Fala de José Roberto Barreto Lins, editor da Annablume, durante o
I Congresso Luso Brasileiro Traduzir e Publicar os Clássicos.
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, Portugal, em 23 de
novembro de 2012.
Senhoras e senhores, boa tarde.
O trabalho de editor, publicar, pode ser visto também como uma tradução. Tradução do texto
concebido pelo autor ao leitor, ao público. Nesta intermediação, a ação do editor – e do corpo do
conselho editorial de cada casa – ocorre nos limites e possibilidades da transposição da escrita autoral
para os códigos do livro.
São interferências que se dão, de um lado, na ordem do texto, com suas normatizações e sugestões
estilísticas. Normatizações pelas adequações de publicação sugeridas pelas agências internacionais
e procedimentos editoriais de cada editora. Já as sugestões de estilo vêm do corpo editorial e são
geralmente referentes ao conteúdo a ser publicado: aprofundamento de pontos da obra, diminuição
de outros; do editor, as sugestões costumam ser na redação, quando não de cortes devido à extensão
e custos da publicação.
De outro lado, temos os aspectos plásticos e gráficos da confecção dos exemplares. E a forma como
a editora vai desenhar e imprimir o livro (para não mencionarmos as publicações em e-book, que
abririam outra gigantesca janela em nossa fala) pode proporcionar uma leitura completamente
diferente do conteúdo. Imagine-se uma publicação clássica vestida com os estrambólicos aparatos de
designer do livro para entretenimento.
Estes são aspectos mais diretamente ligados à produção do livro já dentro deste processo que chamamos
“tradução editorial”. Entretanto, eu gostaria de me dedicar aqui a um outro ponto importante da edição.
A função da publicação acadêmica na perspectiva das relações entre autor, editora e instituições
acadêmicas. Minha ideia é colocar algumas linhas sobre o tema, dividindo-o em três momentos, tendo
como base os vinte anos de experiência da Annablume.
OS PRIMEIROS ANOS
A editora foi criada em 1993, ainda nos ventos da redemocratização do Brasil, cujo período dos
governos militares terminou em 1985, sendo as primeiras eleições livres em 1989. O slogan era
“você que já defendeu, não mate a sua tese”. Na história da Annablume, dizemos que foram os anos
do diálogo. Publicar um trabalho acadêmico era difícil. O pesquisador concluía sua tese e ela ficava
restrita à instituição onde foi apresentada. Mas havia um grande entusiasmo entre os acadêmicos
para divulgar seu trabalho, conhecer novas pesquisas, enfim, trocar informações. Neste espírito que
criamos a editora. O intuito era mais que fazer livros, publicar.
A atuação da Annablume se desenvolvia em três frentes: apresentar graficamente uma publicação que
não tivesse o ranço do formato tese, embora com o cuidado de preservar as características do texto
científico; divulgar a pesquisa além da mídia especializada, valorizando o caráter acadêmico da obra
sob o argumento de que ali estava o fruto de anos de dedicação de um pesquisador; e, importantíssimo,
distribuir, lutar para que o livro estivesse acessível ao leitor, num trabalho que envolvia convencer o
livreiro a aceitar os títulos da editora com seu perfil específico, participar dos encontros acadêmicos e,
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posteriormente, ter um bom mecanismo de vendas pela internet. Enfim, todo o esforço da Annablume
era para divulgar a produção acadêmica, buscar estabelecer uma ponte entre a academia e a sociedade
brasileira e entre os próprios pares acadêmicos. A primeira inovação do projeto foi esta: publicar,
diferentemente do que faziam as editoras acadêmicas na época, que produziam livros, mas não se
preocupavam em divulgá-los e distribui-los.
PRODUTIVIDADE
A ideia de divulgar e publicar a produção acadêmica foi ganhando o entusiasmo de uma nova
geração de pesquisadores, que concluíam seus mestrados e doutorados após os 20 anos de ditadura
militar. Reflexo de um período de diálogo, de exposição e de troca de pensamentos. Entretanto, em
meados dos anos 90, um novo paradigma no intercâmbio entre acadêmicos vai mudar o objetivo da
publicação de pesquisas. A Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (CAPES) havia
iniciado nos anos 80 o ranqueamento das universidades do país baseando-se na “produtividade” de
seus departamentos. O polêmico processo tomou corpo e vulto. Em 1988, o jornal Folha de S. Paulo
publica matéria com a famosa lista dos improdutivos da USP, incluindo nomes de professores de
muito prestígio. No início dos anos 90, as consequências do ranking na academia brasileira já são
bastante concretas. Como reflexo, as agências de fomento à pesquisa e os próprios departamentos
decidem criar programas para apoio à publicação.
Foi o início de uma nova fase da Annablume. Para se ter uma ideia, entre abril de 1993 e dezembro
de 1994, portando em um ano e meio, a editora publicou 26 títulos, quase todos em parceria com
o autor. A partir de 1995, o número de originais que passam a ser submetidos à avaliação cresce
significativamente, vindos de várias regiões do Brasil. E começam a surgir várias propostas de
subvenção para publicação e de coedição. Os livros em sua grande maioria passam a ser viabilizados
com o incentivo de instituições universitárias ou de instituições que apóiam a produção acadêmica.
O novo patamar editorial da casa exige outra dinâmica. É preciso analisar uma quantidade cada
vez maior de originais. Amplia-se significativamente o corpo de pareceristas colaboradores e novas
coleções passam a ter conselhos que avalizam os textos a ser publicados. Cresce também a equipe
da casa para dar conta da produção, divulgação e distribuição das obras. No final de 1999, seis anos
depois de sua criação, trabalham na editora dez pessoas e o catálogo rompe os 400 títulos.
Toda esta produção gerou, paradoxalmente, uma crise editorial na Annablume. Recebia-se uma
grande quantidade de originais, boa parte deles tinha indicação para publicação e se viabilizava pela
captação junto a instituições. A distribuição se consolidava: atingia livreiros de quase todos os estados
da Federação e a editora passou a participar de dezenas de encontros acadêmicos pelo Brasil e até
no exterior, como foi o caso do estande na Brazilian Studies Association (Brasa), em Washington,
em 1998. A divulgação se realizava com várias matérias em jornais e revistas. Enfim, o projeto de
publicação da produção acadêmica era realizado. Mas, se de um lado, iniciativas significativas
puderam ser efetivadas – como a primeira coletânea do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação
em Meio Ambiente da USP (Procam) –, de outro se tornou evidente que se tratava de um projeto
editorialmente muito passivo. A nova demanda de edição pela pontuação dava outro fim à publicação.
Havia a indicação do mérito científico da pesquisa, havia a viabilização do livro, mas, em muitos casos,
não havia o compromisso do autor com a divulgação de sua obra.
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POSICIONAMENTO E PROPOSIÇÃO
Era preciso incentivar novamente a veiculação de ideias, o interesse pelo debate. A Annablume
necessitava agregar um novo critério editoral: privilegiar quem estava realmente interessado
na publicação de seu trabalho. O passo foi a criação da coleção Crítica Contemporânea, em 1999.
Concebida e dirigida por Josué Pereira da Silva, professor do IFCH da Unicamp, entre seus primeiros
títulos estavam uma coletânea homônima à coleção, além de Metamorfoses do trabalho e Misérias do
presente, riqueza do possível, ambos do ensaísta francês André Gorz. O propósito, ofertar ao leitor
novas obras de Gorz e ensaios de autores brasileiros que julgávamos relevantes para as discussões
sociológicas sobre as novas formas de trabalho e suas implicações na sociedade contemporânea.
Mudava o papel da Annablume, ela não só publicava a produção acadêmica, mas passava também a
propor discussões.
Paulatinamente, novas coleções com a mesma orientação editorial foram lançadas em outras áreas.
Antônio Carlos Robert Moraes, da FFLCH-USP, criou a coleção Geografia e Adjacências (2004), onde
editamos, entre outros, A produção capitalista do espaço, de David Harvey. Seguiram-se outras, com
a coleção História e Arqueologia em Movimento (2006), inspirada e dirigida por Pedro Paulo Funari
(IFCH-Unicamp) e a coleção Cidadania e Meio Ambiente, coordenada por Pedro Roberto Jacobi
(USP). Hoje a Annablume publica 15 coleções com o mesmo espírito em diferentes áreas do saber.
Mas não bastava privilegiar o autor que estava comprometido com a publicação de seu trabalho. Aos
poucos foi ficando claro ao corpo editorial que era preciso estar sintonizado com pesquisadores que
estivessem alinhados com novos arranjos do conhecimento. Em 2005, Christine Greiner, professora
da PUC-SP, foi convidada a dirigir uma coleção nova na casa, Estudos do Corpo. A ideia: desenvolver
uma linha de estudos sobre um tema novo e sob uma nova ótica, transdisciplinar, contemporânea às
iniciativas que estavam mudando alguns parâmetros de organização da Universidade brasileira.
Com mais de 15 títulos publicados – dois coeditados aqui com a Imprensa da Universidade de Coimbra­
- o projeto teve ampla repercussão. E se reverberou editorialmente na criação da coleção Queer (2011),
proposta por Richard Miskolci (Universidade Federal de São Carlos), que vai aprofundar as linhas
já colocadas por Christine Greiner sob uma temática ainda mais audaciosa, a dos estudos sobre
sexualidades e gênero lidados como categorias analíticas, históricas e socialmente criadas.
Concomitantemente, a Annablume, nesta linha de estudos renovadores, faz novamente um trabalho
de recolocação de um nome de referência para o pensamento no século XXI. Depois de apresentar
ao leitor brasileiro cinco obras de André Gorz, lança, entre 2007 e 2011, dez títulos de Vilém Flusser.
Com ele, traz um novo paradigma para os estudos em diversas áreas, especialmente em Filosofia
e também em Comunicação. Nos dois pensadores, uma mesma premissa: o texto escrito na forma
de ensaio como crítica ao descompromisso que muitas vezes caracteriza o discurso acadêmico. É
preciso mencionar que cinco ensaios de Flusser foram selecionados pelo corpo editorial da IUC para
publicação em Portugal.
O TONER E O CLÁSSICO
Desde 2005, o mundo editorial acadêmico no Brasil passou a viver sob outro parâmetro. Sofisticados
processos técnicos mudaram radicalmente o papel do livro como veiculador de informação. A evolução
das técnicas de impressão a toner, a impressão sob demanda, junto com os novos sofwares para desenho
e paginação do livro, facilitaram a confecção de exemplares de modo que não se conhecia há quinze
anos. Tornou o mercado editorial, no seu atual modelo, um mercado sem barreiras, onde pipocam
novas editoras todo dia. Com isto, vulgarizou-se a publicação. Na seara acadêmica brasileira, este
processo, aliado a exigência de produtividade (onde a publicação é um dos parâmetros de avaliação)
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dos programas especialmente de pós-graduação e dos próprios pesquisadores, resultou na fabricação
de montes de exemplares cujo destino não é outro do que cumprir um ritual burocrático. Não são
lidos, nem debatidos, a rigor nem se toma conhecimento deles. A consequência é a decadência do
livro como formato consagrador de informação. O fato do texto ter saído num formato 14x21cm, com
capa e diagramado, com cara de livro, não quer dizer mais nada.
O que importa cada vez mais é a chancela de quem está publicando. O selo editorial. É preciso um
projeto editorial composto de colaboradores com uma visão ampla dos caminhos de sua área de
pesquisa e com claros critérios de pertinência de publicação. A ideia de criar o selo Annablume Clássica
vem exatamente nesta linha. O primeiro passo é o foco. É preciso delimitar a ação editorial. No caso
da Clássica, a ideia é privilegiar estudos sobre os grandes temas da humanidade desde a Antiguidade
até o XVIII. Estes estudos foram durante uma boa parte da vida da Universidade brasileira deixados
mesmo em segundo plano, como se tudo que se passou antes de 1500 nos dissesse respeito muito
longinquamente. Mas, de dez anos para cá, uma nova geração de pesquisadores mudou esta forma
de pensar e os programas dedicados aos clássicos na universidade brasileira cresceram de maneira
significativa. O segundo ponto foi criar um conselho de especialistas com qualificação para indicar
textos para publicação e avaliar originais que chegam a casa.
E o terceiro, encontrar instituições que trabalhem em parceria com o mesmo objetivo: valorizar e
divulgar a publicação com qualidade. Assim veio a coleção Archai, dirigida por Gabriele Cornelli, em
parceria com a cátedra Archai da Universidade de Brasília e da Unesco.Também neste sentido, é um
privilégio poder desenvolver o projeto da Annablume Clássica em sintonia com os dois principais
fóruns brasileiros de divulgação do classicismo, a Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC) e
a Anpof, Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Filosofia.
É neste contexto a importância da parceria com a Universidade de Coimbra, seja com o CECH ou
com a IUC. E em vários sentidos. Primeiro, porque por meio da reconhecida alta qualidade de sua
produção, que se reflete diretamente na excelência de suas publicações, impõe à publicação dos
Clássicos no Brasil um novo parâmetro de tradução, comentário e análise. Segundo, porque oferece
ao leitor-pesquisador brasileiro uma série de novas obras em língua portuguesa. Só com a coleção
Classica Digitalia Brasil, a parceria IUC-Annablume disponibilizou, em um ano e meio, vinte títulos,
frutos de pesquisa da mais alta competência. E o terceiro aspecto, fundamental e estratégico, porque é
um projeto de envergadura internacional para a valorização do conhecimento produzido em Língua
Portuguesa.
Para concluir, retomando o ponto inicial da fala, a “tradução editorial”, estamos num momento em que
a universidade brasileira está revendo profundamente sua relação com a publicação. Neste processo de
tradução da obra do autor ao livro do leitor, se, de um lado, é notório que é preciso de parte das editoras,
dos departamentos das universidades e das agências com programas de fomento à publicação novos
critérios de valorização da pesquisa a ser publicada, de outro, é preciso manter no autor o intuito de
publicar como divulgação de novas ideias, de impulso ao diálogo. Isto, posto na seara dos estudos
clássicos no Brasil, adquire sabores especiais, pois se trata de uma área que recentemente tomou forte
impulso de desenvolvimento, e pode ­– e deve – mostrar um novo parâmetro de publicação. Neste
sentido, a veiculação das publicações do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos pela Imprensa
da Universidade de Coimbra tem um papel de enorme relevância.
Muito obrigado.
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Fala de José Roberto Barreto Lins, editor da Annablume, durante o I