Pelo Socialismo
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Publicado em “oDiario.info”, em 2011/12/27: http://www.odiario.info/?p=2321
Colocado em linha em: 2012/01/01
José Dias Coelho – cinquenta
anos depois da sua morte
Margarida Tengarrinha*
Relembrar aqueles que caíram, os heróis da resistência antifascista, não é
apenas olhar o passado. É também lembrar que a luta pela emancipação dos
trabalhadores e dos povos pode, em diferentes momentos, enfrentar uma
repressão mais ou menos abertamente violenta, mas é sempre travada
contra um inimigo de classe que não abdica de recorrer a todos os meios
para perpetuar o seu domínio. E que só será vencido por uma força maior: a
das massas unidas, organizadas e dispostas à luta, quaisquer que sejam os
sacrifícios que essa luta imponha.
« Esta é, com toda a probabilidade, a última vez (sim, a última vez, porque já tenho 83
anos), que participarei numa cerimónia de homenagem ao Zé, recordando-o, neste dia 19
de Dezembro em que foi brutalmente assassinado.
Por isso, e porque o camarada Jerónimo certamente abordará a sua biografia como
militante comunista, eu falarei dele num registo mais íntimo: a intimidade criada em mais
de uma dezena de anos em que partilhámos, desde as lutas estudantis e pela Paz, às tarefas
comuns, desempenhadas juntos na clandestinidade, de fornecer documentação falsa que
defendesse os camaradas da vigilância da PIDE, de procurar renovar graficamente os
documentos e a imprensa partidária, de iniciar um arquivo fotográfico do Partido e a partir
dele redigir “A Resistência em Portugal”, assim como suportarmos juntos a ausência
da família e dos amigos, a dolorosa separação da nossa filha, mas, juntos também, a
felicidade do nascimento da mais nova e descobrirmos a alegria das pequenas coisas com
um sabor intensificado pela austeridade do dia-a-dia, as festas de amor vividas com a força
de não sabermos se, na madrugada seguinte, bateria à nossa porta uma brigada da PIDE a
sobressaltar-nos na cama e a separar-nos. A constante ameaça da prisão.
Mas foi muito mais dura do que isso a separação imposta pelo crime que ali, na rua que
hoje tem o seu nome, o tomou mais uma vítima do fascismo.
Não o vi depois de morto, só soube da sua morte no dia em o enterraram. Não fiz, pois, o
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que se chama “o luto” e por isso arrastei dolorosamente ao longo dos anos coisas por dizer,
remorsos por não ter dito, lamentos que não expressei.
Hoje, cinquenta anos passados depois da sua morte, vem-me claramente à ideia aquele
livro de Anna Seghers – “Os mortos continuam jovens”. Porque a verdade é que, nem
eu, nem ninguém que o conheceu poderá recordá-lo de outra forma que não seja aquele
homem na força da vida, jovem e entusiasta. Sim, os mortos continuam jovens e ele, jovem
para sempre.
Jovem e “sem vocação para a morte” como disse Eugénio de Andrade no poema
“Discurso tardio à Memória de José Dias Coelho”:
… “Morre-se de ter uns olhos de cristal,
Morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.”…
Ou ainda, como o seu grande amigo José Cardoso Pires afirmou na primeira homenagem a
José Dias Coelho logo a seguir ao 25 de Abril, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 19
de Junho de 1974, dia em que, se fosse vivo, o Zé teria feito 51 anos:
“Sabemos que é um capítulo, ódio ou máscara do medo, a morte imposta aos
militantes da liberdade. Mas sabemos igualmente que é dela que o fascismo
faz moeda própria e alimento essencial, que onde haja exploração do homem
está ela, a morte, disfarçada de comum e natural, e que, irmã traidora da
fome, tem na guerra, em todas as guerras, o seu lucro mercenário. (…) É a
morte, morte, sempre a morte, que aparece como exibição imperialista de
orgulho e de poder. Por isso é que os verdadeiros revolucionários amaram e
defenderam a vida com o risco do último sacrifício e entre esses, Dias
Coelho, o meu amigo de longe e para sempre. Poucos como ele tiveram tão
saudável e empenhado gosto de viver, e raros, raríssimos, usaram de tão
serena tolerância no desejo de compreender e lutar”.
Assim falou dele o amigo José Cardoso Pires.
E tinha razão, mesmo para além do que directamente conhecia.
Gosto de viver, desejo de compreender e de lutar poderia ser uma biografia
sintética do Zé.
E de lutar em diversas e variadas lutas, começando pelas suas intimas e não confessadas.
Uma batalha que se inicia a partir de dentro de si próprio, entre a sua passividade de
artista contemplativo que se expressava nos seus desenhos de uma simplicidade procurada
e depurada, as suas “Líricas” e outros desenhos intimistas, mas por outro lado, como
defensor activo do neorrealismo, uma arte militante e de combate, uma arte do povo, pelo
povo e para o povo, pela qual se exprimiu também em muitos dos seus trabalhos de
desenho e escultura. Foi talvez na gravura “Morte da Catarina Eufémia”, gravura
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empenhada e revolucionária, mas de um claro lirismo, que melhor conseguiu a difícil
simbiose entre o lirismo que lhe era próprio e a arte militante e de combate, que defendia.
Quanto ao seu “desejo de compreender”, o seu desejo de compreender tinha expressão
na ideia de que, em qualquer momento da história, qualquer que seja o contexto social e
político, é essencial compreender os homens. Foi essa sua característica pessoal que o
levou a estabelecer relacionamentos não só com os intelectuais ligados ao Partido
Comunista, mas ainda com muitos outros que, fora da organização, aceitavam colaborar
em acções comuns, tal como disse o meu irmão, José Manuel Tengarrinha, acentuando
que: “o prestígio de Dias Coelho e a confiança que lhes merecia [aos
intelectuais sem partido], foi um importante factor de alargamento da frente
intelectual antifascista, que nunca permitiu espaço de manobra e de
credibilidade aos intelectuais servidores do regime.”
Isto no período da guerra-fria e das tentativas de isolamento do Partido Comunista. “É
nestas condições [diz o meu irmão], que podemos avaliar as grandes
dificuldades do trabalho político desenvolvido por José Dias Coelho e o
mérito da sua influência no campo intelectual”.
Eu posso testemunhar que, no decurso das várias tarefas e na vida partidária, o Zé nunca
abandonou esse desejo de compreender. E assim, nos dois últimos anos da sua vida, foi
para ele como que um deslumbramento esclarecedor a alteração crítica à linha do Partido
desenvolvida a partir da fuga de Peniche, realizada no dia 3 de Janeiro de 1960.
De facto, desde Janeiro de 1960, mais concretamente a partir da reunião extraordinária de
Fevereiro desse ano e, com a aprovação dos documentos “A tendência anarco-liberal
na organização do trabalho de direcção” e “O desvio de direita nos anos
1956-1959″, na reunião do Comité Central de Março de 1961, desenvolveu-se em todo o
Partido um vivo debate crítico (em que nós participámos activamente), ao desvio
oportunista de direita e, consequentemente, à errada concepção da possibilidade de
derrubamento do fascismo por uma qualquer “solução pacífica”, hipótese que era
admitida desde fins dos anos 50 e tornada oficial a partir do V Congresso do Partido,
realizado em Setembro de 1957.
A crítica foi dura, mas clara e lógica: - dado o carácter da ditadura fascista, determinada a
manter o poder e resistir até ao fim por meio de uma política de repressão feroz, não era
possível manter a ilusão de “uma transição pacífica” que vinha a ser admitida no Partido,
por influência do chamado “Relatório de Kruchov” e desenvolvimentos posteriores a partir
do XX Congresso do PCUS.
A orientação de que o derrubamento do fascismo só poderia ser efectuado por meio de
uma solução violenta, uma insurreição popular, a luta do povo em união com os militares
revolucionários, vencendo e destruindo o aparelho militar e repressivo fascista, viria ser
aprovada no VI Congresso, juntamente com o Programa para a Revolução Democrática e
Nacional. Quando o VI Congresso se realizou, em Setembro de 1965, já o Zé tinha morrido
e o Congresso prestou-lhe uma sentida homenagem.
A rectificação ao desvio oportunista de direita, sem ilusões de saídas pacíficas, em cuja
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discussão o Zé participou activamente, deu-lhe a clara consciência do caminho real, muito
duro e difícil, que se apresentava pela frente, que havia que assumir e enfrentar - o
caminho da prisão e da tortura, da morte e do sangue derramado.
Ele sabia, portanto, os perigos que enfrentava.
Hoje, como então, os oportunismos tiram força à luta e aos combatentes, porque iludem a
realidade e não perspectivam nem o caminho, nem apontam claramente os objectivos.
José Dias Coelho deu a vida, consciente dos perigos que enfrentava e certo de que a sua
luta conduziria ao Portugal socialista pelo qual morreu. »
19 Dezembro 2011
*Intervenção na sessão pública que assinalou os 50 anos do assassínio de
José Dias Coelho pela PIDE
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Nota do editor:
Chegou-nos via mail a informação de que, antes de ler o seu discurso, publicado na íntegra
pelo "odiario.info", Margarida Tengarrinha afirmou: “Não previram que eu falasse aqui,
hoje, mas eu vou falar.”
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José Dias Coelho Œ cinquenta anos depois da sua morte