passar do tempo se tornou
um dos maiores opositores das teses dos moralistas da Companhia de Jesus, a sua primeira
educação esteve sob a responsabilidade dos jesuítas. Mais tarde ingressaria à Ordem dos
Pregadores. Protegido pelos papas Clemente XII e Bento XIV, tornou-se assim um pregador bastante
requisitado nas diversas catedrais de Roma, forjando assim a sua fama de ‘autor seguro’ em matérias
morais. Em sua morte, ocorrida em Veneza, no ano de 1756, já era um escritor seguido e famoso. Cf.
LLAMOSAS, E. F.; Un teólogo al servicio de la corona: las ideas de Daniel Concina en la Córdoba del
siglo XVIII; publicado em Revista de Historia del Derecho, Núm. 34, 2006, pp. 165-166.
68
CONCINA, D.; Della Storia del Probabilismo e Del Rigorismo. Veneza, 1743. Tradução ao
espanhol: CONCINA, D.; Historia del Probabilismo y Rigorismo. Madri, 1772.
69
CONCINA, D.; Ad Theologiam Christianam Dogmatico-Moralem Apparatus. Tomus secundus: de
conscientia et probabilismo. Veneza, 1751.
70
CONCINA, D.; Historia del Probabilismo y Rigorismo. Madri, 1772, prologo, §1.
51
Critica o probabilismo que ao ser um sistema que defende o caminho da
menor probabilidade, é um sistema regido pela conveniência e suavidade ou
benignidade, que pode levar a qualquer lugar, menos à salvação. Resumidamente a
principal e mais grave acusação é de ser um ‘sistema laxo’.
Outra objeção que faz o probabiliorismo ao probabilismo é de cometer
‘pecado filosófico’, ou seja, “o pecado filosófico ou moral é uma ação humana
contrária à natureza racional e à reta razão”71. Este se diferencia do pecado
teológico, por não ser mortal e não ofender a Deus, caso o filósofo desconheça ou
não acredite em Deus. Esta grave acusação tem por base o fato de ser natural ao
ser humano, buscar o mais seguro, o que tenha maior probabilidade de ser certo e
como o próprio Concina disse, o probabilismo é a doutrina da menor probabilidade.
São tantas as objeções que o dominicano Daniel Concina faz ao
probabilismo, que vou limitar-me a citar mais algumas, deixando para analisar a
disputa e argumentos para um estudo futuro. Dedica o cap. VII da primeira
dissertação para demonstrar que o “probabilismo em força do seu sistema e justa
ilação, declina ao Jansenismo. Abre a porta para justificar qualquer seita”. Já o Cap.
VIII, da mesma dissertação, diz que “o probabilismo é contrário à autoridade da
Igreja, à dos soberanos e à dos teólogos”. Para finalizar, na dissertação II, cap. V, dá
um argumento de autoridade ao dizer que “Santo Tomás expressamente confuta o
probabilismo”.
O probabiliorismo se apresenta como um sistema mais seguro diante de
casos duvidosos no cumprimento da lei. E por este motivo, a nossa razão prática,
teria uma tendência natural ao seguimento da opinião mais provável, mas ao mesmo
tempo surge um obstáculo, que não é pequeno: como medir esta aproximação à lei?
Extrínsecamente até é possível, já que a opinião de um letrado, se supõe que tem
mais peso diante da opinião de um ignorante em leis. O problema reside na
impossibilidade de determinar intrinsecamente essa maior ou menor aproximação à
71
Ibdem., Dissertação I, Cap. V, § 1, p. 44.
52
lei. Pois o caso em si é duvidoso, é provável e para solucioná-lo se busca elementos
extrínsecos ao caso concreto para auxiliar na hora do juízo.
53
CAPÍTULO 3
O THESAURUS INDICUS
1. O ESPANHOL- PERUANO DIEGO DE AVENDAÑO, S.I.:
MORALISTA E JURISTA.
O sobrenome Avendaño era bastante comum, durante o tempo colonial, nas
Américas, como nos faz notar o dr. Ángel Múñoz García na sua introdução ao
primeiro volume do Thesaurus Indicus72. Encontramos por exemplo no México um
doutor e um jesuíta, este último de grande destaque na oratória e fino sentido críticohumorístico, como se pode ver na sua Fé de erratas ou erratas de fé do Sermão do
Arcediano Cascajales (Muñoz García, Introd. 13). Solórzano Pereira cita muito a um
Pedro de Avendaño, autor de Capítulos de Corregidores73. Há vários encomendeiros
famosos com esse sobrenome. É de destacar o presbítero Fernando Avendaño,
irmão do Prefeito Ordinário de Lima em 1643 e filho de certo D. Diego de Avendaño,
que em 1627 foi Prefeito da Santa Irmandade; nascido em Lima no sec. XVII,
teólogo e doutor in utroque pela Universidade de São Marcos, Qualificador do Santo
Ofício, Arcediago, Vigário Geral e Juiz de Idolatria em 1632 daquela diocese,
escreveu em espanhol e quéchua uns Sermões dos mistérios da nossa Santa Fé
Católica, impugnando a idolatria indígena74. Chegou a ser nomeado bispo de
Santiago de Chile (1665), mas morreu antes de ser consagrado.
Sem dúvida o Avendaño mais importante e talvez o mais famoso, no âmbito
jurídico e moral, foi o jesuíta Diego de Avendaño. Nasceu em Segóvia, em 29 de
72
Cf. AVENDAÑO, Diego de; Derecho, Consejo y Virreyes de Indias. Thesaurus
Indicus, vol. I, Tít. I-III (1668). Edição, introdução e tradução de Ángel Muñoz García. ed. Eunsa
Pamplona, 2001, p. 13 – 53.
Alcalá, 1543.
74
Lima, 1648.
73
54
setembro de 1594, filho de Diego de Avendaño e Ana López. Estudou Filosofia em
Sevilha, onde estabelece uma estreita amizade com Solórzano Pereira75. Suspeitase que em janeiro de 1610 tenha embarcado com Solórzano rumo a Lima, já que
este havia sido designado Ouvinte (Oidor) da Audiência de Lima. Já em terras
peruanas entra para a Societatis Iesu em 25 de abril de 1612, recebendo o
presbiterado em 1619.
Além das atividades próprias do seu ministério sacerdotal, que lhe ajudaram
muito para conhecer a realidade limense, Avendaño desempenhou as acadêmicas.
Ensinou Filosofia e Teologia no Colégio Máximo São Paulo de Lima e Teologia de
Prima em Chuquisaca e na Universidade de São Marcos. Em 1626 Juan de
Solórzano Pereira manda para Madri o texto do De Indiarum Iure solicitando a sua
impressão, entre as cartas de recomendação encontra-se a do professor Diego de
Avendaño. Isso mostra que aos seus 32 anos de idade já gozava de autoridade e
estima suficiente para recomendar a impressão da obra de um Ouvinte de Lima. Foi
também reitor das Universidades de Charcas e Chuquisaca, Censor do Tribunal da
Inquisição, como consta na capa do Thesaurus. Dentro da sua congregação
religiosa foi reitor em Cuzco, Charcas, Chuquisaca, São Paulo de Lima e duas vezes
Provincial do Peru. Morreu em 30 de agosto de 1688, no Colégio de São Paulo de
Lima, a um mês de completar seus noventa e quatro anos de idade.
Percebe-se que as suas primeiras obras são de cunho teológico, mais que
filosófico, ao mesmo tempo que ele vai migrando do Aquinate para Francisco
Suárez. Pode-se destacar, além do seu Thesaurus, as seguintes obras: a primeira
editada foi o Epithalamium Christi et Sacrae Sponsae (Lion 1643), extenso
comentário ao ‘Salmo 44’; outro comentário a salmos é a Expositio Psalmi LXVIII
(Lion 1666); ainda na teologia publicou Amphitheatrum Misericordiae (Lion 1660) e
os Problemata Theologica (Amberes 1668), esse último dividido em três volumes de
75
O espanhol Juan de Solorzano Pereira (1575-1655) dedicou sua vida à jurisprudência e à política
nas suas etapas salmantinas universitária, limense na Audiência Real e madrilenha como fiscal dos
Conselhos de Finanças, Índias e de Castilha, vendo premiados seus méritos em 1640 com o hábito
de Santiago. No crepúsculo de sua existência deu à gráfica a sua Emblemata centum, trabalho cuja
prima editio viu a luz em Madrid em 1653, dedicou ao seu desenvolvimento longo tempo. Ao lado de
sua obra De Indiarum Jure e Política Indiana, constitui a grande trilogia literária de Solórzano.
55
linha tomista; a sua principal obra teológica é Cursus consummatus, sive
recognitiones Theologiae expositivae Scholasticae (Amberes 1686), aqui ele segue
as doutrinas de Suárez, aplicando o probabilismo às teorias tomistas sem sair da
ortodoxia da sua congregação e um longo tratado eucarístico Mysterium fidei in
ipsius Sacro et Canonico Canone celebratum (1681). Além dessas obras de cunho
teológico, tem o manuscrito das Cartas annuas (1665) e a Relação da Congregação
Provincial do Peru (1674).
Como era o espanhol-peruano Pe. Diego de Avendaño, s.i.? Os seus
superiores o descreveram dotado de uma saúde integral e harmonia de qualidades
com um natural sanguíneo colérico e o qualificavam de muito espiritual e recolhido e
grande estudante76. O Thesaurus nos dá testemunho do seu temperamento
sanguíneo colérico quando Avendaño increpa os Vice-reis:
Ferva em vocês o zelo por vingar as injúrias divinas e por engalanar ao
povo de Deus como grato e partidário das boas obras. Limpem, limpem,
apaguem os autores da imundícia, aos artífices de impureza e instigadores
de paixões, às facções dos erros e ladrões; e, mesmo quando não façam
nada, desterrem, exterminem, aniquilem com o Rei profeta aos
perpetradores de todos os males; em uma palavra: castiguem – sob o timão
77
da justiça – conforme as culpas .
Se a sua própria obra não fosse suficiente para testemunhar o grão estudante
que ele fora, o seu irmão de religião o Pe. Grijalva lhe faz um panegírico que merece
destaque:
Pelo que corresponde às glórias desta mão, pouco ou nada há de temer
que se esqueçam dela os mortais; pois em cada número e ainda período
dos que escreveu, celebrarão os séculos um milagre, que obrou esforçada a
destra do Onipotente. Porque a copia de erudição, a piedade, solidez,
agudez no pensar e soberania de juízo, que nos escritos do Pe. Diego de
Avendaño resplandecem, excedem tanto os limites da capacidade humana,
por elevado que estejam nas cimas mais eminentes da ciência, que só se
pode aplaudir com admirações e espanto dos mais avantajados engenhos.
Pois, deixando de lado o substancial de sua doutrina, as circunstâncias ou
76
Cf. LOSADA, A., “Diego de Avendaño, S.I. Moralista y jurista, defensor de la dignidad humana de
indios y negros en América”, em Missionalia Hispanica, 15, 1982, 2.
77
Thesaurus, Vol. I, Tít. III, n. 80.
56
acidentes com os quais a adorna, puderam acreditar-lhe Fênix entre os
78
Sábios .
Transcrevo o parecer de Francisco Guil Blanes sobre Avendaño Filósofo:
É provavelmente a figura mais representativa do pensamento filosófico do
Peru do séc. XVII... Se, considerado em absoluto, Avendaño é só um valor
filosófico estimável, colocado na circunstância de ser um dos primeiros
pensadores do Novo Mundo, seu interesse aumenta extraordinariamente. É
mais, o ilustre professor limenho se encontra, assim como tantos outros
espanhóis daquele então, em um interessante término médio histórico entre
o esplendor do maravilhoso renascimento escolástico espanhol da última
metade do séc. XVI e o primeiro quarto do XVII, e a evidente prostração e
79
ancilosamento da Filosofia cristã no séc. XVII .
Para melhor entender a Avendaño e ponderar com maior exatidão o peso do
seu pensamento precisamos ver alguns aspectos da sua personalidade. Isso nos
servirá de plataforma explicativa das ideias expostas no Thesaurus.
1.1.
Avendaño, espanhol-peruano.
O seu ser espanhol influenciou singularmente na sua obra. Para um espanhol
é comum e conatural buscar a glória dos seus Reis e o amor à sua pátria e ao
próprio, ainda nos dias de hoje, tem um matiz todo especial e singular. Não cabe a
menor dúvida do sentimento espanhol do nosso autor, quem não perde
oportunidade de buscar através da tinta a glória dos seus reis, ainda mais em um
tema tão importante para um escritor americano: o tratamento aos índios.
Para ele os reis não são só superlativamente religiosos e justos, mas também
de coração piedoso; virtude essa derivada da justiça. Assim nada há de tirânico e
sim muito de magnanimidade. Ao descrever os reis e suas qualidades não faltam
para Avendaño as hipérboles: Filepe IV governa melhor que Augusto; Felipe II é o
78
Recolhido por M. Mendiburu, Diccionario Histórico-Biográfico del Perú, 293. Tradução de própria
autoria.
79
GUIL BLANES, F.; La historia en el Peru del XVII, Estudios Americanos, X, n. 47, 179, 181, em
AVENDAÑO, Diego de; Derecho, Consejo y Virreyes de Indias. Thesaurus Indicus, vol. I, Tít. I-III
(1668). Edição, introdução e tradução de Ángel Muñoz García. ed. Eunsa Pamplona, 2001, p. 56.
57
Salomão espanhol80. Por isso, é normal que Deus tenha lhe confiado o maior dos
impérios. Não obstante tamanha devoção para com os seus reis, os admoesta com
discrição pedindo, em vários momentos do Thesaurus, que sejam fiéis à missão que
lhes foi confiada de proteger aos índios81.
Dois fatores serão decisivos para nosso autor na hora de afrontar a
problemática: país de origem e religião. Mas apesar do seu espanholismo,
Avendaño termina o Título I do primeiro volume do Thesaurus protestando ser
“alguém de quem não se pode suspeitar que é movido só pela vinculação de sua
origem, nem ao que por falta de experiência – corroborada por quase cinquenta
anos – possa imputar-lhe imprudência”. Essa devoção e fidelidade que vemos nele
para com o Rei Católico é uma fidelidade para com aquele que se gloria de ser Rei
das Espanhas e das Índias, ou seja, ser espanhol era ser súdito do Rei das Índias.
Para Avendaño ser peruano é o mesmo que ser espanhol, tem o mesmo peso, é
praticamente sinônimo, assim ele aproveita para justificar o pagamento dos tributos
à Coroa Espanhola por parte dos índios, já que estes são tão vassalos quanto os
espanhóis82.
Pelo tempo passado em terras andinas, maior parte da sua vida, refere-se a
elas como nossas Índias83. Por isso, a base do seu estudo, que é casuístico, são
experiências vividas na América, isso lhe permitirá falar não das Índias em geral,
mas a descer no particular, na situação concreta do índio peruano e Yanaconas, à
licença matrimonial para os Ouvintes do Peru, às minas de Huancavelica ou Potosí,
os Concílios Limenses, a coca. Chegando a casos bem concretos como quem
levava o correio nas principais estradas, qual era o lugar de maior venda de coca e
seus maiores consumidores. Ao longo do Thesaurus pode-se palpar esses detalhes,
esses particulares, mas o que mais denota o seu ser peruano é o amor que tem por
80
Thesaurus, Vol. I, Tit. I, n. 169; 115, 112.
Cf. Thesaurus, Vol. I, Tit. I, n. 75, 80, 82s., 91, 105, 108, 112ss., 117s., 120, 129ss., 152, 160, 172,
178.
82
Thesaurus, vol. I, Tit. I, n. 170.
83
Ibid. Tit. III, n. 83.
81
58
essas terras, ao considerá-la rainha das regiões, região nobilíssima e região com a
qual se sente devedor por muitos títulos84.
1.2.
Avendaño, moralista e jurista.
Em vários momentos faz alusão e pratica o probabilismo, essa é a sua
bandeira moral, percebe-se de modo especial ao tratar sobre a legitimidade do
trabalho dos índios nas minas85. Avendaño tinha uma dupla preocupação em seu
Thesaurus, uma de cunho moral-teológico, como um bom sacerdote jesuíta, voltado
ao sacramento da confissão, buscando auxiliar aos confessores na orientação dos
fiéis nos casos de dúvidas de consciência; e outra de cunho moral-jurídico, voltado à
orientação dos cidadãos, também nos casos de consciências duvidosas, mas aqui
na adequação às leis positivas.
Coerente com a posição probabilista aceita que seus adversários na
discussão possam levar à prática uma opinião menos provável, mesmo contrárias à
sua opinião, que em certos casos era mais provável, como se vê diante da
permissão do Rei no trabalho indígena em minas; fato que o jesuíta era contra.
Pode-se ver essa coerência também na aceitação das doações pontifícias aos Reis
e nas deduções lógicas, em casos de escrúpulos dos confessores diante de
suspeitas prováveis86. Sustenta explicitamente que é suficiente uma opinião ou
igualmente provável, mesmo que a contrária seja muito provável, preferindo a
probabilidade
intrínseca
a extrínseca.
Denuncia a
incorreta
aplicação
do
probabilismo e aceita opiniões contrárias a sua, mesmo quando considera a sua
mais provável; um ‘mais provável’ que não significa estar mais perto do certo, mas a
que é “fortemente provável”: essência do probabilismo87.
84
Cf. Ibid. n. 01, 02, 05.
Ibid. Vol. I, Tit. I, n. 113.
86
Ibid. n. 12, 87s., 95; 19; 144, 155.
87
Ibid. n. 113, 164, 50; 111, 133, 155; 161.
85
59
Avendaño, como testifica as páginas introdutórias do Thesaurus, se apresenta
como o moralista que pretende orientar as consciências dos governantes. Mas ao
contrário de ser um moralista com base em princípios supremos e aplicando-os a
todas situações, vemos sobretudo um moralista de situação, de casuística. Nota-se
essa posição ao tratar da licitude de um Vice-rei comercializar. Primeiramente deixa
claro que não é lícito esse ato por parte do Vice-rei, mas deixa em aberto a
possibilidade contrária ao considerar tal opinião provável. Justificando-o que com
esse comércio os preços podem baixar e as igrejas podem conseguir ornamentos
mais facilmente88.
No Thesaurus fica claro que a ética manifestada está focada, sobretudo, no
ponto de vista jurídico e não tanto em uma teologia moral, propriamente dito. Esse
foco não impede que exponha normas morais. O que acontece aqui é que Avendaño
tomou o jurídico, a lei positiva, como pedra de toque da norma moral; raramente fará
alusão a temas estritamente teológicos. Assim como o fato ilustrado acima, haverá
muitos ao longo da obra que manifestam certa contradição na doutrina do jesuíta,
mas esse aparente problema se explica com o probabilismo, que nada mais é,
estritamente falando, que a casuística, ou seja, ele não aplica princípios a casos,
mas estuda os casos aos quais haverão de adotar os princípios.
Essa opção pelo jurídico, não quer dizer que ele se ocupe de assuntos
judiciais, mas como consta no início da obra, ele pretende ocupar-se de moral. Por
outra parte, Avendaño nunca estudou Direito, a não serem os previstos dentro da
carreira sacerdotal, ou seja, não consta entre os seus biógrafos que tenha graus
acadêmicos nessa disciplina. A sua obra nos apresenta Avendaño com uma sólida
formação jurídica. Ao analisar a obra posteriormente comprovaremos tais
conhecimentos, especialmente no concernente a temas como escravidão,
encomendas ou serviços pessoais.
88
Ibid. Tít. III, n. 21.
60
Não podemos deixar passar alguns elementos significativos lhe auxiliarão o
autor no momento de estabelecer seus pressupostos jurídicos. Elementos que
poderiam passar desapercebidos, ao identificá-los pertencentes ao vocabulário
comum, mas que o jesuíta os utiliza conhecendo o seu pleno e próprio sentido
jurídico. Veja-se os términos ‘clientes’ e ‘vernáculos’89, assim como os conceitos de
‘domínio’, ‘possessão’, ‘entredito’, ‘interrupção’ e ‘usucapião’.
Clientes: aplica-o aos índios com relação ao Rei da Espanha. Está longe de
ser usado como o significado atual de ‘comprador habitual’, é usado no seu sentido
primário e antigo: “pessoa que está baixo a proteção ou tutela de outra”90. Entre os
romanos, os clientes eram pessoas (especialmente vencidos de guerra) que se
colocavam baixo a proteção de patrícios, para conseguir uma vida, que apesar de
ser menos livre, era sem dúvida mais segura. O patrão (Patritium) dava aos seus
clientes terras para cultivar, assistência e defesa; o cliente retribuía com respeito e
assistência, também. Tal condição era hereditária.
Vernáculo: aplicado por Avendaño aos Yanaconas. Vem de verna (diminutivo,
vernáculus) e não quer dizer ‘nativo’, mas se atribui ao escravo nascido na casa do
amo. Os Yanaconas não eram considerados escravos, mas nascidos, em sua
maioria, de índios servidores, na casa dos senhores.
Possessão: de acordo com o direito romano, é ter algo em seu poder, com
vontade de retê-lo a modo de proprietário. Mesmo acompanhada, na maioria das
vezes, da propriedade, possessão é um fato, não um direito, é um poder material.
Interrupção e entredito: o primeiro é o que faz perder a possessão, pois bem,
o possuidor que sentir lesada a sua possessão acudiria à instância superior que,
sem julgar, restituiria a possessão, esta sentença é o entredito.
89
Ibid. Tit. I, n. 103, 153.
“Cliente”,
em
Dicionário
Priberam
da
Língua
Portuguesa.
Disponível
<http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=cliente>. Acessado em 05-11-2012.
90
em:
61
Domínio: Avendaño parte da premissa do domínio temporal dos Papas e da
sua faculdade de transmiti-lo aos Reis de Castilha. É um erro para ele, sustentar que
o domínio das Índias estava nos caciques. Com isso, ele aplicava a prática romana,
que considerava as províncias como propriedade do Estado e que os particulares
que residiam nelas tinham só a possessão delas. Essa tese serve para justificar a
legitimidade de impor tributos aos índios.
Usucapião: possessão prolongada, contínua e de boa fé. A possessão por si
só não leva consigo a boa fé. Usa esse conceito ao tratar da possessão da corona
de Castilha sobre Portugal, durante 60 anos, depois que a Casa de Bragança volta
ao trono, em 1640. Alega que essas terras pertenciam ao Reino de Castilha e não
mais a Portugal, pelo tempo que esteve em sua posse.
Outro término que merece atenção é obligatio: para Avendaño a recompensa
dos reis aos descobridores e conquistadores está baseada na obrigação natural de
corresponder aos favores recebidos91, ou seja, é uma obrigação. Avendaño apela ao
Direito, segundo o qual a obligatio é uma relação entre dois, no qual um deles se vê
constrangido a algo; em outras palavras, essa relação cria um ius proprium ou direito
de crédito no ‘credor’ e uma obligatio no ‘devedor’, fundada no direito do ‘credor’.
Por último, aclaremos o que se entende por esta sentença: ‘obedece-se, mas
não se cumpre’, aplicada frequentemente nas colônias. Nosso autor apela a ela ao
dizer “que uma lei não aceitada pelo povo não é obrigatória”92. Apesar de uma
aparente rebeldia, este aforismo tem um fundamento teórico. Primeiramente há de
entender-se o conceito de lei. Para os romanos lex é algo prévio ao preceito que
obriga, ou seja, é um projeto de lei apresentado ao povo para sua sanção e posterior
obrigatoriedade. Promulgar uma lei consistia em dá-lo a conhecer para sua ulterior
votação e aceitação ou rechaço. Prática essa seguida durante a Idade Média e que
chegou às colônias. Como a lei é uma ordinatio rationis, a sua obrigatoriedade está
91
92
Cf. Thesaurus, Vol. I, Tit. I, n. 58.
Ibid. n. 155.
62
essencialmente ligada à sua promulgação, por isso, desde a Idade Média se
consideraram dois momentos na aceitação das prescrições reais: sua obediência e
seu cumprimento. Assim uma disposição régia não era considerava promulgada,
ficando sem efeito de obrigatoriedade, a não ser que fosse aceita pelas autoridades
locais. Com isso, se cunho a seguinte fórmula, bastante seguida nas colônias:
‘acata-se, mas não se cumpre’.
2. OS THESAURI E O THESAURUS INDICUS.
Comumente se conhece por ‘Thesaurus’ ou ‘Tesauro’ uma lista de conceitos,
vejamos a definição:
O thesaurus é um instrumento que reúne termos escolhidos a partir de uma
estrutura conceitual previamente estabelecida e destinados à indexação e à
recuperação de documentos e informações num determinado campo do
saber. Não é simplesmente um dicionário, mas um instrumento que garante
aos documentalistas e aos pesquisadores o processamento e a busca
93
destas informações .
Os términos que conformam um thesaurus podem estar relacionados sob as
seguintes características: relações hierárquicas, relações de equivalência, relações
associativas. Há vários exemplos de thesauri, cito alguns: Thesaurus of English
Words & Phrases94; Webster's New World Thesaurus95; Thesaurus of Psychological
Index Terms96, entre outros.
Na época da colonização, pelo menos séculos XVI-XVIII, o término Thesaurus
tem uma conotação diferente. Thesaurus, como seria depois traduzido para
‘tesouro’, representa algo valioso, de sumo valor, seja esse material ou espiritual.
Temos duas obras que reforçam a nossa tese. A primeira, Tesoros Verdaderos de
las Yndias, escrita em três volumes, em 1681, pelo Pe. Juan Meléndez, O.P. Esses
93
Do site Só Filosofia: http://www.filosofia.com.br/biblioteca_show.php?id=31. Acessado em 17-012013.
94
ed. P. Roget; ISBN 0-06-272037-6.
95
ed. C. Laird; ISBN 0-671-51983-2.
96
APA; ISBN 1-55798-775-0.
63
‘tesouros’ são a história dos Dominicanos e suas obras, principalmente na Província
de São João Batista do Peru. Certamente a ‘Universidade Nacional Maior de São
Marcos’ pela colaboração que deu na extensão da cultura e ciência no Peru e quase
toda a América é um dos seus principais tesouros. A obra relata, como uns dos seus
principais tesouros, o trabalho evangelizador de alguns santos, como Santa Rosa de
Lima, São Martinho de Porres, São João Macías, etc97.
Outra obra que testifica essa mudança é a obra do estudo, o Thesaurus
Indicus98 do jesuíta Diego de Avendaño. Percebe-se que este Thesaurus tem um
pouco das duas concepções: por um lado os seus títulos seguem uma ordem
hierárquica, ou seja, há uma relação hierárquica, mas por outra, desenvolve cada
um desses títulos, não se limitando a caracterizá-lo somente. Dá muita mais ênfase
a questões morais. Como veremos ao longo da obra, os Thesauri de Avendaño são
as pessoas das assim chamadas Índias.
O próprio autor justifica aos leitores o porquê do nome da obra, deixo que ele
nos explique:
Ninguém criticará, suponho, que eu tenha chamado Tesouro, pois é um
título frequente nos escritores; de fato, há Tesouro da Sagrada Escritura,
Tesouro da língua sagrada, Tesouro da língua latina, Tesouro da língua
grega, [...] Tesouro Católico, Tesouro Eclesiástico, Tesouro de ambas as
Teologias, Tesouro de casos de consciência, Tesouro dos pregadores, [...] e
o mais antigo de todos, Tesouro da fé ortodoxa, de São Cirilo Alexandrino.
Nenhum sensato criticou de pedantes aos autores destas e outras obras.
Também na presente se pode falar de Tesouro: além do significado corrente
de acervo de muitas coisas úteis para proveito comum, se dá a
circunstância especial de que se advoga em favor da Índias, já que se trata
da sua promoção e urgente conversão à fé [...] Não devem considerar –
com o mesmo antagonismo – como vis as riquezas da Sabedoria, extraídas
(como de riquíssimas minas) dos escritos dos grandes autores,
cuidadosamente organizadas em uma obra escrita deliberadamente em pró
97
Cf. MELÉNDEZ, J.; Tesoros Verdaderos de las Yndias. Primeros capítulos del primer tomo.
Llegada de los Dominicos a América – Padre Tomás de San Martín, Fundación de la Universidad
Nacional Mayor de San Marcos. UNMSM Fondo Editorial; Lima. 2010. Prólogo.
98
AVENDAÑO, Diego de; Thesaurus Indicus seu Generalis Instructor pro regimine conscientiae, in iis
quae ad INDIAS spectant. Tomus Primus, Ea continens, quae ad civilem praesertim conducunt
Gubernationem. Antuerpiae. 1668. Para os estudos desse trabalho utilizo as edições críticas
elaboradas por Ángel Muñoz García e editadas em 4 volumes pela ed. Eunsa, de Pamplona, de
2001-2009.
64
das Índias e a partir das Índias, e levadas de aqui até Europa, para que
99
alcance também a outros a utilidade deste Tesouro .
Lê-se com frequência que o Thesaurus Indicus é composto por seis volumes,
editados entre 1668 e 1686. Mas o próprio Avendaño fala aos leitores de “dois
grossos volumes” com a intenção de tratar assuntos morais, mais que causas
judiciais. Ambos os volumes foram publicados em Amberes, em um só volume, em
1668. Posteriormente, foram incorporados como volumes do III ao VI, os quatro
volumes de um Actuarium Indicum, também publicados em Amberes, nos anos
1675, 1676, 1678 e 1686 respectivamente.
O Thesaurus é a principal obra do jesuíta, veio depois de várias obras
teológicas. Os dois primeiros volumes, terminados por volta de 1664, tendo em
conta a data da Licença de edição (dezembro desse ano). Levou sete anos,
aproximadamente para escrevê-los, assim como os outros quatro volumes do
Actuarium. Quem agregou os posteriores volumes ao Thesaurus foi o próprio
Avendaño, nas edições, como pode-se ler no último volume: Cursus consummatus
sive Actuarii Indici tomus quartus et Thesauri tomus sextus. Mais que um jogo de
palavras, o Thesaurus era para Avendaño o seu ‘tesouro’. O que nos permite afirmálo são as suas próprias palavras aos leitores, vejamos: é uma espécie de testamento
espiritual, visa a utilidade e bem comum, considera-se deudor do povo americano e
indígenas, especialmente, por tudo o que lhe haviam fornecido nesses quase 50
anos vividos nessas terras. Busca fazer dessa obra uma guia das consciências ao
povo das Índias.
Angel Losada destaca dois aspectos, que ao seu parecer, são fundamentais
na obra do professor limenho: sua árdua e férrea defesa da dignidade do homem,
quaisquer que sejam as vicissitudes e circunstâncias históricas, sem distinção de
99
AVENDAÑO, Diego de; Derecho, Consejo y Virreyes de Indias. Thesaurus Indicus, vol. I, Tít. I-III
(1668). Edição, introdução e tradução de Ángel Muñoz García. ed. Eunsa Pamplona, 2001. Ao leitor:
n. 03. Nas citações colocarei o Título e o número correspondente, tomando como referências as
edições de 2001, 2003, 2007 e 2009, para o Volume I.
65
condições políticas, raciais ou religiosas, e também, sua decidida defesa dos direitos
tanto dos índios americanos, como dos negros africanos100.
Diante de tantos elogios e constatações da grandiosidade dessa obra, é difícil
de acreditar como tenha ficado tanto tempo no esquecimento, distante das mãos dos
investigadores. Da sua primeira edição, em 1668, até os dias de hoje foram poucos
os pesquisadores que se debruçaram sobre as suas páginas. Cabe destaque para o
Dr. Ángel García Muñoz, que em 2001 começou uma série de publicações da edição
crítica da obra com a publicação dos três primeiros títulos do primeiro volume. Sendo
se não o único estudioso de todo o Thesaurus, sem dúvida o mais importante
expositor e conhecedor na atualidade do tesouro de Avendaño.
2.1.
Fontes.
As fontes dessa obra manifestam como Avendaño era um exímio conhecedor
dos dois direitos da época: civil e canônico; nutriu-se de abundantes autores,
teólogos, uns, filósofos, outros e claro, como bom sacerdote, encontramos
abundantes referências à Bíblia, assim como documentos papais e conciliares.
Sem dúvida alguma, o Direito é a fonte primordial do Thesaurus. Pode não
haver tantas referências, mas o Ius Commune, sustenta sempre o pensamento de
Avendaño, pois este Direito, chamado também de Direito Antigo, é a base jurídica
primordial na sua época, como fiz notar ao apresentar o conhecimento jurídico do
jesuíta. Esse Ius era integrado pelo Corpus Iuris Civilis e o Corpus Iuris Canonici.
Roma, a Mãe do Direito, o concebeu como uma arte, ou seja, um instrumento prático
100
Cf. LOSADA, A.; Diego de Avendaño S.I. Moralista y jurista, defensor de la dignidad humana de
indios y negros en América, 6; em AVENDAÑO, Diego de; Derecho, Consejo y Virreyes de Indias.
Thesaurus Indicus... p. 56
66
para regrar a vida de cada dia, fundamentado no princípio da equidade: “quod
semper aequum ac bonum est, ius dicitur”101.
O Corpus Iuris Civilis é uma agrupação de vários direitos antigos, ou melhor,
de várias agrupações de normas, de costumes que iam se transformando em regras,
como se observa no ius privatum, que dirigia as relações entre particulares, o ius
gentium, conjunto de direitos romanos que os estrangeiros podiam acessá-los, o ius
civile, inicialmente entendido como conjunto das normas de cada povo, depois
transformou-se no direito próprio do povo romano. Outro caso que merece destaque
é a transformação de costumes em leis dos assim chamados bárbaros (Leges
barbarorum) e ao mesmo tempo, respeitando as leis e costumes do conquistado
povo romano (Leges romanorum). Tanto é assim que Justiniano fala no Digestum
de um ius consuetudinis102.
Com o Digestum começa-se uma separação entre o Corpus Iuris Civilis e o
Corpus Iuris Canonici. Este último surge, mais precisamente, no sec. XII, mas desde
a época de Calos Magno começam a circular documentos que pretendem constituirse em fontes da jurisdição eclesiástica. Um dos primeiros documentos encontrados
foi forjado com a finalidade de suportar as pretensões do papado como herdeiro do
Império Romano e a supremacia dos Papas sobre o Imperador103. Por volta de 1140
aparece o Decretum Gratiani, ou Concordia discordantium canonum, busca copilar e
sistematizar as disposições existentes até então. Junto ao Decretum as cinco
Decretais, promulgadas por Gregório XI por volta de 1235, formavam o Corpus Iuris
Canonici; posteriormente foram adicionando as Clementinas e as Extravagantes.
Apesar de serem uma reunião de regras do dia a dia, formando assim a base
das ações e dos juízos éticos de Avendaño, são usados como referência em várias
passagens do Thesaurus. Cito a modo de exemplo uma passagem da Extravagante
101
Digestum, Lib. 1, Tít. 1, frgm. 11.
Cf. Ibdem, 6, 3.
103
Cf. MAFFDEI, D.; La Donazione di Cionstantino neu giuristi medievali, Milão, 1964. Em Thesaurus
Indicus... p. 65.
102
67
Unam Sanctam, usada pelo filósofo limenho, ao levantar uma objeção ao direito dos
reis católicos sobre as Índias: “Finalmente, declaramos, afirmamos, definimos e
proclamamos que é absolutamente necessário a toda humana criatura, para sua
salvação, o submeter-se ao Romano Pontífice”.
Outra fonte de especial releve são as Recopilaciones de Leyes de Índias,
compondo o que Muñoz García chama de ‘Direito Posterior’ para diferenciar do
‘Direito Antigo’, já exposto acima. Essas eram formadas por dois tipos de
documentos: bulas e conciliares.
Avendaño recorre à autoridade de muitos papas expressadas em Bulas ou
Cartas Apostólicas, entre eles figuram Antero e Pio V, deste menciona-se uma bula
sobre os censos: Constituição In eam pro nostro (28-1-1571)104. Como já
mencionado acima, temos a Extravagante Unam Sanctam, de Bonifácio VIII, com a
teoria das duas espadas; bastante usada na discussão sobre o ‘direito dos reis
sobre as Índias’, no cap. I do primeiro volume105. O papa mais citado é Alexandre VI
e as suas bulas de doação das Índias aos Reis Católicos: duas que levam o nome
de Inter caetera (3 e 4-05-1493), Eximiae devotionis (3-7-1493) e Dudum siquidem
(25-9-1493)106.
Ao defender a legítima concessão das Índias aos Reis Católicos, o limenho
cita a Inter caetera e a Eximiae devotionis no mesmo parágrafo. Cita Avendaño a
Alexandre VI:
“Com a autoridade do Deus Onipotente concedida a Nós na pessoa de São
Pedro, e do Vicariato de Jesus Cristo que exercemos sobre as terras e
todos seus senhorios, cidades, acampamentos, lugares e vilas, todos os
direitos e jurisdições e pertences, por teor das presentes, lhes doamos,
concedemos e designamos para sempre (aos Reis de Castilha e Leão) e a
vossos herdeiros e sucessores, etc”. São palavras do Pontífice. O que,
104
Thesaurus, Tit. I, nn. 17s, 175.
Ibdem, Tit. I, nn. 17, 1, 8.
106
Para mais informações ver AVENDAÑO, D.; Thesaurus Indicus..., pp. 68-71.
105
68
tendo feito menção da anterior, confirma em outra Bula da mesma data,
garantindo os privilégios que foram concedidos aos Reis de Portugal para
semelhantes expedições: “Por própria resolução, com pleno conhecimento
de causa, e em total exercício da potestade Apostólica, demos,
concedemos e designamos para sempre a vós (Reis de Castilha e Leão) e a
vossos herdeiros e sucessores [as terras] descobertas e por descobrir no
futuro, que não se encontrem sob atual domínio temporal de algum Senhor
Cristão, junto a todos seus senhorios, cidades, acampamentos, lugares,
107
vilas e jurisdições”. São suas palavras .
Ao tratar do problema da legitimidade da escravidão, cita os Papas Nicolau V
e Calisto III, já lembrados na problemática anterior. Dentro deste mesmo problema,
lembra dois documentos do Papa Paulo III: Dilecte fili noster e Sublimis Deus108. Até
então, o maior defensor dos índios, até mesmo do batismo destes e ilegitimidade da
escravidão desses. Avendaño, apoia-se nesses textos para defender a sua posição
contrária à escravidão perpétua:
Em primeiro lugar, sustenho que os índios, em geral, não puderam nem
podem ser submetidos à escravidão perpetua. Consta pela repetida
declaração de Paulo III: em efeito, na Bula que começa Dilecte fili noster, de
23 de maio de 1537, dirigida para sua execução ao Cardeal Tavera, diz
assim: “Por tanto Nós, considerando que os índios, a pesar de gerados fora
do grêmio da Igreja, não devem ser privados da sua liberdade ou do
domínio de seus bens, e que sendo homens e, por tanto, capazes da fé e
salvação, não devem ser exterminados pela escravidão, mas convidados à
109
vida com pregações e exemplos, etc.” .
Uma Bula bastante recorrida por ele é a assim chamada ‘Bula da Ceia’. Leva
esse nome, porque até Clemente XIV, em 1770, acostumava-se promulgar todos os
anos na Quinta-feira Santa em Roma e lida, no mesmo dia, em todas as Catedrais.
Ela recolhe uma série de condenações, principalmente para aqueles que violavam a
jurisdição eclesiástica. O seu autor parece ser o Papa Martinho V (aprox. 1420),
recolhendo as censuras do Concílio de Constanza (1414-1418).
Outra espécie de fontes seguida por Avendaño são os Concílios. Merece
destaque as disposições de reforma do Concílio de Trento, que estão presentes em
dois temas considerados pelo jesuíta de suma importância para as colônias: “o da
107
Ibdem, Tít. I, n. 2.
Cf. sobre o assunto envolvendo essas bulas: AVENDAÑO, D.; Thesaurus Indicus... Introdução, pp.
71-73.
109
Thesaurus, Tit. I, n. 99.
108
69
rapidez com a qual se deveria fazer as nomeações dos Bispos e o do cuidado em
eleger para os cargos eclesiásticos aos candidatos mais dignos”110.
No que se refere a temas da fé, é igualmente claro. Este é o mais
importante de todos, por isso exige providências contínuas; quem demora
um ano não pode dizer que provê diligentemente, pois é muito tempo. Sobre
isso, o Concílio Tridentino, Ses. 23, cap. 1 De reformatione, tratando da
residência dos prelados diz assim: “Entretanto aqueles que viajarão
lembrem tomar medidas sobre suas ovelhas de modo que, no possível, não
111
sofram nenhum dano com sua ausência...” .
Mesmo tomando o Concílio tridentino como referência não deixa de lado os
concílios locais, de suma importância para a realidade local. A pesar do terceiro
Concílio de Lima ser o mais famoso, Avendaño cita nessa parte só o segundo
(1551), nas suas disposições contrárias à obrigação dos índios ao cultivo de coca112.
Há uma menção ao III Concílio do México (1585), no que se refere á condenação da
repartição de índios para serviço pessoal113, pois faria os índios escravos dos
espanhóis.
Claro que sendo um exemplar sacerdote e tendo uma sólida formação
teológica, não podia deixar de lado a Sagrada Escritura, que sem dúvida é uma das
suas principais fontes. São abundantes as referências ao Antigo e Novo
Testamento, não só explícita, mas há muitíssimas que estão só sugeridas ou
subjacentes. Só no Título IV, há vários parágrafos que nos demonstram114, como
podemos ver no parágrafo 151, no qual sem citar faz referência clara a II Carta de
São Pedro. Vejamos as palavras de Avendaño: “a república cristã, que deveria ser
habitáculo de anjos, se converta em lamaçal de animais imundos”115, faz nítida
referência às palavras que São Pedro dirige aos falsos doutores: “sucedeu-lhes
110
Ibdem, Introd. p. 74. Cfr. Sobre o assunto: Thesaurus, Tit. I, nn. 75, 158; Concílio de Trento: Sess.
23, c. 1 De reformatione.
111
Ibdem, Tit. I, n. 158.
112
Ibdem. Tit. I, n. 142.
113
Ibdem. Tit. I, n. 120.
114
Ibdem. Tit. IV, nn. 0, 1, 3, 6, 49, 75, 88, 90, 128, 151, 224.
115
Ibdem, Tit. IV, n. 151: “Volutabrum immundorum animantium Fiat”
70
aquilo daquele provérbio tão certo: o cão volta ao seu vômito, e a porca lavada volta
a revolver-se no lamaçal”116.
Manifesta, mais que um exercício mnemônico, um profundo conhecimento
das Escrituras, tendo o Eclesiástico como o livro bíblico mais citado, já que além de
conhecer as histórias bíblicas, conhece o duplo significado de alguns termos das
línguas bíblicas117.
Não posso deixar de fazer menção à imensa lista de autores que alimentaram
e fizeram possível o Thesaurus, servindo-se muitas vezes de base para raciocínios
do nosso filósofo. Só para citar como exemplo, o Título I tem pelo menos 730
referências, sem contar as fontes já citadas anteriormente. É até um exagero, tendo
uma média de quase vinte por página. Encontram-se Santos Padres, exegetas,
juristas (utriusque), teólogos, filósofos, historiadores, literatos... entre os primeiros,
vemos a Agostinho, Ambrosio, Beda e o Crisóstomo118. Entre os últimos, mais que
para fundamentar argumentos, servem para adornar literariamente: Ateneo de
Naucratis, Casiodoro, Cícero, Horácio, Juvenal, Sêneca, Tertuliano, Virgílio119.
Não recorre excessivamente a Tomás de Aquino120, mas não faltam teólogos
representantes da moral casuísta, como são a modo de exemplo Diana, Lessio e o
Card. Lugo121. Mas o mais citado é o seu tutor e amigo Solórzano Pereira, com o
seu De Indiarum Iure, com 44 citações, e a Política Indiana, com 34, todos no
primeiro título. Do qual menciona o seguinte panegírico: “Esta opinião do ilustríssimo
Jurisconsulto e Conselheiro Régio e Primeiro entre os jurisconsultos espanhóis é,
116
2 Pedro 2, 22: “contingit enim eis illud veri proverbii: canis reversus ad suum vomitum; et sus lota
in volutabro suo”.
117
Thesaurus, Tit. IV, n. 6.
118
Eis algumas referências na obra aos autores citados: Agostinho: Tít. I, nn. 22, 170; Ambrósio: Tit. I,
nn. 22, 37, 160; Beda: Tit. I, nn. 22; Crisóstomo: Tit. I, n. 170.
119
Eis algumas referências na obra aos autores citados: Ateneo: n. 109; Casiodoro: nn. 47, 55s., 78,
82, 85; Cícero: nn. 39, 168; Horácio: nn. 109, 121; Juvenal: nn. 36, 76; Sêneca: 23, 46s., 49, 54;
Tertuliano: n. 23; Virgílio: n. 118.
120
Thesaurus, Tit. I, nn. 13s., 40, 63.
121
Eis algumas referências na obra aos autores citados: Diana: Tit. I, nn. 1, 8, 12, 22, 40, 72-76, 143,
161, 163; Lessio: Tit. I, nn. 53, 62, 64, 72, 86, 89s., 137, 150, 175; Lugo: Tít. I, nn. 8, 71, 88, 90, 103,
157, 161, 177.
71
em verdade, muito própria de tão grande varão, que fala não para conseguir favores,
mas para estabelecer a verdade”122.
Muñoz García faz uma lista com o respectivo comentário de uma dezena de
autores123. Tomar-la-ei como guia e modelo para expor alguns autores de especial
relevância. José de Acosta, Procuranda, goza de uma especial veneração do seu
correligionário. Miguel Agia, franciscano; obra citada: Parecer favorable al servicio
personal de los indios (1601); bastante ironizada por Avendaño. Ángel Clavasio,
Summa casuum conscientiae (Veneza, 1550). Antônio Diana, Resolutiones Morales
(12 volumes, terminados em 1656), moralista, casuísta, laxista. Pedro Oñate, De
contractibus (Roma, 1646-1654), jesuíta e aluno de Francisco Suárez. Fernando
Rebello, De obligationibus iustitiae. Pedro Ruiz Bejarano, Alegato de los Yanaconas
del Perú, defende o serviço dos ‘Yanaconas’. Juan Silva, Animadversiones (1618),
se opôs aos repartimentos e à evangelização armada.
Há muitos autores de difícil reconhecimento, pois é bastante comum
encontrar só o nome ou só o sobrenome. Mas um autor ou autores que chamam a
atenção pela sua ausência são os gregos Aristóteles, Platão e Sócrates e não se
observa, pelo menos no primeiro volume, menção a Duns Escoto, a pesar de ser
notório a influência do seu voluntarismo na postura diante das leis.
2.2.
Estrutura do Thesaurus Indicus: Tomus I.
Vou centrar-me no volume I do Thesaurus, por tratar-se da limitação do objeto
deste estudo. Como já foi dito, o Thesaurus Indicus, inicialmente composto por dois
volumes, teve o acréscimo, feito pelo próprio Avendaño, dos quatro volumes do
Actuarium.
122
123
Thesaurus, Tit. II, n. 60.
Cf. Ibdem, Introdução, pp. 80-85.
72
A estrutura geral da obra segue a seguinte ordem: Tomus, Titulus, Caput,
Difficultas ou Signum Sectionis (§) ou Dubium e, quando necessário tem-se um
Appendix124. Ponho a seguir um exemplo: Tomus Primus: ea continens, quae ad
Civilem praesertim conducunt Gubernationem; Titulus V: De Regiis officialibus pro
administrando Regali patrimonio in Indiis deputatis, et eorum in foro animae
obligationibus; Caput IX: De Thesauris Indicis et quae conscientiae obligationes
circa illos. § II: Duo alia, Ubi specialiter de inuentis in locis Sacris125.
O Volume I está composto por onze capítulos e seus respectivos anexos, que
se encontram ao final do volume, depois do índice temático, exposto em ordem
alfabética. Este trata, como diz o próprio título, do que é mais propício para um
melhor governo das índias. Está direcionado aos leigos com cargos públicos,
seguindo uma ordem hierárquica.
O primeiro título é dedicado aos Reis, suas obrigações e temas relacionados
com eles. Primeiro estabelece o direito dos Reis Católicos sobre as Índias (cc. I e II),
depois trata da sua obrigação de provê-las de ministros religiosos e civis (cc. III e
IV), estes devem ser, preferentemente, beneméritos, por isso faz observações éticas
y aconselha algumas qualidades para estes ministros (cc. V-X). Posteriormente
estuda sobre a legalidade da escravidão dos índios (c. XI) e sobre a obrigatoriedade
dos diferentes trabalhos aos quais eram submetidos (cc. XII-XIV), especialmente, ao
da coca e dos Yanaconas. Finaliza com temas envolvendo o navio real, a venda de
cargos honoríficos e os tributos dos índios (cc. XV-XVIII).
Ao tratar das obrigações do Conselho de Índias, no Título II, vê, nos dois
primeiros capítulos, a obrigação de estarem por dentro de todos os assuntos das
colônias, no III e IV as obrigações na provisão de cargos; segue o tema das regalias
124
Tradução ao português: Volume, Título, Capítulo, Dificuldade ou Parágrafo (§) ou Dúvida e
Apêndice.
125
Volume I: Este contêm, o que é especialmente propício para o Governo civil; Título V: Sobre os
oficiais reais para a administração do patrimônio real nas Índias e suas obrigações para com a própria
alma; Capítulo IX: Sobre os tesouros de Índias e as obrigações em consciência com respeito a eles;
§ II: Outras duas, especialmente sobre os descobrimentos em lugares sagrados.
73
(cc. VI-VIII), para terminar com obrigações e atribuições gerais dos Conselheiros. No
Título III, dedicado aos Vice-Reis, expõe elementos éticos sobre a sua conduta (cc. I
e II), para depois tratar das suas faculdades (cc.III-VI e XIV) e suas obrigações (cc.
VII-XII), dedica um longo capítulo (XIII) aos impostos, para finalizar com um capítulo
(XV) dedicado à excomunhão dos vice-reis e outro (XVI), a assuntos vários.
O título IV é dedicado aos Juízes Reais (‘Oidores regios’) e outros membros
das ‘Audiências de Índias’. O primeiro capítulo trata de uma virtude muito importante
para um togado: a sobriedade. Os seguintes seis capítulos tratam de diferentes
obrigações dos juízes. Começa com uma proibição: receber presentes (c. II); para
depois relatar algo que nos parece óbvio: assistir aos tribunais (c. III). Os seguintes
capítulos (cc. IV-VII) trata de alguns problemas sobre as faculdades dos juízes e
audiências, relacionados à Igreja. A partir do cap. IX dedica-se a outros cargos
dentro da audiência de índias: juiz visitador do navio real, alcaide do crime, fiscais da
Real Audiência, relatores, chanceler, escrivães...
O seguinte Título (V), fala sobre os ‘Oficiais Reais para a Administração’. É
toda uma parte, com XXVIII capítulos e um longo apêndice, dedicado a assuntos
econômicos. Trata das obrigações dos contadores (c. I), sobre a negociação com
dinheiro real e compra em leilões (c. II), sobre o patrimônio régio nas Índias (c. VIII),
como são os tesouros (c. IX), pérolas, pedras preciosas (c. X). Em geral são temas
envolvendo a regulamentação ética da administração nas índias, por isso dedica
capítulos aos bens vacantes (c. XII), aos bens dos náufragos (c. XIII), aos bens
eclesiásticos (c. XIV), aos impostos marítimos (c. XVI-XVII), às rendas reais
provenientes de coisas confiscadas (cc. XVIII e XX), às rendas fiscais provenientes
de campos, prados, montanhas e rios pertencentes à coroa (c. XXI), às vendas e
lucros provenientes dessas (c. XXII), às encomendas reais (c. XXIII), ao monopólio
do transporte da neve (c. XXIV), às tabernas (c. XXV), ao cultivo das uvas (c. XXVI),
ao comércio do papel selado (c. XXVII). O último capítulo merece um especial
destaque. São mais de cem páginas126 destinadas à Bula da Cruzada127, subdivido
126
Na edição de Muñoz García; pp. 488-594.
74
em seis problemas e um longo apêndice, com quatro parágrafos e cinco dificuldades
a serem solucionadas.
O Título VI consagra quatro capítulos aos Governadores e Corregedores de
Índios. Começa tratando da obrigatoriedade do juramento dos corregedores, para
ver em seguida a sua extensão e possíveis restituições (c. III), para finalizar com
algumas outras obrigações. O seguinte título (VII) traz à tona as responsabilidades
dos ‘Encomenderos de Indias’128. Está dividido em seis capítulos, onde o primeiro (c.
I) dedica-se ao juramento destes; os dois seguintes às suas obrigações de proteção
aos índios (c. II) e obrigação espiritual (c. III). Os três últimos tratam da parte
negativa, ou seja, possíveis pecados (c. IV), da restituição (c. V) e dos tributos dos
encomenderos (c. VI).
Os próximos dois títulos não se referem a cargos ou pessoas, mas às duas
principais organizações administrativas da colônia: a ‘Prefeitura’129 (Tít. VIII) e o
‘Consulado de Mercadores’130 (Tít. IX), o primeiro cuida da política e o segundo da
economia. No primeiro caso, vê-se sete capítulos que falam sucintamente dos
oficiais da prefeitura, tais como: Senadores de Índias ou Regedores (c. I e IV),
Prefeitos (cc. II e III), Fiel Executor (c. V), Depositário Geral (c. VI) e Ministros (c.
VII). O título consagrado ao Consulado de Mercadores é bastante maior; são doze
capítulos, com os seus respectivos parágrafos, pois aqui ele não trata apenas do
Consulado e Mercadores, mas também de diversos contratos comerciais de
127
“La Bula de la Santa Cruzada es, entre las bulas de concesión de beneficios, aquella por la que se
concedían a los españoles muchos privilegios, gracias e indultos a cambio de una aportación
económica que, en un principio, se dedicaba a los gastos de la guerra contra los infieles, pero que
más adelante llegó a emplearse también para el mantenimiento del culto y las obras de caridad”. Em
Wikipedia, publicado em 23-07-12: http://es.wikipedia.org/wiki/Bula_de_la_Santa_Cruzada. Acessado
em 25-01-13.
128
“Homem que por concessão de autoridade competente tinha índios encomendados”.
ENCOMENDERO em Diccionario de la Real Academia Espanhola, disponível em
http://lema.rae.es/drae/?val=encomendero. Acessado em 25-01-2013.
129
É a tradução de Cabildo, já que corresponderia, nos dias de hoje, ao Ayuntamiento espanhol. Para
mais
informação,
ver
na
Wikipedia,
publicado
em
24-01-2013,
disponível
em:
http://es.wikipedia.org/wiki/Cabildo_colonial. Acessado em 25-01-2013.
130
“Consulado de Mercaderes o Universidad de Mercaderes era la asociación gremial de hombres de
negocio, cuyo objetivo era la defensa y promoción de los intereses de sus asociados”. Publicado em
29-12-2012, disponível em http://es.wikipedia.org/wiki/Universidad_de_Mercaderes. Acessado em 2501-2013.
75
destaque nas Índias. Uma das funções do consulado era julgar os comerciantes, por
serem do mesmo âmbito, por isso, o cap. I trata do modo de julgamento que deve
proceder-se no Consulado e o cap. II dos possíveis pecados dos seus juízes. Os
três seguintes (c. III-V) fala dos contratos de compra e venda da prata, para depois
tratar dos contratos dos índios designados às minas (c. VI) e outros contratos dos
índios e mineiros espanhóis (c. VII). Os próximos capítulos abordam temáticas mais
pecuniárias. O cap. VIII questiona a legitimidade dos mercadores venderem
mercadorias ultramarinhas e se a autoridade pode taxá-las. O IX chama a atenção
para ter-se em conta nos contratos o lucro cessante. O X cuida dos riscos que se
devem ter em conta nos diferentes contratos realizados nas Índias, que dá pé aos
dano que emergem desses contratos (c. XI). Termina abordando diferentes
contratos, especialmente os de eclesiásticos (c. XII), como: o da coca, contratos de
religiosos com aspecto de negócio e sobre a compra e venda de escravos etíopes,
entre outros.
Os últimos dois títulos deste volume abordam temas relacionados aos índios,
principalmente, veja-se a seguir: ‘Mineiros de Índias’ (Tít. X) e ‘Protetores de índios’
(Tít. XI). Ao tratar dos Mineiros de Índias levanta no Cap. I uma longa lista de
quarenta e três situações, nas quais os mineiros manifestadamente delinquem e
depois levanta quatro questões: cap. II, ‘se as ordens sobre o descumprimento e a
denúncia jurídica de minas obrigam no foro da consciência’; cap. III, ‘sobre os que
buscam minas em fundos alheios’; cap. IV, ‘como há de estimar-se o preço das
minas’; e cap. V, ‘se o mineiro pode vender a prata viva, que lhe foi vendida a baixo
preço pelos Oficiais Reais para suas próprias minas’.
Já o Título XI, consagrado aos Protetores de índios, aborda três questões:
cap. I, ‘a quais obrigações estão submetidos os Protetores de Índios no foro da
consciência’; cap. II, ‘sobre o Administrador de censos de índios’; cap. III, ‘sobre o
Administrador do Hospital de índios’. Conclui o volume I com um amplo anexo aos
onze títulos abordados nessas quatrocentas e vinte e sete páginas, chamado por
Avendaño de Complementos.
76
3. O PROBABILISMO NO THESAURUS: A ADMINISTRAÇÃO DA
JUSTIÇA.
O órgão encarregado de administrar a justiça era o assim chamado
‘Audiência’, que ainda hoje em alguns países hispanoparlante, se denomina ao
tribunal colegiado, por regra geral de apelação, que conhece destas “ouvindo” às
partes, com jurisdição em um determinado território e por extensão, ao lugar ou
edifício onde funcionam os Tribunais, e ao território de sua jurisdição. Por isso, se
pode dizer que ‘oidor’ (ouvidor) é sinônimo de juiz. Mas o que eram as Audiências?
Inicialmente eram os próprios reis que escutavam as reclamações ou pedidos
dos seus súditos. Desde a época de São Fernando, um corpo de delegados ouviam
estas reclamações e informavam ao soberano os diferentes assuntos. Era a real
Audiência ou Tribunal de Corte. A partir de 1371 se estabelece o número de sete
juízes para os pleitos civis, dos quais três deveriam ser bispos e quatro leigos; e de
oito alcaides ordinários para as causas criminais. Em 1387, se eleva a seis bispos e
dez letrados, criando-se também o cargo de procurador fiscal da Audiência. A partir
desse momento, a administração da justiça fica totalmente a cargo da Audiência,
não precisando da presença do rei. Em 1452 a residência da Audiência se fixa em
Valladolid, criando outra na Cidade Real em 1494, mudando-se para Granada,
posteriormente. Com o tempo surgem outras, convertendo-se assim em Tribunal
Regional131.
Com respeito às colônias americanas a coroa não quis, inicialmente, que se
erigisse audiências, algo que se fez necessário quando começaram os pleitos entre
os colonos, como sinaliza Solórzano Pereira. E ele mesmo caracteriza a Audiência
como o lugar “onde se cuida da justiça, os pobres encontram defesa dos agravos e
131
Cf. AVENDAÑO, Diego de. Oidores y oficiales de hacienda. Thesaurus Indicus, vol. I, Tít. IV y V
(1668). Edição, introdução e tradução de Ángel Muñoz García. ed. Eunsa Pamplona, 2003;
Introdução, p. 60-63.
77
opressões dos poderosos e a cada um é dado o que é seu”132. Ele mesmo dirá que
são a alma da república133.
A primeira delas se cria em 1511, em Santo Domingo. Em 1542 se criava a de
Lima, da qual dependiam as de Panamá (1538), Santafé de Bogotá (1548), La Plata
o Charcas (1559), Quito (1563) e Chile (1565-1573; novamente em 1606). Podiamse distinguir dois tipos de Audiências: as vice-reais, próprias das cabeças do Vicereinado, presididas pelo vice-rei; e as pretoriais, presididas pelo governador ou
capitão geral, e com algumas atribuições a menos que a vice-reais134.
Fica evidente que a sua principal função era a administração da justiça, mas
nas colônias, pela sua distância da metrópole e, consequentemente, do Conselho de
Índias fez com que essas ampliassem as suas funções, até fazer delas, na prática,
algo como o Conselho de Índias nas Índias. Pois além de conhecer as causas civis e
criminais, eram tribunal de apelação, com faculdade de avocar para si algumas
causas; lhes era encomendado o governo em caso de doença ou morte do vice-rei,
em cujo caso, o juiz mais antigo exercia como presidente; e um juiz por turno deveria
estar sempre em Visita. Encarregavam-se também da fiscalização do bens de
defuntos, Tribunal de cruzada, assuntos concernentes ao patronato, regalias e casos
de usurpação da jurisdição real135.
Entre os principais cuidados estavam o ensinamento e cuidado dos índios no
espiritual e temporal contra os abusos dos corregedores de índios, além da
cobrança do dízimo. Havia situações nas quais o vice-rei devia consultar a
Audiência, principalmente em referência ao Conselho de Finanças e Auditoria de
132
SOLÓRZANO PEREIRA, J., Política, L. V, c. III, nn. 7, 9.
Ibdem; L. V, c. III, n. 8.
134
Para mais informções: ENCINA, D.; Cedulario Indiano, Madrid, 1596; ed. facs., Madrid, 1945. I, pp.
25s. E RUÍZ GUIÑAZU, E.; La magistratura indiana, Buenos Aires, 1916.
135
Cf. ENCINA, D.; Cedulario Indiano; cc. I-II. em Thesaurus: Oidores y oficiales... p. 62.
133
78
Guerra. Isso levava a um equilíbrio de poderes e certa continuidade no governo, pois
além de colaborar, cada parte deveria controlar à outra136.
Uma última anotação às Audiências. Estas recebiam também o nome de
‘Chancelaria’, pois eram as depositárias do selo real com o qual o chanceler selava
nelas as Provisões. Cargo que não gozava de muita estima nas Índias, algo
estranho, posto que ao selo real lhe rodeava de protocolos e cerimônias como se
tratasse do rei em pessoa137.
Apesar do anterior, Avendaño dedica a maior parte do Título IV à função que
para ele era “a de mais importância na República”138. É muito compreensivo essa
valorização, pois a conservação das colônias, por parte da Espanha, dependeria
fundamentalmente de como fossem e se comportassem esses ‘oidores’, ou melhor,
‘juízes’. Porque o ter em mãos a administração ordinária da justiça fazia destes
oficiais reais o esteio da república na administração das colônias. Ao assumirem
uma função, que inicialmente era próprio do Rei, se constituíram em seus principais
representantes, ainda mais, tendo em conta a dificuldade da presença física do Rei
nas colônias.
Por tão grande importância, o jesuíta começa o título com algumas
considerações sobre as qualidades morais e humanas que deveriam ter os juízes.
Resumidamente, se pode dizer que as suas qualidades, seriam, em sua maioria, as
mesmas que adornavam o Rei, posto que o primeiro número deste título diz: “Aos
juízes de Índias deve-se aplicar praticamente o mesmo que se discutiu no Título II
sobre os Senhores do Conselho Supremo”. E no número um do Título II, disse o que
segue: “dito no Título precedente sobre as obrigações dos reis católicos se aplica,
em sua maior parte, ao Real Conselho de Índias”.
136
Cf. ENCINAS, D.; Cedulario Indiano, II, pp. 166-173; e SOLÓRZANO PEREIRA, J.; Política, L. V,
cc. IIIss.
137
Thesaurus, Tit. IV, nn. 203; 212.
138
Ibdem, Tit. IV, n. 14.
79
Cabe destacar alguma dessas qualidades, externadas no Thesaurus, pois
como representam a justiça do próprio rei “devem brilhar com especial nobreza de
conduta”139. Exige-se por isso uma qualidade de suma importância: a probidade, ou
seja, integridade e honradez. Outra qualidade que vai da mão dessa é a sabedoria,
pois, como diz o Eclesiástico 10, 1s: “o juiz sábio julgará seu povo e o governo do
sensato será firme; conforme o juiz do povo, assim são seus ministros”. Por esses
motivos, na hora de julgar a idoneidade do candidato para o cargo, não se pode
deixar de lado a sua ambição, não dos que se julgam capazes e pedem o cargo,
mas daqueles que oferecem dinheiro para ocuparem o cargo; pois o único preço
apropriado para adquirir esses cargos são, como dizia Avendaño, a probidade e a
sabedoria.
Após essas conditiones sine qua nom, pede-lhes, em primeiro lugar,
castidade. Pois, a concupiscência impede um julgamento imparcial e só a castidade
pode ser juíza em causa de castidade140. À castidade deve acompanhar a modéstia,
que freia o orgulho e a jactância. A modéstia evita com que sejam mais
desprezáveis e lhes auxilia na hora de julgar, pois do contrário suscitaria ódios e
perseguições implacáveis. Entenda-se por modéstia a própria humildade, que é uma
virtude cristã e os fará melhores cristãos141.
Finalmente os juízes devem estar livres do vícios, que segundo Avendaño,
lhes é próprio e que mata qualquer garantia de justiça: a ambição de ouro e prata.
Desses juízes que se deixam levar por este vício, não se pode esperar nada, além
da violação da justiça142.
Se essas são algumas das qualidades dos juízes, não menos são as suas
obrigações. Parece ser que Avendaño se centra em obrigações que eram as menos
cumpridas por eles, já que Ángel Muñoz García, com base em Solórzano Pereira e
139
Ibdem; Tít. IV, n. 4.
Ibdem; Tít. IV, n. 5.
141
Ibdem; Tít. IV, n. 6.
142
Ibdem; Tít. IV, n. 7.
140
80
Diego de Encinas, apresenta uma lista bem mais ampla de obrigações dos juízes143.
A primeira obrigação, que na verdade é uma proibição, derivada diretamente do
vício acima mencionado: não receber presentes144. Por outra parte, nos apresenta
uma obrigação que nos parece óbvia, ou seja, assiduidade ao trabalho145. Entendese o sentido dessa obrigação para uma maior agilidade nos processos, já que era
muito comum haver reclamações nesse quesito. Outra obrigação que se deriva das
qualidades, principalmente da castidade é a de ‘não casar com mulheres da sua
jurisdição’146. O motivo parece bastante claro: evitar casamentos coacionados, já
que a mulher poderia ver-se em obrigação de casar-se com o pretendente, com
medo de sofrer represálias diante de uma negação. Uma quarta obrigação
apresentada é a de ‘guardar segredo sob juramento’147. Finalmente, os juízes estão
obrigados a ganhar um salário digno da generosidade real, de acordo com as
riquezas da região onde vive148.
Há outros administradores da justiça na colônia, como nos faz notar o jesuíta.
Enuncio os que aparecem no Thesaurus: ‘alcaides do crime’149, ‘ficais da Real
Audiência’150,
‘vice-rei’151,
‘alguaciles
mayores’152,
‘relatores
e
chanceler’153,
‘escrivãos’154 e ‘porteros’155.
O Thesaurus, como o seu próprio autor nos disse na prólogo, é um livro de
moral, mais que um tratado de direito. Por esse motivo, vemos ao longo do primeiro
volume diretrizes para o comportamento dos responsáveis pela administração
política, jurídica, econômica e espiritual das colônias e não discussão sobre leis, em
sua maior parte, como poderia pensar-se por tratar-se de uma obra probabilista. Mas
143
Cf. AVENDAÑO, Diego de. Oidores y oficiales… pp. 85-86.
Thesaurus, Tit. IV, c. II, nn. 8-13.
145
Ibdem, Tit. IV, c. III, nn. 14ss.
146
Ibdem, Tit. IV, c. XVI.
147
Ibdem. Tít. IV, c. XVII.
148
Ibdem. Tit. IV, c. XV, nn. 124-128.
149
Ibdem. Tit. IV, c. XVIII.
150
Ibdem. Tit. IV, c. XIX.
151
Ibdem. Tit. IV, c. XX.
152
Ibdem. Tit. IV, c. XXI, § I.
153
Ibdem. Tit. IV, c. XXI, § II.
154
Ibdem. Tit. IV, c. XXI, § III.
155
Ibdem. Tit. IV, c. XXI, § IV.
144
81
o que se vê, até mesmo na administração da justiça, que, no dizer de Avendaño, é a
pedra angular da república, é uma compenetração de todo o probabilismo nas
diversas páginas do Thesaurus. A imagem que pode exemplificar essa ideia é a de
um pano embebido no azeite, uma vez que se tira o pano do azeite, fica difícil de
separar o azeite do pano, há quase uma identidade; deste modo se pode dizer que é
o probabilismo com relação ao Thesaurus, ou seja, o probabilismo está nas
entrelinhas do Thesaurus, ou melhor, o Thesaurus está embebido do probabilismo.
Percebe-se ao longo dos capítulos do título IV uma série de aplicações do
probabilismo e pegado da sua mão a casuística. A pesar de ser um sistema
casuístico vemos dois princípios legais que regem as colônias: “a lei não obriga além
do dito”156, e o costume vira regra. Tendo isso em conta, exporei alguns casos, nos
quais se percebe com clareza a presença do probabilismo.
Tendo esses dois princípios de análise, percebe-se que, ao contrário do que
lhe objetava aos probabilistas, Avendaño busca analisar o caso sob o efeito da lei,
ou seja, se a lei é clara, não há discussão. No capítulo IX do Título IV, ao tratar
sobre ‘Como podem pecar os juízes (oidores) de Índias com relação aos juízes
conservadores dos religiosos’, fica evidente a não opção pela ação mais cômoda.
Cito suas palavras:
Em primeiro lugar, os juízes de Índias pecam gravemente quando, devido a
uma convicção geral sobre a não conveniência de tais juízes ou alguma
outra consideração não legítima, impedem sua jurisdição. É claro, porque se
opõe injustamente ao direito pontifício e real. Ao pontifício, que sinaliza este
modo de defesa eficaz nas Decretales, no cap. 1 e último De officio iudicis
delegati e em várias constituições nas quais se determina em geral sobre
seu modo de proceder [...]. Também estão a Lei 1 e 2, do Tít. 15, Liv. 2 das
Recopil. sobre as que trata o Pe. Fragoso no Tom. 2, p. 470, n. 72. [...] Em
segundo lugar, os juízes de Índias não pecam quando proíbem proceder na
causa aos conservadores até quando acreditarem ante eles sua nomeação
para constatar se a injuria é notória, única que pode constituir matéria da
jurisdição dos conservadores. Eu o provo: porque há leis que assim o
ordenam; e mesmo que pareçam contrárias à liberdade eclesiástica, mesmo
assim, tendo sido promulgadas pelos Reis Católicos e comumente
aceitadas, não lhes corresponde autenticá-las, mas proceder de acordo com
156
Ibdem, Tit. IV, c. 2, n. 9.
82
elas supondo sua autenticidade, pois foram produzidas por aqueles que
157
consideraram com cuidado o assunto antes de estabelecê-las.
Quando a lei não é clara aí começam as análises das opiniões sobre a
legitimidade da ação. Se essas são prováveis, a ação será lícita, o que não é
sinônimo de tomar partido pela ação mais branda e suave. Vê-se ao tratar da
legitimidade ou não dos juízes togados de receberem presentes. Cito:
Terceiro, pode-se levantar a dúvida de se os togados que ainda não
tomaram posse de seu cargo, bem seja porque vão a caminho dela ou bem
porque por algum motivo se demora na toma da posse, podem receber
presentes quando estão fora do território de sua jurisdição. Advoga pela
resposta afirmativa o fato que estes ainda não são juízes constituídos,
únicos aos quais se proíbe receber presentes; e, tratando-se de uma lei
odiosa, mais que ampliar-se, deve restringir-se, conforme o dito no Título
precedente, n. 28. A favor de uma resposta negativa advoga o motivo e o
fim da lei, a saber, o perigo de que se possa violar a justiça; e que tais
togados, uma vez recebido a nomeação do cargo, normalmente são
considerados juízes e tratados com as honras correspondentes. E é certo
que o são mesmo antes de tomar posse, pelo fato de não receberem o
título, mas o exercício do cargo. Assim que a inclusão do caso do qual
falamos não constitui extensão de uma lei odiosa, senão uma interpretação
legítima. Pode-se consultar sobre isto ao Senhor Solórzano no Tom. 2, Liv.
2, cap. 18, nn. 39ss., e na Política, Liv. 3, cap. 20, p. 385, col. 2, assim
como ao Pe. Suárez, Liv. 5 De legibus, cap. 4, no qual aduze outros
158
autores. E parece a solução mais admissível.
Ao final, no lugar de ‘parece a solução mais admissível’ pode-se ler também
‘parece a solução mais seguida ou provável’. Aqui é bom fazer notar que não se
trata de uma lei, já que os autores citados são comentaristas e não legisladores, por
tanto trata-se de opiniões.
Para finalizar esta seção, analiso o capítulo XVII do Título IV, no qual é
tratado um assunto delicado e de grande importância até mesmo para os nossos
dias, a saber: ‘Da obrigação nos juízes de Índias de guardar segredo’, em outras
palavras, o sigilo profissional. Na edição de Muñoz García, dedica-se 5 parágrafos
(146-150).
157
158
Ibdem, Tit. IV, cap. IX, nn. 56-57.
Ibdem, Tít. IV, cap. II, n. 11.
83
Como já foi anotado, primeiro apresenta o mandado pela lei: “prestam
juramento de guardá-lo no momento de tomar posse; com o qual resulta claro que
estão obrigados a cumpri-lo; e sob pecado mortal, se o assunto tratado na sala
judicial é tal que [...] pudesse derivar-se um inconveniente grave”.159 Dentro desta
mesma questão surgem as primeiras dúvidas, mas não quanto à obrigatoriedade do
cumprimento do juramento, mas quanto à matéria da gravidade da falta, já que se o
assunto não for grave, se deverá opinar conforme as circunstâncias. A base que se
deve tomar para julgar sobre a gravidade de um assunto não é estima geral da
população, porque o que pode ser tido por leve no modo comum de obrar dos
homens, em casos como o de acima pode ser julgado como grave. Avendaño nos
exemplifica:
Se alguém diz que outro disse uma mentira em uma conversação privada
de amigos, não peca gravemente, conforme ensinam geralmente os
autores. Mas caso se dissesse isso de um juiz de Índias, a saber, que
mentiu ao pronunciar uma sentença, seria um pecado grave, pois isto
prejudica em muito sua reputação; e, caso ficasse sabendo que se difundiu
160
lhe produziria grave pesar.
Uma vez feita essa ponderação a nível geral, passa a ver casos concretos,
onde pode acontecer a revelação do que ocorre dentro da audiência. O primeiro
deles, revelação dos votos dos colegas. Para Avendaño, nem sempre é pecado
mortal, vamos ver as justificativas que ele dá: “porque muitas vezes não se seguem
inconvenientes desta revelação, pois as partes não podem incorrer em graves
ofensas contra os votantes; incluso é às vezes, oportuno manifestá-lo para acalmar
indignações”161. Relata um caso concreto:
Em certa Audiência de Índias pleiteava alguém de não baixa condição, e
pensava que um dos juízes lhe era adverso. Acudia quando subiam os
membros ao tribunal e quando desciam, ao sair da sessão secreta. E
enquanto dedicava especiais honras a outros, a penas era cortês com um
deles, de quem não esperava nada favorável. Não obstante era o principal
defensor da causa desse litigante. Os juízes se surpreendiam do erro desse
homem e das bajulações tão desproporcionadas que dirigia para com eles.
Pois, se, então alguém deles lhe manifestasse a verdade, não deveria ser
159
Ibdem, Tít. IV, cap. XVII, n. 146.
Ibdem.
161
Ibdem. n. 147.
160
84
condenado como violador do juramento, de não temer-se que a contraparte
162
concebera com isso parecida indignação.
A seguir Avendaño trata mais três situações: “o que se trata dentro do
Conselho e cuja divulgação pode redundar em descrédito dos juízes, não pode
fazer-se sem culpa mortal”163; “o vice-rei pode impor um pena proporcionada ao juiz
que viole o segredo em assunto grave”164; e por último, ele sinaliza que “o dito da
obrigação de guardar segredo obriga mais especialmente nas Índias”165 e dá os
seus motivos: 1) nas Índias há menor segurança, porque há um prurido peculiar
nestas terras de conhecer novidades e de divulgar o que se ouve; 2) os litigantes
têm oportunidade de se vingarem mais facilmente; 3) nas Índias os juízes devem se
esmerar em cuidar um maior crédito.
162
Ibdem.
Ibdem, n. 148.
164
Ibdem, n. 149.
165
Ibdem, n. 150.
163
85
CONCLUSÃO
Ao longo destas páginas tratei de expor de modo sintético o probabilismo e
algumas circunstâncias que o envolvem, tomando por base a obra de Diego de
Avendaño. Tendo por finalidade conhecer e dar a conhecer, não só no quesito
histórico, mas também no ideológico, um sistema moral, que a pesar de ter o seu
nascimento e auge entre os sec. XVI e XVIII mostrou-se ser atual e capaz de
responder muitas problemáticas hodiernas. Como expressei na introdução além
deste objetivo primário, houve outros que, ao meu juízo também foram alcançados,
pelo menos inicialmente, a saber: resgatar um filósofo de destaque no referente ao
probabilismo na América Colonial; compreender as origens da casuística atual;
conhecer a realidade jurídica e legal, a administração da justiça nas colônias.
Para cumprir com esses objetivos fiz uma exposição histórica em um primeiro
momento, para poder compreender a bagagem do autor e período estudado. Esses
precedentes históricos, ao mesmo tempo, que ajudam a entender melhor o autor e
seu tempo, abrem novos interrogantes para futuros estudos. Entre tantos possíveis,
chamou-me a atenção a passagem da concepção tuciorista para probabilista na
visão da mora. Certamente há elementos históricos interessantes a serem
levantados, mas o que cabe mais a minha capacidade são as mudanças de
concepção do mundo, da realidade. Quais são esses elementos epistemológicos
que contribuíram com maior relevância nessa mudança, nesse modo de portar-se
ante a lei e norma moral? A resposta para esse interrogante, não a tenho no
momento. Será necessário um estudo mais detalhado sobre esse momento do
pensamento filosófico moral.
Essas páginas de estudo não tiveram a pretensão de abranger toda a obra de
Avendaño e muito menos, toda a problemática relacionada ao Probabilismo. Ao
tratar dos sistemas morais tentei introduzir o leitor às discussões em torno à disputa
da melhor solução à ação moral diante de leis e normas que não são claras quanto à
86
intenção do legislador. Para isso, além de relatar brevemente a disputa histórica
entre
Tuciorismo,
Probabilismo
e
Probabiliorismo,
expus
a
concepção
epistemológica do Probabilismo, para sair do aspecto histórico e entrar no mundo
das ideias.
Finalmente, a segunda parte do objetivo foi alcançado no capítulo três, ao
adentrar-me na vida e obra de Avendaño e levantar algumas temáticas tratadas no
primeiro volume do Thesaurus Indicus. Centrando-me especialmente na questão
jurídica, já que tive que fazer uma eleição deixando de lado outros assuntos que
merecem uma atenção especial no futuro, como a economia, a dignidade humana, o
trabalho humano, a escravidão, o Estado Teocrático, a política em geral. São muitas
questões indianas e probabilistas que, pela limitação de espaço, não puderam ser
aprofundadas.
O Thesaurus, como o seu próprio autor nos disse no prólogo, é um livro de
moral, mais que um tratado de direito. Por esse motivo, vemos ao longo do primeiro
volume diretrizes para o comportamento dos responsáveis pela administração
política, jurídica, econômica e espiritual das colônias e não discussão sobre leis, em
sua maior parte, como poderia pensar-se por tratar-se de uma obra probabilista.
Fica claro que primeiro volume não é um tratado sobre o probabilismo, e
dando uma olhada por cima no índice dos outros volumes, também não se percebe
uma preocupação por fazer um tratado sobre esse sistema. Só no terceiro volume
se vê parte de um capítulo e um amplo anexo que trata especificamente sobre a
compreensão epistemológica do probabilismo. Ali sim, podemos dizer que há um
mini tratado sobre esse sistema moral. A pesar de ocupar uma boa parte do volume
III dentro da obra não chega a uma sexta parte do todo.
87
Fica claro, que pela extensão e característica deste trabalho, assim como
limitações de tempo e linguísticas166, foi possível dar algumas pinceladas, a modo de
introdução, a um tema que foi centro das discussões intelectuais e morais por mais
de três séculos. Outra dificuldade encontrada foi a escassez de fontes,
principalmente comentaristas que tenham estudado, em uma primeira instância o
Probabilismo e, consequentemente, o jesuíta Diego de Avendaño. Há um autor,
basicamente, já que outras raras obras sobre Avendaño são exposições dos
comentários feitos pelo Dr. Ángel Muñoz García nas introduções dos volumes
publicados pela Eunsa. Já sobre o probabilismo, há alguns comentaristas, ou
melhor, opositores (probabilioristas) do séc. XVIII e XIX. Mais atuais, em língua
espanhola ou latina, foram encontrados poucos autores.
Para concluir volto às questões apresentadas na introdução. Nem sempre o
homem tem certeza da moralidade da ação que projeta ou de se, na situação
concreta, a lei é aplicável. O que fazer quando o homem não tem certeza da
bondade do ato que planeja realizar? Mais importante ainda: o que dizer quando
tanto a realização do ato ou a omissão se apresentam como moralmente duvidosos?
Conforme os moralistas passar à ação em tal situação já seria moralmente errado,
porque representaria um desprezo à norma moral.
Seria necessário passar deste estado de dúvida ao de certeza moral, pelo
menos na prática. Tanto o realizar como o não realizar uma ação é uma decisão
moral; por isso pretender deixar de lado tal dilema não é escapar do problema, já é
uma opção moral. Como quebrar este dilema? Como passar da dúvida à certeza
moral na adequação da ação humana à lei? A resposta a essas questões estão no
Probabilismo e ao longo desse estudo.
Um
dos
quesitos
que
faz
o
Probabilismo
responder
todos
esses
questionamentos é a hipótese que havia tomado como central, na introdução deste
166
O meu conhecimento idiomático limita-se ao português, italiano, espanhol e latim. Tenho pouco
conhecimento de inglês.
88
estudo, e que ao longo da pesquisa se comprovou ser realidade, a saber: “para o
probabilismo a obrigatoriedade e força da lei está na vontade (querer) da autoridade
e não na ação em si”167, ou seja, a ação é boa ou má porque a lei assim o
determina. “Isso permitirá que se possa discutir sobre a finalidade de certas leis, pois
o querer do legislador pode ser reduzido à opinião e ao tratar de seres humanos,
tem-se sempre a possibilidade da falha na hora de legislar”168. Comprovação desta
tese que se dá ao longo dos capítulos 2 e 3 da presente dissertação, primeiramente
ao tratar epistemologicamente o Probabilismo e, em um segundo momento, nas
fontes do Thesaurus e na seção dedicada à administração da justiça nas Índias. Ao
adentrar-se no Volume I do Thesaurus, é notório a identificação desta obra com o
Probabilismo, pois apesar de não ser um tratado, a obra respira e exala o perfume
desta doutrina, já que cada página está embebida deste sistema moral.
Cabe lembrar, para finalizar, que esta dissertação é uma introdução aos meus
estudos a serem realizados no doutorado, já que há muitas questões a serem
estudadas e se enquadra também como parte de um projeto muito maior e mais
importante: a Scholastica Colonialis (sec. XVI-XVIII).
Trata-se de um projeto integrado de COOPERAÇÃO INTERNACIONAL,
aprovado pela CAPES/Brasil169, e em curso, para desdobramento inicial por um
período de dois anos, incluindo cinco equipes de trabalho: Brasil (equipe líder,
PUCRS e UNISINOS), Chile (PUC-Chile), Peru (PUC-Peru), Portugal (Gabinete de
Filosofia Medieval, Universidade do Porto) e Espanha (Universidade de Salamanca).
Ao mesmo tempo, o projeto é fomentado pela Société Internationale pour l’Étude de
la Philosophie Médiévale (SIEPM) e é executado precipuamente por medievalistas.
Sendo a “Escolástica Colonial”, como se viu acima, assim como a Segunda
Escolástica ou Escolástica Barroca uma continuação da Filosofia da Idade Média.
167
Citado por mim na introdução desta dissertação. P. 12.
Ibdem.
169
Mais exatamente, pelo Programa Geral de Cooperação Internacional (PGCI) da CAPES.
168
89
É um estudo que se situa no período não só menos pesquisado e mais
ignorado da história da filosofia na América Latina, mas, talvez, do período mais
ignorado da história filosófica em geral. Tal projeto pretende, para os limites
demarcados, (a) verificar e catalogar manuscritos e textos impressos antigos, (b)
propiciar investigação e análise dos materiais, (c) discutir e comentar em perspectiva
histórico-sistemática as fontes encontradas e (d) ao menos em parte digitalizá-los e
editá-los para comunidades de pesquisa em história da filosofia, sobretudo filosofia
medieval, renascentista e moderna.
Além da importância histórica do autor e temática, a escolha de Avendaño
enquadra-se dentro deste projeto. Dentro deste importantíssimo projeto para a
academia filosófica, o Probabilismo, que tem neste jesuíta o seu maior expoente nas
Américas, tem um papel de suma importância, por todas as consequências e
campos de estudos que podem brotar dele: problemas da filosofia da linguagem,
filosofia política, filosofia do direito, filosofia moral, voluntarismo, efeitos na
sociedade e filosofia moderna, só para citar algumas das vertentes desta temática.
Por todos estes motivos, o estudo realizado, mesmo que introdutório, e os
que virão serão de grande benefício para a comunidade filosófica.
90
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