DEBATE
Leda Maria Paulani, Yoshiaki Nakano e
Marcos Fernandes Gonçalves da Silva
Que horas são?
Se não podemos determinar com exatidão o que nos espera no futuro,
é tempo de refletir sobre os desafios que o país enfrentará para acertar
os ponteiros com o relógio do mundo
P
Por Leandro Silveira Pereira e Carlos Costa
Fotos Gustavo Scatena
ensar caminhos e propostas para o Brasil consolidar o atual momento
de crescimento. E mais: fazer uma reflexão sobre os desafios a enfrentar
nessa trajetória. Esse foi o mote do debate que você começa a ler nas
próximas páginas de Getulio. A convite da revista, três professores doutores se encontraram no auditório da Escola de Direito de São Paulo, a
Direito GV, na capital paulista, para recuperar alguns momentos históricos do país
e discutir as perspectivas de futuro. Yoshiaki Nakano é formado em Administração
de Empresas pela Fundação Getulio Vargas, com doutorado na Universidade de
Cornell, nos Estados Unidos, professor e diretor da Escola de Economia de São
Paulo da FGV, tendo ocupado cargos públicos e privados ao longo da carreira,
além de ter sido consultor do Banco Mundial. Leda Maria Paulani é doutora
em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade
de São Paulo, professora titular da Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade (FEA) da USP, além de pesquisadora sênior da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE). A outra prata da casa é Marcos Fernandes
Gonçalves da Silva, doutor em economia pela FEA-USP, com pós-doutorado pela
University of London, e leciona na Escola de Economia de São Paulo. É consultor
do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A seguir, um
condensado dessa conversa.
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maio 2010
DEBATE
maio 2010 getulio 23
Geralmente começamos com uma breve
apresentação, por favor.
Leda Maria Paulani Sou professora
do departamento de economia da FEAUSP há mais de 20 anos, fui presidenta
da Sociedade Brasileira de Economia
Política-SEP, durante quatro anos, e
tenho alguns livros publicados na área.
Marcos Fernandes Gonçalves da
Silva Fiz a graduação, o mestrado e o
doutorado na FEA-USP. Sou professor
da FGV, comecei lecionando Administração Pública e Governo no mestrado
da EAESP, depois microeconomia na
graduação, e hoje leciono na EESP.
E como essas trajetórias se depararam com
o estudo do desenvolvimento do Brasil?
Yoshiaki Nakano No meu caso, sou
um macroeconomista frustrado há praticamente 40 anos [risos]. Isso porque nas
últimas décadas, depois de um processo
de crescimento fantástico, o Brasil parou
de crescer. Do final do século XIX até
1980, havíamos crescido enormemente.
Leda Paulani Foi o país que mais
cresceu no período. Durante muito
tempo, fomos a China do mundo.
Yoshiaki Nakano A taxa média de
crescimento decenal, que era de 7%,
despencou nos anos 1980 [veja infográfico à pág. 32]. Eu já era economista.
Essa é a história brasileira. A história da
minha geração, que viu isso acontecer.
Então só agora, pela primeira vez, sou
um otimista.
Marcos Gonçalves É verdade: pela
primeira vez. Em geral ele nunca é otimista [risos].
Leda Paulani Quando se fazem
gráficos do PIB por decênio, a queda
é realmente espantosa. Só agora é que
começa a mostrar um começo de recuperação, mas ainda leve.
Marcos Gonçalves Para muitos alunos de especialização e mestrado, ou
de até 30 anos, a informação de que o
Brasil foi o país que mais cresceu no
período é uma coisa inacreditável. São
totalmente desiludidos. É uma geração
que ficou cética – não à toa.
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Yoshiaki Nakano A geração criada antes de 80 respirava o que hoje se
chama de “catch up”, ou seja, a palavra
que bilhões de pessoas na China respiram diariamente: “alcançar” o padrão
desenvolvido. Esse era o grande sonho,
o grande projeto pelo qual a sociedade
se mobilizava nas décadas de 1950, 60
e 70 no Brasil. Depois veio a frustração
da década de 1980.
O que aconteceu?
Yoshiaki Nakano Esse é um longo
diagnóstico, mas basicamente perdemos o rumo. Até os anos 80 o Brasil
tinha um projeto de construção de país.
O endividamento nos anos 70 gerou a
crise dos 80 e aí perdemos o projeto de
desenvolvimento. E, em vez de retomá-
O humor geral do
empresariado era
só reclamação. Aos
poucos o horizonte
mudou e permitiu olhar
as potencialidades
de crescimento e
expansão para o país
(Yoshiaki Nakano)
lo, imaginamos que o crescimento viria
se nos subordinássemos aos irmãos ricos do Norte. A idéia era abrir a economia, liberalizar tudo, porque dando aos
estrangeiros o acesso aos ativos nacionais o país iria crescer. Foi a primeira
grande reforma do Governo Fernando
Henrique Cardoso, Consenso de Washington etc.
Leda Paulani O que FHC fez como
presidente foi altamente coerente com
o diagnóstico que ele próprio fez da
relação entre as burguesias centrais e
latino-americanas.
Yoshiaki Nakano E isso é não acreditar num projeto nacional. É pegar
o nosso histórico e... Na verdade esse
processo de construção começa em
meados do século XIX, reforçado com
a imigração, para reformular toda uma
sociedade rural, agrária, escravocrata,
torná-la urbana, moderna. Ali é que começou uma série de movimentos para
mudar esse quadro.
larmente América Latina e África, com
complexo de inferioridade, em vez de
se construir uma estrutura produtiva,
como vínhamos fazendo, embarcou-se
na ideia errônea de que “somos pobres,
atrasados; eles são os desenvolvidos”.
Leda Paulani E no começo havia
uma resistência forte.
Leda Paulani “E sempre seremos
subordinados”.
Yoshiaki Nakano Em 1930 houve
um grande impulso na industrialização. E esse projeto veio até 1980. A
partir daí, em função de um processo
que se deu lá fora, o setor financeiro
passou a assumir uma hegemonia cada
vez maior. E assim passamos a fazer
parte de um sistema em que, digamos,
a especulação financeira domina tudo.
Hoje toda a dinâmica da economia é
comandada pelo financeiro. Só que lá
fora, como são competentes, os países
conseguiram crescer, e aqui... A história recente da economia brasileira é só
oscilação: recuperação, queda, recuperação, queda. Ficamos na dependência
do fluxo de capital, que aqui vem para
capturar diferencial de juros, no curto
prazo, e a qualquer sinal de problema
foge. Chega, recuperação; foge, crise.
Ora, historicamente, o caminho encontrado pelos países que cresceram
no período pós-guerra, começando
pela reconstrução dos destruídos,
Alemanha e Japão, depois os Tigres
Asiáticos e mais recentemente China
e Índia, foi o caminho do projeto nacional, a construção de uma estrutura
produtiva competitiva internamente.
O catch up. A estratégia básica desses
países foi se integrar via comércio. E o
componente nacionalista é fundamental. Veja, Japão e Alemanha tinham a
economia destruída. Os americanos
então se abriram para o comércio –
era estrategicamente interessante para
criar um conflito com o bloco soviético
–, depreciaram o câmbio, expandiram
o crédito, fizeram ajuste fiscal e por
aí cresceram. O comércio estimula
fortemente o sentimento de nação
(é quando no Brasil, por exemplo, a
Embraer briga com a canadense Bombardier pela construção dos melhores
aviões). É como no futebol, é torcida
no país inteiro. Por aí se deu o catch
up em outros países. Já nos países de
herança colonial muito forte, particu-
Marcos Gonçalves A nossa elite é
incompetente.
DEBATE
Yoshiaki Nakano Aqui não existe
burguesia nacional forte e o Estado está
subordinado.
mos discutindo a imagem que o Centro
Celso Furtado deveria ter, porque ainda
está indefinido do ponto de vista institucional. Então, quando o Nakano fala em
economista velho, dinossauro, me veio
essa história. “Imagina, você acredita em
Estado desenvolvimentista?” [risos]. E o
nosso grande economista, Celso Furtado? Rasgamos tudo e jogamos fora?
Yoshiaki Nakano Acho que estamos vivendo um momento único, pelo
menos na minha visão dos últimos 40
anos. E esse é um fenômeno inesperado, porque a visão que ainda se tem é
a de que um presidente ou um grupo
Marcos Gonçalves O fim do Estado
nação é uma invenção dos anos 1990.
No Brasil hoje não são poucas as coisas que estão sendo discutidas, ainda
que timidamente. O Estado brasileiro,
por exemplo, precisa ser controlado. A
burocracia com o brasileiro precisa ser
controlada. Isso é controle gerencial,
mas envolve também incentivos meritocráticos e positivos. Isso também é accountability. Isso é capacitar as pessoas
para fiscalizar o governo, as pessoas comuns. É dar empowerment, é dar poder
para as pessoas comuns.
Yoshiaki Nakano Bem, em função
daquela ideia errônea ficamos totalmente dependentes da especulação
financeira. A ideia central dessa estratégia é a de que precisamos de poupança externa, de financiamento dos países
desenvolvidos. É basicamente copiar os
padrões de consumo, em vez de construir uma estrutura produtiva. Ora,
nesse modelo o Estado não pode fazer
nada. E desenvolvimento e desenvolvimentismo ficam sendo coisa de economista desocupado, acadêmicos que não
têm o que fazer [risos].
Leda Paulani [risos] Em uma reunião no Centro Celso Furtado, o economista Antonio Barros de Castro disse
assim: “Olha, acho que os ventos estão
mudando... Porque quando fundaram a
Casa das Garças [Instituto de Estudos de
Política Econômica], no Rio de Janeiro,
aquilo me dava uma raiva, ficava pensando que a gente precisava fundar um
instituto igual, a Casa dos Dinossauros,
a Casa Qualquer Coisa...” [risos] Estáva-
DEBATE
ra. Esse impulso trouxe a mudança e
me deixa otimista. Além disso, houve
um deslocamento de expectativas.
Antes o humor geral do empresariado industrial paulista, por exemplo,
era reclamação, eles se preocupavam
com a semana seguinte para saber se
o Copom ia subir juros ou não... Aos
poucos eles começaram a pensar em
investimentos. E não porque os juros
tenham caído ou o câmbio melhorado, mas porque o horizonte temporal
mudou: investimentos de longo prazo,
projetos de 10, 20 anos. E essa mudança
de humor permitiu olhar as potencialidades de crescimento e expansão do
país. Não sou petista, mas no último
governo a política macroeconômica,
de um jeito ou de outro, incorporou
sim o objetivo de crescimento.
Leda Paulani Mesmo com o Henrique Meirelles [presidente do BC] querendo dar uma paulada nos juros? Não
sei, não...
Yoshiaki Nakano Mas a política do
Ministério da Fazenda, por exemplo,
mudou. E pequenas mudanças sempre ajudam um pouquinho, o projeto
da habitação, o BNDES funcionando,
redução de juros. E assim houve mudança no humor dos empresários. Em
2008 a taxa de crescimento começou a
subir fortemente, mas aí tivemos uma
grande freada com a crise.
Marcos Gonçalves Sim, mas hoje já
recuperamos essa capacidade.
de intelectuais esclarecidos, capazes de
pensar o Brasil, vão projetar e realizar.
E não é desse jeito. Fizemos sim a estabilização econômica, um passo muito
importante, porque com hiperinflação
caótica não se faz nada, mas aí há um
primeiro fator relevante a considerar: o
choque do preço de commodity.
Leda Paulani O efeito China, que
começa em 2001 e tem impacto no Brasil em 2004.
Yoshiaki Nakano Primeiro houve a
crise cambial, dois anos depois o setor
de manufaturados começou a exportar,
isso deu impulso à economia brasilei-
Yoshiaki Nakano Estamos começando a recuperar. Na minha percepção, a primeira transição ocorre quando existe esse fenômeno de percepção
ao nível micro, quando uma massa crítica de empresários olha para a frente,
para oportunidades de investimento.
Quando há otimismo do empresariado, então se desperta o chamado
“espírito animal”, quer dizer, as coisas
começam a mudar porque essa força
será tão avassaladora que promoverá
reformas. E estamos nesse processo
de transição. Se mudarmos coisas básicas na política macro, destravando o
processo, o Brasil tem potencial para
crescer durante décadas, retomando
o catch up do século passado, inter-
maio 2010 getulio 25
rompido nos anos 80. É claro que há
desafios, mas numa faixa de economia
dominada pela especulação financeira
a crise veio ajudar também para uma
nova dinâmica, produtiva, desenvolvimentista – embora não tenha se consolidado ainda.
Marcos Gonçalves Do ponto de vista macroeconômico, o Brasil tem condições de crescer por três décadas. Teremos problemas de percurso, o déficit
de contas correntes está crescendo por
causa do câmbio, mas estou pensando
no longo prazo. A gente tem pela frente trinta anos de crescimento. E pelo
menos quinze anos para colocar esse
país na rota de um país de renda per
capita alta. E a nova classe média não
vai querer perder esse embalo.
Leda Paulani Pensando na proposta deste debate, sobre caminhos e
propostas para o Brasil consolidar o
atual momento: existe uma metáfora
usada nessas discussões que é a pergunta “Que horas são?” Quer dizer, no
relógio do mundo em que momento
estamos? Essa expressão foi usada pelo
professor Roberto Schwarz em textos,
mas o embaixador Rubens Ricupero,
num evento na FEA em 2000, justamente sobre desenvolvimento, fez essa
pergunta e disse: “Hoje ninguém sabe
a resposta”. Essa discussão sobre desenvolvimento saiu tão de cena que nem
se colocava mais a pergunta. Então, o
primeiro otimismo que podemos ter é:
agora, pelo menos, a pergunta voltou
a ter sentido. Não sabemos a resposta,
mas faz sentido refletir, inclusive sobre
o que é desenvolvimento. E retomo essa
questão justamente num texto chamado Que horas são? Será que é apenas
crescimento do PIB? Todos os grandes
pensadores brasileiros, que pensaram a
nação, disseram que o país podia crescer muito e continuar subdesenvolvido,
porque subdesenvolvimento não é uma
etapa em direção ao desenvolvimento.
Ao contrário, é um tipo específico de
desenvolvimento capitalista. Essa foi
uma das grandes descobertas do Celso
Furtado. No sentido mais progressista,
o desenvolvimento tem raízes iluministas, visa a criação de condições para
o desenvolvimento do “espírito humano”, se podemos dizer assim. O Celso
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Furtado, por exemplo, nos anos 1960
confiava na capacidade das elites brasileiras de criar homens de Estado que
alavancassem o país. Morreu frustrado,
mas dizia que as elites tinham que: 1)
preservar o país das forças cegas do mercado; 2) industrializar o país; 3) planejar
a redução das desigualdades regionais
e de renda; e 4) fortalecer a sociedade
civil para consolidar a democracia. Tirando a industrialização, que bem ou
mal foi pensada, o resto não foi feito.
Não se planejou a redução das desigualdades, impuseram-nos 20 anos de
ditadura militar, o que enfraqueceu a
sociedade civil, e, quando a democracia foi recuperada, o país foi entregue
às forças cegas do mercado, às quais o
Nakano já se referiu.
O Celso Furtado, por
exemplo, nos anos
1960, confiava na
capacidade das elites
brasileiras de criar
homens de Estado
que alavancassem o
país. Morreu frustrado
(Leda Paulani)
Marcos Gonçalves E a palavra desenvolvimento saiu de moda, só se fala
em crescimento.
Leda Paulani Exato. E nossa situação ficou ruim porque nem sequer conseguíamos crescer, menos ainda pensar
em crescimento com qualidade e desenvolvimento do espírito humano...
Acho que esse esquecimento da ideia
de desenvolvimento, essa frustração a
que o Nakano se referiu e que todos nós
passamos, foi também resultado de um
pensamento liberal que veio com muita
força no Brasil. E precisamos perguntar, por que pegou com tanta força? Pegou na América Latina, em geral, mas
no Brasil, dado seu histórico e a quase
realização do processo de catch up,
essa questão é ainda mais espantosa.
Talvez tenha a ver com a natureza das
nossas elites, mas essa é uma discussão
que não cabe aqui, envolve elementos
culturais, históricos...
Yoshiaki Nakano Bom, posso falar
porque não acredito na elite nem no
seu papel [risos].
Leda Paulani Então, no atacado,
concordo com o diagnóstico do professor Nakano. Mas não acredito que
a macroeconomia do Governo Lula
tenha mudado muito. Bem ou mal,
incorporou alguma preocupação com
crescimento, mas do ponto de vista da
política monetária e cambial continua
fazendo exatamente a mesma coisa.
O fato é que hoje há mais desenvolvimentistas em postos-chaves do governo – o que antes não havia. O Guido
Mantega está na Fazenda, Paulo Nogueira no FMI, Márcio Pochman no
IPEA, Luciano Coutinho no BNDES.
Então o espírito e a comunidade de
economistas dentro do Governo Lula
se alteraram nesta segunda gestão. Na
primeira, os liberais nadaram de braçadas em todos os aspectos, em todos os
ministérios. Enfim, não concordo com
muita coisa do que se está fazendo lá,
mas houve uma mudança para melhor.
O ruim é que os três principais candidatos à presidência [Dilma Rousseff, José
Serra e Marina Silva] dizem que não
irão mudar nada...
Marcos Gonçalves Mas aí existe
uma racionalidade política para falarem a mesma coisa.
Leda Paulani Pode ser, mas acho
que se criou aí uma espécie de consenso que desce até a chamada opinião
pública média, porque o discurso liberal cola fácil, traduz o senso comum.
“Ah, o governo precisa ser austero!”
Ora, também acho que o governo tem
de ser eficiente e racional. Ninguém
em sã consciência é contra a ideia, mas
é preciso deixar claro que num país e
numa casa de família as relações entre
despesa e receita não se dão da mesma
forma. Essa coisa até mudou um pouquinho por causa da crise e dos trilhões
de dólares saídos da cartola de Barack
Obama para salvar a economia deles,
mas estou muito cética em relação à
DEBATE
possibilidade de haver uma mudança
grande nesse espírito de época, para
usar um termo weberiano.
Marcos Gonçalves Quero colocar
a discussão sobre a emergência dessa
nova classe média, que do ponto de
vista político é conservadora. E o é
porque quer emprego, renda e trabalho. Os salários e as rendas dos mais
pobres estão crescendo mais do que o
salário e a renda dos mais ricos. Mesmo porque o Brasil está deixando de
ser um país rentista. Vivia-se de financiar a dívida pública a juros excessivamente elevados. Essa nova classe
média cultua o trabalho, a poupança
e o enriquecimento, é conservadora
porque quer consumir bens e serviços
públicos, nesse sentido é conservadora. E vai demandar do Estado. Quando se gosta de um docinho, não se
quer largá-lo [risos]. Veja, a Argentina
foi o país mais rico na virada do século
XIX para o século XX. O problema é
que os argentinos são sebastianistas.
É como Portugal. Estão em busca
do sonho perdido. Por que falo isso?
Porque o Brasil nunca foi rico. Uma
coisa é ter sido rico e perder. É melancólico. Agora, quando nunca se foi
rico e começa a ficar, aí toma gosto.
Essa nova classe média vai demandar
crescimento econômico. E do ponto
de vista político esse fato tem implicações. Será que serão aceitos governos
que não tiverem a proposta de fazer o
Brasil crescer?
Yoshiaki Nakano Na verdade a
grande mudança que ocorreu no Brasil
foi demográfica. Começou lá na década de 70, quando a taxa de natalidade
começou a se desacelerar. Ou seja, a
população brasileira jovem, de 15 a 24
anos, exatamente a que está chegando
ao mercado de trabalho e precisa encontrar o primeiro emprego (e nessa
faixa a taxa de desemprego sempre foi
absurdamente alta no Brasil), começa
a cair, enquanto o restante da população envelhece. Esse processo demográfico gerou duas coisas importantes.
A partir de 2004, essa população jovem
atinge 35 milhões e começa a cair.
Hoje a estimativa do IBGE deve ser
de 33 milhões. Esse fato tem impacto
forte no mercado de trabalho, porque a
DEBATE
massa de gente que chegava passa a encolher, toda a dinâmica muda. E quando aquela superabundância de mão de
obra começa a diminuir, os empregos
mudam de qualidade. Em 2003, 90%
dos empregos gerados eram informais,
na margem, não na média. Depois se
inverteu, e hoje praticamente 80% são
formais. O salário na base começa a
subir e a produtividade também, porque as empresas introduzem pequenas
inovações e tem até mais margem de
lucro em certos períodos, não cai necessariamente. No meu entender, esse
processo cria uma dinâmica nova na
economia brasileira.
faceta é social e política. Passamos de
uma situação em que 70% da população estavam na classe D e E para um
cenário em que a classe C é quase 50%
(a população que ganha entre 1,2 mil e
5 mil reais). Nas grandes empresas brasileiras, representa de 70% a 80% dos
funcionários. Essa chamada classe C
possui emprego e tem uma série de demandas. Quando, de repente, se torna
maioria, então toda a política brasileira
muda. O discurso populista que atraía
as classes D e E, o do paraíso prometido
após a eleição, não é mais o discurso
que pega. Hoje o discurso tem que pegar essa nova classe média.
E como funciona esse discurso?
Por que os projetos do passado não se
completaram?
Yoshiaki Nakano Porque implantamos indústria, mas não tínhamos
dinamismo interno próprio. Era uma
economia subdesenvolvida, longe da
fronteira tecnológica. Agora vem essa
força fundamental, que é o novo mecanismo endógeno brasileiro de expansão do mercado, e caminhamos, então,
naquela fase do sistema capitalista de
criação de mercado de consumo de
massa. Ou seja, a mudança estrutural
na dinâmica da economia brasileira
ocorre a partir desse fenômeno demográfico. Esse é o grande trunfo. A outra
Yoshiaki Nakano A classe média
tem pavor de perder o emprego, faz o
sacrifício possível para ter acesso aos
bens de consumo etc. É a grande demanda dessa população. Tem medo de
mudança, portanto. É conservadora,
como disse o Marcos. A importância
disso, num país como o Brasil, presidencialista, é vital. Se o candidato à presidência da República não convencer
que irá gerar emprego para os jovens e
manter o acesso aos bens de consumo,
ele não se elege. Toda a lógica política
no Brasil, de uma hora para outra, está
mudando. O discurso, a agenda, o foco.
Essa mudança é fundamental. No Brasil, por vício de formação intelectual, a
gente achava que uma elite esclarecida
faria um projeto de grande mudança.
Não aconteceu. Por outro lado, o Estado brasileiro é predador: a estrutura que
os portugueses implantaram permanece praticamente intacta.
Qual a dinâmica desse Estado predador?
Yoshiaki Nakano É uma longa
discussão. De onde ele, o Estado, se
apropria aproximadamente 40% do
PIB entre impostos e outras receitas?
Ora, do Sudeste. São Paulo paga mais
da metade de todos os impostos arrecadados no país. E o governo central
transfere para onde? Segundo Bolívar
Lamounier essa é a cultura da transgressão. Ou seja, a burocracia se apropria
de uma boa parte dos recursos e a transfere para seus aliados políticos, que são
as elites das regiões pobres, as que hoje
maio 2010 getulio 27
dominam o Congresso por sistema não
proporcional. Não tem sentido. Então,
o Estado brasileiro tem essa lógica de
se apropriar de quem produz e transferir para esse “conjunto de atividades
não produtivas”, para ser menos agressivo [risos]. Então, acredito que a força
transformadora desse cenário é a classe
média. Não são as classes A e B nem D
e E que farão as mudanças neste país.
É a classe C que trará uma mudança
fundamental para a política brasileira.
Marcos Gonçalves As classes A e
B querem viver de renda e viajar para
Miami [risos]. A verdade é que o Brasil
está mais uma vez num período de transição. Como esteve em 1930, como esteve em 1950, e agora, nesses anos 2000,
iniciando a segunda década do século
XXI. Ora, pegando os livros de história
econômica e social, observa-se que as
grandes mazelas do país são a concentração de riqueza, de renda, e um Estado baseado num estamento burocrático
que, de uma forma ou de outra, sempre
caça a renda para si mesmo. Um Estado
que tributou sempre excessivamente.
Desde o Estado colonial, a única razão
de ser da economia era gerar algum
tipo de renda para o próprio Estado,
para seus agregados, direta ou indiretamente, fosse a burguesia, o miliciano,
enfim, está internalizado. As Memórias
de um Sargento de Milícias, por exemplo, do Manuel Antônio de Almeida,
trata muito bem dessa cooptação até os
baixos níveis da sociedade. O Estado
brasileiro foi o único meio de ascensão, o único meio de conseguir poder
econômico e político. E esse Estado
não foi capaz durante muito tempo de
promover a franquia de direitos, que é
a universalização da educação, acesso
a um sistema de saúde razoável, com
qualidade de gestão e saúde preventiva,
acesso à habitação e a bens primários
básicos, a bens fundamentais. Esse Estado, até agora, fracassou.
Yoshiaki Nakano Hoje toda a dinâmica da economia brasileira terá
de mudar porque essa classe média é
fundamental. Desenvolvimento significa também construir um Estado
moderno. Estado no qual haja plenos
direitos políticos, representação pra valer, direitos civis e sociais. Além disso,
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maio 2010
existe uma grande mudança na dinâmica da economia global. O efetivo
fim do sistema Breton Woods, o fim
do império americano da forma como
era exercido. Eu diria que agora é a
vez dos emergentes. Um artigo recente da The Economist, inclusive, diz que
quando existe uma classe média desse
tipo emergindo há a chamada inovação
reversa, ou seja, em vez de a indústria
se sofisticar para as classes A e B, ela
produz os mesmos bens simplificados:
em vez de um automóvel de R$ 25 mil,
produz um de R$ 10 mil. Essa é a lógica da inovação chinesa e indiana, por
exemplo, voltada para essa população.
E o Brasil pode tirar proveito disso.
Outro fator a considerar é a armadilha
juros e câmbio. Um Estado que absorve
O Estado brasileiro
era o único meio de
ascensão, o único
meio de conseguir
poder econômico
e político. Esse
Estado, até agora,
fracassou (Marcos
Gonçalves)
quase 40% do PIB não dá espaço para
mais investimentos. Enquanto a média
do Brasil é de 17%, a dos emergentes é
de 30% de investimentos. Se o Estado
continua abocanhando, não há espaço
para crescimento. É preciso mexer com
o custo corrente.
Marços Gonçalves A renda no Brasil sempre foi muito concentrada, e o
nosso mercado cresceu com base em
quem tinha renda. Havia uma ligação,
uma lógica nociva entre concentração
de renda, uma indústria que produz
mercadorias com alto valor agregado e
um mercado interno que só funcionaria
com concentração de renda.
Leda Paulani É interessante essa
questão da mudança do perfil etário
da população, mas acho que há outro
fator para explicar essa mudança de
uma parcela significativa da população
da classe D para a C: o aumento real
do salário mínimo. Temos 16,6 milhões
de benefícios da Previdência Social,
incluindo aposentados urbanos, rurais e beneficiários do chamado BPC,
Benefício de Prestação Continuada
(idosos de baixa renda e deficientes).
Multiplicando isso por 3,7 (o tamanho
médio da família brasileira nos últimos
tempos), temos mais de 60 milhões de
pessoas das classes C e D que tiveram
aumento real de renda de 53%. O salário mínimo cresceu em termos reais,
descontada a inflação, de 2003 para cá.
Já vinha crescendo no Governo FHC,
mas menos do que no Governo Lula.
Aumento de 53% é a verdadeira política
distributiva. Veja, não é Bolsa Família,
que em termos de volume gasta R$ 13
bilhões por ano. Com benefícios previdenciários de um salário mínimo, a
Previdência gasta R$ 9 bi por mês! Então, é verdade que o Estado retém 38%
do PIB, mas devolve uma parte disso. E
parte dessa devolução também ajuda a
formar essa classe média, não tenho a
menor dúvida. O INSS é gigantesco e
transfere uma quantidade enorme de
recursos para a população.
Marcos Gonçalves Mas é possível
fazer essas políticas mantendo o quadro
e aumentando a eficiência da gestão. A
Previdência transfere até mais, a questão é a eficácia do gasto.
Leda Paulani Nenhum economista
seria contrário a políticas mais eficientes, é ponto pacífico. Mas outras questões precisam ser levadas em consideração. Não acho que haveria um impacto
tão grande sem esse aumento real do
salário mínimo.
Yoshiaki Nakano Outros economistas mediram. E o grosso do impacto é
pequeno.
Leda Paulani Ah, sim, porque aí
houve a retomada do emprego.
Yoshiaki Nakano O Bolsa Família
teve efeito no Nordeste e o salário mínimo teve efeito, não desprezível, na
economia. Mas estou me referindo a
DEBATE
uma mudança estrutural na dinâmica
da economia. Aumento do mínimo não
traz mudança na dinâmica do mercado de trabalho nem na dinâmica da
economia. Na minha percepção, essa
nova classe média mudou radicalmente. O que caracteriza fortemente essa
nova classe como conservadora é que
ela acumulou ativos. Não tem todos
os eletrodomésticos em casa, mas boa
parte, por incrível que pareça, tem sua
casinha, pode ser até na favela, mas
tem. Por isso disse que a mudança demográfica é que traz emergência de
uma nova classe, porque ao longo dos
anos, por menor que fosse o salário,
conseguiram acumular ativos. E hoje
estão em situação bem diferente da
classe anterior.
Ora, quanto mais perto de zero, mais
equitativo, e quanto mais próximo de
um, mais concentrado. O nosso índice
de renda hoje está na faixa de 0,57 a
0,58, um dos mais elevados do mundo. Quer dizer, a concentração ainda
é grande. A mudança na distribuição
de renda é absolutamente desejável e
necessária. O problema é que o país
tem uma estrutura regressiva do ponto
de vista da riqueza. E para alterá-la, só
com um projeto de nação. Infelizmente, nenhum dos projetos que estão aí
colocados pelas vozes dos candidatos
pretende alterar essa situação de estarmos constantemente na dependência
Marcos Gonçalves Mas para isso
acontecer é preciso um projeto de desenvolvimento.
Leda Paulani Justamente. Além
disso, é preciso distribuição de riqueza
– e estamos falando de estoque, não
mais de fluxo. Conheço um estudo sobre o coeficiente de Gini [desenvolvido
pelo estatístico Conrado Gini, mede a
desigualdade de riquezas] do Rodolfo
Hoffmann, que pegou a estrutura fundiária e encontrou um índice de Gini
de nada mais, nada menos, que 0,94.
Quase 1! É uma concentração brutal.
DEBATE
Leda Paulani Não sabem que está
embutido no preço dos produtos e
serviços...
Yoshiaki Nakano Essa é a nossa
realidade. De favorável existe uma
mudança acontecendo na economia
global. Qual era o modelo anterior?
Os Estados Unidos como centro: países
que cresciam atrelados comercialmente
aos EUA, e países que não se atrelavam,
não cresciam e ficavam dependentes.
Acho que esse círculo financeiro vai se
romper. Mesmo que aprovem o pacote
de regulação proposto pelo Obama, se
não abraçarem essa regulação haverá
uma nova crise.
Marcos Gonçalves A questão é
que a economia brasileira esboçou um
início de crescimento até a crise, e o
salário real cresceu mais. O mínimo é
indexador também. De uma forma ou
de outra, essa classe média existe. Então, qual o impacto dela no futuro da
economia brasileira? Existe razão para
sermos otimistas?
Leda Paulani Eu só ficaria otimista
de fato se houvesse, em função de todo
esse processo, uma queda cavalar da
violência urbana, porque é decorrente de desigualdade social e de falta de
perspectiva, não tem outra explicação.
Isso vai melhorar? A expectativa é a de
que sim. Mas enquanto essa mudança
no perfil demográfico e de renda não
provocar uma redução brutal nos índices de violência urbana, não consigo
ser otimista.
queno conjunto de mudanças e forças
irá promover pequenas reformas para
destravar o país. Agora, não acredito
que o Brasil tenha uma elite ou um
Estado capaz de fazer as grandes reformas que a Leda está levantando, levaria séculos para mudar essa estrutura de
riqueza, e a nossa tradição não é fazer
revolução, nem temos uma classe esclarecida suficientemente para comandar esse processo. A classe média que
paga o grosso do imposto, por exemplo,
não sabe disso: 70% da população diz
que não paga nada de imposto.
Leda Paulani A questão é que é
uma crise só, sendo abafada debaixo do
tapete. De 1980 para cá, não se passaram quatro anos sem uma grande crise
financeira.
dos humores do que acontece no mercado internacional de capitais.
Yoshiaki Nakano Temos razões para
otimismo e para ficarmos preocupados.
Essas mudanças já começaram: de um
lado, uma nova classe média deve promover mais mudanças e comandar a
democratização. A franquia de direitos
é a classe média que conquista. Do
lado do empresariado, na dinâmica
econômica, há uma mudança positiva
de perspectiva, de humor. Olhar adiante, descobrir potencial de crescimento
e oportunidades. A armadilha é o provável recuo do Banco Central. Mas se
for superado, vamos embora. Esse pe-
Yoshiaki Nakano Essa crise só irá se
resolver com uma enorme contração
de crédito, fim da liquidez, elevação
da taxa de juros, que já está despontando nos EUA, então o mundo terá
uma configuração muito diferente.
Hoje o FMI fala de controle de capitais, uma recomendação. A mudança
mais importante, porém, é que nessa
crise a dinâmica do crescimento especulativo acabou. A nova situação é
de crescimento bem menor nos países
desenvolvidos. A hegemonia absoluta
americana declinou. Então, a governança global mudou totalmente. Bem
ou mal, isso abre espaço político para
os países emergentes como o Brasil
terem voz ativa. Porém, quando se
participa de um grupo como o G20 é
maio 2010 getulio 29
preciso, no mínimo, saber qual é o seu
interesse. Pela primeira vez, depois de
muitos anos, o pessoal do Ministério da
Fazenda e do Governo tem que pensar
o que interessa ao Brasil. Outra mudança é o crescimento mais ou menos
consolidado da China, e estamos caminhando para esse mesmo lado. Se
tivermos uma política e uma estratégia autônomas, poderemos aproveitar
esse crescimento e avançar lá com a
nossa indústria. A própria dinâmica de
inovação está mudando. Não é mais só
copiar os americanos, sofisticar e diversificar o consumo, mas olhar aquela
grande massa de população e mudar a
dinâmica das renovações tecnológicas
que não vem mais da Europa e dos
EUA, mas da Índia e da própria China.
E o Brasil ainda nem descobriu isso.
Leda Paulani É claro que esse aumento de importância da China e dos
chamados BRICs muda um pouco o
tabuleiro internacional, não há dúvida, até porque a China carrega trilhões de ativos americanos e, por isso,
de alguma maneira, os EUA têm que
respeitar a China. Portanto, acredito
que isso abre novas possibilidades. É
senso comum que a China terá uma
importância muito grande por um bom
tempo. É um país enorme, com quase
um quarto do planeta, e de repente entrou no sistema capitalista. Na minha
perspectiva há duas coisas acontecendo
na economia mundial que não temos
ideia de como vão ficar. Primeiro é a
continuidade da crise, resultado de um
crescimento da riqueza financeira que
vem se dando numa velocidade de quatro vezes o PIB mundial desde os anos
80. Esse gap continua aumentando,
apesar das crises que vão queimando
parte desse capital financeiro. Uma
economia estruturada dessa forma faz
com que a dinâmica mundial seja frágil financeiramente, o que temos visto.
Há 30 anos temos crise atrás de crise,
que no fundo é uma só: existe um descompasso na economia mundial. E
ninguém sabe como esse desequilíbrio
será resolvido.
se, ora maiores, ora menores. Outra
grande incógnita é o que acontecerá
com o sistema monetário internacional. O Robert Triffin, um economista
belga radicado nos EUA, apontou o seguinte paradoxo no sistema de Breton
Woods: a moeda mundial é produzida
por um determinado país, que precisa
inundar o mundo da moeda nacional
porque é também a moeda mundial;
mas para isso precisa ter déficit de
transações correntes; e, tendo déficit
de transações correntes, a moeda se
fragiliza; aí o paradoxo. Quer dizer,
a moeda mundial, para cumprir seu
papel de meio internacional de pagamento, acaba sendo fraca. Hoje estamos exatamente nesse ponto. O dólar
vem se enfraquecendo há tempos. E os
EUA vêm pilotando essa gangorra dólar forte, dólar fraco conforme seus interesses. O que irá acontecer? O euro
será o substituto? Mas a Europa é um
caleidoscópio de países diferentes...
Quanto ao Yuan, os chineses não querem que seja a moeda mundial, pelo
menos não agora. Não se sabe como
será resolvido esse impasse. Então,
são essas as incógnitas. O Brasil deveria colocar as barbas de molho, tendo
clareza dessa situação, e tomar as medidas necessárias para preservar o seu
espaço de autonomia. Isso implica sair
da armadilha câmbio/juros e controlar
0 fluxo de capitais, se preservar como
têm feito os outros países da chamada
semiperiferia. Sem essas medidas, o
país fica vulnerável, distante, inclusive, de pensar em qualquer proposta
para consolidar o desenvolvimento.
Yoshiaki Nakano Nós ainda estamos na mesma armadilha que gerou
todo aquele processo de recuperação e
crise, recuperação e crise. E estamos na
véspera, talvez, de repetir mais uma. O
Banco Central já sinalizou que vai aumentar os juros. Haverá apreciação do
câmbio. Se olharmos crises passadas,
exatamente quando se eleva a taxa de
juros, o crédito continua expandindo
igual ou até mais forte. Então, o efeito
declarado não existe. O efeito que terá
na economia é que com a apreciação
maior no câmbio haverá queda na inflação. O quadro pode ser complicado
no seguinte sentido: se aprecia demais
o câmbio, o déficit de transações correntes aumenta, já está crescendo
explosivamente, baterá mais de 50
bilhões este ano e certamente de 80 a
100 bilhões no próximo. A partir de 2012
corre-se o risco de nova crise.
Marcos Gonçalves Está crescendo
por causa dos serviços?
Yoshiaki Nakano Mais do que isso,
a taxa de câmbio responde fundamentalmente ao fluxo de capital, e não à
importação e exportação. De todas as
transações feitas no mundo hoje, apenas 1% está atrelada à importação e exportação; 99% é operação financeira.
É troca de moedas. Compra-se moeda
estrangeira para aplicar em ativo, para
aplicar em outro ativo e ganhar nas
transações. O câmbio é 99% determinado pelo financeiro. Então, pelo menos
nos próximos dois anos, o FED [Federal
Reserve] vai manter essa política de expansão maluca, e não tem outra palavra, de crédito com juros praticamente
zero. No final é negativo, porque tem
a inflação de 1,2%. Por isso, existe o risco de a depreciação do Real continuar por um período prolongado. E, só
quando o problema do passivo externo
se tornar grave, o déficit de transações
correntes se tornar enorme, uma parte
do mercado que olha os fundamentos
da economia vai dizer “Não dá mais”.
E, de repente, há a reviravolta, com a
saída de capital.
Há como evitar esse processo?
Yoshiaki Nakano Tem que mudar
a política cambial. Já andamos em
alguma direção para a mudança. O
Leda Paulani A que estaremos sujeitos a soluços sistemáticos dessa cri-
maio 2010
Qual seria a política correta
neste momento?
Yoshiaki Nakano Já disse aqui que
seria impossível pegar o investimento
de 17% do PIB e elevar para, no mínimo, 25%. Se emergentes, em média, investem 30%, temos que chegar lá. Mas
com o governo se apropriando de 40%,
entre carga tributária e receita, não
tem espaço. Veja, não é juro alto que
dá dinamismo na economia, é retorno
elevado sobre investimento produtivo.
Isso se faz exonerando e aumentando a
competitividade dos exportadores. Assim, coloca-se à economia na trajetória
clássica de crescimento. Esse ajuste é
Quando se participa do G20 é preciso saber qual seu interesse. E pela primeira vez, o pessoal
da Fazenda e do Governo tem que pensar o que interessa para o Brasil (Yoshiaki Nakano)
E a que isso nos leva?
30 getulio
Ministério da Fazenda criou o Fundo Soberano, por exemplo. Em todos
os países moeda nacional é interesse
prioritário. Não se brinca com moeda.
E por que é uma armadilha? Porque,
quando a economia começa a se recuperar, vêm os economistas de banco
dizendo que é inflação. O problema
é que só a recuperação da economia
leva o empresário a investir. Nunca
permitimos o investimento bater em
um ponto em que a capacidade começa a crescer mais rapidamente que a
demanda, porque se corta antes. Essa
é a nossa armadilha.
DEBATE
DEBATE
fundamental. Neste momento, o ajuste
correto é, em vez de aumentar os juros,
segurar a despesa corrente do governo,
o consumo crescente, por exemplo, e
abrir espaço com juro menor para aumentar a taxa de investimento. A mudança de juros e câmbio é um ajuste
estrutural na economia.
É possível de ser feito?
Yoshiaki Nakano Infelizmente temos caído nessa armadilha sistematicamente. Se a gente não tivesse caído
na armadilha de 2008, a essa altura do
campeonato o país seria outro, positivo,
porque teria muito mais gente pensando em investimento. A grande mudança que para mim é o sinal de termos
feito a transição é ter essa massa crítica
de empresários investindo pra valer e
essa classe média consumindo cada vez
mais, gerando demanda por um tipo de
política muito mais pragmática – e deixará de ser política ideológica.
A propósito, como educação e identidade
entram nessa perspectiva de futuro?
Yoshiaki Nakano Olhando para
experiências de outros países, hoje desenvolvidos, vemos um processo em
que, num certo momento, se constrói
um Estado Moderno e, de outro lado,
se constrói uma máquina capitalista
completa e eficiente. Para essa máquina funcionar é preciso uma organicidade em que a população tenha direitos
políticos, participação nas decisões,
representação e faça seus interesses
prevalecerem. Nesse processo, a educação sempre foi fundamental. O que
é o sistema educacional? Nesses países, num certo momento, gera-se um
movimento nacionalista, exatamente
o movimento de catch up. Esse movimento só acontece quando se cria um
sistema educacional nacional, porque
é preciso convergência de interesses,
é preciso introduzir valores na sociedade, cooperação, mecanismos para
evitar conflitos, a pessoa saber que está
em um barco comum, com um destino
comum e que pertence a uma nação.
O fundamental do sistema educacional
não é só dar qualificação, mas socializar
o indivíduo, introduzindo valores que
dão identidade a uma nação.
maio 2010 getulio 31
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