Revisões
Anorexia nervosa
na terceira idade
Resumo
A anorexia nervosa ocorre em todas as faixas etárias,
da adolescência à terceira idade. São descritos seis
casos que se apresentaram num serviço de psiquiatria
geriátrica durante um período superior a 10 anos.
Estes casos ilustram de que forma os efeitos do
envelhecimento modificam o quadro clínico, não
alterando, contudo, o problema fundamental do baixo
peso corporal auto-imposto. Uma maior compreensão
para com os idosos e mais narrativas sobre a ocorrência
da doença na terceira idade podem dar um largo
contributo para a sua compreensão como um todo.
A. Wills e S. Olivieri
Department of Old
Age Psychiatry, Royal
Hampshire County
Hospital,Winchester,
UK
Aging & Mental Health
(1998); 2 (3): 239-245
Carfax Publishing,
Taylor and Francis Ltd
Introdução
Apesar dos critérios ICD-10 para o diagnóstico da
anorexia nervosa (AN) excluírem explicitamente a ideia
segundo a qual a doença poderá ter o seu início após a
menopausa, a anorexia nervosa foi claramente reconhecida
em mulheres com mais de 40 anos (WHO, 1992). O
DSM-IV considera que o início desta perturbação
raramente ocorre em mulheres com mais de 40 anos
(APA, 1994). Na realidade, a AN tem sido identificada em
todas as faixas etárias (Joughin et al., 1991; Price et al.,
1985), incluindo em homens. Descrições anteriores de
AN encontraram algum cepticismo, mas em 1939 Carrier
introduziu o conceito de ‘anorexia tardia’ que foi usado
por Dally, descrevendo um vasto grupo de mulheres,
algumas das quais desenvolveram AN após a menopausa.
História do conceito
A evidência histórica para a classificação da AN foi
recentemente revista por Parry Jones e Parry Jones
(1994) e por Russell (1995). Parry Jones e Parry Jones
manifestaram a sua preocupação com a rígida fixação
à classificação diagnóstica desta perturbação
determinada no ICD e no DSM. Relativamente à falta
de evidência para a distorção da imagem corporal,
casos clínicos ocorridos até 1939 sugerem que “devemos
ser cautelosos quanto à sobrevalorização da importância
do diagnóstico de um traço individual ... que se pode
revelar ser de relativa pouca duração, em termos
históricos”. Um desses traços pode ser, seguramente, a
idade. Russell (1995) demonstrou que o conceito de AN
evoluiu e modificou ao longo do tempo, tanto na sua
psicopatologia, como na sua epidemiologia desde que foi
originalmente descrita por Lasegue (1873) e Gull (1874).
Russell analisa a relevância do factor sexo e a ‘fobia ao
engordar’, mas não toma a idade em consideração. O
autor assinala que as pressões sócio-culturais podem
provocar uma alteração na psicopatologia da AN e que
os valores estéticos e filosóficos variam consoante as
épocas, do mesmo modo que varia a apresentação clínica
da AN. A idade avançada foi, durante muitas décadas,
considerada um factor de exclusão para a AN. Podemos,
agora, ter uma visão mais ampla.
Desde as suas primeiras descrições foi, em termos
gerais, aceite que a síndrome da AN ocorre
caracteristicamente nos adolescentes e nos jovens,
não obstante existirem relatos antigos de AN em
doentes mais velhos e relatos mais recentes de AN
em doentes com idades pós-menopausicas. Gull
descreveu doentes “com idades essencialmente
compreendidas entre os 16 e os 23 anos”. O autor
evidenciou “ a amenorreia, o estado de inanição lenta,
o baixo ritmo cardíaco e respiratório, a perda de peso
alarmante, as flutuações no humor e a assinalável
energia física e mental manifestada, apesar do lastimável
estado físico geral”, afirmando que “com um tratamento
firme e sensível, a saúde poderia ser restabelecida”.
Em 1930, Berkman publicou uma revisão sobre 117 doentes
a quem foi atribuído o diagnóstico de AN, na clínica Mayo.
Destes doentes, 16 tinham idades compreendidas entre
os 30 e os 40 anos e quatro deles tinham mais de 40 anos.
Dos doentes masculinos, 11 apresentavam idades superiores
a 30 anos, incluindo dois que tinham mais de 40 anos.
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27
Revisões
Concluindo que a AN é uma entidade clínica definida, Berkman não
exclui nenhum doente devido à idade.
Em 1936, Ryle descreveu o problema clínico da AN em 51 casos
individuais, 18 dos quais apresentavam idades superiores a 30 anos.
“Pensei, contudo, incluir um grupo de mulheres mais idosas porque
o quadro clínico me pareceu semelhante na sua essência e as
doentes igualmente merecedoras de compreensão e tratamento
adequados”.A sua doente mais idosa tinha 59 anos. Ryle acrescentou
“ a verdadeira natureza da doença não foi diagnosticada e alguns
médicos manifestaram a sua preocupação por nunca terem ouvido
falar da sua existência”. Embora isso já não aconteça relativamente
à ocorrência de AN em sujeitos mais jovens, um diagnóstico de
AN nos mais idosos é ainda encarada com algum cepticismo por
alguns médicos e como Ryle afirma: “suspeitas de doença orgânica
grave não são recebidas sem alguma falta de naturalidade.
Actualmente, parece que, na sua essência, a posição não se alterou.
Mais recentemente, Palazzoli Selvini (1974) afirma no seu livro sobre
Data
de início
História Clínica
Passada
Doença
concomitante
Resultado
26
Tiroidectomia parcial
AN desde os 26 anos
Evitamento alimentar
Problemas
conjugais
Nenhuma
Aumento de
peso até
aos 42,8 Kg
Faleceu com
82 anos
num lar
Perda de peso
Bizarrias alimentares
8
Abuso sexual
enquanto criança
AN aos 8 anos
Conflito conjugal
Perturbação
Depressiva Major
O peso
permaneceu
inferior a 40 Kg
ao sétimo ano de
acompanhamento
Perda de peso
Bizarrias alimentares
Convicção de que tem
peso excessivo
Recusa em cooperar
em programas de
aumento de peso
72
Nenhuma
Conflito conjugal
Aposentação
AF
Pneumonia
Fractura do
osso escafóide
Peso = 37,8 Kg
Faleceu em casa
com enfarte do
miocárdio
Perda de peso
Bizarrias alimentares
Convicção de que tem
peso excessivo
Recusa em comer
18
AN desde os
18 anos
Debilidade
Não é capaz de
viver sózinha em casa
Nenhuma
Peso estável
aos 32 Kg
A viver em lar
Doente
Procedência
Quadros clínicos
F 74
35 Kg
Medicina Interna
investigação da
perda de peso
Perda de peso
Bizarrias alimentares
Convicção de que tem
peso excessivo
F 67
37,8 Kg
Medicina Interna
inquirição da
tentativa de
suicídio
28
F 72
36,6 Kg
Clínica Geral
Avaliação da
perda de peso
F 84 Medicina Interna
29,8 Kg recusa em comer
M 67
44,8 Kg
Clínica Geral
perda de peso
F 75 Encaminhamento
33 Kg do clínico geral
auto-inanição: “na minha opinião, o termo ‘anorexia nervosa’ deveria
ser reservado para uma síndrome especial que ocorre em raparigas na
fase da puberdade e da pré-puberdade”. Feighner et al. (1972) também
define a AN como sendo uma doença que ocorre antes dos 25 anos.
Contudo, apesar do ênfase dado à idade precoce de início da
doença e do cepticismo em relação aos casos de início tardio,
em 1976 Kelett et al. apresentaram o relato de um caso que
consideraram representar a primeira descrição inequívoca de
“AN com início após a menopausa”. Em 1979, Dally e Gomez
fixaram um limite máximo de idade para a ocorrência de anorexia
nervosa nos 35 anos. No entanto, em 1984, Dally reviu esta
proposição, descrevendo Anorexia Tardia (AT) - a síndrome de
AN que ocorre nos doentes mais velhos ou após o casamento.
Russell e Gilbert (1992) confirmaram a AT como sendo uma
entidade clínica mas indicaram os seus factores precipitantes
como sendo acontecimentos ligados a perdas, bem como a
sintomatologia depressiva associada a esses acontecimentos.
Precipitadores
Perda de peso
Recusa em comer
69
Nenhuma
Morte da empregada (?)
Mudança de residência
Nenhuma
Perda de peso
Preocupação com a
alimentação
Abuso de laxantes
67
Nenhuma
Desarmonia conjugal
Perturbação
Depressiva Major
Quadro I. resumo dos relatos dos casos
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Peso estável
nos 56 Kg
A viver com
sobrinho e
profissional de
apoio
domiciliário
Três
internamentos
hospitalares em
seis anos
vive com o
marido
Não conformada
Revisões
Os relatos de casos de AN mais recentes em doentes mais velhos
foram revistos por Cosford e Arnold (1992): 5 doentes apresentando
AN pela primeira vez, em idades compreendidas entre os 54 e os 70
anos e 6 doentes apresentando início precoce de AN que persistiu
até às idades compreendidas entre os 60 e os 80 anos. Além disso,
Riemann et al. (1993) fizeram, recentemente, o relato de um caso de
um homem de 72 anos e Hall e Driscoll (1993), o relato de duas
mulheres com 61 e 64 anos que apresentavam sintomas de AN.
Assim, a AN foi historicamente descrita na literatura em doentes
idosos e fora dos critérios de idade que figuram nas classificações de
diagnóstico modernas . Apesar de tanto o ICD-10 como o DSM-IV
já não excluírem a idade da pós-menopausa do diagnóstico de AN,
esta doença, ao contrário de outras perturbações do foro psiquiátrico,
não é amplamente aceite como uma doença sem idade específica.
Descrevemos seis casos de pessoas idosas (cinco mulheres e um
homem) que sofrem de anorexia nervosa que foram encaminhados
para os serviços públicos de saúde durante um período superior a
10 anos e discutimos as implicações para o diagnóstico, orientação
e cuidados destes doentes. Os casos estão resumidos no Quadro I.
Relatos de casos
A Sra. G (74 anos)
A Sra. G foi encaminhada para o serviço de psiquiatria geriátrica
da sua área de residência pela equipa médica hospitalar que estudava
a sua perda de peso e, possivelmente, alguma massa abdominal. Foi
submetida a extensivos exames cujos resultados foram negativos.
Pesava 35 Kg (estatura = 1,66m). O único acontecimento com
interesse na sua história clínica passada foi o facto de ter sido
submetida a uma tiroidectomia parcial há trinta anos para remover
um nódulo benigno, da qual recuperou completamente. Não foi
necessária nenhuma terapia de substituição. O encaminhamento
foi induzido pelo seu comportamento que se centrava em torno
dos seus hábitos alimentares invulgares. Só aceitava comer uma
banana e, ocasionalmente, tomar uma chávena de chá, alegando
que qualquer outro alimento a enjoava. Estava persuadida a cooperar
num programa de aumento de peso e o seu peso chegou,
gradualmente, aos 42,8 Kg durante um período superior a um
mês. Nessa altura, recusou cooperar durante mais tempo no
programa, retomou os seus hábitos alimentares anteriores e
começou, novamente, a perder peso - daí, o seu encaminhamento
para o especialista em psiquiatria geriátrica.
O exame psiquiátrico revelou uma mulher normal em termos
cognitivos e afectivos, mas cuja atitude em relação à comida e à
imagem corporal eram característicos de uma pessoa anoréctica:
fobia ao engordar e evitamento de alimentos associados a uma
grande convicção de ser excessivamente gorda. O seu resultado
na Escala de Depressão Geriátrica (EDG) foi de 7. Descobriu-se
que a Sra. G foi, de facto, anoréctica a partir dos 26 anos,
imediatamente após ter casado com um oficial britânico colocado,
nessa altura, na sua Austrália natal. O casal mudou-se, então, para
Inglaterra, uma mudança que em pouco tempo considerou ser
intolerável. A sua atitude em relação às relações sexuais era de
repugnância e não foi capaz de lidar com as exigências sociais
impostas a uma esposa de um oficial. O seu evitamento assumiu a
forma de anorexia nervosa. A Sra. G começou a ser consultada por
um vasto leque de diferentes especialistas, apresentando uma
variedade de queixas somáticas e apesar de pelo menos uma vez
ter sido correctamente diagnosticada, esse diagnóstico foi rejeitado
tanto por ela como pelo seu marido.Assim, continuou a ser consultada
por médicos, submetida a exames e a diferentes medicações sem
qualquer alteração no seu comportamento ou hábitos alimentares.
O seu peso oscilou entre os 32 e os 45 Kg durante a história da
sua perturbação com mais de 48 anos. Após o falecimento do seu
marido, a Sra. G mudou-se para um lar, onde faleceu aos 82 anos.
Sra. H (67 anos)
A Sra. H foi internada no hospital geral da sua área de residência,
no seguimento do que se pensava ser uma tentativa de suicídio.
Foi encontrada de pé no lago da sua povoação, com a água à altura
das coxas, bastante despreocupada, em silêncio, contemplando
abstractamente o céu. O exame do estado mental realizado na
altura do internamento foi consistente com um diagnóstico de
Perturbação Depressiva Major (EDG = 19). Foi tratada em
conformidade com esse diagnóstico, obteve alta do hospital, mas
recebendo acompanhamento hospitalar diário. Durante esta fase
de tratamento, as enfermeiras repararam que a Sra. H nunca usava
roupas femininas: apresentava-se no hospital sempre de calças,
camisolas largas, sem maquilhagem, cabelo curto, despenteado.
Comia muito pouco, pequenas quantidades de comida, rejeitando
sempre, com repugnância, a oferta de qualquer doce. Pesava 37,8
Kg (estatura = 1,56 m). O seu humor era, inicialmente, o de uma
mulher taciturna, de aspecto triste e alheado, mas que melhorou
ao longo do tempo. A psicoterapia de grupo provou ser
particularmente eficaz ao permitir-lhe dar-se a conhecer. Emergiu
uma longa história familiar de conflito e de abuso sexual que
remontava à sua infância. O seu avô governou autocraticamente
a sua família, abusando das suas filhas, netas e pelo menos de uma
das enteadas. A Sra. H sofreu um episódio de anorexia nervosa
aos 8 anos que foi detectado mas não tratado e que, aparentemente,
se extinguiu espontaneamente. Ocorreu um segundo episódio
VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001
29
Revisões
pouco tempo após o seu casamento. O conflito emergiu em torno
do sua apetência e comportamento sexuais que ficaram aquém
das expectativas do seu marido. A sua doença actual foi precipitada
novamente por problemas conjugais, acabando por eclodir na sua
subida ao lago da povoação. A Sra. H possuía uma fraca autoimagem: via-se como uma mulher feia. De facto, descrevia-se como
“deformada”. O seu comportamento anoréctico persistiu mesmo
após a depressão estar completamente curada. Conseguiu, no
entanto, regressar à sua vida normal, mantendo-se com um peso
inferior a 40 Kg durante os sete anos que foi acompanhada pelos
serviços locais de psiquiatria geriátrica.
Sra. I (72 anos)
30
A Sra. I, uma vice-directora reformada, foi encaminhada pelo seu
clínico geral após ter sofrido uma queda, fracturando um osso
escafóide. Desenvolveu, seguidamente, fibrilação auricular e
pneumonia. A sua hospitalização foi prolongada e associada a uma
perda de peso de 8 Kg: de aproximadamente 44 Kg para 36,6 Kg.
Após a recuperação, a Sra. I recusou-se a cooperar em qualquer
programa de aumento de peso, alegando que ainda se encontrava
demasiado gorda. Tendia a comer apenas fruta fresca e vegetais.
Mostrava os edemas localizados nos tornozelos para justificar a
sua atitude. Preocupava-se com o funcionamento intestinal, fazendo
um uso excessivo de laxantes que acabaram por lhe terem sido
retirados. O exame do estado mental revelou uma mulher com
um baixo nível afectivo apesar dos seus pensamentos não possuírem
conteúdo depressivo. Não possuía ânimo nem energia. Não existiam
indicadores biológicos de depressão, excepto o seu fraco apetite.
Mostrava uma persistente recusa em aceitar que estava doente,
excessivamente magra ou de ter, de facto, emagrecido. A sua família
ficou bastante ansiosa, o que gerou a intensa correspondência,
solicitando alguns procedimentos, compra de livros de dietas e
culinária, etc.. A Sra. I permaneceu, no entanto, tranquila, claramente
satisfeita com a sua situação. Averiguações posteriores revelaram
que a Sra. I deixou de exercer funções num prestigiado
estabelecimento de ensino superior feminino apenas quando atingiu
o limite máximo de idade para aposentação, tentando com efeito,
adiar esse procedimento. Desde então, tem sido bastante infeliz.
Durante muitos anos, o seu casamento esteve em sérias dificuldades.
Os seus filhos esforçaram-se por amenizar os atritos existentes
entre os seus progenitores. Desenvolveu-se um padrão
comportamental, segundo o qual sempre que emergia uma crise
conjugal, os filhos levavam um ou ambos os progenitores, cada um,
para sua casa. A mãe foi sempre claramente reconhecida como
uma pessoa doente e o pai, sempre tratado com benevolência. A
doença da Sra. I acabou por a recompensar com o poder e o
controle que ela nunca tinha usufruído.
VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001
Sra. J (84 anos)
Conhecemos a Sra. J por via de um encaminhamento interno do
hospital feito pela equipa médica. A Sra. J foi internada após terse recusado a comer durante duas semanas. Queixou-se de náuseas
e de um sabor metálico na boca, factores que a levaram a evitar
alimentar-se. Os extensivos exames levados a cabo não conseguiram
revelar nenhuma causa física. O exame do estado mental revelou
uma mulher num estado caquéctico (29,8 Kg = 1,48m), que negava
sintomas de depressão (EDG = 11) e com um peso exíguo. Na
realidade, a Sra. J considerava que ainda estava excessivamente
gorda e que precisava de perder mais peso: o seu rosto cavado
estava ainda demasiado rechonchudo e o seu estômago flácido,
demasiado saliente. Encontrava-se animada e despreocupada. Não
estava afectada cognitivamente (MMSE = 27/30). A tomografia
computorizada cerebral revelou uma pequena atrofia cortical
generalizada, compatível com a idade. A avaliação das suas rotinas
diárias revelou que não conseguia viver bem sozinha no seu
apartamento, pois cansava-se muito rapidamente e necessitava de
fazer longas pausas durante as tarefas diárias. Continuava a comer
refeições muito ligeiras na enfermaria do hospital. Foi transferida
para um lar onde se integrou perfeitamente e permaneceu sem
distúrbios comportamentais, manifestando-se, simultaneamente,
melancólica. Continuou a comer muito pouco, mas o seu peso
estabilizou nos 32 Kg. A Sra. J sofre de anorexia desde os 18 anos,
na sequência do falecimento da sua mãe. Apesar de ter feito uma
completa recuperação desse episódio, desenvolveu fases posteriores
de anorexia em reacção a todos os acontecimentos de vida ou
desilusões importantes incluindo a casamento da sua filha, o
falecimento do seu marido 14 anos antes e um assalto a sua casa.
A Sra. J apresentou um baixo peso corporal durante os últimos quatro
anos, mas o que acabou por merecer a atenção dos serviços médicos
foi a sua idade avançada e a sua crescente incapacidade de viver
sozinha em segurança. A Sra. J acabou por ir morar para um lar.
Sra. K (75anos)
A Sra. K foi encaminhada para os nossos serviços após ter-se
mudado de uma cidade no norte de Inglaterra. Nunca se integrou.
Foi persuadida pelo seu marido a mudar-se para sul, mas rapidamente
se arrependeu. A sua aparência inicial era a de uma mulher ansiosa,
deprimida e excessivamente magra: 33 Kg, estatura = 1,55m.
Provavelmente a Sra. K já se alimentava deficientemente há nove
meses; preocupava-se extremamente com a alimentação. Comia
apenas fruta fresca e vegetais. Recusava qualquer alimento contendo
gorduras ou proteínas, mas aceitava um pequeno pedaço de
Revisões
requeijão. Abusava de laxantes e passava longos períodos de tempo
no quarto de banho, após as refeições. O seu internamento
hospitalar conseguiu curar a sua depressão, embora continuasse
a preocupar-se com a alimentação, com o seu peso e com as
calorias que ingeria. A discórdia conjugal chegou ao nosso
conhecimento durante o período em que esteve internada. A Sra.
K casou tarde - aos 48 anos - e o seu casamento sempre foi um
casamento oficial. A Sra. K era uma arquitecta bem sucedida
profissionalmente. O seu marido era sócio da mesma empresa,
mas o sucesso profissional da sua esposa provocou atritos no casal.
Pouca era a comunicação entre os dois. Desenvolveram muito
pouca intimidade. O seu marido suspendeu o seu tratamento
levando-a para casa antes da altura aconselhável e acordada entre
ela e o seu médico. O seu estado mental sofreu flutuações ao longo
dos anos. Foi internada três vezes em seis anos. Em regra, o seu humor
melhorava rapidamente com o tratamento mas não se mantinha
durante muito tempo. A caquexia e a discórdia familiar persistiram
como traços permanentes. Tanto a doente como o seu marido
ofereceram resistência à intervenção de profissionais de saúde
psiquiátrica e de psicólogos clínicos ou quando aceite, foi suspendida.
Esta situação precária pareceu o único modus vivendi que o serviço
de psiquiatria geriátrica conseguiu estabelecer com este casal.
emagrecimento e anorexia. Não mostrou, inicialmente, vontade
de cooperar na entrevista mas tornou-se mais aberto durante as
semanas seguintes. Revelou ser um homem inteligente, culto,
pronto, senão desejoso de falar sobre a sua família, a sua música
e a sua casa. Sentia que tinha sido privado dos seus direitos pelo
comportamento do seu sobrinho mas reconhecia, simultaneamente,
que as suas competências domésticas eram tão fracas que nunca
conseguiria viver sozinho. Chegou até a afirmar que se tivesse
ficado em Edimburgo sozinho, já teria falecido ou internado numa
instituição. Considerava-se gordo, na realidade obeso. Estava
obcecado com a quantidade de calorias que estava a ingerir: estar
no hospital era muito perturbante pois não sabia de que forma a
sua comida tinha sido preparada. Contudo, ele apenas tinha bebido
água, recusando quaisquer biscoitos, bolos ou sobremesas. Este caso
exigiu um longo e complexo estudo, pois o seu sobrinho melindrouse com o envolvimento da equipa do serviço de psiquiatria geriátrica.
Contudo, a devido tempo, foi encontrada uma solução satisfatória,
segundo a qual o Sr. L foi alojado num anexo construído para ele,
sob os cuidados de uma profissional de apoio domiciliário interna.
Encontra-se bem e o seu peso estabilizou nos 57 Kg.
Sr. L (67 anos)
Descrevemos seis doentes com mais de 65 anos que sofrem de
anorexia nervosa.Vários autores descreveram doentes idosos que
sofrem de AN, encorajando mais narrativas de casos (Gower e
Crips, 1990; Hall e Driscoll, 1993; Hsu e Zimmer, 1988; Kellett et
al., 1976; Launer, Riemann et al., 1993). As características clínicas
de doentes idosos que sofrem de AN são semelhantes em todas
as faixas etárias (Joughin et al., 1991). Os nossos seis doentes
apresentaram resistência em comer com vista a manterem-se com
um baixo peso corporal. Contudo, ao contrário dos seus congéneres
mais jovens, os sintomas que apresentam não se centram no
desaproveitamento de comida ou na intensificação da actividade
física. Este facto pode dever-se à sua educação e atitudes em relação
ao desperdício e às suas capacidades físicas limitadas resultantes
da sua idade. Dally e Gomez referiram as mesmas características
num sub-grupo de doentes que sofriam de AN, pelo que não se
deve declinar o diagnóstico na faixa etária mais idosa. Por outro
lado, os nossos doentes, quer tenham desenvolvido AN na sua
juventude ou nos últimos anos da sua vida, demonstraram claramente
um padrão de fobia que reflectiu um desejo de (re) estabelecer
o controle sobre as suas vidas. A AN deu-lhes esse controle,
restituindo-lhes o seu poder. Esta alteração no formato psicológico
da AN na terceira idade reflecte falta de conhecimento da história
natural da perturbação. Na realidade, estudos de acompanhamento
de longo prazo realizados com doentes que sofrem de AN não
O Sr. L mudou-se da Escócia, onde tinha vivido como homem
celibatário e professor de música toda a sua vida, para a área de
domicílio dos nossos serviços. Um homem tímido, socialmente
isolado, passou toda a sua vida em casa de sua mãe e após a sua
morte, sob os cuidados de uma série de empregadas domésticas.
Quando a última faleceu (cuidou dele durante 17 anos), o seu
único parente próximo, um sobrinho, pensou que era seu dever
cuidar do “velho tio” e decidiu levá-lo para sua casa. Tomou essa
decisão sem sequer ter consultado o seu tio sobre essa questão.
O Sr. L foi internado pouco tempo depois. Desde a sua chegada,
recusou, provavelmente, toda a comida que lhe foi oferecida,
mantendo-se refém dentro do seu quarto, quase não falando com
ninguém. Como quase em todos os casos idênticos, deu entrada
no hospital em maca, pesando 44,8 Kg (estatura = 1,67m). Mas 3
meses de extensivos exames médicos não conseguiram identificar
causas orgânicas do seu emagrecimento e recusa em comer. Não
foi identificada depressão clínica, mas foi, por fim, encaminhado
para o nossos serviços por um médico bastante perplexo que
reparou que a carta de encaminhamento do Sr. L não registava o
aumento de uma grama em três meses de intensivos esforços.
O seu exame do estado mental revelou que qualquer distúrbio do
domínio afectivo era modesto e insuficiente para explicar o seu
Discussão
VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001
31
Revisões
32
abrangeram doentes idosos (Crisp, 1965; Eckhert et al., 1995; Hsu
et al., 1992).Três dos nossos doentes sofreram de AN quando mais
jovens mas desistiram do acompanhamento. As alterações físicas
e psicológicas associadas ao envelhecimento normal espelham as
da adolescência, podendo provocar um reaparecimento dos sintomas
de anorexia nos doentes que possuem história clínica da perturbação,
num período de conflito psicológico.Todos os nossos seis doentes
descreveram agentes psicológicos de stress precipitadores: em
quatro casos o conflito conjugal foi o problema-chave , enquanto
que para os outros a aposentação, o luto, a mudança de residência
e o lidar com a crescente debilidade física podiam ser identificados
claramente como precipitadores importantes.
Apesar da idade e da duração da doença serem classicamente
descritos como sinais de um mau prognóstico, o crescente número
de relatos de AN nos idosos pode representar um grupo de
doentes mais jovens cujos sintomas persistiram até à velhice.
Devemos assinalar que quatro dos nossos casos foram encaminhados
para os nossos serviços por clínicos gerais, após a realização de
intensivos exames médicos. Uma maior consciencialização do
diagnóstico de AN nos mais idosos, uma documentação mais centrada
na personalidade pré-mórbida dos doentes e suas atitudes constantes
ao longo da vida em relação à comida podem evitar a ansiedade no
médico e a realização de exames infrutíferos, bem como longos
internamentos hospitalares. Todos os nossos doentes mantiveram
um peso baixo durante muitos anos, antes e após a intervenção
médica e nenhum deles faleceu prematuramente devido aos sintomas.
A coexistência de outras perturbações físicas e mentais não devem
obstar ao diagnóstico de AN. Nos doentes mais jovens a coexistência
de depressão é completamente reconhecida. Dois dos nossos doentes
apresentaram perturbação depressiva mas os sintomas de anorexia
persistiram após o seu tratamento. Este facto, foi, igualmente, descrito
por outros autores (Hsu e Zimmer, 1998; Rammell e Brown, 1988).
Os homens encontram-se em maior risco se não forem
correctamente diagnosticados como sofrendo de AN na velhice
mesmo que, como é o nosso caso, sejam preenchidos todos os
critérios correctos. Parece que o preconceito que evita a aceitação
de AN em mulheres idosas é maior quando se examina um homem.
Contudo, os casos narrados por Nagaratnem e Ghougassan (1988)
e Riemann et al., (1993), bem como pelos investigadores deste
estudo mostram que os acontecimentos de vida podem precipitar
a p e r t u r b a ç ã o nu m i n d i v í d u o c o m p re d i s p o s i ç ã o.
Os doentes idosos sofrem, frequentemente, de patologias físicas,
sendo submetidos a exames médicos que não são facultados aos
mais jovens. As alterações observadas no cérebro por tomografia
computorizada e MRI estão bem documentadas na AN, bem como
o inverso, na normalização do peso (Artmann et al., 1985; Krieg
et al., 1988). Apenas um dos nossos doentes apresentou uma
VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001
tomografia computorizada que revelava atrofia cerebral, consistente
com a idade. Pensa-se que a longa duração da doença produz
danos cerebrais irreversíveis. Contudo, numa análise recente a uma
série de oito doentes que sofrem de AN, o mais velho, com 41
anos, não confirmou esta hipótese. Esperamos que um maior
interesse no grupo de doentes mais idosos que sofrem de AN
conduza a um interesse maior nesta área, especialmente nos
doentes que apresentam história médica de AN na sua juventude
e os que se apresentam pela primeira vez aos clínicos gerais.
Conclusões
A AN é ainda considerada por muitos como sendo uma prerrogativa
de pessoas jovens e apenas de jovens mulheres. Esta abordagem é
excessivamente restrita. Os nossos seis casos ilustram claramente a
frequência relativa de AN na terceira idade. Estes casos salientam,
também, o problema da perda de poder nos idosos.A quatro dos nossos
doentes, foram retirados o poder de decisão e a responsabilidade das
suas vidas, às vezes com tal desrespeito pela liberdade pessoal que até
constitui um abuso. Neste sentido, os idosos que desenvolveram AN
não são tão diferentes dos doentes mais jovens. Sugerimos que a idade
não deixe de aparecer como um critério de diagnóstico para a AN.
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VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001
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Anorexia nervosa na terceira idade