carlos gentile de mello Saúde em Debate v.34 n.85 abr./jun. 2010 Cebes ISSN 0103-1104 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Saúde em Debate DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2009-2011) A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2009-2011) Presidente: Roberto Passos Nogueira Primeiro Vice-Presidente: Luiz Antonio Neves Diretora Administrativa: Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR Paulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ) Diretor de Política Editorial:Paulo Duarte de Carvalho Amarante Diretores Executivos: Ana Maria Costa Guilherme Costa Delgado Hugo Fernandes Junior Lígia Giovanella Nelson Rodrigues dos Santos Diretores Ad-hoc: Alcides Miranda Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL Ary Carvalho de Miranda Assis Mafort Ouverney Lígia Bahia CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL Agleildes Aricheles Leal de Queiroz CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL Alicia Stolkiner – UBA (Argentina) Angel Martinez Hernaez – Universidad Rovira i Virgili (Espanha) Carlos Botazzo – USP (SP/Brasil) Catalina Eibenschutz – UAM-X (México) Cornelis Johannes Van Stralen – UFMG (MG/Brasil) Diana Mauri – Universidade de Milão (Itália) Eduardo Maia Freese de Carvalho – CPqAM/FIOCRUZ (PE/Brasil) Giovanni Berlinguer – Universitá La Sapienza (Itália) Hugo Spinelli – UNLA (Argentina) José Carlos Braga – UNICAMP (SP/Brasil) José da Rocha Carvalheiro – FIOCRUZ (RJ/ Brasil) Luiz Augusto Facchini – UFPel (RS/Brasil) Maria Salete Bessa Jorge – UECE (CE/Brasil) Paulo Marchiori Buss – FIOCRUZ (RJ/Brasil) Rubens de Camargo Ferreira Adorno – USP (SP/Brasil) Sônia Maria Fleury Teixeira – FGV (RJ/Brasil) Sulamis Dain – UERJ (RJ/Brasil) REVISÃO DE TEXTO, CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA PROOFREADING COVER, LAYOUT AND DESKTOP PUBLISHING Zeppelini Editorial Zeppelini Editorial IMPRESSÃO E ACABAMENTO PRINT AND FINISH Corbã Editora Artes Gráficas Corbã Editora Artes Gráficas TIRAGEM NUMBER OF COPIES 2.000 exemplares 2,000 copies Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em Julho de 2010 This publication was printed in Rio de Janeiro on July, 2010 Capa em papel cartão supremo 250 g/m2 Cover in premium card 250 g/m2 Miolo em papel kromma silk 90 g/m2 Core in kromma silk 90 g/m2 Alcides Silva de Miranda Alberto Durán González Editora Executiva / Executive Editor Marília Fernanda de Souza Correia Eleonor Minho Conill Ana Ester Melo Moreira Eymard Mourão Vasconcelos Indexação / INDEXATION Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - LILACS História da Saúde Pública na América Latina e Caribe - HISA Sistema Regional de Informaciónen Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - LATINDEX Sumários de Revistas Brasileiras - SUMÁRIOS Fabíola Aguiar Nunes Fernando Henrique de Albuquerque Maia Julia Barban Morelli Jairnilson Silva Paim Júlio Strubing Müller Neto Mário Scheffer Naomar de Almeida Filho Silvio Fernandes da Silva Volnei Garrafa SECRETARIA / SECRETARIES Secretaria Geral: Mariana Faria Teixeira Pesquisadora: Suelen Carlos de Oliveira Estagiária: Debora Nascimento ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140, 3882-9141 Fax.: (21) 2260-3782 Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] [email protected] Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./ nov./dez.1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2010. Apoio A Revista Saúde em Debate é associada à Associação Brasileira de Editores Científicos Ministério da Saúde v. 34; n. 85; 27,5 cm Trimestral ISSN 0103-1104 1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES CDD 362.1 Rio de Janeiro ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ISSN 0103-1104 v.34 n.85 abr./jun. 2010 Editorial / EDITORIAL Apresentação Debate / / presentation Debate 187 Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública voltada para a primeira infância Social determinants of health and the enabling emotional environment: concepts and a strategic framework for a public policy focused on early childhood José Gomes Temporão, Liliane Mendes Penello Debatedores / Discussants 201 Estratégia em defesa da criança saudável: cogestão e não-violência como postura existencial e política Strategy in favor of healthy children: co-management and nonviolence as existential and political attitude Gastão Wagner de Sousa Campos 204 Um grande avanço A big step forward Osmar Terra RÉPLICA / Reply 208 Vinculo como suporte ao ambiente facilitador à vida: uma questão de saúde pública Bond as a support for favorable environment to life: a matter of public health José Gomes Temporão, Liliane Mendes Penello Artigos originais / Original articles Pesquisa 211 Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família Specialized orientation: the representation of the Family Health Team Annaiza Freitas Lopes, Renata Amanda Azevedo de Brito, Fátima Luna Pinheiro Landim, Mônica de Oliveira Nunes, Patrícia Moreira Collares Pesquisa 219 Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade In the edge of life, getting around the problems: strategies of well-being of families at risk and vulnerability situation Maria Jacqueline Abrantes Gadelha, Raimunda Medeiros Germano Pesquisa 227 Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil Profile of the expansion of Community Agents Program in Brazil José Roberto de Magalhães Bastos, Ricardo Pianta Rodrigues da Silva, Angela Xavier, Sabrina Pulzatto Merlini, Taís Ferreira Pimentel Pesquisa 236 Doença crônica: comparando experiências familiares Chronic disease: comparing familial experiences Noeli Marchioro Liston Andrade Ferreira, Giselle Dupas, Carmem Lúcia Alves Filizola, Sofia Cristina Iost Pavarini Opinião 248 Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos Potentialities and challenges of the family health strategy consolidation in major urban centers of Brazil Ligia Giovanella, Maria Helena Magalhães de Mendonça, Sarah Escorel, Patty Fidelis de Almeida, Márcia Cristina Rodrigues Fausto, Carla Lourenço Tavares de Andrade, Maria Inês Carsalade Martins, Mônica de Castro Maia Senna, Maristela Chitto Sisson Ensaio 265 Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil Discourse analysis of medicine advertisements in Brazil Viviane Ramalho Ensaio 274 Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade Medicalization and consumption: a look over health in contemporaneity Jurema Barros Dantas, Ariane Patrícia Ewald Pesquisa 288 Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda The exceptional drug policy in Espírito Santo: the matter of access by juridical approach Maria José Sartório, Ronaldo Bordin Ensaio 299 Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde Democratic prospects and their conditions of possibility: intersections between political participation in SUS and health management Francini Lube Guizardi, Felipe de Oliveira Lopes Cavalcanti Pesquisa 310 Gênese de um conselho local de saúde Genesis of a local health council Renata Mota Rodrigues Bitu Sousa, Carlos Botazzo Pesquisa 321 Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social Ampére city’s Health Council: evaluating social control Luciane Maria Pedot Belini, Samuel Jorge Moysés Opinião 328 Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina Which social protection for which democracy?Dilemmas of social inclusion in Latin America Sonia Fleury Pesquisa 349 Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico Evaluation of the quality of life of elderly chronic renal disease patients undergoing hemodialytic treatment Fabiana de Souza Orlandi Pesquisa 356 Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos Nursing and spirituality in terminal patients: perception of the religious ministers Joseane de Souza Alves Revisão 365 Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica A review on the express understanding of reality in mental health care in the second critical social theory Silvia Maria de Oliveira Mendes Pesquisa 384 Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde Education of Dentistry and the National Health System Gustavo Nicolini Fernandes, Newton Cesar Balzan, Maria Alice Amorim Garcia MEMÓRIA / Memory 396 Especial “In memoriam” Carlos Gentile de Mello Resenha / Critical Review 397 Passos, Izabel C. Friche. Reforma Psiquiátrica – as experiências francesa e italiana. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009 Marina Bittencourt EDITORIAL Política social e eleições O ano eleitoral de 2010 começará oficialmente no segundo semestre, mais precisamente depois da Copa do Mundo. Da parte das candi- daturas presidenciais pré-lançadas até o presente, pouco se ouve de maneira objetiva e clara sobre os rumos e proposições a respeito da política social. O assunto também não é cobrado pela grande mídia e aparentemente não seria objeto de grandes alterações nas agendas dos dois concorrentes com maiores chances eleitorais. Mas esse consenso por aparência e omissão das questões-chave da política social é enganoso. Há indícios muito fortes de que o tema dos direitos sociais, com suas inevitáveis implicações fiscais, esteja sendo evitado agora para somente aparecer claramente em 2011. Viria no bojo de uma proposta de mudanças fortes na Seguridade Social e no Sistema Tributário, de forma a restringir ainda mais o núcleo da política social fundamentada em direitos sociais. E nos primeiros seis meses de um novo mandato presidencial, o Congresso costuma aprovar em geral tudo que venha do Executivo, recém-legitimado pelas urnas. É preocupante observar o tratamento que vem sendo dado ao tema dos direitos sociais. Da parte da candidatura oficial, houve declarações explícitas de simpatia com o tema. Mas, por outro lado, várias manifestações e entrevistas do atual Presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), tido como provável futuro coordenador de política econômica da candidata ao governo, já emitem sinalizações de duas prioridades – uma Reforma Previdenciária de teor restritivo a alguns direitos constitucionais (a preocupação sub-reptícia é quanto ao vínculo do salário mínimo a benefícios sociais) e uma Reforma Tributária em moldes parecidos com o projeto oficial de 2008 do Governo Lula. Nenhum sinal por aqui de redistribuição de renda ou igualdade social como rumo à política social e à reforma tributária. Por outro lado, da parte do principal candidato de oposição, leem-se declarações enfáticas de apoio ao Sistema Único de Saúde (SUS) e, agora, até mesmo à reforma agrária. Mas quando consultamos várias manifestações dos seus áulicos e confidentes em assuntos fiscais ou ainda da mídia que lhe é Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 175-180, abr./jun. 2010 175 176 EDITORIAL generosamente favorável, há uma espécie de senha-chave que assim se expressa: “reduzir gastos correntes do orçamento a qualquer custo”. O observador desavisado perguntará: que tem isto a ver com política social? Ora, na atual configuração dos direitos sociais já regulamentados, os “Benefícios Monetários” das políticas sociais estão essencialmente vinculados a direitos e correspondem a 15,5% do PIB nas “Contas Nacionais” de 2006 (as mais recentes publicadas em detalhe); e os “Benefícios em Espécie” – serviços públicos gratuitos oferecidos aos cidadãos – representam 8,6% neste mesmo ano. Esse conjunto de “Benefícios Monetários” e serviços públicos, ou “Benefícios em Espécie”, na linguagem das Contas Nacionais, já somam cerca de ¼ do Produto Interno Bruto (PIB). Os recursos que financiam esses benefícios são quase integralmente categorizados nos orçamentos públicos como gastos correntes. Daí, havendo restrições a direitos, desvinculações constitucionais, congelamentos ou outros truques para “restringir os gastos correntes”, fatalmente seriam afetados os benefícios sociais e os salários do funcionalismo. Para manter o estatuto da política social e viabilizar a melhoria da qualidade na prestação dos serviços universais (SUS e educação básica, principalmente) ou incluir parcelas expressivas da população ainda não incorporadas aos sistemas públicos – Previdência e Assistência, Política Agrária, Habitação etc. – não há como fazê-lo “reduzindo gastos correntes”. Nem mesmo congelando esses gastos em algum ano isso é possível, como espertamente foi proposto no Projeto de Reforma Tributária do governo Lula. Há fatores demográficos, epidemiológicos e de riscos sociais associados a uma geração de direitos sociais (seguridade social), de pretensão universal, que não estão congelados, mas, ao contrário, tendem a crescer. Há também uma geração de novos riscos sociais e ambientais associados às mudanças climáticas que fatalmente alimentarão demandas futuras por novos serviços públicos de proteção social. Essas demandas tendem a crescer e precisariam contar com recursos, simultaneamente associados ao crescimento da economia e melhoria. Universalizar direitos sociais numa sociedade altamente desigual como a nossa requer compreensão clara de que isso é política social redistributiva. Integra um modelo de sociedade e de economia com pretensão a um estilo de desenvolvimento fundado no paradigma da igualdade. Mas isso não se faz sem uma reforma tributária redistributiva e também requer política social organizada e planejada com horizonte mínimo de uma década. Isso tudo não está nas agendas políticas das candidaturas principais, nem das mídias, nem do “consenso da opinião pública”. Precisa ser explicitado e Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 175-180, abr./jun. 2010 EDITORIAL discutido na campanha eleitoral e fora dela, para que não tenhamos a ingrata surpresa de ver “reformas” implementadas na política social e tributária em 2011 que se ponham na contramão da construção dos direitos sociais. O processo eleitoral e a formação de opinião pública, sob intenso controle dos partidos e dos meios de comunicação de massa, não são bons aliados para esclarecer questões essenciais sobre política social. Há que se ter criatividade e ousadia para colocar essas questões nas agendas políticas do Estado, dentro e fora das arenas convencionais da política. Diretoria Nacional Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 175-180, abr./jun. 2010 177 178 EDITORIAL Social policy and elections T he 2010 electoral year will officially begin in the second half of the year, precisely after the World Cup. Very little has objectively and clearly been heard on the directions and propositions regarding social policy from the pre-announced presidential candidates till the moment. The subject is not requested by the press either, and apparently would not be subject of great alterations in the agenda of the two candidates with more electoral advantage. But this consensus on appearance and omission of social policy’s keymatters is deceiving. There is strong evidence that the social rights theme, together with its inevitable fiscal implications, is being avoided now to clearly arise only in 2011. It would be intrinsic to a proposal of strong changes in the Social Security and in the Tributary System as to restrict even more the core of the social policy which is founded on social rights. And during the first six months of a new presidential mandate, the Congress usually approves everything that comes from the Executive, recently legitimated by the electors. It is disturbing to observe the treatment that has been given to the theme of social rights. There have been explicit declarations of sympathy with the theme from the official candidacies. On the other hand, many manifestations and interviews from the current president of the Brazilian Development Bank (BNDES, acronym in Portuguese), who is considered to be a likely future coordinator of economic policy of the government candidate, already show two priorities – a reform of the social security with a purport restrictive to some constitutional rights (the hidden preoccupation concerns the bond of minimum wage with social benefits); and a tributary reform which looks like the 2008 official government project of president Lula mandate. There is no sign of income redistribution or social equality as a road to social policy and tributary reform. On the other hand, emphatic statements supporting the National Health System (SUS, acronym in Portuguese) and even the agrarian reform Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 175-180, abr./jun. 2010 EDITORIAL have been read from the main opposition candidate. But when we inquire many manifestations on fiscal issues of their representatives and confidents, or even the press which is generously favorable to such candidate, there is a kind of password, which is expressed as follows: “to reduce the current expense budget by any means”. The unadvised observer may ask: what does it have to do with social policy? Well, in the current configuration of the regularized social rights, the “Monetary Benefits” of social policies are essentially bonded to rights and account for 15.5% of the gross domestic product in the “National Accounts” of 2006 (the most recent ones being published in details); and the “Cash Benefit” – free public services offered to citizens – account for 8.6% in the same year. This assemblage of “Monetary Benefits” and public services, or “Cash Benefits” in the National Accounts’ language, currently sums ¼ of the gross domestic product (GDP). The resources that finance these benefits are almost integrally categorized in the public budget as current expenditures. In this manner, as there would be restrictions to rights, constitutional dissociations, freezings and other artifices to “restrict the current expenditures”, the social benefits and functionalism salaries would be severely affected as a consequence. To maintain the social policy statute and enable the improvement of the quality of universal services (mainly SUS and basic education) or include expressive portions of the population that are not included in the public systems yet – social security and assistance, agrarian policy, housing and others – is not possible by “reducing current expenditures”. Not even freezing these expenses in any year makes it possible, as smartly proposed in the Tributary Reform Project of Lula government. There are demographic, epidemiological and social-risk factors which are associated with the creation of universally-intended social rights (social security) and that are not frozen, but rather tend to grow. There is also the generation of new social and environmental risks associated with climatic changes that will fatally promote future demands for new social protection public services. These demands tend to grow and need to rely on resources simultaneously associated with the growing and improvement of the economy. To universalize social rights in a society highly unequal like ours requires a clear comprehension of the fact that this is a redistributive social policy. It comprises a model of society and economy that seek a style of development based on the paradigm of equality. But this can not be done without Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 175-180, abr./jun. 2010 179 180 EDITORIAL a redistributive and tributary reform, and requires a social policy organized and planned aiming at no less than one decade. These issues are not present in the politics agenda of the main candidatures, nor of the press, nor of the “public opinion consensus”. It should be explicit and discussed in and out the electoral campaign; in this manner, people will not have the unappreciative surprise of watching “reforms” implemented in social and tributary policies that oppose the building of social rights in 2011. The electoral process and the formation of the public opinion, under intense control of the parties and means of mass communication, are not good allies to clear up essential matters on social politics. There has to be creativity and audacity to put these issues on the agenda of State policies, in and out the conventional political field. The national directorate Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 175-180, abr./jun. 2010 APRESENTAÇÃO E ste é o último número da Saúde em Debate vinculado ao projeto “Reforma Sanitária em Debate”, responsável pela edição dos últimos números da publicação. Nesse período, a revista passou por um processo intenso de reformulações. Houve transformações na sua identidade visual, em seu conteúdo e em sua periodicidade. Voltou a ser editada regularmente, foi indexada em outras bases de dados e, a partir deste ano, mudou a sua periodicidade de quadrimestral para trimestral. A capa é dedicada a Carlos Gentile de Mello, autor do primeiro livro editado pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Saúde e Assistência Médica no Brasil, em 1977. Neste número, reproduzimos o texto, em sua homenagem, publicado originalmente na Saúde em Debate no. 17, de 1989, na ocasião de seu falecimento. Iniciamos este número com o artigo de debate de autoria de José Gomes Temporão e Liliane Mendes Penello, no qual os autores propõem uma política pública de saúde para a primeira infância, fornecendo as bases conceituais e políticas da “Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis”, recentemente lançada pelo Ministério da Saúde. Na sequência, o artigo é debatido por Gastão Wagner de Sousa Campos, que considera a iniciativa ousada e inovadora, e Osmar Terra, que fala do avanço que o texto traz para a compreensão sobre a importância do chamado “ambiente emocional facilitador” para o desenvolvimento inicial, considerando-o no contexto da determinação social da saúde. Os dois textos foram replicados pelos autores. O cuidado à família é um dos temas mais importantes no campo da saúde, o que é possível constatar pela quantidade e qualidade dos artigos submetidos à revista e pelo conjunto de textos tratando dos temas aqui publicados. Annaiza Freitas Lopes et al. apresentam os resultados de uma pesquisa na qual discutem a representação social da Equipe de Saúde da Família em Fortaleza, a partir do matriciamento promovido pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). A pesquisa de Maria Jacqueline Abrantes Gadelha e Raimunda Medeiros Germano analisa as estratégias utilizadas pelas famílias em Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 181-186, abr./jun. 2010 181 182 APRESENTAÇÃO situação de risco e vulnerabilidade no âmbito da Estratégia Saúde da Família. José Roberto Bastos et al. apresentam a pesquisa que realizaram sobre o desenvolvimento do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no período de 1998 a 2007, demonstrando o seu grande crescimento em todas as regiões do país. Outra pesquisa muito importante, de Noeli M.L.A. Ferreira et al., faz uma reflexão sobre a experiência de famílias com um membro portador de doença crônica. O bloco é complementado pelo artigo de opinião de Ligia Giovanella et al. sobre os fatores que condicionam a efetiva implementação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos. A preocupação com os vários aspectos relacionados à política de medicamentos é abordada nos textos de Viviane Ramalho, um ensaio sobre os sentidos “potencialmente ideológicos” na propaganda de medicamentos no Brasil, e de Jurema B. Dantas e Ariane P. Ewald, que analisam a relação entre o consumo e o fenômeno da medicalização e a forma como tal relação reposiciona a noção de saúde. O tema dos medicamentos neste número é encerrado com a pesquisa de Maria José Sartório e Ronaldo Bordin que, a partir da análise das demandas judiciais no Espírito Santo, revelam aspectos importantíssimos sobre a questão da judicialização no país. Outro tema que sempre está na agenda do Sistema Único de Saúde (SUS) é o da participação e controle social. O ensaio de Francini L. Guizardi e Felipe O.L. Cavalcanti propõe que pensemos a participação política como uma atividade de luta e construção de saúde em si mesma. Renata M. R. B. Sousa e Carlos Botazzo investigam o modo como se articula o discurso de participação da comunidade na constituição de um conselho da unidade de saúde da família. A pesquisa de Luciane M.P. Belini e Samuel Jorge Moyses nos leva a refletir sobre alguns aspectos relacionados aos Conselhos de Saúde que necessitam urgentemente serem transformados, sob risco de perderem seu caráter de controle social do SUS. Sonia Fleury, em “Que proteção social para qual democracia: dilemas da inclusão social na América Latina”, discute “os ônus que os sanitaristas de esquerda assumiram ao encarregar-se de implantar reformas dos sistemas de saúde na América Latina em contextos de transição à democracia marcados pela ausência de hegemonia e pelos acordos que restringem as possibilidades de implementar as políticas universais projetadas pelo movimento sanitário.” Na parte final da revista, estão publicados artigos sobre temas variados, tais como a pesquisa de Fabiana de Souza Orlandi sobre avaliação de qualidade de vida de idosos renais crônicos em hemodiálise, a pesquisa de Joseane Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 181-186, abr./jun. 2010 APRESENTAÇÃO de Souza Alves sobre o cuidado da enfermagem em relação às necessidades espirituais do paciente terminal a partir da percepção de ministros religiosos, o artigo de revisão de Silvia M.O. Mendes sobre a aplicação da teoria social crítica no campo da saúde mental, e a pesquisa de Gustavo N. Fernandes et al. sobre a formação do cirurgião-dentista visando à sua atuação no SUS. A resenha deste número, elaborada por Marina Bittencourt, é sobre o livro Reforma Psiquiátrica – as experiências francesa e italiana, de autoria de Izabel F. Passos. Boa leitura! Paulo Amarante Editor Científico Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 181-186, abr./jun. 2010 183 184 PRESENTATION T his is the last issue of the journal Saúde em Debate which is bound to the project “Sanitary Reform in Discussion”, responsible for the edition of the last issues. In this period, the journal went through an intense process of reformulations. There were some changes in its visual identity, in its content and periodicity. It is being regularly edited again, was indexed in other databases and, from this year on, has a new periodicity: it is now quarterly. The cover is dedicated to Carlos Gentile de Mello, the author of the first book edited by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Saúde e as- sistência médica no Brasil, in 1977. In this issue, a text is reproduced in honor to the author, which was originally published in Saúde em Debate issue 17, 1989, on the occasion of his passing. The present issue is initiated with the debate article by José Gomes Temporão and Liliane Mendes Penello, who propose a public health policy for the first infancy, providing the conceptual and political bases of the campaign “Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis”, recently launched by the Ministry of Health. Following, the article is debated by Gastão Wagner de Sousa Campos, who considers it an audacious and innovative initiative, and by Osmar Terra, who speaks of the advance that the text provides for the understanding of the importance of the “enabling emotional environment” in the early development, considering it in the context of social determination of health. Both texts were replied by the authors. The family care is one of the most important themes of the health field, which may be verified by the quantity and quality of the articles submitted for the journal and by the assemblage of papers dealing with the themes generally published in the journal. Annaiza Freitas Lopes et al. present the results of a research in which the social representation of the family health team of Fortaleza is discussed based on the matrix-based strategies promoted by the Centers for Psychosocial Care (Caps, acronym in Portuguese). The article by Maria Jacqueline Abrantes Gadelha and Raimunda Medeiros Germano analyzes the strategies used by the families in risked and vulnerable situations Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 181-186, abr./jun. 2010 PRESENTATION in the scope of Health Family Strategy. José Roberto Bastos et al. present a paper on the development of the Community Health Agents Program in the period comprising 1998 to 2007, demonstrating its growth in all regions of the country. Another important article, by Noeli M.L.A Ferreira et al., brings a reflection on the experience of families of chronic disease patients. This thematic text group is complemented by the opinion article by Ligia Giovanella et al., who discuss the factors that condition the effective implementation of the Family Health Strategy in urban centers. The concern about the many factors related to the medication policy is discussed in the articles by Viviane Ramalho, an essay on the “potentially ideological” meaning of the Brazilian medication publicity, and by Jurema B. Dantas and Ariane P. Ewald, who analyze the relation between the consumption and the phenomenon of medicalization, as well as how such relation repositions the notion of health. The theme of medication in this issue is closed with the research by Maria José Sartório and Ronaldo Bordin which, from an analysis of the judicial demands in Espírito Santo, Brazil, reveals important aspects about the matter of judicialization in the country. Other themes which are always in the agenda of the National Health System (SUS, acronym in Portuguese) are the social participation and social control. The essay by Francini L. Guizardi and Felipe O.L. Cavalcanti proposes that we make a reflection on political participation as an activity of combat and construction of health itself. Renata M.R.B. Sousa and Carlos Botazzo investigate how the discourse of community participation in the constitution of a council for the Family Health Unit is articulated. The research by Luciane M.P Belini and Samuel Jorge Moyses leads the reader to consider some aspects related to the Health Councils which need urgent transformation, otherwise they may lose their characteristic of SUS social control. In “Which social protection for which democracy? Dilemmas of social inclusion in Latin America”, Sonia Fleury discusses “costs that the left sanitarians assumed with the responsibility to held the reforms of health care systems in Latin America during the processes of transition to democracy, marked by the absence of hegemony and by agreements that restrict the possibilities of implementing universal policies projected by the sanitary reform.” In the final section of this issue, articles on varied themes are published: the paper by Fabiana de Souza Orlandi that approaches the assessment of quality of life of the elderly population with chronic renal disease under hemodyalisis treatment, the article by Joseane de Souza Alves on the nursing Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 181-186, abr./jun. 2010 185 186 PRESENTATION care with regard to the spiritual necessities of patients with terminal illnesses based on the perception of religious ministries, the review article by Silvia M.O. Mendes on the critical social theory put into practice in the mental health field, and the research by Gustavo N. Fernandes et al. on the professional formation of dental surgeons aiming at their performance in SUS. The review of this issue, elaborated by Marina Bittencourt, is about the book Reforma Psiquiátrica – as experiências francesas e italiana, written by Izabel F. Passos. Enjoy your reading! Paulo Amarante Scientific Editor Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 181-186, abr./jun. 2010 DEBATE / DEBATE Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública voltada para a primeira infância Social determinants of health and the enabling emotional environment: concepts and a strategic framework for a public policy focused on early childhood José Gomes Temporão 1 Liliane Mendes Penello 2 Médico; Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Ministro de Estado da Saúde do Brasil. [email protected] 1 Médica; Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/ Fiocruz); Coordenadora do Comitê Técnico Consultivo da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (MS/Fiocruz). [email protected] 2 RESUMO Os autores propõe uma política pública de saúde para a primeira infância, discutindo os Determinantes Sociais da Saúde e o Desenvolvimento Emocional Primitivo e sugerindo que sua inter-relação define padrões pessoais de convívio social e de saúde. Utilizaram o modelo de Dahlgreen e Whitehead e o pensamento de John Bowlby e Donald Winnicott para a resposta ao desafio de assegurar a promoção da saúde e um ambiente saudável à mulher e à criança de zero a seis anos. Configurou-se a ‘Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis – primeiros passos’ para o desenvolvimento nacional, proposta do Ministério da Saúde, de caráter transversal e intersetorial visando à redução das desigualdades, promoção de saúde, cidadania e democracia desde as etapas mais precoces da vida. PALAVRAS-CHAVE: Política de saúde; Determinação social da saúde, Desenvolvimento emocional primitivo; Saúde materno-infantil ABSTRACT The authors proposed a public health policy for early childhood, discussing the social determinants of health, and the early child development and suggesting that their inter-relationship defines personal standards of socialization and health. They used the Dahlgreen and Whitehead model and the ideas of John Bowlby and Donald Winnicott to answer the challenges for ensure the promotion of health and a healthy environment for women and children from zero to six years old. The strategy ‘Healthy little Brazilians - first steps towards national development’ was proposed by the ministry of health, a transversal and intersectorial initiative in order to reduce inequities, promoting health, citizenship and democracy since the earliest stages of life. KEYWORDS: Public policies; Health policies; Social determinants of health; Early child development; Maternal and childhood health policies Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 187 188 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. voltada para a primeira infância • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública I N T R O D U ç ão influenciando muitos outros autores, para o trabalho com um dos temas que queremos aqui discutir, associado à determinação social da saúde, que é o desenvolvimento emocional primitivo e os cuidados com a primeira infân- Estranhos assuntos esses, tão marginais às cha- cia e sua relação com políticas públicas de saúde. madas questões nacionais em que se centra o Com o conceito de ambiente facilitador do cresci- debate político. É que eles fervilham no pré-sal mento e amadurecimento dos seres humanos, sugeriu-se da existência humana, a camada mais submer- que o ambiente inicial da vida de um novo ser coincide sa, talvez a mais rica. (Oliveira, 2010). com o corpo-mente da mãe, incluindo sua própria condição de existência, suas redes de sustentação, suas A concepção ampliada de saúde adotada contem- fantasias e desejos, suas construções imaginárias ou poraneamente considera que, para uma vida rica em reais como ambiente de suporte para o filho. A ideia qualidade, é muito pouco para o homem ser apenas da ‘mãe suficientemente boa’ como aquela capaz de são. Torna-se necessário agregar à ausência de doenças a apresentar intuitivamente ao seu filho aquilo que ele intensidade de experiências de vida e expressões de cria- necessita como provisão rumo ao seu crescimento e tividade que permitam a superação dos fatores geradores amadurecimento, incluindo as possíveis falhas nesse de mal-estar e sofrimento que limitam e desqualificam o caminho, chama atenção para o fato de que a provisão viver. Hoje, estamos convencidos de que a potência ou a ofertada pela mãe biológica pode ser executada por uma capacidade individual para manejar com maior autono- figura substituta através de vínculo amoroso, criativo e mia as questões vivenciais estão vinculadas a experiências não-burocrático. relacionais dos primórdios da vida, quando são definidos padrões pessoais do viver e do conviver. Para o autor, nesta fase de desenvolvimento do lactente, o amor só pode ser efetivamente expresso em Argutos observadores do desenvolvimento emocio- termos de cuidado neste ambiente favorável à con- nal primitivo, John Bowlby e Donald Winnicott, tra- fiabilidade. A mãe suficientemente boa é o ambiente balhando no campo da pediatria, psicanálise e etologia facilitador para a efetivação do processo maturacional em meados do século passado, indicavam a importância da criança pequena, provendo chances à criança de se destas considerações na formação de padrões adaptativos tornar uma pessoa real, em um mundo real, e de crescer à vida, repercutindo desde cedo na liberdade de cada ser de acordo com seu potencial herdado. Em relação ao humano para usufruir a sua própria experiência de vida. amadurecimento, compreende-se como um processo Insistiram, então, na adoção de um conceito ampliado jamais finalizado e sempre ‘adaptativo’ do ponto de vista de saúde que incluísse também os aspectos psicológicos. evolucionário, que tem sido considerado importante Bowlby havia sido convidado para assessorar a Organiza- indicador de saúde que contribui decisivamente para o ção Mundial de Saúde (OMS) na área de saúde mental desenvolvimento social: de crianças sem lar, em 1950, e Winnicott, trabalhara como voluntário atendendo crianças afastadas de seus A base para uma sociedade é a personalidade pais e famílias durante a Segunda Grande Guerra. Essas humana total [...] não é possível que as pessoas experiências marcantes foram incorporadas às suas obras, consigam ir mais além na construção da socie- sustentando valiosas teorias no campo da psicanálise, e dade do que de seu próprio desenvolvimento Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública voltada para a primeira infância pessoal. (Winnicott, 1989, p. 193 ). com participação de todas as Secretarias do MS, o documento-base para desenho da EBBS. É neste sentido que propõe uma compreensão O Brasil possui 14.210.000 crianças na faixa etária bastante peculiar do desenvolvimento da personalida- de zero a quatro anos – o que corresponde a 7,59% de humana total, sua constituição sempre frente a um da população total (Brasil, 2008). De acordo com o ‘outro’ com o qual estabelece vínculos sugerindo uma Censo Escolar de 2007, apenas 17,1% das crianças de configuração em círculos que se amplia e se expande até três anos estão matriculadas em creches, enquanto desde o desejo e o corpo da mãe até a participação social 77,6% das crianças de quatro a seis anos frequentaram mais ampla. pré-escola. Portanto, mais de 80% das crianças meno- Considerando a importância do Desenvolvimento res de três anos estão sendo educadas e cuidadas em Emocional Primitivo na definição e configuração de ambiente doméstico, pelos progenitores (em geral, a padrões de saúde para a vida, um grande esforço para mãe) ou por um cuidador substituto. Por essa razão, atender às recomendações da Comissão Nacional de De- decidimos trabalhar pela maior interação e ampliação terminantes Sociais da Saúde (CNDSS) e da OMS, no das ações de saúde com novas ofertas voltadas para a sentido da produção de ações, estratégias e políticas vol- Primeira Infância, em sintonia com o relatório final tadas para a primeira infância, vem sendo desenvolvida da CNDSS que sugere intervenções que adotem como pelo Ministério da Saúde (MS), desde 2007, a ‘Estratégia referência os princípios e estratégias da ‘promoção da brasileirinhas e brasileirinhos saudáveis, primeiros passos saúde’, estabelecidos numa série de seis Conferências para o desenvolvimento nacional’ (EBBS). Internacionais (Ottawa, Adelaide, Sundsval, Jacarta, A EBBS surgiu com a rica discussão em torno da México e Bancoc), entre 1986 a 2005. Destaca-se a formulação do Programa de Aceleração do Crescimento primeira delas, na qual foi lançada a Carta de Ottawa, na Área da Saúde (PAC/Saúde, 2007) visando a apro- com o objetivo de contribuir para o combate e a supe- fundar e integrar as reformas sanitária e psiquiátrica bra- ração de problemas geradores de iniquidades na área e sileiras articulando-as a um padrão de desenvolvimento desenvolvimento saudável dos cidadãos. O documento nacional comprometido com crescimento, bem-estar e reconhece que paz, educação, moradia, alimentação, equidade no acesso à saúde do povo brasileiro. Dessa renda, ecossistema estável, justiça social e equidade iniciativa, resultou o ‘Mais Saúde’, Plano de Metas do são requisitos fundamentais para a saúde dos povos Ministério da Saúde (Brasil, 2010) constituído em identificando como condições-chave para promover a torno de sete grandes eixos, dentre os quais, a Promoção saúde o estabelecimento de políticas públicas saudáveis, da Saúde. Nesta oportunidade, ficou muito clara nossa a criação de ambientes favoráveis, o fortalecimento das expectativa em revigorar o trabalho a partir da área ações comunitárias, o desenvolvimento de habilidades da saúde por um projeto civilizatório e, dentro dessa pessoais e a reorientação dos serviços de saúde. perspectiva, produzir saúde, cidadania e democracia, Essa iniciativa do Ministério da Saúde vem fortale- tornando-se fundamental considerar a constituição de cer um conjunto de esforços em todo o país para articula- nossos cidadãos, desde as etapas mais precoces da vida. ção, interação e desenvolvimento de ações voltadas para Em decorrência disso, foi produzido no âmbito do a saúde da mulher, especialmente durante a gravidez, e Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas da criança de zero a seis anos, etapa da vida designada em Saúde da Secretaria de Atenção à Saúde do MS, como primeira infância, o que, no Brasil, corresponde Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 189 190 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. voltada para a primeira infância • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública ao momento anterior à entrada obrigatória da criança pequenas e a rede social que os cerca, considerando no ensino fundamental (Brasil, 2002). estágios precoces do desenvolvimento humano, com A Portaria GM 2.395 de 7 de outubro de 2009, intervenções sobre uma série de determinantes que veio instituir a EBBS considerando marcos legais, incidem sobre o chamado ‘ambiente facilitador’, tal contribuições institucionais e experiências nacionais e como o descrevemos acima. internacionais bem-sucedidas: a Constituição Brasileira; o Questão que se torna ainda mais importante, diante Estatuto da Criança e do Adolescente; as Políticas Nacio- da chamada transição dos cuidados na infância, fenômeno nais de Atenção Integral à Saúde da Mulher, da Criança observado em todo o mundo, relacionado com alguns e Aleitamento Materno, de Saúde Mental, da Atenção progressos no sentido da igualdade de oportunidades para Primária, o Planejamento Familiar, a Política Nacional as mulheres – nos países da Organização para a Coope- de Humanização, dentre outras, aprovadas no Conselho ração e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mais de Nacional de Saúde (CNS) e na Comissão Intergestores dois terços de todas as mulheres em idade ativa trabalham Tripartite (CIT); o Compromisso Brasileiro com os Ob- atualmente fora de casa – o que merece ser festejado, mas jetivos do Milênio (ODM) (especialmente o 4º, voltado que passa a representar, com as pressões econômicas cres- para a Redução em 2/3 da mortalidade de menores de centes, preocupações para milhares de mães: as pressões 5 anos até 2015), o Pacto pela Vida (Portaria GM 325, laborais não refletem novas oportunidades, mas novas 2008), o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade necessidades. Se o cuidado com as crianças pequenas Materna e Neonatal (PR, 2004), o Compromisso para era um assunto predominantemente privado e familiar, Acelerar a Redução das Desigualdades na Região Nordeste agora tornou-se, em grande medida, uma atividade que e Amazônia Legal, firmado entre os Governos Estaduais decorre fora de casa e em que os governos e as empresas e Federal; Pastoral da Criança, OMS, Organização Pan- privadas estão cada vez mais envolvidos, pois uma grande Americana da Saúde (OPAS), Fundo das Nações Unidas parte delas passa seus primeiros anos de vida não nas suas para a Infância (Unicef), Organização das Nações Unidas casas com as respectivas famílias, mas em algum tipo de para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Or- estrutura de cuidados à infância. E embora esse não seja ganizações Não-Governamentais e Redes de Instituições o quadro predominante da realidade brasileira, sabe-se voltadas para o Cuidado com a Primeira Infância, Ex- que um quarto das famílias em nosso país vive de um periências Nacionais e Internacionais exitosas e Políticas salário feminino. Em artigo publicado no jornal O Glo- Públicas Regionais e Nacionais de setores outros que não bo, de 2 de maio 2010, Rosiska Darcy de Oliveira traz à a Saúde, mas neste campo e na perspectiva intersetorial. tona temas tangenciados e confidenciados na sociedade, A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi designada para como as escolhas sobre a maternidade, as condições da a Coordenação Técnica da EBBS. gravidez e do parto, as leis que tolhem ou propiciam A EBBS traz como preocupação central não liberdades, o temor atávico da violência sexual. Todas apenas o desafio de trabalhar nacionalmente pela essas questões tornadas realidade para o corpo feminino articulação e interação das múltiplas iniciativas nesse afligem as mulheres, uma vez que elas sabem habitar campo sabidamente multissetorial, o que já torna essa um corpo cujo destino é desdobrar-se em outros. Ainda proposta bastante ousada, mas também a necessidade segundo a articulista, respeito e escuta é o que aspiram as de prover novas ofertas de cuidado na perspectiva de mulheres para que possam efetivamente contribuir com fortalecimento dos vínculos entre os pais, suas crianças reformas modernizadoras de estruturas de acolhimento Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública voltada para a primeira infância que tornem a vida familiar viável, e não o ponto cego das corporação no trabalho de saúde pública, da relações sociais. responsabilidade pela promoção da saúde física Nesse sentido, tem sido necessário recorrer a uma e mental da comunidade. (WHO, 1951). compreensão mais cuidadosa do que são e como atuam os determinantes sociais da saúde e como podemos pen- Já a Conferência de Alma Ata, no final dos anos sar, neste âmbito, as intervenções sobre as tendências à 1970, e as atividades inspiradas no lema ‘Saúde para integração psíquica e ao ambiente facilitador. Todos no Ano 2000’ recolocam em destaque o tema dos determinantes sociais. No Brasil, trouxe elementos decisivos para a sustentação da Reforma Sanitária DETERMINAÇÃO SOCIAL E TENDÊNCIAS À Brasileira, num período ditatorial de nossa história INTEGRAÇÃO PSÍQUICA NA PRODUÇÃO DE recente, em que diferentes e importantes atores, como SAÚDE: APROXIMANDO CONTRIBUIÇÕES, representantes de instituições de ensino, assistência, ARTICULANDO AÇÕES DIFERENCIADAS órgãos de classe, partidos políticos, sociedades médicas NAS PRÁTICAS DE SAÚDE e de especialistas da saúde e outros representantes da sociedade civil discutiam sua relação com o regime democrático. ‘Democracia e Saúde’ passa a ser o tema Apesar da preponderância do enfoque médico biológico na conformação inicial da saúde pública como em debate e a discussão prosseguirá ampliando-se para a compreensão de que ‘Democracia é Saúde’. campo científico em detrimento dos enfoques sociopo- Nos anos 1980, o predomínio do enfoque da saúde líticos e ambientais, observa-se, ao longo do século 20, como um bem privado desloca novamente o pêndulo uma permanente tensão entre essas diversas abordagens. para uma concepção centrada na assistência médica A própria história da OMS oferece interessantes exemplos individual, a qual, na década seguinte, com o debate dessa tensão, observando-se períodos mais centrados em sobre as Metas do Milênio, novamente dá lugar a uma aspectos biológicos, individuais e tecnológicos intercalados ênfase nos determinantes sociais, que se afirma com a com outros em que se destacam fatores sociais e ambientais. criação da Comissão sobre Determinantes Sociais da A definição de saúde como um estado de completo bem- Saúde da OMS, em 2005 (WHO, 2008). estar físico, mental e social e não meramente a ausência Segundo a Comissão Nacional sobre os Determi- de doença ou enfermidade, inserida na Constituição da nantes Sociais da Saúde do Brasil, os DSS, são aqueles OMS no momento de sua fundação, em 1948, é uma econômicos, culturais, psicológicos, comportamentais clara expressão de uma concepção bastante ampla da saúde entre outros, que influenciam a ocorrência e a distri- para além de um enfoque centrado na doença. Observa-se buição na população dos problemas de saúde e seus este trecho do relatório da segunda sessão da Comissão de fatores de risco. Especialistas em Saúde Mental da OMS: A CNDSS escolheu o modelo de Dahlgreen e Whithead (CNDSS, 2008), para balizar as interven- O mais importante princípio a longo prazo ções sobre os DSS e promover a equidade em saúde para o trabalho da OMS, na promoção da contemplando os diversos níveis que devem incidir saúde mental, em contraste com o tratamento sobre os determinantes proximais (vinculados aos com- de distúrbios psiquiátricos, é o estímulo à in- portamentos individuais), intermediários (relacionados Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 191 192 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. voltada para a primeira infância • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública às condições de vida e trabalho) e distais (referentes à Em relação ao tema em questão, interessa particu- macroestrutura econômica, social e cultural). A escolha larmente discutir as duas primeiras: os indivíduos estão deste modelo foi justificada por sua simplicidade, por na base do modelo, com suas ‘características individuais sua fácil compreensão para vários tipos de público e pela de idade, sexo e fatores genéticos’ que exercem influência clara visualização gráfica dos diversos DSS. E serviu de sobre seu potencial e suas condições de saúde; o ‘compor- base para orientar a organização de suas atividades e os tamento e os estilos de vida individuais’ estão situados conteúdos do seu relatório final. no limiar entre os fatores individuais e os DSS, já que os comportamentos dependem não apenas de opções feitas pelo livre arbítrio das pessoas, mas também dos Modelo de Dahlgren e Whitehead DSS, como acesso ao trabalho, habitação, informações, e a importância do ambiente possibilidades de acesso a alimentos saudáveis e espaços facilitador na produção da saúde: a de lazer, entre outros. contribuição de Donald Winnicott A EBBS apoia-se na ideia de que a integração do ser humano ao ambiente social em que vive é precedida de múltiplas experiências do chamado ‘ambiente Este Modelo inclui os DSS dispostos em diferentes facilitador’ de origem e, conforme anteriormente co- camadas, segundo seu nível de abrangência, desde uma mais locado, este ambiente resulta da interação de fatores próxima aos determinantes individuais até uma camada distal genéticos, psicológicos, sociais, econômicos e culturais. na qual se situam os macro determinantes (Figura 1). Considerar, portanto, as repercussões destes fatores na Figura 1 - Modelo de Dahlgren e Whitehead Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública voltada para a primeira infância relação mãe-bebê ou cuidador-bebê e seus efeitos sobre feitas pelo livre arbítrio das pessoas, como também de a saúde de ambos, incluindo a saúde mental, é tarefa DSS, para que mais claramente possamos perceber que, que nos cabe enquanto profissionais e gestores da área embora os autores nos alertem para a questão fundamental da Saúde, trazendo para a saúde pública o desafio de de como os comportamentos dos indivíduos se expressam formulação de um modelo de determinação de saúde na relação com a sociedade, não explicitam que há um que apresente muito claramente a articulação entre momento, não tão curto assim em termos de tempos de seus determinantes sociais e as tendências à integração vida e impactos na produção de saúde, em que ‘ainda não psíquica do sujeito. existe um indivíduo’ capaz de optar e manejar seu livre Assim, a EBBS, ao eleger o Ambiente Emocional arbítrio. O motivo, diria Winnicott (1983, p. 40) é que Facilitador como um dos pilares de sustentação das “há um momento do desenvolvimento humano em que ações que propõe para os cuidados com a primeira não se pode falar em um bebê, a não ser que a ele esteja infância, sugere que se busque a explicitação do vinculada sua mãe ou figura que a substitua!” componente psicológico dentro dos modelos que Essa peculiaridade experimentada pelos seres já o consideravam na determinação da saúde sem, humanos, no que diz respeito à sua constituição como entretanto, aprofundá-lo. Outra possibilidade, de sujeito, desde estudos recentes que demonstram a adotar para esta compreensão ampliada a proposta de importância das experiências intraútero, das vivências Winnicott, que sugere uma configuração em círculos da gravidez da mulher e suas consequências na saúde que se ampliam e se expandem desde o desejo e o física e mental do bebê até a constatação nos primór- corpo da mãe, o ambiente facilitador, à participação dios da vida de que há uma dependência absoluta do social mais ampla (Figura 2). lactente em relação a um ‘outro’ para existir, leva-nos Para exemplificar, no caso do Modelo de Dahlgren e a reconhecer que existem etapas do desenvolvimento Whitehead (CNDSS, 2008), pode-se destacar a camada deste novo ser, nas quais ele não existe por si só. Isso situada no limiar entre os fatores individuais e os DSS, já quer dizer que, na etapa de dependência completa, que que os comportamentos dependem não apenas de opções se associa aos primeiros meses de vida, não há como Figura 2 - O papel da saúde mental na construção da cidadania Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 193 194 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. voltada para a primeira infância • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública falar do bebê sem associá-lo à sua mãe ou a quem num período da vida chamado primeira infância, não cuida dele. Para Mahler, Pine e Bergman (1977), o encontra correspondência, em termos de suas peculia- nascimento biológico do homem e o nascimento ridades e necessidades de cuidados e intervenções, nos psicológico do indivíduo não coincidem no tempo. modelos teóricos de determinação social da saúde. No O primeiro é um evento bem delimitado, dramático discurso de abertura do XVIII Congresso Mundial de e observável; o último, um processo intrapsíquico de Epidemiologia e do VII Congresso Brasileiro de Epi- lento desdobrar: demiologia, que trouxe como tema “A epidemiologia na construção da saúde para todos: métodos para um O processo de separação/individuação normal mundo em transformação”, o Ministro da Saúde do começa em torno do quarto, quinto mês e vai Brasil faz a seguinte afirmação: até o trigésimo, trigésimo sexto [...] caminhando de um período simbiótico até a aquisição No campo da promoção da saúde o desafio pela criança de um funcionamento autônomo para os epidemiologistas é o de produzir co- na presença da mãe e da prontidão em termos nhecimentos para a compreensão dos atuais de desenvolvimento para a funcionamento determinantes da saúde: o entendimento de psíquico independente, gerador de prazer. que múltiplos aspectos materiais e imateriais (p. 15). configuram o espaço/ território investigado, engendrando praticamente todas as dimensões Essa citação nos ajuda a sustentar o porquê de da existência humana, demandam novos consideração tão destacada para esta etapa da vida, a discursos e abordagens que alcancem aprofun- caminho da individuação para o desenvolvimento saudá- dar a perspectiva multi ou transdisciplinar, vel: o florescimento da capacidade para andar e afastar-se incorporando dimensões não comumente mantendo certo controle sobre ir e vir, desenvolvimento utilizadas nos estudos epidemiológicos. Estas da linguagem, utilização do pronome ‘eu’, reconhecer e transformações que trouxeram novos ele- nomear o outro, diferenciação e identidade de gênero, mentos para se pensar a relação entre espaço, dentre outros de igual magnitude na constituição do tempo, saúde e doença, são fundamentais ser humano. para melhor compreensão da proposição de A aproximação entre as constatações anteriores determinantes da saúde e estabelecer como e a observação de que os modelos de determinação estes se expressam no adoecer e morrer [...]. da saúde estudados pela CNDSS tendem a considerar (Temporão, 2008, p. 10). seus determinantes a partir de um ‘indivíduo e suas inter-relações – o que significa, como vimos, um longo Essa abordagem nos levou à sugestão da constitui- caminho já percorrido em termos de crescimento e ção da saúde atrelada à constituição dos sujeitos em seu desenvolvimento pessoal – nos alerta para a existência crescimento rumo à cidadania, ou seja, uma configu- de um ‘tempo-espaço epidemiológico’ relacionado à ração em que se pode de fato incluir o ambiente facili- etapa da dependência completa e relativa de um ser tador ao pensar o processo saúde-doença, expandindo humano em relação a outro, que pode se constituir como sua compreensão para além dos resultados expressados ambiente facilitador ao crescimento. Este, resguardado na maneira pela qual em uma determinada sociedade e Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública voltada para a primeira infância um dado contexto histórico, se organizam a produção ainda não fala, nos casos de autismo, na criança intimi- e o trabalho. dada, deve-se supor uma subjetividade à espera de ser As descobertas das neurociências vieram confirmar interrogada. Assim, a escuta da pequena criança e seus as constatações dos autores que trabalharam com base cuidadores é uma questão ética que sustenta o direito na psicologia e na psicanálise o desenvolvimento emo- da criança de constituir-se como sujeito, especialmente cional primitivo, reiterando a importância da inclusão se esta construção estiver enfrentando impasses. E esta da promoção da saúde mental quando se trata de saúde constatação só ocorrerá se pais ou cuidadores atentos, pública. Para Damásio (2004): incluindo profissionais de saúde, estiverem presentes e implicados, capturados por um interesse especial nesta Elucidar a neurobiologia dos sentimentos e das criança, opondo-se sempre à ideia de que o corpo do emoções que os percebem altera a nossa visão bebê seja tomado e lido como um puro organismo, pois do problema mente-corpo, um problema cujo não há humano sem vida psíquica. E essa presença cons- debate é central para a compreensão daquilo tante e experiente junto ao bebê possibilita o suporte à que somos. A emoção e as várias reações com construção de seu aparelho psíquico, permitindo que o ela relacionadas estão alinhadas com o corpo, cérebro ofereça sua plasticidade neural à inscrição dos enquanto os sentimentos, estão alinhados com processos simbólicos. Diz-se, assim, que os pais são os a mente. (p. 15). primeiros e imprescindíveis mestres do cérebro. O desenho de qualquer modelo deve expressar, Porém, o mais interessante desta contribuição à portanto, esta compreensão fundadora em termos de nossa proposição se dá quando ele questiona o valor determinação de vida e saúde. Conforme podemos prático desta nova perspectiva. Diz ele: observar na Figura 2, sugere-se uma configuração em que a mãe, vinculada ao seu bebê, representa com seu O êxito ou o fracasso da humanidade depende corpo e sua mente o ambiente inicial da vida do filho, o em grande parte do modo como o público e primeiro território vivencial; e se ela mesma, como indi- as instituições que governam a vida pública víduo, encontra-se exposta a toda série de determinações puderem incorporar essa nova perspectiva da sociais, como mostram os diferentes modelos, ela passa a natureza humana em princípios, métodos e representar o ambiente total a ser considerado, cuidado leis capazes de reduzir o sofrimento humano e protegido – por um dado espaço de tempo e objeto de e engrandecer o seu florescimento. (Damasio, eleição de ações promotoras de saúde. Aqui, podemos 2004, p.16). oportunamente agregar a proposição de Milton Santos sobre as noções de “espaço e território” onde se produz Mais ainda nos coloca aspectos éticos de grande saúde ou doença: o espaço é aquilo que resulta da relação relevância, discutidos no curso “As interfaces das clínicas entre a materialidade das coisas e a vida que as animam e da primeira infância”, organizado pela Comissão de transformam. A configuração territorial é uma produção Saúde Primária da Associação Brasileira de Neuropsi- histórica resultante dessas relações. As ações provêm das quiatria Infantil (Abenepi, 2009), pois a individuação necessidades humanas: materiais, espirituais, econômicas, em processo supõe um sujeito por vir e, mesmo onde sociais, culturais, morais, afetivas. Sistemas de objetos e aparentemente não existe sujeito, como na criança que de ações interligam-se. A dimensão da comunicação no Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 195 196 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. voltada para a primeira infância • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública meio ‘técnico-científico-informacional’ produz-se tam- Recentemente, descobriu-se como um lar estável, bém através da circulação de palavras, imagens, rumores, qualquer que seja sua conformação em termos de figuras afetos. Os elementos simbólicos contribuem de modo parentais, não apenas capacita as crianças a encontrarem significativo para a configuração territorial e, certamente, a si mesmas e aos outros, mas também faz com que elas para o processo do adoecer individual e coletivo. Isto nos comecem a se qualificar como membros da sociedade leva a pensar que o processo saúde-doença seja equacio- num sentido mais amplo. Isso se deve ao desenvolvimen- nado em seus determinantes sociais. to da capacidade de identificação com estes mesmos pais Entretanto, tratando-se de uma contribuição de e, em seguida, com agrupamentos cada vez maiores, e Winnicott à compreensão da relação entre a determinação começa quando a mãe ‘entra em acordo’ com seu bebê. social e o desenvolvimento emocional primitivo do bebê, O pai, aqui, é o agente protetor que liberta a mãe para por meio da conformação deste ambiente facilitador ao que ela se dedique ao bebê. crescimento saudável, torna-se fundamental registrar que A ressaltar, a lembrança de que estas são funções o autor não utiliza o conceito ‘determinação’ como uma que podem ser, a partir de um dado momento, desem- imposição da natureza que independe do concurso de penhadas ou não pela mãe ou pai biológicos, incluindo outros fatores para sua concretização. Plastino (2009) fala outros familiares, vizinhos, babás ou educadoras de em tendências ou linhas de força que a natureza imprime creches e pré-escola capazes de prover continuidade no ao homem, favorecendo o movimento espontâneo da vida, cuidado. E a continuidade do cuidado representa, se- a autopoiese, a autocriação subjetiva e a criação. Não se gundo Bowlby (2002) e Winnicott, característica central tratando de determinações, as tendências requerem acon- do conceito de ambiente facilitador: tecimentos históricos para virem a ser, ou se atualizarem. Neste contexto de um ambiente favorável, o infante hu- é unicamente pela provisão ambiental (presença mano atinge a integração, personalização e realização, de da mãe ou ausência dela por tempo que não se forma absolutamente criativa e original. Assim, somente prolongue para além da capacidade do bebê em cada sujeito sabe dizer das vicissitudes de seu sentimento de manter viva sua imagem) que o bebê em estado de existir, de ser real ou da ausência deles, todos fundamentais dependência pode ter uma continuidade em sua em sua vida, demarcando a diferença entre saúde e doen- linha de vida. (Winnicott, 1989, p. 48). ça. Também a ideia de ‘modelo’, como algo terminado e reproduzível, não se adéqua ao pensamento de Winnicott. Falhas nesse aporte, em termos de características Para exemplificar, basta recuperar sua participação e com- essenciais da vida familiar e sentidas pela criança como partilhamento na produção dos famosos ‘rabiscos’ que privação, estão na gênese da tendência e do comporta- expressavam tão intensamente a emergência de conteúdos mento antissocial (Winnicott, 1987). psíquicos de seus pacientes na atualização de questões de sua história. Então, mais à vontade poderíamos falar em configuração e arranjo de tendências que possibilitam a REPERCUSSÕES (NAS) PRÁTICAS integração psíquica e seu papel na produção de saúde como uma construção plasticamente e estruturalmente mutável mediante interação, integração e realização destas mesmas tendências num dado ambiente. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 Com esta compreensão, as estratégias de atenção à saúde da mulher só estarão completas se passarem a TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública voltada para a primeira infância incluir ações que considerem as vicissitudes de manejo este aspecto do trabalho intenso a ser realizado sobre a das questões vivenciadas na gravidez, no pós-parto e potência dos vínculos entre os principais atores do SUS estendendo-se pelo menos até o final do primeiro ano de para a produção de saúde. vida do bebê, quando é fundamental cuidar de proteger Além disso, buscou-se conhecer por revisão biblio- este “ambiente facilitador” para uma vida saudável e um gráfica e visitas in loco as estratégias já implantadas ou desenvolvimento pleno. Da mesma forma, as estratégias em processo de implantação em nosso país consideradas e políticas voltadas para a saúde materno-infantil devem também exemplares nesta perspectiva. Tomamos, assim, aperceber-se da importância das ações nos primórdios como marcos referenciais o Programa Primeira Infância da vida, que não só venham trazer a sua garantia, mas Melhor (PIM) do Estado do Rio Grande do Sul, o Mãe também qualificá-la. Destacadamente, apontamos para Coruja Pernambucana, o Mãe Curitibana (ver sites rela- a importância da detecção precoce da depressão materna cionados), a Experiência de Sobral (CE) (Silva, 2007) e como evento sentinela, ou seja, aquele suficientemente outros, que fazemos questão de citar pelo pioneirismo, estudado e comprovado como provocador de determina- ousadia e trabalho árduo para efetivação de propostas das patologias, que precisa ser registrado e acompanhado desta magnitude. em sua remissão e evolução. Mitos como a ‘maternidade ideal’ e o ‘instinto materno’ precisam também de acolhimento e escuta para sua necessária desconstrução. A CONCLUSÕES Estratégia de Saúde da Família e as ações, programas e políticas de suporte ao trabalho e renda, assim como o estímulo à produção de redes sociais, o vínculo fortalecido Sabemos como problemas complexos nos colocam com equipamentos sociais como as creches e as escolas em condição de ação sempre aquém das necessidades e voltadas para a criança até seis anos junto a seus fami- sempre aproximativa do ponto de vista da eficácia, exi- liares e os dispositivos culturais guardam possibilidades gindo ciência, ação racional e, ao mesmo tempo, criação, imensas de abrigar trabalhos efetivos sobre o ambiente arte, razão estética. Nesse sentido, duas questões surgi- facilitador e os determinantes sociais da saúde. ram de imediato, nos desafiando para a construção da Para a construção da metodologia da EBBS e de Estratégia: como efetivar a articulação e transversalização um Plano de Metas para sua implantação, utilizamos entre as diversas ações pretendidas? Como assegurar a todos os dispositivos ofertados pela Política Nacional inclusão de novos desafios na agenda, como a promoção de Humanização do SUS (PNH), exemplar no que diz de saúde inovando na inclusão de intervenções sobre o respeito à ideia do que é uma política pública de natureza ambiente facilitador? transversal. Mais ainda, esta política inicia a proposição A resposta a este desafio de prover ações em defesa ousada de buscar o humano que se revela no espaço da do ambiente facilitador ao crescimento, desenvolvi- micropolítica de atenção dentro de e constituindo o mento e amadurecimento da criança vinculada à seu nosso SUS, que até então só parecia poder apresentar, cuidador no período da primeira infância nos convoca mesmo que orgulhosamente, sua macroestrutura. Desde à disponibilização de novos enfoques que enriqueçam as os anos 1990, com a proposta da reforma da reforma políticas públicas já instituídas voltadas principalmente (Campos, 2006), explicitava-se esta necessidade de para as mulheres e crianças, mas também para os ho- aprimorar a Reforma Sanitária Brasileira, incluindo mens, para a saúde mental, com contribuições da PNH, Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 197 198 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. voltada para a primeira infância • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública do trabalho de construção de Redes e, principalmente, como a sua repercussão/determinação sobre a própria da Atenção Básica, lócus privilegiado da maioria das saúde e dos demais. Utiliza como suporte a esta reflexão ações através da Estratégia de Saúde da Família exitosa a seguinte proposição: em nosso país. A possibilidade de oferta de novas compreensões e novos aportes procedentes de áreas afins, A democracia é uma aquisição de uma dada assim como a formação e a capacitação dos profissio- sociedade, que num certo momento conta com nais de saúde, cuidadores e gestores nesta nova lógica maturidade suficiente no desenvolvimento emo- e aportes financeiros para essa iniciativa ampliada com cional de uma proporção de indivíduos que a novos esforços intersetoriais, certamente, ocupa todas compõem, a ponto de existir uma tendência em as linhas e entrelinhas deste artigo, e está relacionado direção à criação, à recriação e a manutenção a um ponto relevante do debate político da reforma da máquina democrática. (Winnicott, 1989, do setor saúde: o enfrentamento da desigualdade e da p. 192). iniquidade. Sabemos que não se constrói um projeto político nesta área que assegure de forma sustentável e Sobre democracia, parece possível encontrar um permanente o acesso universal aos bens e serviços e que conteúdo latente importante quando é usado o termo: a garanta os direitos do cidadão sem a decisão política de relação de uma sociedade democrática com a maturidade assegurar os recursos necessários para o financiamento de seus membros saudáveis. Se partirmos da observação do sistema de saúde que possibilite investimentos na psiquiátrica individual, maduro é o indivíduo normal, infraestrutura, na aplicação de novas tecnologias, na saudável, que age de acordo com sua idade cronológica manutenção de quadros de profissionais de qualidade e e seu contexto social, com um grau apropriado de de- no fomento ao desenvolvimento científico e tecnológico. senvolvimento emocional. Para alcançar este objetivo, é preciso que a saúde seja Algumas categorias básicas da máquina democrá- pensada e priorizada nos planos de desenvolvimento tica são o voto livre e secreto não só para que as pessoas como componente estratégico e não como um agente escolham lógica e ilogicamente, mas também para que se secundário. Tal posição recoloca as bases sobre as quais livrem e removam seus líderes. E essa escolha permitirá os determinantes de saúde devem ser equacionados. A mais ou menos celeremente a caminhada do projeto/ desigualdade social, quando manifestada no campo da processo civilizatório de uma dada cultura. Essa capa- saúde é, portanto, a expressão mais perversa do modelo cidade de influência de cada um sobre o todo, e deste de desenvolvimento e não será plenamente solucionada sobre todos e cada um, é característica importante do sem que outras variáveis sejam de fato equacionadas. desenvolvimento de uma sociedade, estando relacionada Uma reflexão bastante interessante que envolve a à possibilidade de amadurecimento da personalidade luta de toda a sociedade pela redução das iniquidades individual ao longo da vida e dependente de todos pode ser tomada do artigo inédito “Ambiente facilitador os equipamentos que esta mesma sociedade coloca à e a Determinação Social da Saúde”, de Penello (2009). disposição de seus cidadãos para este fim. Em seu livro Examinando do ponto de vista psicanalítico a relação Desenvolvimento como Liberdade, Amartya Sen (2000) entre democracia e liberdade, a autora busca sua asso- enfatiza a importância de eliminar todas as privações de ciação ao ambiente facilitador para o desenvolvimento liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das do indivíduo em e para a sociedade em que vive, assim pessoas para exercerem sua condição de cidadão. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública voltada para a primeira infância Portanto, se democracia é maturidade, matu- com a primeira infância. É com esta compreensão e ridade é saúde, e se saúde é desejável, então vamos responsabilidade que trabalhamos na perspectiva do trabalhar para sua promoção, reconhecendo que um setor saúde pelo crescimento da Estratégia Brasilei- de seus fatores essenciais repousa no homem comum, rinhas e Brasileirinhos Saudáveis – primeiros passos na mulher comum e no lar comum dos brasileiros para o desenvolvimento nacional. – devendo esse fator ser seriamente considerado no desenho de políticas públicas para a área. A questão de saber se as crianças de hoje vão R E F E R Ê N C I A S ganhar ou perder com as mudanças em curso no ambiente de cuidado na primeira infância não dependerá exclusivamente, como sabemos, da área da saúde (Unicef, 2008). Iniciativas como a criação da licença parental estendida com aceitação e compreensão da sua importância pela maioria da sociedade, a disponibilidade, acessibilidade e qualidade dos serviços ofertados nas áreas da educação e assistência social, diante da realidade de cada país, com as cores do município onde acontece o dia a dia das pessoas, o trabalho de consciência sanitária a ser realizado em diferentes mídias, a continuidade de programas de erradicação da miséria e da fome como o Bolsa Família, entre outros, deverão necessariamente se articular a todas as ações de saúde nesta perspectiva. E, então, a formação de pessoal e sua capacitação ganha destaque para que possa trabalhar devidamente motivado, bem remunerado e respeitado pela comunidade. As provas provenientes dos países da OCDE até agora sugerem que não há atalhos ou opções de baixo custo que não comprometam o futuro das crianças (Bennet, 2008). Na ausência de políticas específicas e bem financiadas destinadas a proporcionar serviços de qualidade às crianças vulneráveis, é provável que a transição para os cuidados fora de casa contribua para alimentar a espiral das desigualdades. E se quisermos evitar que esta possibilidade se torne realidade, os governos federal, estadual e municipal deverão construir políticas transversais especialmente voltadas para o cuidado Bennet, J. Políticas da infância para crianças de zero a três anos em países da OCDE. In: Ciclo de Seminários Internacionais Educação no Século XXI: modelos de sucesso. Rio de Janeiro, SENAC/Departamento Nacional, 2008. Bowlby, J. Apego: a natureza do vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Atenção primária e promoção da saúde. Brasília, DF: Conass, 2007. ______. Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS, 2006). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2008. ______. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Mais saúde: direito de todos: 2008-2011. 3. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010. Campos, G.W.S. A reforma da reforma: repensando a saúde. 3ª Ed. São Paulo: Hucitec, 2006. Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS,2008). As causas sociais das iniqüidades em saúde no Brasil. Relatório Final. Brasília/Rio, 2008. Damásio, A. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Mahler, M.S.; Pine, F.; Bergman, A. O nascimento psicológico da criança: simbiose e individuação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 199 200 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. voltada para a primeira infância • Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública Oliveira, R.D. Quem diria. In: Jornal O Globo, rio de janeiro, 2/5/2010. Penello, L. O ambiente facilitador e a determinação social da saúde. (Artigo inédito, 2009, mimeo) Plastino, C.A. A dimensão constitutiva do cuidar. In: Maia, M.S. (Org.) Por uma ética do cuidado. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 53-88. Sem, A. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Silva, A.C. Saúde da família, saúde da criança: a resposta de Sobral. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2007. Temporão, J.G. Política de Saúde e a Medicina no Brasil: desafios e perspectivas. Trabalho apresentado à Academia Nacional de Medicina como parte dos requisitos para concorrer à cadeira de número 56. Brasília, DF: 2009. ______. A epidemiologia na construção da saúde para todos: métodos para um mundo em transformação. Discurso proferido na abertura do XVIII Congresso Mundial de Epidemiologia e do VII Congresso Brasileiro de Epidemiologia, Porto Alegre, 2008, mimeo. Unicef. A transição dos cuidados na infância. Florença: Centro de Pesquisa Innocenti da Unicef, 2008. (Innocenti Report Card n° 8). Winnicott, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ______. Privação e delinqüência. São Paulo: Martins Fontes, 1987. ______. O ambiente e os processos de maturação: estudo sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. World Health Organization (WHO). Relatório da segunda sessão da Comissão de Especialistas em Saúde Mental, Technical Report n° 31, Genebra, 1951.World Health Organization (WHO). Closing the gap in a generation: health equality through action on the social determinants of health: Final Report of the Comission On Social Determinants of Health. Geneva: WHO, 2008. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010 S I T E S R E L A C I O N A D O S Governo do Estado de Pernambuco. Projeto Mãe Coruja Pernambucana. Disponível em <http://maecorujape.blogspot. com/>. Acesso em 10 de Abril de 2010. Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Programa Primeira Infância Melhor Disponível em <http://www.pim. saude.rs.gov.br/> Acesso em 10 de Abril de 2010. Secretaria Municipal de saúde de Curitiba. Programa Mãe Curitibana. Disponível em <http://www.curitiba.pr.gov. br/publico/secretaria.aspx?idf=483&servico=33>. Acesso em 10 de Abril de 2010. DEBATEDORES / DISCUSSANTS Estratégia em defesa da criança saudável: cogestão e não-violência como postura existencial e política Strategy in favor of healthy children: co-management and nonviolence as existential and political attitude Gastão Wagner de Sousa Campos 1 Médico; doutor em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Professor da UNICAMP. [email protected] 1 O artigo de José Gomes Temporão e Liliane Mendes Penello traz um novo enfoque para a política pública voltada para a primeira infância. É sugerida uma estratégia ousada e inovadora. A ousadia advém tanto do enfoque teórico desenvolvido como, e principalmente, quando propõem que o centro da política esteja no “fortalecimento dos vínculos entre os pais, suas crianças pequenas e a rede social que os cercam” (p. 190). Não custa insistir que a estratégia para assegurar vida saudável aos pequenos brasileiros está assentada na escuta da pequena criança e de seus cuidadores [...], opondo-se sempre à idéia de que o corpo do bebê seja tomado e lido como um puro organismo, pois não há humano sem vida psíquica. (p. 195). Observa-se que se trata de uma política assentada sobre uma concepção ampliada de saúde e, ainda, sobre a visão de que a construção de autonomia, de que a ampliação da capacidade das pessoas compreenderem e agirem sobre si mesmo e sobre seu contexto é elemento fundamental para defesa da vida. Essa concepção de política pública não é frequente, pois, em geral, os programas sanitários costumam tomar a população ‘alvo’ como objeto a ser ‘atingido’ pelas atividades planejadas a priori. No caso, ao contrário, os autores defendem que a relação mãe-filho seja sempre entendida dentro de um contexto cultural, histórico e social, e que a melhoria destas relações seriam os ‘objetos’ centrais da política. Os autores se valem de um enfoque teórico criativo para compor seu discurso e argumentos. Articulam a tradição da Saúde Coletiva, em grande medida sustentada pela concepção de determinação social da produção de saúde, com a dinâmica concepção sobre a conformação do sujeito de Donald Winnicott. Partindo do papel da ‘mãe suficientemente boa’ e do Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 201-203, abr./jun. 2010 201 202 CAMPOS, G.W.S. • Estratégia em defesa da criança saudável: cogestão e não-violência como postura existencial e política ‘ambiente facilitador’ na conformação do novo sujeito, (homenageando) ao nosso passado comum, o da Saúde individuação do ser humano em fase precoce de seu Coletiva, que tanto contribuiu para a reforma sanitária desenvolvimento, os autores imaginam modos de as brasileira. Sim, sem os pensamentos, palavras e obras políticas públicas contribuírem com esse processo. da Saúde Coletiva, o que seria do SUS? Por outro lado, Estimula-se que a Estratégia da Saúde da Família, a qual o sentido em apoiar-nos em concepções simplifica- Política de Saúde Materna, o Humaniza-SUS, dentre doras, ainda quando sistêmicas, da coprodução singular outras práticas sanitárias e sociais, adotem não somente dos processos de saúde, doença, risco, vulnerabilidade essa compreensão ampliada, mas também modos de e intervenção? apoiarem a constituição de ‘ambientes facilitadores’ e de ‘mães suficientemente boas’ em escala coletiva. Em grande medida, venho pelejando no mesmo sentido que os autores. Também me inspirei em Win- Entretanto, vale ressaltar que não é simples integrar nicott e em autores da Saúde Coletiva, entre outros, a concepção ‘estrutural’ de determinação social adotada quando elaborei o Método Paideia, que busca a confor- pela Saúde Coletiva, inclusive o modelo de Dahlgren mação simultânea de pessoas e instituições. Para isso, é e Whitehead utilizado no texto, com o pensamento de essencial realizar trabalho sistemático junto aos próprios Winnicott e uma série de outros autores que buscam sujeitos, objetivando apoiá-los para refletirem sobre sua escapar das dinâmicas estruturais para pensar alguma capacidade de atuar sobre si mesmos e sobre o mundo filosofia da prática, em que os sujeitos realizem mediação que os cerca, particularmente sobre as relações sociais entre o estruturado e o situacional. Aliás, os próprios e instituições. autores, em certa altura do texto, indicam as contraposições entre estas duas perspectivas: O método objetiva aumentar a capacidade de compreensão e de intervenção das pessoas sobre o mundo e sobre si mesmo, contribuindo para instituir processos [...] tratando-se de uma contribuição de Win- de construção de sociedades com grau crescente de nicott à compreensão da relação entre a deter- democracia e de bem-estar social. minação social e o desenvolvimento emocional primitivo do bebê, através da conformação deste A base para uma sociedade é a personalidade ambiente facilitador ao crescimento saudável, humana total [...] não é possível que as pessoas torna-se fundamental registrar que o autor não consigam ir mais além na construção da sociedade utiliza o conceito ‘determinação’ como uma do que de seu próprio desenvolvimento pessoal imposição da natureza que independe do con- [...] A democracia é uma aquisição de uma dada curso de outros fatores para sua concretização. sociedade, que num certo momento conta com ma- Plastino (2009) fala em tendências ou linhas turidade suficiente no desenvolvimento emocional de força que a natureza imprime ao homem, de uma proporção de indivíduos que a compõem, favorecendo o movimento espontâneo da vida, a a ponto de existir uma tendência em direção à autopoiese, a autocriação subjetiva e a criação. criação, à recriação e a manutenção da máquina (p. 196). democrática. (Winnicott, 1989, p. 193). Fiquei a me perguntar até quando estaríamos, Essa educação para a vida teria como escola a os autores e eu próprio, pagando tributo de respeito própria vida, mediante a construção de modalidades Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 201-203, abr./jun. 2010 CAMPOS, G.W.S. • Estratégia em defesa da criança saudável: cogestão e não-violência como postura existencial e política de cogestão que permitam aos sujeitos participarem do comando de processos de trabalho, de educação, de convivência comunitária e até mesmo do cuidado de sua própria saúde. A gestão compartilhada da clínica ou da saúde pública pode constituir também um espaço onde se produza esse efeito Paideia. Bem, de qualquer modo, ficam algumas questões para o futuro. Adotando-se essa Estratégia, como reagir quando os ‘fundamentalistas da objetividade’ resolvem criar um score pra medir o ‘ambiente facilitador’? Uma planilha para avaliar o desempenho materno? Ironia à parte, o desafio está também em formar profissionais com capacidade e desejo para operarem com uma clínica ampliada e compartilhada, com conceitos da Saúde Coletiva, psicanálise, promoção etc.? E, ainda, em como adequar instituições públicas (SUS, Escolas, SUAS) para que não se aproveitem da ‘necessidade’ de lidar com relações familiares para introduzirem formas perversas de controle social? O tema da ética em saúde: qual o compromisso primeiro das equipes? Como combinar estratégicas sanitárias diretivas e normatizadas com o respeito à autonomia da função de mãe e do ser criança? De qualquer modo, não há como fugir ao repto lançado pelo artigo: não haverá vida saudável para os brasileiros sem o concurso dos próprios brasileiros; além, óbvio, do necessário concurso simultâneo de políticas públicas voltadas para o bem-estar, para a paz e executadas em modalidades variáveis de cogestão. R E F E R Ê N C I A Winnicott, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 201-203, abr./jun. 2010 203 204 DEBATEDORES / DISCUSSANTS Um grande avanço A big step forward Osmar Terra1 Médico; Especialista em desenvolvimento infantil pela Universidade de Brasília (UNB); Mestre em neurociências pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS); Deputado Federal pelo PMDB-RS. [email protected] 1 O s autores do texto tratam de uma questão absolutamente transcendental, de um grande passo adiante na promoção da saúde, qual seja a criação de políticas públicas voltadas para um desenvolvimento humano integral mais harmônico, que considere não só as variáveis da saúde física, mas que também priorize, da melhor forma possível, a sanidade mental e a plenitude das competências humanas. Esse desenvolvimento deve, obrigatoriamente, ser considerado desde os seus primórdios. Como diz Allan N. Schore em seu livro Affect Regulation and the Origin of the Self (1994): “A formação inicial dos sistemas vivos estabelece os condicionantes para o funcionamento de cada aspecto do organismo, seja interno ou externo, através de toda a vida”. Ele reconhece o óbvio, que é bem no início da vida que todas as nossas principais habilidades e competências se organizam, para permitir nossa sobrevivência posterior. Embora de importância óbvia, esse cuidado com o desenvolvimento inicial sempre foi tratado como secundário, em todos os ramos do conhecimento humano. Mesmo na saúde, as preocupações, até alguns anos atrás, restringiam-se às doenças mais comuns para a idade e aos cuidados para diminuir a mortalidade infantil. A grande contribuição que os autores do texto proporcionam aos leitores é o avanço na compreensão sobre a importância do chamado ‘ambiente emocional facilitador’ para o desenvolvimento inicial, considerando-o num contexto da determinação social da saúde. Eles avançam numa região ainda pouco explorada do conhecimento, construindo uma preciosa síntese sobre o valor dos cuidados nos primeiros anos de vida, que caminhos devem seguir e como eles influenciam, a longo prazo, a saúde física e mental do futuro adolescente e adulto. Alem de contribuição teórica, de grande relevância, os autores também avançam na formulação de políticas públicas inovadoras e que Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 204-207, abr./jun. 2010 TERRA, O. • Um grande avanço certamente terão grande impacto social. No texto, comportamento violento e antissocial. Também é eles transitam de uma forma pedagógica e inteligí- reconhecido o quanto a capacidade de aprendizagem vel nos principais achados de pesquisas de ponta, depende da facilidade da linguagem verbal e escrita. demonstrando com muita clareza a interação entre Assim, tem-se uma base para compreender a fantás- a natureza e o estímulo do ambiente. Fazem uma tica importância de políticas públicas que interfiram síntese rara que vai da psicanálise aos recentíssimos positivamente nesse período da vida. dados da neurociência, passando pela antropologia Richard Tremblay, pesquisador da Universidade e pela etologia, sempre demonstrando como são de Montreal, Canadá, acompanha vários estudos determinantes os primeiros anos para o restante da longitudinais de populações nascidas há mais de existência humana. duas décadas, em vários países do mundo. Sua con- A verdade é que mesmo com os trabalhos de clusão principal é que o comportamento agressivo se Freud e posteriormente de Vigotski, Piaget, Bowlby estabelece muito precocemente no ciclo da vida. As e Winnicott, chamando a atenção para a importância pessoas mais agressivas e violentas na idade adulta da organização básica inicial da vida psíquica, alicer- foram, em geral, crianças com transtornos de conduta çada na primeira infância, os principais textos e as facilmente detectáveis e tratáveis, mas que seguiram principais ações públicas a ignoravam. sem nenhum tipo diferenciado de atenção até a idade O impacto que os primeiros anos de vida exer- adulta. Está cada vez mais comprovado que boa parte cem sobre a capacidade humana, de melhorar suas dessas pessoas foi vítima de negligência e/ou abuso condições de saúde e de aprendizagem futura, além nos três primeiros anos de vida. da influência no desempenho social, ao longo de toda É muito importante entender, também, que a vida, é cada vez mais demonstrado pela pesquisa além dos aspectos psíquicos, e até como sua base científica contemporânea. Nos últimos anos, foi no- material, acontece uma extraordinária plasticidade tável o incremento de novas descobertas nesse campo. cerebral nos primeiros anos, com uma velocíssima Elas têm demonstrado, com muita precisão, que os formação de trilhões de novas conexões entre os 100 cuidados nessa fase da vida devem ir muito além da bilhões de neurônios do cérebro humano. Tudo isso parte física, eles devem estimular e enriquecer a parte num curto espaço de tempo, de forma programada cognitiva e emocional, criando os alicerces para um para responder aos estímulos do ambiente, e em áreas melhor desempenho na vida em sociedade. distintas, acionadas em períodos determinados. São as Frasier Mustard, pesquisador canadense, desco- ‘janelas de oportunidade’, momentos críticos em que bridor do efeito anticoagulante do AAS, afirma que são organizadas as funções e competências importan- o padrão de stress, carregado pelo resto da vida, se tes para o desempenho e a sobrevivência em melhores organiza nos primeiros três anos de vida. Também, condições. Em nenhum outro momento do ciclo vital aí, é organizada a futura capacidade de ler e escrever, acontecerá uma situação tão dinâmica. o controle de impulsos e as bases do comportamento O processo de desenvolvimento incrivelmente na vida adulta. Sabe-se o quanto o stress interfere nas rápido, que acontece da gestação até o final dos pri- patologias mais comuns, físicas e mentais, e como meiros três anos, é marcado geneticamente e influen- o controle de impulsos inadequado pode induzir o ciado poderosamente pelo ambiente. A cada estímulo Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 204-207, abr./jun. 2010 205 206 TERRA, O. • Um grande avanço ambiental novo, corresponde uma nova rede de co- em sintonia com essas assertivas, com as novas desco- nexões formada. Os autores explicitam esse aspecto bertas científicas e com os consensos internacionais de uma forma extremamente didática, resumindo o sobre a importância da primeira infância. Também, conceito de ‘ambiente facilitador’ que assume uma para isso, utilizou as políticas públicas inovadoras dimensão mais objetiva, quando: “é unicamente pela em curso em pelo menos dois Estados brasileiros, provisão ambiental (presença da mãe ou ausência que procuram oferecer um atendimento integral e dela por tempo que não se prolongue para além da privilegiado dos primeiros anos. De um lado, traba- capacidade do bebê em manter viva sua imagem) que lhou com a proposta do ‘Mãe Coruja’ pernambuca- o bebê em estado de dependência pode ter uma con- no, com uma preocupação maior com a redução da tinuidade em sua linha de vida” (Winnicott,1989). mortalidade infantil e os cuidados da amamentação; Falhas nesse aporte de vida familiar pode levar a al- do outro, com o ‘Primeira Infância Melhor’ gaúcho, terações comportamentais e cognitivas importantes, que focaliza a estimulação cognitiva e emocional, entre outros transtornos. educando a família com visitadores especialmente Reforçando ainda, o ponto de vista dos autores, capacitados. Ambos os programas trabalham com está comprovada uma alteração importante na estru- conceitos que podem ser compreendidos dentro do tura cerebral da criança maltratada ou negligenciada. ‘ambiente facilitador’, e abrem o leque de opções “O aumento de glicocorticoides induzido pelo stress operacionais da EBBS. (provocado pelos maus tratos), no período pós-natal Assim, o EBBS, gestado com a participação imediato, induz à morte neuronal nos “centros afe- decisiva dos autores do texto, amplia a abrangência tivos (Kathol et al. 1989), criando circuito límbico dos programas de saúde convencionais, tanto pela anormal (Benes, 1994), e danos permanentes no exigência de ações multidisciplinares, quanto pela in- direcionamento da emoção em canais adaptativos trodução do componente psicológico, como parte da (Dekosky et al.,1982)”. “Está agora estabelecido pela determinação da saúde, reforçando nessa abrangência pesquisa que os fatores de stress social (provocados a importância da díade mãe e/ou cuidadora-bebê. pelos cuidadores) são mais deletérios a longo prazo O que é notável e extremamente relevante, nessa que os estímulos aversivos não-sociais (Sgoifo et al., visão exposta, é a perspectiva avançada que se pode 1999)”. conquistar, estabelecendo novos conceitos alicerçados Qualquer estratégia exitosa nessa perspectiva deve, portanto, considerar sempre o envolvimento da na ciência, e o enorme impacto que isso pode causar na promoção da saúde física e mental das pessoas. família, sua capacitação para os cuidados e estímulos adequados, a cada novo momento do desenvolvimento da gestação e do bebê. As mães com maiores REFERÊNCIAS dificuldades podem e devem ser auxiliadas, para chegarem a ser ‘mães suficientemente boas’ no sentido winnicottiano da expressão. Ao criar a Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS), o Ministério da Saúde entrou Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 204-207, abr./jun. 2010 Benes, P. Machine-assisted portrait and profile imaging in New England after 1803. Painting and portrait making in the American Northeast. Boston: Boston University TERRA, O. • Um grande avanço and Dublin Seminar for New England Folklife Annual Proceedings, 1994. p.138-150. Dekosky, S.T.; Nonneman, A.J.; Scheff, S.W. Morphologic and behavioral effects of perinatal glucocorticoid administration. Physiology & Behavior. v. 29, n. 5, p. 895-900, 1982. Schore, A.N. Affect regulation and the origin of the self. Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1994. Winnicott, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 204-207, abr./jun. 2010 207 208 RÉPLICA / REPLY Vinculo como suporte ao ambiente facilitador à vida: uma questão de saúde pública Bond as a support for favorable environment to life: a matter of public health José Gomes Temporão 1 Liliane Mendes Penello 2 Médico; Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Ministro de Estado da Saúde do Brasil. [email protected] 1 Médica; Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/ Fiocruz); Coordenadora do Comitê Técnico Consultivo da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (MS/Fiocruz). [email protected] 2 I nicialmente, queremos registrar a imensa satisfação de podermos contar com os comentários de Gastão Wagner e Osmar Terra sobre nosso artigo. Ao Gastão agradecemos as contribuições como pensador, formulador e trabalhador incansável por um Sistema Único de Saúde (SUS) humanizado e capacitado em suas ações para redução das iniquidades em saúde e qualificação da vida, com produções inovadoras e inspiradoras, inclusive para a proposta que aqui apresentamos. Ao Osmar, especialmente pelo belo trabalho que conduz há alguns anos no Estado do Rio Grande do Sul, direcionado ao tema aqui discutido, e também inspirador desta proposta estratégica, lá transformado em política pública estadual, o Programa Primeira Infância Melhor. De imediato, destacamos a importância dada ao vínculo como um espaço potencial de produção de saúde sustentando as ações daqueles que compreendemos como protagonistas do campo: profissionais de saúde, gestores, usuários e seus familiares, população em geral. Esse reconhecimento faz toda a diferença para os envolvidos, uma vez que permite a compreensão das implicações e reservas de um sujeito diante do outro, pela atualização na relação entre o cuidador e aquele que é cuidado (especialmente nos períodos de doença com suas reivindicações singulares) de toda a delicadeza que permeia a formação dos padrões estabelecidos nos primórdios da vida entre a mãe, como principal cuidadora, e seu bebê. A Política Nacional de Humanização (PNH) do SUS aborda, de forma corajosa, essa questão, inovando ao ressaltá-la não apenas nos princípios e valores, mas nas estratégias, nos dispositivos ofertados para as ações que articulam clínica e gestão, e no método que utiliza para construí-las, assentado no Método Paideia, disponibilizando-se, ela mesma como indutora de ‘políticas públicas suficientemente boas’. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 208-210, abr./jun. 2010 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. • Vinculo como suporte ao ambiente facilitador à vida: uma questão de saúde pública Nesse sentido, também a Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS) apresenta-se como ensões diversas sobre quais seriam os fatores tidos como determinantes na produção de saúde. iniciativa no campo da saúde, buscando sustentar ou Uma vez que não existe saúde (geral) sem saúde facilitar a emergência de uma dada necessidade, no caso, mental, assertiva da própria Organização Mundial de os cuidados com a primeira infância como fator de de- Saúde (OMS), qual o espaço, o lugar, desse componente senvolvimento de nosso país, pela associação claramente fundamental à vida, ao crescimento e ao desenvolvimen- exposta entre saúde do sujeito e saúde da sociedade em to saudável do sujeito em sociedade? Como discutir as que vive, procurando contemplá-la ao apoiar a integra- ações de determinantes sociais da saúde sobre o indiví- ção e realização, tornando reais as movimentações dos duo, sem considerar que num período extremamente atores que têm se apresentado e dos que certamente importante em termos de aquisições para a vida, o irão se agregar à essa construção, por interesse genuíno ‘individuo’ ainda está em processo de ‘vir a ser’, não exis- e corresponsabilização. tindo como tal? Como abordar com maior propriedade Quando lemos o livro Humanizando nascimen- o potencial criativo e as habilidades e competências do tos e partos, organizado por Rattner e Trench (2005), sujeito nessa emergência, relacionando-as às tendências deparamo-nos com uma citação de Michel Odent: à integração de vários fatores, hereditários inclusive, e “Para mudar a vida é preciso mudar a forma de nas- ao ambiente em que vive, sem que se amplie a noção cer”. Acreditamos nessa assertiva, tanto quanto na de ambiente, incorporando os territórios vivenciais fundamental modificação do que concebemos sobre primordiais de todo ser humano: a mente e o corpo da a potencialização da vida que emerge associada à im- mãe em sua imersão singular no mundo? portância do cuidado com quem decide por abrigá-la. (p.171) Por todas essas razões, a proposta winnicottiana é apresentada como um suporte possível à compreensão Daí tentarmos contemplar com essa estratégia ampliada de saúde como expressão de potência e de não só a garantia da vida da mãe ou quem a substitua vida em desenvolvimento numa dada sociedade, e com e seu bebê, somando-a a inúmeras outras iniciativas a possibilidade de agregar outras contribuições que nesse sentido, mas sua qualificação, por meio de dois permitam a compreensão do homem em seu desafio grandes eixos de suporte: o primeiro, teórico-conceitual, contemporâneo: singular, mas inserido no mundo, apresenta um ambiente facilitador a essa compreensão, pertencendo a um coletivo pelo qual é reconhecido e e o segundo aponta para certo modo de operar, neces- onde se constitui historicamente. sariamente voltado para as articulações intersetoriais e seus atravessamentos. As questões colocadas por Gastão são, na verdade, Desafio que precisa ser enfrentado também na apropriação dessa compreensão com a proposição de políticas públicas afins. boas provocações a nos fazer pensar, instigando seu com- Quanto ao modo de operar, acreditamos que sim, partilhamento e sua abertura para novas contribuições, demanda muitos cuidados. Nesse aspecto, a experiência tal como pretendíamos ao escrever este artigo. comandada por Osmar Terra, muito nos auxilia, cor- Do ponto de vista da concepção teórico-conceitual, roborando já com resultados mensuráveis em termos foi mesmo nossa intenção provocar um estranhamento de impacto sobre os indicadores construídos para os tanto dos atores vinculados ao campo da Saúde Pública cuidados com a primeira infância em aproximadamente quanto da saúde mental, com a aproximação de compre- 300 municípios gaúchos. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 208-210, abr./jun. 2010 209 210 TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M. • Vinculo como suporte ao ambiente facilitador à vida: uma questão de saúde pública Concordamos que a questão ética é a grande orienta- nem para dentro, ou seja, considerando suas diferentes dora de propostas como essas, já que se referem às condições Secretarias, nem nas produções laterais com outros Mi- necessárias à emergência do humano: o encontro com outro nistérios: Educação, Assistência Social, Políticas para as humano que sustente este vir a ser, respeitando sua expres- Mulheres, Direitos Humanos, Justiça, Trabalho, Cultura são singular. Então, pressupõe-se que o cuidado, encarnado e Esportes. Todos, entretanto, estão elencados para esse nos nossos cuidadores, ao perpassar gestão e atenção, venha primeiro grande levantamento. favorecer arranjos estratégicos institucionais diferenciados inclusive pela pactuação de suas normas. Assim, transversalidade e intersetorialidade caminham com a construção da EBBS em três dimensões: O Projeto EBBS prevê ações até o final de 2011 intraministerial, interministerial e local. O momento atual, após a cartografia das ações realizadas em torno da primeira infância nos seis municípios polos, consiste em Muitas pessoas estarão envolvidas nesse projeto: organizá-las em termos de destaques (inovações), conver- capacitação e, certamente, formação alinhada aos prin- gências (utilizando referencial comparativo entre eles) e cípios éticos aqui discutidos são aspectos fundamentais, desafios, relacionados a três eixos: (co)gestão, modos de assim como o reconhecimento do trabalho realizado. organização do trabalho e ações de cuidado. A figura do apoiador local é a nossa aposta como Há disponível um farto material, que vem sendo operador do apoio matricial que, na ponta, articula ações trabalhado pela equipe de coordenação da EBBS e seus da PNH, das diferentes redes e pactos estabelecidos parceiros, também em diferentes níveis de ação: as ofi- entre população, gestores, profissionais de saúde, tendo cinas, que agregam todo o comitê técnico-consultivo e a Atenção Básica e a Promoção da Saúde como seus inúmeras ferramentas para manejo da temática apre- dispositivos mais tradicionais, e a Estratégia de Saúde sentada, o Grupo Executivo Nacional, que aprofunda, da Família como eixo orientador das ações. faz a revisão e a definição de rumos para a ação, tanto Acreditamos, com a lembrança de Costa (2009, p. para retorno às Oficinas, como para a contribuição ao 30) sobre a fábula de Higino em Ser e Tempo: das relações trabalho dos Grupos Executivos Locais. Estes últimos, entre cuidado, mortalidade e angústia “enquanto houver coordenados pelo Secretário Municipal de Saúde, dia- vida, o homem pertencerá ao cuidado a cada hora, minuto logam com a prefeitura mostrando a importância da e instante...o homem,vivendo,cuida; cuidando,vive.” criação de dispositivos que agreguem diferentes áreas Espera-se que cada vez mais a EBBS, fortalecida para gerar ações articuladas, assim como produz suas pela construção coletiva, conduza com vigor a proposta próprias interações para dentro e fora da Secretaria. de uma política pública de Estado voltada para os cui- Como exemplo, a Secretaria Municipal de Saúde de dados com a primeira infância. Florianópolis busca, junto à Prefeitura, a criação de um Nela, associada a tantos outros esforços governa- comitê intersetorial para implantação da EBBS, compos- mentais e da sociedade civil, considerando a diversidade to por representantes das áreas de Educação, Assistência cultural, econômica e social brasileira, depositamos a Social, Cultura, Esportes, entre outras. esperança de caminhar com maior segurança rumo ao A cartografia das iniciativas do Ministério da Saúde (MS), em relação ao tema, não está concluída, Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 208-210, abr./jun. 2010 crescimento e desenvolvimento saudável da democracia em nosso país. ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família Specialized orientation: the representation of the Family Health Team Annaiza Freitas Lopes 1 Renata Amanda Azevedo de Brito 2 Fátima Luna Pinheiro Landim 3 Mônica de Oliveira Nunes 4 Patrícia Moreira Collares 5 Enfermeira graduada pela Universidade de Fortaleza (Unifor). [email protected] 1 Enfermeira graduada pela Universidade de Fortaleza (Unifor). [email protected] 1 RESUMO Esta pesquisa investigou a representação social da Equipe de Saúde da Família da cidade de Fortaleza (CE) e o matriciamento promovido pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Em outubro e novembro de 2009, foram entrevistados seis enfermeiros e cinco médicos; os dados foram organizados por meio do Discurso do Sujeito Coletivo. As análises respeitaram ideias centrais Enfermeira pela Unifor; Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Professora do curso de Mestrado em Saúde Coletiva da Unifor. [email protected]. A e B: ‘O matriciamento é uma estratégia muito válida para a saúde mental; Médica com especialidade em Psiquiatria; Doutora em Antropologia pela Université de Montreal (Udem); Professora adjunto do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. [email protected] PALAVRAS-CHAVE: Atenção primária à saúde; Saúde mental; Redes de 2 3 Fisioterapeuta e mestranda em Saúde Coletiva pela Unifor; Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). [email protected] 4 um pouco deficitário e a capacitação não deve ser uma só’. Os dados sugerem a representação do matriciamento como oportunidade de aprendizagem no sentido de identificar e tratar casos de transtornos mentais. Resta, todavia, a expectativa de que essa estratégia tenha continuidade assegurada. cuidado continuado em saúde. ABSTRACT This search investigated the social representation of the Family Health Team in the city of Fortaleza (CE) and the specialized orientation given by the Psychosocial Centers of Attention (PCA). Between October and November 2009, six nurses and five doctors were interviewed and the data were organized through the Collective Subject’s Discourse. The analysis followed the central ideas A and B: ‘the specialized orientation is a very valid strategy for mental health; somewhat deficient and the capacity-building should not stand alone’. The data suggest that the representation of specialized orientation is an opportunity for learning, in the sense of identifying and treating cases of mental disorders. The expectation is the continuance of this strategy. KEYWORDS: Primary health care; Mental health; Care network health continuous. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010 211 212 Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M. INTRODUção • Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família Tendo em conta, ainda, a ambiência da Reforma Psiquiátrica, bem como a busca pelo aperfeiçoamento dos dispositivos e das novas ferramentas para o cam- A atual política de saúde mental no Brasil, a qual po de saúde mental, é importante mencionar o VII deu origem à reforma psiquiátrica, propõe a progressiva Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, promovido substituição dos hospitais psiquiátricos por uma rede pela Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde assistencial em saúde mental, constituída pelo Centro de Pública (Abrasco), que, em julho de 2003, figurou Atenção Psicossocial (Caps), ambulatórios, residências como palco em que, com a participação da coordena- terapêuticas, centros de convivência e cultura, serviços ção geral de saúde mental, foram realizadas oficinas de saúde mental, emergências psiquiátricas em hospitais das quais resultaram subsídios para a organização das gerais e atendimento na rede básica de saúde. Essa rede ações de saúde na atenção básica, dando início ao apoio de serviços está integrada ao Sistema Único de Saúde matricial (Brasil, 2003). O papel da Equipe de Saúde (SUS), sendo sua essência de caráter público e municipal da Família torna-se fundamental nesse aspecto, quando (Brasil, 2009). o matriciamento surge para ‘desafogar’ os Caps, na Os profissionais cuidadores da saúde mental não medida em que pensa uma aproximação e modos de podem se restringir a único dispositivo, devendo, sim, horizontalizar as relações interpessoais com a atenção constantemente ampliar seus conhecimentos e instru- básica, melhorando a qualidade da assistência. mentos para proporcionar aos usuários do serviço um O Programa Saúde da Família (PSF), atualmente, atendimento com resolubilidade. Assim, a criação de redes conhecido também como Estratégia de Saúde da Família assistenciais não só auxilia no tratamento, como também (ESF), surgiu em 1994. Ele constitui o modelo de orga- conecta toda a equipe de saúde a favor do bem-estar do nização do serviço de atenção primária característico do indivíduo, solidificando laços e facilitando a comunicação SUS, composto por equipes multiprofissionais. A ESF entre os demais níveis de saúde. As redes assistenciais tem como foco de atenção a coletividade, objetivando a necessitam permanecer em constante expansão, pois são promoção, prevenção, cura e reabilitação do indivíduo elas que possibilitam os inúmeros artifícios e progressos (Ducan; Schmidt; Giugliani, 2004). na saúde mental. Além disso, também são consideradas O apoio matricial, de seu lado, configura instrumentos essenciais para ampliar as oportunidades de ferramenta sugestiva para agenciar a indispensável tratamento, que não é apenas realizado em consultórios, instrumentalização das equipes na clínica ampliada, expandindo-se também ao convívio social. contrapondo-se ao modelo médico dominante. Essa O desenvolvimento dos novos serviços substitu- ferramenta visa tanto expandir a clínica das equipes tivos em saúde mental marca um progresso na política de saúde, quanto reorientar a demanda para a saúde do SUS. O Caps, entretanto, constitui-se porta de en- mental. Fica, assim, estabelecida uma relação entre a trada da nova rede assistencial destinada às pessoas que ESF e o Caps. vivenciam intenso sofrimento psíquico, não podendo Observa-se empiricamente que a superlotação do prevalecer a ideia de que esse é o único meio de trata- Caps ocorre, em sua maioria, por casos considerados mento, sob o risco de se incorrer no mesmo equívoco do leves, podendo estes ser direcionados para as equipes paradigma anterior à reforma psiquiátrica (Rodrigues; de Saúde da Família. Avalia-se o apoio matricial como Campos; Furtado, 2006). procedimento que pode ampliar a capacidade resolutiva Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010 Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M. • Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família das equipes de referência para o atendimento dos casos centralizada em seis secretarias executivas regionais leves, implicando uma triagem da demanda para os Caps (SER I, II, III, IV, V e VI) – que dividem a Cidade (Figueiredo; Campos, 2009). em seis regiões que têm papel executivo das políticas Uma vez que o Ministério da Saúde assina investi- setoriais. mentos para a implantação do matriciamento, estando A informação das equipes matriciadas veio dos as equipes de saúde em plena fase de capacitação pelos Caps, tendo sido agendados encontros com os profissio- Caps, questiona-se se essa proposta tem boa aceitação nais em seus locais de trabalho, e, mediante autorização por parte dos que compõem a Estratégia de Saúde da da Secretaria Municipal de Saúde, obteve-se o consenti- Família (ESF), ocupando-se este artigo em evidenciar mento das ‘regionais’ e o conhecimento dos centros de suas representações. saúde de origem de cada um. Este estudo revela-se importante por favorecer a Dentro da visão do método qualitativo, torna-se formulação de conhecimento acerca das dificuldades e imperativa a possibilidade de se captar a forma como as experiências positivas enfrentadas pelas equipes da ESF pessoas realmente se sentem em relação a qualquer tipo no matriciamento, de modo a beneficiar outras equipes de situação. Desse modo, lançou-se mão do seguinte com o relato aqui apresentado, bem como os demais período gerador de discurso: ‘Relate quais as suas im- profissionais do campo da saúde mental. Para a comu- pressões acerca do matriciamento pelo Caps’. nidade científica, espera-se contribuir com a divulgação A organização dos dados seguiu a técnica do da experiência de implantação do matriciamento pelo Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), cuja origem está Caps de Fortaleza, Ceará. nas ciências sociais, mas é passível de ser introduzida em outras disciplinas e campos, sendo apresentada aos pesquisadores como opção para que se possa lidar, em METODOLOGIA uma escala coletiva ou social, com os pensamentos que são obrigatoriamente compostos de material discursivo (Lefèvre; Lefèvre, 2005). Este estudo descritivo, de natureza qualitativa é A despeito dos passos da técnica, no primeiro marcado pela aplicação de entrevistas com 11 profissio- momento, as entrevistas foram gravadas e transcritas. nais – 6 enfermeiros e 5 médicos – das equipes da Estra- O conjunto dos depoimentos compôs as “Expressões- tégia de Saúde da Família, matriciadas pelos Caps. chave’ (ECH) no ‘Instrumento de Análise de Discurso’ As entrevistas foram aplicadas durante os meses (IAD1). O passo seguinte foi identificar as Ideias Cen- de outubro e novembro de 2009, com o objetivo de trais (ICs), definidas como uma expressão linguística eleger pelo menos uma equipe matriciada por Secre- que revela, ou mesmo descreve, de forma sintética e o taria Regional, das quais foram escolhidos um mé- mais fidedignamente possível, o sentido de cada um dico e um enfermeiro por serem informantes-chave, dos discursos analisados. Etiquetadas e transferidas na medida em que se responsabilizavam tanto pela para o IAD2, as ICs foram trabalhadas no sentido de abordagem inicial, quanto pela continuidade dada à agrupá-las em ICs-sínteses, ou seja, reduzindo o mais assistência em parceria com os demais componentes possível o escopo de análises. Na última etapa, deu-se da equipe. É necessário informar que a cidade de origem ao Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), quando Fortaleza, Ceará, tem sua força administrativa des- as ICs coincidentes foram editadas, de um modo que Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010 213 214 Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M. permitiu resguardar uma natureza discursiva, e ainda, • Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família RESULTADOS E DISCUSSÃO sua autonomia como objeto empírico. Considerando o estabelecido na resolução n.º 196/1996, do Conselho Nacional de Saúde, do Mi- Os resultados se reportam ao quadro-síntese e, nistério da Saúde, foram obedecidos critérios éticos portanto, às ICs, em função das quais se disponibilizam de maneira que a fase de coleta de dados tomou corpo os DSCs. Vale ressaltar que os grupamentos A (‘O curso somente após serem prestados esclarecimentos acerca do de matriciamento é uma estratégia muito válida para a propósito da pesquisa e da conduta ética a ser adotada saúde mental’), e B (‘Um pouco deficitário e a capacita- pelo pesquisador, inclusive para proteger a privacidade e ção não deve ser uma só’), encontram-se representados assegurar total anonimato dos informantes. Foi realizada pelos DSCA e DSCB. a investigação após a assinatura do termo de consenti- O DSC (Figura 1) trata da representação social mento livre e esclarecido. O projeto desta pesquisa foi de um grupo de médicos e enfermeiros, o qual totaliza submetido à avaliação pelo Comitê de Ética em Pesqui- 11 sujeitos com procedência das Secretarias Executivas sas com Seres Humanos da Universidade de Fortaleza, Regionais I a VI e que expõem ideias positivas acerca do tendo sido autorizado sob parecer n.º 267/2009. matriciamento promovido pelo Caps a ESF. Figura 1 – O Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) correspondente à Ideia Central (IC) A Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010 Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M. • Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família No DSC, constata-se a representação do matricia- exclui a lógica do encaminhamento, pois objetiva au- mento entre profissionais da saúde mental, consistindo na mentar a capacidade resolutiva de problemas de saúde troca de saberes entre si de variados serviços de atenção, (Brasil, 2003). tendo como objetivo a aproximação entre as ESF e os Outra unidade de sentido presente no discurso Caps. Esse discurso concorda com a literatura (Fortale- diz respeito à necessidade de sensibilização, bem como za, s.d), ratificando, ainda, o matriciamento como uma à criação de vínculos entre os profissionais de saúde e estratégia favorecedora do estabelecimento de apoio entre usuários com suas famílias; e dos profissionais de saúde dois dispositivos estratégicos da rede de assistência. entre si, sejam eles da ESF ou do Caps. Sobre o tema, a Destaque-se o fato de que essa parceria estabelecida literatura explorada expressa que a ESF busca entender entre os serviços supracitados tem um grande papel a ser a família em seu espaço social. As ferramentas utilizadas desempenhado no contexto do paciente que sofre com o para a promoção da saúde estão inseridas, com ideias de transtorno mental. Acerca do tema, autores defendem o obtenção de ambientes mais saudáveis, no espaço familiar, argumento de que a relação entre o Caps e a ESF deve o qual envolve, além da tecnologia médica, o reconhe- ser formalizada e fortalecida a fim de garantir melhor cimento das potencialidades terapêuticas presentes nas assistência ao usuário do serviço de saúde mental. Os relações familiares, bem como em outras redes sociais na profissionais integrantes da ESF devem entender todo comunidade (Ducan; Schmidt; Giugliani, 2004). o contexto, com vistas a respeitar e valorizar as caracte- Compreende-se que cuidar da saúde mental re- rísticas particulares de cada família, contribuindo assim quer não apenas um método centralizador e único – o para superação de conflitos danosos à saúde de seus que reúne valores à estratégia de matriciamento – mas componentes (Ducan; Schmidt; Giugliani, 2004). também um fator multiplicador que possa assistir, de O discurso também se reporta à estratégia do forma holística, o usuário e a família. É importante matriciamento como forma de educação permanente salientar que os usuários dos serviços de saúde mental em Saúde Mental para ESF. O apoio matricial busca não devem se limitar a uma única forma de tratamento, ofertar tanto suporte técnico-pedagógico quanto apoio pois eles não são elementos estáticos, contrapondo-se, assistencial às equipes de referência, além, evidentemen- dessa maneira, ao antigo sistema, anterior à reforma te, de investir na conquista e ampliação de espaços para psiquiátrica. O sistema de referência e contrarreferência, comunicar e compartilhar ativamente conhecimentos estabelecido entre os profissionais que compõem o Caps entre profissionais (Campos; Domitti, 2007). e a ESF, possibilita a corresponsabilização, definindo O apoio matricial constitui arranjo organizacional quem deve desempenhar as atividades e a criação de que visa outorgar suporte técnico em áreas específicas vínculos entre usuários-profissionais e profissionais do às equipes responsáveis pelo desenvolvimento de ações Caps-profissionais da atenção básica. A referência, por- básicas de saúde para a população. Nesse arranjo, a tanto, deixa de ser a ‘instituição Centro de Saúde’ ou a equipe por ele responsável compartilha alguns casos ‘instituição Caps’ e passa a ser o profissional e a equipe com a equipe de saúde local. O compartilhamento se de referência (Zambenedetti, 2009). produz em forma de corresponsabilização pelos casos, Impõe-se destacar o que é preconizado pela Se- a qual pode se efetivar em discussões e intervenções cretaria Municipal de Saúde em termos de política de junto às famílias e comunidades ou em atendimentos saúde mental do Município de Fortaleza. Para garantir conjuntos. A responsabilização compartilhada dos casos efetivamente o acesso a uma vida saudável, é necessário Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010 215 216 Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M. • Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família ir além da oferta de serviços voltados para o tratamento mais rápido aos serviços do nível primário. De acordo com de enfermidades com base no diagnóstico seguido dos o Relatório Mundial de Saúde, ano-base 2001, é neces- cuidados médicos. A ideia de proteção pressupõe a ar- sário reconhecer que muitas pessoas necessitadas já estão ticulação de toda uma rede de ações em áreas diversas à procura dessa assistência. Esse fato não só proporciona das políticas sociais que garantam proteção às pessoas e melhores cuidados, como também reduz o desperdício a grupos mais vulneráveis (Fortaleza, s.d.). resultante de exames supérfluos e de tratamentos não A Associação Brasileira de Psiquiatria, em suas específicos (Relatório Mundial de Saúde, 2001). Diretrizes para o Modelo de Assistência Integral em Outro tema aventado no DSC diz respeito à frag- Saúde Mental no Brasil, defende a noção de que o mo- mentação da assistência em serviços de saúde. Autores delo de assistência integral em saúde mental deve ter postulam a noção de que uma forma de repensar essa como princípio a integração entre os diversos serviços, assistência encontra apoio na clínica ampliada, que é tornando-se, desse modo, um sistema de referência e uma estratégia com foco não só no adoecimento do contrarreferência, no qual as unidades devem funcio- sujeito, mas também na produção de vida (Rodri- nar de forma harmônica complementando-se e não se gues; Campos; Furtado, 2006). Um ponto a registrar opondo a nenhum outro serviço de saúde. Os diversos é a falta de grandes investimentos na capacitação dos serviços contam com equipes multiprofissionais e eles profissionais a fim de proporcionar uma expansão dessa devem atuar de modo integrado, cada um exercendo o modalidade de atendimento. papel inerente a sua profissão (Associação Brasileira de Psiquiatria, 2006). Grande parte dos pacientes com sofrimento psíquico leve superlota os serviços de saúde especializados, O DSC B (Figura 2) trata da representação social de um grupo de médicos e enfermeiros o qual totaliza o número de sete sujeitos das regionais de I a VI e expõe críticas acerca do matriciamento promovido pelo Caps à ESF. dificultando assim o acesso dos usuários que apresentam A saúde mental, entretanto, está inserida na aten- casos de moderados a graves. O matriciamento aparece ção básica. Assim, para que suas ações sejam desenvol- como fator primordial nesse redirecionamento. Desse vidas, é necessária uma capacitação dos profissionais, modo, os Caps dedicam-se com afinco à desinstitucio- que encontram no matriciamento o suporte essencial, o nalização de pacientes cronicamente asilados, bem como qual possibilita uma interlocução dos níveis de atenção. ao tratamento de casos graves e as crises (Brasil, 2003). Muitos profissionais da ESF, porém, não se consideram Na saúde mental, o apoio matricial surge também, pois, preparados para atuar nesses serviços especializados, como forma de amenizar o fluxo de pessoas que lotam motivo que pode interferir na aceitação do apoio ma- as unidades especializadas, permitindo uma melhoria da tricial na Unidade Básica de Atenção à Saúde da Família qualidade no atendimento: junto com isso, surgem pro- (Ubasf ). A falta de conhecimento dos profissionais, a postas que visam redirecionar a demanda de casos leves formação generalista ou a especialidade em outras áreas para as unidades de menor complexidade que prestam parecem ser para eles a maior dificuldade; entretanto, apoio semelhante às unidades especializadas. esta não se expressa como entrave definitivo, desde que De seu lado, o controle e o tratamento de pertur- haja suporte adequado. bações mentais, no contexto dos cuidados primários, Nota-se a necessidade por parte dos profissionais compõem um passo fundamental que está possibilitando de que o apoio abranja a troca de conhecimentos, orien- a um maior número de pessoas terem acesso mais fácil e tações entre equipe e apoiador e diálogo sobre alterações Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010 Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M. na avaliação dos casos. É relevante a continuidade desse • Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família CONSIDERAÇÕES FINAIS suporte para que esses profissionais se sintam realmente capacitados e, assim, possam desenvolver com segurança o que propõe o matriciamento. Por se tratar de uma estratégia nova no campo Na saúde mental já é prioridade a incorporação de da saúde mental, observa-se expectativa por parte dos ações, como capacitação, supervisão e financiamento das profissionais entrevistados em relação ao matriciamento. estratégias, de sorte que se torna inviável o serviço na Tal expressão se revela no fato de saber como detectar atenção básica sem as referidas ações. Portanto, o Mi- os possíveis casos de transtornos mentais e de como nistério da Saúde propôs a estratégia do apoio matricial tratá-los, já que a proposta tem por objetivo organizar para facilitar o direcionamento da demanda de usuários. a demanda advinda do Caps. Uma vez que os profissio- Conclui-se, de tal maneira, que a reforma psiquiátrica nais, em sua maioria, são generalistas ou não possuem não poderia avançar se a atenção básica não fosse inse- afinidade com a área da saúde mental, necessitam de um rida. É necessário, então, estender o cuidado em saúde acompanhamento lado a lado, possibilitando assim uma mental, não o centralizando apenas em método único boa capacitação e o vínculo entre Caps e ESF. Embora (Dimenstein et al., 2009). se achem motivados a aderir a essa proposta, os profis- Figura 2 – Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) correspondente à Ideia Central (IC) B Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010 217 218 Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M. sionais da saúde esperam que a educação matricial seja continuada. O DSC possibilitou a percepção de uma singularidade de pensamentos, permitindo uma análise de dados positivos e críticos acerca da proposta do matriciamento. Entende-se a importância desse tipo de debate como mecanismo legítimo que ‘empodera’ usuários e profissionais envolvidos a implementar a reforma psiquiátrica de forma justa e compartilhada. R E F E R Ê N C I A S Associação Brasileira de Psiquiatria. Diretrizes para o modelo de assistência integral em saúde mental no Brasil. s.l.: Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), 2006. Disponível em: http://www.abpbrasil.org.br/diretrizes_final.pdf. Acesso em: 29 abr. 2010. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Mental. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/ saude/cidadao/visualizar_texto.cfm?idtxt=24134&janela=1. Acesso em: 14 Abr. 2009. ______. Ministério da Saúde. Clínica ampliada: equipe de referência e projeto terapêutico singular.. Textos Básicos de Saúde. 2. ed. Brasília, 2008. 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Saúde e Sociedade, v. 18, n. 2, p. 334-345, 2009. Recebido: Fevereiro/2010 Aceito: Março/2010 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade In the edge of life, getting around the problems: strategies of well-being of families at risk and vulnerability situation Maria Jacqueline Abrantes Gadelha 1 Raimunda Medeiros Germano 2 Mestre em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); enfermeira da Unidade de Saúde da Família do Panatis em Natal (RN). [email protected] 1 Doutora em Educação; professora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFRN. [email protected] 2 RESUMO Este estudo teve por objetivo analisar as estratégias utilizadas pelas famílias em situação de risco e vulnerabilidade, adscritas na Estratégia Saúde da Família (ESF), no enfrentamento de seus problemas. Trata-se de um estudo descritivo, de natureza qualitativa, tendo a entrevista como instrumento de abordagem empírica, para a análise de conteúdo. Os depoimentos revelam a existência de um misto de improvisações e criatividade como estratégias para a superação das privações do cotidiano. A religiosidade e a dádiva são utilizadas como recursos para obtenção de reconhecimento pessoal e apoio nas adversidades. A ESF, para essas famílias, representou o locus de atenção e cuidado. PALAVRAS-CHAVE: Família; Cuidado; Programa Saúde da Família. ABSTRACT This study aimed to analyze the strategies used by families at risk and vulnerability situation, ascribed to the Family Health Program (FHP), to face their problems. This is a descriptive, qualitative study, with the interview as a tool for empirical approach to content analysis. The statements reveal the existence of a mixture of improvisation and creativity as strategies for overcoming the hardships of daily life. The religion and the gift are used as resources to obtain personal recognition and support in adversity. The FHP, for these families, represented the locus of attention and care. Keywords: Family; Care; Family Health Program. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 219-226, abr./jun. 2010 219 220 GADELHA, M.J.A.; GERMANO, R.M. • Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade I N T R O D U ç ão adscritas na ESF, a partir da identificação e da análise das estratégias utilizadas, por essas famílias, para a superação dos problemas enfrentados no convívio familiar. A Estratégia Saúde da Família (ESF), criada em 1994, tem como fundamento básico a conquista da saúde como direito legítimo de cidadania e desponta METODOLOGIA como uma alternativa ao modelo curativo individualista. Por meio da convivência com a comunidade onde atuam, os profissionais devem desencadear mudanças Trata-se de estudo analítico, de natureza qualita- na sua área de abrangência. Segundo o Guia Prático do tiva, que teve a entrevista como principal instrumento Programa de Saúde da Família do Ministério da Saúde de abordagem empírica. (2001a), são atribuições fundamentais do Programa: Nessa perspectiva, trabalhou-se com as famílias I – planejamento de ações; II – saúde, promoção e em situação de risco e vulnerabilidade, considerando vigilância; III – trabalho interdisciplinar em equipe; e as circunstâncias contextuais que as envolvem, ou IV – abordagem integral da família. seja, famílias carentes com condições socioeconômicas No cotidiano da ESF, as visitas domiciliares fre- básicas. Associou-se ao conceito de risco o de vulnera- quentemente desencadeiam sensações e inquietações bilidade, compreendendo a necessidade de um diálogo diversas. Na maioria das vezes, a receptividade das fa- entre saúde e relações sociais, um entrelaçamento da mílias e a preocupação em nos acomodar com conforto epidemiologia, ciências humanas e ciências biomédicas, divergem intensamente da forma fria e burocrática com no sentido de superar o conceito de risco empregado na a qual os usuários são recebidos na Unidade de Saúde. epidemiologia clássica (Ayres, 2001). Nos seus espaços de convivência, a comunicação flui Para isso, procurou-se destacar os principais pro- com mais facilidade ao mesmo tempo em que nos é dada blemas existentes no convívio dessas famílias, identificar a oportunidade de conhecer as relações intrafamiliares, as estratégias utilizadas no enfrentamento desses proble- as formas de organização e os modos de vida, tornando mas e compreender o que representa, para essas famílias, possível a construção de vínculos. a ESF diante dos problemas da vida cotidiana. Um olhar atento pode identificar filhos mais velhos Buscaram-se ainda caminhos que conduzissem aos que assumem o papel de pai, crianças que aprendem a espaços mais profundos das relações, conforme Minayo cuidar de si mesmas precocemente, meninas que tomam (2006) descreve a pesquisa qualitativa, cientes de que se conta da casa e dos irmãos menores exercendo desde entraria no universo de significados, valores e atitudes. cedo atribuições de mãe e mulheres que são provedoras O estudo de campo ocorreu na área de abrangência de toda a família. Como afirma Certeau (1996) acerca da Unidade de Saúde da Família do Panatis, região Norte do cotidiano, há uma criatividade oculta e uma maneira do município de Natal (RN). A referida unidade fun- própria de caminhar; uma habilidade que se desconhece; ciona com 4 equipes de Saúde da Família responsáveis espaços que rompem regras e ultrapassam fronteiras por 2.910 famílias. criando estratégias de bem viver. A seleção das famílias foi realizada com base na dis- Este artigo é uma tentativa de aproximação do coti- cussão dos dados contidos nas fichas de cadastramento diano das famílias em situação de risco e vulnerabilidade do Sistema de Informação de Atenção Básica (Siab) das Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 219-226, abr./jun. 2010 GADELHA, M.J.A.; GERMANO, R.M. • Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade famílias adscritas à ESF junto às enfermeiras e agentes comunitários de saúde da unidade. Recorremos aos estudos de Heller (1989) sobre o cotidiano, aos de Certeau (1996) e Giard (2003) acerca Foram selecionadas dez famílias em situação de das estratégias/táticas, mas, igualmente, a outros autores risco, ou seja, cujas circunstâncias contextuais são carac- que abordam a resiliência (Cyrulnik, 2006), o cuidado terizadas por condições socioeconômicas básicas, tendo com o outro (Mattos, 2001) e os sonhos (Bachelard, em vista que tal estado compromete a saúde e o desen- 2001), comumente presentes na vida das famílias, apesar volvimento dos seus membros. Segundo o Ministério das adversidades. da Saúde (2001b), essa identificação se dá em relação ao Com o propósito de preservar e garantir o ano- trabalho, à renda familiar, à alimentação, à moradia, ao nimato das participantes deste estudo, os nomes foram saneamento básico, ao acesso à educação, ao transporte e substituídos por nomes de poetisas. Tal escolha se deveu aos serviços de saúde. O conceito de risco foi relacionado ao sentido poético que permeou muitos dos discursos, ao de vulnerabilidade também por se considerar que as em diversos momentos. privações das necessidades básicas afetam diretamente as capacidades de enfrentamento e de iniciativas próprias. As entrevistas foram agendadas após emissão de parecer favorável à realização do estudo, fornecido pelo Para atender ao propósito deste estudo, decidiu-se Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal entrevistar as mulheres, donas de casa. Responsável pela do Rio Grande do Norte (UFRN) e de acordo com a sobrevivência no dia-a-dia, em geral, é a dona de casa orientação da resolução 196/96 do Conselho Nacional quem convive mais intensamente com os problemas de Saúde do Ministério da Saúde. familiares. É ela quem coordena as iniciativas para controlar os recursos existentes e constrói estratégias para garantir a sobrevivência de todos. RESULTADOS E DISCUSSÃO Foi necessário, para tal, se despir da antiga concepção de ‘uso’ do tempo voltada a procedimentos e intervenções nas visitas domiciliares de rotina da ESF. Problemas no convívio familiar O tempo da entrevista consolidava-se como o tempo Os problemas identificados pelas entrevistadas necessário, confrontando-se com o tempo da Unidade mantêm uma profunda inter-relação e produzem forte de Saúde e dos fluxos pré-estabelecidos. impacto na vida dessas mulheres que se veem impossi- As narrativas foram registradas por um gravador e, bilitadas de responder às suas necessidades básicas e às para que não se perdessem as expressões faciais, os gestos, de suas famílias: desemprego ou baixa renda, moradia as hesitações e os sentidos das pausas, foram transcritas precária, sofrimento psíquico, violência intrafamiliar e tão logo ocorreram. alcoolismo e outras drogas. Para a análise, utilizou-se a análise temática. Foram A gravidade do quadro de pobreza é descrito nas construídos dois grandes mapas que identificaram os falas de Adélia Prado, que, morando numa casa de três problemas existentes no convívio familiar e as estratégias cômodos com mais dez pessoas – entre elas, seis crianças utilizadas no enfrentamento desses problemas com as –, enfrenta, além da falta de recursos para atender às respectivas falas relacionadas a essas questões do estudo, necessidades básicas, o envolvimento do filho adoles- procurando representar os diferentes pontos de vista e cente com as drogas, a violência intrafamiliar e a própria os aspectos convergentes dos discursos. dependência do diazepam: Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 219-226, abr./jun. 2010 221 222 GADELHA, M.J.A.; GERMANO, R.M. • Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade Aqui são 11 pessoas e só 2 pra dar conta: meu essência da substância social [...]. As grandes marido que é marceneiro e minha filha que é ações não cotidianas que são contadas nos livros doméstica. O ganho dele não é seguro porque de história partem da vida cotidiana e a ela re- ele não tem carteira assinada e ainda ajuda a 4 tornam. Toda grande façanha histórica concreta filhos de outro casamento. [...] Quando eu penso torna-se particular e histórica precisamente muito numa coisa, vai me dando um aperto, graças a seu posterior efeito na cotidianidade. um arrocho, aí eu tomo diazepam. Eu tomo faz 14 anos, mas é só como eu consigo dormir. Entrar nas casas dessas mulheres proporcionou oportunidade para mobilizar e redirecionar diferentes A violência silenciosa do Estado, da qual nos fala olhares que contribuíram para uma aproximação da Betto (2006) é legitimada pela ‘fatalidade’ das atuais compreensão do cotidiano por elas vivido. A disposição estruturas sociais e pelos paradigmas da economia de dos objetos, as imagens dos santos dependuradas nas mercado que reduzem o desenvolvimento a estatísticas paredes, as fotografias de família, a panela sobre o fogão de crescimento do Produto Interno Bruto. Assim, mi- exalando o cheiro de comida, as roupas estendidas no lhões de seres humanos são privados de acesso à renda, varal e as vozes vindas da rua, aos poucos, desencadea- ao trabalho, aos bens essenciais, à sobrevivência. Uma ram uma intimidade que, dissipando os estranhamentos parcela desses excluídos é afetada por distúrbios mentais, iniciais, transformava-os em encontros. pelo alcoolismo e pelas drogas. Para essas famílias, quase nunca é possível fazer previsões. Cada dia é marcado por incertezas, privações e pela ausência de um mínimo de recursos que assegure Estratégias: enfrentando os problemas a satisfação de suas necessidades humanas básicas. As estratégias/táticas, descritas a seguir, revelam As improvisações e a criatividade permitem a essas as alternativas encontradas pelas entrevistadas no en- famílias continuarem sobrevivendo. Artes do dia-a-dia frentamento das adversidades vividas no cotidiano; na cozinha, na hora de dormir, na divisão das roupas inventividades que lhes garantem sobreviver e seguir em e dos alimentos: maneiras de fazer que delineiam a frente vislumbrando possibilidades que lhes permitam sobrevivência com arte. sair da margem da vida. Viver e sobreviver, a ESF: em Na perspectiva de Certeau (1996), muitas dessas busca de uma razão sensível, constituem a essência desta práticas cotidianas se transformam em táticas quando investigação. não são subjugadas à estrutura de que provêm, construindo, assim, possibilidades de ações diversas. A falta de recursos mínimos e a vida marcada pela Viver e sobreviver violência e pelo sofrimento aumentam as incertezas. Não A vida cotidiana é a vida do ser humano em sua in- se pensa no futuro; todas as forças estão direcionadas teireza; suas habilidades, seus sentimentos, suas paixões e para garantir a subsistência no dia de hoje. É o que suas capacidades. Na expressão de Heller (1989, p. 20): transmite Florbela Espanca no seu relato: a vida cotidiana não está fora da história, mas A gente resolve um dia de cada vez, sem pensar no centro do acontecer histórico: é a verdadeira no amanhã. Amanhã é outro dia. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 219-226, abr./jun. 2010 GADELHA, M.J.A.; GERMANO, R.M. • Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade As mulheres que participaram deste estudo percorrem considerar também os desejos e símbolos porque, além um interminável trajeto voltado para o trabalho doméstico e de sobreviverem, as pessoas precisam se sentir vivas para o cuidado com a família. Atentos aos corpos dos outros, (Assman, Mo Sung, 2003). seus gestos cotidianos escondem os próprios desejos nas Uma das entrevistadas, Palmira Wanderley, revela o trilhas apontadas pelas necessidades básicas. São gestos que seu cotidiano conturbado: além das carências materiais, não encontram reconhecimento, pois estão imersos na in- do alcoolismo e das agressões do marido, o sofrimento visibilidade dada pela sociedade às ocupações cotidianas. psíquico da filha. Num dado momento da entrevista, Auta de Sousa mora numa casa de quatro cômodos com os dois filhos. Ela descreve como consegue manter a seu relato expressa, ao invés de amargura e desespero, uma força surpreendente: família na situação de desemprego em que se encontra: Tem coisas que acontecem na vida da gente que Eu fiz assim: peguei minha casa e aluguei um servem de lição; pra gente saber que é forte. pedaço. Aí eu consegui R$ 100,00. Botei meu filho no Bolsa Família que me dá garantido R$ Palmira atribui um sentido ao seu sofrimento e o 80,00 e o pai da mais nova botei na Justiça: aí utiliza como forma de superação. Essa construção de recebo mais R$ 100,00. sentido é uma atividade íntima que permite desenvolver a proteção da identidade. Cyrulnik (2006, p. 29) diz que Uma casa é dividida entre duas e até por quatro “o sentido nasce do recuo do tempo, que permite olhar famílias. O tanque destinado à lavagem das roupas e o para si e para o passado”, lembrando que, depois de um banheiro são de uso coletivo. Onde aparentemente mora trauma, é preciso um tempo para recuperar a esperança. uma família, quando se entrar, percebe-se que naquele O autor, em seu livro, Falar de amor à beira do abismo, espaço convivem duas ou mais. faz reflexões importantes acerca da resiliência. O Programa Bolsa Família foi citado neste estudo por No âmbito da saúde coletiva, a resiliência apresenta-se oito das dez mulheres entrevistadas. A importância desse como um tema novo e vem sendo utilizada como a capa- recurso para essas famílias está na garantia de recebê-lo a cidade do ser humano de responder às demandas da vida cada mês. Em meio a tantas incertezas, o fato de contar cotidiana de forma positiva, apesar das adversidades que com uma determinada quantia para o orçamento familiar, enfrenta ao longo do seu ciclo vital de desenvolvimento, ainda que insuficiente para as despesas, constitui-se em uma resultando na combinação entre os atributos do indivíduo certeza que proporciona um mínimo de segurança. e de seu ambiente familiar, social e cultural (Noronha; A exclusão ou a inserção desfavorável no mercado Cardoso; Moraes; Centa 2006). Nessa capacidade de de trabalho e a consequente exclusão do mercado con- superar as adversidades se inserem as habilidades da pessoa sumidor, numa cultura de consumo como a brasileira, para lidar com as mudanças, a autoconfiança e o repertório provocam sérias dificuldades na vida dos indivíduos. de estratégias de que dispõe para enfrentar os problemas. Estar excluído do mercado consumidor não significa apenas ter dificuldades em satisfazer as necessidades básicas, mas também dificuldades para construir uma A ESF: em busca de uma razão sensível identidade e se relacionar com outros grupos sociais. É A busca de cuidado tem sido considerada uma importante lembrar que falar de necessidades básicas é das principais demandas por atenção à saúde pela so- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 219-226, abr./jun. 2010 223 224 GADELHA, M.J.A.; GERMANO, R.M. • Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade ciedade civil brasileira, conforme estudos de Pinheiro Hoje eu vou no posto só pra conversar. Lá todo e Guizardi (2006) e Luz (2005). Os autores atribuem mundo me conhece. Tem horas que se a gente a essa busca o vazio de sentidos culturais da sociedade não conversar com alguém a gente adoece. capitalista e apontam para a relevância de reflexões acerca das funções culturais que o universo do cui- Nessa fala, ela revela que seu corpo adoece quando dado e das práticas terapêuticas assume no momento lhe falta o convívio – o compartilhar das suas vivências. atual – antes eram partilhadas por outras instâncias Seu depoimento remete à percepção de que relações da sociedade. pautadas numa dimensão ampliada de saúde, que Nesse sentido, Luz (2005) enfatiza que, no considerem as reais necessidades do usuário que busca mundo capitalista contemporâneo, a demanda pela o serviço, influenciam no surgimento de novos modos saúde é uma exigência de um universo de significados de compreensão do processo saúde/doença. e sentidos que não encontram lugar na racionalidade econômica atual. Nesse sentido, é preciso considerar a “materialidade do encontro” (p. 93) da qual nos fala Teixeira (2003): A noção de cuidado não se refere a um nível de perceber que a conversa decorre do encontro entre atenção do sistema de saúde ou a um procedimento téc- trabalhadores e usuários sendo a essência do trabalho nico simplificado, mas a uma ação integral que envolve em saúde. o respeito, o acolhimento, a atenção ao ser humano em A construção de vínculos está diretamente ligada à seu sofrimento que é, muitas vezes, fruto de sua fragili- ideia de relação terapêutica implicando responsabiliza- dade social. A ação integral envolve, assim, as relações ção. A ESF favorece essa construção a partir do princípio entre as pessoas; os efeitos e as repercussões de interações de adscrição das famílias, com base na territorialização. positivas entre usuários, profissionais e instituições. É fundamental o conhecimento mútuo e a confiança As Unidades de Saúde da Família, com clientela entre profissional e usuário para maior adesão à tera- definida por delimitação geográfica e intensa convivência pêutica e efetividade das intervenções propostas. Uma dos profissionais com a vida da localidade enfatizada das entrevistadas, Zila Mamede, vai à Unidade de Saúde pelo trabalho de ligação feito pelos agentes comunitá- diariamente. Ela relata: rios de saúde desafiam os profissionais a modificarem a dinâmica das práticas e direcioná-las ao pensar e ao fazer Lá no posto eu converso com todo mundo. As cotidiano da população (Vasconcelos, 2006). vizinhas soltam até piada porque eu vou lá todo Neste estudo, as entrevistadas revelam que encon- dia, mas eu vou assim mesmo. Também converso tram na Unidade de Saúde um espaço de escuta das suas muito com as meninas que tiram pressão. Lá eu angústias e inquietações. me sinto bem demais. A escuta relaciona-se intrinsecamente à produção de sentidos. Sentimentos aprisionados se libertam em Há cinco anos, quando a equipe chegou à Unidade busca de uma reelaboração dos fatos, possibilitando a de Saúde da Família do Panatis, não era possível com- emergência de novos sentidos. preender porque Zila ia à Unidade de Saúde todos os Cora Coralina expressa, em sua fala, que o fato de dias. Na ocasião da visita domiciliar, percebe-se o quanto não ter com quem conversar interfere diretamente no era difícil para ela, aos 78 anos, dividir uma casa de 3 processo de adoecimento: cômodos com 14 pessoas, entre elas, 6 crianças e 2 ado- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 219-226, abr./jun. 2010 GADELHA, M.J.A.; GERMANO, R.M. • Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade lescentes. Atualmente, quando Zila não vai à unidade, sua O PSF é a garantia que tem gente olhando ausência é notada. Ela traz informações preciosas sobre a pra gente. saúde das pessoas da comunidade, comunicando quem adoeceu e quem precisa de uma visita da equipe. Entrar nas casas das pessoas significa penetrar no valioso universo do cotidiano; a disposição dos móveis, Imersas nas incertezas, expressam a gratidão pelo pouco de atenção que lhes é dispensado e nela se sustenta para ressignificar suas vidas. dos objetos pessoais, a forma como se organizam para dormir e para se alimentar, as relações estabelecidas com os demais membros da família vão se revelando a partir da CONSIDERAÇÕES FINAIS disponibilidade do olhar e dos gestos para com o outro. As retribuições pela atenção dispensada são as mais diversas: presentes, frutas, lanches na ocasião das No dia-a-dia dos serviços de saúde, as inúmeras de- visitas e orações. Uma das entrevistadas carrega consigo mandas provocam a sensação de que nada é capaz de mo- os nomes completos de alguns profissionais da unidade dificar o cenário de carências, desigualdades e sofrimento. escritos num papel para não se esquecer de incluí-los É difícil chegar a algum lugar pré-determinado sem ser nas suas orações. interceptado no percurso: exames, remédios, informa- Os espaços coletivos ou grupos organizados exis- ções, vaga no programa do leite, encaminhamentos para tentes na Unidade de Saúde se revelaram de grande im- consultas especializadas e as mais diversas solicitações que portância no enfrentamento dos problemas vivenciados requerem tempo, habilidade e atenção. Trajetos diários, pelas participantes deste estudo. seguidos em círculos e que não se findam. Quando foi iniciada a organização dos grupos na Aqui, procura-se a inversão dos caminhos. São unidade, não se sabia bem os caminhos que seriam tri- silenciados os conhecimentos técnicos para se buscar lhados. O início foi realizado com grupos de diabéticos outras vozes. Diante de famílias à margem da vida, e hipertensos direcionados ao controle dessas patologias, tentando driblar os problemas por meio de improvisa- mas, aos poucos, o foco de atuação foi ampliado, dando ções e equilibrar-se em fios de esperança, visualiza-se a atenção às diversas e complexas demandas que surgiam. fragilidade das nossas verdades. Assim, foram incorporadas outras atividades, como As mulheres deste estudo mostraram que é possível festas, passeios de trem, visitas a pontos turísticos da cultivar a esperança. E em meio à dor e a uma cultura cidade, entre outras. que favorece a desesperança e o desgaste das relações, elas As diversas experiências de participação e a mo- ensinaram a fazer conexões que recompõem a inteireza bilização em torno das festas intensificam os vínculos das coisas partidas e ampliaram os campos de visão. Fio de apoio social, revelando caminhos que podem abrir a fio, dia após dia, são tecidas as redes de religações com novas perspectivas. seus semelhantes. Essas mulheres buscam na ESF o cuidado e a aten- A ESF foi revelada como uma estratégia de atenção ção que lhes são negados. Procuram partilhar o pesado e cuidado. Aqui, essas mulheres mostraram a necessi- fardo de ter que cuidar da família sem a garantia do dade de adoção de práticas que privilegiem a escuta e alimento de cada dia, da educação, da moradia digna, alarguem os estreitos caminhos da ciência, nos quais são como descreve Florbela Espanca: ‘desperdiçadas as experiências’. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 219-226, abr./jun. 2010 225 226 GADELHA, M.J.A.; GERMANO, R.M. • Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade Movidas por essas imagens, as clausuras do conhecimento científico foram abandonadas para que fosse assumida a posição de aprendizes. Assim, criou-se, na Unidade de Saúde, a ‘tenda do conto’, que é montada durante as reuniões dos grupos no galpão da Unidade de Saúde, simulando uma sala de visitas onde são colocadas fotografias, imagens de santos, poesias e cartas trazidas pelos usuários que representem um acontecimento vivido. No centro da sala, uma cadeira de balanço é colocada para que cada um que lá sentar, conte algo sobre sua vida. A tenda tem favorecido a ressignificação das experiências e a construção de habilidades relacionais transformadoras. Nesse sentido, percebe-se que os espaços das instituições de saúde devem estar abertos à construção de novas práticas que considerem as vontades, os desejos e as diferentes necessidades de saúde. No cotidiano do cuidado, é necessário unir razão e sensibilidade; construir com criatividade um agir coletivo pautado numa razão sensível Certeau, M. A invenção do cotidiano. Livro 1: Artes de fazer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. Cyrulnik, B. Falar de amor à beira do abismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Giard, L. Artes de nutrir. In: Certeau, M.; Giard, L.; Mayol, P. (Org.). A invenção do cotidiano. Livro 2: Morar, cozinhar. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 216-222. Heller, A. O cotidiano e a história. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Luz, M.T. Novas práticas em saúde coletiva. In: Minayo, M.C.S.; Coimbra Jr., C.E.A. Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 33-46. Mattos, R. 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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 219-226, abr./jun. 2010 Recebido: Outubro/2008 Aceito: Janeiro/2010 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil Profile of the expansion of Community Agents Program in Brazil José Roberto de Magalhães Bastos1 Ricardo Pianta Rodrigues da Silva 2 Angela Xavier3 Sabrina Pulzatto Merlini4 Taís Ferreira Pimentel5 Professor doutor do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (USP). [email protected] 1 Mestre em Saúde Coletiva pela Faculdade de Odontologia de Bauru da USP. [email protected] 2 Especialista em Saúde Coletiva pelo Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP. [email protected] 3 RESUMO O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), criado para ser o elo entre a população e as Unidades de Saúde, tem desempenhado um papel essencial na estruturação da atenção básica. O objetivo deste estudo foi analisar o desenvolvimento do PACS no país de 1998 a 2007. Para o presente estudo, foi realizada análise descritiva com enfoque retrospectivo e abordagem quantitativa. Na região Nordeste foi encontrado o maior número de ACS de todo o país, finalizando em 2007 com 86.020. Já na região Norte foi encontrado o Estado com o menor número de ACS do país, Roraima, onde havia 547 agentes em 2007. Verificou-se disseminação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde em todas as regiões do país. Especialista em Saúde Coletiva pelo Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP. [email protected] PALAVRAS-CHAVE: Atenção primária à saúde; Saúde pública; Programa Especialista em Saúde Coletiva pelo Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP. [email protected] ABSTRACT The Community Health Agents Program (CHAP), which was 4 5 saúde da família. created to be the link between people and Health Care Units, has represented an important role on primary health care organization. This study aimed to analyze the development of CHA program in Brazil from 1998 to 2007. A retrospective descriptive analysis with quantitative approach was performed. The Northeast region presented the greatest number of agents in the country with 86.020 in 2007. In the North region was found the lowest number of agents in Brazil in Roraima, with 547 in 2007. There was dissemination of the Community Health Agents Program across the country. KEYWORDS: Primary health care; Public health; Family health program. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010 227 228 BASTOS, J.R.M.; SILVA, R.P.R.; XAVIER, A.; MERLINI, S.P.; PIMENTEL, T.F. I N T R O D U ç ão • Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil Para isso, propôs a substituição da ênfase da cura pela promoção da saúde (Ávila, 2008). O Programa de Agentes Comunitários de Saúde é No início da década de 1980, alguns países deram hoje considerado parte do Programa Saúde da Família os primeiros passos para as mudanças nos serviços pri- (PSF). Nos municípios onde há somente o PACS, este mários de saúde de reconhecida resolutividade e impacto pode ser considerado um programa de transição para mundial. Foi a partir daí que a estratégia da Saúde da PSF. No PACS, as ações dos Agentes Comunitários de Família surgiu com o propósito de alterar o modelo as- Saúde são acompanhadas e orientadas por um enfermei- sistencial da saúde brasileira (Santa Catarina, 2008). ro/supervisor lotado em uma unidade básica de saúde A finalidade dessa estratégia foi implementar os (Ministério da Saúde, 2008). princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), que presa a O Agente Comunitário de Saúde (ACS), criado saúde como um direito acessível a todo cidadão, baseado para ser o elo entre população e as unidades de saúde, na universalidade de acesso, integralidade de atenção desempenha um papel essencial na estruturação da e equidade, compondo um sistema hierarquizado, atenção básica, promovendo maior acesso aos serviços descentralizado com diferentes níveis de complexidade devido ao acolhimento feito por ele, por exemplo, a (Silva, 2007). identificação dos principais problemas enfrentados A partir dessas experiências foi elaborada a estra- pelas famílias que nele se cadastram. O PACS encontra- tégia de reorganização da Atenção Primária ou Básica, se de forma privilegiada na dinâmica da implantação denominadas de Programa Saúde da Família (PSF) e de um novo modelo assistencial. Eles estimulam a Programa de Agente Comunitário de Saúde (PACS). educação da comunidade e a prevenção e proteção às A história do PSF teve início quando o Ministério da doenças, tentando despertar a participação social, ao Saúde instituiu o PACS em 1991. A partir daí, começou- mesmo tempo em que auxilia a equipe de saúde no se a enfocar a família como unidade de ação programática controle de doenças endêmicas (Espínola, 2006). de saúde e não mais o individuo, e foi introduzida a noção Além disso, é composto por uma equipe multiprofis- de área de cobertura (Viana, 2005). sional, cujas atividades transcendem o campo da saúde, O PACS foi criado para ajudar na promoção e à medida que requerem atenção a múltiplos aspectos prevenção da saúde no âmbito domiciliar e no nível da condição de vida da população. Os profissionais local, por meio de ações simplificadas e conforme desses programas devem residir nas respectivas áreas os seguintes pressupostos da Conferência de Alma- de atuação, possuir idade mínima de 18 anos, saber Ata: estruturação dos sistemas de saúde por meio da ler e escrever, ter disponibilidade para trabalhar em organização dos cuidados primários, cuidados primá- tempo integral, também devem estar vinculados a rios e o sistema nacional de saúde e a construção da uma unidade de saúde tradicional ou a uma unidade equidade em saúde, direito à saúde e controle social e de saúde da família e atender entre 400 e 750 pessoas ação intersetorial e participação cidadã. Ao priorizar (Silva, 2008). inicialmente as crianças e mulheres em idade fértil, A regulamentação dos agentes comunitários de cumpriu-se um importante papel na reorganização da saúde ocorreu em 10 de julho de 2002, de acordo com atenção básica pela forma de trabalho fundamentado a lei n.º 10.507, e o decreto n.º 3.189/99 que fixa as no conceito de área de cobertura e ações preventivas. diretrizes para o exercício da profissão e a portaria Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010 BASTOS, J.R.M.; SILVA, R.P.R.; XAVIER, A.; MERLINI, S.P.; PIMENTEL, T.F. • Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil GM/MS nº. 1.886/97 que estabelece suas atribuições assistência à comunidade, deslocando o cuidado para o (Levy, 2004). território onde vive a população adstrita. O objetivo deste estudo foi analisar o desenvolvi- Na região Centro-Oeste houve um aumento mento do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no número de agentes comunitários de saúde (ACS) (PACS) no país, o número e o percentual de municípios no período de 1998 a 2006, de 7.172 para 15.968 que contêm essas equipes e a população atendida por e uma pequena queda em 2007 chegando a 15.508, elas no período de 1998 a 2007. apresentando o Distrito Federal o menor número de ACS com 7.172 em 1998, queda em 2003 chegando a zero e terminando 2007 com uma melhora para 581 METODOLOGIA ACS. Já o Estado de Goiás se mostrou como o melhor número dessa região começando 1998 com 2.748 ACS e terminando 2008 com 7.190. Para o presente estudo foi realizada uma análise A região Nordeste é a que encontra o maior núme- descritiva com enfoque retrospectivo sobre o PACS, ro de ACS em todo o país, com 47.381 em 1998 com com abordagem quantitativa. O universo do estudo ampliação para 91.105 em 2006 e uma pequena queda foi composto pelas cinco regiões federativas do Brasil, em 2007, finalizando esse ano com 86.020. O Estado abrangendo os 27 Estados e o Distrito Federal. As de Sergipe foi onde se encontrou o menor número de informações utilizadas foram fornecidas pelo Departa- ACS com 3.283 em 2007 e a Bahia o maior número, mento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, no com 20.804 ACS ao término do mesmo período. período de 1998 a 2007, considerando o número de Na região Norte foi encontrado o Estado com o agentes comunitários de saúde, o número e percentual menor número de ACS de todo o país, Roraima, onde de municípios com agentes comunitários de saúde e o havia 70 agentes em 1998, com um significativo au- número e percentual de populações acompanhadas pelos mento, chegando em 2007 com 547 profissionais. Já no agentes comunitários de saúde. Estado do Pará há o maior número de ACS, tendo 5.796 Os dados foram reunidos em tabelas e separados por Estados e regiões do país, no período de 1998 a 2007 (Brasil, 2008). em 1998, chegando a um total de 11.206 em 2007. Considerando que os agentes comunitários de saúde são parte do elenco principal do Programa Saúde da Família, o trabalho do ACS proporciona um aumento do volume de tarefas e de responsabilidades, porém sem RESULTADOS E DISCUSSÃO que esses fatores sejam acompanhados por aumento salarial correspondente. Em três dos cinco municípios do interior do Estado da Bahia, os ACS recebiam o salário Número de agentes comunitários de saúde mínimo (Nunes, 2002). O agente comunitário de saúde é o ator que propor- A região Sudeste apresentou, em 1998, um total ciona a viabilização das políticas de saúde, e o seu trabalho de 7.324 ACS e 57.194 em 2007. O Estado dessa região ultrapassa o atendimento às necessidades da população, com o menor número foi o Espírito Santo com 4.941 e pois esse profissional se dedica a cuidar da comunidade e a o de maior número de ACS foi Minas Gerais com um pensar na saúde em sua concepção mais ampla, provendo total de 23.253 em 2007. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010 229 230 BASTOS, J.R.M.; SILVA, R.P.R.; XAVIER, A.; MERLINI, S.P.; PIMENTEL, T.F. • Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil Em Juiz de Fora, um município de porte médio do uma valorização profissional e pessoal, caracterizando-se sudeste de Minas Gerais, os agentes comunitários de saúde como uma nova categoria profissional, tendo um papel foram inseridos nas unidades básicas de saúde em 1999. Por de fundamental importância dentro da comunidade se tratar de uma cidade com características de morbimorta- onde está inserido o programa (Bachilli, 2008). lidade diferenciada da região nordestina e por se constituir em um polo regional de grande influência para a zona da mata mineira, acredita-se que o perfil dos ACS deva atender Percentual de municípios com agentes comunitários ao contexto complexo de um centro urbano. Atualmente, de saúde das 41 Unidades Básicas de Saúde existentes no município A região Centro-Oeste apresentou um aumento de de Juiz de Fora, 23 têm o PSF, totalizando 56 equipes e 294 38% no percentual de municípios com ACS no período agentes comunitários de saúde (Silva, 2008). de 1998 a 2007, perfazendo um total de 97% (452 mu- No Estado de Santa Catarina, na região Sul, foi nicípios) no final deste período. O Estado dessa região registrado, em 1998 e 1999, o menor número de agen- com maior percentual foi o Mato Grosso do Sul que tes com 342 e 2.273 respectivamente. Mas a partir de apresentou aumento de 29,9% de 1998 a 2004, redução 2000, o Estado do Rio Grande do Sul passou a ser o com de 1,3% em 2005 e terminando 2007 com 98,7% dos menor número de agentes (com 4.120), chegando em municípios com ACS, ou seja, 77 municípios. O Estado 2007 com 7.230. Já o Paraná foi o Estado com o maior que apresentou o menor percentual foi o Mato Grosso, número no período de 1998 ate 2007, tendo iniciado onde se verificou um aumento de 15,1% de 1998 a com 3.874 chegando a 10.514 em 2007. 2000, pequena redução de 0,02% em 2001, aumento A opção pelo trabalho de agente comunitário de 13% em 2002 e atingiu 100% dos municípios com caracteriza-se, não somente por ser uma alternativa ACS em 2005, portanto 141 municípios. Em 2007 ao desemprego, mas principalmente pela atitude de houve uma queda de 5,7%, finalizando com 94,3% presença na vida produtiva, que se lança em busca de (133) dos municípios com ACS (Gráfico 1). Gráfico 1 – Percentual de municípios com agentes comunitários de saúde entre 1998 e 2007 de acordo com o Ministério da Saúde Fonte: Ministério da Saúde, 2008. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010 BASTOS, J.R.M.; SILVA, R.P.R.; XAVIER, A.; MERLINI, S.P.; PIMENTEL, T.F. • Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil O PACS veio para inserir um olhar ativo da inter- período de 2002 a 2004 houve uma redução de 15,4%, venção em saúde, não esperar a demanda chegar para e em 2005 retomou-se o percentual de 100%; de 2005 intervir, e sim atuar preventivamente sobre a população, a 2007 verificou-se uma redução de 7,7% , finalizando representando um passo importante na redução da com 92,3% (48) dos municípios com ACS. morbimortalidade em comunidades que antes não eram atingidas pelos serviços de saúde (Fernandes, 1992). Em Rio Grande da Serra, SP, verificou-se que houve mudanças positivas na percepção das mulheres Na região Nordeste observou-se aumento de 21% e mães sobre aspectos de saúde bucal; esse fato é um entre 1998 e 2002 e em 2003 houve pequena redução importante indicador da importância do trabalho dos de 0,01%. No período de 2003 a 2006 houve novo agentes comunitários de saúde com relação à promo- aumento, terminando com 100% (1.793) dos municí- ção de saúde bucal, principalmente no que concerne pios com ACS; porém em 2007 apresentou queda de à superação de barreiras de comunicação entre profis- 1% finalizando com 99% (1.781) dos municípios com sionais e usuários. Apesar de este estudo ter avaliado o ACS. Os Estados dessa região que apresentaram maior impacto do PACS sobre os conhecimentos de saúde percentual de municípios com ACS foram Alagoas, bucal, adimite-se que houve mudanças em outras áreas, Ceará e Sergipe, os quais terminaram o período entre o que sugere repercussão na autoconfiança e capacidade 1998 e 2007 com 100% dos municípios com agentes para controlar determinantes do processo saúde-doença comunitários, ou seja, 102, 184 e 75 respectivamente. (Frazão, 2006). Os Estados com menor percentual foram Rio Grande do Na região Sudeste pode-se verificar um aumento Norte e Pernambuco, os quais finalizam o período entre de 50,2% entre 1998 a 2007, terminando o referido 1998 e 2007 com 98,8% dos municípios que possuíam período com 89% (1.487) dos municípios com ACS. O ACS, sendo 165 e 183 respectivamente. Estado dessa região que apresentou maior percentual foi A região Norte apresentou aumento de 29,6% o Espírito Santo que apresentou aumento no período de no período de 1998 a 2002; entre 2002 e 2004 houve 1998 a 2007 de 57,1%, terminando 2007 com 100% pequena redução de 4,9%. Em 2006 verificou-se novo (78) dos municípios com agentes comunitários de aumento de 5,5%, finalizando 2007 com uma pequena saúde. O Estado dessa região que apresentou o menor redução de 1,1%, totalizando 97,3% (437) de municí- percentual foi São Paulo, que no período de 1998 a 2007 pios com agentes comunitários. O Estado dessa região apresentou um aumento de 52,1% e finalizou o período com maior percentual de agentes comunitários foi o com 77,7% (501) dos municípios com ACS. Acre, onde entre os anos de 1998 e 1999 verificou-se Um estudo realizado no município de Itapirapuã um aumento de 36,4%; em 2000 observou-se pequena Paulista, no Vale do Paraíba, verificou melhorias signi- redução de 4,6% e a partir daquele ano até 2007 houve ficativas em indicadores de saúde ao longo de nove anos um aumento de 27,3%, perfazendo um total de 100% de estudo, melhorias estas que se intensificaram com a (22) dos municípios com ACS. O Estado pertencente a implementação do Programa de Agentes Comunitários essa região com o percentual mais baixo de municípios de Saúde (César, 2002). com agentes comunitários de saúde foi Rondônia, que Na região Sul, verificou-se um aumento de 46% entre 1998 e 2000 apresentou percentual de 100% (52), de 1998 a 2006 e em 2007 houve uma pequena queda em 2001 houve uma redução de 3,8%, e em seguida re- de 1% terminando o período com 93,3% (1.108) dos tornando a 100% de municípios com ACS em 2002. No municípios com ACS. O Estado dessa região com maior Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010 231 232 BASTOS, J.R.M.; SILVA, R.P.R.; XAVIER, A.; MERLINI, S.P.; PIMENTEL, T.F. • Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil percentual foi Santa Catarina, que de 1998 a 2003 apre- Percentual de População atendida pelos agentes sentou aumento de 87,7%; em 2004 apresentou pequena comunitários de saúde queda de 0,4% e em 2005 teve novo aumento de 0,4%. Na região centro-oeste houve um aumento do per- Em 2006 houve novo aumento de 0,7% e terminou centual de população atendida pelos ACS de 24,6% no 2007 com redução de 1,1%, totalizando 98,6% (289) de período de 1998 a 2005. Em 2006 houve uma pequena municípios com ACS. O Estado dessa região com menor queda de 0,4% e em 2007 verificou-se nova queda de percentual foi Rio Grande do Sul, onde no período entre 2,2%, finalizando com 59,1% (7.980.698) da popu- 1998 e 2004 apresentou aumento de 46,5%; em 2005 lação atendida pelos ACS. O Estado dessa região com houve queda de 2,2%; em 2006 aumento de 1,6% e maior percentual de população atendida pelos agentes finalizou 2007 com redução de 1% totalizando 87,7% comunitários de saúde foi Mato Grosso do Sul, que (435) de municípios com agentes comunitários. iniciou em 1998 com 43% (844.208) da população A expansão do programa de agentes comunitários de atendida, houve um aumento de 8,6% em 1999 e no saúde se deu tanto em áreas rurais como em grandes centros ano seguinte apresentou queda de 2,9%; no período de urbanos. Esse modelo foi implantado em áreas metropoli- 2000 a 2005 verificou-se novo aumento de 37,4% e, tanas, mantendo, entre seus pressupostos e estratégias de até 2007, apresentou redução de 1,8%, terminando o intervenções básicas, as perspectivas de ampliação do acesso período com 84,3% (1.981.923) de população atendida e de extensão de cobertura por serviços de saúde para parcelas pelos agentes comunitários de saúde. O Estado com específicas da população brasileira, de racionalidade técnica e menor percentual de população atendida foi Goiás, ini- econômica, de integralidade e humanização do atendimento, ciando 1998 com 31,6%, com aumento do percentual de participação popular; o estabelecimento de vínculos; e a até 2006 de 34,2%; finalizando em 2007 com redução criação de laços de compromisso e de corresponsabilidade en- de 4%, totalizando 61,8% (3.566.950) de população tre os profissionais de saúde e a população (Silva, 2002). atendida (Gráfico 2). Gráfico 2 – Percentual de população atendida pelos agentes comunitários de saúde entre 1998 e 2007de acordo com o Ministério da Saúde Fonte: Ministério da Saúde, 2008. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010 BASTOS, J.R.M.; SILVA, R.P.R.; XAVIER, A.; MERLINI, S.P.; PIMENTEL, T.F. • Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil Na região Nordeste verificou-se um aumento de de 12%; e em 2006, novo aumento de 8%; finalizando 27,5% de 1998 a 2006; e em 2007, redução de 3,6%, 2007 com uma redução de 11,4%, perfazendo um total perfazendo um total de 80,5% (41.965.367). O Estado de 69% (301.720). dessa região com maior percentagem de população aten- No Sudeste, houve um aumento gradativo no pe- dida pelos ACS foi Piauí que iniciou 1998 com 44,2% ríodo de 1998 a 2006 de 33,8%; e em 2007, pequena (1.190.394); no período de 1998 a 2006 verificou-se redução de 0,9%, totalizando 39% (31.048.341) de aumento de 55,4% e em 2007 verificou-se pequena população atendida pelos ACS. O Estado dessa região redução de 2,6% totalizando 97% (2.994.125). O Es- com o maior percentual foi o Espírito Santo, que iniciou tado do Ceará foi o que apresentou menor percentual 1998 com 12,3% (351.786); no período de 1998 a 2006 de população atendida, onde no período de 1998 a apresentou um aumento de 60,2% e em 2007 verificou- 2000 houve um aumento de 12,9%, pequena redução se redução de 3,2%, finalizando o referido período com em 2001 de 1,1% e até 2003, pequeno aumento de 69,3% (2.407.006). São Paulo foi o Estado com menor 1,3%; no período de 2003 a 2007 verificou-se redução percentual, onde em 1998 havia 3,1% (1.084.350) de de 3,3%, finalizando-o com 67% (5.517.524) de po- população atendida pelos ACS; no período de 1998 a pulação atendida. 2006, apresentou aumento de 25,3%; e em 2007, pe- Em 1992, o PACS foi implantado no município de Itabuna, localizado no litoral sul do Estado da Bahia, a quena redução de 0,3%, finalizando o ano com 28,1% (11.546.820). 429 km da capital, com 584 km e população estimada A região Sul do Brasil apresentou aumento no em 210.604 habitantes. O programa cobre 55,6% dessa período entre 1998 e 2006 de 38,4% e em 2007 população com 310 ACS e 24.436 famílias cadastra- verificou-se pequena redução de 2,8%, finalizando das. O PSF foi implantado no município em 2001 e aquele ano com 50,9% (13.921.249) de população atualmente conta com 18 equipes de saúde da família atendida. Santa Catarina foi o Estado dessa região com (Ferreria, 2009). maior percentual de municípios com ACS, onde em 2 A região Norte apresentou um aumento de 35,6% 1998 havia 3,9% (194.693) de população atendida; no no período de 1998 a 2002; em 2004 verificou-se período entre 1998 e 2005 houve aumento de 75,2%; redução de 2,5%; novo aumento em 2005 de 2,9% em 2006, pequena redução de 0,1%, finalizando 2007 e em 2007 redução de 6,2%, terminando o período com 76% (4.530.273) de população atendida. O Estado com 77,3% (12.045.854) de população atendida pelos com menor percentual foi o Rio grande do Sul, o qual ACS. O Estado de Tocantins foi o que apresentou maior no período entre 1998 e 2006 apresentou elevação de percentual de população atendida, sendo que em 1998 23,7% e no ano de 2007 diminuição de 2%, totalizando verificou-se 67,7% (731.615), em 2003 houve um au- 34,7% (3.812.405). mento de 32,1%, pequena redução de 0,9% em 2005; Um estudo feito em Porto Alegre, em 2000, ava- novo aumento de 0,8% em 2006, terminando 2007 com liou que o PSF contava com 114 agentes comunitários redução de 1,4%, totalizando 98,3% (1.360.389). O de saúde, sendo em sua maioria mulheres entre 30 e 49 Estado dessa região com menor percentual de população anos de idade (71%). Do total, 73% eram moradoras a atendida foi Roraima, que apresentou 15,8% (40.250) mais de 10 anos da comunidade em que trabalhavam, em 1998; no período de 1998 a 2002 houve um au- sendo que o tempo de permanência no PSF também era mento de 68,6%; em 2004 verificou-se uma redução alto. A principal atividade realizada era a visita domiciliar Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010 233 234 BASTOS, J.R.M.; SILVA, R.P.R.; XAVIER, A.; MERLINI, S.P.; PIMENTEL, T.F. e a educação em saúde, com orientações sobre higiene, • Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil R E F E R Ê N C I A S calendário vacinal, cuidados com recém-nascidos, gestantes e uso correto de medicações (Ferraz, 2005). Uma pesquisa feita em Florianópolis, Santa Catarina, entre 1994 e 2000, observou que o PSF gerou avanços na prevenção, na consciência sanitária e na realização de visitas domiciliares, sendo o trabalho do agente citado como um grande fator de mudança nesse sentido. A relação equipes/famílias cadastradas é superior ao previsto em todos os postos. As visitas são feitas principalmente pelos agentes; os marcadores de processo e resultado mostram acompanhamento adequado de diabéticos, hipertensos, gestantes e crianças, situando-se acima dos 80% dos cadastrados em todas as equipes (Conill, 2002). CONSIDERAÇÕES FINAIS Fundamentando-se nos resultados apresentados, foi possível verificar a disseminação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde em todas as regiões do país, iniciada com maior amplitude nos Estados do Norte e Nordeste, onde havia as maiores carências assistenciais e de promoção de saúde. Posteriormente, esse crescimento se estendeu para as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, onde persistiam iniquidades no acesso aos serviços de saúde. Os agentes comunitários de saúde são atores de fundamental importância dentro do atual panorama de saúde da população visto que conhecem a realidade da comunidade onde atuam, pois fazem parte dela, conhecem suas crenças, sua linguagem, e suas dificuldades. Esses profissionais também representam uma possibilidade de trazer para as equipes de saúde o olhar da população, o qual revela necessidades de um ponto de vista diferente e que, portanto, abre as portas para um novo universo de intervenção. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010 Ávila, M.M.M. O programa de agentes comunitários de saúde no Ceará: o caso de Uruburetama. Disponível em: http://www.abrasco.org.br/cienciaesaudecoletiva/artigos/artigo_int.php?id_artigo=1318. Acesso em: 24 ago. 2008. Bachilli, R.G.; Scavassa A.J.; Spiri, W.C. A identidade do agente comunitário de saúde: uma abordagem fenomenológica. Revista Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 51-60, 2008. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Secretaria de Atenção à Saúde. Consolidado Histórico de Cobertura da Saúde Família, 2008. Disponível em: www. saude.gov.br/dab. Acesso em: 17 Abr. 2008. ______. Diretriz Conceitual. 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A Reforma do Sistema de Saúde no Brasil e o Programa Saúde da Família. Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, 2005. Recebido: Janeiro/2009 Aprovado: Março/2010 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010 235 236 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Doença crônica: comparando experiências familiares * Chronic disease: comparing familial experiences Noeli Marchioro Liston Andrade Ferreira 1 Giselle Dupas 2 Carmem Lúcia Alves Filizola 3 Sofia Cristina Iost Pavarini 4 Enfermeira; Professora-associada do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). [email protected] RESUMO A pesquisa teve como objetivo compreender a experiência da família Enfermeira; Professora-associada do Departamento de Enfermagem da UFSCar. [email protected] semelhantes nas famílias, embora haja diferenças na percepção inicial. A vivência Enfermeira; Professora-associada do Departamento de Enfermagem da UFSCar. [email protected] e acionando recursos sociais e de apoio. Compreender o processo vivido pela família Enfermeira; Professora-associada do Departamento de Enfermagem da UFSCar. [email protected] Doença crônica. 1 2 3 4 que possui um membro com doença crônica. Foram feitas entrevistas com díades familiares de: crianças com doença crônica, adultos alcoolistas, adultos com câncer e idosos com demência. A convivência com a doença crônica gera sofrimentos da família ocorre num processo em que, após um período de adaptação, há várias mudanças na estrutura e funcionamento familiar, levando a uma nova dinâmica contribui para a implantação de políticas públicas e planejamento do cuidado. PALAVRAS-CHAVE: Família; Enfermagem de família; Enfermagem; Cuidado; ABSTRACT This study sought to understand the experience of the family with a carrier of chronic disease. Interviews were conducted with relatives of: children with chronic disease, alcoholic adults, adults with cancer and elderly with dementia. Coexisting with chronic disease generates similar afflictions in families. Although, at first impression, differences occur, the experience takes place through a process in which, after an adjustment period, there are several changes in the structure and behavior of the families experiencing a new dynamic in mobilizing social and supportive resources. Understanding the process that a family faces with chronic disease contributes to implementing public policies and care plans. KEYWORDS: Family; Family nursing; Nursing; Caring; Chronic disease. Parte da pesquisa sobre Família e Demanda de Cuidados, Edital Universal CNPq. * Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010 FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I. I N T R O D U ç ão • Doença crônica: comparando experiências familiares da família, permitindo seu desenvolvimento como um sistema (Duarte, 2001). A mudança do perfil demográfico e epidemiológi- O conceito da família contemporânea envolve, co da população e do paradigma de assistência à saúde além da arquitetura, a relação entre seus membros. A tem levado ao retorno da família à agenda do cuidado à família pode ser entendida como: pessoas aparentadas saúde e, a partir de seu reconhecimento como unidade que vivem, em geral, na mesma casa, particularmente de cuidado, passa a ser objeto de atenção, devendo ser o pai, a mãe e os filhos; pessoas do mesmo sangue ou compreendida no contexto em que se insere. ainda origem, ascendência (Houaiss, 2004). Entende- Somando-se a essa dimensão, deve-se entender se que, hoje, a família pode ser constituída de várias que as relações entre famílias e serviços de saúde estão formas: famílias unigeracionais, famílias multigeracio- inseridas em um conjunto de determinações sociais, nais, famílias compostas por pessoas jovens, famílias políticas e econômicas e que somente a intervenção e constituídas por casais heterossexuais ou homossexuais, recuperação do corpo biológico não têm respondido famílias monoparentais, entre outros (Anderson, 2000; plenamente às necessidades de saúde (Rocha; Nasci- Elsen; Marcon; Silva, 2002; Friedman; Bowden; mento; Lima, 2002). Jones, 2003). Diante desse contexto, há uma necessidade de Outros autores enfocam modelos diversificados de buscar um novo paradigma de cuidado: olhar a família formação da família que não sejam apenas pela união de e seu funcionamento através da interação de seus mem- um casal, como exemplos, mulheres que engravidam e bros e sua interação com a comunidade e o meio em continuam a viver com seus pais, casais homossexuais que se vive. Assim, torna-se mister apreender a família e outros que iniciam essa nova configuração familiar como um sistema, diagnosticar seus problemas de saúde, distinta ou ampliada (Cerveny; Berthoud, 1997). Há, os recursos para enfrentar os problemas e os suportes ainda, aquelas compreendidas a partir da indicação dos comunitários disponíveis para a construção do seu bem- seus membros por um familiar, mesmo sem laços de estar e qualidade de vida. parentesco, “a família que considero família” (Wright; Leahey, 2002). Essa perspectiva considera, ainda, a estrutura familiar, sua função e as variáveis de saúde, incorporando As definições de família geralmente abrangem: os aspectos biológicos, psíquicos, sociais e contextuais, interação, compromisso e afetividade. O laço sanguíneo vendo-a como uma unidade de cuidado (Wright; não é mais importante que a concepção que cada pessoa Leahey, 2002; Rocha; Nascimento; Lima, 2002; tem sobre família e a dinâmica das relações construídas Bomar, 2004). ao longo da história de vida da família (Duarte; Diogo, 2000). O enfermeiro, ao interagir com a família em um momento de crise, de doença crônica, depara-se com a A família é o núcleo de reprodução, de socialização, experiência de vulnerabilidade desta e precisa compre- de controle social e de cuidados ou ainda uma formação ender como a família vivencia a situação, o que faz com humana universal, sendo que ainda não foi criada outra que ela se sinta mais vulnerável, e em que situações, e formação capaz de substituí-la (Pinto, 1997). Está em quais estratégias utiliza para lidar com a situação. contínuo processo de transformação e mudança, que é o O conceito de vulnerabilidade busca avaliar a responsável pela evolução da capacidade de crescimento suscetibilidade de indivíduos ou grupos a um deter- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010 237 238 FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I. • Doença crônica: comparando experiências familiares minado agravo à saúde, e a elaborar indicadores para a um de seus membros. Utilizamos o Interacionismo avaliar em que medida a pessoa está suscetível, consi- Simbólico (IS) (Blummer, 1969; Charon, 1995) como derando três planos interdependentes de determinação referencial teórico e os passos iniciais da Teoria fundamen- da vulnerabilidade, ou seja, individual, programática tada nos Dados (TFD) como referencial metodológico e social (Pettengill; Ângelo, 2005). (Glaser; Strauss, 1967; Chenitz; Swanson, 1986). A doença crônica é o tipo de enfermidade que O interacionismo simbólico (IS) é uma teoria das tem como característica ser de longo curso, podendo ser relações humanas que considera que o ser humano vai incurável, deixar sequelas e impor limitações às funções interagir, interpretar, definir e agir no seu cotidiano do indivíduo, requerendo adaptações (Vieira; Lima, de acordo com o significado que ele atribui à situação 2002). Ela pode estar relacionada à disfunção de órgãos, a vivenciada (Blummer, 1969). A teoria fundamentada deficiências de funções, como a cegueira, a disfunções do nos dados (TFD) tem seus fundamentos na perspectiva aprendizado e neurológicas, como as paralisias cerebrais teórica do Interacionismo Simbólico. É um método de ou as doenças mentais (Castro; Piccinini, 2002). pesquisa que visa a formular novos conceitos e teorias O portador de doença crônica enfrenta alterações a partir dos dados levantados sobre o aspecto subjetivo no seu estilo de vida provocadas pela doença em si e pela das experiências sociais da pessoa. A coleta e análise recorrência de internações hospitalares. Este fato é com- dos dados acontecem concomitantemente através de partilhado pela família que o segue dia-a-dia, tanto no um método comparativo constante (Glaser; Strauss, domicílio como nas internações (Silva et al., 2002) 1967). Nesta pesquisa, realizamos os passos iniciais deste A família que convive com o familiar com doen- método, o que é possível, visto que esse referencial per- ça crônica compartilha perdas, limitações e cuidados, mite parar em seus passos iniciais (Chenitz; Swanson, sofrendo abalos no ciclo familiar, mudando papéis e 1986). Portanto, não chegamos ao modelo teórico. funções e se reorganizando para adaptar-se e prestar auxílio (Messa, 2007). Sujeitos Foram sujeitos do estudo as famílias que tiverem OBJETIVO como fato evidenciado: idoso com demência (n=6), adulto alcoolista (n=5), adulto oncológico (n=5) e criança com doença crônica (n=8), totalizando 24 famílias. Compreender a vivência com a doença crônica O total de pessoas consideradas pelos casos-índice nas famílias de crianças portadoras, adultos com câncer, como família foi de 182 pessoas, sendo 95% parentes. adultos alcoolistas e idosos com demência. A média de membros por família foi 7,6, sendo que a família com maior número de membros pertencia ao grupo de adultos oncológicos, com 20 membros, MÉTODO e a família com menor número de membros foi uma família de idoso com demência, apenas dois membros. Os núcleos familiares possuíam de dois a quatro filhos, Baseamo-nos nos pressupostos do método qualitativo para a compreensão da vivência da família no cuidado Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010 sendo que 46% delas possuíam dois filhos e apenas uma não tinha filhos. FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I. Dos membros familiares, foram entrevistados apenas os que moravam na mesma residência que o caso- • Doença crônica: comparando experiências familiares buscando-se compreender aproximações e diferenciações entre elas. índice e aceitaram participar da pesquisa, totalizando 84 pessoas (47%). Um total de 18% dos entrevistados possuíam ensino médio completo seguidos de 17% com ensino fundamental. De toda a mostra, 60% referiram ser católicos e 10% evangélicos. Procedimentos éticos Todos os cuidados éticos que regem pesquisas com seres humanos foram tomados no desenvolvimento desta Dos entrevistados, 33% mantinham emprego re- pesquisa. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética munerado e 14% eram aposentados. Um total de 11% em Pesquisa da UFSCar, Processo nº 0001.0.135.000- necessitaram abandonar o emprego em consequência da 06, Parecer nº 077/2006. doença. A renda de 40% dos entrevistados girava em torno de um e três salários mínimos, 33% entre três e cinco salários mínimos e 23% recebiam até um salário mínimo. RESULTADOS Da amostra, 52% das pessoas destinavam parte da sua renda à pessoa doente, sendo que oito delas destinavam 20% da sua renda, e 47% referiram dificuldades para Compreender o processo de doença no contexto destinar sua renda ao cuidado da pessoa doente. Uma familiar é uma tarefa complexa por se tratar de vários das famílias mencionou destinar 80% da sua renda para a indivíduos com características peculiares que interagem pessoa doente e 25% dos entrevistados consideraram sua dentro de uma instituição – a família – e por se vivenciar renda inadequada para os gastos com a doença. um processo de instabilidade e conflitos acarretados pela doença. É necessário investigar a trajetória da doença e suas implicações inter e intrafamiliares. Nesse sentido, Coleta e análise dos dados o presente trabalho, por meio da análise de entrevistas Os dados foram coletados no domicílio das fa- com famílias que enfrentam doença crônica, traz ao mílias, com agendamento prévio. Foi realizada uma corpo científico a experiência familiar no processo de entrevista semiestruturada, que teve como questão adoecimento. norteadora “Como tem sido para vocês a experiência de Dentre as famílias estudadas, a maioria não tem vivenciar a situação de doença crônica na família?” As conhecimento sobre a doença que atinge seus parentes. entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas A expectativa e preocupação sobre o estado de saúde do na íntegra. familiar e as mudanças na vida diária constituem uma Os dados foram analisados seguindo-se os passos fase de muitas dificuldades por ocasião da descoberta da da TFD para cada um dos grupos de sujeitos (idoso doença. Receber o diagnóstico de uma doença crônica com demência, alcoolista, adulto com câncer e criança com a qual terão de conviver por uma longa jornada é com doença crônica). Estabelecidas as categorias con- preocupante. Assim, a categoria ‘descobrindo a doença’ ceituais de cada um dos grupos, procedeu-se à análise trouxe algumas semelhanças e diferenças na forma como comparativa entre elas. as famílias reagem. Este artigo traz uma discussão acerca das vivências A princípio, as famílias do idoso com demência das famílias em diferentes quadros de doença crônica, e do alcoolista têm uma percepção do problema de Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010 239 240 FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I. • Doença crônica: comparando experiências familiares forma mais gradativa, como se não fosse uma doença, associa os primeiros sinais e sintomas a uma doença sem, e não dão muita importância ao fato. As nuances da contudo, imaginar que não há cura. Preocupam-se em doença vão sendo percebidas aos poucos. A demência demasia, ‘suspeitando da doença’ e temendo o diagnós- acaba sendo confundida com o processo natural do tico. Porém, às vezes atribuem os sinais e sintomas às envelhecimento, pois, para o senso comum, o idoso características individuais, próprias da criança. Diante apresenta falhas de memória. Os familiares denomi- da situação da criança, as famílias percorrem vários nam os primeiros sintomas de ‘esclerose’. Muitas vezes, caminhos para saber ao certo o que está ocorrendo. A o problema é percebido anos depois, por acreditarem criança é submetida a uma série de exames diagnósticos, que se tratava de uma ‘consequência do tempo’. Alguns consultas médicas e internações hospitalares para chegar autores apontam a dificuldade do diagnóstico precoce ao diagnóstico. Alguns autores concordam que o início dos casos de demência, em função de serem muitas vezes da doença crônica na criança parece ser mais sofrido do confundidos pelos familiares com o próprio processo de que para as demais famílias (Damião; Ângelo, 2001; envelhecimento (Forlenza; Caramelli, 2000; Botti- Nunes; Dupas, 2004). no; Lacks; Blay, 2006). Nos adultos crônicos, a família, após vários exames A família do alcoolista percebe o uso de álcool e consultas aos especialistas, acabam ‘descobrindo o cân- como um problema de interação social e que, portanto, cer’ de que, muitas vezes, nem se suspeitava, já que os não traz preocupação, e passam por uma fase inicial sinais e sintomas iniciais não diferem de outras doenças longa – ‘negando o alcoolismo’ – na qual nem o usu- agudas. Também eles percorrem um longo caminho até ário nem as famílias admitem que o alcoolismo é uma a definição do quadro, e o momento da confirmação do doença. Não relacionam o uso ou abuso do álcool às diagnóstico é sempre muito difícil para as famílias dada a dificuldades enfrentadas no lar, buscando outras justi- conotação de doença com poucas possibilidades de cura ficativas para os problemas, sem reconhecer que seu uso (Ferreira; De Chico; Hayashi, 2004). implica prejuízos para a família. Os familiares viven- No entanto, a partir do momento que o problema ciam e percebem a existência de problemas e situações é caracterizado como doença de fato, todas as famílias constrangedoras, no entanto, não identificam a fonte seguem semelhantes percursos no processo de mobilização destas adversidades, justificando-as como decorrentes em busca entendimento acerca do que está ocorrendo das de fatores externos. Quando começam a relacionar o alternativas e recursos para esclarecer as inúmeras dúvidas alcoolismo com as dificuldades enfrentadas, procuram e medos que passam a vivenciar. As incertezas e perspec- as causas e, ao mesmo tempo, buscam formas e saídas tivas a respeito do curso da enfermidade transformam-se negando o alcoolismo como doença e relacionando-o à em ansiedade, que se dá em maior ou menor grau para irresponsabilidade, ausência de autocontrole e atitude cada membro da família. De acordo com a enfermidade, proposital do familiar. Estes dados são corroborados por vão ‘ocorrendo mudanças’ na dinâmica familiar e no outros autores (Rossato; Zuze, 2000). ambiente domiciliar para o ‘enfrentamento da doença’ Nas famílias com criança e adulto com câncer, e das dificuldades encontradas, como alterações nos re- ocorre um processo um pouco diferente. Geralmente, lacionamentos dentro e fora da família e adaptações na a família não está preparada para o adoecimento da utilização dos recursos financeiros. criança, já que a tem como um ser frágil, pequeno e, Segundo o relato das famílias estudadas, elas pas- ao mesmo tempo, cheio de vida e saúde. Geralmente, sam por um período em que vivem a dicotomia entre Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010 FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I. • Doença crônica: comparando experiências familiares aproximação e afastamento em maior ou menor grau, reconhecer o ambiente e faz confusão entre as pessoas dependendo do fator causador da doença, do sujeito do seu convívio atual e passado. Muitos apresentam atingido e do tipo e qualidade das relações com cada episódios de agitação, o que acarreta situações bastante um dos seus membros. desgastantes para si próprios, familiares e profissionais. Nas famílias dos alcoolistas, a harmonia do lar des- Recusam-se a fazer certas atividades, irritam-se, ficam morona e os familiares passam a ‘enfrentar conflitos’. As com raiva, tornam-se violentos e brigam. Perseguições, relações de afeto ficam comprometidas por consequência relatos de visões e o comportamento ‘sombra’ de seguir das discussões, desentendimentos e agressões verbais, o cuidador a qualquer lugar são as principais fontes de físicas e psicológicas. Os episódios de violência apresen- estresse. O medo e a insegurança de permanecer sozi- tam-se com mais intensidade e frequência, resultando nhos justificam as alucinações e delírios. A evolução em traumas nos membros da família e consequente progressiva da dependência do idoso com demência afeta fragilização dos vínculos. A instituição familiar adoece e modifica o estilo e rotina de sua própria vida, da vida e várias mudanças no ambiente ocorrem. Inúmeros de todos os familiares e dos cuidadores. Estudos com sentimentos são gerados e a imagem que o familiar do- familiares apontam problemas decorrentes da evolução ente tinha frente à família e à comunidade se altera. O da doença, destacando-se o estresse do cuidador, espe- doente passa a não ser ouvido nas tomadas de decisões cialmente decorrente das alterações comportamentais na da conjuntura familiar. A família, portanto, deixa de fase intermediária da doença (Caldas, 2002; Luzardo; respeitá-lo porque caracteriza seu comportamento como Gorini; Silva, 2006). algo que poderia ser evitado, rotulando-o como culpado A família da criança e do adulto crônico depara- pela situação. Ele, por sua vez, fica desacreditado, perde se com a necessidade de se submeter ao tratamento e a o respeito da família e da sociedade, sendo excluído uma infinidade de procedimentos, restrições, condutas do planejamento, das programações e da vida social. e formas de comportamentos desconhecidas ou não Como mostram outros autores, as famílias vivenciam praticadas até então. Vê-se obrigada a frequentar outros sentimentos negativos como medo, desespero, angústia, espaços, como consultórios médicos, ambulatórios e tristeza, mágoa, vergonha, frustração e revolta (Rossato; até mesmo serviços de saúde de outros municípios. O Zuze, 2000). processo vivenciado com a doença leva a caminhos al- A família do idoso com demência também passa gumas vezes longos, difíceis e imprevisíveis. Há ocasiões por sofrimento quando ‘percebem as diferentes fases da em que a família perde o domínio da situação, surgem doença’ e se dão conta de que se trata de um problema dúvidas e angústias devido às ocorrências inesperadas e crônico, degenerativo cuja demanda por cuidados só conflitantes, como internação de emergência, agrava- tende a aumentar, sendo muitas vezes unidirecional. A mento no quadro clínico ou troca dos profissionais de perda de memória recente é a característica marcante no saúde responsáveis pelo cuidado. A rotina do doente e princípio porque é a primeira função intelectual atin- de sua família passa a ser regida por exames, interna- gida. Com a progressão da doença, há um declínio das ções e deslocamentos que demandam uma organização habilidades mentais e físicas, surgem alterações do com- e readequações diárias. Todas as potencialidades são portamento e desorientação têmporo-espacial, alterações direcionadas para a manutenção do melhor tratamento do sono-vigília e da capacidade de reconhecer pessoas. O e do bem-estar do doente, mesmo que para isso seja ne- idoso também expressa vontade de ir para casa por não cessário abrir mão das próprias necessidades e abdicar de Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010 241 242 FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I. • Doença crônica: comparando experiências familiares vários planos em prol do bem-estar do familiar doente despesas contínuas e ajustes no orçamento das famí- e dos laços que os unem. Encontramos, na literatura, lias. A falta de recursos materiais e/ou financeiros para ressonância com esses dados (Collet; Rocha, 2003; enfrentar a doença interfere no controle terapêutico. Furtado; Lima, 2003; Bilemann, 2003; Contin; Para algumas famílias, representa mais do que isso: fica Chaud; Fonseca, 2005). comprometida a subsistência. Portanto, a alocação da A convivência com um familiar com doença renda familiar à terapêutica também depende do grau crônica gera muito sofrimento para todas as famílias de interação e ligação entre o doente e os membros e estudadas. O prognóstico gera estresse para a maioria da aceitação do problema como doença. Na família da dos familiares. É um novo cenário que as famílias passam criança, boa parte dos recursos financeiros passa a ser a vivenciar. ‘Sofrer com a doença’ e com suas conse- direcionada ao tratamento, e a família passa a fazer tudo quências é uma experiência vivenciada pela maioria das o que é possível para atender às necessidades da criança. famílias pesquisadas. A necessidade e tentativa de fazer O tratamento do doente com câncer, por sua vez, pos- tudo o que é possível e de envolver todos os membros da sui característica de ser altamente oneroso, tanto que, família no cuidado não se apresenta da mesma maneira mesmo sendo oferecido pela rede pública, consome as em todas os casos. Na família da criança, esse cuidado economias da família, levando inclusive à necessidade de e envolvimento parecem mais naturais e espontâneos. buscar ajuda de demais familiares, amigos, instituições Na família dos adultos com câncer, com o passar do civis e voluntárias, e não raro recorre-se a empréstimos. tempo, vai havendo um desgaste natural na medida em As famílias dos idosos com demência e dos alcoolistas que a situação clínica do doente vai se deteriorando. não mencionam o aspecto financeiro. Para a família do idoso com demência, o cuidado em Com relação ao convívio social, a maioria das geral é centrado em um membro da família que passa a famílias acaba por se isolar, evitando eventos sociais, assumir a maior parte do cuidado. Além de nem todos como festas, encontros familiares e reuniões com ami- ajudarem, há outros problemas familiares como finan- gos, igreja, entre outros, para evitar situações de tristeza, ceiros, de saúde, de relacionamento que, somados ao constrangimento e sentimentos de vergonha, raiva e cuidado do idoso, exigem grande esforço e dedicação, humilhação. Por diferentes razões, a dificuldade no sobrecarregando ainda mais o cuidador. Segundo o re- convívio social ocorreu para todos os entrevistados. Para lato de alguns familiares, se todos ajudassem, o cuidado os familiares do alcoolista, há o agravo dos frequentes poderia tornar-se mais leve. Todavia, para a família do comportamentos agressivos e desmedidos nos eventos alcoolista, o entrosamento e aceitação são mais demo- sociais que causam desconforto a todos os presentes. As rados e difíceis devido ao comportamento do paciente alterações de comportamento do idoso com demência, que, em diversas experiências anteriores, ocasionaram a ocorrência de alucinações e delírios e a perda da capa- transtornos. Tais lembranças, juntamente com a mágoa cidade de julgamento são motivos de constrangimento frente às agressões, pesam muito na aceitação e colabo- para a família. Já com a criança, a família se isola a fim ração, principalmente dos filhos. de protegê-la do sofrimento por não poder vivenciar Os resultados apontam que, além de terem de algumas situações, como diversão e alimentação com lidar com as imensas demandas que a doença acarreta, as demais crianças. Na família do doente com câncer, as famílias têm ainda que enfrentar privações financeiras o isolamento se deve ao estigma em relação à doença na garantia do tratamento do doente, o que representa (Quintana et al.,1999). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010 FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I. • Doença crônica: comparando experiências familiares Sem dúvida, a necessidade de adaptarem-se à nova o aparecimento de situações inesperadas – internações realidade e rotina de vida se mostra presente e essencial emergenciais, troca de profissionais e terapêuticas e agra- para todas as famílias. Elas vivenciam isto ‘criando es- vamento da doença. No idoso, os novos sinais e sintomas tratégias de enfrentamento’. Surge aí a necessidade de indicando a progressão das fases da doença fazem com tratar a família em conjunto com o doente porque todos que o cuidador sinta-se sem saber o que fazer. Observa-se cointeragem com um mesmo propósito e não medem que, apesar de saber o prognóstico e rumo da doença, esforços para restabelecer o estado de saúde. A aceita- considera-se muito difícil vivenciar o temido e inevitável, ção da doença advém do aumento do conhecimento pois têm a consciência de seu significado: tudo tende a e domínio das situações, levando a família a se sentir piorar. No alcoolista, conviver com as recaídas e crises mais segura e confiante uma vez ciente das variadas é desolador. Quando tudo parece estar bem, ele retorna implicações e especificidades da doença. No processo de ao uso do álcool, o que traz grande sofrimento a todos vivenciar a doença, mostra-se de extrema importância os membros da família. Estes momentos de fraqueza e o conhecimento a respeito, que é apreendido junto aos derrota trazem à tona lembranças do passado e incertezas profissionais da saúde, na troca de experiências com ou- quanto ao futuro. tros familiares nos grupos de atendimento aos familiares, É inevitável a percepção do sentimento de impo- no caso dos idosos e crianças, e de grupos de autoajuda tência frente ao problema, e um período de adaptação para familiares de alcoolistas. parece necessário para as famílias. Para enfrentar as Os familiares, pouco a pouco, aprendem a conhe- recaídas, superar os obstáculos e prosseguir lutando, cer as reações do doente e os sinais que indicam o seu as famílias continuam recorrendo a outras estratégias estado, facilitando o enfrentamento das situações. Na de enfrentamento. Tornam-se criativas. Na família dos família do alcoolista, os principais sinais são de inquie- idosos, os familiares tentam de várias formas: aprendem tação, agressividade, descontrole, falas desconexas, entre a pedir ajuda; adaptam ambientes; vão lidando com as outros. Na família do idoso, sintomas como alucinações, novas demandas de cuidado que surgem, sabendo que alteração de memória e alterações de comportamento a doença é crônica e degenerativa. são frequentes. Na criança, a família observa os sinais e A família se vê despreparada, com limitações e di- sintomas atentando para a alteração no seu estado emo- ficuldades para dar continuidade ao cuidado. A sensação cional, quieto ou agitado, porque também já aprendeu de não saber o que fazer e como proceder frente às novas a compreendê-la. No adulto com câncer, ocorre a piora e inesperadas situações causa sobrecarga. Os familiares do quadro clínico. sentem-se nervosos, ansiosos e incapazes. É então que Todos os familiares se conscientizam da importân- cada família vai em busca de auxílio, encontrando-o cia de saber o curso da doença e o que gira em torno nos recursos da comunidade, nos grupos, no apoio da da terapêutica, mas chega o momento em que é preciso família e na religiosidade. ‘lidar com as limitações’. A doença impõe seus limites e Com relação ao apoio social, a família da criança é necessário à família se adaptar às suas imposições. Essa relatou receber apoio dos vários suportes da sociedade, vivência torna-se mais árdua ou mais leve à medida que o que permitiu a eles atravessarem esse momento com a família se torna capaz ou não de exercer o controle so- maior tranquilidade. Esses recursos advêm de outros bre a situação, passando por momentos de turbulência. familiares, amigos, vizinhos, profissionais de saúde, No caso das crianças, estes momentos acontecem com serviços de saúde, entidades governamentais e religiosas. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010 243 244 FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I. A família do alcoolista, ao ‘buscar ajuda’, encontra apoio • Doença crônica: comparando experiências familiares CONSIDERAÇÕES FINAIS nos grupos de autoajuda, onde várias famílias vivenciam problemas semelhantes. Os membros da família percebem a necessidade de se manterem unidos para Os relatos dos familiares das crianças com doença que se fortaleçam e, assim, consigam apoiar o familiar crônica, dos adultos com câncer, dos alcoolistas e dos e enfrentar as dificuldades. A colaboração dos grupos idosos com demência mostram que o processo de vi- Alcoólicos Anônimos (AA), AL-Anon e Alateen, fazem- venciar uma doença crônica abarca semelhanças entre na perceber que não esta só, e a estimula a frequentá-los as famílias, embora ocorram peculiaridades relacionadas para obter mais uma fonte de ajuda e, por conseguinte, às características da doença e ao tipo de família. ser uma fonte de apoio intra e interfamiliar. Na incerteza da nova jornada, as famílias das A família do idoso sente necessidade de uma rede crianças com doença crônica, dos adultos com câncer de cuidados. Os cuidadores percebem suas limitações e e dos idosos com demência, ao reconhecerem que algo sobrecarga. O conforto vem no sentido de não se deixar anormal está ocorrendo com a saúde de seu familiar, entregar à desilusão e ao pessimismo. Interiorizam a umas mais rápidas que outras, iniciam um trajeto a ideia de que estão fazendo todo o possível para melhorar fim de compreender o que está acontecendo e buscar a qualidade de vida do idoso. Acreditam que realizar o a cura. Com as famílias dos alcoolistas, no entanto, bem e cuidar do seu ente querido trará uma recompensa ocorre uma negação da doença e, portanto, não há divina e uma condição de consciência tranquila para con- busca pela cura. tinuar seguindo no cuidado. Segundo alguns autores, na As famílias das crianças com doença crônica, dos cultura brasileira, o cuidado ao idoso fragilizado em geral adultos com câncer e dos idosos com demência, ao é realizado pela família e, na escolha do cuidador familiar constatarem o diagnóstico de uma doença crônico- do idoso, levam-se em conta vários aspectos culturais, degenerativa, vivenciam inúmeras incertezas e expecta- como o grau de parentesco (filhos), o gênero (mulher) e tivas sobre a evolução da doença, o seu prognóstico e as a proximidade física entre eles (morar perto), e o cuidado possíveis intercorrências que surgem durante o seu curso. ao idoso é visto, em muitas famílias brasileiras, como uma Esses fatores são responsáveis pela mudança radical de obrigação filial (Santos; Rifiotis, 2003). suas vidas para enfrentar os desafios e se readaptar a Na convivência com a doença, as famílias viven- outras possibilidades de projetar o cuidado, passando a ciam um aumento gradativo dos problemas e, quando vivenciar uma nova dinâmica familiar. Há uma deses- se tornam demasiadamente pesados, recorrem à fé, às truturação da rotina e estilo de vida familiar, mudanças orações e práticas religiosas. Anseiam por auxílio para nos vínculos e relacionamentos entre os membros. superar os momentos difíceis e alimentam a possibilidade de concretizar o milagre da cura. As formas de enfrentamento são muito particulares e dependem do contexto de cada família. Há a neces- Os resultados mostram que a vivência da doença sidade de um período de adaptação, e várias mudanças crônica na família caracteriza-se como um processo de ocorrem na estrutura e funcionamento das famílias. Os interação que ocorre com o doente, com o contexto recursos sociais e de apoio são acionados. familiar e com a rede de apoio em diferentes graus e A vivência das famílias diante da doença crônica momentos, configurando-se como um processo dinâ- gera muito sofrimento em todas as famílias estudadas. mico e interativo. Os comportamentos são afetados e as faculdades psico- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010 FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I. • Doença crônica: comparando experiências familiares lógica, física, mental e social são estremecidas. Vivenciar Os profissionais de saúde precisam considerar a a doença crônica na família é um processo. Todos os relação da família com todos os contextos e vislumbrar membros sofrem as consequências, ninguém fica isento alternativas frente a questões de ordem sociocultural de ser atingido e influenciado. Percebemos, no entanto, visando à promoção da saúde. Nesse sentido, uma das que são formas diferentes de sentir. No caso de crianças atribuições dos enfermeiros é apontar para as famílias os e adultos com câncer, o familiar se coloca no papel de prováveis provedores de apoio social, para que, conhe- cuidador com muita doação e desejo de compartilhar cendo, possam se beneficiar dos recursos disponíveis. A aquele sofrimento de modo a diminuir a dor e o des- compreensão da experiência da família, sua vulnerabili- conforto do outro. dade frente aos agravos à saúde e recursos sociais de apoio Em nossa realidade brasileira, visando a melhorar a para o enfrentamento das situações de cronicidade pode qualidade na assistência à saúde das famílias, o Sistema contribuir para o aprimoramento de políticas públicas, Único de Saúde (SUS) tem buscado alternativas, como melhorando assim a vida familiar. a Estratégia de Saúde da Família (ESF), que visa a mudanças do padrão de atenção à saúde. Essa estratégia prevê a assistência domiciliar à saúde, lançando mão R E F E R Ê N C I A S da visita domiciliar como forma de instrumentalizar os profissionais para sua inserção e o conhecimento da vida da população e estabelecimento de vínculos com ela e assim poder intervir. Esse serviço se insere nas chamadas redes sociais caracterizadas por interligar os indivíduos que possuem vínculos sociais entre si, permitindo que os recursos de apoio fluam. A rede social é uma dimensão estrutural ou institucional associada a um indivíduo, como: vizinhança, organizações religiosas, sistema de saúde e escola. Outra rede social do município onde essas famílias residem são os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros Comunitários, que são serviços sociais públicos e locais de execução das ações de proteção social básica da assistência social, cujo objetivo é prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. São propostos programas, projetos, serviços e benefícios destinados à população em situação de vulnerabilidade social decorrente de pobreza, privação e/ou fragilização de vínculos afetivo-relacionais e de pertencimento social. Anderson, K.H. The family health system approach to family systems nursing. Journal of Family Nursing, v. 6, n. 2, p. 103-99, 2000. Bilemann, V.L.M. A família cuidando do ser humano com câncer e sentindo a experiência. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 56, n. 2, p. 133-137, 2003. Blummer, H. Symbolic Interacionism: perspective and method. 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[email protected] gestores e gerentes da SMS e de outras secretarias municipais. Identificou-se uma série de 1 2 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). [email protected] 3 implementação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos, indicando potencialidades e obstáculos com base em resultados de estudos de caso realizados em 2008 em quatro capitais com experiências consolidadas da SF: Aracaju, Belo Horizonte, Florianópolis e Vitória. O eixo da pesquisa foi a integração da rede assistencial e a intersetorialidade, aspectos cruciais para a implementação do programa, com análise feita a partir de uma abordagem qualitativa e da avaliação de conteúdo das entrevistas com fatores facilitadores e limitantes para a consolidação da Estratégia Saúde da Família, possibilitando a formulação de recomendações mais gerais. PALAVRAS-CHAVE: Atenção Primária em Saúde; Integração da rede; Intersetorialidade, Modelo assistencial; Programa Saúde da Família. ABSTRACT The present paper aimed to identify the factors that allow the effective implementation of the Family Health Strategy in major urban centers, indicating potentialities and challenges based on results of case studies carried out during 2008 in four Brazilian cities with consolidated Health Family experience: Aracaju, Belo Horizonte, Florianópolis, and Vitória. The research conductor was the integration of health assistance systems and the intersectoriality, both crucial aspects for the implementation of the program, with analysis performed based on qualitative approach and assessment of the content of interviews conducted with managers of Health Secretaries and other municipal secretaries. A series of limiting and facilitating factors was identified, thus allowing general recommendations. KEYWORDS: Primary Health Care; Integration; Intersectorality; Care model; Family Fealth Program *Este artigo de opinião baseia-se em resultados de pesquisa realizada com financiamento do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos I N T R O D U ç ão populações de baixa renda, ampliando as desigualdades em saúde. Recentemente, em contexto democrático, com a assunção de governos de centro-esquerda, diversos países Comparações internacionais mostram que uma ro- na América Latina vêm desenvolvendo políticas que visam busta Atenção Primária em Saúde (APS), com serviços de a revitalização e fortalecimento da Atenção Primária em primeiro contato integrados à rede assistencial com oferta Saúde como estratégia para organizar o sistema de serviços ampla de ações e estabelecimento de vínculo longitudinal, de saúde e promover a equidade. promove impactos positivos sobre a situação de saúde, Recentes iniciativas da OPAS e OMS de ‘renovação produz ganhos de eficiência e melhora o desempenho do da APS’ orientam-se em parte segundo estas premissas. sistema de saúde como um todo (Kringos et al., 2010; O relatório da Organização Mundial da Saúde de 2008 Macinko; Starfield; Shi, 2003; Starfield; Shi, 2002) tem por tema a renovação da Atenção Primária em Saúde Na América Latina, pelo contrário, uma abordagem como coordenadora de uma resposta integral em todos os seletiva de atenção primária tornou-se hegemônica no con- níveis de atenção, integrando um conjunto de reformas texto das estratégias macroeconômicas de ajustes estruturais para a garantia de cobertura universal (Quadro 1) (WHO, dos anos 1980 e 1990, e as agências multilaterais difundi- 2008). O Informe da OMS distancia-se das iniciativas de ram a implementação de uma cesta mínima de serviços para atenção primária seletiva ao propor uma resposta integral às Quadro 1 - Relatório Mundial da Saúde 2008 – Como a experiência mudou o rumo do movimento da Atenção Primária em Saúde no mundo Primeiras tentativas de implementação da APS Preocupações atuais das reformas de APS Amplo acesso a um pacote básico de intervenções em saúde e a medicamentos essenciais para as populações rurais pobres Transformação e regulamentação dos sistemas de saúde existentes, com o objetivo de acesso universal e da proteção social da saúde Concentração em saúde materno infantil Preocupação com a saúde de todos os membros de uma comunidade Focalização em pequeno número de doenças selecionadas, principal- Resposta integral às expectativas e necessidades das pessoas, alarmente infecciosas e agudas gando o espectro de riscos e de doenças cobertas Melhorias em higiene, água, saneamento e educação para a saúde das Promoção de estilos de vida mais saudáveis e mitigação dos efeitos comunidades dos riscos sociais e ambientais Tecnologias simples para trabalhadores de saúde comunitários, não profissionais e voluntários Equipes de trabalhadores da saúde para facilitar o acesso e o uso apropriado das tecnologias e dos medicamentos Participação vista como a mobilização de recursos locais e a gestão de centros de saúde através de comitês de saúde locais Participação institucionalizada da sociedade civil no diálogo sobre políticas e mecanismos de responsabilização e prestação de contas Serviços financiados e prestados pelo governo, com gestão centralizada e de cima para baixo Sistemas de saúde plurais num contexto globalizado Gestão da crescente escassez e redução de postos de trabalho Orientação de aumento dos recursos para a saúde para alcance de cobertura universal Ajuda e assistência técnica bilaterais Solidariedade global e aprendizagem conjunta Atenção primária como a antítese do hospital Atenção primária como coordenadora de uma resposta integrada em todos os níveis APS é barata e requer apenas um modesto investimento APS não é barata: requer investimentos consideráveis, mas é mais eficiente do que qualquer outra alternativa Fonte: extraído de OMS, 2008: xvi. Disponível em: http://www.who.int/whr/2008/whr08_pr.pdf Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 249 250 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos necessidades da população, alargando o espectro de riscos da população de um determinado território coordena e de doenças cobertas e ao propugnar a atenção primária cuidados integrais e incentiva a participação social – tem como coordenadora de uma resposta integrada em todos potencialidade para enfrentar os desafios contemporâ- os níveis: não mais um programa ‘pobre para pobres’. neos dos sistemas de saúde. Não se trata apenas de reconhecer que a APS é mais Indução financeira federal sustentada impulsio- eficiente do que qualquer outra alternativa. O consenso nou a gradual difusão da Estratégia SF. Estima-se uma sobre a necessidade de fortalecer a APS, seja em países cobertura atual (2010) de cerca de 50% da população centrais ou em países periféricos, decorre da constatação nacional com mais de 30 mil equipes de Saúde da Fa- de que o modelo hegemônico de atenção à saúde – frag- mília implantadas em território nacional. A Pesquisa mentado, baseado na especialização progressiva da prática Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Saúde médica, desenvolvido para responder aos episódios agudos 2008 corroborou estes resultados: 50,9% da população – não consegue enfrentar os atuais desafios decorrentes das brasileira, em 2008, vivia em domicílios cadastrados mudanças do perfil demográfico e epidemiológico com pelo PSF. predomínio de agravos crônicos. A APS, atualmente, é A implementação inicial do PSF foi mais rápida e reconhecida como a resposta mais adequada aos atuais alcançou maior cobertura na região nordeste e municí- desafios de morbi-mortalidade. Não se trata mais de pios menores, encontrando dificuldades para expansão ‘curar’ apenas, mas postergar para idades mais avançadas em grandes centros urbanos, o que vem sendo incen- o surgimento das enfermidades, acompanhar e cuidar. tivado pelo MS na última década. Segundo dados da Responder aos agravos crônicos exige promover a saúde, PNAD Saúde 2008, o PSF cobre 67,7% da população retardando seu início, acompanhar os portadores ao longo da região nordeste e 38,5% da região sudeste. do tempo, criar vínculos, coordenar o uso dos diversos Desde a instituição do incentivo financeiro em serviços de saúde necessários – atributos essenciais de bons 1998 (PAB-variável), a cobertura do PSF tem sido serviços de atenção primária. progressivamente expandida de forma sustentada ao No Brasil, desde meados da década de 1990, uma longo do tempo, contudo, nos últimos três anos a evo- nova abordagem em Atenção Primária em Saúde vem lução tem sido mais lenta. No momento atual, parece sendo fortemente induzida pelo governo federal: o prevalecer certa dubiedade da política federal quanto ao Programa Saúde da Família (PSF). Inicialmente criado modelo assistencial para a atenção básica no país. Com como programa seletivo e focalizado no processo de o propósito de desafogar as emergências dos hospitais implantação, o PSF foi ampliando seu escopo, sendo de grandes centros urbanos, o Ministério da Saúde vem assumido na Política Nacional de Atenção Básica em incentivando com recursos financeiros específicos a Saúde de 2006 como a estratégia prioritária para re- instalação paralela de outros serviços de primeiro con- orientação do modelo assistencial na atenção básica, tato: as Unidades 24 horas de Pronto-Atendimento, as passando a incorporar os atributos de uma APS inte- chamadas UPAs. Ainda que sejam definidas pelo MS gral. Desse modo, o modelo assistencial proposto para como estruturas de complexidade intermediária entre a Estratégia de Saúde da Família – ao ter como núcleo as unidades básicas de saúde e as portas de urgência uma equipe multiprofissional com médico e enfermeiro hospitalares, devendo proceder ao acolhimento e clas- generalistas, de fácil acesso/primeiro ponto de atenção, sificação de riscos para priorizar os atendimentos de que cria vínculos e se responsabiliza pela atenção à saúde maior urgência (Portaria GM/MS 1020 de 13.05.2009), Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos sua articulação com a rede de atenção básica não está responder às perguntas da investigação, articulando as estabelecida. Assim, tornam-se modelo competitivo à perspectivas de gestores, profissionais das equipes e famí- Saúde da Família como serviço de procura regular. O lias cadastradas. O uso de métodos mistos em avaliação de modelo assistencial do pronto-atendimento das UPAs políticas é cada vez mais frequente com propósitos tanto corresponde ao modelo tradicional da nossa antiga de triangulação para melhorar a validade dos resultados, assistência médica previdenciária de ‘queixa – consulta’ em que diferentes métodos são utilizados para medir ou melhor ‘sintoma – receita de medicamento sintomá- um mesmo fenômeno, como de complementaridade tico’. Ainda que possa garantir um atendimento mais para uma compreensão mais abrangente de fenômenos oportuno – característica da atenção muito prezada pela complexos, ou ainda para expansão do escopo do estudo, população –, o modelo UPA responde apenas a casos permitindo a análise dos processos de implementação por agudos ou episódios de agudização de agravos crônicos meio de métodos qualitativos e a avaliação de resultados sem possibilitar seguimento. Não atende a qualquer por métodos quantitativos (Greene, 2007). outro atributo da Atenção Primária em Saúde, como a Na pesquisa, o processo de implementação e criação de vínculos e acompanhamento longitudinal, a as estratégias da gestão municipal de saúde para a coordenação da atenção, a integralidade, a territoriali- integração da rede assistencial e a intersetorialidade dade ou orientação comunitária. São estes os atributos foram estudadas com base em abordagem qualitativa da APS que compõem a Estratégia de Saúde da Família, com análise de conteúdo das entrevistas com gestores mas não presentes nas UPAs, que permitem impactos e gerentes da SMS e de outras secretarias municipais positivos em saúde e a efetividade da atenção primária (77). Estudos transversais com amostras de profissionais no enfrentamento dos agravos crônicos. das equipes de Saúde da Família (ESF) permitiram O presente artigo tem por objetivo destacar fatores examinar as experiências e perspectivas de médicos que condicionam a efetiva implementação da Estratégia (224), enfermeiros (261), auxiliares de enfermagem Saúde da Família em grandes centros urbanos indicando (264) e agentes comunitários de saúde (587). Um total potencialidades e obstáculos, com base em resultados de de 1.336 profissionais respondeu os questionários. As estudos de caso, realizados em 2008, em quatro capitais experiências e avaliação dos usuários foram coletadas com experiências consolidadas da SF (com cobertura por meio de inquérito de base domiciliar em amostra populacional maior de 60% e implantação há mais de representativa de famílias cadastradas. Foram realizadas cinco anos): Aracaju, Belo Horizonte, Florianópolis e entrevistas com 3.311 famílias (Aracaju – 800, Belo Vitória. Horizonte – 900, Florianópolis – 789, Vitória – 822). A pesquisa teve como eixos de análise a integração O trabalho de campo ocorreu entre maio e setembro de da rede assistencial e a intersetorialidade, aspectos cru- 2008 e a pesquisa teve financiamento do DAB/SAS/MS ciais para a implementação de uma Atenção Primária (Giovanella et al., 2009). em Saúde robusta que garanta atenção integral e priorize a promoção da saúde. A discussão articulada dos resultados da pesquisa desde as perspectivas dos gestores, dos profissionais das Os estudos de caso realizados corresponderam a equipes de saúde da família e das famílias permitiu iden- uma estratégia de pesquisa alicerçada em metodologias tificar uma série de fatores facilitadores e limitantes para quantitativa e qualitativa com base em diversas fontes de a consolidação da Estratégia Saúde da Família, possibili- informação convergentes que foram trianguladas para tando a formulação de recomendações mais gerais. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 251 252 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos Neste artigo, são apresentados os principais fatores a porta de entrada preferencial e fonte de cuidado regu- condicionantes da consolidação da Estratégia Saúde da lar para assistência ou prevenção, o que é proposto por Família e práticas identificadas que podem subsidiar a gestores, reconhecido pelos profissionais e experienciado implementação de políticas municipais e a reorientação pelas famílias. da política nacional para a garantia de atenção primária Nas cidades estudadas, a concepção substitutiva integral em saúde. A análise dos fatores selecionados está de modelo assistencial da SF implicou a implantação organizada em três eixos: integração da rede, interseto- de três a sete ESF nos centros de saúde preexistentes, rialidade e gestão do trabalho. promovendo a reorganização interna destas unidades, com a manutenção de profissionais médicos das especialidades básicas, outros serviços como coleta de material INTEGRAÇÃO DA REDE ASSISTENCIAL para exames, pessoal administrativo e gerência profissional, como apoio às equipes. Esta estratégia facilita a constituição da Unidade de Saúde da Família (USF) A análise da integração da Estratégia Saúde da como porta de entrada e serviço de procura regular Família com os demais níveis de atenção congregou as que articula o atendimento a demandas programadas dimensões: posição da Estratégia de Saúde da Família e espontâneas e pode incrementar a resolutividade da na rede assistencial como porta de entrada preferencial Estratégia SF ao atender melhor o conjunto de neces- e serviço de procura regular; estratégias de integração da sidades da população. rede incluindo os mecanismos de regulação e a gestão A pesquisa com usuários mostrou que os ser- do cuidado; o acesso à atenção especializada e serviços viços de atenção primária têm se configurado como de apoio diagnóstico e hospitalar; e disponibilidade de a principal fonte de cuidado regular em três dos informações sobre a atenção prestada. municípios estudados. Mais de 70% das famílias cadastradas nas quatro cidades (em Belo Horizonte 85%) dispõem de um serviço de procura regular. Posição da Estratégia de Saúde da Família na rede Dentre estas famílias, 75% em Belo Horizonte, 70% assistencial como porta de entrada preferencial e em Vitória, 70% em Aracaju e 50% em Florianópolis serviço de procura regular indicaram como seu serviço de procura regular o Uma rede integrada pressupõe uma porta de entrada preferencial que organize o acesso (Hartz; centro de saúde/unidade de saúde da família (Giovanella et al., 2009). Contandriopoulos, 2004). A existência de um ser- A ESF estrutura o acesso à atenção especializada. viço de primeiro contato, procurado regularmente a O percurso mais comum de acesso às consultas espe- cada vez que o paciente necessita de atenção em caso cializadas – informado por gerentes e profissionais – é de adoecimento e/ou acompanhamento rotineiro de o agendamento realizado pela USF, seja no momento sua saúde, e que funcione como filtro para acesso à do encaminhamento ou com data posteriormente atenção especializada, facilita a formação de vínculos e informada ao usuário. Em Vitória e Belo Horizonte, a coordenação dos cuidados. mais de 60% dos usuários que consultaram especialistas Os serviços de atenção básica com Estratégia de Saúde da Família, nos casos estudados, estão se tornando Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 nos últimos 12 meses informaram que a consulta com especialista fora agendada pela USF. GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos Abrindo as portas da USF – adequado equilíbrio entre demanda espontânea e no agendamento rotineiro das respostas aos agravos agudos e crônicos ações de acompanhamento (WHO, 2008). O adequado atendimento da demanda espontânea Um fator limitante à integração é a informalidade articulado com as ações programáticas da demanda or- da relação dos serviços de urgência e emergência (que ganizada, por meio do acolhimento e do atendimento ainda constituem importante porta de entrada para o diário, facilita a constituição da USF como serviço de sistema de saúde) com a USF e a ausência de fluxos de procura regular e porta de entrada preferencial do sis- contrarreferência, o que dificulta reduzir o número de tema de saúde, deslocando a demanda dos serviços de casos sem perfil para este tipo de atendimento. A au- emergência hospitalar e de atenção especializada. sência de contrarreferência para a APS é um importante O atendimento restrito da demanda espontânea problema a ser enfrentado pelos gestores locais. nas USF para grupos não-prioritários, como identificado Urge a articulação com as UPAs para agilizar aten- em um dos municípios, com o estabelecimento de dia dimentos de emergência encaminhados pelas USF e para semanal específico, limita fortemente as possibilidades garantir o retorno ou reencaminhamento dos usuários de constituição das USF como serviço de procura regular desde as UPAs até as suas Unidades Saúde da Família, de sua população adscrita. fortalecendo-as como serviços de procura regular e as O estabelecimento de prioridades estritas para o UPAs como estruturas intermediárias de atendimento às atendimento de determinados grupos populacionais, urgências. Horários de funcionamento estendidos até 19 ainda que facilite o acesso desses grupos com agravos ou 22 horas e aos sábados e atendimento diário rotineiro ou condições selecionadas, restringe o acesso às USF da demanda espontânea são estratégias desenvolvidas nas dos cidadãos não pertencentes aos grupos prioritários. cidades estudadas para que a USF/CS se torne de fato ‘o Essa priorização dificulta a conformação da USF serviço de saúde’ da população cadastrada. Assim, a UPA como porta de entrada preferencial ao sistema de passa a ser serviço complementar de atendimento de urgên- saúde e serviço de primeiro contato, atributo essen- cias médicas que não podem ser resolvidas na USF e não cial de uma APS robusta. Ademais, o atendimento serviço de primeiro contato competitivo com a USF. somente da demanda programada leva à redução O desenvolvimento de estratégias de avaliação de do volume de pacientes atendidos pela unidade de riscos nas UPAs com encaminhamento para atendimen- saúde, dificultando a busca ativa e o diagnóstico to na USF dos pacientes de baixo risco (em contexto precoce. Deixa-se de aproveitar as oportunidades de USFs que também atendem demanda espontânea) da atenção individual ao caso agudo para atuar nas facilita a conformação da USF como porta de entrada prioridades coletivas. Ou seja, redunda no fracasso do e desafoga as unidades de emergência. próprio programa prioritário que deixa de identificar Capacitações específicas e a utilização dos protocolos e retardar o acompanhamento necessário dos grupos são estratégias importantes para melhorar a integração da prioritários (Tejerina Silva, et al. 2009). Saúde da Família com os serviços de emergência, bem A articulação da demanda espontânea com a pro- como a potencialização dos fluxos de informações entre gramada se efetiva não apenas pela definição de horários USF/CS e UPAs. A realização de estudos sobre as deman- diários de atendimento, mas pela identificação de grupos das mais atendidas por serviços de pronto-atendimento, prioritários e realização das ações programáticas (promo- com a identificação das áreas de adscrição de pacientes cionais e preventivas) em cada contato/atendimento de de baixo risco que buscam UPAs e das unidades básicas Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 253 254 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos que mais encaminham para esses serviços, podem orientar Por outro lado, a habilitação apenas na gestão estratégias de qualificação dos profissionais e estratégias de da atenção básica, em duas das capitais, impôs limites acesso e revisão de atendimento da demanda espontânea reais à integração da Atenção Primária em Saúde na nas USFs de referência destes pacientes. rede assistencial devido à baixa governabilidade do município sobre parte dos serviços especializados, e principalmente hospitalares, que permanecem sob Estratégias de integração A expansão de cobertura da Estratégia Saúde da Família é obrigatória a reorganização da rede assistencial gestão estadual, levando ao uso sub-otimizado de recursos e da oferta pública existente no território das capitais. para garantir o acesso integral. Observa-se intensificação A Programação Pactuada e Integrada (PPI) mostra- dos processos regulatórios pelas SMSs, embora ainda se insuficiente para reduzir a fragmentação entre as redes seja necessário adequado monitoramento com o esta- estadual e municipal, pois não há garantias de que as co- belecimento de metas de desempenho e definição de tas programadas de procedimentos especializados serão indicadores para o acompanhamento das filas de espera distribuídas entre as unidades de saúde municipais. e garantias de acesso (Escorel et al., 2002; Giovanella et al., 2009). Na ausência de articulação com os prestadores estaduais, a compra de serviços especializados da rede O legado institucional conta a favor da imple- privada para superar a insuficiência da oferta municipal mentação da Estratégia Saúde da Família como centro é estratégia nem sempre bem-sucedida, seja pela inexis- ordenador e integrador da rede de serviços de saúde. O tência de determinadas especialidades na cidade, seja processo de aprendizado institucional proporcionado pela baixa remuneração oferecida pela tabela SUS. Por pela experiência na gestão do sistema municipal de outro lado, a alternativa da gestão municipal de expansão saúde produz acúmulos institucionais de tradição e de oferta própria de atenção especializada por meio de de disponibilidade da oferta de serviços de saúde e de policlínicas regionalizadas amplia e facilita o acesso aos capacidade técnica gerencial. serviços de média complexidade, sem, contudo, incidir O caso de Belo Horizonte ilustra este pressuposto. A habilitação como gestor semipleno pela NOB/ na fragmentação da rede assistencial do SUS presente no território das capitais. SUS/93 e, posteriormente, como gestor pleno do sistema de saúde pela NOB/SUS/96, como correu em Belo Horizonte, exigiu precocemente do município a Ferramentas de regulação condução da gestão do sistema nos diferentes níveis A implantação do sistema informatizado de mar- de complexidade, concedendo maior autonomia cação e regulação de consultas e exames especializados na condução de processos articuladores da rede de (Sisreg) nas cidades estudadas facilitou a integração serviços de saúde ao gestor municipal. A habilitação do sistema por: possibilitar a marcação on-line de pro- como gestor pleno do sistema implica investimentos cedimentos na própria USF/centro de saúde, permitir técnico-assistenciais, incluindo iniciativas de regulação dimensionar o tamanho das filas de espera e identificar da assistência por parte do município para gerenciar a as especialidades com maior demanda, viabilizar o atenção especializada, o que favorece a integração da monitoramento de faltas às consultas marcadas e a de- Saúde da Família à rede assistencial. finição de prioridades clínicas. Desta forma, constitui Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos importante instrumento de planejamento em diversos âmbitos da gestão. Atividades regulares de articulação entre diversas gerências nas SMSs também podem propiciar a redução O Sisreg possibilita à equipe de saúde da família da fragmentação. A constituição de fóruns comuns acompanhar o percurso do usuário no sistema de saúde de discussão entre a atenção básica e especializada, e tem proporcionado, segundo os gerentes, melhora no como, por exemplo, Comitês Gestores, compostos comparecimento, com diminuição do número de faltas pelos gerentes das SMSs e de serviços de distintos às consultas especializadas, uma vez que os procedimen- níveis assistenciais, facilita a troca de informações en- tos não são agendados para datas tão distantes, além de tre a atenção especializada, a atenção básica e demais ter reduzido a interferência de funcionários responsáveis setores da saúde, com potencialidade para superar a pela marcação no acesso privilegiado às especialidades. distância entre gestores e profissionais dos diferentes O monitoramento dos encaminhamentos feitos pe- níveis assistenciais. las ESF por meio da elaboração de relatórios com as listas Estratégias de territorialização para o cuidado à de espera pode subsidiar a definição das especialidades gestante têm habilitado a Saúde da Família a assegurar com necessidades de contratação/expansão da oferta. a atenção à maternidade e parto. A maioria dos médicos Apesar desses avanços, persistem dificuldades de que participou do estudo afirmou conseguir realizar acesso à atenção especializada, provocadas por déficits de sempre ou na maioria das vezes o agendamento para a oferta e, em certa medida, por dificuldades de contrata- maternidade (86% em Belo Horizonte, 78% em Flo- ção/ fixação de especialistas, mesmo os concursados. rianópolis, 74% em Vitória). Uma boa organização da rede não prescinde do O acesso à atenção especializada pode ser facilitado equacionamento adequado da oferta. A garantia do pela melhor qualificação das demandas dos profissionais agendamento possibilitado pelos sistemas de regula- da ESF por meio de capacitações específicas, definidas ção não é suficiente para assegurar maior agilidade no com base em monitoramento dos encaminhamentos atendimento. As dificuldades de regulação e de oferta se realizados. A função de filtro por parte do generalista, em refletem na avaliação dos médicos da SF sobre elevados situação de baixa qualificação técnica e de inexperiência tempos de espera. Por exemplo, um tempo médio de desse profissional, pode incorrer em burocratização ex- espera para consultas especializadas de três meses e mais cessiva e no aumento do número de encaminhamentos foi estimado por 82% dos médicos das ESF em Floria- desnecessários. nópolis, 61% em Belo Horizonte, 45% em Aracaju e 34% em Vitória (Giovanella et al., 2009). Chama a atenção, contudo, que metade dos usuários encaminha- Gestão do cuidado dos ao especialista pelo médico da ESF nos últimos 12 A construção de linhas de cuidado e o estabele- meses informou tempo de espera inferior a 30 dias em cimento de protocolos, ao organizar a trajetória do Aracaju, Belo Horizonte e Vitória. usuário na rede de serviços de saúde e recomendar Todavia, a demora na marcação de consultas e ações, facilita a coordenação dos cuidados definindo exames e a insuficiência de profissionais foram os pontos fluxos, responsabilidades e normas para solicitação de negativos da SF mais mencionados pelas famílias, cor- procedimentos e referências, além de permitir atuação roborando a necessidade de maior agilidade nos fluxos mais efetiva e resolutiva. O processo compartilhado entre os diferentes níveis do sistema local de saúde. de elaboração de protocolos e linhas de cuidado Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 255 256 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos por profissionais de diversos níveis assistenciais, linhas de cuidado. Em Aracaju, a existência de uma co- entidades profissionais e gestores facilita o diálogo e ordenação da gestão do cuidado diretamente vinculada a cooperação entre especialistas e generalistas, a co- ao secretário municipal de saúde expressa a centralidade ordenação dos cuidados e a adesão dos profissionais da questão na agenda municipal e um esforço de insti- às diretrizes estabelecidas com sua incorporação na tucionalização desse processo. prática diária. A introdução da consulta pública e de outras ferramentas de participação e de transparência no Acesso a serviços de apoio diagnóstico e terapêutico processo de elaboração de protocolos legitima decisões (SADT) e opções, além de quebrar resistências à sua imple- No caso dos SADT, sua marcação e regulação pelo mentação. Sua revisão periódica permite a adaptação Sisreg têm possibilitado os mesmos avanços que os das às necessidades locais. consultas especializadas e apresentado os mesmos limites A adesão dos profissionais, tanto da atenção básica da falta de integração entre prestadores municipais e como da atenção especializada, é condicionada por seu estaduais. Cabe destacar a existência de longo tempo envolvimento em todo o processo e pode ser reforçada de espera para alguns procedimentos. pela elaboração de manuais explicativos e capacitação Capacitações específicas e a utilização dos proto- específica. A rotatividade dos profissionais é um entrave colos podem ser estratégias importantes para qualificar ao processo de capacitação e, consequentemente, ao uso as solicitações de procedimentos de apoio diagnóstico. dos protocolos implantados. Nas diversas cidades, gestores identificam um excesso de O matriciamento, utilizado também como ferramenta para supervisão e desenvolvimento profissional pedidos de exames, pelos médicos das ESF, sem critérios definidos e sem justificativa clínica. continuado, é estratégia com potencial para aproximar Da mesma forma, a atribuição de competência o especialista e os profissionais de atenção básica, qua- da solicitação de exames aos enfermeiros qualifica e lificando-os clinicamente e trabalhando as dificuldades aumenta a resolutividade clínica do trabalho desses encontradas pelas equipes em seu próprio espaço laboral. profissionais, mas deve ser monitorada para evitar soli- A implantação de equipes matriciais em saúde mental é citações desnecessárias. um exemplo de fator facilitador da coordenação desse O acesso a exames de patologia clínica é facilitado tipo de cuidado com a responsabilização das ESF por pela constituição de postos de coleta de material para meio da organização de fluxos, da discussão de caso e do exames em todas as USF, pela existência de laboratório estabelecimento de projetos terapêuticos singulares. próprio municipal e pela definição de fluxos e metas de A coordenação dos cuidados pela ESF nem sempre desempenho. É possível reduzir demoras por meio da é reconhecida e carece de maior desenvolvimento. A definição de tempos máximos para retorno de resultados preocupação com a coordenação dos cuidados em âm- dos exames à USF e sua entrega ao paciente. bito gerencial por vezes se reverte em ações concretas, A definição de cotas físicas de serviços especializa- porém, em geral dirigidas a poucos grupos específicos, dos distribuídas igualmente para todos os territórios de como na atenção ao parto ou à saúde mental. É preciso saúde afetam potencialmente as iniquidades de acesso, definir as ações de coordenação como competência e contudo devem estar condicionadas por critérios epide- responsabilidade da ESF nos protocolos assistenciais e miológicos de necessidade. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos A ampliação do acesso ao apoio diagnóstico (rede episódios e o acesso do paciente aos vários serviços. laboratorial) e terapêutico (assistência farmacêutica am- Todavia, envolve o estabelecimento de infraestrutura pliada), acompanhada de qualificação em competências computacional, redes ágeis e manutenção adequada e específicas de ‘núcleo técnico’ dos profissionais, possibili- permanente. ta aumentar a resolutividade da atenção básica, efetivá-la O prontuário eletrônico utilizado por profissionais como serviço de procura regular e reduzir a necessidade de toda a rede assistencial possibilita que o médico da de referências para a atenção especializada. Saúde da Família receba a contrarreferência logo após a consulta com o especialista. Por outro lado, este tipo de registro tem deslocado a organização dos prontuários fa- Garantia de acesso à atenção hospitalar miliares para fichas individuais, o que pode incidir sobre A ausência de regulação dos serviços hospitalares a atenção dirigida às famílias, reduzindo a compreensão impede a definição de fluxos e o acompanhamento dos do enfoque familiar da Estratégia Saúde da Família. pacientes, minando o exercício das funções de coorde- Ferramentas de informática poderiam ser desenvolvidas nação dos cuidados pelas equipes de SF. para permitir a composição de prontuários eletrônicos A inexistência de central municipal de regulação de familiares a partir das entradas individuais. leitos e internações e de fluxos formais para internações A implementação de Tecnologias de Informação e dificulta o acesso dos pacientes, impede o monitora- Comunicação que dão suporte à diretriz de integralidade mento sistemático de filas de espera e a definição de do cuidado implica novas tarefas administrativas de regis- prioridades clínicas. A não-informatização da central de tros e solicitações para os profissionais, o que pode causar controle de leitos é barreira adicional para o acesso do resistência por serem instrumentos que transferem aos usuário às cirurgias eletivas. A ausência de regulação dos profissionais de saúde a responsabilidade direta dos agen- serviços hospitalares pelo município, que permanecem damentos e dos encaminhamentos de cada paciente para sob gestão estadual, faz com que, para parte das cirurgias exames e tratamentos. Nesse sentido, pode ser necessária a eletivas, o próprio usuário seja responsabilizado pela criação de incentivos específicos para seu uso e adesão. busca do atendimento na rede hospitalar, com base no Em síntese, a integração da ESF à rede assistencial encaminhamento feito pelo médico da Saúde da Família, é facilitada por adequadas estratégias de gestão e qualifi- que desconhece o percurso posterior do paciente. cação profissional, e está limitada pela disponibilidade de oferta especializada, pela fragmentação da rede assistencial entre diversos prestadores e pela ausência de uma política Disponibilidade de informações sobre a atenção prestada nacional para a garantia da atenção especializada. A disponibilidade e a transferência de informações A resistência dos prestadores privados contratados são fundamentais para a coordenação e regulação da pelo SUS à regulação é um entrave para a integração, atenção, o que é reconhecido pelos gestores que vêm dificultando a relação e o contato entre profissionais de informatizando as unidades e implantando prontuá- atenção especializada e primária, bem como o retorno do rios eletrônicos. A implantação destes prontuários com paciente para acompanhamento longitudinal pela ESF. acesso on-line e a anotação por diversos profissionais No contexto de uma rede assistencial organizada, a con- e serviços, contribui para aprimorar a qualidade dos tratação de serviços privados implica novas estratégias registros e a continuidade informacional entre diversos de regulação, de modo a garantir a contrarreferência e Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 257 258 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos a comunicação entre profissionais dos diversos serviços, sas ações e o enfrentamento articulado de problemas sejam eles públicos ou privados. identificados como prioritários, além de propiciar o reconhecimento mútuo dos vários técnicos e gestores de diferentes setores atuantes em cada território e a sinergia INTERSETORIALIDADE de ações que garantam a efetividade do atendimento aos munícipes. As Câmaras Territoriais, como constituídas em Ações intersetoriais buscam enfrentar a fragmen- Vitória, são fóruns permanentes de caráter deliberativo, tação das políticas públicas, potencializam a efetividade de discussão dos principais problemas do território e das intervenções e abrem a possibilidade de responder de integração das políticas públicas através da interface aos determinantes mais gerais dos processos saúde- entre as secretarias e a otimização dos recursos humanos, doença. Na perspectiva da atenção primária no âmbito financeiros, materiais, organizativos e políticos. Suas municipal, a atuação intersetorial deve se processar decisões são viabilizadas pelo Comitê de Políticas Sociais, em diversos níveis: na ação comunitária do território composto por gestores das diversas secretarias, como: integrando ações sociais e fortalecendo a participação educação, saúde, assistência social, cidadania e direitos social; na articulação no interior da SMS e com outras humanos, trabalho e geração de renda, cultura, esporte secretarias; na integração das políticas municipais para e lazer, segurança e Projeto Terra Mais Igual. enfrentar determinantes sociais dos processos saúdeenfermidade. Assim como as Câmaras Territoriais, a constituição de Conselhos Gestores Regionais no âmbito municipal cria espaços de articulação entre serviços de saúde e outros serviços sociais no território, permite a discussão Articulação com outros setores de políticas públicas A abrangência e as estratégias de ação intersetorial nas cidades estudadas são diversificadas, incluindo desde coletiva de todos os problemas de determinado território e contribui para a redução da fragmentação das redes de serviços públicos e de serviços de saúde. atuação restrita a projetos específicos de menor abran- Na ausência de uma modalidade integrada de gência até ação integrada municipal, como nos casos de atuação governamental, por outro lado, a constituição Vitória e Belo Horizonte (Giovanella et al., 2009). de diversos grupos de trabalho intersetoriais, cada Iniciativas de atuação intersetorial que respondem qual vinculado a um projeto específico, pode trazer a uma política municipal e à modalidade integrada de dificuldades gerenciais adicionais. Se essas comissões atuação governamental são mais abrangentes e poten- representam, de um lado, ganhos ao propiciar a dis- cialmente mais efetivas do que aquelas relacionadas a cussão e a tomada de decisão conjunta entre os setores projetos específicos ou emergenciais, produzindo um envolvidos, por outro lado podem gerar uma profusão contexto favorável para uma ação mais efetiva da ESF. de espaços coletivos que tendem a dispersar as ações no A presença de políticas municipais integradas de município em vez de responder a um esforço integrado abrangência municipal, com a constituição de fóruns de intervenção pública. intersetoriais regionais como espaços permanentes de Todavia, o contexto favorável de articulação articulação das várias secretarias/setores atuantes no intersetorial de políticas públicas integradas não é território, facilita a ação e a integração da saúde nes- suficiente para intensificar as iniciativas intersetoriais Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos desencadeadas pelo setor saúde. Gestores identificam Ação comunitária das ESF a necessidade de maior empreendedorismo e de ini- O território local é a base das iniciativas de ar- ciativas da saúde que empreguem seu potencial em ticulação intersetorial e as ESF têm importante papel pautar a política municipal. A necessidade de atuação na identificação de situações de risco social e de saúde, intersetorial mais articulada precisa ser introjetada no além do potencial de consolidação das redes locais de nível gerencial da SMS. serviços sociais. A estruturação da rede em base territorial facilita Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) são a ação intersetorial e a ação comunitária das ESF. A reconhecidos por gestores de outros setores como im- perspectiva de atuação intersetorial desde o início da portantes no estabelecimento das parcerias intersetoriais implantação da Estratégia SF possibilita o apoio efetivo tanto por realizarem a divulgação das ações desenvolvi- de outras secretarias, como sucede em Vitória. das como também por conhecerem a comunidade na Há limites para a atuação intersetorial das ESF e a articulação intersetorial deve ser uma estratégia qual atuam; com isso, podem identificar as necessidades e demandas da população. estruturante da política municipal. A extensão na qual O agente comunitário de saúde é o agente faci- o setor saúde toma a iniciativa e lidera a intervenção litador para a identificação de problemas coletivos e intersetorial para promover a equidade em saúde para a mobilização comunitária. Dois terços dos ACS depende do tipo de problema a enfrentar (PHAC, em Aracaju, Florianópolis e Vitória realizam rotineira- 2008). O setor saúde deveria tomar a dianteira mente levantamento de necessidade da população em quando dispõe de conhecimentos e de experiência, saneamento e meio ambiente, por exemplo. como no caso de prevenção de doenças específicas e Os casos estudados mostram que ainda há carência da melhoria de acesso à atenção à saúde. Quando a de desenvolvimento de parcerias para a sinergia da ação iniciativa envolve problemas sobre os quais o setor dos diversos agentes de saúde – comunitários, de ende- saúde dispõe de conhecimento de medidas efetivas, mias – atuantes no território, tendo como base as USF. A mas não controla os meios para realizá-las, tal setor exemplo do combate à dengue, planos de ação podem ser deve tomar a liderança para promover tais estratégias realizados em cada território e as intervenções, executadas em estreita cooperação com outros setores. Todavia, de forma conjunta por agentes ambientais e ACS, como quando a iniciativa dirige-se a determinantes sociais as visitas domiciliares e as de educação ambiental. mais gerais, como a pobreza, por exemplo, o setor Os Conselhos Locais de Saúde são espaços coleti- saúde deve ser um parceiro, pois não controla os vos de discussão conjunta no nível local que facilitam meios para a ação (PHAC, 2008). o envolvimento dos profissionais na ação comunitária; O reconhecimento destes limites e de que a ação contudo, a participação da população pode ser mais intersetorial deve ser política de governo não reduz a incentivada, ação que poderia ser responsabilidade importância da ação comunitária local da ESF. Apenas do ACS. parte das ESF desenvolve diversas ações comunitárias Chama a atenção que parte das famílias cadastradas em conjunto com outros setores. A existência de alta desconhecia o ACS e não fora por ele visitada. Nesse proporção de profissionais que declararam não realizar sentido, é recomendável monitorar a realização dessas ações intersetoriais sugere a necessidade de estímulo a visitas e estabelecer rotinas diferenciadas de visita de essas práticas. acordo com risco, presença de agravos crônicos etc. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 259 260 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos Em bairros cuja população tem cobertura elevada à equipe básica, em todas as USF. Esse profissional por planos privados de saúde, é necessário adequar os apoia a ação comunitária e amplia as possibilidades processos de trabalho dos ACS, redimensionar quan- de acolhimento e resposta da USF às necessidades titativos, qualificar suas funções e estabelecer distintas dos usuários. prioridades como forma de aprimorar os serviços presta- Todavia, a ação comunitária das ESF, ainda que dos pela ESF. A ampliação da cobertura de SF para áreas relevante, é desenvolvida apenas por parte das equipes. de residência de grupos de classe média exige estratégias De um terço a 58% dos profissionais participam de diferenciadas para reduzir a resistência da classe média atividades voltadas para a solução de problemas da às ações da SF. comunidade junto a outros órgãos. Entre 25% (médi- As visitas domiciliares de ACS são uma atividade cos em Belo Horizonte e Vitória) e 58% (enfermeiros avaliada positivamente pelas famílias cadastradas. Entre em Aracaju) realizam reuniões com a comunidade no as famílias que receberam visitas, a atuação do ACS é mínimo uma vez por mês. bem avaliada no que se refere ao conhecimento dos A ação comunitária da ESF implica a constituição problemas de saúde da família e da comunidade, ao de redes de serviços sociais em nível local, de modo que estabelecimento de um bom relacionamento com as o acesso à USF facilite a obtenção de outros serviços pessoas acompanhadas e ao processo de orientação a sociais. Implica minimamente a articulação dos setores respeito de cuidados de saúde. de saúde, educação e assistência social em nível local. A organização de grupos pode ser uma oportuni- O Programa Bolsa Família, com suas condicionalidades dade para estimular a ação comunitária. Atividades de em saúde e educação, pode ser um deflagrador dessa grupos com usuários portadores de agravos específicos articulação para uma ação integrada. constituem uma prática incorporada pelas ESF de for- Destacam-se como fatores limitantes para a atu- ma rotineira, demonstrando um avanço em relação às ação e mediação de ações intersetoriais pelas Equipes ações tradicionais de atenção à saúde por intensificar de Saúde da Família a insuficiente capacitação de seus processos de educação em saúde e facilitar a criação de profissionais para a ação comunitária e o excesso de vínculos e adesão aos tratamentos. Importa alertar que demandas assistenciais individuais, que consomem o a participação em atividades de grupo, contudo, é por tempo dos profissionais, dado o elevado número de vezes colocada como exigência/barreira para acesso a famílias sob responsabilidade de cada equipe. determinados serviços, como métodos anticoncepcio- O contexto favorável de articulação intersetorial nais, por exemplo; prática de cunho autoritário que com presença de políticas municipais integradas não é de fato restringe a adesão aos programas que pretende suficiente para intensificar as iniciativas intersetoriais incentivar. Atividades de grupos como de antitabagismo, desencadeadas pelo setor saúde. Gestores identificam hipertensos e gestantes, além de ações de educação em a necessidade de maior empreendedorismo e de ini- saúde como palestras, e atividades para idosos e para a ciativas da saúde empregando seu potencial em pautar adolescência e juventude estiveram entre as principais a política municipal com necessidade de introjetar sugestões das famílias sobre atividades a serem oferecidas no nível gerencial da SMS a necessidade de atuação pelas Equipes de Saúde da Família. intersetorial e incentivar o desenvolvimento de ação Uma inovação da Estratégia SF em Aracaju é a presença do profissional de serviço social no apoio Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 comunitária e intersetorial pelas Equipes de Saúde da Família. GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos GESTÃO DO TRABALHO EM SAÚDE comunidade, saúde da família ou saúde coletiva limitam o alcance das ações e a resolutividade da APS. Estratégias de educação permanente e desenvol- Os recursos humanos em saúde constituem, vimento profissional contínuo com uso de tecnologias reconhecidamente, um dos principais desafios para a da informação e comunicação (TICs), como Telessaúde implementação da Estratégia Saúde da Família tanto (Tele-enfermagem, Telessaúde Bucal, Telemedicina), no que diz respeito à formação e capacitação dos pro- facilitam a qualificação dos profissionais para o exer- fissionais para atuação nas ESF, quanto à sua adesão à cício de suas funções específicas e para o uso de dire- proposta da SF, vínculos trabalhistas e estratégias de trizes assistenciais, além de contribuir para a melhoria fixação de pessoal. da resolutividade da USF e promover a comunicação A gestão de trabalho em SF nas cidades estudadas entre especialistas e generalistas, facilitando referências tem buscado equacionar diversas dificuldades nestes e a coordenação dos cuidados pela Atenção Primária âmbitos, o que pode ser evidenciado por: busca pela re- em Saúde. gularização dos vínculos através da realização de concur- A qualificação técnica em Atenção Primária em sos públicos, investimento e valorização do processo de Saúde de prática generalista é uma necessidade sentida qualificação dos trabalhadores, adoção de mecanismos pelos médicos que demandam com maior frequência ca- de remuneração mais adequados por categoria e com- pacitações clínicas dirigidas especificamente à categoria. plementações via recompensas específicas para atuação A competência técnica é uma das bases da resolutividade em áreas de risco, alcançando tempo de permanência e credibilidade dos profissionais de atenção primária dos profissionais nas equipes mais elevado. (Saltman; Rico; Boerma, 2006). A formação clínica A realização de concursos públicos para substi- específica contribui para reduzir os encaminhamentos tuição dos quadros terceirizados em todas as categorias aos especialistas e a solicitação de exames complemen- profissionais tem sido uma preocupação recorrente dos tares ao garantir maior segurança aos médicos quanto gestores da saúde dos municípios estudados. Essa forma aos diagnósticos e à terapêutica, além de melhorar a de contratação vem possibilitando vínculos trabalhistas qualidade do cuidado. mais estáveis, com impacto positivo na fixação dos A baixa credibilidade e o reconhecimento dos profissionais na Estratégia Saúde da Família, ao mesmo profissionais de atenção primária frente aos seus pares tempo em que contempla a perspectiva de melhoria de especialistas é obstáculo à coordenação dos cuidados por desempenho das ações de saúde. esse nível assistencial. Neste sentido, é recomendável Na fase de consolidação da Estratégia Saúde da desenvolver, a nível local e nacional, estratégias para Família, a qualificação dos profissionais para a efetivação dar visibilidade ao trabalho e valorizar a atuação dos da atenção básica resolutiva se sobressai como grande profissionais das Equipes de Saúde da Família. desafio, demandando estratégias de desenvolvimento A análise dos resultados da pesquisa quanto à gestão profissional contínuo que aprimorem ou desenvolvam dos recursos humanos aponta, em síntese, como fatores competências técnicas específicas de ‘núcleo’ de cada condicionantes da consolidação da Estratégia Saúde da profissão e competências do ‘campo’ da atenção primária Família para os seguintes aspectos: i) a centralidade da para ações coletivas e atuação comunitária. Profissionais gestão do trabalho e o investimento nos processos de inexperientes e sem formação em medicina de família e qualificação como prioridades da gestão; ii) as estratégias Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 261 262 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos de educação permanente, que privilegiam o espaço de prestadores de serviços de saúde municipais, estaduais trabalho como de aprendizagem; iii) a existência de e privados contratados. As capitais dispõem de ser- quadro permanente de profissionais selecionados através viços especializados estaduais em seu território que de concurso público; iv) a implantação de um sistema não foram descentralizados e atendem à população de de remuneração diferenciada, de forma a incentivar e, todo o Estado. Esta fragmentação resulta em utilização ao mesmo tempo, recompensar o exercício profissional sub-otimizada da oferta e dificulta a gestão da rede. Há em locais de grande vulnerabilidade social. necessidade de acelerar o processo de negociação para Outros nós críticos identificados na gestão do traba- que o município possa regular e articular estes serviços lho na SF, e que merecem reflexão mais aprofundada sobre presentes no seu território, garantindo o acesso integral estratégias de enfrentamento, são: a baixa adesão da catego- aos munícipes. Por outro lado, a ausência de políticas ria médica e suas respectivas representações ao novo modelo para a atenção de média complexidade por parte do assistencial; o fortalecimento e a ampliação da capacitação Ministério da Saúde é reconhecida pelos gestores muni- dos ACS; e a introdução de um sistema de supervisão e cipais como uma das grandes dificuldades para garantia acompanhamento do desempenho dos profissionais e das de acesso à atenção especializada no Sistema Único de equipes com abordagem pedagógica, permitindo a reflexão Saúde (SUS). sobre o processo de trabalho e sua revisão. A priorização da Atenção Básica dentro do SUS buscou responder aos compromissos do sistema de saúde de prover serviços básicos de saúde e outras ações coletivas CONSIDERAÇÕES FINAIS de forma descentralizada. Os resultados mostram que ainda é imperativo avançar nas promessas de integralidade por meio da necessária desmercantilização dos níveis de A implementação de uma estratégia de atenção atenção mais complexos, alcançando certo equilíbrio nas primária integral implica resposta aos problemas de relações entre o mercado e a esfera pública na provisão des- saúde frequentes, na constituição da porta de entrada sas ações ao conjunto da população (Carvalho, 2004). preferencial em serviços de atenção básica resolutivos, Uma questão a ser enfrentada pela Estratégia da responsabilização pela coordenação dos cuidados e Saúde da Família nos grandes centros com elevada co- na garantia de acesso aos demais níveis de atenção bertura populacional é inverter o total afastamento da conforme as necessidades de saúde. Nesse sentido, classe média dos serviços públicos de saúde. A utilização os esforços dos gestores e os resultados encontrados da Estratégia Saúde da Família por grupos de classe mé- na integração da Saúde da Família aos demais níveis dia pode contribuir para a valorização do SUS por esses apontam sua potencialidade como estratégia de aten- segmentos da população e para a redução de iniquidades ção primária integral. Esta perspectiva, contudo, deve no acesso à atenção especializada com fluxos muitas vezes ser monitorada e outras investigações, desenvolvidas, ‘by-passados’ por grupos populacionais de maior renda. considerando-se as diversas dimensões da integração e a perspectiva dos usuários. A ampliação da cobertura da Saúde da Família para áreas de residência de grupos de classe média é um Um importante desafio à integração da rede e importante desafio nos grandes centros urbanos e exige garantia de acesso à atenção especializada é a fragmen- estratégias diferenciadas para reduzir a resistência às ações tação do sistema decorrente da presença de diferentes da SF, como dificuldades em aceitar a visita domiciliar e Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos a baixa utilização dos serviços, exceto para a obtenção de tendência de maior fragmentação da rede assistencial, medicamentos para controle de doenças crônicas. e totalmente incongruente com um sistema público de Por outro lado, os resultados da pesquisa trazem saúde que pretende ser universal e integral. Assim, a indícios de que o atendimento profissional domiciliar oportunidade de construção de uma Atenção Primária médico e o cuidado aos idosos são aspectos valorados em Saúde robusta em nosso país seria perdida, e junto positivamente por esses estratos populacionais que rei- com isso a possibilidade de desfrutar de seus impactos vindicam a assistência de equipes de Saúde da Família positivos na saúde da população e na eficiência do uso em suas áreas de moradia. dos recursos. Os obstáculos a serem superados para a garantia de atenção integral em nosso país são de diversas ordens: financeiros, de oferta insuficiente, organi- R E F E R Ê N C I A S zacionais com fragmentação da rede, de formação inadequada dos recursos humanos (Conill, 2008). Ainda assim, os resultados dos estudos de caso apontam que o fortalecimento da posição dos serviços da Estratégia Saúde da Família como porta de entrada preferencial resolutiva integrada à rede, com referências reguladas para a atenção especializada, tem potencialidades para reorientar a organização do sistema de saúde para a garantia do direito universal à saúde. Estas potencialidades tendem a se realizar na medida em que a Estratégia Saúde da Família seja assumida como política de governo, esforços sejam envidados para a integração da rede assistencial, formação de recursos humanos adequados , e a construção de interfaces de modo a promover a cooperação com outros setores para enfrentar os determinantes sociais mais gerais da saúde. Para finalizar, impera alertar para a dubiedade da política federal de saúde quanto ao modelo assistencial para a atenção básica no país. Ainda que a difusão da Estratégia Saúde da Família venha sendo estimulada de forma sustentável, os incentivos concomitantes para UPAs – modelo com forte apelo eleitoral pela aparente resolutividade proporcionada às filas das emergências hospitalares – encerra o risco do desenvolvimento de modelo competitivo em atenção básica inadequado para responder ao perfil de morbi-mortalidade, com Carvalho, A.I. Política de saúde e organização setorial do país. Documento preparado para o Curso de Especialização à Distância Autogestão em Saúde. Rio de Janeiro: EAD/ENSP/ Fiocruz; 1999, atualizado em 2004. Conill, E.M. Ensaio teórico-conceitual sobre APS: desafios para organização de serviços básicos e da Estratégia saúde da família em centros urbanos no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 24, Supl 1, p. S7-S27, 2008. Escorel, S. et al. Avaliação da implementação do programa Saúde da Família em dez grandes centros urbanos: síntese dos principais resultados. 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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010 263 264 GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.; MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos Macinko, J; Starfield, B; Shi, L. The Contribution of Primary Care Systems to Health Outcomes within Organization for Economic Cooperation and Development (OECD) Countries, 1970-1998. Health Services Research, v. 38, n. 3, p. 831-865, 2003. Public Health Agency of Canada (PHAC/WHO). Health equity through intersectoral action: an analysis of 18 country case studies. WHO/PHAC; 2008. [On-line] Disponível em: http://www.phac-aspc.gc.ca/publicat/2008/hetia18-esgai18/ pdf/hetia18-esgai18-eng.pdf Acesso em: 6 mai. 2010. Saltman, R.B; Rico, A; Boerma, W.G.W. Primary care in the driver’s seat? Organizational reform in European primary care. 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[email protected] 1 RESUMO Neste artigo, investigaram-se sentidos potencialmente ideológicos na propaganda de medicamentos no Brasil. O objetivo foi debater o papel do discurso na sustentação de relações assimétricas de poder na modernidade tardia. Com base em pressupostos teórico-metodológicos da Análise de Discurso Crítica, foram mapeadas conexões entre aspectos semióticos e não-semióticos do problema social investigado. PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Propaganda de medicamentos. ABSTRACT In this paper, we investigated potentially ideological meanings in Brazilian medicine advertisements. The aim was to debate the role of discourse in maintaining asymmetrical power relations in late modernity. Based upon Critical Discourse Analysis theoretical-methodological concepts, we traced causal connections between semiotic and non-semiotic aspects in the social issue considered here. KEYWORDS: Discourse; Medicine advertisement. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010 265 266 RAMALHO, V. • Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil I N T R O D U ç ão social da promoção de medicamentos e, na terceira seção, será apresentada a análise de discurso de um dos anúncios pesquisados, intitulado aqui Sexo seguro na Neste artigo, são apresentados resultados de uma vida adulta (distribuição gratuita, 2005). Por fim, tece- pesquisa de doutorado em Linguística sobre a propa- mos algumas considerações sobre a potencialidade do ganda de medicamentos brasileira (Ramalho, 2008). discurso da propaganda de medicamentos para sustentar Na pesquisa, foram investigados sentidos ideológicos anseios relacionados ao que se entende hoje por ‘saúde’ em textos publicitários com o objetivo de problema- e enfatizamos a necessidade de um olhar interdisciplinar tizar o papel do discurso na sustentação de um grave nos estudos em Saúde e em Linguística. A principal problema social amplamente discutido na atualidade, contribuição deste trabalho reside nessa possibilidade que pressupõe relações assimétricas de poder, sobretudo de diálogo entre diferentes disciplinas olhando para a entre ‘leigos’ e ‘peritos’. mesma preocupação social. Para realizar a pesquisa, utilizaram-se pressupostos teórico-metodológicos da Análise de Discurso Crítica (ADC) (Resende; Ramalho, 2006), uma vertente de Linguagem e poder: a Análise de estudos linguísticos que se ocupa da relação entre lin- Discurso Crítica guagem e poder. A primeira seção do artigo é dedicada à apresentação dessa base científica. Para esta corrente de estudos, linguagem e sociedade são indissociáveis e man- As diversas correntes de estudos do discurso, que têm ligações dialéticas, de modo que questões sociais são começaram a se consolidar em meados de 1960, têm em vistas como, em parte, questões de linguagem e vice-versa. comum a preocupação com o uso da linguagem situado Assim sendo, buscamos investigar conexões entre aspectos sócio-historicamente e relacionado a questões de poder. sociais e discursivos envolvidos no problema em foco. Diferem-se, sobretudo, pelas perspectivas (sociológicas, De modo geral, na parte mais social do estudo, filosóficas, epistemológicas) que as orientam. A vertente foram pesquisados aspectos da história da propaganda de britânica de Análise de Discurso Crítica (Fairclough, medicamentos no Brasil (Bueno, 2008); da instauração 1989; 2001; 2003; Chouliaraki; Fairclough, 1999), de problemas de saúde ligados à promoção de medica- que fundamenta este trabalho, é uma proposta de mentos; das políticas de controle da Agência Nacional abordagem científica para estudo de problemas sociais de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outras características parcialmente discursivos. Seu compromisso está em e instituições relacionadas à ‘sociedade de consumo’ “investigar criticamente como a desigualdade social é (Barros, 1995; 2004; 2008; Nascimento, 2005). Na expressa, sinalizada, constituída, legitimada pelo uso análise discursiva, trabalhamos com um corpus docu- do discurso” (Wodak, 2004, p. 225). mental composto por exemplares de anúncios impressos A proposta insere-se na tradição da ‘ciência social de medicamento produzidos em épocas diferentes, de crítica’, comprometida a oferecer suporte científico para meados de 1920 a 2006. questionamentos de problemas sociais relacionados a Na primeira seção deste artigo, será apresentada a poder e justiça. Como ciência crítica, a ADC está preo- proposta científica da Análise de Discurso Crítica. Na cupada com efeitos ideológicos que (sentidos de) textos segunda, será brevemente contextualizado o problema possam ter sobre relações sociais, ações e interações, Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010 RAMALHO, V. • Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil conhecimentos, crenças, atitudes, valores, identidades. de pontos de vista particulares, e identificacional, maneiras Por sentidos ideológicos entendemos aqueles sentidos relativamente estáveis de identificar a si e aos outros. orientados para projetos particulares de dominação e Essas maneiras de (inter-)agir, representar e identificar(- exploração, que sustentam a distribuição desigual de se) em práticas sociais internalizam traços de outros momen- poder, na perspectiva crítica de Thompson (2002). tos não-discursivos, assim como ajudam a constituir esses ou- Com base em Bhaskar (1989), para a ADC, o mundo tros momentos. Segue-se que a relação linguagem-sociedade é um sistema aberto, em constante mudança, constituído é interna e dialética; a linguagem constitui-se socialmente na por diferentes domínios e diferentes estratos. Os estratos – mesma medida em que tem “conseqüências e efeitos sociais, físico, biológico, social, semiótico etc. – possuem estruturas políticos, cognitivos, morais e materiais” (Fairclough, distintivas e mecanismos gerativos que operam simultanea- 2003, p. 14). Mais preocupante para esta perspectiva crítica mente com seus poderes causais, gerando efeitos nos outros da linguagem são os efeitos ideológicos que (sentidos de) domínios. Nesses princípios, assenta-se a compreensão de textos possam ter sobre relações sociais, ações e interações, que o discurso tem efeitos na vida social que não podem ser conhecimentos, crenças, atitudes, valores, identidades. suficientemente investigados levando-se em consideração Na esteira da ciência social crítica, na ADC ‘ideolo- apenas o aspecto discursivo de práticas sociais. De acordo gia’ é um conceito inerentemente negativo por relacionar- com Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 67), a lógica da se às maneiras como os sentidos servem para instaurar e análise crítica é relacional/dialética, sustentar relações de dominação. Segundo Fairclough (1989, p. 85), a ideologia é mais efetiva quando sua ação Orientada para mostrar como o momento é menos visível, por isso o compromisso da ADC é forne- discursivo trabalha na prática social, do ponto cer subsídios científicos para apontar e desvelar sentidos de vista de seus efeitos em lutas hegemônicas e ideológicos tendo em vista a possibilidade da superação relações de dominação. de relações assimétricas de poder e emancipação daqueles que se encontram em desvantagem 1. O foco dessa abordagem relacional/dialética, Neste trabalho, a ADC fundamenta a investiga- igualmente informado pela ciência social crítica, está nas ção de representações, ou discursos, particulares que ‘práticas sociais’, isto é, no nível em que entendemos a podem ser legitimadas em anúncios publicitários e, em linguagem como interação social, como ‘discurso’. determinadas práticas, inculcadas na identidade do/a Nas práticas sociais cotidianas, o discurso é utilizado ‘consumidor/a de medicamento’. de três principais maneiras simultâneas: para agir e interagir, para representar aspectos do mundo e para identificar a si mesmo e aos outros. Essas principais maneiras como o dis- Propaganda de medicamento no curso figura simultânea e dialeticamente em práticas sociais Brasil: um problema sociodiscursivo correlacionam-se, conforme a ADC, aos três significados do discurso: acional/relacional, maneiras relativamente estáveis de agir e interagir na vida social; representacional, Estudos como de Barros (1995; 2004; 2008) e maneiras particulares de representar aspectos do mundo, Nascimento (2005) permitem verificar que o debate 1 Para aprofundamento nos processos metodológicos da ADC, ver Ramalho (2008) e Resende e Ramalho (2006). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010 267 268 RAMALHO, V. • Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil sobre os riscos da propaganda de medicamentos não é setores da economia e igualmente ameaçador para a novo. As crescentes preocupações envolvem, por exem- sociedade em geral. plo, os riscos da automedicação, das intoxicações, do A propaganda de medicamento desempenha papel consumo inadequado e exagerado de medicamentos. central tanto na instauração e manutenção de indús- Tudo isso somado, no Brasil, a desigualdades sociais e trias nesse mercado, quanto na criação, sustentação e dificuldades de acesso a serviços e tratamentos de saúde, expansão de comunidades de consumidores, e o faz por dentre outros problemas. meio do que Lefèvre (1991, p. 53) denominou ‘valor do A indústria de medicamentos está entre as mais medicamento como mercadoria simbólica’, pelo qual a lucrativas do mundo, e seu investimento em propaganda mercadoria-medicamento passa a incorporar, represen- é muito maior do que em pesquisa e desenvolvimento de tar, simbolizar ‘acesso mágico e imediato à saúde’ em novos medicamentos, cerca de 35% da receita, conforme forma de comprimidos, cápsulas, gotas. Angell (2007). No Brasil, parte da população, por um Como símbolo de saúde, um conceito que agrega lado, encontra-se desassistida de tratamentos e serviços valores socioculturais, o medicamento pode represen- de saúde. Por outro, considerável parcela da sociedade tar acesso mágico e imediato àquilo que o discurso é diariamente exposta a apelos comerciais que possuem hegemônico define como ‘saudável’. Hoje, a grande potencial para, em práticas específicas, levar as pessoas ao mídia representa a ‘saúde’ não mais como um padrão consumo desnecessário e desmedido de medicamentos. mensurável, mas como um ideal inalcançável e pós- Esses produtos farmacêuticos são representados na mídia humano: na magreza extrema; nos estados alterados como ‘símbolos de saúde’, a materialização de um con- de excitação, velocidade, vigília, na juventude pre- ceito que, hoje, significa a busca incessante pela expansão tensamente eterna, e assim por diante. Como observa do potencial corporal, conforme Bauman (2001), e pela Barros (2008, p. 31), superação das limitações humanas naturais. Em 2005, quando iniciada a pesquisa que deu são cada vez mais corriqueiras as notícias origem a este trabalho, a propaganda de medicamentos que, circulando na mídia, contribuem para – reconhecida como causa de diversos problemas –, já ampliar o número de adeptos de pretensas so- estava há cinco anos submetida a controle sanitário, ao luções geradoras de bem-estar e de níveis mais monitoramento de conteúdo pela Anvisa, amparada elevados de saúde. Várias dessas notícias têm pela Resolução de Diretoria Colegiada n. 102, de 2000 se voltado e contribuído para o incentivo de (Brasil, 2000). Hoje, o que se verifica e se discute valores relacionados ao desfrute de um corpo nacionalmente são as preocupantes novas maneiras saudável, esteticamente aceitável na sociedade. de promover medicamentos na mídia sem chamar a Aqui entram, de forma crescente, as indústrias atenção da vigilância sanitária e, consequentemente, da moda, cosmética e também a farmacêutica sem se sujeitar a restrições impostas por esse mecanis- e seus interesses mercadológicos, com uma série mo de regulação. A legislação atual (RDC 96/2008, de equívocos e riscos inerentes às alternativas Anvisa, 2008) tenta acompanhar as mudanças discur- que vão criando e disseminando. sivas, observadas na pesquisa, e estudiosos sanitaristas reiteram a necessidade de coibir este tipo de prática Nesse contexto de generalização de equívocos, promocional exacerbadamente lucrativo para alguns riscos, ansiedades e inseguranças relacionadas ao Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010 RAMALHO, V. • Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil corpo, a propaganda atua como principal meio de ex- nologias discursivas’, nos termos de Fairclough (2001), ploração do valor simbólico do medicamento. Tal qual capazes de dissimular propósitos promocionais em propagandas de roupas, celulares e perfumes, a propaganda textos, de modo que alcancem o(a) consumidor(a) de medicamentos é um problema social porque, como potencial como se fossem simples informações. Para observou Fairclough (1989, p. 203), a publicidade em geral ilustrar tais mudanças discursivas impulsionadas pelas contribui para “construir posições submissas para ‘consu- novas exigências sociais, é apresentado o texto Sexo midores, como membros de comunidades de consumo, seguro na vida adulta na Figura 1. de maneira a legitimar o capitalismo contemporâneo”. O folheto reproduzido pela Figura 1 foi coletado Entretanto, diferentemente das primeiras, a propaganda em um espaço público, em 2005. Nesta data, o controle de medicamentos é potencialmente mais nociva por posi- sanitário sobre propaganda de medicamentos já estava cionar o indivíduo como ‘consumidor de medicamento’ e consolidado e elaborava-se novo texto, divulgado à época incitar anseios relacionados à saúde. na Consulta Pública n. 84/2005 (Anvisa, 2005), para Ainda assim, não raro encontramos na mídia ou atualização da RDC 102/2000. Transcorridos cinco mesmo nas ruas, como é o caso do texto analisado a anos de vigência do primeiro regulamento e diante de seguir, propagandas implícitas que simulam informação, inovadas técnicas publicitárias ‘não-ostensivas’, a Anvisa mas, de fato, buscam promover medicamentos, muitas apresentou, em 2005, nova proposta de regulamento, vezes medicamentos de venda sob prescrição médica, hoje já publicada, para buscar acompanhar mudanças cuja promoção nos meios de comunicação em massa é discursivas nos anúncios publicitários, a exemplo deste proibida no Brasil. folheto que simula uma ‘campanha social’, ou ‘campanha de utilidade pública’. O que se observa é um aumento de ‘novos formatos’ de publicidade, como folhetos, brindes Sexo seguro na vida adulta: e midia cards, distribuídos para promover bens e serviços, campanha de utilidade pública? mas por meio do ‘approach de serviço público’ que, nos termos de Sampaio (2003, p. 184), possibilita “ensinar e divertir as pessoas enquanto vende – o tempo todo e Como vimos, dados os reconhecidos riscos po- de modo quase subliminar”. tenciais à Saúde Pública, as práticas promocionais/ No caso da publicidade de medicamentos, tais comerciais de medicamento são regulamentadas e formatos – que possibilitam alcançar o(a) consumidor(a) fiscalizadas no Brasil desde 2000. A Anvisa é a insti- potencial em situações de descontração, logo, mais tuição responsável pelo controle de certos apelos em suscetível – têm, ainda, outra aplicabilidade. Permite propagandas de medicamentos de venda livre ou, ain- promover produtos farmacêuticos pela ‘simulação de da, pela suspensão de propagandas vedadas ao público serviço público ou campanha social’, a exemplo do texto em geral, como de medicamentos de venda sob pres- da Figura 1, que entendemos ser uma peça publicitária crição médica. Como resultado e também instrumento que se destina a promover um medicamento pela si- das mudanças sociais que inseriram a propaganda de mulação de campanha de ‘sexo seguro’. Na época, essas medicamento na lista dos objetos ‘controlados’ pela ações promocionais foram denunciadas à Anvisa, que vigilância sanitária, verificamos mudanças discursivas suspendeu a campanha publicitária e autuou o labora- na prática publicitária. Dentre elas, estão novas ‘tec- tório responsável. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010 269 270 RAMALHO, V. • Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil Figura 1 – Sexo seguro na vida adulta Distribuição gratuita, 2005. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010 RAMALHO, V. • Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil O texto do exemplo ilustra um tipo de tecnologia desejos e emoções que apontam para crenças e valores discursiva utilizada para promover medicamentos no particulares característicos de suas autoidentidades. As contexto de vigilância. Essa técnica da publicidade de mensagens emitidas pelos personagens podem ser vistas recorrer a outros formatos para atrair a atenção do leitor, como verbalização de crenças e valores implicados em como a história em quadrinhos (HQ), é bastante conhe- ‘identificações’ tanto do mundo quanto dos próprios cida e amplamente utilizada. No entanto, no caso do personagens. Esse também é o caso da linguagem verbal, texto Sexo seguro na vida adulta, o uso das tipificações da em que os verbos ‘conhecer’, ‘querer’, ‘gostar’, ‘adorar’ ‘arte seqüencial de disposição de imagens e palavras para etc. concorrem para a caracterização dos personagens, narrar histórias ou dramatizar idéias’ (Eisner, 1989, p. predominantemente representados no texto segundo o 5) não parece se limitar a atrair os consumidores poten- que sabem, são, desejam, gostam. Tal seleção de proces- ciais por meio de uma história que diverte para vender. sos contribui para construir o perfil do(a) consumidor(a) Essas finalidades são verificadas no texto, entretanto nele do medicamento anunciado veladamente. se observam algumas peculiaridades. Vários estudos sociais têm apontado uma mu- Por exemplo, nos anúncios em geral, mesmo com dança das práticas de consumo utilitaristas, próprias da formato de HQ, uma história é contada para vender sociedade industrial, para novas práticas fundadas num explicitamente um produto, um medicamento; o mesmo ‘consumismo hedonista’, voltado menos para suprir ne- não ocorre com este texto, em que o produto que se pro- cessidades do que para satisfazer desejos relacionados a move não está explícito. Da mesma forma, os anúncios prazer, bem-estar, felicidade, realização pessoal. É nessa em geral apresentam um bem/serviço como meio para perspectiva que, para Bauman (2001), o indivíduo não resolver uma ‘carência’, uma ‘necessidade’; aqui, a ‘solu- mais “nasce em” sua identidade. Precisa escolhê-la, o ção’ não é, ao menos explicitamente, uma mercadoria, que muitas vezes equivale a ir às compras, sobretudo mas sim supostas ‘informações sobre sexo seguro’. de viagens, vinhos, obras de arte, espetáculos. Essa O texto, em confronto com anúncios tradicionais, descrição aproxima-se do posicionamento atribuído ao apresenta apenas um dos três personagens mais fixos de consumidor do medicamento anunciado no texto, que publicidades: o ‘consumidor potencial’, representado ‘deveria’ buscar a expansão do potencial do corpo como por ‘homens e mulheres maduros com vida sexual ativa’. forma de autorrealização. O ‘anunciante e o produto’, por sua vez, não figuram na Se outrora, como verificamos em Ramalho (2006; narrativa. O primeiro só aparece no logotipo/assinatura 2008), os(as) consumidores(as) potenciais de medi- ao final do texto, ao passo que o produto é apenas insi- camento, representados em anúncios, eram chefes de nuado, e não referido explicitamente. família e donas de casa, mães, esposas, ‘nascidos(as) Conforme a Gramática Visual de Kress e van Leeu- nestas’ identidades, hoje, por outro lado, os consu- wen (1996), podemos observar que no texto há poucas midores ‘hedonistas’ do século 21, representados no ‘ações’, gestos, movimentos corporais entre os persona- texto em análise, por exemplo, são a mulher madura gens da HQ, visto que não há especificamente ‘ações e solteira, que não tem filhos, que está em busca de materiais’ direcionadas a outros participantes, mas sim relacionamentos amorosos, que expressa desejos; e o ‘ações verbais’. Isso significa que, na composição da ima- homem (cujo expoente seria o gatão de meia-idade, de gem, os participantes estão representados principalmen- Miguel Paiva), separado, que tem filhos mas não é chefe te pela verbalização de seus conhecimentos, percepções, de família, que também está em busca de prazer, e assim Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010 271 272 RAMALHO, V. • Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil por diante. Essa representação também está associada a dicamentos, fugindo, assim, ao menos durante o tempo uma imagem ‘elitista’ de pessoas com poder aquisitivo, suficiente para atingirem o(a) consumidor(a) potencial, haja vista elementos como ‘bar da moda’, ‘curriculum’, do controle da vigilância sanitária. e comportamentos como ‘falar baixo’, ‘malhar, fazer check-up’, e outros. As propagandas atuais posicionam o(a) consumidor(a) de medicamentos como aquele(a) CONSIDERAÇÕES FINAIS que possui poder aquisitivo para alcançar mais prazer e felicidade com a expansão do potencial corporal, possibilitada pelo consumo de drogas. Neste trabalho, discutiram-se resultados da tese Nos anúncios em geral, uma história é ‘contada de Ramalho (2008) sobre o discurso da propaganda para vender’, aqui, peculiarmente, além daquele fim, a de medicamentos brasileira. Aqui, especificamente, história é ‘contada para simular uma campanha social’ o objetivo foi discutir a emergência de novas ‘tecno- com vistas a promover um medicamento de venda sob logias discursivas’ com base na análise do texto Sexo prescrição. Para fugir a proibições legais que pesam seguro na vida adulta, distribuído gratuitamente em sobre esse tipo de propaganda, no texto articulam-se 2005. Foi visto que a hibridização discursiva elevada convenções discursivas da HQ de ‘condicionamento em textos promocionais de medicamento consiste de atitudes’, característica de campanhas de utilidade em uma ‘tecnologia discursiva’, uma manipulação pública, segundo Eisner (1989). Isto é, as tipificações da estratégica da linguagem orientada para projetos de HQ (personagens, imagens, balões de fala) são articula- dominação, sobretudo no que toca a relações entre das no texto para dissimular propósitos promocionais e ‘leigos’ e ‘peritos’, tanto da saúde quanto da lingua- estratégicos, passando-se por ‘informação’ e resultando gem. Os sentidos criados no texto analisado ilustram num híbrido de ‘campanha de saúde e publicidade’. sua potencialidade para obscurecer fronteiras entre Este é o caso, previsto na RDC 96/2008, de publicidade/informação, permitindo que, de modo “publicidade indireta”, “aquela que sem mencionar dissimulado, o discurso particular da publicidade seja o nome dos produtos, utiliza marcas e (ou) símbolos legitimado em anúncios híbridos e inculcado em iden- e (ou) designações e (ou) indicações capaz de identi- tidades projetadas na imagem do(a) consumidor(a) ficá-los [...]”. Trata-se, portanto, do uso figurado de de medicamento. características do ‘folheto de campanha de utilidade pública’ para dissimular a finalidade comercial do texto. A finalidade de desencadear a ação de ‘comprar R eferências e consumir o medicamento’ é representada como se fosse orientada para a ação de ‘prevenir doenças sexualmente transmissíveis’. Muitos outros aspectos discursivos que extrapolam esta discussão inicial são tratados em Ramalho (2008), que toma o texto aqui analisado como exemplar de uma série de outros anúncios publicitários que dissimulam sua função precípua de promover comercialmente me- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010 Angell, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: como somos enganados e o que podemos fazer a respeito. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Record, 2007. Anvisa. Consulta Pública n. 84/2005. [on-line] Disponível em: http://www4.anvisa.gov.br/base/visadoc/CP/CP%5B126631-0%5D.PDF. Acesso em 12 abr. 2010. RAMALHO, V. ______. Resolução RDC nº 96, de 17 de dezembro de 2008. [online] Disponível em: http://e-legis.anvisa.gov.br/leisref/public/ showAct.php?id=35664&word. Acesso em 12 abr. 2010. Barros, J.A.C. Antigas e novas questões: enfrentando uma conjuntura desfavorável. In: Barros, J.A.C. (Org.). 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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010 273 274 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade Medicalization and consumption: a look over health in contemporaneity Jurema Barros Dantas 1 Ariane Patrícia Ewald 2 Psicóloga; Doutora em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre em Estudos da Subjetividade pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Especialista em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial (IFEN) do Rio de Janeiro. [email protected] RESUMO Os medicamentos assinalaram uma revolução nas atividades de Doutora em Comunicação e Cultura; Professora do Curso de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ. [email protected] pensar a relação entre o consumo e o fenômeno da medicalização e como tal relação 1 2 Saúde Pública e na medicina. Hoje, imersa numa cultura de consumo, a noção de saúde parece se apresentar como uma extensão do mercado e o medicamento, como sua mais preciosa e lucrativa mercadoria. Os avanços tecnológicos oferecem soluções rápidas para qualquer desconforto físico ou emocional. As maravilhas da neuroquímica da vida cotidiana são festejadas, o que parece refletir um crescente anseio social por mais saúde e realização de todos os desejos. Este trabalho objetivou reposiciona a noção de saúde na contemporaneidade. PALAVRAS-CHAVE: Medicalização; Consumo; Saúde. ABSTRACT The drugs marked a revolution in Public Health activities and in medicine. Nowadays, surrounded by a culture of consumption, the notion of health seems to be presented as an extension of the market and the product, as their most valuable and lucrative commodity. Technological advances offer quick solutions to any physical or emotional discomfort. The wonders of the neurochemistry of everyday life are exalted, which seems to reflect a growing desire for more social care and fulfillment of all desires. The aim of this paper was to discuss the relationship between consumption and the phenomenon of medicalization and how such relationship repositions the notion of health in the contemporary society. KEYWORDS: Medicalization; Consumption; Health. * Artigo desenvolvido a partir de pesquisa de doutorado financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. I N T R O D U ç ão • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade bem como a busca desenfreada por felicidade e bemestar, são assuntos que ocupam lugar de destaque nas discussões em curso nas diversas áreas do conhecimento. A multiplicidade de discursos e práticas relacionados A experiência de dor, desassossego e inquietude à medicalização parece ganhar relevância no mundo [...] é provavelmente tão antiga como a história contemporâneo. E, assim, a medicalização da socieda- do gênero humano. E atravessa cada existência de, expressão da tendência a se considerar as situações do princípio ao fim. Não menos antiga e cons- adversas da vida como problemas médicos solucionáveis tante é a busca de soluções, remédios, cura [...]. por meio de medicamentos, parece estar tornando o me- O urgente é curar. (Garcia, 2001, p. 11). dicamento, um produto síntese de ciência e tecnologia, um recurso especial para a solução de variados proble- O crescente uso indiscriminado de psicofármacos mas. Queremos pôr em evidência essa efervescência na tem chamado atenção de profissionais de diversas áre- crença de que o medicamento, apoiado na química e na as. Há um gritante contraste entre desenvolvimentos biologia, dispõe de substâncias capazes de enfrentar a biotecnológicos sem precedentes e a existência de um grande maioria das doenças e dos problemas cotidianos, sentimento crescente de fragilidade da vida. Estudar as promovendo a saúde e a felicidade a quem se dispuser a diferentes formas pelas quais a medicalização excessiva pagar por suas fórmulas. da sociedade constitui uma prática cultural determinada Em nossa pesquisa de doutorado envolvendo cinco torna-se uma indagação fundamental para o campo da Serviços de Psicologia Aplicada (SPA) de universidades psicologia. públicas e particulares no Rio de Janeiro, como Univer- A medicalização da sociedade é um fenômeno que sidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade tem sido sinalizado por vários autores desde o século Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Pontifícia Universi- 19, quando o saber científico se espalhava pelos vários dade Católica do Rio de Janeiro (PUC), Universidade domínios sociais. Mas foi a partir da década de 1940, Veiga de Almeida (UVA) e Universidade Gama Filho com a introdução dos psicofármacos, que este fenôme- (UGF), realizamos um trabalho de campo por meio de no passou a se tornar cada vez mais intrusivo na vida entrevistas. Este trabalho foi baseado em um roteiro cotidiana. Compreender de que forma este fenômeno semiestruturado analisado e aprovado pelo Comitê de tem alcançado tamanha evidência e repercussão na Ética da Uerj. Foram entrevistados 50 usuários, sendo sociedade contemporânea e estabelecido padrões de 10 usuários de cada instituição envolvida escolhidos comportamento em relação ao uso indiscriminado de aleatoriamente, seguindo-se somente a exigência de medicamentos se revela o desafio central deste artigo. serem maiores de idade. Foram entrevistados usuários Acredita-se que haja a implicação de uma prática so- que já se encontravam em atendimento ou que estavam cial que tem transformado a existência cotidiana num indo ao SPA pela primeira vez. problema médico-farmacológico e é essa prática que se pretende, aqui, compreender. A faixa etária dos entrevistados foi bem variada. No público feminino, tivemos pessoas com idade entre 19 O tema da medicalização está na moda. O uso e 69 anos e, no público masculino, entre 18 e 35 anos. abusivo de medicamentos vem ocupando um significa- Dos 50 entrevistados, 48 fazem uso de medicamento e tivo espaço nos meios de comunicação. A medicalização, apenas dois buscam alternativas em tratamentos natu- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 275 276 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade rais. Dessas 48 pessoas, 44 usam medicamentos em geral, sensações àqueles que os consomem. Pensa-se que estes sobretudo analgésicos, e 35 fazem uso de psicotrópicos. dados podem ajudar a tecer um panorama geral de algu- Vale ressaltar que cinco já pensaram em fazer uso de mas das principais questões do debate contemporâneo psicotrópicos, mas alegam ter medo da dependência, sobre o consumo de medicamentos e as questões que quatro fazem uso dos chamados calmantes naturais, envolvem a noção de saúde nos dias atuais. como o Pasalix, e dois usam remédios para emagrecer. Vários estudos têm sido feitos sobre a sociedade A maior parte do uso desses medicamentos ocor- de consumo, sua ideologia e sua vinculação crescente re por indicação médica, porém verificamos que há às noções de bem-estar, saúde e felicidade. De acordo quem consuma medicamentos por procura própria com Angell (2008), os americanos gastam a quantia ou indicação de outros, especialmente da família. A de 200 bilhões de dólares por ano em medicamentos maioria das pessoas compra medicamentos tanto com de prescrição médica obrigatória. Segundo a autora, os receita (remédios controlados) como sem receita (em laboratórios farmacêuticos canalizam a maior parte de sua maioria, analgésicos). Do total de entrevistados, 38 seus recursos para a propaganda de produtos de benefício acreditam que o remédio prejudica a saúde devido aos duvidoso, colocam no mercado produtos novos que na efeitos colaterais e à possibilidade de dependência. As verdade são constituídos de velhas substâncias já usadas outras 12 pessoas acreditam que o medicamento não faz pela população e vendem diariamente medicamentos mal à saúde pela sua confiança no médico. que supostamente vão recuperar e, sobretudo, promover Aqueles que fazem uso do medicamento têm a saúde. Um complexo jogo de interesses dirigido pelas como expectativa: o resultado rápido (27), a melhora indústrias farmacêuticas está presente nestas compa- (19), o alívio (13), a cura (11), a tranquilidade (seis) ou nhias que investem com diferentes interesses tanto o equilíbrio (2). Quarenta e três entrevistados acham em pesquisas, promovendo inovações constantes nesse que não tomam muitos medicamentos e apenas sete campo, quanto em publicidade, criando novos mercados apresentaram um discurso de inquietação no que se consumidores para os produtos farmacológicos. refere à quantidade de medicamentos que usam. Dos 50 A publicidade de fármacos pode ser considerada a entrevistados, 49 acreditam que o remédio é necessário principal via pela qual estas indústrias tornam seus pro- porque há situações em que o seu uso é indispensável dutos atraentes e, logo depois, praticamente indispensá- (21), porque o remédio existe para ajudar (9), porque veis à vida do indivíduo contemporâneo. Desta forma, a acham que o remédio alivia a dor (8), porque serve para propaganda − direcionada tanto aos médicos quanto ao curar (6), porque não há necessidade de sofrer se existe o público em geral − é uma das grandes responsáveis pela remédio (2), porque ajuda a suportar a vida (2), porque disseminação de uma cultura que exalta os efeitos dos é uma solução (2) ou porque pode trazer o equilíbrio fármacos, promovendo a crença de que ‘para tudo na (1 entrevistado). vida há um remédio’ e que estas fórmulas foram desen- Estes dados estão sendo apresentados como uma maneira de problematizar, neste artigo, os novos modos volvidas unicamente ‘para facilitar’ a vida dos indivíduos, não envolvendo, portanto, nenhum risco. de ser e estar na contemporaneidade, inscritos nessa lógi- Acredita-se que a publicidade, associada à facili- ca em que os medicamentos possuem ‘poderes mágicos’ dade de acesso aos medicamentos em farmácias, super- e passam a ter como função, além da tentativa de cura mercados e até camelôs, parece criar a ilusão de que os das enfermidades, a atribuição de valores, sentimentos e medicamentos são produtos livres de efeitos graves e em Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade nenhum momento se pensa, como propõe Nascimento ra do consumo, o que significa que seus valores, práticas (2003), que os medicamentos podem aliviar, controlar e instituições fundamentais estão preponderantemente ou eventualmente contribuir para a cura de enfermida- sedimentados sobre as relações de mercado e seus des- des específicas, mas o caminho para um estado de saúde dobramentos. Esta cultura tem como meta principal a melhor passa necessariamente por uma transformação perpetuação do consumo de mercadorias; para tanto, cultural e social. associam-se todos os desejos e necessidades − objetivos Simultaneamente a esta mudança cultural, assis- ou subjetivos − aos produtos e serviços oferecidos no timos que a permanente evolução da prática médica mercado. Tudo pode ser obtido através da compra dos demanda, cada vez mais, que novas drogas sejam in- produtos. Estes, por sua vez, como nos mostra Slater corporadas ao arsenal terapêutico disponível para tratar (2002), deixam de ser meros objetos para se tornarem diversas situações do nosso cotidiano. Este fato amplia mercadorias/signos, objetos capazes de atribuir qualida- significativamente o peso da indústria farmacêutica no des e sensações abstratas a quem os compra. que se refere às questões que envolvem saúde. Em outras A crença excessiva e, até certo ponto, ingênua no palavras, podemos dizer que este ideário, aparentemente poder dos medicamentos, ao lado da crescente oferta montado para enriquecer as indústrias do ramo farma- e indicação desses produtos, com vigoroso suporte da cêutico, alterou profundamente nossa relação com os mídia, tendem a aproximá-los da condição de fetiche1 medicamentos e, consequentemente, o uso que é feito inanimado da atualidade, encarnando o poder sacraliza- destes produtos, assim como parece reposicionar a questão do da ciência e da tecnologia sobre a vida dos mortais. da saúde atrelando-a também à lógica de mercado. No cenário brasileiro, uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Cultura de consumo e em 2007, revelou que foram gastos pela população 45 contemporaneidade bilhões em medicamentos. Segundo a pesquisa, a população brasileira envolve 7% de sua renda na compra de medicamentos. Contudo, tal fenômeno parece não Entende-se cultura, tal como apresentada por estar diretamente relacionado à incidência de patologias Laraia (2001), como o modo de vida de um povo, ou à erradicação de doenças que há muito acomete a abrangendo os mais diversos campos contidos neste população brasileira, mas sim ao consumo de medica- viver: conhecimentos, crenças, valores, moral, artes, mentos, legitimados pela ciência e identificados com o costumes, leis, hábitos, ideias, mitos, lendas, insti- progresso, que parecem ser vistos por um grande número tuições, serviços. Na atualidade, todas estas questões de pessoas como instrumentos eficazes para enfrentar estão intimamente relacionadas ao consumo de mer- quase todos os males da vida. cadorias, ação que se tornou reguladora da sociedade Nesse sentido, torna-se fundamental um estudo contemporânea. Nesse sentido, a cultura do consumo, sobre a cultura de consumo enquanto lógica que regula embora não seja a única maneira possível do viver em todos os âmbitos da vida na sociedade contemporânea. sociedade, é, sem dúvida, a predominante. Esta forma Os países capitalistas vivem, hoje, imersos em uma cultu- de reprodução cultural, segundo Slater (2002): A palavra “fetiche”, segundo o Dicionário Aurélio, se origina do termo feitiço e se refere a um objeto feito pelo homem ou produzido pela natureza ao qual se atribui poder sobrenatural e se presta culto; ou a uma pessoa, a quem se venera ou obedece às cegas. 1 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 277 278 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade Designa um acordo social onde a relação entre a como era do apogeu da produção de massa fordista. De cultura vivida e os recursos sociais, entre modos acordo com Slater (2002), esta época foi marcada pelo de vida significativos e os recursos materiais e ‘milagre econômico’, que proporcionou uma elevação simbólicos dos quais dependem, são mediados dos padrões de consumo dos países-sede do capitalismo. pelos mercados. A cultura do consumo define Os indivíduos consumidores contam, então, com um um sistema em que o consumo é dominado pelo alto poder aquisitivo, o que configura o cenário de uma consumo de mercadorias, e onde a reprodução ‘sociedade opulenta’ na qual a prosperidade econômica cultural é geralmente compreendida como criou necessidades insaciáveis e moralmente duvidosas; algo a ser realizado por meio do exercício do uma crise de valores a respeito da ética do trabalho e livre-arbítrio pessoal na esfera privada da vida uma bifurcação do desejo entre o consumo respeitável cotidiana. (p. 17). e o consumo hedonista. Este fenômeno instaura uma era de conformismo, Desde o século 16, vigorava nos países europeus de entorpecimento cultural, decorrente do alastramento uma ‘cultura de comércio’ caracterizada principalmente do consumismo exacerbado e alienado, incentivado pe- por uma grande diversificação de mercadorias comercia- los interesses capitalistas de escoar a gigantesca produção lizadas. Dois séculos depois, com a progressiva expansão de mercadorias padronizadas. A sociedade acreditava ter dos mercados – que passam a intermediar todos os alcançado o mundo industrial na terra prometida da aspectos sociais, culturais e ideológicos da vida dos indi- abundância consumista, era consenso que a cultura do víduos –, ocorre a cultura de consumo. A ‘revolução do consumo representava, segundo Slater (2002), garantia consumidor’ precedeu a Revolução Industrial, portanto, de prosperidade crescente e de estabilidade político- a cultura consumista não é uma mera consequência da econômica. Aproximadamente em 1980, a cultura industrialização, mas um processo de transformação do consumo foi articulada à lógica neoliberal. Nesse muito mais longo. momento, o consumismo assume novas características As novas práticas culturais, implementadas na tanto no âmbito social quanto no individual: inaugura- modernidade, foram determinantes para que quase tudo se a era da ‘soberania do consumidor’, que vigora até se tornasse passível de consumo: todas as novidades – os dias de hoje. em termos de experiências ou bens – devem, então, Em linhas gerais, podemos dizer que a cultura do ser exibidas e consumidas por representarem símbolos consumo está inserida na lógica da modernidade cujos do progresso moderno, da civilização e da grandeza sinais estão ligados às consequências da Revolução nacional. Assim, desde os últimos anos das primeiras Industrial e ao processo de expansão do capitalismo décadas do século passado, há um intenso processo de industrial; às novas máquinas e novas tecnologias; à remodelação cultural no que diz respeito às formas como dinâmica entre o antigo e o moderno; à ideia de novi- os bens de consumo deveriam ser produzidos, vendidos dade; à crença irrestrita na evolução e no progresso; à e assimilados pela vida cotidiana. Tais transformações antinomia barbárie versus civilização; a uma aceleração propiciam uma redefinição da cultura do consumo: que ‘subjetiva’ do tempo; à velocidade; e à entronização do agora é entendida em termos da produção e de consumo dinheiro que, gradativamente, passa a mediar todas as em massa. Esse ideário foi severamente intensificado relações sociais (Ewald, 2001). A partir disso, surge uma após a Segunda Guerra Mundial, período destacado nova ‘sensibilidade moderna’ que pode ser percebida Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade por uma nova atmosfera de agitação e turbulência, de e material na qual o homem acredita ser governado aturdimento psíquico com expansão das possibilidades por algo que, na realidade, ele próprio criou. O ponto de novas experiências e destruição das barreiras morais de partida do seu pensamento é uma crítica ferina e e dos compromissos pessoais. Gradativamente, como radical a todo e qualquer tipo de imagem que leve o parte fundamental do desenrolar deste processo de homem à passividade e à aceitação dos valores preesta- construção da modernidade, forjou-se uma ‘cultura do belecidos pelo capitalismo. Para este filósofo, cineasta e consumo’ cada vez mais sólida que passou a se incorporar ativista francês, a sociedade encontra-se contaminada à lógica da sociedade e exerceu um forte impacto no jogo pelas imagens, sombras do que efetivamente existe. O das sociabilidades e das convivencialidades. espetáculo é, ao mesmo tempo, parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de unificação. Coloca o autor: O contemporâneo e o espetáculo: um olhar sobre a cultura do O espetáculo, compreendido na sua totalidade consumo é simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um complemento do mundo real, um adereço deco- Ao falar sobre cultura do consumo, entra em cena rativo. É o coração da irrealidade da sociedade certo percurso histórico que parece estar marcado por real. Sob todas as suas formas particulares de uma época de máquinas cibernéticas e computadores, informação ou propaganda, publicidade ou em que a comunicação instantânea e o controle contínuo consumo direto do entretenimento, o espetáculo formam subjetividades marcadas pela velocidade e ime- constitui o modelo presente da vida socialmente diatismo dos fatos e da própria vida. Temos configurado dominante. Ele é a afirmação onipresente da uma sociedade calcada em modelos fluídos de controle escolha já feita na produção, e no seu corolário da subjetividade, em prazeres descartáveis, em relações – o consumo. (Debord, 1997, p. 13). passageiras e obsoletas. Falamos, então, de uma sociedade fluida que se caracteriza pela tentativa de controle O autor afirma que toda a vida se apresenta como do tempo, do corpo e da vida. Vida que, por seu caráter uma imensa acumulação de espetáculos, na qual, pela trágico e finito, comporta sofrimento. mediação das imagens e mensagens dos meios de comu- Esta sociedade fluida e líquida imprime, de acor- nicação de massa, os indivíduos em sociedade abdicam do com Bauman (1998), um novo contorno do social à dura realidade dos acontecimentos da vida e passam a onde somos intimados a agir incessantemente na busca viver num mundo movido pelas aparências e consumo pelo prestígio, pelo reconhecimento e pela informação. permanente de fatos, notícias, produtos e mercadorias. Estamos no campo do espetáculo que, de acordo com Nesse mar de espetáculo e tecnologia, a imagem é pre- Debord (1997), é uma forma de sociedade em que a ferida ao objeto, a cópia ao original, o simulacro ao real. vida real é pobre e fragmentária e os indivíduos são Prefere-se qualquer medicação a ter que refletir sobre a obrigados a contemplarem e a consumirem passiva- existência e a tragicidade que lhe é inerente. Busca-se mente as imagens de tudo o que lhes falta na vida a saúde que nos apresentam refletida no corpo deline- real. O espetáculo é uma verdadeira religião terrena ado pelas academias ou clínicas de estética, refletida Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 279 280 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade nos padrões de beleza, sucesso e juventude. A saúde se das perdas, o confronto com a morte, com o outro e com apresenta, hoje, segundo Lefèvre (1991), como exten- seus próprios limites, o distanciamento e isolamento são do mercado e, por consequência, o medicamento, das pessoas propiciado pelos grandes centros urbanos a sua mais nobre mercadoria. Ao se tornar extensão do são formas de sofrimento com as quais não queremos mercado, a saúde, muitas vezes, parece estar associada à lidar. Nesta sociedade do espetáculo, invadida pelas obtenção de atributos considerados essenciais para a fe- imagens, parece que temos uma vida contemporânea licidade no mundo contemporâneo e os medicamentos, superexposta operando modos de subjetividade morti- neste contexto, passam a ser utilizados não só para uma ficada e medicalizada. possível cura ou alívio de enfermidades, mas também Neste campo do espetáculo, vivemos a produção como caminho mais rápido e efetivo para aquisição de imagens e verdades efêmeras no que se refere à nossa destes ícones de beleza, juventude e bem-estar do viver saúde, já que a cada dia podemos ser surpreendidos moderno. Sob esse prisma, no enfrentamento de nossos tanto por uma nova descoberta que mudará nossas problemas diários, qualquer produto ou mercadoria vidas quanto pela surpresa em saber que atitudes an- é mais eficiente e, sobretudo, menos trabalhoso. Na teriormente incentivadas passam a ser proibidas pelo busca por cauterizar nossas dores frente às contradições discurso legítimo e inquestionável da ciência. Assisti- inerentes à vida, damos passagem a qualquer medica- mos a uma manipulação dos gostos e das opiniões via mento ou terapêutica instantânea que alivie o tão temido construção e veiculação instantânea de sistemas de ‘mal-estar’. signos e imagens que, por vezes, parece exaltar o uso Neste espetáculo das brevidades, das soluções rápi- de medicamentos no nosso cotidiano. Somos cercados das, da ilusão de que tudo se pode controlar, assistimos à por fórmulas e substâncias que se mostram capazes multiplicação de ícones e imagens, principalmente atra- de oferecer emagrecimento, massa muscular, solução vés dos meios de comunicação de massa, mas também para calvície, para os sinais de envelhecimento, para a dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, insônia, impotência sexual, desatenção, entre outros. de tudo aquilo que falta à vida real do homem comum: Comportamentos, situações diárias e insatisfações celebridades, atores, políticos, personalidades, gurus, podem ser explicados e provavelmente resolvidos por mensagens publicitárias – tudo transmite uma sensação todo esse arsenal medicamentoso. de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e Com isso, não fica difícil pensar no uso abusivo ousadia. O espetáculo é a forma mais elaborada de uma de medicamentos na contemporaneidade como uma sociedade que desenvolveu ao extremo o ‘fetichismo da produção de modos de ser e estar que visam ao imedia- mercadoria’, onde, por vezes, a felicidade identifica-se tismo, à estetização do corpo, ao prazer a qualquer custo com o consumo. e ao bem-estar supremo. Não pensamos nas questões Lançados então numa sociedade que cria cenários inerentes à vida como fenômenos passíveis de nos con- como um espetáculo, em que realidade e imaginação se vocar à singularização e reflexão temática sobre nossa confundem; em que a representação se torna a realidade existência, costumeiramente as tomamos como males a final, não surpreende que, diante de inibições, temores e serem extirpados, na medida em que prejudicam a cadeia emoções, tenhamos construído uma ‘irrealidade cotidia- dos fluxos do contemporâneo. Fluxos marcados pela na’ em que a medicalização para estes ‘estados doentios’ volatilidade e valores sociais marcados pela labilidade e tenha se tornado a regra básica de tratamento. As dores instantaneidade. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. O consumo de mercadorias - signos • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade O produto não vale apenas pelo seu ‘real’ valor de uso, ou seja, pela utilidade prática que terá na vida do consumidor. A valorização que cada indivíduo atribui O consumo, em uma sociedade marcada pelo aos objetos depende da promessa de valor de uso, que capital, se fundamenta na manipulação ativa de sig- é um somatório de processos concretos e abstratos. nos: as mercadorias e os signos (valores, características Segundo Haug (1997), o que impulsiona o interesse abstratas, ideias) se fundem, formando uma entidade por uma determinada mercadoria, do ponto de vista única e coesa, a mercadoria/signo. Tal fusão só é possível qualitativo, é a promessa do valor de uso que este porque a cultura assume o papel de disseminadora desta produto desencadeia em cada indivíduo. Tal promessa concepção, tornando-a parte integrante da vida dos constitui um jogo entre fatores objetivos e subjetivos: o indivíduos contemporâneos. Como coloca Baudrillard exterior da mercadoria, sua aparência, as propriedades (1981), “chegamos ao ponto em que o ‘consumo’ invade de sua superfície, sua cor, seu cheiro, a forma como toda a vida” (p. 20), uma vez que, atualmente, tudo é se apresenta a marca. Tudo isso desencadeia no con- perpassado pela cultura do consumo. Um consumo sumidor a associação de certos valores ao produto, ou que absorve cada vez mais partes da vida social, que se seja, impulsiona a subjetividade do comprador a tecer ampara em critérios e funções individuais, segundo uma certos discursos sobre o objeto. lógica emotiva e hedonista e que dita a especificidade As promessas ‘emitidas’ por um produto se dão tanto das relações que estabelecemos com nossos afetos, com indiretamente, através de seu burilamento estético, quanto os objetos, com os outros, com a vida. diretamente, através da atribuição explícita de qualidades Em um primeiro momento, os signos são asso- abstratas em mercadorias concretas. Ambos os processos ciados às mercadorias visando a ‘individualizá-las’ e configuram o ‘fetichismo da mercadoria’: atribuição de torná-las mais atraentes aos compradores em potencial. “faculdades, propriedades, valores e significados” (Slater, Esta tarefa é fundamental para o estabelecimento de 2002, p. 112) às mercadorias. Tal processo desencadeia uma conexão entre os produtos – fabricados em massa uma fusão do conteúdo objetivo utilitário dos produtos para um público anônimo – e as idiossincrasias de com valores culturais, sociais e econômicos, que passam cada consumidor. Slater (2002), com base nas teorias a parecer uma propriedade natural da coisa em si. Nesse desenvolvidas por Marx, afirma que a cultura do con- cenário, “os objetos aparecem divorciados de seu contexto sumo tem como um de seus pilares de sustentação mais e submetidos a associações misteriosas, que são lidas na importantes o processo de: superfície das coisas” (Featherstone, 1990, p. 44), pois “os produtos do consumo não se vivem como fruto de [...] estética da mercadoria: o produtor trabalho ou de processos de produção; vivem-se como precisa criar uma imagem de valor de uso milagre” (Baudrillard, 1981, p. 23). onde os compradores em potencial possam se Ao mesmo tempo em que a mercadoria torna- reconhecer. Todos os aspectos do significado do se representante de uma série de signos, sensações, produto e todos os canais através dos quais seu experiências e outras qualidades, o inverso também significado possa ser construído e representado acontece, ou seja, há uma objetivação de conceitos passam a ser submetidos a um cálculo intenso abstratos no corpo das mercadorias. Torna-se pos- e racionalizado. (p. 38). sível a aquisição concreta de sentimentos, valores e Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 281 282 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade fragmentos de personalidade por meio da compra de [...] os bens, serviços e sinais devem despertar determinados produtos: parece que tudo que existe no desejo e, para isso, devem seduzir os possíveis mundo, incluindo as pessoas, é reduzido à condição consumidores e afastar seus competidores. Mas, de objetos manipuláveis e calculáveis. Há uma con- assim que o conseguirem, devem abrir espaço cretização de todos os signos através das mercadorias. rapidamente para outro objeto de desejo, do Quais signos podemos reconhecer nos medicamentos? contrário a caça global de lucros e mais lucros Talvez signos de bem-estar, felicidade, tranquilidade, irá parar. A indústria atual funciona cada vez virilidade, entre outros. Da mesma forma, podemos mais para a produção de atrações e tentações. ousar em dizer que os signos que envolvem a saúde (p. 86). podem ser identificados com medicamentos, academias, clínicas, produtos de beleza, vitaminas, entre O consumo parece ser a instância ordenadora da outros. Diariamente consumimos signos. Para nos vida em sociedade, visto que “as pessoas usam as merca- sentirmos livres, fumamos um certo cigarro; no in- dorias de forma a criar vínculos e estabelecer distinções tento de obter masculinidade, adquirimos um certo sociais” (Featherstone, 1990, p. 31). O processo de carro; se o objetivo é ser ‘legal’ compramos um tal consumo pode ser analisado: celular; e, naturalmente, se a intenção for alcançar a felicidade, tomamos Prozac. [...] como processo de classificação e de di- O ato de consumir é, segundo Baudrillard (1981), ferenciação social, em que os objetos/signos um dever do cidadão, e este processo aparentemente se ordenam, não só como diferenças signifi- impositivo, no entanto, não é explícito: não se dá cativas no interior de um código, mas como através da coação, mas do convencimento ideológico, valores estatutários no seio de uma hierarquia. da persuasão implementada pela cultura. A cultura do (Baudrillard, 1981, p. 66). consumo é responsável pela produção incessante de necessidades e desejos que devem, segundo Bauman O indivíduo constitui, assim, seu sistema de valores (2003), conduzir à obtenção de mercadorias. À medida a partir do consumo de determinados objetos/signos. À que a constante criação de novas necessidades é o motor medida que pretende, por exemplo, tornar-se saudável, o de toda a estrutura consumista, a maior ameaça à sua sujeito tem que fazer uso de uma série de produtos/saúde permanência é a possibilidade de satisfação de todos os e serviços/saúde para que ele próprio sinta-se possuidor desejos, o esgotamento de todas as necessidades. Para do valor em questão e os outros o identifiquem como tal. afastar tal possibilidade, a cultura constantemente renova Nesse sentido, é necessário apenas tomar um remédio, os desejos tanto disponibilizando novos produtos no ou um iogurte light, para ter saúde e, consequentemen- mercado, quanto promovendo frequentes mudanças nas te, ser saudável independentemente do fato de fumar formas de relacionar signos a mercadorias. Portanto, no muito ou comer alimentos gordurosos com frequência. sistema ‘consumista’, a única possibilidade de satisfação A vida parece uma espécie de louca corrida individual é imediata e efêmera, sendo rapidamente substituída em busca do bem-estar, da felicidade, do sucesso, do por outro desejo/mercadoria. Bauman (1999), em desenvolvimento pessoal, da novidade, da exigência um parágrafo, prescreve a fórmula da vida eterna do de desempenho e da excelência, na qual a medida de consumismo: bem-estar parece proporcional à medida de mobilida- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade des, de polivalências, de capacidades em fornecer mais capitalista, uma vez que, além de disseminar valores, rapidamente as respostas apropriadas. ideias, formas de agir e maneiras de pensar, pretende O consumo se tornou o meio de comunicação engessar nossas necessidades e expectativas em função da universal da contemporaneidade, instaurando um ce- demanda econômica. Os anúncios publicitários parecem nário onde identidades, valores, sentimentos, desejos, ter o poder de transformar um simples objeto em um experiências, necessidades, sensações, status, emoções, misto de sensações, emoções e experiências. personalidades, relações podem ser encontrados nas prateleiras do mercado. Em face de tantas possibilidades A publicidade, para as sociedades que a adotam, e em face de tantas competências que necessita atingir é uma das formas que permitem a mediação e apresentar, o sujeito se vê diante do impossível, isto entre domínios diversos. Pela publicidade um é, o sentimento de nunca ser capaz de acompanhar e produto múltiplo e impessoal se transforma em atender às exigências cada vez mais intensas e urgentes da algo único, nomeado, particular, próprio para sociedade contemporânea. Esses sentimentos fazem com cada consumidor. (Rocha, 1995, p. 60). que ele busque o consumo de objetos aos quais possa aderir na ilusão de suportar seu sofrimento e de alcançar O conteúdo das mensagens publicitárias assume, de a felicidade e o bem-estar. Facilmente, tornamo-nos acordo com Baudrillard (1981), um caráter mágico onde a dependentes de ‘soluções’ imediatas que se apresentam sociedade, representada dentro da propaganda, embora es- ilusoriamente como portadoras da capacidade de pre- truturada a partir da sociedade real, funciona de um modo encher qualquer sentimento de vazio. completamente diferente desta. A publicidade exibe: Um mundo em férias perpétuas, tranqüilo, sorri- Publicidade, consumo e dente e despreocupado, povoado por personagens medicamentos: um mundo de felizes que possuem, enfim, o milagroso produto imagens e promessas que os fará belos, impolutos, livres, sãos, desejados, modernos.(Ramonet, 2001, p. 34). A disseminação da cultura do consumo é for- A publicidade desempenha, no cenário do con- temente favorecida pelos meios de comunicação que sumo, uma função fundamental ao veicular e induzir facilitam, agilizam e dinamizam a universalização dos ideias, atitudes e padrões de comportamento. O mundo conteúdos culturais. Os meios de comunicação de massa da propaganda atinge, assim, seu precioso objetivo de invadem nosso cotidiano, passando a ser parte integrante fomentar continuamente desejos e necessidades. A cul- e indissociável do viver em uma sociedade capitalista. tura do consumo, em meio a este universo de desejos e Segundo Rocha (1995), a comunicação de massa é um necessidades, oferece, através de seu complexo arsenal lugar privilegiado, uma espécie de janela com vista pa- de mercadorias-fetiche, um modelo ideologicamente norâmica para a sociedade. Suas mensagens não fazem construído e difundido de bem-estar e de felicidade. outra coisa se não seduzir a sociedade, existindo em articulação ao seu desenho ideológico. Nesse sentido, a A linguagem publicitária reforça as motivações publicidade é fundamental à manutenção da sociedade existentes e apresenta os medicamentos como Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 283 284 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade soluções ideais para um número cada vez maior algum tipo de medicamento com fins comerciais. Nosso de problemas típicos da sociedade contemporâ- viver diário parece ter se tornado comércio, ou melhor, a nea. A crença de que uma pílula seja capaz de própria vida se tornou comércio. Nossas questões existen- eliminar ou, pelo menos, amenizar estes proble- ciais também parecem ter se tornado comércio na medida mas é fator complementar e primordial para o em que podemos medicá-las. Pensar sobre a vida e sobre consumo. (Nascimento, 2003, p. 22). a existência parece ser doloroso, dispendioso e demorado num mundo que vive em ritmo acelerado. Assim, graças à publicidade, os medicamentos apa- A vida nos impõe frequentes circunstâncias desen- recem como ‘milagreiros’ na banalização de seu uso frente cadeadoras de frustrações, desencantos e sofrimentos, a qualquer desconforto existencial. Gastam-se, como nos contudo, a medicação cria a ilusão de que podemos nos propõe Angell (2008), mais recursos financeiros com tornar imunes ao sofrimento, às perdas e riscos de viver. publicidade do que com pesquisa e desenvolvimento de Logo, quando falamos em saúde, podemos afirmar com novos medicamentos. Segundo Barros (2000), as cam- certa segurança que em nenhuma outra época tivemos panhas publicitárias são planejadas para atingir desde o tantas e tão significativas mudanças quanto no século médico e o farmacêutico até o dono da farmácia, o balco- 20. Podemos dizer, também, e neste caso com certa in- nista e o paciente, conseguindo influenciar a prescrição, quietação, que em nenhuma outra época consumimos a dispensação, a venda e o consumo de medicamentos, tantos medicamentos quanto atualmente e que passamos além de ser considerada uma atualização terapêutica pelos a ‘criar’ novas doenças sobre o que antes chamávamos profissionais da área de saúde. Na tentativa de elevar o de problemas da existência humana. padrão de consumo dos medicamentos, a indústria farmacêutica tem utilizado diferentes formas de publicidade dirigidas aos profissionais de saúde e ao público leigo em Medicalização e geral. O fato de existirem várias opções farmacêuticas contemporaneidade: o consumo de para o mesmo fim torna a publicidade e outras técnicas saúde e felicidade de mercado elementos diferenciais para uma maior ou menor venda de um produto. Atualmente, a publicidade se volta cada vez mais para o consumidor, o que parece Neste cenário, evidencia-se que a cada dia o processo aumentar drasticamente o uso de medicamentos, enfati- de medicalização e banalização da existência humana se re- zando os benefícios e não os possíveis problemas advindos vigora com diversos medicamentos facilmente receitados de seu uso. Segundo Wannmacher (2004), a publicidade pela medicina, pelo balconista da farmácia ou pela própria parece ter a função de induzir o uso indiscriminado, en- família. Nossas angústias e nossos sofrimentos existenciais carecer o custo dos produtos e deseducar as pessoas sobre foram absorvidos pela lógica de mercado e transformados seu efetivo papel na recuperação da saúde. Isto porque, do numa química a ser ingerida cotidianamente em uma ponto de vista publicitário, a informação sobre os riscos maneira ‘eficiente’ e ‘prática’ de resolução dos problemas de um medicamento se mostra como uma espécie de que atravessam a vida na contemporaneidade. contrapropaganda, na verdade uma contraindicação ao produto. Longe de informar ou esclarecer, a publicidade A necessidade de adequação a valores estéticos parece se preocupar em divulgar e promover a adesão a e de conduta, considerados ideais na sociedade Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade contemporânea, tem sido uma motivação cres- esse que, em uma sociedade onde tudo pode e deve ser cente nos últimos anos. É o caso das pessoas que transformado em mercadoria (Slater, 2002), torna-se buscam, em fórmulas farmacológicas, a solução algo que se encontra em produtos como medicamentos, para emagrecer ou engordar, obter mais massa planos de saúde e alimentos saudáveis. Dessa maneira, muscular, driblar a calvície ou alguns sinais do a saúde “toma a forma hegemônica de coisa concreta, envelhecimento. Em se tratando de condutas e deixando eclipsada sua dimensão de relação com o so- estados de ânimo, o alvo a ser alcançado pode cial, com o comportamental” (Lefèvre, 1991, p. 21), ser mais tranqüilidade no dia-a-dia, sono na o que propicia o alastramento da ideia de que a saúde hora de dormir, ou estímulo suficiente para e o bem-estar estão associados ao consumo progressivo o trabalho, para o lazer e até mesmo para o de mercadorias. prazer. (Nascimento, 2003, p. 21). Há, portanto, uma mudança da noção de saúde, principalmente através dos medicamentos. Tal processo, A saúde e o bem-estar plenos se mostram valores somado à intensa atribuição de valores e qualidades primordiais da sociedade contemporânea, à medida que abstratas aos medicamentos, promove a crença atual de são pré-requisitos para que o indivíduo possa alcançar que a saúde está concretamente naquele comprimido todos os seus desejos. A ideia de saúde, particularmente, ou naquela gota. A saúde torna-se objeto e os remédios abrange uma multiplicidade de definições: a princí- passam a ser investidos de ‘determinados poderes’, sen- pio seria uma “condição humana prévia, preliminar” do que o uso destes produtos deixa de estar restrito ao (Lefèvre, 1991, p. 21), uma premissa existencial. Em mero utilitarismo, assumindo uma série de significados segundo lugar, a saúde pode ser definida como a rela- abstratos. A saúde associada aos remédios (dentre outros ção que o sujeito estabelece com si próprio e com seu produtos) torna-se algo vendável e lucrativo, consequen- meio, ou seja, a forma como lida com os estímulos que temente possível de ser adquirida como qualquer outro o ambiente lhe oferece. produto no mercado. Na trajetória evolutiva das concepções e da prática A noção de que se pode encontrar saúde em pro- sobre a saúde, poderiam ser considerados, de acordo dutos vendidos em drogarias é um engodo: o mito da com Barros (2002), alguns paradigmas que, começando saúde em pílulas. Há uma crença de que a farmacologia, pela noção mágico-religiosa na antiguidade, termina na apoiada na química e na biologia, dispõe de pílulas e abordagem do modelo biomédico, predominante nos de métodos capazes de enfrentar, senão todas, a grande tempos atuais. De acordo com o autor, é provável que maioria das doenças e dos problemas cotidianos, promo- a expressão mais acabada das distorções e consequências vendo a saúde e a felicidade a quem se dispuser (e puder) do modelo biomédico, reducionista, de abordagem da pagar por suas fórmulas. Seguindo esta lógica, Lefèvre saúde na vida dos indivíduos resida no que estamos (1991) afirma que a saúde se transformou, nos dias atu- apresentando como fenômeno da medicalização. ais, em uma necessidade jamais satisfeita, encaixando-se A partir deste modelo biomédico, transfere-se a perfeitamente no funcionamento da cultura do consu- responsabilidade de ter saúde “para o próprio corpo” mo. São fórmulas capazes de nos proporcionar prazer e (Temporão, 1986, p. 157), sendo que a saúde passa a ser nos oferecer capacidades para gozar a vida. Substâncias um fator puramente individual e atrelado à genética e ao que nos garantem a possibilidade de aproveitar inten- cuidado que o sujeito tem com seu organismo. Cuidado samente cada momento da vida. Produtos de última Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 285 286 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade geração que nos auxiliam a controlar os riscos, afastar para negar a temporalidade e buscar a suposta perfei- os males, bem como prevenir todo e qualquer dano à ção – várias cirurgias, tratamentos estéticos contra a saúde. Enfim, buscamos nas promessas da farmacologia ação do tempo, estudos sobre o controle genético que felicidade, vitória e sucesso. Buscamos nas promessas de almejam garantir o afastamento das enfermidades. Estes “saúde em pílulas” sanar qualquer desconforto físico ou movimentos confirmam a pretensão de controle sobre psíquico. Longe de querer oferecer uma conclusão sobre a existência. As pretensões absolutizantes das ciências as questões que envolvem a medicalização, optou-se naturais norteiam o projeto moderno de compreensão aqui por levantar uma reflexão julgada necessária: até da subjetividade humana, reduzindo-a a um complexo que ponto as novas tecnologias atuarão como forma de sistemas neuronais que, quando em desequilíbrio, de controle da vida com o objetivo de solucionar os origina o processo de adoecimento. A suposta eficácia paradoxos da existência humana? das medicações é a comprovação do entendimento da subjetividade como engrenagem que nos cabe consertar ou ajustar. O mercado vende constantemente próteses Afinal, há um remédio para tudo? para que evitam as mínimas possibilidades de sofrermos. A medicina vai aos poucos se tornando mais um bem de consumo e o vocabulário médico transborda A medicalização da sociedade contemporânea, de as fronteiras da ciência e da saúde, invadindo nossa acordo com tudo que vimos até aqui, se refere à divul- linguagem cotidiana. Temos, na atualidade, promessas gação − preponderantemente através da publicidade infinitas de juventude e bem-estar nas quais a medicina − de um ideário em que os medicamentos representam muitas vezes aparece como nossa salvadora ao explicar fórmulas das principais características que os indivíduos a subjetividade humana. devem apresentar para sobreviver em meio à cultura de consumo contemporânea. A absolutização da medicação, supostamente sugerida pelas indústrias farmacêuticas, parece ter a À medida que a saúde é inserida na lógica con- pretensão de ser um agente construtor de um indivíduo sumista contemporânea, ela é impulsionada pelos sem conflitos e, com isso, temos uma progressiva com- interesses lucrativos a se espraiar por campos que vão preensão neuroquímica dos fenômenos psíquicos, onde muito além da prevenção e da cura de enfermidades. nos parece que diariamente são criadas novas patologias Neste sentido, tal conceito se associou aos principais para as quais se busca uma solução medicamentosa. valores da contemporaneidade, passando a representá- Os avanços da medicina são necessários e indis- los: ser saudável é sinônimo de ser capaz de “curtir a pensáveis quando pensamos as questões que envolvem vida”; de ser feliz e bem-sucedido; de ter uma aparência a saúde, e apenas tentamos apontar sua tendência ao bela e jovem. Enfim, de estar completamente adequado reducionismo da experiência humana a uma causalidade às exigências da atualidade. Segundo Birman (2001), química. Esta tendência parece tornar o medicamento “o sujeito busca, pela magia das drogas, se inscrever mais um produto para consumo negligenciando ris- na rede de relações da sociedade do espetáculo e seus cos à saúde. Não estamos sendo contrários ao uso do imperativos éticos” (p. 249). medicamento, apenas acreditamos que a questão fun- A sociedade parece buscar formas ilusórias pauta- damental é o uso adequado do medicamento para que das na medicina e em outros suportes contemporâneos ele se torne um aliado da saúde e não um instrumento Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 DANTAS, J.B.; EWALD, A.P. para cauterizar problemas. Trata-se da reflexão desta lógica técnica que pretende entender o indivíduo por princípios deterministas. Pretende entender e controlar o indivíduo por meio do uso de diversas substâncias. Ao longo do texto, tivemos a intenção de problematizar esse campo de práticas e saberes que, no seu modo de funcionar, vêm produzindo na contemporaneidade a medicalização da vida. • Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade Ewald, A.P. Tecnologia e progresso: o Brasil civiliza-se no século XIX. Logos, Comunicação e Universidade, Ano 8, n. 14, p. 62-71, 2001. Featherstone, M. A globalização da complexidade: pósmodernismo e cultura do consumo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 11, n. 32, p. 105-124, 1990. Haug, W.F. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Unesp, 1997. Laraia, R.B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. R E F E R Ê N C I A S Aguiar, A.A. Psiquiatria do divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. Angell, M. 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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010 287 288 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda The exceptional drug policy in Espírito Santo: the matter of access by juridical approach Maria José Sartório 1 Ronaldo Bordin 2 Farmacêutica do Hospital Estadual Dr. Dório Silva e conselheira do Conselho Regional de Farmácia do Espírito Santo (CRF/ES); Especialista em Farmácia Hospitalar pela Empresa Brasileira de Ensino Pesquisa e Extensão (Univix); Mestre em Ciências Farmacêuticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Coordenadora do Curso de Farmácia da Univix. [email protected] RESUMO Este trabalho situa o Programa de Medicamentos Excepcionais no Professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da UFRGS; Doutor em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Membro do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (CES/RS). [email protected] de tutela, mandado judicial ou termo de ajustamento de conduta. Conclui-se que a 1 2 Brasil diante da judicialização da demanda, contextualizando a relação entre direitos humanos e recursos financeiros do programa e identificando os argumentos que embasam as ações impetradas contra o gestor. Consiste em estudo de natureza documental, com emprego de dados secundários em bases de dados nacionais e estaduais e análise da totalidade dos mandados impetrados contra o Estado do Espírito Santo. Os principais achados foram: as demandas judiciais iniciam-se pelo poder executivo por meio do Ministério Público e do poder judiciário, com apresentação de antecipação judicialização gera individualização da demanda em detrimento do coletivo, tendendo a gerar maiores dificuldades no planejamento dos serviços de saúde. PALAVRAS-CHAVE: Farmácia; Administração e planejamento em saúde; Equidade; Financiamento em saúde. ABSTRACT This paper analyzes the access to the “exceptional medications” program by lawsuits. It describes the relationship between human rights and the program funds, identifying the lawsuits supporting reasons against the government. It consists of a documentary investigation, applying secondary data in state and national data bases as well as analysis of all the legal actions taken against the Espírito Santo State government. The main findings were: the judicial demands start by the executive through the “Public Ministry” and the judiciary, presenting tutelage in advance, court order or conduct adjustment term. We concluded that the access to the medication program by juridical approach results in demand individualization to the detriment of the collectivity, and that it tends to increase the lack of planning of public services. KEYWORDS: Pharmacy; Health policy, planning and management; Equity; Financing health. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R. • Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda I N T R O D U ç ão medicamentos, no qual estima que 23% da população venha a consumir 60% da produção nacional e apenas 48% da população tenha acesso aos medicamentos O acesso a medicamentos é um assunto discutido essenciais. por vários autores (Bermudez; Bonfim, 1999; Guerra Para contextualizar a questão da necessidade, Jr, 2002; Negri; D’Ávila, 2002; Brasil, 2001) e, de acesso e satisfação pessoal, pode ser enfatizada a relação certa forma, ainda está em processo de busca do que de representação social identificada entre o indivíduo seria ideal para a Saúde Pública brasileira. A Word Health e o medicamento que, no momento simbólico do seu Organization (WHO, 2004), em sua revisão de conceitos, consumo, consciente ou inconscientemente, busca acrescentou a questão do custo ao conceito de acesso a uma materialização imediata equivalente que pode ser medicamentos essenciais, que ficou assim definido: interpretada como a cura para seus males tanto físicos como da alma. Tal prática contribui para uma verdadeira [...] medicamentos essenciais são aqueles que “cultura da pílula” (Lefévre, 1991). satisfazem as necessidades de saúde da maioria A promulgação da Constituição Federal de 1988 da população, devem estar disponíveis a todo (Brasil, 2004a) determinou opção pelos princípios da o momento, em quantidades adequadas e em universalidade, integralidade e equidade em saúde, ope- dosagens apropriadas, a um preço com que os racionalizados no Sistema Único de Saúde (SUS). Em indivíduos e as comunidades possam arcar. seu artigo 196, aponta-se a saúde como direito de todos (p. 24). e dever do Estado, situação a ser garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de Tal assertiva entra em consonância com a necessi- risco de doença e de outros agravos e ao acesso univer- dade atual de se observar a questão do custo no acesso sal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, da população ao medicamento e também da organização proteção e recuperação. dos serviços de saúde aos quais se imputa a responsabilidade de favorecer esse acesso. Vale lembrar, ao se delimitar o escopo da atuação do Estado na esfera da saúde, a definição de direito O mercado farmacêutico no Brasil gera um lucro proposta por Bobbio (1992). Este autor afirma que de bilhões de dólares e se mantém entre os dez primei- sempre usou a palavra “exigências” em vez de “direitos” ros lugares do mercado mundial. Tal fato demonstra a quando se referia aos direitos não-constitucionalizados, existência de uma cultura da medicalização, ao mesmo ou seja, a meras aspirações, ainda que justificáveis com tempo em que um grande contingente da população argumentos plausíveis, no sentido de direitos (positivos) continua à margem do consumo de medicamentos, futuros, já que “a figura do direito tem como correlato muitos deles supostamente essenciais, o que se dá pa- a figura da obrigação”; uma situação facilmente identi- ralelamente a um uso de produtos desnecessários ou ficável no texto constitucional brasileiro. supérfluos, e para isso contribuem valores que passam Pilau Sobrinho (2003) comenta de modo claro os a se erigirem como fundamentais para a vida saudável aspectos da Revolução Francesa de 1789 e como esse (Barros, 2004). Nesse contexto, Bermudez (1997) apresenta episódio se tornou um marco e uma diretriz seguidos um estudo que se aplica à destacada falta de acesso a tituições e principalmente da Declaração Universal nos diversos países, tornando-se base de muitas cons- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 289 290 SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R. • Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda dos Direitos Humanos. Com relação ao sentido e à força da constituição brasileira, Ataliba (1993), Dallari Neste sentido, Amaral (2001) sintetizou o que seria a relação necessidade-recursos: (1987; 1995) e Dallari (2001), Demo (1995; 1996) e Azevedo (1998; 2000) teceram comentários comple- [...] se os recursos são escassos, como são, é ne- mentares que narram a interface do direito humano e cessário que se façam decisões alocativas: quem o objetivo político, resultados de lutas populares com atender? Quais os critérios de seleção? Prog- concretização dos anseios da sociedade, o que significa nósticos de cura? Fila de espera? Maximização que o objetivo político insere toda a carga histórica, de resultados? Quem consegue primeiro uma cultural, sociológica e ideológica da evolução da so- liminar? Tratando-se de uma decisão, nos parece ciedade, também refletida na sua organização para intuitiva a necessidade de motivação e controle alcançar esses direitos. dos critérios de escolha, uma prestação de contas No bojo da discussão política que envolve as várias estratégias em curso voltadas para a consolidação à sociedade do por que preferiu-se atender a uma situação e não à outra. (p. 37). do SUS, emerge a legitimização da assistência farmacêutica através da Política Nacional de Medicamentos Há alguns anos, a demanda judicial tem se estabe- (PNM) (Brasil, 2002). Essa política viabiliza um dos lecido como um importante instrumento de acesso no componentes fundamentais da assistência à saúde: a campo da política de medicamentos – especialmente os cobertura farmacológica. Seu propósito precípuo é vinculados ao Programa de Medicamentos Dispensados garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade dos em Caráter Excepcional (PMDCE). Acompanhando as medicamentos, promover o uso racional e o acesso da mudanças de comportamento do cidadão, sua maior população àqueles considerados essenciais. mobilização, acesso à informação e capacidade de Para que o acesso a medicamentos seja con- entendimento dos seus direitos, a via judicial tem se cretizado, alguns desafios importantes impedem o revelado uma alternativa ao aumento da complexidade estreitamento entre o ideal e o real, as demandas da das necessidades e à escassez dos recursos alocados para população e a operacionalização concreta dos precei- supri-las. tos constitucionais. O primeiro deles é a equalização dos recursos financeiros para satisfação das necessida- Nessa discussão, recebem especial atenção os medicamentos inseridos no PMDCE, assim definidos: des de saúde do cidadão, abordada da seguinte forma por Charles Fried apud Amaral (2001, p. 168): “[...] Aqueles medicamentos de elevado valor uni- as necessidades são vorazes, elas devoram os recursos”. tário, ou que, pela cronicidade do tratamento, Gustin (1999) definiu de outra forma a questão da se tornam excessivamente caros para serem necessidade: suportados pela população. (Brasil, 2002b, p. 11). Por ser distintiva do ser humano, pode-se pressupor que a realização, ou a não realização O alto custo demandado pelo Programa tornou-se das necessidades, poderá afetar, positiva ou um dos principais pontos de questionamento e geração negativamente, a plenitude da pessoa ou das de conflitos. O montante de recursos demandados pela coletividades humanas. (p. 27). União para o Programa de Medicamentos Excepcionais Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R. • Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda cresceu vertiginosamente nos últimos anos, passando MATERIAIS E MÉTODOS de R$ 687 milhões em 2002 a aproximadamente R$ 2 bilhões em 2008. A mesma dinâmica de ascensão dos recursos gastos ocorreu no Estado do Espírito Santo, A descrição do problema foi realizada por meio de: que passou de R$ 13,8 milhões para atender 69 mil usuários, em 2002, para R$ 95 milhões, em 2008, para atender 309 mil usuários. a) coleta de dados do consumo de medicamentos excepcionais e custo no nível do Brasil e especificamente No Estado do Espírito Santo, a dispensação de no Espírito Santo desde a implantação do Sistema de medicamentos excepcionais funciona em sete unidades Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade ambulatoriais, denominadas ‘Farmácias Cidadãs’. A (Apac), em 1999; análise dos processos de solicitação de medicamentos é realizada pela Comissão de Farmacologia e Terapêutica (CFT), composta por farmacêuticos e médicos, e a b) pesquisa em documentos publicados pelo Ministério da Saúde; dispensação é feita por farmacêuticos, quando é então emitida a Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade (Apac). c) dados dos mandados judiciais impetrados contra a Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo Neste contexto, este artigo aborda a questão da (Sesa/ES), obtidos no Departamento de Assistência Far- universalidade da atenção à saúde, restringindo-se ao macêutica (DAF), hoje denominado Gerência Estratégica processo de assistência farmacêutica, em especial ao de Assistência Farmacêutica (Geaf ) do mesmo estado. escopo do PMDCE. Objetivou-se sistematizar as causas para o embate judicial e as portas de entrada e demais Procurou-se identificar as fontes de contestação, condicionantes para esse modelo de acesso, assumindo ou seja, a porta de entrada do cidadão à justiça e as ar- como estudo de caso o Estado do Espírito Santo. gumentações imbuídas nas solicitações diretamente nos Em texto anterior (Sartório, 2004), foram apre- processos e liminares impetrados pelos cidadãos contra sentados dados de análise do período de 1999 a 2003, no o Estado do Espírito Santo. Foram analisados 20 man- que se refere ao número de demandas judiciais. Os resul- dados, 7 antecipações de tutela e um TAC, perfazendo tados encontrados denotaram um número incipiente de a totalidade das ações jurídicas contra o Espírito Santo decisões, com um total de 20 mandados, 7 antecipações no período entre 1999 e 2003 (n=28). de tutela e 1 Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). A análise dos recursos gastos em 2008 foi fornecida Este artigo propõe comparar os dados encontrados no pela Sesa/ES parcialmente até julho e na sua totalidade de período de 1999 a 2003 aos de em 2008, objetivando-se agosto a dezembro de 2008, devido ao processo de orga- verificar se ocorreram mudanças em parcela das variáveis nização dos dados presentes no sistema de informações. abordadas no primeiro estudo. Dessa forma, para identificação dos valores gastos com Para além da discussão do recurso gasto com as decisões judiciais até o mês de julho, os quais incluem decisões judiciais, este estudo enseja dinamizar o debate todos os medicamentos não-padronizados no Programa sobre o direito à saúde, a sua organização, o acesso aos de Medicamentos Excepcionais, foi utilizada uma média insumos e sobre como podemos almejar um equilíbrio baseada nos gastos de agosto a dezembro, que são valores entre esses três eixos. reais. Com isso, os valores relatados são aproximados. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 291 292 SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R. • Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda de Direito, na Assistência Judiciária Municipal e no I RESULTADOS Fórum da Fazenda Pública Estadual, de acordo com o âmbito de atuação da justiça e a possibilidade de acesso No período 1999-2003, a maioria dos mandados iniciou pela mesma via, o poder judiciário, à exceção do cidadão. Na prática, observa-se que as pessoas mais bem informadas têm maior facilidade de acesso. O Quadro 1 apresenta síntese das categorias de de TAC, que objetivou a aquisição e manutenção do atendimento de aproximadamente 30 medicamentos, análise dos mandados judiciais de 1999 a 2003. Observa-se que não há uma lógica nas decisões dentre os quais apenas dois já tinham sido adquiridos judiciais. Destaca-se a frequência de demandas de me- pela Sesa/ES. As solicitações iniciaram-se na Justiça Federal, na dicamentos da atenção básica e do programa de saúde Defensoria Pública, no Tribunal de Justiça, no Juizado mental de responsabilidade dos municípios ou aqueles Quadro 1 – Mandados judiciais contra o Estado do Espírito Santo na esfera dos medicamentos excepcionais, 1999-2003 Órgão expedidor Objeto Argumentação Ministério Público do Estado Medicamentos para fibrose cística Artigo 196 da Constituição Federal Justiça Federal – antecipação de tutela Antidepressivo: efexor 75 mg Artigo 198 da Constituição Federal Defensoria Pública da União – antecipação de tutela Suplemento alimentar: hidrolizado proteico Constituição Federal Tribunal de Justiça – mandado judicial Cardiologia: ritmonorm 300 mg; oncologia: trastuzumab (importado); neurologia: dieta enteral Constituição Federal Assistência Judiciária Municipal Cardiologia: ancoron, zestril, caverdilol e furosemida Artigo 196 da Constituição Federal Tribunal de Justiça – mandado de segurança Cardiologia: lisinopril e verapamil Artigo 196 da Constituição Federal Justiça Federal – mandado de segurança Neurologia: interferon gama Cita artigo 5º e 196 da Constituição Federal; artigo 4º do Código Civil; artigo 4º do Pacto de São José da Costa Rica e explicita direito subjetivo Ação Ordinária – antecipação de tutela Neurologia: cortrosina depot (importado) Cita artigo 273 do Código Civil, artigos 6º, 196 e 198 da Constituição Federal e artigo 1º e 83 do Código de Processo Civil Juizado de Direito – mandado de segurança Timespam (importado), oxcarbazepina, trastuzumab, anlodipina, propafenona, levodopa + carbidopa, endapamida, AAS 325 mg, octreotida 20 mg, LAR e riluzol Artigo 196 Tribunal de Justiça – mandado judicial Pamidronato dissódico e clodronato dissódico Artigos 196 e 159 da Constituição Federal e artigo 165 da Constituição Estadual Justiça Federal – mandado judicial Constam da relação de medicamentos excepcionais: sirolimus e tacrolimus Artigo 196 I Fórum da Fazenda Pública Estadual Paroxetina Artigo 196 da Constituição Federal Citação/ação ordinária com pedido de antecipação de tutela Vigabatrina, valproato de sódio líquido e tetracosactida Depot Cita artigo 196, 198 e 6º da Constituição Federal e artigo 1º da Lei nº 4.317/90 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R. • Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda não inseridos em nenhum nível de atenção ou programa para a mesma indicação; 103 (30,2%) eram do elenco estabelecido pelas esferas de governo. de medicamentos de competência municipal, conforme Foram observadas demandas de medicamentos Portaria estadual nº 084-R de 26 de outubro de 20071, recentemente lançados no mercado, alguns deles sem que homologou a Relação Estadual de Medicamentos registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária Essenciais e Excepcionais (Rememe). Os medicamentos (Anvisa), o que confirma a articulação e influência não inseridos na competência estadual ou municipal da indústria na prescrição médica. Esse último, alvo foram identificados como ‘outros’ e apresentaram 69 principal das mesmas em virtude do importante papel (20,2%) solicitações. social da prescrição, seja ela de produtos que a reque- Observa-se uma diferença de apenas 8% en- rem ou não, ou do caráter multiplicador da receita e da tre as solicitações de medicamentos considerados peculiaridade da ação do médico como grande agente do elenco estadual e municipal. No que se refere intermediador entre o setor industrial e os consumidores ao elenco municipal, esse montante sugere uma (Barros, 2004). deficiência no acesso aos medicamentos básicos ou Os argumentos apresentam pouca variabilidade. nas informações à população sobre sua inserção no O artigo 196 da Constituição Federal é o mais citado, serviço de saúde para que receba assistência integral, acompanhado dos artigos 5, 159 e 198. Houve citação inclusive farmacêutica, cujos objetivos devem ser o de artigos do Código Civil Brasileiro, da Constituição fornecimento de medicamento e a orientação para Estadual do Espírito Santo, do Pacto de São José da seu uso adequado. Para os medicamentos do elenco Costa Rica e da lei n.º 4.317/90. estadual, pôde-se identificar a não-observância, pe- Já em 2008, foram identificadas 321 ações judiciais los prescritores, dos protocolos clínicos e diretrizes contra o Estado, com solicitação de 340 medicamentos/ terapêuticas publicadas pelo Ministério da Saúde, insumos, configurando um aumento de 1.046% no prevalecendo a experiência profissional em detri- número de decisões judiciais em comparação ao período mento da evidência científica. 1997 a 2003. Os 20% considerados ‘outros’ por não se enqua- Embora a origem e as argumentações das decisões drarem nas situações anteriores são medicamentos uti- não tenham sido analisadas em 2008, até pela lógica das lizados nas áreas de oncologia, cardiologia, neurologia, demandas, observa-se que não ocorreram alterações sig- reumatologia etc. nificativas. Em consonância com essa questão, resultados Além dos medicamentos, houve demanda de semelhantes foram encontrados em estudo realizado no insumos para pacientes insulinodependentes, sendo: Estado do Rio de Janeiro pelas pesquisadoras Messeder, um de glicosímetro, nove de fitas para dosagem de Osório-de-Castro e Luiza (2005). glicemia, um de lancetas e de suplementos alimentares Quanto aos medicamentos pleiteados, em 2008 para intolerância a lactose (cinco de hidrolisado de soja ocorreu um incremento, passando a 91 especialidades e dois de hidrolisado de proteína animal; cinco de leite farmacêuticas e um total de 340 solicitações. Dessas, de soja e um de aminoácidos elementares). 143 (42%) constavam do elenco de medicamentos ex- Percebe-se a necessidade de maior debate políti- cepcionais de competência estadual ou com alternativa co e de decisão entre as esferas estadual e municipais 1 Para consulta: www.saude.es.gor.br Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 293 294 SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R. • Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda no que se refere à divisão da responsabilidade na Quadro 2 – Solicitações de medicamentos mais oferta de medicamentos e também de insumos para frequentes, 2008 diabéticos. Medicamento n % Insulina lispro/glargina/aspartane 77 22,64 Atorvastatina 64 18,82 Hilano GF 20 8 2,35 Imatinib 7 2,05 41,46% do montante, demonstrando necessidade Sertralina 7 2,05 emergente de sensibilização ou de criação de uma Sorafenid 7 2,05 legislação que normatize a prescrição no SUS. Semitinib 5 1,47 Clopidogrel 5 1,47 medicamentos, bastando que sejam prescritos. As Temozolamida 5 1,47 exceções devem ser justificadas e analisadas em con- Ticlopidina 4 1,17 junto, sempre havendo análise de custo-efetividade Oxcarbazepina 4 1,17 e observando-se da justiça. Losartana 4 1,17 Teriparatida 4 1,17 Pantoprazol 4 1,17 Conforme se observa na Tabela 1, houve uma ascensão Glicosamina + condroitina 4 1,17 não só dos recursos gastos, mas também do número de Total 209 61,39 No Quadro 2, estão os 15 medicamentos mais frequentemente demandados em 2008, cujo percentual soma 61,39% do total de itens demandados. Observase que há uma ampla variedade de indicações de uso. Os dois primeiros itens perfazem um total de Nas farmácias públicas estaduais e municipais, são disponibilizadas alternativas terapêuticas a esses Os recursos utilizados para aquisição de medicamentos vêm assumindo proporção significativa no montante do orçamento do Estado do Espírito Santo. atendimentos. Do total de recursos disponibilizados no ano de 2008, 85,4% foram gastos com aquisição de medicamentos padronizados e 14,6% com medicamentos nãopadronizados. Nesses, estão incluídos os medicamentos fornecidos através de demanda judicial. Como relatado anteriormente, não há dados disponíveis nos meses de janeiro a julho de 2008 sobre os gastos com medicamentos sob decisão judicial, havendo apenas após o mês de agosto, como mostra a Tabela 2. Tabela 2 – Percentual de recursos gastos por meio de demandas judiciais nos meses de agosto a dezembro de 2008 Mês Recursos gastos (R$) Percentual Agosto, 2008 231.036,66 9,74 Setembro, 2008 356.900,78 15,04 Outubro, 2008 402.223,62 16,95 Novembro, 2008 696.293,34 29,35 Dezembro, 2008 Total 686.013,13 28,92 2.372.467,53 100 Fonte: Adaptado de Sesa/Sistema MV, 2008. Tabela 1 – Gastos com medicamentos na Sesa versus número de atendimentos 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Gastos com medicamentos (em R$ milhões) 13,98 22,11 29,9 44,64 64,92 70,04 95,00 Número de atendimentos 69.000 107.000 130.000 148.000 208.000 245.000 309.000 Fonte: Adaptação das informações fornecidas pela Sesa/Geaf, 2008. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R. • Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda Isto posto, para que fosse possível a extração de um valor anual de gastos com medicamentos advindos de e da real necessidade do tratamento, ensejando prática inadequada do impetrante. decisões judiciais, definiu-se um valor médio, extraído Tal assertiva encontra consonância e eco no discur- dos meses de agosto a dezembro de 2008. Dessa forma, so de Demo (1995), Boff (1984) e Herkenhoff (1999; partindo do montante dos primeiros meses e dos valores 2000) sobre direito e justiça, os quais afirmam que reais dos últimos meses, foram encontrados valores apro- toda essa questão perpassa a necessidade do direito e da ximados de R$ 5 milhões de recursos para medicamentos justiça social, esta última a ser perseguida pelo Estado, oriundos de decisões judiciais – 5% do valor total gasto em cumprimento ao que está previsto na Declaração com todos os medicamentos pela Sesa. Universal dos Direitos Humanos para cada cidadão. Os argumentos citados referem-se ao instrumento de alcance da justiça, à constituição, que nas palavras de Kelsen DISCUSSÃO (2000), é apenas uma parte da ordem geral do Estado, um método a partir do qual são geradas as normas que configuram as relações entre os homens. Diz este autor A porta de entrada dos usuários de qualquer medicamento, seja ele de baixa, média ou alta comple- que a constituição jamais pode ser a justiça, mas apenas o caminho através do qual se chega a ela. xidade, tem sido as farmácias dos Centros Regionais Mas como atender a necessidade ou direito de um de Especialidades (CREs), por se tratar de locais de cidadão sabendo que está havendo justiça naquela situa- atendimento e fornecimento de medicamentos de alto ção específica? Como saber se o insumo que está sendo custo. Na tentativa frustrada de atendimento nos mu- solicitado realmente protegerá e recuperará a vida da pes- nicípios ou em outros serviços e na impossibilidade de soa se todos os seres devem partir do pressuposto de que aquisição por conta própria, dirige-se ao CRE e, como a vida é o bem mais precioso e que deve ser protegido? ocorre rotineiramente, se o medicamento não consta da Em contraposição a esse fato, existem situações comuns Relação do PMDCE ou por algum motivo não consegue de demanda para fornecimento de medicamento apenas adquiri-lo, recorre-se à justiça. lançado no mercado cuja segurança e eficácia terapêu- As vias pelas quais os cidadãos encontram o acesso tica ainda aguarda consenso, ou para casos em que foi aos insumos variam de acordo com as possibilidades iniciado tratamento com medicamento resultante de pessoais, sendo por meio da defensoria pública, de estudo promovido pela indústria, cujo fornecimento é contratação de advogado ou do Ministério Público. As suspenso, gerando interrupção e deixando nas mãos do argumentações descritas nas notificações relacionam- usuário a continuidade, caso queira ou possa assumir. se, em sua maioria, aos direitos constitucionais, à Na maioria das vezes, essa demanda chega ao SUS, pois universalidade do acesso estabelecido pelo SUS e à normalmente se refere a produtos de alto custo ou de iminência do risco de vida, sempre priorizando-se difícil aquisição por serem exclusivos de alguma empresa, o direito à vida. Na verdade, pode-se observar, em o que inviabiliza seu custeio. algumas situações, o arroubo da urgência ou do risco Na verdade, além de imputar dúvidas quanto de vida baseado em prescrição médica pouco esclare- ao fato de a vida estar realmente sendo protegida ou cedora para um usuário não-conhecedor do seu agravo resguardada em inúmeros casos, as ações tem gerado conflitos na distribuição e utilização dos recursos fi- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 295 296 SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R. • Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda nanceiros, o que reflete na organização dos serviços. cupação com a ampliação do acesso a medicamentos Os gestores devem cumprir a Lei de Responsabilidade resultou em inclusão de produtos não-constantes da Fiscal e planejar suas ações assistenciais ou regulatórias Relação de Medicamentos de Dispensação Excepcio- de acordo com o orçamento previsto para esse fim. Na nal publicada pelo Ministério da Saúde. Outro fator ocorrência de demandas não previstas, há uma realo- essencial é a organização do serviço com a finalidade cação de recursos para essa nova necessidade, levando de minimizar os desgastes sofridos pelo cidadão com a aquisições de medicamentos ou outros insumos de interrupções de tratamentos por falta de medicamen- forma não-planejada. to. A cobertura constantemente acima de 90% tem No que se refere ao termo recurso, há de se adentrar refletido em atendimento mais equânime e justo. na tão citada e questionada escassez ou limitação de Por entender que o judiciário e o Ministério recursos. Para esse assunto, alguns pontos divergentes Público devem cumprir seu papel de guardiões da foram encontrados ao longo do estudo. Em entrevista, lei e que há espaço para diálogo, paralelamente a houve o relato de que se vislumbra o início da supera- todo movimento de organização do serviço tem sido ção dos impasses com a parceria entre os poderes, pois, evidenciada a priorização de que esse diálogo não seja apesar da universalidade preconizada, a constituição não fechado ou impossibilite a resolução das pendências assegurou recursos suficientes para atender a esse princí- administrativas da Sesa. No ano de 2004, foram pio, apesar de se contabilizarem avanços nessa área com iniciados debates com o judiciário, controle social, a promulgação da Emenda Constitucional (EC) n.º 29, sociedade civil e científica, gestores e o Ministério Pú- que assegura recursos mínimos para a saúde. Infelizmen- blico. Esses momentos se repetiram e culminou com te, esta emenda dorme ainda em berço esplêndido, à a publicação da Portaria estadual nº 036-R de 7 de espera da decisão dos legisladores do país. julho de 2005, que tratou da organização do atendi- Nessa discussão, cabe ressaltar que o Estado é mento nas unidades de dispensação de medicamentos considerado o responsável pela saúde do cidadão. excepcionais e, em 2007, por meio do Decreto nº Partindo-se das discussões sobre Estado realizadas por 1.956 R, aprovou a Política Farmacêutica do estado Bobbio (2001), Lima (2002) e Testa (1992) acerca da do ES e instituiu o Fórum Intersetorial Permanente inserção do povo na organização e participação das ações de Assistência Farmacêutica. estatais, conclui-se que os poderes executivo, legislativo Para respaldar as análises técnico-científicas das e judiciário, assim como todo cidadão, são parte do solicitações de medicamentos, existem os Centros de Estado, responsáveis pela tarefa de implementar as Informação sobre Medicamentos (CIM)2, presentes práticas voltadas ao estado de bem-estar social previsto nas secretarias de saúde, universidades e em alguns na constituição e a justiça social. municípios de grande porte. Observa-se que, na maio- No caso do ES, há uma evidente busca pelo cum- ria dos serviços, não existe literatura científica idônea primento do que determina a Carta Magna. Confor- que possa embasar os técnicos no momento de emitir me dados apresentados, o número de atendimentos no parecer sobre determinada indicação para os juízes. PMDCE foi aumentado consideravelmente e a preo- Para que seja viabilizado esse modelo, pode-se utilizar Realizam a provisão de informação adequadamente referenciada, criticamente avaliada e, sobretudo, imparcial sobre quaisquer dos aspectos relacionados à prática farmacêutica. A meta principal dos CIMs é a promoção do uso racional dos medicamentos. Para alcançar esta meta, a informação prestada deve ser objetiva, imparcial e imune a pressões políticas e econômicas (Marin, 2003, p. 143). 2 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R. • Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda o formato de parceria entre o Ministério da Saúde, as R E F E R Ê N C I A S Secretarias de Saúde e, se possível, o judiciário para o incentivo, financiamento, uniformidade nas ações e, principalmente, para a legitimidade frente aos Amaral, G. Direitos, escassez e escolha: em busca de critérios gestores, possibilitando o conhecimento e reconhe- jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões cimento dos CIMs como necessários e importantes. trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. No ES, o Centro de Informação sobre Medicamentos Ataliba, G. Superação jurídica da constituição de 1988. In: do Espírito Santo (Ceimes) iniciou suas atividades em 1999 e tem exercido um papel fundamental em todos os debates relacionados a medicamentos e ao seu uso racional. Não deve ser esquecido o papel do Ministério da Saúde enquanto órgão regulador e normatiza- Cunha, S.S. (Org.). Revisão constitucional: aspectos jurídicos, políticos e éticos. Porto Alegre: Fabris, 1993. p. 27-56. Azevedo, P.F. Direito, justiça social e neoliberalismo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. ______. Aplicação do direito e contexto social. 2. ed. São Paulo: dor das ações dos profissionais prescritores com a Revista dos Tribunais, 1998. finalidade de minimizar as pressões da indústria Barros, J.A.C. Políticas farmacêuticas: a serviço dos interesses para prescrição dos medicamentos não-essenciais da saúde? Brasília: Unesco/Anvisa, 2004. e de eficácia desconhecida. Uma das facetas deste papel está presente na proposta de que os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) sejam não apenas recomendações, mas uma determinação de condutas, como existe oficialmente nos planos privados de saúde. Com essa finalidade, tramita um projeto de lei que tratará desse tema a fim de estabelecer regras de prescrição para profissionais que Bermudez, J.A.Z. Produção de medicamentos no setor governamental e as necessidades do sistema único de saúde. In: Bonfim, J.R.A.; Mercucci, V.L. (Orgs.). A construção da política de medicamentos. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 72-80. Bermudez, J.A.Z.; Bonfim, J.R. (Orgs.). Medicamentos e a reforma do setor saúde. São Paulo: Hucitec, 1999. atuam no SUS ou que prescrevam medicamentos Bobbio, N. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral para acesso em programas do SUS. da política. 9. ed. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. Coleção Pensamento Crítico, 69. AGRADECIMENTOS ______. N. A era dos direitos. 17ª Tir. Rio de Janeiro: Campus, 1992. Agradecimento especial ao Professor Doutor. Boff, L. Do lugar do pobre. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1984. Ronaldo Bordin, pela incansável e solidária disponi- Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasí- bilidade desde o período de orientação no Mestrado lia, DF: Senado Federal; Subsecretaria de Edições Técnicas, até hoje, e aos Doutores Silvio César Machado dos 2003. Santos e Geruza Rios Pessanha Tavares, da Sesa/ES, ______. Ministério da Saúde. Política nacional de medica- pelo apoio e disponibilização das informações para mentos. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002a. Projetos, a pesquisa. Programas e Relatórios, n. 25. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 297 298 SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R. • Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda ______. Departamento de Sistemas e Redes Assistenciais. 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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010 Recebido: Junho/2005 Aceito: Maio/2007 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde Democratic prospects and their conditions of possibility: intersections between political participation in SUS and health management Francini Lube Guizardi1 Felipe de Oliveira Lopes Cavalcanti2 Psicóloga; Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj); Assistente de pesquisa do Laboratório de Educação Profissional em Gestão em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). [email protected] RESUMO Este é um estudo teórico, com o objetivo de discutir a democratização Médico residente em Medicina Preventiva e Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Mestrando em Saúde Coletiva pelo IMS/Uerj. [email protected] a participação política como sendo ela própria uma atividade de luta e saúde. 1 2 das relações sociais no SUS. A reflexão foi realizada a partir do conceito de atividade e tem como foco a interface entre realidade social, política e gestão. Dado o peso da tradição gerencial hegemônica, discute-se a constituição de planos de visibilidade sobre os modos como são forjados e confrontados os valores nas instituições de saúde. Por fim, apresentamos a consideração de que é no âmbito da gestão desses processos, nos territórios reais onde ocorrem, que podemos pensar PALAVRAS-CHAVE: Políticas públicas; Democracia; Participação comunitária; Gestão em saúde. ABSTRACT This is a theoretical research with the purpose of discussing the democratization of social relations in the Brazilian National Health System (SUS). This reflection was made from the concept of activity and focused on the interface between the social reality, politics and management. Because of the weight of hegemonic management tradition, the making of a visibility plan on the ways the values are forged and confronted in health institutions was discussed. Finally, we presented the importance of thinking of political participation under the management of these processes, in the real territories where they occur, so that it becomes itself an activity of struggle and health. KEYWORDS: Public policies; Democracy; Consumer participation; Health management. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010 299 300 GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde I N T R O D U ç ão Contudo, tal como o direito à saúde não se define estritamente por sua explicitação constitucional, também a participação política não depende apenas da existência formal desses espaços para ser efetiva na A CONSTITUIÇÃO DO PROBLEMA: O QUE É gestão das políticas públicas de saúde. De modo geral, PARTICIPAR? têm persistido inúmeros obstáculos à concretização das expectativas a eles vinculadas, dentre as quais se destaca a reversão do padrão de planejamento e execução As lutas políticas pela democratização de nossas das políticas de saúde em direção à radicalização do relações sociais têm, no campo da saúde, um horizonte projeto democrático – aspecto principalmente perti- promissor, principalmente quando comparado à his- nente à sua capacidade de determinar a produção das tória do Estado brasileiro e de suas políticas públicas, políticas públicas, a partir das características locais e em especial, as políticas sociais. Esse caráter inovador regionais e da experiência dos setores e grupos sociais pode ser particularmente vislumbrado no Sistema implicados. Único de Saúde (SUS), com a criação das Conferências Nessa direção, os estudos sobre o tema apresentam e Conselhos de Saúde, espaços em que o princípio um conjunto de dificuldades que tem obstaculizado o constitucional de participação da comunidade adqui- exercício de suas prerrogativas na definição, acompa- riu configuração institucional, expressando o projeto nhamento e avaliação das políticas de saúde. Nos 19 de democratização do planejamento e execução das anos de experiência com os conselhos, hoje presentes políticas de saúde no Brasil. A formalização dessas em 5.555 municípios e nos 27 estados brasileiros1, instâncias, com a lei federal no 8.142, de 28 de dezem- tem-se constatado que a participação, principalmente bro de 1990, consistiu num esforço de se assegurar a do segmento dos usuários, tende a ser cerceada, na existência de espaços de representação dos segmentos medida em que a presença quantitativa, assegurada que compõem o SUS, com caráter permanente e de- com o requisito jurídico da paridade, mesmo quando liberativo, dotados de prerrogativas de formulação de cumprida, não significa uma correspondência direta com estratégias, acompanhamento e fiscalização da execução a capacidade de intervenção. Interferem nesse aspecto das políticas de saúde. os artifícios de poder do discurso técnico-científico (Wendhausen; Caponi, 2002; Ribeiro; Andrade, 1 Os conselhos foram incorporados à Constitui- 2003; Ribeiro, 1997), as dificuldades dos mecanismos ção, na suposição de que se tornariam canais de representação (Cortes, 2009; Escorel; Morei- efetivos de participação da sociedade civil e ra, 2009; Coelho, 2007; Bello, 2006; Serapioni; formas inovadoras de gestão pública a permitir Romani, 2006; Cohn, 2003; Labra; Figueiredo, o exercício de uma cidadania ativa, incorpo- 2002; Tatagiba, 2002; Wendhausen; Caponi, 2002; rando as forças vivas de uma comunidade à Pessoto; Nascimento; Hiemann, 2001), a tendência gestão de seus problemas e à implementação de de reprodução do jogo político local, em suas relações políticas públicas destinadas a solucioná-los. de força e exercício de poder (Pinheiro, 1995), e a (Gerschman, 2004, p. 1672). apropriação dos conselhos pelo poder executivo, com Dados disponíveis em: http://conselho.saude.gov.br Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010 GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde um consequente caráter monológico, prevalecendo na que ele interrompe necessariamente. [...] Se o dinâmica desses espaços (Wenhausen; Cardoso, 2007; sentido da política é a liberdade, isso significa Moroni, 2005; Guizardi, 2003; Ribeiro; Andrade, que nesse espaço – e em nenhum outro – temos o 2003; Wendhausen; Caponi, 2002). direito de esperar milagres. Não porque fôssemos Tais questões trazidas sobre a concretização do crentes em milagres, mas sim porque os homens, controle social nos conselhos de saúde apontam-nos enquanto puderem agir, estão em condições de um debate necessário sobre a eficácia dos dispositivos fazer o improvável e o incalculável e, saibam institucionais de participação política existentes no SUS. eles ou não, estão sempre fazendo. (Arendt, Remetem-nos, sobretudo, à discussão sobre a construção 1998, p. 42). e articulação de novos recursos e artifícios de participação que expressem a diversidade das experiências e Pensar a constituição do novo, do que se situa fora posicionamentos na produção das políticas de saúde. das possibilidades que o presente reconhece significa, Isso porque o princípio de participação da comunida- em nossa compreensão, interrogar radicalmente os de supõe que a constituição da política seja porosa às dispositivos e os sentidos que a participação política demandas, realidades e “fazeres” dos diferentes agentes adquiriu no SUS. Esse é o propósito deste ensaio, no e grupos sociais, possibilitando não somente a atuali- qual buscamos explorar o conceito de participação zação das formas já instituídas do direito à saúde, mas política a partir de contribuições vindas da Sociologia também a expressão de seus movimentos instituintes, do trabalho e da Filosofia. Salientamos que o esforço em outros termos, sua expressão como constituição de de interrogar criticamente este conceito não pressupõe políticas públicas e, portanto, constituição do próprio a negação ou desconstrução das alternativas já criadas. direito à saúde. Nossa intenção, em contrapartida, foi propor pergun- Em nossa compreensão, esse desafio não trata, exa- tas que nos ajudassem a estranhar as realidades que se tamente, de fazer o político corresponder ao social, mas apresentam como fechadas, já determinadas em seus de “inserir a produção do político na criação do social” horizontes de possibilidade, de modo que possamos (Negri, 2002, p. 425), de afirmar a dimensão política avançar na consolidação e efetividade dessas instâncias. da ação como as possibilidades e os usos na produção de Perguntas como, por exemplo, realidades sociais. Como coloca Arendt (1998), o sentido da política é a liberdade, a liberdade de produção do o que é – ou o que está sendo entendido como novo, razão pela qual qualificamos como sendo política participação?, [...] questão [que] se desdobra em a participação que esperamos ver no SUS: outras perguntas também anteriores à análise da efetividade de um determinado arranjo parti- [...] sempre que algo novo acontece, de maneira cipativo. Que processos devem ser considerados inesperada, incalculável e por fim inexplicável como participatórios: a escolha de representantes em sua causa, acontece justamente como um (e por que vias) ou a expressão direta de demandas milagre dentro do contexto de cursos calculáveis. (individuais ou coletivas)? Que dimensões da vida Em outras palavras, cada novo começo é, em sua social devem ser destacadas para que se identifique natureza, um milagre – ou seja, sempre visto e a ação participativa? Enfim, em termos teóricos, experimentado do ponto de vista dos processos como definir participação? (Brasil, 2006). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010 301 302 GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde Sem tais estranhamentos, deduzimos que, dificilmente, os obstáculos mapeados poderão ser desfeitos ATIVIDADE HUMANA E SUAS RELAÇÕES COM A POLÍTICA e superados, o que significa não somente intervir nos efeitos que geram, mas também em seus regimes de produção, nos entrelaçamentos e determinações que Para interrogar criticamente a restrição da partici- os atualizam em tão diversas circunstâncias. Colocar pação política a mecanismos de representação, utilizamos nesse plano o problema da participação política no SUS como fundamento o conceito de atividade, que procura consiste em aceitar o repto de criar novas alternativas e expor a fragilidade da segregação entre os territórios da também de reinventar as já existentes, de aproximá-las prática política e o conjunto das relações sociais. Nesse das expectativas éticas de democratização social que o sentido, ele representa uma provocação que busca a direito à saúde expressa e mobiliza. expansão dos significados atribuídos comumente à Partimos de uma formulação teórica que direcio- política, destacando as implicações políticas inerentes à na o percurso desta reflexão, segundo a qual discutir produção de realidade social. Esse é um conceito oriun- a participação política no SUS exige problematizar do das contribuições do campo da Ergologia, na qual a as opções e concepções que orientam sua definição e atividade corresponde à especificidade de toda experi- operacionalização, estritamente por meio de mecanis- ência humana. Tal abrangência baseia-se no fato de que, mos de representação. Essa posição nos levou a propor marcada pela singularidade e pela impossibilidade de ser o deslocamento de nosso objeto de análise. Assim, a completamente antecipada, esta experiência é sempre reflexão sobre as possibilidades de participação políti- produtora de história (Schwartz; Durrive, 2007). ca no SUS foi, neste trabalho, remetida ao cotidiano Dimensão inédita da atividade, que, inevitavelmente, é institucional da gestão. Tal opção não pretende negli- confrontada com a expectativa de determinações, por genciar os avanços obtidos com a conquista dos fóruns meio de imposições normativas à ação humana, posto institucionalizados de participação. Ao contrário, que nenhuma prescrição é capaz de conter a atividade supõe-se que sua necessária e desejada eficácia depende em seu registro, de esgotar toda variabilidade singular da capacidade de radicalizar o projeto democrático, do contexto de sua realização. Frente a esse inédito, estendendo a participação à construção e gestão coti- ao qual nenhuma norma antecedente pode responder, diana da política de saúde, posto que é na dinâmica faz-se história, são reinterrogados os saberes, as normas do funcionamento dos serviços que concretamente a – produz-se incessantemente realidades sociais. Dessa população vive – como realidade material – o direito forma, a atividade produz história na medida em que à saúde. Afinal, proporciona a experiência inédita do encontrar de sujeitos, saberes, técnicas, normas, instituições etc. a participação não pode ficar restrita a uma A atividade é feita, então, no âmbito da problemá- interpretação meramente formal dada pela tica negociação frente aos espaços de possíveis abertos democracia representativa. Faz-se necessário, à experiência, à renormalização parcial dos meios de portanto, ampliar a noção de participação vida, já que, conforme Canguilhem (1990), a saúde de modo a resgatar um conteúdo mais ativo, seria justamente a capacidade de criar novas formas de de modo que a democracia possa realmente se vida em confrontação com o meio. Assim, o conceito aprofundar. (Santos, 2008, p. 8). de atividade pode ser remetido a essa perene tentativa Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010 GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde de desneutralizar a relação com o meio, de procurar recentrá-lo, segundo suas próprias normas. As decisões conformadas pela atividade, no encontro do gerir que se torna, assim, coletivo e compar- Essa noção de atividade remete, portanto, ao tilhado, emergem como formas e sentidos para a vida, desafio – sempre colocado aos homens – de viver e instituindo uma confrontação de valores que produz o fazer história. Afinal, a vida não pode ser reduzida ao humano e seus mundos possíveis. Essa afirmação nos estrito enquadramento, à absoluta heterodetermina- reconduz à compreensão das implicações políticas do ção e assujeitamento (Schwartz; Durrive, 2007). agir humano. Ao formular assim o conceito, os autores enfatizaram A tradição disciplinar das Ciências Políticas ten- a impossibilidade de conter a vida no prescrito, no deu a encerrar o político nas instituições estatais, nas codificado, no instituído. Em sua compreensão, in- dimensões identificadas como macrossociais, reportando sistentemente ela os extrapola, exatamente na medida a política unicamente ao plano do instituído, do norma- em que exige do humano a criação, a reinvenção lizado, às tecnologias de governamentalização da vida e incessante de seus modos de existência. Prerrogativa suas tentativas de contê-la no existente. Mas a política, ontológica que garante a todos ser e fazer história, a ao contrário de restringir-se a tais instituições, abarca- cada momento singular, sendo essa composição do as na medida em que remonta às definições acerca do conceito que nos interessa, por auxiliar o entendi- existir. Isso, contudo, sem que equivalha à artificialidade mento da dimensão constituinte do agir que impede das fronteiras que tradicionalmente separam o social, sua objetivação absoluta. o político, o econômico e o subjetivo. O político é, Tal demanda imperativa somente pode ser di- segundo essa leitura, horizonte ontológico, perspectiva rigida a sujeitos. Esclarecemos a necessária distinção de constituição histórica de ser social (Negri, 2002) que entre sujeitos e individualidades, sendo o primeiro se faz política não por ser exclusivamente estatal, mas conceito pertinente àqueles que, estando no centro da por incidir nos dispositivos de poder que configuram a atividade, respondendo ativamente pela gestão de suas produção de realidades sociais. Tomando por base essa variabilidades, pela síntese de todos os elementos hete- compreensão da questão, a atividade humana é emi- rogêneos por ela requisitados e postos em movimento, nentemente política. É plano aberto de possibilidades respondem também pelo debate de normas e, portanto, ao ser política, ao instituir formas de vida, ao implicar de valores que dela resulta. Talvez seja esse, justamente, os contornos e sentidos do humano. o ‘coração’ da atividade, a despeito de toda diversidade Olhar para a atividade a partir dessa perspectiva que o conceito abarca: o fato de a atividade requisitar significa colocar em primeiro plano a implicação ética a produção e a confrontação de valores, de pressupor de sua transversalidade. Se a atividade requisita, por a existência de escolhas. Escolhas do viver que expõem definição, a produção e a confrontação dos valores a implicação dos sujeitos na configuração e atualização que organizam nossas sociedades (já que não há va- de territórios existenciais, na constituição de ser. Essas lor restrito à esfera individual e a linguagem nos faz definições, ainda que ínfimas, não remetem jamais ape- impreterivelmente criadores e herdeiros de sentidos nas às individualidades, uma vez que, por meio delas, partilhados), ela também nos convida – ou intima – a são definidas as relações com os outros, com modos de interrogar permanentemente a forma como os valores vida, formas de sensibilidade, sociabilidade, referências engendram e determinam as normas antecedentes do simbólicas e territórios existenciais. existir coletivo. Desafio que remete a uma passagem do Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010 303 304 GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde político ao ético, principalmente quando se observa que seus membros um certo tipo de comportamento, grande parte das normas existem como dispositivos de impondo inúmeras e variadas regras, todas elas objetivação dos sujeitos, de silenciamento da dimensão tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê- instituinte e radicalmente democrática de sua atividade. los ‘comportarem-se’, a abolir a ação espontânea e São as molduras que delimitam os espelhos através dos a reação inusitada. (Arendt, 1981, p. 50). quais nos reconhecemos (Schwartz; Durrive, 2007): saberes, formas de desejar, de valorar, regras do conviver, Em nossa compreensão, o que a autora identifica normas do fazer e do ser. O viver humano, porém, escapa como “ação espontânea e reação inusitada” é justamente permanentemente às tecnologias e dispositivos de poder o caráter de normatividade que constitui a dimensão que ensaiam sua clausura. política da atividade humana e que, nesse sentido, é Em suma, quando colocamos o tema da objeti- transversal a todas as relações dos homens entre si e com vação dos sujeitos, nos deparamos com tecnologias de o mundo (o que, aliás, só arbitrariamente pode ser assim governo que têm como enredo maior a expropriação dividido). Tomando como referência as considerações da dimensão política da atividade humana. O princi- da autora, podemos dizer que tanto a emergência da pal mecanismo desse exercício de poder é a produção esfera social como espaço público por excelência, quanto de invisibilidade para as implicações políticas do viver, a organização política do Estado na modernidade têm mesmo e principalmente em sua dimensão cotidiana por base o mesmo processo: a redução da autonomia – tecnologias de governo que se revelam característica política dos sujeitos na produção de realidade social. fundamental da sociedade moderna. Consideramos Quanto a isso, a experiência da polis grega permanece interessante destacar a sinalização feita por Arendt emblemática. Não por sua fundação na distinção entre (1981) sobre as especificidades da experiência política trabalho e ação, ou seja, na distinção entre o espaço na modernidade, particularmente no que diz respeito à privado da família, a produção e a política, mas porque, substituição da ação pelo comportamento. Fenômeno apesar dessas exclusões e desigualdades, o que Arendt cujo maior efeito é a destituição do caráter político da (1981) identifica como o espaço discursivo da aparência, esfera pública. O aspecto que Arendt sugere aferirmos, situava-se em primeiro plano na organização coletiva, na prevalência dos problemas (e da construção de sua conferindo visibilidade à experiência política. É o fato legitimidade), como pertinentes, exclusivamente, à ga- de ser condicionada pela possibilidade de trazer à apa- rantia dos processos vitais de subsistência. Levando-se rência processos – os quais, de outro modo, passariam em consideração apenas as questões relativas à esfera por naturais e autônomos – que determina a especifi- da necessidade, ou pautando-se por ela as demais, não cidade dessa experiência e torna a ação (definida aqui se pode estranhar que o uso se converta em consumo, pelo caráter normativo com que se coloca no artifício com a emergência da sociedade moderna, e que seus humano de um mundo de relações) e o discurso seus processos adquiram aceleração crescente. elementos essenciais. Um fator decisivo é que a sociedade, em todos os [...] Tudo o que os homens fazem, sabem ou seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que experimentam só tem sentido na medida em antes era exclusiva do lar doméstico. Ao invés que pode ser discutido. Haverá talvez verdades da ação, a sociedade espera de cada um dos que ficam além da linguagem e que podem ser Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010 GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde de grande relevância para o homem no singular, tados socialmente torna-se, em nossa compreensão, isto é, para o homem que, seja o que for, não é questão política fundamental. um ser político. Mas os homens no plural, isto é, Tais considerações devem ser associadas ao fato de os homens que vivem e se movem neste mundo, que as instituições que configuram a sociedade signifi- só podem experimentar o significado das coisas cam mais que estabelecimentos ou organizações – cor- por poderem falar e ser inteligíveis entre si e respondem às lógicas que funcionam como reguladoras consigo mesmos. (Arendt, 1981, p. 50). e estruturantes das práticas sociais, e que, segundo o grau de formalização que adotem, podem expressar-se tanto em leis e normas, como em regularidades de comportamentos. São, nessa acepção (Baremblitt,1992), A GESTÃO COMO PRODUÇÃO DE NORMAS lógicas normativas que fazem movimentar sentidos e E DE SAÚDE territorializações existenciais, usualmente, sem que tal caráter produtivo seja explicitado. Esse aspecto é relevante no debate sobre a forma A discussão que empreendemos sobre as relações como a gestão em saúde se concretiza. Para Campos entre atividade e política explicitam que a norma remete (2000), não obstante seus compromissos democráticos, necessariamente à afirmação de valores. Na medida em o SUS atualizou o que se designa como racionalidade que se institui uma referência do normal, alguns valores gerencial hegemônica, ou seja, todo um conjunto de são eleitos em detrimento de outros e se afirmam, então, recursos e métodos de direção que incorporam como como constitutivos dos parâmetros nos quais certa nor- objetivo central a restrição das possibilidades de governo malidade é reconhecida. Em outras palavras, a norma, o da maioria. normal apenas existe como afirmação de valores, ainda que sendo usualmente equivalente à compreensão na- A gestão clássica sempre trabalhou a dimensão turalizada de saúde. do gerir. O gerir como ação sobre a ação dos outros. Assim sendo, fortemente amarrada ao O elemento que circula do disciplinar ao regula- exercício de poder. Seria ingênuo afirmar que dor, que se aplica ao corpo e às populações, e que essa abordagem da gestão não pressupõe produ- permite controlar a ordem do corpo e os feitos ção. Pois ela produz o tempo todo. A gestão tem de uma multiplicidade humana é a norma. sido a disciplina do controle por excelência. Pre- (Caponi, 1997, tradução nossa, p. 300). ocupada sempre com o aumento da produção de mais-valia, de produtividade, e de reprodução Essa dimensão, em verdade alicerce da normali- do status quo. (Campos, 2000, p. 124). dade, não é evidente em si mesma. Implícitos e pouco enunciados em seus efeitos, os valores que fundamentam Mesmo com o exercício discursivo da reenge- a compreensão do normal e, portanto, das normas que o nharia organizacional – que advoga a recondução dos organizam, não são debatidos na experiência cotidiana processos de trabalho em direção a uma maior flexibi- dos sujeitos. Razão pela qual a constituição de um plano lidade, interdisciplinaridade e criatividade, defendendo de visibilidade sobre os valores produzidos e confron- a composição de parcerias e a gestão do conhecimento Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010 305 306 GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde na solução de problemas, com aparente ampliação da Somos aqui confrontados com uma tradição de autonomia no trabalho – ainda assim não é difícil concentração das decisões, pautada pelo estriamento constatar que o eixo primordial da tradição taylorista hierárquico da realidade social, que se atualiza pelas permanece atual. Para Campos (1994, 2000), não é instituições, pela verticalidade e pelo fluxo descendente excessivo manter a designação de racionalidade geren- das informações. Uma tradição para a qual os sujeitos cial hegemônica, dada a manutenção da disciplina e do que vivem as políticas pouco ou nada sabem delas, para a controle dos trabalhadores como aspecto fundamental qual o planejamento dessa esfera, supostamente pública, dos modelos de administração contemporâneos, finali- apenas pode dar-se pelo recurso aos saberes disciplinares, dade a partir da qual “[...] se faz política, inventam-se numa dinâmica em que a concepção é anterior e exterior normas e se promovem alguns valores em detrimento à execução das políticas. de outros” (p. 34). Dado o peso dessa tradição, em nossa perspectiva, o O controle seria, nesse sentido, fruto da concentra- compromisso ético que fundamenta o SUS apenas pode ção de poder, de seu exercício em ato na ordenação da concretizar-se se forem constituídos planos de visibili- vida institucional. Prerrogativa garantida aos dirigentes dade sobre os modos como são forjados e confrontados de construir o sentido e o significado dos processos, dos os valores nas instituições de saúde. É preciso que sejam objetos e das pessoas na produção. Ainda que possam engendrados artifícios e dispositivos de expressão que recorrer do terror à sedução, o controle revela-se o nú- permitam a recriação dos sentidos que se atualizam nas cleo duro de todas as metodologias de gestão (Campos, instituições (e que nessa medida as atualizam também) 2000). O mecanismo de sua efetivação gira em torno – usos das palavras e de matérias outras de expressão, do princípio de autoridade de que se investe a gestão na para e pela atividade, que conformem novos e diversos determinação da organização do trabalho, produzindo sentidos para o real, que não aqueles do silenciamento e um leque delimitado de efeitos pedagógicos assentados, da exclusão. Considerações que nos levam a pensar que sobretudo, em processos de objetivação dos sujeitos das a participação política no SUS deve ser necessariamente práticas institucionais. Dessa forma, concentração de po- remetida ao campo da gestão em saúde, à organização der, autoridade e obediência são efeitos produtivos – já do trabalho em suas instituições e à conformação das que produzidos e produtores das estruturas hierárquicas práticas que materializam as políticas de saúde. das instituições. Porém, sendo relação e não substância ou lugar passível de ser possuído, o exercício do poder não é CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INTERSEÇÕES jamais completamente expropriado dos sujeitos, o que ENTRE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO SUS E faz com que essa forma de gestão, que descontextualiza GESTÃO EM SAÚDE a experiência e a dimensão normativa da atividade, apenas seja possível com a limitação de sua autonomia, muito embora ela permaneça intervindo como elemento Frente aos desafios evidenciados, endossamos a essencial de determinação dos processos sociais – do que avaliação de Campos (2000, p. 41) sobre o problema advém a necessidade de centralização da capacidade do “fortalecimento dos sujeitos (em sua capacidade de de governo e de acesso aos instrumentos e dispositivos análise e intervenção) e a construção de democracia formais desse exercício. institucional”. Imaginamos que essa é uma perspectiva Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010 GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde interessante de problematização da gestão, posto que lidade para os valores que permeiam e embasam os remete a democracia à capacidade de ser normativa, processos decisórios que o determinam. É no âmbito o que implica, necessariamente, as possibilidades de da gestão desses processos, nos territórios reais onde cogestão dos processos institucionais. ocorrem, que podemos pensar a participação política. A participação como sendo ela própria uma atividade Todo homem quer ser sujeito de suas normas. A de luta e de saúde. Mesmo porque esses dois sentidos ilusão capitalista está em acreditar que as nor- são dificilmente separáveis. Seguindo o caminho deli- mas capitalistas são definitivas e universais, sem neado por Canguilhem, a saúde seria essa capacidade de pensar que a normatividade não pode ser um “enfrentar e superar as infidelidades do meio” (Caponi, privilégio. [...] A vida não é, a bem da verdade, 1997, tradução nossa, p. 291), a margem de segurança segundo nós, senão a mediação entre o mecânico que nos permite confrontar os fracassos, erros e desafios e o valor, é dela que se tiram por abstração, como inerentes à vida. Distante da alternativa de manutenção termos de um conflito sempre aberto, e por isso perene de qualquer equilíbrio, a saúde é justamente esse mesmo gerador de toda experiência e de toda movimento de luta pela vida, pela condição de ser su- história, o mecanismo e o valor. O trabalho é jeito em suas trilhas, autor de seus percursos. Em outras a forma que toma para o homem o esforço uni- palavras, não apenas o movimento de adaptar-se, mas versal de solução do conflito. (Canguilhem, também a luta em ser normativo. 2001, p. 121). É preciso pensar em um conceito de saúde caA participação no SUS poderia colocar-se como paz de contemplar e integrar a capacidade de o problema de construção dessa democracia institu- administrar de forma autônoma essa margem cional e de publicização dos processos decisórios que de risco, de tensão, de infidelidade, e por não conformam as políticas de saúde, para o que é preciso dizê-lo, de ‘mal-estar’com o qual inevitavel- desarticular os discursos que pretendem justificar como mente todos devemos conviver. (Caponi, 1997, questão estritamente técnica a centralização do poder tradução nossa, p. 300). de governo. Ao contrário, a tarefa de repensar a gestão apenas pode ser abordada na opção pela politização da Enfim, consideramos importante destacar nos pro- técnica, como expuseram Gonçalves, Schraiber e Ne- cessos de produção de saúde e doença suas implicações mes (1990) ao defenderem a ação programática como políticas, já que o exercício normativo supõe necessaria- um valor-saúde. O ponto de partida deve ser “tornar mente a conformação e atualização de territórios existen- políticas” as ações e seu cotidiano, no sentido de expor ciais. Nessa medida, as instituições e políticas públicas suas implicações com a configuração da assistência, são uma arena normativa incontornável, em que saúde seus efeitos sobre a produção do bem comum que é a e autonomia são sentidos que não podem ser dissocia- política de saúde. dos. Mas essa garantia depende de lutas que remetem Tais colocações nos levam a questionar as decisões à instituição de outras normas, à construção de outros e opções técnico-políticas que tornaram possíveis os dispositivos de participação política que proporcionem desenhos institucionais esboçados no SUS. Falamos, visibilidade para a produção dos valores legitimados e aqui, do desafio de constituição de planos de visibi- institucionalizados pelas práticas de gestão. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010 307 308 GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde Essas questões demonstram a necessidade de R E F E R Ê N C I A S repensar os modos de gestão do sistema de saúde, já que o cotidiano institucional expõe as limitações que a tradição gerencial enfrenta na concretização de projetos e programas, principalmente quando se apresenta como horizonte desejado a transformação de suas instituições. Nesse sentido, a realização das políticas públicas do setor vai muito além de sua adequada formulação ou da criação de mecanismos de controle burocratizados. A experiência histórica de implementação do SUS manifestou a ineficácia resultante de tentativas de estabelecer objetivos, novos instrumentos de produção de informação, reorganizar os processos de trabalho, reformular a composição das equipes, construir novas unidades e disponibilizar verbas, inclusive grandes investimentos em capacitação, sem que sejam questionadas no âmbito da gestão as relações cotidianas de poder que permeiam e configuram as instituições de saúde. De fato, as dificuldades enfrentadas nos confrontam com os limites das tentativas de reformar as instituições sem explicitar a dimensão política das práticas, sem produzir visibilidade para as implicações que geram na produção de valor. Aspecto que significa, em outras palavras, interrogar os dispositivos de poder que respondem pela restrição da capacidade de governo da vida da maioria. Com isso, pretendemos justificar a posição assumida de que a discussão sobre o que seja e o que se deseja da ação de participar não deve ser entendida estritamente como representação em espaços instituídos para este fim – como no caso dos colegiados e conselhos administrativos – mas como pertinente ao cotidiano das atividades institucionais, sem o que dificilmente os espaços já formalizados de representação política deixarão de reproduzir as relações de força que os sujeitos historicamente vivenciam no dia a dia do sistema de saúde. Condição, enfim, para a reinvenção das possibilidades democráticas no SUS. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010 Arendt, H. O que é a política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. ______. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Rio de Janeiro: Salamandra; São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1981. Baremblitt, G. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 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[email protected] 2 RESUMO O estudo objetivou investigar o modo como se articula o discurso da participação social na constituição do conselho da unidade de saúde da família do bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Foram utilizados recursos da pesquisa qualitativa, com observação, diário de campo e entrevistas com seis conselheiros. Acompanhamos a história do conselho durante 18 meses consecutivos, desde a sua gênese. Revelou-se que a necessidade de criação do conselho partiu de meta estabelecida pela prefeitura. Os limites e entraves para a implantação do PSF na região constituíram fortes propulsores para a consolidação do conselho na unidade. A consolidação dos conselhos locais é importante pelo fato de estarem mais próximos da realidade das pessoas e menos impregnados de burocracia, o que torna as discussões menos técnicas e mais socializadoras. PALAVRAS-CHAVE: Controle social; Participação social; Estratégia de saúde da família; relações de poder; Conflitos institucionais; Sistema Único de Saúde. ABSTRACT This study aimed to investigate how the discourse of community participation was articulated to the constitution of the Family Health Unit in the neighborhood of Bom Retiro, Sao Paulo, Brazil. We employed theoretical and methodological resources of qualitative research, with observation, field journal and interviews conducted with six councilors. We followed the history of the council since its genesis during 18 consecutive months. It was revealed that the need for the creation of the mentioned council came from a goal set by the city government. The limits and boundaries faced by the program in the region were considered to be strong boosters for the consolidation of the local council. The establishment of local councils is important due to their closeness to the reality of life and destitution of the management bureaucracy, which makes the discussions less technical and more socializing. KEYWORDS: Social control; Social participation; Family health strategy; Power relationships; Institutional conflicts; National Health System. * Esta pesquisa contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010 SOUSA, R.M.R.B.; BOTAZZO, C. I N T R O D U ç ão • Gênese de um conselho local de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) se apresentaram, entre elas a participação da sociedade. Como resultado da aglutinação de distintos seg- Este artigo toma por base os princípios que nor- mentos sociais no movimento de constituição da saúde teiam a construção de um sistema de saúde universali- como um direito de cidadania, seguiu-se, na elaboração zado e com capacidade de contribuir para a melhoria do capítulo de Seguridade Social da Carta Constitu- da qualidade de vida das pessoas, focando as correntes cional de 1988, uma seção específica que contempla, de pensamento que explicitam a saúde enquanto prática para a organização do SUS, as seguintes diretrizes: a) social permeável e penetrável por interesses populares descentralização com comando único em cada esfera de ou, mais do que isto, literalmente públicos. governo; b) integralidade no atendimento, priorizando Sem dúvida, o entusiasmo causado pela ascensão do discurso sobre a participação popular nos pro- as ações preventivas; c) participação da comunidade (Elias, 1996; Brasil, 1988). cessos que definem o andamento do que é público Segundo nos apontam Carvalho e Santos (1995), a fica mais contido na medida em que se aproxima do sociedade concretiza sua participação institucional pela plano real das práticas de controle social em si ou, integração com órgãos colegiados decisórios, os conse- para sermos mais exatos, tal entusiasmo, como diz lhos de saúde, definidos pela lei 8.142/90 em caráter Ferreira, esfria (Ferreira, 1992). Consideramos, permanente e deliberativo, compostos por representan- então, que a definição legal não basta, mesmo sendo tes do governo, prestadores de serviço, profissionais da parte do contexto de participação e uma das condições saúde e usuários. para que o controle social seja entendido como um atributo público. Para o controle da gestão do SUS, está garantida, segundo critérios quantitativos, a paridade entre usuá- É preciso também recuperar como se estabelece- rios, trabalhadores e gestores. Tal garantia na formação ram as relações sociais que concorrem com este fim, do conselho está prevista em lei (Brasil, 1991). A ou melhor dizendo, qual a legitimidade do processo efetividade deste princípio, no entanto, vem sendo ques- participativo da população e dos profissionais da saúde tionada a respeito da qualidade com que se concretiza o nos diversos serviços locais, posto que a ocupação dos controle por parte da sociedade nos espaços institucio- espaços públicos por parte da sociedade civil organiza- nais. Segundo deliberação da 11a Conferência Nacional da coloca-se ainda agora como desafio para as unidades de Saúde de 2002, o controle social deve ser defendido de saúde. Destacamos que tal recorte expressa uma com enfoque na necessidade de sua legitimação por forma privilegiada de prover atenção e assistência na parte da população: dimensão coletiva. Foi no bojo do processo de democratização que, Deve haver o fortalecimento do exercício da no Brasil, vimos emergir, a partir da década de 1970, cidadania através do Controle Social da socie- uma forte tendência de participação da sociedade na dade e em especial na área de saúde através das definição e implementação de políticas públicas. No Conferências e Conselhos de Saúde deliberativos momento da transição política de um regime militar e paritários com exigência de respeito às suas para outro democrático, condições concretas para a decisões. (Conferência Nacional de Saúde, aprovação dos princípios fundamentais na construção 11ª, Relatório Final). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010 311 312 SOUSA, R.M.R.B.; BOTAZZO, C. • Gênese de um conselho local de saúde Em decorrência das políticas neoliberais e da Procedimentos metodológicos imposição do Estado mínimo, os governos têm sido pressionados pelas organizações internacionais a priorizarem a reconstrução de sistemas de saúde no Ferreira (1992), ao discutir os fundamentos da par- intuito de atingir maior eficácia, com clara definição ticipação popular em saúde, faz referência à participação de ‘prioridades’ centradas na atenção básica, na inter- como uma unidade discursiva, na qual seus enunciados setorialidade e na descentralização do poder decisório. dão conta de uma multiplicidade de objetos e modos O conceito de participação, todavia, vincula-se a de enunciar, de conceitos e de escolhas teóricas, enfim, uma ideia libertária de prática para mudanças, mas, um verdadeiro sistema de dispersões. quando acoplado ao de comunidade, assume um Destacamos, dentro desse sistema de dispersões, a caráter de certo modo apaziguador dos verdadeiros relevância das relações cotidianas dos atores envolvidos propósitos institucionais, em muitos casos restritos no exercício do controle social local para a constituição a metas puramente econômicas (Ferreira, 1992). da participação popular no caso estudado. Portanto, Eis a necessidade de ressignificá-los pelo resgate his- dada a multiplicidade de objetos constituintes dessa tórico e político dos termos, já que não se aposta na participação, foi preciso resgatar como os conselheiros neutralidade de ambos. tecem a rede participativa, ou redes sociais, no bairro No sentido de pensar a constituição dos diversos do Bom Retiro para além das reuniões do conselho. interesses e poderes no espaço micro do cotidiano das Acompanhamos, então, seus trajetos no exercício de unidades de saúde, Cecílio (1999) ressalta, quando afirma seus papéis de conselheiros. que, para analisar a relação entre controle social e serviços Consideramos que as práticas referentes ao exercício de saúde, faz-se necessário explicitar que os interesses lo- do controle social em si podem ser legitimadoras daquilo cais são diversos e que nem sempre haverá consenso entre que está legalmente constituído enquanto norma institu- as diversas categorias profissionais de trabalhadores, bem cional. Com base nessas questões, buscou-se desdobrar as como entre as demandas apresentadas pelos usuários; isso unidades discursivas que configuram a “participação da explicita uma das dificuldades em exercer literalmente o comunidade” no conselho gestor da Unidade de Saúde controle sobre a organização dos serviços de saúde com da Família do Bom Retiro em São Paulo. foco nas necessidades das populações. Foi utilizado o referencial teórico da pesquisa Tomando esses pressupostos por base, o presente qualitativa com ênfase na observação participante e estudo teve o objetivo de investigar o que está implica- entrevista não diretiva com os conselheiros. Utilizamos do no discurso de ‘participação da comunidade’ para como instrumento de trabalho um diário de campo e a constituição do poder local no âmbito das decisões gravação das entrevistas. Além desse procedimento, a políticas na esfera de unidades de saúde. Na forma construção da rede de desdobramentos vivos da política institucionalizada e representativa de tais instâncias, se deu com base na observação das reuniões ordinárias do tomou-se como corpus de estudo o conselho gestor da conselho gestor da unidade. O estudo foi conduzido em Unidade de Saúde da Família do Bom Retiro (Centro meio ao processo de consolidação do conselho durante de Saúde Dr. Otácvio A. Rodovalho), localizado no 18 meses, desde novembro de 2002 até maio de 2004. bairro do Bom Retiro, região central da cidade de Consultamos as atas e documentos do conselho e São Paulo. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010 acompanhamos as atividades que pudessem caracterizar a SOUSA, R.M.R.B.; BOTAZZO, C. • Gênese de um conselho local de saúde vida social dos conselheiros: quem são, o que fazem, quem Como se sabe, o Programa foi formulado pelo e de que modo representam, por onde e como se inserem no Ministério da Saúde do Brasil em 1993, e, no final de contexto de participação no bairro, por quais olhares. Dessas 2002, estava implantado em 4.114 municípios brasi- atividades, destacamos as reuniões das equipes de saúde da leiros. Nesse período, o número de equipes de saúde família na unidade e as do conselho da Coordenadoria de da família era de aproximadamente 16.192 e prestava Saúde Sé, a permanência na unidade nos horários de aten- assistência a 53 milhões de pessoas (Ribeiro; Pires; dimento, as caminhadas pelo bairro e as visitas domiciliares Blank, 2004). com os agentes comunitários conselheiros, as reuniões do Na cidade de São Paulo, no período de 1993 a Orçamento Participativo do Bom Retiro e do Conselho 2000, a opção política para a estruturação das ações e Municipal de Saúde de São Paulo. Todos esses lugares cons- serviços de saúde não esteve pautada pelos princípios tituíam a rede participativa construída pelos conselheiros. do SUS, verificando-se uma preferência por organizar Utilizamos nomes fictícios para os sujeitos pesquisados privadamente cooperativas de saúde ao tempo que (quatro conselheiros-usuários, dois conselheiros-gestores e deixaram à míngua a rede de serviços básicos, incluin- dois conselheiros-trabalhadores), e, para tanto, tomamos por do as vigilâncias e ações de promoção. É reconhecido referência o sistema solar, sem associações comparativas dos pelos próprios conselheiros que os governos de Paulo planetas com as pessoas. Os relatos utilizados não permitem Maluf (1992-1996) e de Celso Pitta (1996-2000) não identificação dos envolvidos e o trabalho foi aprovado pelo contemplaram a possibilidade de gestão compartilhada, Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal da segundo as falas a seguir: Saúde de São Paulo. Previamente, o projeto foi discutido e aprovado em reunião do conselho, sendo registrado em ata. A gente sabe que o Maluf não quer nem ouvir Posteriormente, os sujeitos da pesquisa manifestaram sua falar em conselho. (Mercúrio). concordância em participar, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido. O conselho não tinha vez no governo do Maluf, não fomos nem consultados sobre o programa de saúde implantado. (conselheiro-usuário, em RESULTADOS E DISCUSSÃO reunião do Conselho Municipal de Saúde de São Paulo). Da gênese ao conselho em si A partir da administração municipal, eleita em A construção do problema em torno da participa- 2000, iniciou-se uma discussão acerca da implemen- ção popular nesta investigação manteve-se em estreita tação das diretrizes do SUS, efetivando caminhos para relação com a implantação do Programa Saúde da Fa- a participação popular e entendendo a ampliação do mília (PSF) no bairro do Bom Retiro. Neste município, acesso por meio da implantação do Programa Saúde também o PSF começou a ser visto como estratégia de da Família. Alguns mecanismos facilitadores desse reorganização das ações e serviços de saúde, em nível processo foram implementados e/ou retomados 1 primário, no início de 2001. pela nova gestão municipal. Desses instrumentos, No governo da prefeita Luíza Erundina (1989), anterior ao governo do prefeito Paulo Maluf, houve um espaço aberto para a constituição da participação popular na gestão da saúde. 1 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010 313 314 SOUSA, R.M.R.B.; BOTAZZO, C. • Gênese de um conselho local de saúde podemos destacar o orçamento participativo e a nalidade técnica do que pela necessidade colocada pela criação de conselhos gestores em espaços públicos população usuária, como fica claro na fala da conselheira nos diversos setores. a seguir: O Conselho Municipal de Saúde de São Paulo participou da decisão por mudanças no modelo de Em 2001, ‘o governo municipal não tinha atenção à saúde nesse período de transição política, mas intenção’ de ampliar os equipamentos, por isto a consolidação desse processo no plano local ainda estava também a substituição da unidade básica de por acontecer com a criação dos Conselhos Distritais e saúde por unidade de saúde da família. (en- Locais de Unidades de Saúde. Por esse aspecto, mesmo trevista com Marte; grifo nosso). com a democratização dos espaços decisórios na gerência de recursos públicos, a população local do bairro esteve Como já relatado, o programa vem sendo implan- à margem da decisão de implantação do PSF na região. tado nas grandes cidades com maiores dificuldades de Portanto, a ideia norteadora do modo programático e aceitação do que nas cidades pequenas, possivelmente territorializado de atendimento em novembro de 2002, porque as relações nas cidades menores são mais estreitas quando foi criado o Conselho Gestor da Unidade, era entre as unidades de saúde e os moradores (Vascon- incipiente e com muitas resistências por parte da po- celos, 1999). Também no bairro estudado, pudemos pulação. O relato de um conselheiro-trabalhador que identificar essas resistências a partir do relato de uma esteve na unidade desde o princípio da reestruturação usuária convidada a participar de uma das reuniões do sistema de saúde no bairro situa algumas dessas do conselho, explicitando a dificuldade de vivenciar a resistências: territorialização local: Aqui era outra unidade, do Estado, cada um Fiz o cadastro no Bom Retiro porque a agente vinha sem receita, era mais por conhecimento de saúde foi na minha casa, ‘mas eu gosto ser de alguém, por amizade, tinha um certo dire- atendida na Barra Funda2, eu já tô acostuma- cionamento de quem ia ser atendido por estes da...’ (usuária convidada; grifo nosso). modos. Era como o povo dizer ‘ Ah, ta com uma dorzinha, vai no posto que eles dão remédio, e Outro modo de resistência é que as visitas domi- pronto.’ E a gente teve que lutar e tentar tirar isso ciliares não são bem recebidas pelos grupos em situação da cabeça do pessoal, mostrar que o programa era de clandestinidade, como os de bolivianos, que não uma iniciativa nova, ia trazer o médico de fa- abrem suas portas para o cadastro domiciliar ou mesmo mília de novo para a região, seria aquele médico se protegem por meio da comunicação em sua língua de que ia cuidar sempre não só da senhora, mas das origem com medo de serem denunciados. crianças também. (entrevista com Saturno). A lógica do programa demanda o cadastramento das famílias por domicílio. Esse modo de atuar implica A mudança da programação dos serviços de saúde, envolvimento das pessoas com o serviço de saúde. Dis- nesse momento, acontecia muito mais por uma racio- correndo sobre a atenção primária às famílias no PSF, A Barra Funda constitui área de abrangência limite com o Bom Retiro em direção centro-oeste, e está equipada com uma unidade básica com maior capacidade, incluindo maior quadro de profissionais e infraestrutura favorável. 2 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010 SOUSA, R.M.R.B.; BOTAZZO, C. • Gênese de um conselho local de saúde Vasconcelos (1999) insiste na necessidade de haver O caráter substitutivo do PSF impõe limites e vínculo e diálogo para o processamento de visitas do- considerações diante das práticas tradicionalmente exer- miciliares, já que o domicílio é um espaço particular e cidas na Unidade Básica de Saúde. Para Bleicher (2004), de privacidade das pessoas. O autor reforça ainda que é isso deveria significar que o PSF não deve ser mais um preciso haver tempo e um trabalho de mobilização das programa diante de tantos outros, e sim um modo de pessoas para integração no novo modelo de atenção. incluir as necessidades primárias das famílias com base Ainda no campo das limitações do PSF, identificamos na clínica geral. A autora segue dizendo que o programa que os encaminhamentos para contemplar tecnicamente a deve estar, portanto, fortemente inspirado na integra- concepção do SUS no que se refere à hierarquização, dando lidade da assistência prestada3, para então dar conta à atenção básica o caráter generalista de atendimento, não das demais complexidades presentes, sempre contando têm conseguido dar conta das necessidades da população com a efetividade da referência e da contrarreferência. em relação aos problemas de maior complexidade clínica Quanto a esse aspecto, a autora nos traz algumas ponde- e de urgência ou emergência, descaracterizando a integrali- rações, pois muitos municípios têm experimentado um dade por desarranjo na referência e contrarreferência. Nesse estrangulamento das necessidades por não conseguirem contexto, registramos a fala de um morador boliviano em garantir o acesso à atenção secundária e terciária a partir uma reunião de mobilização e sensibilização da população das unidades de saúde da família, enfatizando: para compreender o PSF: Este é um erro grave: ofertar somente a atenção Às vezes eu me sinto discriminado e, ao contrá- primária sem garantir a secundária e a terciária rio do que eu sinto, o programa visa a atender as pode levar ao descrédito do programa, fazendo pessoas cadastradas independente de raça, cor ou com que a população prefira enfrentar as filas posição social, ‘e que nem tudo pode ser resolvido dos hospitais a buscar uma unidade de saúde no posto... é necessário ter um ginecologista e da família. Eugênio Vilaça Mendes costuma pediatra na unidade.’ (morador boliviano, dizer que o PSF deve ser o primeiro contato usuário do serviço; grifo nosso). do usuário com o sistema de saúde, salvo nas ocasiões de urgência e emergência. (Bleicher, O relato de um conselheiro-usuário reforça a ideia 2004, p. 15). de que a substituição da Unidade Básica de Saúde, configurada com o serviço de especialidades, pela Unidade Ribeiro, Pires e Blank (2004) também discutem de Saúde da Família centrada na clínica médica foi que a retomada de generalistas e a constituição de inadequada, como fica explicitado a seguir: equipes multiprofissionais têm sido conformadas por uma série de expectativas para compensar a fragmen- 3 Nosso bairro precisa mesmo é de um Pronto- tação excessiva que a especialização legitima e autoriza. Socorro, e tinha que voltar a Unidade Básica de Todavia, o que se requer para a eficácia e eficiência dos Saúde, não sei por que mudou, era bom, tinha serviços é a articulação dos diversos níveis de atenção, pediatra, ginecologista. (Vênus). contemplando as necessidades em suas complexidades. Portaria 1.348 de 18/11/99, art. 2º, inciso I, do Ministério da Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010 315 316 SOUSA, R.M.R.B.; BOTAZZO, C. • Gênese de um conselho local de saúde Sobre essa questão, um representante dos usuários no Uma mulher veio reclamar que veio com uma conselho fala sobre as necessidades médicas que estão criança doente e com febre e não foi atendida além da capacidade de resolução no PSF: pelo médico, a enfermeira viu, mas não foi o médico, pediram na recepção que viesse outro As pessoas estão elogiando o plano de saúde da dia para marcar consulta. Isso não tá certo, o família, eles gostam quando a agente vai na médico tinha que ver, depois a criatura teve casa deles e leva remédio ou quando o médico que ir pra Santa Casa pra resolver o problema e a enfermeira vão visitar, mas estão cobrando dela. (Mercúrio). demais as outras coisas, quando precisa de um especialista e de um Pronto-Socorro; a gente Segundo Malta et al. (1998), o acolhimento, ao se precisa, em primeiro lugar, de uma unidade colocar como estratégia para reconfigurar o processo de básica de saúde para depois ter o plano de trabalho nas Unidades de Saúde, pretende: a) melhorar família, porque não é só disso que a gente o acesso dos usuários aos serviços de saúde, mudando precisa, por exemplo, se a gente passar mal; a a forma tradicional de entrada, que se dá por meio das unidade de saúde da família não mede pres- filas e ordem de chegada; b) humanizar as relações entre são na hora que precisa, não dá remédio para profissionais da saúde e usuários e escutar seus problemas tomar, tem que passar primeiro pela médica ou demandas numa abordagem que contemple não com consulta marcada,... enquanto que na apenas a dimensão biológica, mas também a psicoló- unidade básica atende emergência, se você gica, a social e a cultural; c) aumentar, desse modo, a chega com dor de cabeça a primeira doutora responsabilidade dos profissionais de saúde em relação que estiver desocupada atende, dá receita, aos problemas concretos vividos pelos usuários em seu dá remédio e pronto vai para casa; é isso que contexto existencial; d) elevar os coeficientes de vínculo a gente precisa aqui no bairro. (entrevista e confiança entre eles. com Mercúrio). Os fundamentos teóricos que embasam a tecnologia de acolhimento atendem a uma lógica ainda não incorpo- Ainda percorrendo os imbricamentos referentes rada pela população da área de abrangência da unidade, à implantação do PSF na região, percebemos que o e é preciso considerar também que o modo de fazer dos acolhimento constituiu uma tecnologia de assistên- profissionais está diretamente relacionado com a possibi- cia à saúde vista pelos conselheiros como um fator lidade de estabelecer algum tipo de vínculo. Para Botazzo complicador pelo modo como vem acontecendo no (1999), a relação que o profissional desenvolve com a desencadeamento das ações e serviços na unidade em população que atende está em estreita conformidade com estudo. A ideia de ser recebido pela enfermeira e que ela o modo como o serviço acolhe o próprio profissional. teria o ‘poder’ de também dar encaminhamentos com Mais adiante, na descrição e análise do território e tendo relação à resolutividade do problema, podendo algumas como ponto de partida a unidade de saúde, discutiremos vezes dispensar ou adiar a consulta médica, não vinha melhor essa questão. Com base na realidade estudada, um sendo bem recebida pelas pessoas daquele lugar. Um conselheiro representante dos trabalhadores descreve, no conselheiro-usuário reclama do acolhimento e da lógica seu modo de operacionalizar as visitas domiciliares, uma do atendimento programado: possibilidade de desenvolver esse vínculo: Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010 SOUSA, R.M.R.B.; BOTAZZO, C. • Gênese de um conselho local de saúde Além de ser uma ambiente de trabalho a gente Ao consultarmos as atas de reuniões anteriores à desenvolveu uma relação de amizade com a formação do conselho, constatamos que a mobilização população da nossa microárea de trabalho, se concretizou por meio de reuniões com a comunidade se vê na rua a pessoa já chama, fala ‘Como dividida por microáreas dentro do território de atua- foi bom naquele dia que você veio aqui na ção, e que a pauta constituiu-se de explicações sobre o minha casa’, a gente se preocupa em articular PSF e a ‘necessidade’4 de consolidação de um conselho as senhoras idosas a participarem do grupo que gestor para aquela unidade de saúde segundo as normas nós organizamos para a caminhada, bom para da prefeitura. As ênfases acrescidas se referem ao modo conhecer outras pessoas, tirar um pouco daquela de encaminhamento da criação do conselho, que tem rotina de remédio, tratar também do mental das seu fundamento enraizado mais na ‘necessidade’ de pessoas, não é só o físico. Às vezes, na minha cumprir uma norma e do que na ‘necessidade’ da po- área, tem visitas que são maiores, tem mais pulação de participar em campos do poder decisório. idosos, às vezes eles estão sozinhos, a família A necessidade partiu da administração, como afirmou não vai lá, às vezes eu acho que a hipertensão a primeira gerente da unidade de saúde, na época de tem a ver com a solidão, então a gente senta, criação do conselho, em uma reunião com a população conversa, toma um café, chama para entrar para esse fim: no grupo da caminhada... a gente não faz só o papel de agente comunitário, a gente faz papel O conselho gestor é uma oportunidade de de amigo. (entrevista com Saturno). ouvirmos a comunidade, e atualmente temos de implantar em nossa ‘unidade pois Entendemos, por esses termos, que a necessidade é meta da prefeitura; até o final do ano de abertura de canais de participação popular emergiu todas as unidades devem estar com seus no espaço estudado para dar conta da articulação das conselhos formados.’ (gerente da unidade; tecnologias que caracterizam o Programa Saúde da Fa- grifo nosso). mília com o modo de compreendê-las e de ‘fazer’ dos profissionais, assim como a capacidade de integração da Mesmo que o processo de participação popular população a esse novo modelo organizador do serviço. tenha sido desencadeado por uma norma da prefeitu- A partir das dificuldades da população do bairro do ra, consideramos que houve abertura de espaços para Bom Retiro para compreensão e aceitação do modo de discussão e que as pessoas, tanto moradores quanto operar no PSF, a gerência da unidade iniciou, em 2002, um conselheiros-usuários, também reconhecem a impor- processo de aglutinação da comunidade junto à unidade tância desse papel, como nas falas abaixo: de saúde, intensificando sua participação na elaboração e encaminhamento das práticas de saúde na referida área de Apesar da demora dos exames e das consultas, abrangência. O serviço local propôs, então, a consolidação o posto está melhor do que era e agora a gente de um conselho gestor da unidade de saúde com o propósi- tem espaço para falar. (morador usuário – Ata to explícito de ‘democratizar o planejamento das ações’. da reunião com as microáreas). 4 O destaque se dá para nos perguntarmos: de quem é a necessidade? Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010 317 318 SOUSA, R.M.R.B.; BOTAZZO, C. • Gênese de um conselho local de saúde Parabéns a esta administração da prefeitura e quatro representantes dos trabalhadores e quatro repre- ao secretário municipal que, pela primeira vez, sentantes da administração da unidade. possibilitou a participação da comunidade e sua Dos oito conselheiros usuários eleitos, três re- escuta para expor seus problemas. E mesmo se presentavam a CDL e cinco eram moradores da área não resolvê-los, temos a oportunidade de manter de abrangência. Logo nos dois primeiros meses de um controle social sobre os serviços prestados pela atuação do conselho, os membros da CDL pediram unidade de saúde e, em especial, do atendimento afastamento, com o argumento de que as reuniões não dado pelos funcionários. (conselheiro usuário tinham encaminhamentos concretos, questionando – Ata da reunião de posse do conselho). o poder do conselho. Três moradoras conselheiras afastaram-se gradativamente, logo nos primeiros Na época da votação, eu fiquei aqui no posto meses também. para informar as pessoas que ia ter conselho, Foram indicados pelos próprios conselheiros usu- para poder ouvir os usuários; o conselho foi for- ários dois substitutos. Enfim, o segmento dos usuários mado para a gente ouvir as pessoas aqui, saber firmou-se em quatro representantes depois de três meses se está tudo bem, para dizer que ia ter saúde de da eleição. São eles: Mercúrio, Vênus, Urânio e Júpiter. família e explicar como é; eu entrei no conselho Neste caso, devemos considerar que a paridade estava para ajudar, vi muitas coisas erradas aqui no co- comprometida em relação ao inicialmente proposto. meço, eu não gostava de ver mau atendimento, Para compor o segmento dos trabalhadores, os profissionais estavam estressados... o conselho Saturno e Netuno, dos quatro eleitos, foram os que melhorou muito esse negócio de atendimento. assumiram efetivamente, e não há registros dos motivos (entrevista com Mercúrio – representante dos pelos quais os outros desistiram. Os dois eram agentes usuários no conselho). comunitários. Médicos e enfermeiros não participavam efetivamente e não visualizavam o conselho como uma Iniciamos o processo de acompanhamento das instância deliberativa dentro da unidade. Para caracte- discussões e da consolidação do conselho gestor local rizar o maior compromisso da categoria profissional dos desde a grande reunião, quando a “comunidade” foi agentes comunitários na unidade, ressaltamos a fala de convocada para discutir como se daria a sua participação Marte, a gerente, quanto a esse aspecto: no serviço de saúde. Estavam presentes representantes da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), da Sociedade Os profissionais agentes comunitários são mais de Amigos do Bom Retiro, do Conselho de Segurança e envolvidos com o trabalho, com os problemas da Igreja Católica, profissionais e usuários do grupo de do bairro e com a população, acho que porque idosos, médicos e agentes comunitários. Foi constituída eles são moradores, conhecem a região e são da uma chapa única para a eleição. mesma classe social da população. (entrevista com Marte). O corpo do conselho em foco O segmento dos gestores inicialmente foi com- O conselho foi formado atendendo aos princípios posto por duas pessoas: a gerente e um agente comu- de paridade, com oito representantes dos usuários, nitário indicado pela gerência. Efetivamente, os dois Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010 SOUSA, R.M.R.B.; BOTAZZO, C. não assumiram; a primeira por motivos administrativos • Gênese de um conselho local de saúde CONSIDERAÇÕES FINAIS de transferência logo no primeiro mês de atuação do conselho, e o segundo desistiu gradativamente sem explicações formais. Ocuparam esses lugares Terra e Diante do exposto, consideramos que o controle Marte, sucessivamente, como exposto anteriormente. social tem especificidade maior junto à população local, As mudanças na gerência da unidade e a saída de alguns que vive e utiliza os serviços de saúde disponíveis, princi- conselheiros usuários tiveram efeitos nos andamentos do palmente em uma cidade tão grande e complexa como São conselho, segundo o relato abaixo: Paulo. Neste caso, consideramos que a interlocução efetiva nesses espaços, sejam eles os conselhos municipais ou a Acho que o conselho deu uma parada depois coordenadoria de saúde, é fundamental para a consolidação que a primeira gerência saiu, não sei por que, real da participação popular nas decisões políticas. tenho minhas conclusões, mas não gostaria Foi importante a constituição do conselho gestor de dizer, pois tenho os meus motivos; mas na unidade de saúde estudada, mas o modo como deu uma caída depois desta saída, alguns foram encaminhadas as formas de ampliação e diver- conselheiros não entenderam os porquês desta sificação da participação local indicará, para o futuro, atitude, não teve reunião extra do conselho, se o conselho terá condições de atuar na transformação não fomos consultados. Nós perdemos também das condições de vida e de acesso à saúde. Desde a gê- uma participação importante que era um nese do conselho até o momento de encerramento da representante do CDL, um representante pesquisa (período de 18 meses), ainda não tínhamos forte aqui no bairro. Não sei se poderemos constatado interesse nos próprios conselheiros usuá- resgatar isso, mas ainda acho que o conselho rios de diversificação dos grupos representados. Em pode se fortalecer, mas vai precisar de muita associação a esse fato, devemos considerar que o bairro parceria, a gente já perdeu uma das maiores, do Bom Retiro, em específico, é marcado por uma que era o CDL, mas acho que se pararmos diversidade cultural, étnica e política. Desse modo, de reivindicar só críticas, podemos continuar estavam comprometidos a efetividade e o impacto da caminhando e começar da estaca zero. (en- incorporação dos usuários de modo deliberativo na trevista com Saturno). organização dos espaços e dos recursos públicos. Discutimos, a partir da questão acima, que o Consideramos que a consolidação desse con- conceito de comunidade poderia ser questionado no selho local tem sua função política com relação sentido de se superar a concepção de coesão social que às necessidades dos usuários. Ao acompanhar as o enunciado reflete e partir em busca da possibilidade reuniões do Conselho Municipal e do Conselho de os conselhos serem espaços de conflito amplo de Gestor da Coordenadoria Sé, constatamos que interesses e, consequentemente, de poderes. A partici- quanto mais complexa é a instância de governo, pação, em sua formulação histórica, estaria em comum mais tecnicamente densas são as discussões, assim acordo com essa possibilidade por remeter à mobilização como mais próximas da burocracia administrativa e questionadora e transformadora da realidade, reforçando mais distantes da capacidade de captar e digerir as aspectos autônomos e libertários para os grupos sociais necessidades da população. envolvidos. Portanto, compactuamos que deve ser esti- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010 319 320 SOUSA, R.M.R.B.; BOTAZZO, C. • Gênese de um conselho local de saúde mulada, seja em sua forma institucionalizada, seja por participação direta da população para a constituição de espaços públicos abertos e democráticos. R E F E R Ê N C I A S do trabalho no Programa Saúde da Família. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 438-446, 2004. Vasconcelos, E.M. Educação popular e a atenção à Saúde da Família. 1ª ed. São Paulo: Hucitec; 1999. Recebido: Outubro/2009 Aceito: Abril/2010 Bleicher, L. Saúde para todos, já! 2a ed. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2004. Botazzo, C. Unidade Básica de Saúde. A porta do sistema revisitada. Bauru, SP: Edusc, 1999. Brasil. Ministério da Saúde. Conselhos de saúde: guia de referências para a sua criação e organização. Brasília, 1991. ______. 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Questionários semiestruturados foram aplicados aos membros do CMS. A análise dos dados foi realizada por meio de categorias analíticas. Conclui-se que existem inadequações de natureza legal e funcional na atuação dos conselheiros, com a permanência de determinados representantes por um longo período, o que reflete um conselho fechado para a participação de outros segmentos, com relativo desconhecimento dos conselheiros sobre seu papel no CMS e ausência de capacitação para o exercício da função. PALAVRAS-CHAVE: Participação comunitária; Controle social; Conselhos de saúde. ABSTRACT Exploratory study aiming to evaluate the composition, function, and structure of the Ampére City Council of Health (CMS, acronym in Portuguese) (PR, Brazil). Semi-structured questionnaires were applied to the council’s members. Data analysis was done through analytical categories. The conclusion is that the council is ill-suited for its legal and functional roles. Some of the nominated members have been in the council for long periods, which reflects a council closed to the participation of other segments; some have shown a great level of unawareness of their roles in the council as well as lack of qualification for the required duties. KEYWORDS: Consumer participation; Social control; Health councils. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 321-327, abr./jun. 2010 321 322 BELINI, L.M.P.; MOYSÉS, S.J. • Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social I N T R O D U ç ão lhos de Saúde (CS), órgãos colegiados, são instâncias deliberativas do SUS em todos os níveis do sistema. A constituição dos Conselhos deve ter como premissa Na área da saúde, a versão moderna do que se básica a paridade entre o número de representantes dos denomina ‘participação social’ foi institucionalizada usuários e o número total de representantes dos outros no decorrer das modificações na relação entre Estado e segmentos, ou seja, assegurar que 50% dos membros sociedade a partir da década de 1980. Esta participação sejam representantes dos usuários e 50%, representantes foi concebida como controle social, ou seja, o controle dos segmentos do governo, prestadores de serviços e que a sociedade deve ter sobre as ações do Estado e, con- profissionais de saúde. sequentemente, sobre os recursos públicos, colocando-os Nos municípios, o número de conselheiros para na direção dos interesses da coletividade. Interlocuções a composição dos Conselhos varia de acordo com a dos movimentos populares com o Estado ocorrem pio- realidade local, porém, seja qual for o número dos neiramente, por exemplo, nos conselhos populares da membros, a paridade deverá ser mantida. O processo Zona Leste de São Paulo (Correia, 2000). de escolha acontece a partir da realização das Confe- A Reforma Sanitária Brasileira (RSB), entendida rências Municipais de Saúde. Nas fases preparatórias, como o movimento de construção do novo Sistema delegados são escolhidos e, na Conferência, votam nos de Saúde, foi impulsionada pela VIII Conferência Na- seus representantes. cional de Saúde (1986) e representou uma matriz do A representação de usuários vem das centrais sin- pensamento político contra-hegemônico em relação ao dicais, associações de moradores, organizações de base pensamento político dominante da época, marcando e das igrejas e outros movimentos populares. O Conselho modificando a história do movimento social pela saúde Nacional de Saúde recomenda que o presidente do no Brasil. Muitos dos princípios da Reforma Sanitária Conselho Municipal de Saúde (CMS) deve ser eleito materializaram-se na Assembleia Nacional Constituin- entre seus membros, garantindo-se, assim, maior le- te (1988), em um contexto de reformas democráticas gitimidade e autonomia ao Conselho; entretanto, em voltadas para a redefinição das relações entre Estado e muitos municípios, a lei de criação do conselho ou o sociedade civil (Oliveira, 2001). regimento interno delegam a presidência ao Secretário Assim, a Constituição Federal de 1988 apresentou de Saúde (Brasil, 1999). avanços no campo das políticas sociais e, em especial, Os Conselhos de Saúde, ao não trabalharem de na área da saúde, levando ao reconhecimento da saúde forma sistemática com informações em saúde, perdem como um direito de todos e dever do Estado. Esse direito a capacidade de gerar agendas sociais adequadas aos foi regulamentado em 1990, com o estabelecimento do problemas de saúde, suas determinações sociais e sua Sistema Único de Saúde (SUS). distribuição no território. Essa distância dos Conselhos A regulamentação do SUS ocorreu por meio das em relação às informações decorre de dificuldades de leis federais 8080/90 e 8142/90, estendendo-se às Cons- acesso às mesmas, pelo não-domínio das tecnologias tituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais. usadas na sua produção e pela não-compreensão dos A participação da população no SUS está prevista métodos de análise e interpretação (Brasil, 2000). na Constituição Federal de 1988 e legalizada pela lei Com base nesses pressupostos, realizou-se uma federal 8142, de 28 de dezembro de 1990. Os Conse- pesquisa junto ao Conselho Municipal de Saúde (CMS) Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 321-327, abr./jun. 2010 BELINI, L.M.P.; MOYSÉS, S.J. • Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social de Ampére (PR), com o propósito de analisar a sua tais, tais como a lei municipal de criação do conselho, dinâmica de funcionamento quanto à sua base legal e o Regimento Interno do CMS, o livro com registro operacional. das atas das reuniões e o Plano Municipal de Saúde, Ampére é uma cidade do interior do Estado do atualmente em vigor. Paraná, com 15.623 habitantes. O CMS é formado por Os dados foram organizados por categorias analíti- dezesseis membros titulares e respectivos suplentes. O cas que traduziam os objetivos da pesquisa em blocos de CMS foi instituído pela lei municipal nº 566/91, bus- informações agrupados por sua relativa homogeneidade cando garantir que a população deixasse de ser apenas conceitual e discursiva. A formulação das categorias de usuária dos serviços para se transformar em protagonista análise foi obtida a partir dos padrões de resposta do de mudanças. questionário aplicado. No município de Ampére, já foram realizadas cinco Conferências Municipais, sendo que, na última, em 2003, foram eleitos dezesseis conselheiros, respeitando- RESULTADOS E DISCUSSÃO se a paridade, com a seguinte composição final: 50% representantes de usuários; 25% representantes do governo; e 25% representantes dos profissionais de saúde Apresentam-se, aqui, os principais resultados obti- e prestadores de serviços. dos, buscando responder aos objetivos da pesquisa. METODOLOGIA Perfil dos conselheiros Demograficamente, dez conselheiros são mulheres e cinco são homens; no que se refere à escolaridade, 11 O presente trabalho constitui um estudo exploratório desenvolvido dentro de uma abordagem qua- têm 12 anos ou mais de estudo concluído, seguido de 2 que têm de 8 a 11 anos, e 2 que têm de 4 a 7 anos. litativa. Foram privilegiados os dados obtidos através Quando questionados sobre sua participação em da aplicação de questionários semiestruturados, com algum partido político, observou-se que nove não são questões abertas e fechadas e dados relacionados ao perfil filiados a partido algum e os demais sim, destacando-se o dos conselheiros, bem como à composição, função e Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) estrutura do CMS. com três filiados, seguido do Partido Democrático Os questionários foram distribuídos com au- Trabalhista (PDT) com dois filiados, e do Partido Tra- torização dos conselheiros, em reunião realizada no balhista (PT), com apenas um filiado. É válido salientar mês de dezembro de 2003. Dos 16 conselheiros, 15 que a atual administração municipal pertence ao PMDB demonstraram disponibilidade, interesse e reforçaram (prefeito) e ao PDT (vice-prefeito). a relevância da pesquisa, mas uma conselheira, repre- No processo de escolha do conselheiro, dez foram sentante do Governo Municipal, negou-se a responder indicados; quatro escolhidos por outras formas: um ao questionário. respondeu ser membro nato, já que, no Regimento In- Além dos questionários, também constituíram a terno do CMS de Ampére, o Diretor do Departamento base de análise deste trabalho algumas fontes documen- de Saúde é considerado membro nato (natural) e será Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 321-327, abr./jun. 2010 323 324 BELINI, L.M.P.; MOYSÉS, S.J. • Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social Presidente do CMS; um apenas assinalou o campo de além de ter incluído mais um campo. Entre os demais, resposta ‘outra forma’ e não descreveu qual; outro é obteve-se o seguinte perfil: sete são representantes de representante de bairro como presidente da associação usuários, sendo que um conselheiro, que representa os de moradores; outro referiu ter sido escolhido por usuários, informou fazer parte do Governo Municipal, representar a Associação Comercial e Industrial de e três deles informaram serem prestadores de serviço; Ampére (Aciamp); e um foi eleito pelos seus pares, o três são representantes do Governo Municipal; dois que nos permite inferir que os conselheiros são mais são representantes dos Prestadores de Serviços Públicos representantes institucionais do que da sociedade civil e Privados e dois são representantes dos profissionais organizada propriamente dita. de saúde. Em relação a experiências passadas no exercício da representação de entidades e/ou associações, observou-se que dez deles já exerceram cargos representativos e cinco Estrutura e funcionamento do CMS o estão fazendo pela primeira vez. Sobre a participação Quando questionados sobre a periodicidade das prévia de algum curso específico para conselheiros de reuniões do CMS, oito afirmaram que são mensais; se- saúde, a grande maioria, ou seja, 12 pessoas afirmaram guido de cinco respondendo que não têm periodicidade não ter recebido nenhum curso ou preparação para o definida; um que afirmou ser trimestral e ainda outro exercício da função. Estes dados demonstram que inicia- que disse ser quinzenal. Este dado nos permite inferir tivas deste tipo ainda são tímidas. Assim, a construção que existe um desconhecimento entre os conselheiros de um processo de formação e de capacitação torna-se que deveriam saber a periodicidade de realização das importante como forma de instrumentalizar a sociedade reuniões do CMS. civil para participar dos diferentes espaços organizativos, Sobre a existência de comissões, 11 conselheiros dentre eles os Conselhos, na perspectiva de uma nova disseram não haver trabalhos realizados por comissões no cultura política. CMS e 4 deixaram a questão em branco. Este dado nos Dos 15 conselheiros, 13 já participaram de Confe- leva a deduzir que o CMS pode estar pouco aberto à am- rências Municipais de Saúde, sendo que, destes, 7 foram pliação de participantes, pois a existência de comissões delegados e 6 como ouvintes. técnicas é uma das formas de se ampliar a participação externa da população e dos profissionais de saúde. Este dado nos leva a inferir que a ação do CMS tende a ser Composição do CMS Quando questionados sobre o tempo de exercício mais protocolar, ou seja, atuar mais restritamente a uma função meramente burocrática. da função de conselheiro, um não informou; quatro Sobre a divulgação das deliberações do CMS, atuam há dois a cinco anos, e os demais variam, sendo nove conselheiros dizem que não ocorre divulgação das que há quem esteja atuando há menos de três meses e informações e seis afirmam que ela ocorre e a rádio local há quem atua há quase oito anos. é o principal veículo. No que se refere ao segmento a que pertencem, dos No que se refere ao papel do Conselho enquanto 15 conselheiros que responderam ao questionário, um elaborador e aprovador do Plano Municipal de Saú- teve seu questionário anulado pela inconsistência das de, onze conselheiros afirmaram que sim e quatro informações, pois assinalou todos os campos existentes, que não. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 321-327, abr./jun. 2010 BELINI, L.M.P.; MOYSÉS, S.J. Em relação à dinâmica de prestação de contas, para oito conselheiros o CMS não exerce controle sobre os gastos • Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social saúde visando sempre à descentralização das ações básicas de saúde; do Fundo Municipal de Saúde; destes, quatro estão atuando há menos de três meses no CMS e participaram de apenas [...] são os grupos organizados com uma meta uma ou nenhuma reunião. Este dado nos permite coligir comum que se fazem representar através de um que alguns conselheiros não tiveram oportunidade de membro; presenciar nenhuma prestação de contas, ao mesmo tempo em que três dos que tiveram a mesma opinião atuam no É quando o poder público trabalha com pla- CMS entre há dois a cinco anos. Sete deles afirmam que a nejamento participativo, onde as comunidades prestação de contas ocorre através de planilhas e o controle participam do planejamento daquilo que mais só é feito pelo presidente do conselho e apresentado aos precisam. demais, porém sem comprovantes e sem que o conselho possa opinar sobre o uso dos recursos. Em relação aos programas de saúde existentes no município, foram citados pela grande maioria dos conselheiros os programas de controle da hipertensão, de Percepção dos conselheiros sobre controle social em saúde diabéticos, de imunização, o Programa Saúde da Família Em relação ao processo saúde-doença, a maioria (PSF), programa de controle da Hanseníase e da Tuber- dos conselheiros tem uma visão ampliada da saúde que culose, de gestantes, planejamento familiar e puericultura. pode ser exemplificada pelas seguintes colocações: Sobre a existência do Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e a discussão para sua implantação no [...] Saúde é o bem-estar físico, mental e social CMS, da mesma forma que em relação ao PSF, observou- de uma comunidade e depende de suas condições se que a grande maioria afirmou a existência do PACS no socioeconômicas [...]; município e que sua implantação também foi precedida de discussão em reunião do CMS. [...] Saúde é qualidade de vida [...]; Quanto à opinião do conselheiro sobre se o CMS pode contribuir para a melhoria da saúde da população, [...] é a forma como vivemos e interagimos com observou-se que um conselheiro deixou a questão em o meio, e não somente a ausência de doença. branco e os demais foram unânimes em afirmar que o CMS pode contribuir para a melhoria da saúde da popu- Quando solicitados a exporem o que entendem lação, porque é onde são trabalhadas as prioridades que a por controle social ou participação da sociedade orga- população solicita, porque há representatividade de vários nizada, observou-se que um conselheiro não respondeu setores da sociedade, além de ser um espaço de discussão à questão e, dentre os demais que a responderam, houve sobre os problemas de saúde e as propostas do governo. uma boa percepção da importância do controle social e da participação da população organizada: Nível de conhecimento dos conselheiros sobre o SUS [...] é a participação de cada setor da sociedade Em relação ao significado do SUS, observou-se para reivindicar melhoramentos na área da que há uma relativa dificuldade na compreensão do Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 321-327, abr./jun. 2010 325 326 BELINI, L.M.P.; MOYSÉS, S.J. • Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social que é o SUS que pode ser exemplificada pelas seguintes CONSIDERAÇÕES FINAIS colocações: [...] sistema criado pelo governo para ajudar Provavelmente, o relativo desconhecimento dos com todas ou grande parte das despesas dos conselheiros sobre seu papel no CMS de Ampére reflete pacientes com a doença que possui; a ausência de capacitação para o exercício da função. Contudo, não há nada que impeça a oferta de capacita- [...] atendimento para as pessoas sem custo e de ções aos conselheiros visando a um entendimento maior competência do governo federal; sobre sua atuação nas políticas de saúde do município. Ao contrário, a própria resolução nº 333/2003 Quando questionados sobre o que é Fundo Muni- (Brasil, 2003), ao tratar da competência dos conselhos cipal de Saúde, três conselheiros informaram não saber; em sua quinta diretriz, enfatiza tal aspecto ao menos um já ouviu falar, mas não sabe muito bem o que é; oito em três itens: consideram ser uma conta bancária onde o município recebe várias verbas do Ministério da Saúde/Governo XX - Estimular, apoiar e promover estudos e Federal; um considera ser um consórcio de saúde entre pesquisas sobre assuntos e temas na área de saú- municípios de uma mesma regional de saúde e, ainda, de, pertinentes ao desenvolvimento do Sistema dois consideram ser um fundo de investimento a que o Único de Saúde (SUS); município só pode recorrer em caso de problemas graves na área da saúde. XXI - Estabelecer ações de informação, edu- Quando questionados sobre o que é munici- cação e comunicação em saúde e divulgar as palização, 2 conselheiros informaram não saber o funções e competências do Conselho de Saúde, que é; 13 foram unânimes em afirmar que significa seus trabalhos e decisões por todos os meios de trazer para o governo municipal a capacidade de comunicação, incluindo informações sobre as definir, junto com os usuários, as ações e atividades agendas, datas e local das reuniões; do setor saúde. Evidencia-se na pesquisa, a partir dos dados obti- XXII - Apoiar e promover a educação para o dos, a fragilidade nas respostas dos conselheiros sobre controle social. Constarão do conteúdo pro- as atribuições do CMS, especialmente quanto se busca gramático os fundamentos teóricos da saúde, uma linha de coerência de pensamento e ação para a situação epidemiológica, a organização do o conjunto das perguntas formuladas. Por exemplo, SUS, a situação real de funcionamento dos observa-se a contradição em relação ao papel do CMS, serviços do SUS, as atividades e competências particularmente no que se refere à elaboração e aprova- do Conselho de Saúde, bem como a Legislação ção do Plano Municipal de Saúde, um tema discutido do SUS, suas políticas de saúde, orçamento e nas Conferências Municipais de Saúde, e outras respostas financiamento. nas quais a competência dos conselheiros não se afirma de modo claro, sugerindo que o CMS apenas cumpre papel burocrático. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 321-327, abr./jun. 2010 Constatou-se que o CMS apresenta um desequilíbrio no exercício da função dos conselheiros, com BELINI, L.M.P.; MOYSÉS, S.J. a permanência de determinados representantes por • Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social R E F E R Ê N C I A S um longo período, o que reflete um conselho fechado para participação mais ampla de outros segmentos da população. Na última Conferência Municipal de Saúde ocorreu a reformulação de entidades representativas do CMS, por meio do Decreto Municipal nº 026/2003, que centralizou o poder do presidente do Conselho. Isso contraria o que preconizam o Regimento Interno do Conselho e a Resolução nº 333/2003 do Conselho Nacional de Saúde, no parágrafo que se refere à criação e reformulação dos Conselhos de Saúde. Observou-se que, em sua maioria, os conselheiros são indicados pelas entidades a que pertencem e demonstram pouco conhecimento sobre o seu papel como representantes de uma entidade ou segmento da população. Existem sinais visíveis de desinformação sobre aspectos fundamentais, como, por exemplo, o que é Fundo Municipal de Saúde e também a divulgação das deliberações do CMS. Constatou-se a necessidade de distribuir materiais informativos de normas operacionais do Conselho através da Secretaria Municipal de Saúde, visto que esse órgão Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução No 333, de 4 de novembro de 2003. [On-line]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/docs/Resolucoes/RESOLU%C7AO333. doc Acesso em 23/09/2004. ______. O Brasil falando como quer ser tratado. Efetivando o SUS: acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social. In: 11a Conferência Nacional de Saúde, Relatório Final, Brasília, 15 a 19 de dezembro de 2000, Série Histórica do CNS, n. 2, Série D, Reuniões e Conferências, n. 16. ______. Ministério da Saúde. Manual para a organização de atenção básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde, abr. 1999. Correia, M.V.C. Que controle social? Os conselhos de saúde como instrumento. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. Oliveira, A. A participação popular nos conselhos populares de saúde no município de Criciúma, SC. Dissertação (Mestrado em X) – Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, 2001. desenvolve o trabalho de Secretaria Executiva. Concluindo, acredita-se que, por meio de capaci- Recebido: Abril/2005 tação ampliada dos conselheiros e da pedagogia política, Aceito: Julho/2005 que pode representar o próprio controle da sociedade local sobre o CMS por uma ação direta de divulgação de suas práticas junto a formadores de opinião e à sociedade em geral, seja possível uma relação mais transparente, plural e efetiva da população de Ampére no CMS. O CMS, por sua vez, deverá ser entendido como um colegiado gestor da política pública de saúde, onde os conselheiros são impulsionados a transformarem a atual conjuntura autoritária e desmobilizada. A consequência desejável seria um protagonismo que legitime os conselheiros como representantes da sociedade local, que eles devem representar, fortalecendo a construção da democracia na Política de Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 321-327, abr./jun. 2010 327 328 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina Which social protection for which democracy? Dilemmas of social inclusion in Latin America Sonia Fleury 1 Doutora em Ciência Política; Professora titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EbapeFGV). [email protected] 1 RESUMO A autora discute os ônus que os sanitaristas de esquerda assumiram ao encarregar-se de implantar reformas dos sistemas de saúde na América Latina em contextos de transição à democracia marcados pela ausência de hegemonia e pelos acordos que restrinjam as possibilidades de implementar as políticas universais projetadas pelo movimento sanitário. No entanto, é preciso ter em conta os constrangimentos impostos pela correlação de forças desfavoráveis, buscando entender quais são os pontos estratégicos que podem provocar ruptura na estrutura de poder. O artigo analisa também as propostas que foram desenvolvidas para reformar os sistemas de proteção social na região e critica a visão pragmática que tem sido difundia pelas agências internacionais de cooperação acerca da coesão social. PALAVRAS-CHAVE: Alames; Movimento sanitário; Estado; Marxismo; Contra-hegemonia; Reformas de saúde; Coesão social. ABSTRACT The author discusses the costs of assuming the responsibility to held the reforms of health care systems in Latin America during the processes of transition to democracy, which are marked by the absence of hegemony and by agreements that restricted the possibilities of implementing universal policies projected by the sanitary reform. However, it is still important to consider the embarrassments imposed by the correlation of unfavorable powers, aiming at the understanding of the strategic points of rupture of the power structure. The article also analyze the proposals developed to reform the social protection systems in the region, and criticizes the pragmatic vision that has been diffused by international agencies concerning social cohesion. KEYWORDS: Alames; Sanitary movement; State; Marxism; Counterhegemony; Health reforms; Social cohesion. * Texto originalmente publicado na revista Medicina Social, v. 5, n. 1, p. 61-78, mar. 2010. O artigo reproduz a exposição da autora no Congresso da Alames, realizado em Bogotá em 2009. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina I N T R O D U ç ão de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) É grande a emoção de poder participar deste mo- no Brasil. Também foram cruciais para a sustentação mento de celebração dos 25 anos da Associação Latino- deste movimento os partidos clandestinos de esquerda, Americana de Medicina Social (Alames). Afinal, são além das instituições que foram criadas como parte da muitos anos de sonhos, lutas, emoções e afetos, debates, estratégia de consolidação deste campo de conhecimento desilusões e esperanças. Nesse percurso, envelhecemos e e de práticas políticas transformadoras, como no caso vimos alguns de nossos mais queridos companheiros(as) brasileiro o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde partirem, alguns outros nos abandonarem, em certos (Cebes), a Associação Brasileira de Pós-Graduação em momentos desanimamos, em outros fomos incapazes de Saúde Coletiva (Abrasco) e, regionalmente, a própria ir além das posições dogmáticas e perceber as necessida- Alames. des de mudanças, mas depois nos reagrupamos e busca- Como parte dos processos de transição e de cons- mos nos atualizar, incorporamos novos conhecimentos trução de democracias, assumimos os custos de geren- e novos atores, construímos novas estratégias. ciar sistemas de saúde iníquos e excludentes, buscando Essa vitalidade decorre das próprias opções consti- avançar na direção de uma esfera pública inclusiva e de tutivas deste campo da medicina social que toma a saúde um sistema integral e universal. Se isto gerou tensões no coletiva (na sua tradução brasileira) como a articulação interior do movimento sanitário que ainda hoje podem entre a ordem biológica e a social, ou seja, manifestações ser sentidas, permitiu, por outro lado, uma acumulação histórico-concretas de determinações sociais que inci- de conhecimentos e experiências sobre o funcionamento dem sobre os seres vivos e sobre as relações entre eles. do setor público e de suas relações com o mercado, além O que remete à construção do social como um campo dos processos administrativos e políticos envolvidos na que conjuga o saber e a intervenção, as disciplinas e as formulação e implementação das políticas sociais. É esta práticas de transformação social. acumulação que nos permite hoje colocarmos questões Essa característica de militância deu origem a um que antes não divisávamos. movimento social que desde suas origens foi interna- Esse percurso que vai do combate ao estado au- cionalista e, em especial, latino-americano. Fatores con- toritário e excludente à ocupação de espaços e direções junturais contribuíram para este caráter de movimento no estado de transição e na construção de uma demo- supranacional, seja pela luta comum contra as ditaduras cracia, todavia incompleta, requereu a revisão prévia e a circulação dos exilados, seja pela existência de fi- da concepção de Estado com a qual trabalhávamos. guras carismáticas que nos aproximaram (Juan Cesar, Isto implicou o abandono da concepção marxista- Berlinguer, Mario Testa, Sergio Arouca, dentre muitos funcionalista do Estado que compreendia as políticas outros). Também é importante considerar a existência públicas exclusivamente e de maneira maniqueísta, no de instituições que permitiram a produção de ideias e interior do binômio “Legitimação versus Acumulação” e apoiaram sua difusão, como a Organização Pan Ameri- sua substituição pela compreensão do estado como um cana da Saúde (Opas) e, nacionalmente, por exemplo, campo estratégico de lutas. a Maestria de Universidad Autonoma Metropolitana, Por outro lado, requereu também a tradução da Unidade Xochimilco (UAM-X), no México, o Mestrado estratégia política de transformação em saúde como Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 329 330 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina um projeto reformista. Isto significou a formulação desta forma, reafirmamos nosso compromisso com a de uma proposta de reforma que, guardando os ide- luta pela democratização da saúde na América Lati- ais de solidariedade e luta contra a exclusão social na, é oportuna a reflexão sobre que proteção social como princípios doutrinários e diretrizes estratégicas, se quer defender para qual democracia. É necessário tivesse sua tradução concreta em políticas públicas entender a complexidade deste momento, no qual que se realizaram em contextos adversos. Tratava-se o discurso neoliberal perdeu força na região e no de democratizar a saúde, ou seja, constitucionalizar mundo, mas que, paradoxalmente, as políticas sociais o acesso universal como direito de cidadania, mesmo de corte neoliberal continuam a predominar mesmo com o predomínio da hegemonia neoliberal, a persis- em governos que retomam o discurso socialista. Essa tência de uma cultura política elitista e excludente, defasagem entre discurso e práticas se reproduz tam- além de contar com enorme debilidade financeira dos bém na área econômica, com o avanço dos interesses Estados nacionais defrontados com as prioridades de do capital financeiro globalizado sobre economias ajuste macroeconômico e do pagamento dos juros emergentes de base produtiva extremamente frágil, da dívida. na maioria das vezes dependentes da exportação de De críticos mordazes das políticas e aparatos es- commodities. Mesmo que a existência de governos tatais gerados em contextos autoritários e excludentes, democráticos de caráter mais popular seja vista como passamos, muitas vezes, à difícil tarefa de defender uma potencial ameaça às tradicionais elites políticas, com estatalidade precária diante dos projetos radicais de perspectivas mais redistributivas e redução da impu- desmontagem das políticas sociais na América Latina, nidade e dos privilégios, ainda vivemos democracias em especial aquelas identificadas como oriundas dos pe- de baixa intensidade, como as caracterizou O’Donnell ríodos populistas que privilegiaram grupos corporativos (2002), com áreas marrons em que o Estado não está mais organizados. Isto implicou um enorme esforço de presente, no território nacional, e um elevado grau refinamento da visão estratégica que permitisse fazer de iniquidade e exclusão social. As tentativas de re- avançar um projeto reformador universalista a partir verter este quadro em favor de políticas públicas mais de um aparato estatal estratificado e excludente, pro- inclusivas e com aumento da capacidade estatal de curando impedir que a voracidade liberal reduzisse a regulação do mercado e redistribuição de renda têm política social à focalização na área pública e ao mercado sido vistas como ameaças à frágil democracia institu- privado dos bens sociais para a classe média. Não foi fácil cional. Por outro lado, este esforço de transformação enfrentar esta etapa, haja vista como alguns aderiram e recuperação da soberania nacional com respeito à à proposta de privatização e focalização das políticas diversidade não tem sido acompanhado por uma sociais enquanto outros terminaram por acreditar na nova articulação das políticas econômicas e sociais, existência, entre nós, de um Estado de bem-estar que gerando um modelo de desenvolvimento inclusivo e nos caberia defender. sustentável que aumente a incorporação tecnológica 1 Por todas estas razões, acredito que, no momento em que celebramos juntos os 25 anos da Alames e, e a capacidade de geração de emprego sem ameaçar com a destruição ambiental. Esse debate ficou bem documentado na polêmica envolvendo os autores Jaime Oliveira, Gastão Wagner e Sonia Fleury sobre a teoria, estratégia e táticas da reforma sanitária a partir da democracia progressiva das políticas sociais. Ver a respeito em Fleury, S.; Bahia, L.; Amarante, P. Saúde em Debate – Fundamentos da Reforma Sanitária, Rio de Janeiro, Cebes, 2008. 1 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina A compatibilização do Estado zatório, corresponderia à elevação das massas, por meio capitalista com a democracia e de políticas públicas, ao nível cultural correspondente a radicalização da democracia ao desenvolvimento das forças produtivas. Portanto, o contra o capitalismo Estado cumpre um papel fundamental na consolidação dos avanços do processo civilizatório, ainda que o faça como parte da expansão da hegemonia de classe. O Estado capitalista como instância política que A contribuição de Gramsci sobre o predomínio do expressa a relação de dominação de classe, afirmada pela Estado nas sociedades Orientais enquanto nas sociedades corrente marxista, e o Estado visto como instituciona- Ocidentais prepondera uma sociedade civil adensada, lidade, definida por Weber como aquela que opera a levou-o a vincular a questão do Estado com a estratégia dominação legítima de caráter racional-legal com um de transição, estabelecendo que a guerra de movimento, quadro administrativo burocrático, foram, durante mui- ou enfrentamento frontal, só teria êxito em sociedades tos anos, tratados de forma polarizada e excludente. A nas quais o Estado predominasse sobre a sociedade. contribuição de Poulantzas (1981) em sua última obra Ao contrário, a guerra de posição ou de esgotamento intitulada ‘O Estado, o Poder, o Socialismo’ foi definitiva seria indicada para as sociedades civis mais complexas, para reconciliar estas duas tradições teóricas, ao buscar onde seria necessário conquistar a hegemonia antes da evitar a redução do aparelho de Estado tanto ao pacto de tomada do poder. dominação e ao poder de Estado, quanto na politização do aparato institucional. O resgate do Estado como um campo estratégico de lutas vai ser também enfatizado por Poulantzas A concepção do marxismo contemporâneo sobre o (1981), ao afirmar que as lutas políticas não são exte- Estado tem início com a ruptura que a obra de Gramsci riores ao Estado enquanto ossatura institucional, mas, introduz na concepção hegeliana que diferencia Estado ao contrário, se inscrevem neste aparato, permitindo de sociedade civil, adotada também, embora de forma que ele venha a ter um papel orgânico na luta políti- invertida, por Marx. Para Grasmci (1980): ca, como unificador da dominação. Nesta concepção do Estado, é possível percebê-lo, para além de um O Estado é todo o conjunto de atividades teó- conjunto de aparelhos e instituições, como campo e ricas e práticas com as quais a classe dirigente processos estratégicos, onde se entrecruzam núcleos e justifica e mantém não somente sua dominação, redes de poder que, ao mesmo tempo, articulam-se e mas também consegue o consenso ativo dos apresentam contradições e decalagens uns em relação governados (p. 98). aos outros. Daí que a fragmentação constitutiva do Estado capitalista não possa ser tomada como inver- O Estado, para além de suas funções repressivas so da unidade política, mas como sua condição de de tutela de uma sociedade de classes, exerce um papel possibilidade, o que assegura sua autonomia relativa. fundamental em sua função pedagógica de construção, O Estado, sua política, suas formas e suas estruturas consolidação e reprodução da direção cultural da classe traduzem, portanto, os interesses da classe dominante hegemônica, sendo a função de homogeneização exer- não de modo mecânico, mas através de uma relação cida pelo Direito, exatamente o que permite a criação de forças que faz dele uma expressão condensada da de um conformismo social. O Estado ético, ou civili- luta de classes em desenvolvimento. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 331 332 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina No entanto, ao buscar inserir os interesses das mocrático, com base em uma transformação radical do classes dominadas nos órgãos de Estado, há que ter em Estado, articulando a ampliação e o aprofundamento conta o conceito de Offe (1984, p. 145) de “seletividade das instituições da democracia representativa e das li- estrutural” do Estado, que explica a maneira como as berdades (que foram conquistas das massas populares) demandas populares, mesmo quando adentram o apa- com o desenvolvimento das formas de democracia relho administrativo, são destituídas de seu conteúdo direta na base e a proliferação de focos autogestores político nos meandros da burocracia estatal, preservando (1981, p. 293). dessa forma os limites do sistema de acumulação, ainda O problema que se coloca é como desenvolver uma quando necessário contemplar também aos requisitos via democrática para um socialismo democrático – já da legitimação do poder. que se considera que as instituições da democracia são A apropriação destes conceitos teóricos para necessárias para construção de um socialismo democrá- explicar, no nosso caso, a realidade brasileira, gerou tico – cujas lutas sejam travadas tanto fora como dentro um conjunto de estudos sobre políticas públicas que do campo estratégico do Estado, evitando os riscos de buscava desvendar, pela análise dos determinantes da um mero transformismo, ou seja, da contínua e progres- evolução destas políticas, os mecanismos responsáveis siva transformação estatal que termina preservando as pela construção social de uma estatalidade singular. condições atualizadas da dominação? Conhecer as relações de forças que se materializaram Na medida em que se considera que a luta estra- no processo sociopolítico de construção do Estado e, tégica pelo poder atravessa o Estado, será necessário desta forma, o sentido político das políticas públicas realizá-la neste espaço sempre com a necessidade de representou um enorme avanço na aproximação do diferenciá-la da ocupação de posições nas cúpulas go- pensamento das esquerdas em relação à apropriação da vernamentais e também do reformismo progressivo, que temática do Estado e das políticas setoriais. Permitiu não passa de transformação estatal. O que identificará a compreender como as lutas populares poderiam se ins- luta pelo socialismo, mesmo que no interior do Estado, crever na ossatura do Estado, entendendo-o de forma será sua capacidade de realizar ‘rupturas reais na relação menos monolítica, como a condensação material de um de poder’, tencionando-a em direção às massas popula- campo de forças, ainda que dotado de sentido e direção res, o que requer a sua permanente articulação com as políticos, dado pelo pacto dominante. Ao identificar as lutas de um amplo movimento social pela transformação conquistas sociais em conjunturas democráticas onde foi da democracia representativa. possível alterar a correlação de forças com maior mobilização social, mesmo que com processos de cooptação A efetivação desta via e dos próprios objetivos política das lideranças populares, possibilitou o avanço que ela comporta, a articulação desses dois na discussão da importância de se tomar em conta a movimentos que visa a evitar o estatismo e o institucionalidade estatal na consolidação dos avanços impasse da social-democracia, supõem o suporte das lutas das classes populares. decisivo e contínuo de um movimento de massa Em sua última obra, Poulantzas (1981) discute as baseado em amplas alianças populares. Se esse relações entre o Estado, o poder e o socialismo a partir movimento desenvolvido e ativo – opondo-se da necessidade de se compreender a via democrática à revolução passiva – não existe, se a esquerda para o socialismo e a construção de um socialismo de- não consegue incitá-lo, nada poderá impedir Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina a social-democratização desta experiência: os indivíduos, mas nega inclusive a existência de atores diversos programas, por mais radicais que se- coletivos, as classes sociais com interesses contraditórios jam, não modificam quase nada o problema. e antagônicos, sendo, portanto, essencial para a cons- Esse amplo movimento popular constitui uma trução da ideologia liberal do Estado como represen- garantia diante da reação do adversário, mes- tante da vontade coletiva. Por outro lado, a condição mo que não seja suficiente e deva sempre estar de cidadania tem que ser vista como um avanço na luta aliado a transformações radicais do Estado. das classes oprimidas ao constituir uma esfera pública (Poulantzas, 1981, p. 299). com base na noção de igualdade entre os cidadãos, rompendo com as concepções autoritárias tradicionais Neste sentido, é preciso afastar a redução dos que se fundamentam nas desigualdades e hierarquias ideais socialistas a uma perspectiva de gestão eficiente sociais. É neste sentido que se pode compreender o Es- do capitalismo, em uma socialdemocracia, o que só tado moderno, garante desta igualdade política, como pode acontecer com a compreensão de que o capi- “expressão da dominação de uma classe, mas também talismo não é um destino inevitável, mas uma etapa um momento de equilíbrio jurídico e político, um de processo histórico contraditório. Estas contradi- momento de mediação” (Gruppi, 1980, p. 31). ções se manifestam de forma especial no campo do Algumas proposições analíticas foram levantadas desenvolvimento da cidadania e dos direitos sociais para compreender a cidadania e o fundamento das polí- e coletivos. ticas sociais, fora de seu marco original liberal (Fleury, A introdução do conceito de cidadania como eixo 1994): teórico e estratégico para explicar o desenvolvimento das políticas sociais se faz a partir da constatação de que a • a cidadania, hipótese jurídico-política inscrita na expectativa de obediência do Estado pela introjeção do natureza do Estado capitalista, como uma mediação dever político não se funda nem exclusiva nem priori- necessária, mas não suficiente para explicar a gênese das tariamente no monopólio que ele detém da violência, políticas sociais; mas na sua capacidade de organização do consenso e na legitimidade alcançada na sociedade. As mediações • a política social como gestão estatal da reprodu- necessárias à construção da hegemonia implicam não ção da força de trabalho que encontra, na dinâmica da apenas a expansão dos interesses da classe dominante, acumulação capitalista, sua condição de possibilidade e mas também na própria ampliação do Estado, acabando seu limite; por retirar o fundamento da separação entre as esferas diferenciadas da economia e da política com a introdução da esfera social. O capitalismo tem necessidade de criar o cidadão • as políticas sociais participam da reprodução social e construção da hegemonia como uma rede especial de micropoderes; na medida em que ele é o correspondente jurídico e político do trabalhador livre e capaz de vender a sua • a materialização de uma correlação de forças em força de trabalho; já a cidadania é a abstração necessária um aparato político-administrativo-prestador de serviços à constituição, fundamento e legitimidade do poder dependerá do funcionamento desta institucionalidade político. Ela reconhece a autonomia e liberdade dos organizacional; Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 333 334 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina • o desenvolvimento das políticas sociais é históri- conjunto de direitos para resgatá-la como imaginário co e manifesta, em seu transcurso, os movimentos da jurídico-político igualitário, o que inaugura um campo contradição entre produção socializada e apropriação de lutas pela atualização dos direitos sociais e permite a privada, ainda que tenha alterado de forma irreversível a disputa por seu conteúdo, que vai desde a normalização separação entre as esferas da economia e da política. burocrática até a construção de identidades emancipatórias. Neste sentido, a questão democrática passa a ser Assim como a democracia formal com sua institu- a construção de novos sujeitos e sua articulação com cionalidade, a cidadania é uma hipótese ou possibilidade os movimentos sociais, mesmo que este processo se dê jurídica que não garante a sua concretização histórica. fundamentalmente a partir das demandas cidadãs não Ambas são possibilidades porque permitem a compati- cumpridas pelo Estado nas democracias capitalistas. bilização entre democracia e capitalismo, com o status No entanto, o caminho de articulação desta dupla igualitário da cidadania sendo reconhecido na esfera via de lutas, dentro e fora do Estado, não é fácil, pois política em franca contradição com as disjunções eco- deve encontrar a capacidade de fortalecer, desenvolver nômicas entre as classes. Portanto, o Estado ampliado, e coordenar os centros de resistência difusa seja dentro aquele que ao incorporar as demandas sociais se trans- ou fora do aparato institucional do Estado. A tese fou- forma para além do mero aparato fiscal e coercitivo, é caultiana de que “onde há poder há resistência” levou fruto de uma construção histórica impulsionada pelas Laclau e Mouffe (2001) a se indagarem sobre a existência lutas de uma correlação de forças transformadoras. de variadas formas de resistência e em quais casos elas assumiriam um caráter político. Na democracia capitalista, a separação entre a A partir da crítica ao componente Jacobino do condição cívica e a posição de classe opera nas marxismo, “o qual postula um elemento fundacional duas direções: a posição socioeconômica não de ruptura e um espaço único no qual o político é determina o direito à cidadania – e é isso o constituído”, os autores afirmam sua rejeição a um democrático na democracia capitalista -, mas, ponto privilegiado de ruptura e admitem a pluralidade como o poder do capitalismo para apropriar-se e indeterminação do social. A política não pode ser do trabalho excedente dos trabalhadores não localizada a um dado nível do social, pois sua questão depende de condição jurídica ou civil privile- é a própria articulação das relações de antagonismo, o giada, a igualdade civil não afeta diretamente que leva Laclau e Mouffe (2001, p. 154) a formularem nem modifica a desigualdade de classe – e é a tese de que “o antagonismo só pode emergir pela isso que limita a democracia no capitalismo. subversão da posição subordinada do sujeito”. Neste (Wood, 2003, p. 184). sentido, afirmam o papel dos movimentos sociais que é de rearticular, por meio do imaginário democrático, Neste sentido, a superação da compatibilização as relações de subordinação como relações de opressão, de capitalismo e democracia tendo como mediação a evitando que sejam estabilizadas como subordinação e, cidadania passa pela possibilidade de radicalização da de- também, denunciar a subordinação ocorrida quando os mocracia a partir da ruptura provocada pela constituição direitos adquiridos são negados na prática. de novos sujeitos políticos. Em outras palavras, trata-se A pergunta que permanece é acerca da natureza de superar a visão da cidadania como repositório de um deste sujeito capaz de portar um projeto emancipatório. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina Aspectos da modernização, como a divisão social do sem alcançar a ampliação da democracia nos processos trabalho, a crescente especialização funcional, o apro- de gestão e participação no âmbito da empresa. fundamento da democracia que permite a construção Boaventura Santos (1994) afirma que o princípio de novas identidades e a polarização de novos conflitos, da subjetividade é muito mais amplo que o princípio da além do poder dos meios de comunicação massiva, in- cidadania e, se bem a cidadania enriquece a subjetividade cidirão profundamente nos processos de subjetivação, e abre-lhe outros horizontes de autorrealização ao con- acarretando a substituição do sujeito classista unitário sistir em um conjunto universal de direitos e deveres, ela por uma fragmentação das subjetividades, em um es- colide com a diferença da subjetividade e da autonomia paço político polifônico inevitavelmente mais plural e que marcam a identidade do sujeito. indeterminado. A redução liberal da cidadania aos componentes A radicalização da democracia só pode ser levada civil e político e da democracia à sua compatibilidade a cabo a partir da perspectiva de constituição de novos com o capitalismo na perspectiva do pluralismo polí- sujeitos políticos que subvertam sua posição subordina- tico e de instituições que garantam a constitucionali- da. A ruptura é, pois, a própria subjetivação, desde que dade na disputa e alternância de poder tem sido uma ela seja capaz de tematizar a opressão. A constituição do tendência predominante em muitos teóricos atuais, da sujeito deve ser vista dentro desta perspectiva de uma clássica poliarquia de Dahl aos mais recentes estudos ação que afirme sua liberdade e consciência, dentro de O’Donnell. Desde a perspectiva social-democrata, de um enquadramento que não foi por ele escolhido. trata-se de combinar a institucionalidade política da É no interior desta tensão entre determinação social democracia com a subordinação dos conflitos ao prima- e afirmação da liberdade individual e grupal que bus- do da justiça social, o que implica em ganhos substan- camos encontrar o lugar da constituição dos sujeitos tivos da dimensão social da cidadania. Neste sentido, (Fleury, 2009). o sujeito político representado pelo movimento dos Este processo, fundado na dinâmica da vida social, trabalhadores torna-se um sujeito ativo apenas do pro- não pode prescindir do Estado como um campo estra- cesso de conciliação da democracia com o capitalismo tégico de lutas. No entanto, não se está propondo que (Przeworski, 1989, Genro, 2008, Mészáros, 2006) a mediação social-democrata da cidadania seja capaz na medida em opera no interior dos princípios estrutu- de abrir o caminho de um processo emancipatório. Ou rais do sistema do capital e é legalmente constituído e seja, nem se pode construir subjetividades de forma regulado pelo Estado. Segundo Mészáros (2006, p. 91), administrativa, nem desconhecer o fato de que as lutas esta é uma perspectiva historicamente delimitada, pois populares possam chegar a ocupar certas posições no “o desenvolvimento do estado de bem-estar foi a última Estado, o que não implica romper a seletividade estru- manifestação dessa lógica, que só se tornou viável num tural das políticas públicas. número limitado de países”. A cidadania tem encontrado um obstáculo para Portanto, a compatibilização entre democracia expandir a democracia para além da esfera política. Só e socialismo passa por uma radicalização do processo recentemente, por exemplo, o âmbito das relações fami- de autonomização dos sujeitos dominados – agora liares passou a subordinar-se aos direitos de cidadania falamos dos sujeitos no plural – em luta que conjugue enquanto as relações no interior da produção capitalista a universalidade da cidadania com a singularidade das só escassamente se submetem ao direito do trabalho, identidades sociais. Se esta é uma luta política, ela Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 335 336 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina não pode subsumir seu componente de transformação A busca de uma nova institucionalidade para a econômica, pois implica a “reintegração da economia” democracia que seja capaz de atender conjuntamente aos à vida política da comunidade, que se inicia pela sua princípios de reconhecimento, participação e redistribui- subordinação à autodeterminação democrática dos ção (Fraser, 2001b) marca o momento atual. Trata-se próprios produtores” nas palavras de Wood (2003, de uma articulação entre inovação social e inovação p. 242) institucional que permitiria a construção de uma nova No entanto, os caminhos para essa estratégia não institucionalidade para a democracia, o que implica se encontram claros e não há, até o momento, uma o reconhecimento do outro, a inclusão de todos os formulação consistente do campo das esquerdas em cidadãos em uma comunidade política, a promoção da relação à construção do socialismo, mesmo diante da participação ativa e o combate a toda forma de exclusão. perspectiva da crise estrutural do capitalismo e de he- Enfim, a democracia requer o primado de um principio gemonia neoliberal. de justiça social, além de novos sujeitos políticos e uma Parte dessa estratégia está sendo vivida em cam- nova institucionalidade. pos particulares como o da saúde e de outras políticas O modelo deliberativo é uma concepção substan- sociais, ou na perspectiva mais ampla de consolidação tiva e não meramente procedimental da democracia, de novos blocos de poder dos governos democráticos na envolvendo valores como o igualitarismo e a justiça América Latina. A possibilidade de expansão da esfera social. O processo decisório não é para eleger entre al- pública e de construção de um novo bloco de poder ternativas, mas para gerar novas alternativas, permitir a requer e exige um novo modelo de democracia que vá construção de identidades coletivas e possibilitar maior além do aprofundamento da democracia representativa, inovação social. em direção a um modelo de democracia deliberativa e As iniquidades socioeconômicas são resultado de reconstrução do Estado, permitindo a inclusão dos de uma longa tradição de cultura política autoritária e interesses excluídos até agora por meio de processos de excludente. A compatibilização entre democracia e ex- cogestão social. clusão social é possível sempre e quando restringimos a Nossa tese é que a construção da democracia na democracia a um regime democrático, mesmo que com região introduz a reivindicação cidadã de um direito de eleições periódicas e institucionalizadas, relativamente quinta geração (para além dos direitos civis, políticos, livres, para o acesso às principais posições governamen- sociais e difusos), que corresponde à demanda por uma tais. Nesta concepção, os direitos de participação se gestão deliberativa das políticas públicas, em especial identificariam com os mecanismos de representação. Só das políticas sociais (Fleury, 2003a). a radicalização da democracia, com a inclusão daqueles Neste sentido, diferimos daqueles que veem os que foram alijados do poder em um jogo aberto e ins- direitos sociais exclusivamente como resultantes da titucionalizado de negociação e/ou deliberação, pode expansão dos direitos civis e políticos, e entendemos romper o círculo vicioso da política caracterizado pela que, na América Latina, são as lutas pelos direitos sociais alienação da cidadania, ausência de responsabilidade dos que estruturam as identidades dos sujeitos políticos, representantes e autoritarismo da burocracia. transformam a institucionalidade estatal e introduzem Neste sentido, o modelo da democracia delibera- modalidades democráticas inovadoras, especialmente tiva não abre mão do Estado, ao contrário, reconhece a ao nível local. necessidade de radicalizar a transformação de seu aparato Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina institucional para permitir a inclusão, na agenda das certo afirmar que é através destas lutas e da construção de políticas públicas, dos interesses dominados, em um identidades que se pode articular uma proposta coletiva processo simultâneo de transformação da instituciona- de transformação social. lidade e construção de identidades coletivas. Em sociedades como as latino-americanas, em que A radicalização da democracia pela via da conju- os trabalhadores formais constituem, hoje em dia, grupos gação da democracia representativa com a democra- privilegiados pelas políticas públicas sem vínculos solidá- cia deliberativa não está isenta de contradições nem rios com outros setores delas excluídos, seria ilusão esperar mesmo de ilusões. Contradições existem porque nos que a contestação da dominação e exploração se fizesse propomos a desenvolver a luta simultaneamente desde principal e fundamentalmente como parte do conflito ca- a ocupação dos espaços institucionais e da mobilização pital versus trabalho. Na análise crítica de Oliveira (2006, da sociedade civil. p. 37), encontramos as bases materiais que fundamentam Mas é preciso reconhecer que a participação dos este processo de corporativismo excludente: partidos operários e populares no parlamento é limitada pelo domínio que o capital tem sobre a esfera parla- Não apenas a devastação produzida pela desre- mentar do poder e, cada vez mais, com a articulação do gulamentação operou a desimportância da base domínio político e controle da comunicação. Portanto, classista na nova política. Há uma internali- somente com a conjugação da representação parlamentar zação da reestruturação produtiva que produz com formas articuladas com o movimento da sociedade uma nova subjetividade, inculcando os valores civil organizada será possível aumentar sua potência. de competição, colocando situações objetivas nos Wood (2003 p. 211) adverte sobre a mistificação processos de trabalho que corroem a percepção de da noção de sociedade civil e das formas participativas classe virtualmente proporcionada pelo precário ao afirmar que: fordismo periférico. Para negar a lógica totalizante do capitalis- Se somarmos a esta transformação nas bases mate- mo, não basta apenas indicar a pluralidade riais e na subjetividade da classe trabalhadora a existência de identidades e relações sociais. A relação de de um enorme contingente de trabalhadores informais classe que constitui o capitalismo não é, afinal, que sempre foram excluídos dos benefícios das políticas apenas uma identidade pessoal, nem mesmo um sociais, percebemos que as possibilidades de democra- princípio de estratificação ou de desigualdade. tização são intrinsecamente vinculadas à inclusão deste Não se trata apenas de um sistema específico contingente de deserdados à esfera pública da cidada- de relações de poder, mas também da relação nia. O fato de se apostar, na região, em um modelo de constitutiva de um processo social distinto, a democracia participativa se ancora nesta situação que dinâmica da acumulação e da auto-expansão terminou por dar lugar, a partir dos anos 1980 e 1990, do capital. à emergência de demandas coletivas por reconhecimento identitário, políticas distributivas e formas alternativas Se bem é correto denunciar as tentativas de dissol- de cogestão entre Estado e sociedade. ver o domínio do capital em um conjunto inespecífico No entanto, as diferentes experiências de participa- de lutas por identidades e relações de poder, também é ção no controle e cogestão social em políticas sociais têm Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 337 338 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina demonstrado que não podem ser tomadas como o cami- bargo, las posibilidades de generar estrategias de nho inequívoco da transformação, dadas suas limitações institucionalización del poder y cohesión social e fragilidades, tais como a segmentação e fragmentação están determinadas por la reducción del poder da participação em diferentes âmbitos políticos com a del Estado y por la inserción de estas sociedades consequente especialização, dispersão e perda de potên- en una economía globalizada, profundizando cia; as restrições à participação em questões que afetam la disyuntiva entre economía/política, estado/ à dinâmica econômica e de reprodução do capital, limi- nación. (Fleury, 2003b). tando a participação á políticas sociais (Moroni, 2009); a apropriação destes espaços de participação por grupos Os governos democráticos que se instalaram na corporativos e práticas clientelista (Labra, 2009, Côrtes, região nos últimos 25 anos têm procurado enfrentar-se 2009); a iniquidade na participação (Young, 2001, Fra- aos desafios de alcançar níveis sustentáveis de gover- ser, 2001b, Fedozzi, 2009), dentre outros. nabilidade ao buscar soluções para os problemas da Ainda assim, muitos aspectos positivos são levan- desigualdade e da exclusão social. Autores como Lan- tados por estes mesmos estudos e por outros autores, zaro (2008) e Roberts (2008) identificam como uma tendo em conta que a participação social implica a novidade absoluta a existência atual de governos do tipo construção simultânea das identidades particulares e social-democrata que buscam manter o compromisso da universalidade do reconhecimento da alteridade, entre capitalismo e democracia com vistas a uma nova além de permitir práticas sociais inovadoras (Avritzer, forma de desenvolvimento que combine progresso eco- 2009) que introduzem novas possibilidades de combate nômico com coesão social. Roberts, no entanto, aponta ao desrespeito e à negação dos direitos de cidadania a debilidade destes governos de caráter social-democrata (Honneth, 2003). em construir uma alternativa integral ao modelo de Em outro momento afirmei que: desenvolvimento neoliberal, pois mantiveram políticas macroeconômicas ortodoxas, restringidas pela pressão El problema central de gobernabilidad en do mercado mundial, sem desenvolver políticas indus- América Latina está fundamentado en la con- triais e de negociação corporativa que caracterizaram vivencia paradójica entre una orden jurídica a social democracia europeia. Lanzaro (2008, p. 41) y política basada en el principio de igualdad identifica como a característica central dos governos básica entre los ciudadanos y la preservación social-democratas na América Latina que ele denomina simultánea del mayor nivel de desigualdad en como de esquerda institucional, como a existência de um el acceso a la distribución de riquezas y a los partido de esquerda comprometido com a competição bienes públicos. La pérdida de legitimidad del eleitoral e com o regime democrático republicano. São pacto corporativo y de los actores tradicionales os casos do Brasil, Chile e Uruguai. A onda de governos vinculados al Estado desarrollista requiere la de esquerda teria outros matizes como os governos popu- construcción de un nuevo pacto de poder que listas (Venezuela, Bolívia e Equador) e governos nacional contemple las transformaciones que se procesa- populares (Argentina e, eventualmente, Panamá). ron con el adensamiento reciente del tejido social Ambos os autores coincidem em que nem todos y sea capaz de incorporar, plenamente, a aque- os governos de esquerda na região preenchem o quesito llos que hoy se encuentran excluidos. Sin em- de institucionalidade necessário à construção da social Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina democracia, já que esta incluiria o respeito à democracia cipativa ou novo socialismo. Neste último cenário ainda liberal e às liberdades individuais, junto com o compro- emergente, encontramos a possibilidade de o retorno misso com as eleições competitivas, o pluralismo político estatal, também presente no neodesenvolvimentismo, e o compromisso com a cidadania social. Governos de ser conjugado com o protagonismo da participação social esquerda que emergiram de uma forte reação social dos setores mais desfavorecidos, com construção efetiva contra o neoliberalismo, frequentemente liderada por de um novo marco do poder social que pautasse as ações novos movimentos e sujeitos sociais como indígenas, tanto do Estado quanto do mercado. piqueteiros e pobres urbanos, terminaram por gerar go- Trujillo (2009) demonstra como a participação so- vernos identificados por estes autores como populistas. cial foi valorizada pela nova Constituição Equatoriana de Isto porque a legitimidade do governante prescinde da 2008, compreendida como um direito das pessoas que institucionalidade democrática, já que o sistema tradi- passa a ser institucionalizado na iniciativa legislativa e no cional de partidos acabou sendo desacreditado e não foi controle da democracia representativa, assim como no substituído por outra organização partidária. processo decisório das políticas públicas e, mais ainda, A disjuntiva entre participação e institucionalização, ao estabelecer de forma inovadora a participação como assinalada por Dahl (1991) no estudo do desenvolvimento o quarto poder do Estado ao institucionalizar as funções dos sistemas políticos, mais uma vez se coloca na região. A de transparência e controle social. opção por priorizar a participação é desqualificada pelos Sem embargo, os desafios da incorporação da analistas políticos como populista e geradora de insta- participação popular em um modelo de democracia bilidade política, ainda que se considere que tensiona a que transcenda a democracia representativa não podem democracia no sentido da ampliação e aprofundamento do deixar de lado a questão da ineficiência do Estado e a seu componente social. Já a opção pela institucionalização, ausência de uma perspectiva republicana na ação dos ainda que propicie maior estabilidade, tem sido incapaz de governos, mesmo os mais progressistas. romper com os interesses dos setores que tradicionalmente Este contexto regional é em quase tudo diferente dominaram as sociedades nos países latino-americanos, daquele que deu origem aos sistemas de proteção social gerando frustrações entre os membros mais radicais da do tipo universal que se desenvolveram nos países euro- coalizão política. Apesar das diferenças entre as duas opções, peus e foram denominados welfare state. Considerando evidencia-se a ausência, em ambos os casos, de uma articu- o contexto em que se situa a América Latina, fica pen- lação entre progresso econômico e social, demonstrando a dente a questão sobre qual modelo de proteção deverá fragilidade de economias exportadoras de commodities para ser reivindicado pelos setores progressistas. gerar um projeto de desenvolvimento sustentável. Ramirez (2009) considera a existência, na região, de quatro cenários políticos nos quais se podem analisar as A proteção social como perspectiva diferentes maneiras de enquadramento da questão social e de transformação do Estado e da da participação. São eles: o cenário neoliberal (por exem- sociedade plo, México e a maior parte dos países centro-americanos), o cenário social-liberal (Brasil e Uruguai), o cenário (neo) desenvolvimentista (Argentina, Brasil, Equador, Bolívia, O desenvolvimento dos sistemas de proteção social Uruguai, por exemplo) e o cenário de governança parti- que caracterizaram o período do ciclo virtuoso do capi- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 339 340 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina talismo organizado gerou o estado de bem-estar social, social das contribuições pretéritas e a associa exclusiva- ou welfare state, que designa o conjunto de políticas mente à necessidade com base em princípios de justiça desenvolvidas em resposta ao processo de modernização social e estratégias solidárias que alcançam garantir os das sociedades ocidentais, consistindo em intervenções direitos sociais ‘à cidadania universal’ (Fleury, 1994, políticas no funcionamento da economia e na distri- ênfase acrescida). buição social de oportunidades de vida, que procuram Este processo histórico de conquista e expansão promover a seguridade e a igualdade entre cidadãos com dos direitos sociais correspondeu a uma etapa do capi- o objetivo de fomentar integração social das sociedades talismo que foi expansiva na absorção de mão de obra, industriais altamente mobilizadas. alcançou taxas inusitadas de inovação e lucratividade O welfare state consistiu em uma resposta às cres- na produção industrial e permitiu a construção da uma centes demandas por seguridade socioeconômica em institucionalidade estatal capaz de assegurar mecanismos um contexto de mudança na divisão do trabalho e de distributivos efetivos que se transformaram em um enfraquecimento das funções de seguridade das famí- sólido alicerce para a coesão social. lias e associações debilitadas pela revolução industrial Desde o último quarto do século 20 temos as- e a crescente diferenciação das sociedades. Também sistido às tentativas de desmontagem destes sistemas, representaram respostas às crescentes demandas por o surgimento de inovações e controles de gastos e de igualdade socioeconômica surgidas no processo de mecanismos de acesso, bem como de resistências dos crescimento dos estados nacionais e das democracias de profissionais e usuários a um processo radical de sua massa com a expansão da cidadania. Nesta perspectiva, destruição. o welfare state é um mecanismo de integração por meio A inexistência das condições que geraram o da expansão da cidadania via direitos sociais que neu- welfare state – homogeneidade e organização da classe traliza as características destrutivas da modernização, e trabalhadora, incorporação massiva no mercado de sua essência reside na responsabilidade pela seguridade trabalho, valores solidários, expansão da taxa de lucros, e pela igualdade dos cidadãos. etc. – associaram-se às contradições introduzidas pelo Ainda que as origens do estado de bem-estar social sejam encontradas em um processo histórico comum próprio estado do bem-estar, tais como o consumismo, individualismo e desmobilização da cidadania. – que deu origem ao Estado nacional, à democracia Correspondentemente ao Consenso de Washing- de massas e ao capitalismo industrial – o predomínio ton, que se tornou a ideologia econômica dominante de distintas culturas políticas, estruturas institucionais, perpetrada pelos organismos bilaterais ou multilaterais estratégias de luta e correlações de forças gerou modelos de cooperação, os princípios de redução do estado, de proteção social distintos. Identificamos o ‘modelo privilegiamento do mercado e subordinação da política assistencial’, no qual predomina o mercado, e a proteção pública aos mecanismos macroeconômicos de ajuste social se dirige a grupos vulneráveis focalizados em uma refletiram-se fortemente nas diretrizes e modelos defi- situação de ‘cidadania invertida’, o ‘modelo do seguro nidos para a proteção social. social’, no qual a ‘cidadania é regulada’ pelas condições Foi neste contexto adverso que muitos dos países de inserção no mercado de trabalho, e o ‘modelo de latino-americanos iniciam seu processo de transição seguridade social’, mais propriamente identificado como democrática, depois de experiências autoritárias – popu- o welfare state por ser o único que desvincula a proteção listas ou ditatoriais – nas quais predominaram práticas Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina clientelistas e interesses corporativos, com a persistência xalmente, a solidão e a violência (Baudrillard, 2009). de uma cultura política elitista e excludente, além de se Castel (1995, p. 768) anuncia que a contradição que enfrentar uma situação econômica fragilizada pelas altas atravessa os processos de individualização na sociedade taxas de inflação e pelos crescentes encargos das dívidas atual a ameaçam de uma fragmentação ingovernável e externa e interna. de uma bipolarização entre aqueles indivíduos que ti- O embate ideológico foi travado a partir de have- ram proveito de sua independência e têm suas posições rem decretado a falência do estado do bem-estar social, asseguradas, e aqueles que carregam sua individualidade visto por seus críticos liberais como um dos grandes como uma cruz. responsáveis pela crise do capitalismo, na medida em Na América Latina, o tema da coesão social tem que desestimula a competição e o trabalho ao assegurar sido fortemente impulsionado pela Cepal a partir de proteção garantida “do berço à sepultura”, como afir- uma revisão da sua ênfase inicial na modernização mam Friedman e Friedman (1980). Por outro lado, os produtiva como eixo decisivo de articulação entre o benefícios sociais são considerados nocivos ao equilíbrio crescimento econômico e a integração social. Segundo das finanças públicas, pois aumentam os ônus do Es- seu dirigente Machinea (2007, p. 23), o novo marco tado, ampliando o gasto fiscal com as políticas sociais prolonga a vocação da instituição na busca de sinergias cujos custos são crescentes em função do aumento da positivas entre crescimento econômico e equidade social, expectativa de vida, dos padrões de consumo, da incor- dando agora maior ênfase à melhoria da competitividade poração tecnológica. e ao fortalecimento da democracia política participativa Por suposto que a crise do welfare não pode ser cre- e inclusiva. Considera, outrossim, a proteção social ditada ao liberalismo dos anos 1970, mas às contradições como um direito básico de pertencimento à sociedade, inerentes à desmercantilização da reprodução social no e propõe um pacto social de proteção regido pelos prin- interior de uma economia capitalista (Offe, 1984), o cípios de universalidade, solidariedade e eficiência. que teve um efeito na transformação do conflito pro- Colocando ênfase na condição de cidadania como dutivo em redistributivo, mas que terminou por adiar, parte do desenvolvimento com direitos, a Cepal (Sojo; com sua rigidez burocrática, os mecanismos de crise Ulthoff, 2007, p. 10) identifica a pobreza como uma que serviriam para corrigir os rumos do capitalismo. condição que vai além do nível socioeconômico e da Sem o componente Keynesiano relativo ao crescimento falta de acesso mínimo ao suprimento das necessidades econômico, o componente de segurança social do wel- básicas, afirmando que ser pobre ou excluído é, sobre- fare não só não se mantém, mas passa a ser visto como tudo, carência de cidadania ou condição pré-cidadã, na causador da crise. medida em que se nega a titularidade de direitos sociais A transformação cultural operada no período mais e de participação. recente nos coloca diante de uma sociedade cada vez A ênfase da proposta Cepalina é colocada na busca mais destituída de princípios solidários que concilie de um pacto fiscal que viabilize as políticas de inclusão a organização social com base em relações pautadas social. Por essa razão, apesar do discurso francamente pelos valores cívicos. As relações sociais passaram a ser favorável à expansão da cidadania, a proposta termina pautadas pela desconfiança, insegurança e o medo ao por condicionar este alargamento da esfera pública às outro (Rosanvallon, 2007; Lechner, 2007) em uma condições pragmáticas decorrentes do montante dos sociedade marcada pelo consumismo que gera, parado- recursos fiscais disponíveis. Desta forma, a cidadania Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 341 342 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina universal se coloca como uma meta que deve ser alcança- mais pobres, como trabalhadores rurais, domésticos e da com medidas bem mais tímidas de combate à pobreza autônomos. que produziriam uma inclusão social progressiva. A crescente incorporação da temática da pobreza Já Sorj e Martuccelli (2008) criticam a visão uni- e sua centralidade na agenda política nas duas últimas lateral que vem sendo dada aos aspectos redistributivos décadas, no entanto, não deve eludir a questão social na discussão da coesão social na região. Estes autores que está colocada, nos termos do questionamento da reivindicam a necessidade de compreender a natureza possibilidade de preservação da ordem e da autoridade da coesão social partindo de contextos e condições de institucional – ou governabilidade – e preservação da vida específicos, afirmando que os indivíduos: organização social. A individualização da pobreza e seu tratamento Inclusive (em condições) de pobreza e de limi- de forma econômica (linhas e mapas) ou cultural (ca- tadas oportunidades de vida, são produtores racterísticas e valores) separam este fenômeno tanto das de sentido e de estratégias e de formas de soli- condições de produção quanto das condições institucio- dariedade inovadoras, que não estão inscritas nais de proteção social. Paralelamente à individualiza- a priori na história ou nas estruturas sociais, ção da pobreza, assistimos à individualização do risco embora obviamente sejam influenciadas por (Procacci, 1999) através das reformas dos sistemas de elas. (Sorj; Martuccelli, 2008, p. 2). políticas sociais de base mais coletiva que traz embutida a associação entre contribuição e benefício. A prioridade que têm assumido as políticas de A sinergia entre políticas de combate à pobreza e combate à pobreza implementadas pelos governos de- a matriz liberal de individualização dos riscos tem sido mocráticos na América Latina tem tido relativo sucesso pouco discutida entre nós e merece ser criticamente ao retirar milhões de pessoas da condição de indigência analisada. Mesmo considerando os avanços em tecno- nas duas últimas décadas. No entanto, esse desenho logias sociais no campo assistencial, é necessário levar priorizado para as políticas sociais na região tem tido em consideração que reforçam a alienação em relação menor êxito na redução das desigualdades que persistem aos determinantes sociais da situação de pobreza e não e ainda vêm enfrentando sérias dificuldades para cons- favorecem a organização social dos beneficiários, além truir cidadania. Para tanto, seria necessário assegurar, de de reforçarem concepções tradicionais sobre a família e um lado, direitos sociais livres de condicionalidades e, de a mulher (Arriagada; Mathivet, 2007). outro, uma inserção produtiva que permitisse aos indi- A inexistência de perspectivas concretas de altera- víduos, famílias e comunidades condições para transpor ção sustentável das condições de produção da pobreza o umbral de autonomia e romper com a dependência como condição indispensável para o desenvolvimento das transferências governamentais. material e político de nossas sociedades denuncia a au- De toda maneira, representa uma mudança signi- sência de articulação das políticas distributivas com um ficativa no padrão de proteção social regional, já que, na projeto de desenvolvimento econômico e de preservação América Latina, a questão social foi posta historicamente ambiental que possa gerar condições de absorção na como associada e delimitada pela reivindicação de um condição produtiva, se não dos beneficiários atuais, pelo status sociopolítico para o trabalho urbano, gerando po- menos de seus dependentes. Não há perspectivas que líticas de seguro social que não se destinavam aos grupos articulem as políticas econômicas, sociais e ambientais, Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina o que tem se traduzido na tensão constante entre os mi- marcante da insegurança, traduzida como medo da nistérios responsáveis pela estabilização monetária com exclusão, medo do outro e medo da falta de sentido. O relação às demandas distributivas e preservacionistas medo da exclusão decorre da incapacidade do mercado encaminhadas pelos ministérios sociais e ambientais. de satisfazer as demandas de reconhecimento e integra- Esse tipo de inclusão que se está processando via ção simbólica anteriormente assegurados pelo estado de políticas de transferência e combate à pobreza não trans- bem-estar. O medo do outro é a expressão da percepção cende a matriz assistencial, sendo incapaz de garantir do outro como um estranho e potencial agressor, já uma inserção autônoma, na esfera política e econômica, que as estratégias de retração individuais e familiares que assegure estabilidade aos beneficiários. Sem garantir não se mostram capazes de substituir a sociabilidade. direitos de cidadania e sem assegurar um modelo de A falta de um horizonte temporal dificulta encontrar desenvolvimento econômico que absorva essa mão- um sentido de ordem, e a vida social aparece como um de-obra, criam-se condições de dependência pessoal e processo caótico, aumentando as sensações de solidão política dos governantes, reificando a cidadania invertida e incomunicabilidade. e, por fim, fragilizando as instituições democráticas que funcionam sob a primazia do direito. As razões para a agudização deste processo são encontradas na transformação da relação entre Estado Não há dúvidas que a transposição da linha de e sociedade perpetrada por meio de uma Reforma do pobreza por um grande contingente populacional gerará Estado que, ao priorizar, as relações de mercado, alterou efeitos societários importantes, desorganizando as iden- a capacidade reguladora estatal, deixando de exercer seu tidades tradicionais e gerando novas identidades sociais. papel de garante da comunidade. Calderón e Lechner (1998) mostram que essa diferenciação apresenta efeitos contraditórios, pois, se bem dá Es por intermedio de un ‘otro generalizado’ un lugar a um processo de desagregação e atomização das imaginario y una experiencia de ‘sociedad’ que tradicionais identidades coletivas que fundamentavam la persona afirma su autonomía individual. a ordem tradicional e permite, assim, um jogo mais La persona se sabe y se siente partícipe de una democrático e pluralista, ao mesmo tempo dissolve as comunidad a la vez que es reconocida por ella en identidades coletivas em tribos coesionadas mais pelo sus derechos y responsabilidades. ¿Cual es la for- compartilhamento de emoções fugazes que por laços ma colectiva que permite respectar y desplegar duradouros. E concluem: “os atores sociais se multi- las diferencias individuales? No basta la mera plicam na medida em que se debilitam.” (Calderón; sumatoria de individualidades. (Lechner, Lechner, 1998, p. 18). 2007, p. 10). Analisando os paradoxos da modernização recente no Chile, Lechner (2007) encontra que os notáveis A inexistência de perspectivas concretas de altera- êxitos deste processo convivem com um sentimento ção radical das condições de produção da pobreza, como difuso de mal-estar que se expressa nos sentimentos de condição indispensável para o desenvolvimento material insegurança e incerteza. e político de nossas sociedades, denuncia a existência Apesar de os indicadores econômicos e de desen- subjacente de algo mais profundo que realmente se volvimento social apresentarem um resultado positivo, o constitui em analisador dos limites da coesão em nossas autor encontra, em sua pesquisa de opinião, a presença sociedades. É a situação de violência que experimenta- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 343 344 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina mos nos dias atuais, especialmente nas grandes cidades, governamentais. Ambos os sistemas, público e privado, que gera um sentimento generalizado de insegurança e deveriam ser isolados, sendo o setor privado suplementar medo, que pode ser tomada como a condição atual de e opcional, mas muitos fluxos permitem que o privado emergência da questão social, requerendo estratégias de se beneficie dos recursos públicos, invertendo a lógica políticas públicas que possam responder a esta situação da solidariedade proposta no desenho original. Na Co- crítica e assegurar possibilidades de recriação da coesão lômbia, um modelo de seguro denominado ‘pluralismo social. Portanto, é imprescindível resgatar o estreito estruturado’ pretendeu articular público e privado em vínculo entre segurança cidadã e seguridade social, uma rede com funções definidas, sendo da competência afirmando, como fez Castel (1995, p. 769), que “não do Estado a modelagem do sistema e da seguridade so- há coesão sem proteção social”. cial o seu financiamento, enquanto o asseguramento e Depois do auge das reformas dos sistemas de a prestação de serviços deveriam obedecer a uma lógica proteção social que ocorreram como resposta a dois competitiva de mercado. As consequências da adoção do fenômenos estruturais que afetaram a região no últi- modelo de seguro impactaram negativamente na saúde mo quarto século passado – a derrocada das ditaduras pública e tiveram consequências nocivas também para militares e a crise econômica – parece ter havido uma a rede de serviços (Fleury, 2001). acomodação com ênfase na focalização e combate à As opções por universalizar a cobertura pela via do pobreza. As reformas sociais do final do século 20 na sistema público, ou via mercado ou ainda por meio de região adotaram como objetivo a ampliação da cobertura um seguro social, representaram um verdadeiro labora- e a transformação dos sistemas estratificados de proteção tório de políticas de proteção social. Depois de alguns social herdados do período da industrialização substituti- anos, estes esforços que geraram modelos de reforma va. Os sistemas de saúde e previdência sofreram grandes paradigmáticos tenderam a ser arrefecidos. Muitos modificações, com distintas orientações decorrentes fatores contribuíram para essa redução da capacidade do timing das reformas em relação ao predomínio dos de inovação e mesmo de politização da proteção social fenômenos da democratização e/ou da hiperinflação. As na região. Entre eles, encontramos a desmobilização mudanças começaram com a introdução de um novo da sociedade civil, a resistência de poderosos atores à paradigma no caso do Chile, onde o Estado criava um mudança, a reapropriação das políticas inovadoras pelas sistema dual, repassando ao mercado a parcela da po- elites corporativas, profissionais e empresariais, e tam- pulação que pudesse pagar por um seguro de saúde ou bém a difusão ideológica de um modelo individualista pensões. O Estado ficaria responsável pela população de proteção social. No entanto, apesar da redução do mais pobre, gerando um modelo segmentado, indivi- empenho inicial na reformulação dos sistemas universais dualista e perverso de política social. No caso do Brasil, de proteção social, estas experiências seguem existindo no auge do processo de democratização, foi estruturado e buscando soluções para enfrentar as dificuldades e um sistema universal e de cobertura integral da saúde gerar um sistema de proteção social com qualidade e que pretendeu redefinir o pacto federativo por meio de justiça social. uma descentralização pactuada e gerar inovadoras for- Mais recentemente, originada no Banco Inte- mas de participação social. A autoexclusão das camadas ramericano de Desenvolvimento, surgiu a proposta médias do sistema público que sofreu sérios problemas denominada Universalismo Básico (Molina, 2006). de financiamento foi em parte promovida por subsídios Baseada no mesmo pragmatismo já anunciado na dis- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina cussão sobre coesão social da Cepal, a proposta atual é intenta dar tratamiento a las brechas existentes caracterizada por restringir-se às margens fiscais de cada para el cumplimiento de cierta meta, no toma en país, de acordo com o seu nível de desenvolvimento, cuenta la historia de las distancias sociales ni su para garantir, assim, a sua viabilidade. Portanto, na lógica de producción y reproducción… La elecci- proporção em que permitirem os recursos fiscais em ón de la ‘igualdad de oportunidades’ - - unida a cada país, serão implementadas medidas de cobertura la base de información (lo básico) – como pauta de um conjunto de prestações essenciais que devem ser distributiva, tampoco produce la integración universais e alcançar toda a população que atender a social que se propone. Su planteo de igualdad de critérios definidos. derechos esenciales, en el marco de un recorte de la Buscando utilizar a focalização como um instru- universalidad, lo que produce en el mejor de los mento para assegurar a igualdade de oportunidades para casos es una nueva modalidad de la focalización, todos, a proposta acredita estar gerando coesão social. la de los derechos esenciales. (p. 55). Por outro lado, pretende ser renovadora ao conjugar as chamadas velhas prestações – referindo-se às políticas Diante deste quadro empobrecido de discussão acer- universais de educação, saúde e seguridade social, mesmo ca da proteção social, torna-se imprescindível recolocar que nunca tenham sido universalizadas – com as novas o tema das políticas universais e do modelo de proteção prestações, que se referem às transferências condiciona- social na agenda política regional. A institucionalidade das. A articulação seria dada a partir da definição, em que requer a proteção social nesse contexto implica alte- cada país, das prestações essenciais, condicionada pelos rações estruturantes na dinâmica social e política, sendo limites financeiros e pelo modelo de desenvolvimento. pontos centrais dessa agenda (Fleury, 2009): Sem discutir as razões que levam às enormes restrições financeiras que reduzem a capacidade dos Estados • a desvinculação dos benefícios da condição de in- nacionais na região para ampliarem a cobertura e sem serção no mercado de trabalho e sua exclusiva vinculação discutir o que se entende por prestações essenciais, a aos direitos sociais de cidadania; proposta não alcança a transcendência do paradigma liberal de proteção social, revivendo, com roupagem • o fortalecimento dos sistemas de políticas univer- conceitual mais sofisticada, medidas e instrumentos sais em sistemas não-segmentados por clivagens sociais tão ineficazes como o copagamento, a focalização e a e regionais, capazes de traduzir noções igualitárias que subordinação das políticas sociais à lógica hegemônica consolidam a cidadania; de pagamento da dívida e investimentos e subsídios que favorecem a acumulação. Minteguiaga (2009) analisa as bases conceituais do Universalismo Básico (UB) e conclui: • a inserção dos programas de discriminação positiva no interior dos sistemas universais, sob pena de eles reproduzirem as discriminações enquanto reduzem as desigualdades; [...] La caracterización de La universalidad como ‘básica’ cercena La posibilidad de resolver lo que • o rompimento definitivo com a discriminação das supuestamente ES La nueva cuestión social del mulheres e o não-reconhecimento dos seus trabalhos nas UB, la cohesión social. Esto es así porque si bien agendas dos benefícios e pautas da proteção social; Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010 345 346 FLEURY, S. • Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina • a construção de mecanismos de participação e deliberação social que permitam o exercício de uma de proteção social e tornam o sistema público perversamente complementar ao setor privado; cidadania ativa, e que não sejam exclusivos das áreas de políticas sociais, passando a incorporar também transfor- • imprescindível se faz a criação de mecanismos mações nos processo decisório das áreas de planejamento efetivos de regulação das práticas empresariais privadas e economia; no campo da proteção social, subordinando-as ao papel de garantia de bens de relevância pública; • a existência de políticas públicas de proteção social que assegurem serviços e benefícios exigíveis dentro de • prioridade às políticas que visam à difusão de prá- expectativas conhecidas e padrões de qualidade publi- ticas materiais e simbólicas de uma cultura de solidarie- camente definidos; dade que permitam sustentar programas sociais coletivos que respeitem as diferenças e fortaleçam a construção • o fortalecimento institucional dos mecanismos de formulação de políticas, entrega de serviços e coor- de sujeitos autônomos, em um processo relacional de construção de sociedade. denação da proteção social, o que implica políticas de pessoal, salários, carreiras e organizações prestigiadas tecnicamente competentes e resistentes ao uso meramente político partidário; R E F E R Ê N C I A S • a construção de mecanismos efetivos e sustentáveis de financiamento das políticas sociais que não estejam subordinados à volatilidade da dinâmica de acumula- Arriagada, I.; Mathivet, C. Los programas de alivio a la pobreza Puente y Oportunidades. Una mirada desde los acto- ção do capital e que estruturem de forma irreversível a res. Santiago do Chile: Cepal, 2007. (Serie Políticas sociales primazia do social sobre os interesses particulares; n. 134). • a construção de um pacto fiscal que estabeleça uma estrutura tributária baseada nos princípios da justiça social, da progressividade, transparência e efetividade; • A construção de modelos de proteção social que ultrapassem os limites disciplinares e organizacionais e funcionem como redes de proteção que se definem a partir dos territórios e necessidades dos usuários, Avritzer, L. Associativismo e participação na saúde; uma análise da questão na região nordeste do Brasil. In: Fleury, S.; Lobato, L. Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 151-174. Baudrillard, J. La société de consommation. Paris: Editions Denoel, 2009. Calderón, F.; Lechner, N. 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Este estudo visa a avaliar a qualidade de vida de idosos renais crônicos em tratamento hemodialítico por meio do método SF-36. Trata-se de um estudo descritivo, de corte transversal, com abordagem quantitativa. O estudo foi desenvolvido em duas Unidades de Terapia Renal Substitutiva do interior do Estado de São Paulo. Participaram desta pesquisa pessoas acima de 60 anos em tratamento de hemodiálise há pelo menos seis meses. Revelou-se necessária a avaliação da QV dos pacientes em tratamento hemodialítico periodicamente, a fim de planejar a assistência a ser prestada e otimizar as dimensões da QV que se mostrarem comprometidas, sugerindo-se, por exemplo, a reabilitação física, uma estratégia comprovadamente benéfica, de acordo com estudos encontrados na literatura. PALAVRAS-CHAVE: Insuficiência renal crônica; Idoso; Qualidade de vida. ABSTRACT End-stage renal disease directly affects the quality of life (QOL) of elderly end-stage renal disease patients. The purpose of this study was to assess the quality of life of elderly chronic renal disease patients undergoing hemodialysis therapy, based on the SF-36 method. This descriptive, transversal, and quantitative study was conducted at two Renal Replacement Therapy Units in the interior of the state of São Paulo. The subjects of this study were patients older than 60 years old undergoing hemodialysis for at least six months. Our findings pointed out the need for periodic evaluations of the QOL of patients undergoing hemodialysis therapy in order to plan the assistance to be provided, thus optimizing the dimensions of the QOL that are impaired, based on suggested physical rehabilitation procedures, which has proven to be a beneficial strategy in literature reports. KEYWORDS: Renal insufficiency chronic; Aged; Quality of life. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 349-355, abr./jun. 2010 349 350 ORLANDI, F.S. • Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico I N T R O D U ç ão à necessidade de assistência em suas atividades diárias (Mckevitt et al., 1990). Isto pode ser visto inclusive entre os pacientes renais crônicos, pois, em um estudo O envelhecimento populacional é um fato in- comparativo sobre a QV do adulto e do idoso renal crô- contestável (Miguel; Pinto; Marcon, 2007). O nico, observou-se que “funcionamento físico” e “função envelhecimento torna as pessoas mais vulneráveis aos física” foram as dimensões do componente físico que processos patológicos decorrentes de múltiplos fatores, obtiveram menores escores médios com significância levando o idoso a apresentar doenças como as cardio- estatística (Kusumota, 2006). vasculares, respiratórias, neoplásicas, cerebrovasculares, Associado ao comprometimento físico, os pacien- osteoarticulares e endócrinas que podem ou não estar tes renais crônicos, em particular os idosos, costumam associadas, caracterizando as comorbidades (Kusumota; sofrer alterações no desempenho dos seus papéis sociais Rodrigues; Marques, 2004). e dos aspectos psicológicos decorrentes da situação do Algumas destas doenças, como a hipertensão adoecimento (Silva et al., 2002). Em estudo compara- arterial, o diabetes mellitus e a insuficiência cardíaca, tivo entre o comprometimento funcional, a depressão predispõem o idoso à doença renal. E as alterações ana- e a satisfação com a vida entre idosos portadores de tômicas e fisiológicas nos rins, decorrentes do processo insuficiência renal crônica terminal (IRCT) sob trata- de envelhecimento renal, constituem um agravante mento de hemodiálise e um grupo controle de idosos para a patologia renal nos pacientes dessa faixa etária, moradores na comunidade, os autores (Kutner et al., aumentando a suscetibilidade à disfunção renal com o 2000) mostraram que os idosos em hemodiálise apresen- passar dos anos (Romão Júnior, 2004). taram comprometimento funcional mais significativo, Nos últimos 20 anos, tem sido observado um escores de depressão mais elevados, assim como menor crescimento expressivo no número de idosos com insufi- satisfação com a vida. Esses achados fornecem subsídios ciência renal concomitante ao número de comorbidades. para ratificar a compreensão de que a Insuficiência Conforme dados do Censo da Sociedade Brasileira de Renal Crônica (IRC) e a sua terapêutica geram forte Nefrologia, em 2007 foram registrados 73.605 pacientes impacto negativo na vida dos pacientes, acometendo em tratamento dialítico. Desse total, 25,5% apresenta- inúmeras dimensões da QV (Valderrábano; Jofre; vam idade superior a 65 anos (Sesso et al., 2007). López-Gómez, 2001). A proposta da terapia renal substitutiva nos idosos Assim, a análise da QV do idoso com IRCT em fundamenta-se na melhora da sua qualidade de vida tratamento hemodialítico revela-se importante para (QV), resgatando-lhes o bem-estar físico e a capacida- orientar medidas de intervenção que contemplem priori- de cognitiva, além de mantê-los inseridos no contexto tariamente os aspectos mais comprometidos da QV nes- social (Carvalho; Silva; Costa, 1999). Essa proposta, te grupo de sujeitos e também os não-comprometidos, entretanto, esbarra nas alterações da vida diária que o visando à sua manutenção. tratamento hemodialítico desencadeia pela falta de su- Dessa forma, é desejável que os instrumentos de porte familiar e da equipe de saúde para a manutenção medida de QV sejam multidimensionais e capazes de do tratamento. abranger grande parte dos aspectos presentes no cons- Os idosos em tratamento dialítico geralmente apresentam comprometimento funcional, o que remete Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 349-355, abr./jun. 2010 tructo QV, ou aqueles mais relevantes para a população em estudo. ORLANDI, F.S. • A maioria dos estudos que abordam o paciente idoso com IRCT tem empregado instrumentos ge- Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico do Estado de São Paulo, nas cidades de Campinas e São Carlos, no período de janeiro a março de 2003. néricos para a medida da QV relacionada à saúde. Constituíram critérios de inclusão: estar em Dentre os instrumentos genéricos disponíveis, o SF-36 programa de hemodiálise há pelo menos seis meses; desenvolvido em 1992 (Ware; Sherbourne, 1992) e apresentar capacidade de compreensão e de comuni- validado no Brasil em 1997 (Ciconelli, 1997) é uma cação verbal; e concordar em participar da pesquisa, escala que possui diversas vantagens em para estudos assinando o termo de consentimento livre e escla- sobre QV relacionada à saúde, pois é muito utilizada recido. Os critérios de exclusão foram: apresentar em pesquisas nacionais e internacionais, é multidi- alterações cognitivas ou distúrbios psiquiátricos, ser mensional, aborda tanto dimensões do componente portador de neoplasias ou ter antecedente pessoal de físico (capacidade funcional, aspectos físicos, dor e transplante renal. estado geral de saúde) quanto do componente mental Considerando-se os valores de coeficiente de cor- (aspectos sociais, aspectos emocionais, vitalidade e relação r≥0,40, e de α=0,05 e β=0,05, estimou-se um saúde mental). Além disso, é um instrumento breve número mínimo de 75 sujeitos para compor a amostra. e com boas propriedades psicométricas, mostrando- Como esse número foi muito próximo do total de se confiável e válido em diversos estudos nacionais e sujeitos da população alvo, optou-se por incluir todos internacionais. os idosos das duas clínicas eleitas para essa investigação Diante do exposto, pretendeu-se, com este estudo, responder ao seguinte questionamento: Qual a percep- que atendiam aos critérios de inclusão e nenhum dos de exclusão, totalizando 100 sujeitos. ção do idoso renal crônico em tratamento hemodialítico Em relação ao instrumento de coleta de dados, foi acerca de sua qualidade de vida quando avaliado pelo utilizado o SF-36. Esta escala, desenvolvida em 1992 SF-36? (Ware; Sherbourne, 1992) e validada no Brasil em O objetivo do presente estudo foi avaliar a quali- 1997 (Ciconelli, 1997), contém 36 questões, das quais dade de vida de idosos renais crônicos em tratamento uma avalia comparativamente as condições de saúde hemodialítico por meio do SF-36. atual e de um ano atrás e as 35 restantes abordam 8 dimensões: capacidade funcional, estado geral de saúde, saúde mental, aspectos físicos, vitalidade, aspectos MÉTODO emocionais, aspectos sociais e dor. Quanto ao procedimento, inicialmente foi realizada uma entrevista individual com os idosos, previa- Trata-se de um estudo descritivo de corte trans- mente à terapia renal substitutiva (hemodiálise), ou, versal, com abordagem quantitativa, acerca da avaliação havendo impossibilidade, nas duas primeiras horas do da qualidade de vida de idosos renais crônicos em tra- tratamento, uma vez que o paciente com frequência tamento hemodialítico. apresenta alterações hemodinâmicas após este intervalo Deste estudo participaram idosos com idade igual de tempo. Nessa entrevista, foi aplicado o SF-36 sob a ou superior a 60 anos, com diagnóstico de IRCT, em forma de entrevista, considerando-se a possibilidade programa de hemodiálise ambulatorial, atendidos em de os sujeitos apresentarem queda da acuidade visual e duas clínicas de terapia renal substitutiva (hemodiálise) baixo nível instrucional. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 349-355, abr./jun. 2010 351 352 ORLANDI, F.S. • Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico O estudo foi formalmente autorizado pelos diretores das respectivas clínicas de nefrologia, bem como cativa de idosos (45,0%) apresentava 2 ou 3 condições clínicas associadas. aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Facul- No presente estudo, os valores de coeficiente de alfa dade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de de Cronbach (α) obtidos na aplicação do SF-36 revela- Campinas (Unicamp) (Parecer do CEP n° 417/2002). ram os seguintes valores: instrumento global=0,90; capa- Em relação às análises estatísticas, os dados co- cidade funcional (CF)=0,89; aspecto físico (AF)=0,79; letados foram inicialmente transportados para uma dor (D)=0,91, estado geral de saúde (EGS)=0,64; planilha de dados do programa Excel for Windows 98 vitalidade (V)=0,65; aspectos sociais (AS)=0,56, aspec- e, então, para o programa SAS for Windows (Statistic tos emocionais (AE)=0,80; saúde mental (SM)=0,79. Analysis System) versão 8.02 para as seguintes análises: Sendo assim, a maioria das dimensões obtive valores de 1. descritiva (tabelas de frequência, medidas de posição alfa maior ou igual a 0,70, apontando uma consistência e dispersão, bem como os casos válidos e omitidos); 2. satisfatória, valendo ressaltar que as dimensões EGS e V, coeficiente de confiabilidade (alfa de Cronbach). que estiveram próximas do desejável e que a dimensão AS, como é avaliada por apenas dois itens, pode ter seu valor de alfa reduzido. RESULTADOS E DISCUSSÃO As medidas de QV obtidas com a aplicação do SF36 são apresentadas na Tabelas 1. Na análise dos escores do SF-36, observou-se menor pontuação nas dimensões Os 100 idosos estudados caracterizaram-se pelo “aspectos físicos” e “capacidade funcional” [média=36 equilíbrio entre os sexos (51,0% do sexo masculino); (±37,1) e 49,1 (±29,2), respectivamente]. As dimensões idade entre 60 e 86 anos (média=68,3±6,4); tempo “aspectos emocionais” e “aspectos sociais” destacaram- médio de escolaridade de 3,2 anos de estudo (±3,4; se como as de maior pontuação [média=79,7 (±34,1) e mediana=3,0); e predomínio da cor branca (81,0%). 82,7 (±24,1), respectivamente] (Tabela 1). A maioria dos pacientes (67,0%) possuía um parceiro. No que se refere à QV dos idosos com IRCT sob Quanto à renda mensal familiar informada, a média tratamento de hemodiálise em valores quantitativos, foi de 3,3 salários mínimos (SM) (±5,2; mediana=2,0), verifica-se que os escores médios do SF-36 variaram de oscilando entre 0,5 e 42 SM. 36,0 a 82,7. Para quatro das oito dimensões, as médias O tempo médio de tratamento hemodialítico dos foram iguais ou superiores a 60,0. A maioria das dimen- pacientes foi 26,7 meses (±21,7; mediana=20,5), com sões que avaliam a saúde física (capacidade funcional, variação entre seis e 117 meses. As condições clínicas aspectos físicos e estado geral de saúde) apresentou associadas que se mostraram mais prevalentes no gru- escores médios mais baixos do que a maior parte das po estudado foram: diabetes mellitus tipo 2 (42,0%) e dimensões que avaliam a saúde mental (aspectos sociais, hipertensão arterial sistêmica (79,0%). Tais condições aspectos emocionais e saúde mental). Isso também foi também corresponderam ao fator etiológico da IRCT observado em um estudo com pacientes em diálise para 38,0 e 22,0% dos sujeitos, respectivamente. Outras (Kusumota et al., 2008) que apresentavam pontuações condições clínicas frequentes, como o déficit visual e a inferiores, especialmente nas dimensões que avaliam a insuficiência cardíaca, destacaram-se em 25,0% e 15,0% saúde física, em relação às que avaliam a saúde mental. dos pacientes, respectivamente. Uma proporção signifi- Em um estudo prospectivo com pacientes em programa Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 349-355, abr./jun. 2010 ORLANDI, F.S. • Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico Tabela 1 – Escores das dimensões do SF-36 para os 100 idosos com IRCT em hemodiálise Dimensões Média DP Variação observada Variação possível Capacidade funcional 49,1 29,2 0 - 100 0 - 100 Aspectos físicos 36,0 37,1 0 - 100 0 - 100 Dor 60,0 29,3 0 - 100 0 - 100 Estado geral de saúde 55,6 18,9 15 - 97 0 - 100 Vitalidade 56,5 18,2 20 - 100 0 - 100 Aspectos sociais 82,7 24,1 12,5 - 100 0 - 100 Aspectos emocionais 79,7 34,1 0 - 100 0 - 100 Saúde mental 68,6 20,4 16 - 100 0 - 100 DP: desvio padrão. de hemodiálise (Abreu, 2005), notou-se também que o aspecto físico foi mais afetado do que o mental. A importância do comprometimento do aspecto físico nos pacientes com IRCT em hemodiálise sobre a Na comparação das medidas de QV dos idosos qualidade de vida é reforçada por estudos que eviden- deste estudo com a medida de QV numa população geral ciam melhora neste aspecto dos sujeitos quando imple- do Brasil (Kimura, M. et al., 2002) por meio do SF-36, mentadas intervenções direcionadas para a melhora da constatou-se maior comprometimento no grupo dos ido- capacidade funcional. sos. Contudo, ao relacionar os escores médios do grupo es- Destaca-se, na literatura, o estudo de Tawney et al. tudado com os escores obtidos em outros estudos realizados (2002), no qual foi avaliado o efeito de um programa de também com a população idosa, observou-se semelhança reabilitação física sobre a qualidade de vida de pacientes entre as dimensões que atingiram escores médios abaixo em hemodiálise, mensurada pelo Kidney Disease Quality de 50, que foram: capacidade funcional (Kusumota et al., of Life Short Form (KDQOL-SF). Os autores observaram 2008) e aspectos físicos (Kusumota et al., 2008; Pimenta; que seis meses de intervenção melhorou o funcionamento Simil; Torres, 2008). Em relação à dimensão “vitalidade”, físico do referido grupo de pacientes quando comparado o presente estudo corrobora o estudo de Martins e Cesarino ao Grupo Controle (pacientes em programa de hemodi- (2005) que, apesar de incluir pacientes na faixa etária entre álise que não participaram do programa de reabilitação 36 e 55 anos, obteve um escore médio baixo (48,7±7,2). física). Essa intervenção consistiu em nove sessões, de 15 a Segundo estes autores, o escore médio baixo reflete o sen- 30 minutos cada, aplicadas durante o tratamento dialítico. timento de cansaço e esgotamento. Os pacientes eram encorajados a realizarem atividades No estudo sobre qualidade de vida de pacientes em diálise (Dorn et al., 2004), observou-se que os pacientes idosos com um alto grau de comorbidade apresentaram também menores escores na função física. físicas diariamente, as quais eram planejadas em conjunto com os pesquisadores e variavam de intensidade. Kutner e Jassal (2002) reforçam a hipótese de que a realização de atividade física contribui para a melhoria Desta maneira, os achados desta pesquisa reprodu- do aspecto físico e da qualidade de vida relacionada à zem os da literatura, uma vez que a capacidade funcional saúde de idosos renais crônicos. Os autores relatam que a e o aspecto físico também foram as dimensões mais afe- avaliação de pacientes idosos em diálise submetidos a um tadas da qualidade de vida dos sujeitos entrevistados. programa de reabilitação e acompanhados durante sete Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 349-355, abr./jun. 2010 353 354 ORLANDI, F.S. • Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico anos mostrou que os idosos submetidos à intervenção geral. Por outro lado, se comparados a idosos no início apresentaram-se mais ativos fisicamente, com menos de tratamento dialítico (Loos et al., 2003), pode-se prejuízos funcionais e limitações. afirmar que, na presente investigação, eles apresentaram Tawney et al. (2000) consideram que a atividade melhores escores de QV. Sendo assim, torna-se necessária física é um comportamento modificável que pode a avaliação da QV dos pacientes em tratamento hemo- influenciar positivamente o funcionamento físico e a dialítico periodicamente, a fim de planejar a assistência qualidade de vida em pacientes com IRCT, uma vez a ser prestada, otimizando, dessa forma, as dimensões que pequenos declínios no funcionamento físico neste da QV que se mostrarem comprometidas. grupo de sujeitos podem levar à dependência funcional. A avaliação periódica do funcionamento físico ao longo do tempo é reforçada como uma medida que pode aju- R E F E R Ê N C I A S dar pacientes e membros da equipe a detectarem perdas sutis deste funcionamento. Assim, o potencial terapêutico da reabilitação de pacientes com IRCT em hemodiálise pode melhorar a Abreu, I.S. Qualidade de vida relacionada à saúde de pacientes em hemodiálise no município de Guarapuava – PR. Dissertação qualidade de vida e a satisfação com o cuidado destes (Mestrado em Enfermagem) – Escola de Enfermagem da USP, pacientes. Contudo, é importante ressaltar que a re- Ribeirão Preto, 2005. abilitação dos pacientes renais crônicos não pode ser Carvalho, F.J.W.; Silva, A.B.F.; Costa R.C. Análise da compreendida apenas como atividade física, mas como um conjunto de intervenções planejadas e desenvolvidas em parceria com uma equipe multiprofissional. Loos et al. 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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 349-355, abr./jun. 2010 355 356 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos Nursing and spirituality in terminal patients: perception of the religious ministers Joseane de Souza Alves1 Mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) [email protected] 1 RESUMO Trata-se de um estudo qualitativo sobre a contribuição da Enfermagem nas necessidades espirituais do paciente terminal, segundo a percepção de ministros religiosos. Foram aplicados um questionário e uma entrevista individual semiestruturada a sete ministros religiosos de hospitais da grande Porto Alegre, Rio Grande do Sul, escolhidos intencionalmente. Os resultados apresentaram que a Enfermagem pode incluir o cuidado espiritual em suas tarefas com o paciente terminal. Para isso, são necessários uma visão holística, capacidade de acolhimento, respeito a crenças individuais, além de saber ouvir. Na visão dos religiosos, a Enfermagem tem uma contribuição singular no apoio espiritual ao paciente terminal. PALAVRAS-CHAVE: Enfermagem; Estado terminal; Morte; Espiritualidade. ABSTRACT This paper is a qualitative study about the contribution of the nursing to the spiritual needs of terminal patients, from the perception of religious ministers. A questionnaire and an individual semi-structured interview were applied to seven religious ministers of hospitals of the metropolitan region of Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, which were intentionally chosen. The results showed that nursing can include spiritual care in the work with terminal patients. Therefore a holistic vision, a capability to provide shelter, the respect to individual beliefs and the ability of listening are necessary. In the vision of the religious ministers, the nursing has a singular contribution to the spiritual support of the terminal patients. KEYWORDS: Nursing; Critical illness; Death; Spirituality. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010 ALVES, J.S. I N T R O D U ç ão • Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos para sua vida – e determinam sua atitude frente à saúde e à doença (Martins, 2004). Na situação de terminalidade, em que o paciente A espiritualidade pode ser definida de diversas passa por estágios, conflitos e medos, há a necessidade maneiras e de diferentes pontos de vista. Ela faz parte de ele receber um cuidado integral, que abranja também de um campo de estudo ainda em formação, que tem a dimensão espiritual. Assim, a espiritualidade pode atraído, a cada dia, um número crescente de interessados. ajudar o paciente terminal a enfrentar a morte com mais A espiritualidade supõe a concepção do homem que leva serenidade e menos ansiedade. em conta a dimensão do espírito, ou seja, aquilo que A equipe de Enfermagem – por estar mais pró- nos compõe, que não podemos ver, tocar, mas podemos xima do paciente e conhecê-lo melhor, devido a sua sentir, pensar e expressar por meio de gestos e atitudes experiência e formação, além de cuidar dele em todas as (Guimarães, 2006). suas fases – tem condições de dar continuidade à tarefa Na cultura mundial atual, há um resgate muito grande do místico e do religioso, o que é altamente po- prestada pelos ministros religiosos, auxiliando, assim, o paciente a ter uma morte serena. sitivo. Ao lado da racionalidade instrumental analítica, Um fator que dificulta o cuidado espiritual é há uma volta para a profundidade humana, que deve ser a influência do materialismo, o qual valoriza sobre- articulada com o cotidiano e com o bom senso (Leloup maneira a beleza, o poder e o material, esvaziando, et al., 1997). assim, o ser humano do valor que ele tem em si como Apesar da falta de um consenso geral sobre os ser único, inteligente, livre, responsável e digno. conceitos, a literatura científica tem demonstrado a Esse aspecto influencia a atuação dos profissionais existência de relação entre qualidade de vida e espiritu- de Enfermagem, que exercem sua profissão junto alidade. Vários pesquisadores nacionais e internacionais, a pessoas fragilizadas, como os pacientes terminais em grupo ou independentemente, têm se dedicado a (Selli; Alves, 2007). pesquisar este tema, tendo desenvolvido instrumentos Não se está falando de nenhuma ideia nova ou válidos e confiáveis para acessá-lo e produzido vários recente, pois a dimensão da espiritualidade já vem estudos com razoável rigor metodológico (Panzini et sendo estudada. Ao contrário de propor uma crença al., 2007). ou o desenvolvimento da espiritualidade nos pacientes, A fé religiosa pode ser um recurso pessoal e uma pensa-se em um atendimento pelos enfermeiros aos pa- fonte de energia vital em situações de dificuldade, de cientes terminais com um novo olhar, considerando-o caos, como no caso de uma enfermidade. Na vida do ser como um todo e respeitando, também, a sua dimensão humano, a experiência religiosa se apresenta como forma espiritual. de resgate e de valorização da vida e das potencialidades, Este estudo visou propor uma contribuição da trazendo, assim, a possibilidade de transcendência de equipe de Enfermagem para as necessidades espiri- uma vida plena e abundante. Desta forma, o ser humano tuais do paciente terminal, a partir da percepção de pode enfrentar o mundo melhor. Por mais desenvolvida ministros religiosos, tendo abordado dentro da nova que esteja a sociedade, o mistério da vida e da morte teoria paradigmática de visão integral e holística da permanece. Razão e fé, conceitos científicos e religiosos, Saúde, em que o ser humano é valorizado em todas as misturam-se no homem moderno – que busca sentido suas dimensões. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010 357 358 ALVES, J.S. • Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos Metodologia uma hora, dependendo do que era complementado pelas respostas dos entrevistados. As respostas foram transcritas com autorização dos mesmos, conforme Sujeitos e local do estudo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, como A coleta de dados para o estudo desenvolveu-se preconiza a resolução 196/96 do Ministério da Saúde junto a sete profissionais que atuam na área da pastoral (Brasil, 1996). Os sujeitos de pesquisa foram deno- da Saúde. Os locais da coleta foram dois hospitais, minados com nomes de flores, respeitando-se a confi- um seminário, uma instituição de ensino e duas dencialidade e o anonimato dos mesmos. igrejas (Igreja Evangélica Batista e Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil). Os sujeitos pesquisados residem e atuam na grande Porto Alegre, Rio Coleta e análise dos dados Grande do Sul, e foram escolhidos intencionalmente. Procedemos à entrega dos questionários e das en- Todos eles têm formação pastoral e experiências prá- trevistas e, em seguida, foi elaborado o material para a ticas no atendimento espiritual ao paciente em fase análise. Na pré-análise do material, procedeu-se à leitura terminal. Dois dos entrevistados são profissionais de flutuante das falas dos participantes e, posteriormente, Enfermagem. à análise temática dos dados, conforme Bardin (1979) e Minayo (2006). Após a codificação dos dados, surgiram as seguintes categorias: papel da Enfermagem junto Instrumentos de coleta de dados ao paciente na aceitação da morte; direito de saber ou Foi aplicado um questionário e seus dados foram não o diagnóstico e de ser ouvido; cuidado espiritual complementados com entrevista individual semies- independente de crença religiosa. As categorias foram truturada. A pergunta norteadora foi se a Enferma- interpretadas pela análise de conteúdo. gem pode ter uma contribuição para o atendimento espiritual ao paciente terminal, a partir da percepção de ministros religiosos. As perguntas do questionário APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS foram: ‘como a equipe de Enfermagem pode auxiliar o paciente na acolhida e na aceitação da morte?’; ‘como a equipe de Enfermagem pode auxiliar o paciente a Papel da enfermagem junto ao paciente na aceitação assumir a morte como parte do processo de existên- da morte cia?’; ‘como a equipe de Enfermagem pode dar apoio Com relação a como auxiliar o paciente na aco- espiritual para o paciente terminal, independentemente lhida e aceitação da morte, assumindo-a como parte de sua crença religiosa?’. Além da aplicação do ques- do processo de existência, Crisântemo, Rosa, Lírio, tionário, a coleta de dados foi complementada com Margarida, Azaleia e Girassol relataram que devemos perguntas dirigidas aos pesquisados, para aprofundar respeitar profundamente as fases do processo de morrer o tema em estudo, colhendo-se dados adicionais. As do paciente terminal e conscientizá-lo sobre a mesma. entrevistas foram feitas individual e pessoalmente aos Devemos conhecer especificamente cada estágio do entrevistados em seu próprio local de trabalho. O processo e as reações do paciente, acompanhando res- tempo de duração das entrevistas foi, em média, de peitosamente cada um: Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010 ALVES, J.S. • Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos A acolhida e aceitação da morte exigem um Flor do Campo, Lírio e Crisântemo mencionam preparo lento, sem forçar, mostrando o lado a importância de conscientizar os pacientes de que a transcendente da vida. (Lírio). morte faz parte do viver e é parte integrante da natureza humana. É uma passagem, o início de uma nova vida. Muitas vezes, o temor diante da passagem da Rosa, Azaleia e Girassol afirmam que deve haver vida para a morte está em não saber o que se espera uma integração do profissional de saúde com a morte. após a mesma (Kübler-Ross, 2000). Muitas pessoas É importante que o profissional que oferece apoio tam- e famílias recebem um diagnóstico de doença grave bém possa assumir a sua própria morte como parte do que as põe de frente com os enigmas do viver e do processo de morrer. morrer, descobrindo, então, realidades fundamentais, As questões de espiritualidade são elementos im- como a da dimensão emocional e espiritual da saúde portantes nos cuidados da qualidade do final da vida (Morais, 2006). (Pessini; Bertachini, 2004). Ao assistir um paciente O surgimento de uma doença grave, sem probabi- que está morrendo, a equipe de enfermeiros precisa lidades de cura, consiste em situação problemática que reconhecer os estágios desse processo, bem como as mobiliza os aspectos psicossocioespirituais do paciente condições emocionais, para poder entendê-lo melhor. para o seu enfrentamento. A morte provoca nos indiví- Precisa respeitar suas fases e não forçar a aceitação da duos reações diferentes, constituindo-se num complexo morte. O medo da morte diminui quando há ajuda, processo. Em relação à morte e ao processo de morrer, diálogo e aconselhamentos. Para o paciente estar pron- cada sociedade tem seus próprios comportamentos, to a aceitar a morte, precisa se sentir bem, recebendo hábitos, crenças e atitudes, que fornecem aos indivíduos conforto em suas dores, desejos e anseios. uma orientação de como devem se comportar e o que Seria necessário criar espaços para que os profis- devem ou não fazer, o que reflete, dessa forma, a cul- sionais falem das angústias e tristezas e possam elaborar tura própria de cada região, diferenciando-a de outras esses sentimentos, o que os ajudaria a se preparar melhor (Gutierrez, 2007). para lidar com o processo de morrer dos pacientes. Isso O modelo paliativo é centrado no paciente em si, permitiria a discussão sobre suas vivências relacionadas à sendo importante a atenção não apenas às necessidades morte e ao morrer, as quais contribuiriam para formular físicas, mas também às necessidades psicológicas e espi- estratégias enriquecedoras para os serviços (Shimizu, rituais (Brandão, 2005). Esse cuidado mais abrangente 2007). do que somente tratar o corpo pode ser incluído nas Estudar as concepções culturais do processo saúde- tarefas da Enfermagem, principalmente porque a mesma doença-morte nas diferentes sociedades pode possibilitar tem mais contato com o paciente do que o profissional aos profissionais de Enfermagem a compreensão de que exerce a função de assistente espiritual. Sendo o seus próprios valores e crenças diante do processo de cuidado espiritual importante, a Enfermagem pode se morrer e da morte, bem como de suas atitudes e ações instrumentalizar para integrá-lo em sua atividade diária. relacionadas às questões do cotidiano que influenciam Esse cuidado não supõe um tempo específico, mas se a sua vida pessoal e profissional. Porém, a doença deve faz presente na relação e no modo do enfermeiro estar ser enfrentada como experiência humana, representando presente, ouvir, orientar e realizar técnicas junto ao um processo contínuo de aprendizado e crescimento, paciente (Selli; Alves, 2007). no qual o paciente, família e profissionais de saúde Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010 359 360 ALVES, J.S. • Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos necessitam adequar seus comportamentos, sempre que espaço para eles, esclarecendo suas dúvidas, entendendo- isso for necessário, visando a uma melhor qualidade de os, aliviando, assim, seus anseios e nunca deixando-os vida (Gutierrez, 2007). sem esperança. São importantes, também, estudos que possibi- Lírio, Rosa, Girassol, Azaleia e Flor do Campo litem aos profissionais de Enfermagem desenvolver o entendem que é importante permanecermos ao lado do autoconhecimento, além de intervenções que auxiliem a paciente, ouvindo-o, buscando entender o que acontece assistência ao paciente e familiares diante do processo de com ele, deixando-o falar o que quiser, encorajando-o morrer, minimizando o seu próprio sofrimento psíquico e animando-o. Essa compreensão é sintetizada na se- e auxiliando o desenvolvimento de estratégias coletivas guinte fala: de enfrentamento (Gutierrez, 2007). O paciente precisa se sentir seguro, ter confiança Podemos auxiliar o paciente à aceitação da na equipe de profissionais que o trata, ter a segurança de morte na comunicação verbal e não-verbal, uma companhia que o apoie e não o abandone (Aldeia, abrindo espaços para falar de sua situação, 1994). A fé, diante de situações difíceis para se assistir com isso o paciente muitas vezes chega a fazer um paciente em fase terminal, apresenta-se como fonte um balanço de sua vida, e podemos ajudar a de paz e esperança, tanto para os profissionais como encontrar a paz interior. (Azaleia). para os pacientes. Nessas condições, proporciona-se o cuidado espiritual, tão importante e necessário (Selli; Alves, 2007). Pacientes terminais sabem intuitivamente que estão morrendo e precisam expressar sua dor, sendo compreendidos (Klebis, 2006). Muitas vezes, a equipe de Enfermagem acredita que, falando, estará ajudando o Direito de saber ou não o diagnóstico e de ser ouvido Quanto ao direito do paciente terminal de saber paciente terminal a diminuir suas ansiedades e se esquece de que ele quer, acima de tudo, ser ouvido. a verdade sobre sua saúde, Lírio e Rosa destacam a É na prática de ouvir o outro que a equipe de importância das informações e esclarecimentos, os Enfermagem é essencial no cuidado (Ferreira, 2006). quais devem ser transparentes e abertos. Apontam que Não falar é importante e saber ouvir, mais ainda. Talvez o paciente tem não só o direito de saber a verdade, mas tenhamos que deixar de lado nossas crenças e ideias sobre também o direito de decidir sobre si mesmo. É preciso a vida para aprender sobre ela em sua plenitude (Silva, respeitar sua liberdade de consciência. 2002). Ouvir o paciente é uma das melhores maneiras Num passado recente, acreditava-se que quanto de conhecê-lo para poder ajudá-lo. Precisamos estar menos o doente soubesse da sua condição maiores seriam dispostos a ouvir pacientemente tudo aquilo que ele as chances de recuperação (Pessini, 1995). O paciente falar e entender, nas entrelinhas, a mensagem dos seus ou o seu responsável têm o direito de saber todos os silêncios. Do contrário, se ele não puder se expressar, dados a respeito de seu corpo, de sua saúde ou de sua se sentirá solitário. doença, uma vez que o corpo, a saúde e a doença lhe Ficou evidenciada por Girassol a necessidade de pertencem (Gauderer, 1993). Os pacientes terminais já manter o paciente esperançoso, proporcionando a ele sabem seus diagnósticos e gostariam de falar sobre isso. todo o tipo de apoio e assistência que desejar. A fala de Cabe-nos encontrar o jeito certo de proporcionar esse Margarida denota que é importante levar o paciente a Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010 ALVES, J.S. • Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos sentir satisfação pelo que adquiriu na vida, aproximar Não só o respeito à sua pessoa, mas principalmente os amigos que fizeram parte dela e que não vê há muito à sua crença. Crisântemo, Margarida, Azaleia e Flor do tempo, bem como preparar e ajudar a família à qual Campo sinalizam a mesma compreensão e seguem di- pertence. zendo que o cuidado espiritual não é momento para se Flor do Campo considera que o paciente, em fase fazer discurso sobre religião, defendendo doutrinas. final, deve ser ajudado a enfrentar a morte da forma Rosa ressalta que, ao fazermos o serviço pastoral, mais humana possível, satisfazendo suas necessidades devemos ter em mente que o cuidado espiritual é para de calor humano e de respostas reivindicadoras, ofe- todos, independente da crença religiosa. recendo tudo para uma morte tranquila, assumida com dignidade. A equipe de Enfermagem, ao manter grande respeito e reverência por sua subjetividade, por seu mundo Girassol salienta sobre a importância de solicitar alguém da mesma fé do paciente para assisti-lo, jamais aproveitando esse momento de doença e fragilidade para impormos nossa crença. interior – e também pela subjetividade e pelo mundo O ato de cuidar implica o estabelecimento de inte- interior do paciente – oportuniza condições de cuidado ração entre sujeitos (quem cuida e quem é cuidado) que de modo humanizado (Vianna; Crossetti, 2004). Em participam da realização de ações, as quais denominamos tal humanização, se enquadra o cuidado espiritual, tão cuidados, sendo a verdadeira essência da Enfermagem importante nesse momento do paciente terminal. O (Ferreira, 2006). O vínculo criado entre o enfermeiro acolhimento, na fase de terminalidade, pode diminuir e o paciente facilita o cuidado espiritual por aumentar a ansiedade e o medo. A equipe de Enfermagem tem o a confiança e a comunicação entre eles (Selli; Alves, objetivo de atender o paciente da forma mais humana 2007). Ao cuidar do paciente, a equipe tem o papel de possível, considerando não só sua situação física, mas ser neutra no que se refere às crenças religiosas, além de também suas necessidades globais. não impor suas ideias e respeitá-lo, agindo, assim, com acolhimento e amor, para que o paciente possa sentir que é amado, independentemente de suas condições. Cuidado espiritual independente de crença religiosa A religiosidade e a espiritualidade sempre foram Quanto à equipe de Enfermagem prestar um consideradas importantes aliadas das pessoas que estão cuidado espiritual ao paciente terminal, independente doentes (Fleck et al., 2003). A saúde espiritual do pa- da crença religiosa, Lírio, Rosa, Margarida e Flor do ciente terminal é tão importante quanto sua saúde física, Campo afirmam que é essencial falar sobre o amor, não mental e social. Porém, a crença do paciente terminal importando a convicção. não é importante nessa fase de sua vida; o que importa O respeito ao paciente como pessoa deve prevalecer. É necessário conhecer profundamente sua história, não impondo ideias e crenças. é ser aceito e ouvido com solidariedade. A doença é vista como a presença de algo na vida do ser humano que o tira do seu bem-estar físico, mental e espiritual, uma vez que ele é a soma dessas partes (Mar- Tenho que conhecê-lo, digo, investigar sua his- tins, 2004). As reações de estresse do paciente variam tória, pelo menos alguns dados mínimos, através de indivíduo para indivíduo, tornando-se evidente a dele ou de sua família. Sempre respeitá-lo como necessidade de acolhimento e valorização da pessoa nesse pessoa, não impor nada. (Girassol). momento (Glanzner, Zini e Lautert, 2006). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010 361 362 ALVES, J.S. • Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos Quando estamos doentes, nos sentimos fracos. Concluiu-se também, a partir da percepção dos Porém, podem existir partes que continuam maleáveis ministros religiosos, que a equipe de enfermeiros neces- e cheias de recursos e partes que podem mesmo ter cres- sita de conhecimentos sobre a fase em que o paciente cido e se desenvolvido numa reação de crise. Quando se encontra para poder atendê-lo melhor e não forçá-lo essas partes estão presentes e são reconhecidas, a sua força a aceitar a doença, que é o último estágio do processo em cada pessoa pode ser despertada para lidar com o de morrer. Deve-se deixá-lo fazer seu próprio processo, problema, ajudando no restabelecimento do bem-estar que é singular e único para cada indivíduo. (Remen, 1993). Os pacientes no leito de morte sentem-se sozinhos, A enfermeira, com base nos fundamentos de angustiados e até mesmo revoltados, necessitando de seu saber técnico, busca o que entende ser bom para alguém que os ouça, entenda e transmita o conforto o paciente, promovendo o bem-estar e protegendo de que necessitam. Por isso, os ministros religiosos su- os interesses deste. Porém, ao fazer isso, não pode gerem que é preciso uma conscientização da equipe de desconsiderar a manifestação da vontade, dos desejos, Enfermagem quanto à importância do apoio espiritual dos sentimentos, das crenças e das opções de cada um aos pacientes terminais e, acima de tudo, um profundo (Zaboli; Sartório, 2006). respeito e interesse pelo bem-estar destes. É preciso Diante de um paciente terminal, não são propícios humanizar e resgatar valores subjetivos. ou benéficos discursos religiosos – ou mesmo a expressão Com base nos resultados obtidos, a equipe pode de nossa doutrina e crença, sejam elas quais forem – mas auxiliar o paciente terminal no seu processo de morrer, sim o acolhimento e escuta do paciente. Isso faz parte do incluindo, em suas tarefas, o cuidado espiritual. O atendimento da Enfermagem e proporciona ao paciente vínculo criado entre enfermeiro e paciente facilita o cui- a passagem por sua situação de terminalidade com mais dado espiritual, pois amplia a confiança e comunicação tranquilidade e menos angústia. entre ambos. A Enfermagem tem um contato pessoal e contínuo com o paciente, além de uma convivência mais simples com a morte, pois não representa para si conclusões uma derrota profissional. Conforme os entrevistados, é necessário ouvir o paciente terminal, entendê-lo e deixá-lo falar o que qui- A dimensão espiritual formará um novo paradigma ser. Precisamos respeitar seus sentimentos, suas mágoas, social. Cada vez mais se reconhece que a fé ajuda no desânimo e até mesmo sua revolta e agressividade, sem processo de recuperação da saúde e enfrentamento da julgá-lo ou pressioná-lo. Ele precisa expressar sua dor e doença. Neste estudo, concluiu-se que a espiritualidade ser compreendido. Ouvi-lo é estar atento às suas neces- beneficia a saúde integral da pessoa e capacita o profis- sidades, é expressar o interesse em ajudá-lo, é entender, sional a lidar com o paciente terminal. nas entrelinhas, a mensagem dos seus silêncios. A partir das verbalizações dos sujeitos analisados, Os dados demonstraram que é fundamental um concluiu-se que a equipe de Enfermagem tem uma profundo respeito à crença religiosa do paciente, a fim contribuição singular no atendimento das necessidades de que ele possa acreditar que será auxiliado, aliviado e espirituais de pacientes terminais como meio de enfren- confortado, independentemente de sua crença ou reli- tamento diante da terminalidade. gião. A ampla abertura espiritual por parte dos ministros Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010 ALVES, J.S. • Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos religiosos, e até mesmo dos profissionais de Enferma- Fleck, M.P.A. et al. Desenvolvimento do WHOQOL, mó- gem, evita a dominação e favorece o ecumenismo. dulo espiritualidade, religiosidade e crenças pessoais. Revista A integração entre ciência e espiritualidade tem de Saúde Pública, v. 37, n. 4, p. 446-455, ago., 2003. grande importância para o paciente terminal. Muitos Gauderer, E.C. Os direitos do paciente: um manual de sobre- estudos têm fornecido uma atenção mais especial à vivência. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1993. dimensão espiritual, pois a espiritualidade pode surgir como um recurso interno de aceitação da doença e de sentimentos dolorosos do paciente terminal. O cuidado espiritual é uma tarefa difícil, pois ao assistir um paciente terminal, estamos nos deparando com sua morte e, assim, nos lembramos da nossa própria finitude. A palavra morte constrange e deprime. Não é fácil ajudar a morrer confortavelmente. A análise dos dados demonstrou que atender o paciente terminal caracteriza um desafio. É um momento que exige formação, maturidade, serenidade, habilidade e sensibilidade às reais necessidades do outro. Glanzner, C.H.; Zini, L.W.; Lautert, L. 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Recebido: Maio/2008 Aceito: Março/2010 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica A review on the express understanding of reality in mental health care in the second critical social theory Silvia Maria de Oliveira Mendes 1 Assistente social da Prefeitura de Juiz de Fora (MG); professora colaboradora do Núcleo de Assessoria, Treinamento e Estudos em Saúde (Nates) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) para realização do curso de especialização em Saúde Mental; Especialista em Serviço Social Aplicado à Saúde Coletiva pela UFJF; especialista em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais (ESP-MG); Mestre em Serviço Social pela UFJF. [email protected] 1 RESUMO Este artigo teve como objetivo promover uma revisão crítica de outros dois artigos publicados na Revista Saúde em Debate (v. 32, n. 78/79/80, 2008) e na Coleção Loucura e Civilização: ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade (2000). Tais artigos utilizaram categorias teóricas do campo marxista para analisar a realidade expressa na assistência em saúde mental, e a revisão identificou a existência de equívocos envolvidos na apresentação de um dos autores examinados e acertos na utilização dos conceitos matizados pela filosofia materialista histórica de outra autora. O artigo consiste em uma revisão dos conceitos envolvidos no debate com os autores referenciados, bem como de sua utilização na análise que procedem, fornecendo análises da conjuntura, no campo da saúde mental, de acordo com a teoria social crítica. PALAVRAS-CHAVE: Materialismo histórico; Dialética; Saúde Mental. ABSTRACT This article aimed to promote a critical review of two articles published on previous issues of Revista Saúde em Debate (v. 32, n78/79/80, 2008) and on the Coleção Saúde e Civilização (2000). These articles used Marxist theoretical categories of the field to examine the reality expressed in the mental health care, and the review identified the existence of ambiguity involved in the presentation of one of the authors, and successes in the use of concepts qualified by historical materialist philosophy of another author. The article is a review of the concepts involved in discussions with the authors mentioned, and the use of those engaged in the analysis, providing analysis of the situation in the field of mental health according to critical social theory. KEYWORDS: Historical materialism; Dialectics; Mental health. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 365 366 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica I N T R O D U ç ão representações intelectuais da época, a infraestrutura dessa sociedade (sua base econômica ou material) que, por sua vez, determina a superestrutura (instituições Tendo como ponto de partida os textos dos autores políticas, jurídicas e ideológicas). Costa Rosa (2000) e Hirdes (2008), e respaldando-se Partindo dessas concepções, foi feita uma discussão na teoria marxista, procurou-se aprofundar algumas acerca das principais categorias teóricas relacionadas ao concepções adotadas por esses autores, buscando uma debate decorrente da revisão crítica que se segue, tendo maior compreensão da totalidade social, categoria-chave como sustentação a produção de autores do campo nas abordagens cujas concepções se fundamentam no marxista. materialismo histórico, uma teoria do conhecimento à qual se referem os autores citados na sua análise sobre a assistência produzida em saúde mental com enfoque DISCUSSÃO DAS CATEGORIAS TEÓRICAS privilegiado na atenção psicossocial. Nesta discussão, buscou-se fornecer elementos sobre a obra elaborada por Karl Marx e Friedrich Engels, A categoria ‘totalidade social’ é uma criação da a partir da qual produziram fecunda crítica à sociedade filosofia materialista; é o esforço de perceber uma tota- capitalista, demonstrando as contradições geradas pelas lidade que é produto das transformações do homem, de assimetrias nas relações de classes. O campo marxista si mesmo e da natureza. No processo de produção dos identificou como metodologia de análise desta realidade objetos pelo homem a partir da transformação da natu- o materialismo histórico. reza, os objetos também o transformam. O homem real A filosofia materialista histórica veio descorti- é aquele que produz a sua base material de vida; entre o nar o conhecimento desde a concepção idealista que sujeito e o objeto há a práxis social. Para o materialismo incorporava o misticismo como categoria explicativa histórico, o modo de produção em determinada época da realidade; parte-se da ideia de que a gênese de tudo permite destacar totalidades parciais. Na medida em que é a natureza, não a providência. Sustenta-se que o a realidade social é criada pelos homens em constante conhecimento só se revela a partir da consideração da relação entre si e com a natureza, é preciso considerar centralidade da ação concreta do homem sobre a na- as condições materiais da reprodução da vida. tureza e das relações sociais decorrentes desse processo Lefebvre (1955, p. 33), ao discutir “a noção de histórico em transformação. Sendo o homem aquele totalidade nas Ciências Sociais”, nos esclarece que se que transforma, cria e recria a realidade à sua volta, a trata essencialmente de uma noção filosófica que intenta totalidade em movimento, ele se constitui então como alcançar a representação do Universo enquanto totali- sujeito dessa práxis social1. dade. O materialismo histórico adota a compreensão de A crença materialista histórica postula que o modo totalidade social enquanto categoria aberta, que implica como uma sociedade realiza sua produção material o estudo de processos historicamente determinados e em uma época determina sua organização política, as constantemente superados pelo movimento dialético. 1 “Para denotar que o ser social é mais que trabalho, para assinalar que ele cria objetivações que transcendem o universo do trabalho, existe uma categoria teórica mais abrangente: a categoria de práxis. A práxis envolve o trabalho, que, na verdade, é o seu modelo – mas inclui muito mais que ele: inclui todas as objetivações humanas”. (Netto; Braz, 2006, p. 43). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica Os acontecimentos, fatos da realidade total, dão-se é preciso separar o essencial, atingir a neces- num determinado tempo e num determinado espaço, sidade, o determinismo; a Lei. (Lefebvre, sendo assim uma totalidade aberta que se relaciona com 1955, p. 40). outros fatos da mesma realidade social que altera, e é alterada pela práxis social. Para este autor, existe uma Este autor destaca que, segundo Hegel, a lei é “o interpenetração contínua da filosofia com a ciência que reflexo do essencial no movimento do universo” (apud é identificada na história da produção de conhecimento. Lefebvre, 1995, p. 40). Assim, a totalidade contém as De acordo com Lefebvre (1955), a noção de Totalidade Leis, os fenômenos (manifestações), os movimentos e enquanto “unidade e multiplicidade indissoluvelmente as relações entre todos os acontecimentos. O fenôme- ligadas, constituindo um conjunto ou um todo” (p. no é mais abrangente que a lei, pois, além de contê-la, 35) móvel e aberto, corresponde à forma naturalista contém o movimento, o devir e sua essência. O mundo ou materialista (p. 36), implicando “aprofundamento fenomenal produz reflexo e reflexão sobre ele, repercu- filosófico da objetividade” (p. 36-37), lembrando que, tindo sobre si próprio e sobre o conhecimento humano “o concreto humano é a vida real dos seres humanos, na a seu respeito. O aspecto contraditório do fenômeno faz sua infinita complexidade”. Para o autor, o importante, com que, ao mesmo tempo em que ele se revela, seja no que se refere ao estudo das Leis e da “essência”, não dissimulado: é tê-las como um fim em si mesmas, mas interessar-se De acordo com a teoria marxista, Lefebvre (1955, pelo desvelamento do real que deve ter por objetivo p. 47) comenta a noção de totalidade presente nas obras “compreender e servir o humano” (p. 43-44). da juventude de Marx, caracterizando-a como profun- Opõe-se a essa visão de totalidade a visão cartesiana, que concebe o homem e o humano como “totalidade damente original, presente, por sua vez, na noção de “homem total”: na totalidade do universo” (Lefebvre, 1955, p. 37), marcando uma compreensão unilateral e incompleta, O indivíduo é social, sem que se tenha o direito determinada “pelo e no conhecimento” (Lefebvre, de fixar pelo pensamento a Sociedade numa 1955, p. 37), desprezando-se aspectos como sentidos, abstração exterior a ele. Nem a natureza e a práticas e a vida social, não havendo mediação entre o vida biológica, nem a vida da espécie humana indivíduo e o universo. e a sua história, nem a vida individual e a Para Lefebvre (1955), o desenvolvimento da teoria vida social se podem separar. O homem é tota- marxista evidenciou a contradição interna à noção de lidade. Através das suas necessidades e dos seus Totalidade, presente em Hegel, traçando o caminho do órgãos, através dos seus sentidos e das suas mãos, conhecimento do fenômeno à lei, da aparência à essência através do seu trabalho, através da práxis que o a ser desvelada. transforma transformando o mundo, o homem apropria-se totalmente de toda a natureza e da O imediato, fenômeno ou fato, não se basta, sua própria natureza. pois é apenas manifestação, aparência. É preciso ir mais longe, ou melhor, mais fundo Assim como Lefevbre (1955), Kosik (1976, p. e trabalhar para descobrir o que se esconde, 33) considera a categoria totalidade como uma posição não por detrás dele, mas nele. Para conhecer abrangente diante da realidade, compreendendo-a “nas Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 367 368 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica suas íntimas leis”, desnudando a essência e as conexões ou ciência. Esta situação pode ser evitada com o esta- internas “sob a superfície e causalidade dos fenômenos”. belecimento da autoconfiança através da ligação com Afirma também que a perspectiva da totalidade permite o conceito de práxis, no qual o sujeito se aproveita de a compreensão dialética das leis e da causalidade dos algum conhecimento, e cuja interferência no mundo fenômenos. Para este autor, a concepção de totalidade provoca a transformação da realidade e, como conse- é dialética, sendo que Marx a tornou “um dos conceitos quência, do sujeito. centrais da dialética materialista” (p. 34). Kosik (1976, p. 36) afirma que a dialética da Para Marx, os homens, sujeitos da práxis, totalidade concreta “é uma teoria da realidade e do co- se servem daquilo que conhecem ou julgam nhecimento que dela se tem como realidade”. A postura conhecer. Na práxis, o sujeito age conforme de considerá-la um método que possibilita “conhecer pensa; a prática ‘pede’ teoria, as decisões todos os aspectos da realidade” fornecendo um “quadro precisam ter algum fundamento consciente, ‘total’ da realidade, na infinidade dos seus aspectos e as escolhas devem poder ser justificadas. propriedades” é ingênua. Na práxis, o sujeito projeta seus objetivos, A dialética é o movimento que caracteriza a evo- assume seus riscos, carece de conhecimentos. lução materialista da história, e significa pensar e com- [Marx] afirma que os mistérios em que a preender a realidade como essencialmente contraditória, teoria tropeça são solucionados na práxis na qual a luta dos contrários levam à permanente trans- e na compreensão da práxis. (Konder, formação da realidade. Konder (2003), na sua discussão 2003, p. 3). sobre dialética, afirma que superar o mal-entendido que existe sobre esse tema, em geral, pode ser impossível, pois tal mal-entendido: Essa visão indica que a dialética marxista possibilita a articulação entre a crítica das ideologias e a práxis, evitando a distorção ideológica: [...] brota incansavelmente das brechas que sempre existem na articulação entre o nosso [...] se a práxis não se ligar a uma constan- saber e o real; ele aproveita a inesgotabilidade te crítica das ideologias, ela degenera em do real, a irredutibilidade do real ao conheci- pragma. De fato, as três se condicionam mento. (p. 1-2). reciprocamente; a práxis precisa da crítica das ideologias para melhorar o conhecimento Para o autor, “a construção do conhecimento ne- com base no qual se orienta; a crítica das cessita de desconfiança em relação a si mesma e também ideologias precisa ao mesmo tempo contribuir de autoconfiança”. para a orientação e para o questionamento da Konder (2003) afirma que, em Marx, a dialética práxis. Cada uma das duas, então, precisa da pode auxiliar no atendimento dessas necessidades, outra. E ambas necessitam da dialética (como uma vez que elucida a ligação entre a desconfiança e a a dialética necessita de ambas). O conceito de ideologia, ou seja, pode haver uma sutil distorção ideo- práxis é decisivo na distinção entre a dialética lógica que impeça o sujeito de perceber sua infiltração de Marx e a do seu mestre, Hegel. (Konder, no pensamento em dado ponto de vista, em dada razão 2003, p. 2). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica Para Konder (2003), é necessário reconhecer que a produção capitalista da vida material, que condiciona a dialética é mais ampla do que o marxismo, e a compre- vida social, política e espiritual, constituindo um método ensão dialética da realidade não depende dessa tradição. de análise da realidade, caracterizada (a realidade é que Porém, o método materialista histórico depende da é moderna) pela modernidade, apesar de alguns autores compreensão marxista da dialética. e estudiosos acreditarem que a pós-modernidade, um movimento de superação da modernidade, também superou a compreensão marxista da história, decretando o capitalismo como fim da História. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Diante do exposto, com base nos autores de referência deste estudo, considera-se crucial para a compreUtilizando-se da ciência dialética, Marx buscou ensão materialista da história o posicionamento segundo verificar, na história das realizações humanas, a sucessão o qual as relações assimétricas, causadas pela exploração de fatos encadeados no tempo, cujas contradições deter- do trabalho no modo capitalista de produção, implicam minavam a superação e a transformação num fato novo. a estruturação da sociedade, determinando contradições O processo histórico de desenvolvimento humano levou e confrontos nas relações entre diferentes classes sociais. ao desenvolvimento das forças produtivas, determinadas A práxis social, incluindo os estudos investigativos, pelo modo de produção de cada época (por exemplo, o constitui a maneira pela qual os homens transformam a capitalismo como superação do feudalismo). natureza e a si próprios, mas que também, pela ação da A concepção materialista da História orienta-se ideologia dominante, pode repercutir no reforço dessa por esses princípios, sendo que o modo de produção mesma ideologia, contribuindo para que a essência dos material de uma dada sociedade determina como ela se fenômenos permaneça escondida se à práxis não se ligar organiza política, social e economicamente, bem como a crítica permanente às ideologias. define suas representações em dado momento histórico. A realidade está em constante transformação devido às suas contradições internas, cujas relações sociais, de- A ABORDAGEM DA ASSISTÊNCIA EM terminadas pelo modo de produção, são sua principal SAÚDE MENTAL SEGUNDO CATEGORIAS expressão, havendo nos processos de reificação dessa MARXISTAS 2 realidade os principais conteúdos a serem desvelados. A ideologia, como já dissemos, é a principal forma de desvirtuamento da realidade que expressa por meio dos fenômenos a sua aparência. Utilizando-se de categorias teóricas do campo marxista, Costa-Rosa (2000) busca realizar uma análise A dialética materialista, fundada por Marx e de fatos da realidade expressa na assistência em saúde Engels, compreende o movimento histórico como de- mental. Considera-se, aqui, que a análise do autor neces- rivação das condições materiais de vida. O materialismo sita de uma revisão crítica, uma vez que apresenta pontos histórico desvela as relações pertinentes ao modo de polêmicos. Sabe-se, contudo, que este tipo de análise 2 “[...] o fenômeno da reificação (em latim, res = coisa; reificação, pois, é sinônimo de coisificação) é peculiar às sociedades capitalistas; é mesmo possível afirmar que a reificação é a forma típica da alienação (mas não a única) engendrada no modo de produção capitalista. O fetichismo daquela mercadoria especial que é o dinheiro, nessas sociedades, é talvez a expressão mais flagrante de como as relações sociais são deslocadas pelo seu poder ilimitado (Neto; Braz, 2006, p. 93, grifos dos autores). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 369 370 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica pode implicar repetições e contribuição ao ecletismo que uma forma de produção de assistência é alternativa a tem representado, para a filosofia materialista histórica, outra, isso pressupõe uma contradição. Considera-se, distorções na compreensão da realidade social. aqui, que essa concepção fundamenta-se na crença de Costa-Rosa, no texto de referência, busca caracteri- que uma contradição pode ser considerada sem levar em zar e conceituar as formas de produção em saúde mental conta seus determinantes histórico-estruturais, podendo nos aspectos político-ideológico e teórico-técnico, como passar, na visão do autor, de um estágio “de uma dife- define, sob o ponto de vista das contradições que deter- renciação não-essencial das ‘visões’ e dos interesses em minam o confronto entre os paradigmas que conformam jogo” para um estágio de “diferença essencial”. Porém, a assistência em saúde mental – o modo asilar e o modo de acordo com o autor: psicossocial , opondo um ao outro. A intenção aqui é 3 discordar da visão do autor que percebe duas realidades Somente aquelas diferenciações capazes de se diferentes, afirmando que as contradições presentes em manifestar com força radical, a ponto de im- um e em outro modo de assistência são determinadas primir a determinado fenômeno um sentido por uma mesma realidade que corresponde ao ‘todo contrário àquele seguido até então, poderão social’. Por essa razão, não se restringem a uma das requerer o estatuto de contradição (p. 143). formas de produção em saúde mental as contradições imanentes das relações estabelecidas, especificamente O autor afirma que essa é uma visão dialética de ao modo asilar, segundo Costa-Rosa. É ilusório separar uma contradição. Costa-Rosa tem concepções sobre partes desse todo, atribuindo-lhes leis que não estejam ‘forças motrizes’ que, nas formações sociais, possibilitam em inter-relação. Se determinadas práticas são substitu- a passagem “de um estágio de desenvolvimento a outro, tivas ou alternativas a outras em dado fenômeno social, mudando radicalmente as suas características essenciais” constituídas em um mesmo período histórico (capita- (p. 144). lismo), elas fazem parte de uma mesma realidade social. Discutindo essas ideias, salienta-se primeiramente: Analisar as influências dessa realidade sobre as partes de acordo com a crença materialista histórica, as relações que se relacionam e os efeitos das práticas sociais sobre da sociedade capitalista estão eivadas de contradições, a realidade constituem um momento importante para explícitas e implícitas, sendo que a ideologia dominante análise. Retomando Lefebvre (1955, p. 40), é preciso cumpre o papel de inibir a reflexão crítica, distorcendo e descobrir o que se esconde não por trás do fenômeno, escamoteando as contradições sob os véus da alienação e mas nele. reificação dessa realidade, como dito antes. Contradição, Discutindo as categorias de análise de seu estudo, no sentido amplo designado pela condição de fenômeno Costa-Rosa (2000) aproxima o sentido de “alternati- social, não é diferença, mas gera desigualdades devido vidade” do conceito de “contradição”, dizendo que se ao choque de interesses subjacente ao ordenamento 3 Costa-Rosa (2000) considera que o modo asilar concebe o sujeito como doente e, por esse motivo, as intervenções recaem sobre a doença, desconsiderando subjetividades e necessidades, isolando esse indivíduo “como centro do problema” (p. 152). Decorre desta situação a medicalização como prioritária e intervenções multiprofissionais desconectadas de um objetivo comum, sendo o hospital psiquiátrico fechado o locus institucional modelar e central, mesmo que se ligue a serviços extra-hospitalares que, em muitos casos, funcionam na lógica hospitalocêntrica, reproduzindo práticas asilares. E o modo psicossocial concebe o sujeito portador de transtornos como centro das intervenções e participante deste planejamento. As ações deverão se dar de forma interprofissional, voltando os esforços do tratamento para a reintegração sociocultural, e as intervenções sobre o tecido social, já que a loucura, nesta perspectiva, na visão do autor, “não é um fenômeno exclusivamente individual, mas social e como tal deverá ser metabolizada” p. 154). O locus institucional modelar deste modo de tratar compõe-se de serviços abertos inseridos na comunidade (Caps, serviços residenciais, centros de convivência etc.). As manifestações da loucura são consideradas parte da existência e elementos constitutivos dos sujeitos. Essas concepções correspondem às concepções pertinentes ao campo da reforma psiquiátrica. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica burguês. Também não deve ser comparada ao conflito apesar de representar inequívoca evolução no trata- que pode ser solucionado pelo consenso. As contradi- mento da loucura, reflete as contradições próprias ao ções carregam consigo uma essência primordial, que se ordenamento burguês nas práticas sociais pertencentes refere à condição de classe, às assimetrias provocadas ao seu campo. pela exploração do trabalho alheio que gera, para um Saraceno (1999, p. 63) afirma que a ciência psiqui- lado, lucro e riqueza; para outro, alienação, pobreza e átrica possui significado “antigo e imutável”, permitindo despossessão. As contradições presentes na assistência a legitimação de práticas que perpetuam a expropriação em saúde mental – tanto asilar quanto psicossocial – dos indivíduos loucos, tornando-a independente das referem-se à condição de classe dos assistidos, à condição condições socioeconômicas do lugar onde se instale a de classe de quem os assiste e ao papel das instituições situação que iguala todos os manicômios do mundo. no Estado capitalista burguês. Em segundo lugar, argumenta-se que a compre- Existe uma lógica que explicita esta situação, ensão dialética se fundamenta na premissa básica de estando fundamentada na ordem societária que todo fato novo carrega a essência do fato superado, burguesa. [...] Esta ordem não é autônoma, é o que corresponde à síntese do que era antes com o inerente ao capitalismo. A ordem que iguala que foi contraposto. Se essa premissa é compreendida a condição dos hospícios em todos os cantos do sob o ponto de vista da compreensão materialista mundo, lugar de pobreza e miséria, no sentido histórica da situação analisada pelo autor no que diz de privação daqueles que lá se encontram inter- respeito às contradições geradas pela assistência pres- nados e dos recursos terapêuticos a eles destina- tada pelas instituições correspondentes às formas asilar dos, também iguala a condição dos pobres, em e psicossocial – uma em oposição à outra –, devemos qualquer lugar do mundo. Ou seja, à pobreza considerar este fato como uma totalidade parcial de um não se faz distinção; às mesmas condições são todo social, pois desde que a psiquiatria foi inventada submetidos e com os mesmos recursos degradados (entendendo-a como campo multidisciplinar), e com ou ausentes são aviltados nas suas necessidades. ela as formas de tratamento da loucura, nosso mundo (Mendes, 2007, p. 54). se encontra na modernidade, fundada pela sociedade capitalista burguesa. Portanto, as formas de atenção A lógica de que lugar de louco pobre é no asilo psicossocial, bem como o tratamento asilar, inserem-se perpetuou-se na sociedade moderna, embora alguns num contexto caracterizado pelo modo de produção de lugares promovam mudanças significativas na condição uma época histórica, permitindo destacar totalidades de tratamento desses indivíduos, permanecendo, no parciais, partes de uma mesma realidade que se inter- entanto e em geral, a condição de pobreza. Saraceno relacionam, não sendo possível ‘mudanças radicais’ (1999, p. 65) nos dá uma visão global sobre a situação das características essenciais desses fenômenos, deter- da pobreza dos e nos asilos, mesmo com o advento da minadas pelas leis que regem as relações capitalistas atenção psicossocial: burguesas. Em seus aspectos essenciais, a sociedade burguesa Pode parecer paradoxal, mas certamente eram produz contradições que acarretam implicações para melhores os manicômios milaneses do início de a assistência em saúde mental. O modo psicossocial, 1900 do que os de hoje e assim, provavelmente, Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 371 372 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica em todas as partes do mundo, na medida em Essa é a realidade de que se trata aqui. A questão que eram mais pais normatizadores do que gira em torno de saber se a ideologia psiquiátrica mo- patrões violentos: à diminuição da ‘violência derna poderá ser superada no contexto de dominação direta’ sobre os pacientes corresponde um burguesa. E, nesse sentido, como a situação de pobreza crescimento da ‘violência indireta’ (miséria em que se encontram os sujeitos dos quais trata, nos e abandono); a diminuição da organização asilos e serviços substitutivos, poderá deixar de ser um rígida e asilar [...], conduz à cultura do cárcere impedimento para sua emancipação. que caracteriza o manicômio atual (misé- A abordagem do papel do Estado nas relações ria, relações violentas, anomia, abandono). capitalistas torna-se importante para prestar maiores (Saraceno, 1999, p. 65). esclarecimentos. Na abordagem de Costa-Rosa (2000) sobre as Aqui é retomada a indicação desse autor: a so- concepções acerca das instituições do Estado burguês, ciedade burguesa vem legitimando um sentido “antigo considera-se que o autor acabou por minimizar o e imutável” da psiquiatria. Afirmando que a raciona- comprometimento desse Estado com os interesses lidade instrumental configura o estágio da sociedade que representa, apesar de mencionar sem discutir, as capitalista (Mendes, 2007), ressalta-se que as relações contradições do contexto refletidas nas práticas que sociais se caracterizam pela exploração, alienação e se desenvolvem a partir dessas instituições. O autor violência, cujos mecanismos de sujeição refletem-se parte do pressuposto de que a sociedade “é articulação na expropriação, de interesses divergentes” (p. 145). Quanto a isso, destaca-se que a teoria crítica-dialética postula que [...] com o aprofundamento das desigualdades, a sociedade está dividida em classes com interesses despersonalização e anonimato social, situações antagônicos, sendo impossível ‘articular ou conci- que são expressão das contradições inerentes à liar’ as contradições essenciais que emanam dessa razão contemporânea que configuram a barbá- realidade. rie. (p. 54-55). Para que seja possível a reprodução dessa sociedade, as relações entre capital e trabalho necessitam Então, transpondo a afirmação de Saraceno ser metabolizadas, e o Estado, ao longo da história do (1999), a substituição da “violência direta” pela “violên- desenvolvimento capitalista, desempenha um impor- cia indireta”, nos asilos e fora destes, “corresponde ao tante papel. Não se trata de considerar as instituições processo de agudização da barbárie que atinge a todo o do Estado como “simples efeitos da base econômica corpo social” (Mendes, 2007, p. 55). ou como meras reprodutoras das relações sociais do- As práticas antiterapêuticas (as quais se associam minantes” (Costa-Rosa, 2000, p. 145), uma “visão à alienação dos terapeutas, bem como aos interesses de mecanicista” como salienta o autor, mas de ir além da classe), não são condições só do manicômio, mas tam- consideração dos fenômenos sociais e econômicos per bém se tornaram práticas sociais que independem do si, sem inter-relação com a infraestrutura e a superestru- lugar onde ocorrem, pois estarão filiadas à manutenção tura implicadas nas suas determinações. A esse respeito, do status quo que vem se perpetuando nas relações ca- tomemos o conhecimento já produzido sobre o tema pitalistas burguesas. para esclarecer esse ponto. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica Retomando a história de efetivação do capitalis- ção, assim como o endividamento crescente dos países mo monopolista, corresponde ao período do segundo da periferia, não puderam ser contidos com medidas do pós-guerra o desenvolvimento das políticas sociais grande capital para conter a ‘crise’. Na realidade, essas enquanto função dos Estados capitalistas de proteção medidas de ajuste para restauração do capital, de corte social (Pereira, 1998). Os Estados passaram a desen- neoliberal (dentre estas, as privatizações, cortes nos volver atividades de regulação por meio da criação e gastos públicos, incluindo a seguridade social, a desre- aparelhamento de complexas instituições destinadas gulamentação da economia, que passa a ser operada pelo a efetivação das políticas sociais; medidas fiscais, leis mercado), geraram intensificação das tensões sociais. A trabalhistas, serviços e benefícios públicos passaram a financeirização do capital, tendo em vista investimen- garantir a reprodução da sociedade capitalista por meio tos mais rentáveis frente à perda de lucratividade nos desse complexo político-institucional, identificado investimentos produtivos, caracteriza outra mudança como seguridade social. Configurou-se, nesse período, fundamental na economia mundial. o Estado de Bem-estar Social nos países da Europa que No contexto de crise e reestruturação capitalista, atingiram alto nível de desenvolvimento econômico, assiste-se ao desmonte das políticas sociais e à am- compatível com o financiamento de tais políticas. A pliação da pobreza, sendo esta apontada como uma legitimação desse pacto se deu através da expansão dos das consequências mais graves da globalização. O direitos de cidadania e, podemos apontar ancorados projeto neoliberal é responsável pelo estabelecimento nas considerações de Coutinho (2000): se por um lado da atual política anticíclica, por meio da qual busca havia uma causa subjacente – uma resposta do capita- retomar o patamar de acumulação do ciclo estabele- lismo, ainda que pactuada, à ameaça socialista – por cido no padrão fordista-keneysiano, promovendo a outro, poderia representar uma evolução na direção do reorganização do capital. socialismo democrático: No caso específico do Brasil, a formação da complexa rede de instituições governamentais criadas para dar susten- [...] conquistar reformas substantivas ainda no tação aos serviços e benefícios considerados como direitos interior do capitalismo, [mas] se essas reformas de cidadania, institucionalizada como Seguridade Social, não forem claramente dirigidas contra a lógica tem como marco legal fundamental a Constituição de 1988 do capital, elas se tornam frágeis, instáveis e e como protagonista o movimento dos trabalhadores. De- terminam por ser abandonadas. (p. 85). ve-se à legislação decorrente a institucionalização de novos direitos políticos e sociais, a universalização da assistência à Pode-se considerar que só em meados da década saúde e previdência para segmentos vulneráveis, mudanças de 1970 passaram a ser processadas mudanças na ordem na legislação trabalhista, dentre outros. Além disso, o direi- econômica. A saturação do padrão de acumulação da to à assistência social passou a abranger os desassistidos e era fordista-keynesiana pode ser apontada como causa ‘incapacitados’ a partir daquele momento. Entretanto, nos importante dos ajustes e correções no rumo que se se- anos que se seguiram, a seguridade social não se consolidou guiu. A queda na taxa de lucros [causada, dentre outros, como política pública que promovesse todos os segmentos pela superprodução e baixo consumo – este último, que dela necessitassem. As políticas assistenciais não- para Antunes (1999), devido à queda dos salários e ao contributivas vêm se expandindo gradualmente nos estados desemprego estrutural], e nos investimentos na produ- e municípios, estando o poder governamental nos níveis Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 373 374 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica correspondentes responsáveis pela execução da política trabalho; a classe que vive do trabalho alheio tem sob dirigida aos grupos considerados vulneráveis, com finan- seu domínio o conjunto das relações sociais, pois: ciamento exíguo e crescente participação do terceiro setor na assistência. A assimilação das estratégias neoliberais para a história de todas as sociedades que existiram diminuição dos gastos estatais com as políticas públicas, até nossos dias tem sido a história das lutas de desencadeando mudanças no sistema de seguridade social classes, [sendo que] [...] a burguesia, durante seu brasileiro, contribuiu para a limitação e maior dificuldade domínio de classe, apenas secular, criou forças na implementação dos direitos assistenciais obtidos desde produtivas mais numerosas e mais colossais que o movimento Constituinte, havendo a responsabilização todas as gerações passadas em conjunto [...]. A de todos pelas dificuldades geradas pela crise, inclusive pela burguesia só pode existir com a condição de falta do financiamento da seguridade. revolucionar incessantemente os instrumentos Com estas considerações, enfatiza-se que a colo- de produção, por conseguinte, as relações de cação de Costa-Rosa (2000) sobre “visões mecanicistas” produção e, como isso, todas as relações sociais. que associam as instituições aos determinantes econô- (Marx; Engels, 2003, pp. 26-29). micos é equivocada, possibilitando enuviar o papel dos serviços assistenciais nas relações capitalistas burguesas. As classes sociais se constituem a partir dos proces- Essa posição contraria a crença materialista histórica. sos econômicos, do processo produtivo e da produção Por mais bem intencionados que os agentes da reforma social e relacionam-se não só com o que se tem, mas psiquiátrica estejam, existe uma realidade que precisa ser com o que se é: conhecida, para que não deixem de ser considerados os impedimentos estruturais postos nesse caminho. pela ‘divisão do trabalho’, torna-se possível, ou Mais ainda: as relações das instituições da saúde melhor, acontece efetivamente que a atividade mental com as demais (saúde em geral, de forma direta, intelectual e a atividade material – o gozo e o como salienta o autor) e com o contexto social não se trabalho, a produção e o consumo – acabam dão num vazio, de forma que a existência de outras ins- sendo destinados a indivíduos diferentes; [...] tituições, como famílias, escolas, religiões e processos de essa divisão do trabalho encerra ao mesmo tem- produção possam ser considerados como pertencentes po a repartição do trabalho e de seus produtos, a uma realidade secundária, um pano-de-fundo, ou distribuição ‘desigual’, na verdade, tanto em seja, cujas inter-relações com as instituições da saúde quantidade quanto em qualidade. (Marx; mental possam ser consideradas “mais indiretas”, como Engels, 2002, p. 27, grifo dos autores). ressalta Costa-Rosa (2000, p. 145). Como “palcos de luta social”, as instituições não expressam simplesmente A cooperação entre os indivíduos condiciona- “articulação de interesses divergentes”. As “contradições da pela divisão social do trabalho, segundo Marx, dominantes no contexto mais amplo” são mero reflexo não é voluntária e não pode ser percebida por eles das contradições vividas no cotidiano, essas sim mate- como força própria, parecendo-lhes então uma força rialmente presentes na vida das pessoas, e expressam estranha. Essa situação caracteriza a alienação num a correlação de forças entre as classes. Não é possível contexto de dominação: “[...] a classe que é o poder conciliar interesses que se pautam pela exploração do material dominante numa determinada sociedade Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica é também o poder espiritual dominante” (Marx; democracia e do exercício de cidadania. Acredita-se que Engels, 2002, p. 48). Ou seja, a posse dos meios de políticas sociais robustas, articuladas, permanentes, com produção material está associada à posse dos meios financiamento suficiente para a estruturação de serviços de produção intelectual, submetendo o pensamento que superem a reprodução da pobreza dos asilos para às relações cuja expressão de ideias é a legitimação a obtenção de renda digna, estratégias de inclusão no da dominação por meio da regulamentação da pro- mundo do trabalho com respeito às diferenças são con- dução e da distribuição dos pensamentos em todas quistas essenciais nessa caminhada. Também se deve ter as épocas históricas. consciência de que essas medidas se opõem ao receituário “Identificação com a fração dos interesses es- da ordem vigente no momento de crise estrutural do truturalmente subordinados” (Costa-Rosa, 2000, p. capitalismo. A ampliação das políticas públicas está na 146) não depende da capacidade das pessoas, mas da contramão dos investimentos dos Estados Nacionais consciência de classe que se pode atingir a partir da que envidam esforços para a retomada dos patamares crítica à ordem societária determinada pelo modo de de acumulação capitalista, citando-se como evidência produção capitalista. Ou lutamos por ajustes e melhorias mais recente os investimentos de trilhões de dólares na que podem representar, no contexto capitalista, que os recuperação de empresas e instituições financeiras que indivíduos passem da condição de despossessão à con- ruíram em consequência da financeirização da econo- dição de inclusão degradada no processo de produção mia. Inverter essa ordem significa retomar a luta com a e reprodução social, ou lutamos por transformações es- recuperação da capacidade de enfrentamento do poder truturais, o que representa o investimento na construção estatal que representa os interesses burgueses. de um projeto societário contra-hegemônico para o qual Quanto à discussão do autor sobre mais-valia4, a classe de intelectuais tem importantes contribuições a tentando representar os valores expressos na realidade oferecer. Ao desenvolvimento da práxis social dentro e da assistência em saúde mental, existe uma enorme fora das instituições, deve corresponder, nesta perspec- confusão no entendimento dessa categoria teórica. As tiva, um conjunto de ações que visem não somente à instituições que oferecem serviços não produzem mais- adoção de estratégias que confrontem o modelo asilar valia. Não há extração de mais-valia em relações em que e possibilitem ações voltadas para os sujeitos singulares não existe a apropriação de lucro direta ou indiretamen- cujas diferenças sejam ‘aceitas’ no convívio social, mas te. Essa operação determina a acumulação para a qual cujas diferenças possibilitem mudanças no tipo de in- se voltam todos os esforços de manutenção das relações clusão permitida pela ordem societária vigente. Nesse de dominação de classe. Quem se apropria da mais-valia momento, a ampliação e a efetivação de direitos são produzida a partir da exploração do trabalho alheio são conquistas fundamentais, para as quais a mobilização os donos do capital, donos dos meios de produção. As social constitui condição. No nosso entendimento, essa instituições que oferecem serviço pertencem ao setor abordagem permite que um primeiro passo seja dado terciário da economia, sendo caracterizado pelo trabalho a fim de se atingir a compreensão de uma realidade improdutivo. Por oposição, vejamos, segundo Mandel que precisa ser transformada a partir da ampliação da (apud Netto; Braz, 2006, p. 117-118): A mais-valia é obtida a partir do trabalho produtivo que ocorre na transformação de matérias brutas ou primas em mercadorias, para isto também contribuindo o trabalho intelectual envolvido na produção. A mais-valia corresponde a um “acréscimo de valor que surgiu no processo de produção, valor criado pela força de trabalho que [...] produz um valor maior (excedente) ao que custa. A apropriação, pelo capitalista, desse excedente configura a exploração do trabalho pelo capital” (Netto; Braz, 2006, pp. 118-119). 4 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 375 376 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica A definição de trabalho produtivo como tra- anteriores. Reiteramos que as relações sociais na sociedade balho produtor de mercadorias, que combina burguesa expressam relações de exploração e dominação trabalho concreto e abstrato (ou seja: que com- de uma classe sobre a outra. bina a criação de valores de uso e a produção de O dono do capital não é um intermediário, assim valores de troca), exclui logicamente ‘os bens não considerado por Costa-Rosa (2000, p. 148) ao tratar materiais’ da esfera da produção de valor. [...] das “características” que o Modo de Produção Capita- Para a humanidade, a produção é mediação lista (MPC) imprime às instituições da saúde mental. necessária entre a natureza e a sociedade; não No caso das instituições asilares, a lógica do capital é pode haver produção sem trabalho (concreto), que dita as regras, e salientar a intermediação que essas nem trabalho concreto sem apropriação e trans- instituições estabelecem é fazer recair sobre o aparente formação dos objetos materiais. a importância do fato em si: nessas relações, o que se busca é o isolamento, situação que determinou o lugar Com relação aos beneficiários de políticas sociais social que os portadores de transtornos mentais severos condizentes com a atenção psicossocial, não existe a pos- ocupam. A lógica da acumulação capitalista perma- sibilidade de eles se apropriarem de mais-valia: considerar nece na organização dos serviços, mesmo naqueles isso é conceitualmente equivocado e politicamente incor- cujas práticas caracterizam-se por serem substitutivas. reto, pois dá a falsa noção de que a atenção psicossocial Como já mencionado, assistimos ao desmonte das po- inverte as relações capitalistas presentes na realidade dos líticas públicas cuja principal causa é, segundo Soares assistidos. A natureza da mais-valia é uma só: lucratividade (2003), o ajuste global que se desenvolve a partir da que, por sua vez, gera a acumulação. A atenção psicosso- mundialização financeira e produtiva, segundo ideário cial não pode gerar excedente do qual se apropriariam os neoliberal produzido pelos organismos internacionais usuários de serviços assistenciais: a horizontalidade das políticos e financeiros5. relações é apenas o esperado, o justo, o mínimo necessário Mesmo quando existem mudanças significativas para permitir o avanço a estágios ainda não dimensiona- na assistência prestada, só poderão ampliar seu alcance dos pela ausência de crítica estruturada à atual conjuntura e serem perpetuadas se houver garantia de continuidade política. Os serviços que conseguem melhorar a condição possível por meio da ‘amarração’ das estruturas jurídicas, de seus usuários em termos de relações interpessoais mais políticas, sociais e econômicas no território nacional, re- amistosas e aceitação social de sua condição de saúde, e fletida no nível local; e se representarem a legitimação de que lhes permite participação democrática na realidade instituições e práticas condizentes com os pressupostos institucional e inserção em lugares diferenciados, contudo, da reforma psiquiátrica. Do contrário, ocorre a situação não são capazes de provocar a transformação das relações em que mudanças políticas administrativas repercutem sociais que lhes conferem a condição de pobreza, a mes- numa mudança geral da programação institucional, ma situação em que se encontra a maioria dos serviços ocasionando retrocesso e abalo na confiança de que as assistenciais, pelos motivos delineados em parágrafos mudanças poderão ser efetivas. O exíguo financiamento “a questão social passa a ser objeto de ações filantrópicas e de benemerência, deixando de ser responsabilidade do Estado. As ‘redes’ de proteção social devem ser ‘comunitárias’ e ‘locais’. Quando o desajuste social assume proporções preocupantes, caberia então ao Estado intervir com programas sociais focalizados nos pobres, tratando de reinseri-los no ‘mercado’. Como os bens e serviços sociais são considerados de ‘consumo privado’, tratar-se-ia de promover algum tipo de subsídio à demanda desses pobres para que eles possam adquiri bens e serviços no ‘mercado’. É a antiga ideologia liberal que ressurge com ‘nova roupagem’ e que tem predominado na última década em todos os documentos ‘sociais’ do Banco Mundial e assemelhados” (Soares, 2003, p. 27). 5 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica dos serviços, principalmente no nível local, compromete texto nos quais agem quando projetam as intervenções”. sobremaneira a efetivação de mudanças duradouras que (Saraceno, 1999, p. 72). As intervenções conservadoras possam evoluir. podem se reproduzir em qualquer lugar onde prevaleçam A partir das ponderações até aqui colocadas, interesses compatíveis com a ordem burguesa. A cons- retoma-se a indagação a respeito da possibilidade de ciência dos usuários dos serviços assistenciais da saúde se superar a ideologia psiquiátrica conservadora no mental, dos técnicos e da sociedade acerca da condição contexto de dominação burguesa. Não se trata aqui de imersão das relações no antagonismo de classes é uma de responder à questão, mas provocar a crítica à razão situação que tem sido negligenciada devido à alienação, instrumental a qual se filiam os interesses subsumidos ou negada segundo interesses que privilegiam o indi- no fenômeno de produção de cronificação e cronicidade vidualismo escamoteado por visões que trabalham em (Mendes, 2007). Entende-se, aqui, que as instituições prol de uma ‘inclusão’ promovida por políticas sociais moldadas pela psiquiatria tradicional são portadoras compatíveis com o ideário neoliberal para que se possa de interesses econômicos que se traduzem no lucro “atingir uma suposta ‘estabilidade’, condição para um obtido pelas empresas do ramo e no corporativismo futuro crescimento e, quiçá, alguma distribuição das ‘so- decorrente da mercantilização da saúde, intensificada bras’ num futuro [...] remoto”. (Soares, 2003, p. 13). com o período de “desajuste social”, onde iniciativas privatizantes como a terceirização6 da assistência tem repercutido em que: UMA APLICAÇÃO DO MATERIALISMO DIALÉTICO NA SAÚDE MENTAL a filantropia substitui o direito social. Os pobres substituem os cidadãos. A ajuda individual substitui a solidariedade coletiva. O emergencial e o Hirdes (2008), a partir de uma breve revisão de au- provisório substituem o permanente. As micros- tores do campo marxista (Konder, 1981, Kosik, 1995, soluções ad hoc substituem as políticas públicas. Lefebvre, 1991, Lukács, 1979), nos oferece sua análise O local substitui o regional e o nacional. É o a respeito da utilização do método crítico-dialético que reinado do minimalismo no social para enfrentar compara as formas de produção na assistência em saúde a globalização do econômico. ‘Globalização só mental. Como Costa-Rosa (2000), a autora também tem para o grande capital. Do trabalho e da pobre- como parâmetros de análise o campo da atenção asilar, za, cada um que cuide do seu como puder. De que denomina como de institucionalização, e o campo preferência com um Estado forte para sustentar o de atenção psicossocial, que denomina de desinstitu- sistema financeiro e falido para cuidar do social’. cionalização. Hirdes identifica como unidade comum (Soares, 2003, p. 12). aos dois campos, que situa como opostos, “o foco na abordagem da doença mental” (Hirdes, 2008, p. 13). Tanto dentro quanto fora dos asilos, as práticas Destaca-se que, na compreensão crítico-dialética, tam- psiquiátricas tradicionais habituam os técnicos a produ- bém há em comum entre os dois campos a Totalidade zirem “menos realidade, ou seja, a fazer menos no con- Social que os abrange. A terceirização é a forma contemporânea de promover a ‘re-filantropização’: o trabalho voluntário ou precarizado, a contribuição de ‘associados’, isentando o Estado de gastos públicos, etc, caracterizam as relações estabelecidas pelas ONGs. 6 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 377 378 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica Entende-se, aqui, que existem aspectos na leitura de Hirdes que merecem destaque pela coerência de signifi- A historicidade é uma condição da análise da autora que destaca: cados acerca da utilização das categorias matizadas pelo conhecimento marxista. O primeiro destes diz respeito ao [...] foi possível observar, nas últimas décadas, salto dialético compreendido nas mudanças decorrentes alguns períodos em que se intensificaram as da luta política por melhorias nas condições assistenciais discussões e o surgimento de novos serviços, assim na saúde mental – acrescenta-se uma das partes de um como períodos em que houve uma desacelera- todo historicamente determinado pelas lutas empre- ção do processo. [...] em 1992, aconteceu a 2ª endidas por trabalhadores insatisfeitos com a situação Conferência Nacional de Saúde Mental. Em socioeconômica e política do país que, por sua vez, refletia seguida, houve uma lacuna no que se refere às um movimento global pela retomada da democracia ple- conferências e à legislação (porque os serviços namente comprometida por governos ditatoriais e pelo continuaram sendo constituídos) até a apro- imperialismo de nações centrais, especialmente a norte- vação, em abril de 2001, da Lei de Reforma americana. Um mundo no qual a insatisfação também Psiquiátrica. (Hirdes, 2008, p. 14). era gerada pela intensificação da pobreza quando ruía o pacto fordista-keynesiano. Entretanto, destaca a autora, Diante desses dados, a análise que se quer corre- à superação dialética corresponde o resíduo da essência lacionar é, primeiramente, o fato de os governos neoli- que determina, em outras palavras, a convivência de duas berais que se iniciaram no país em 1992 possivelmente formas de considerar a existência dos sujeitos-alvo das terem determinado a lacuna à qual se refere a autora. intervenções profissionais: Também, o longo percurso da lei federal, designada Lei da Reforma Psiquiátrica (de número 10.216), que Observa-se como característica do salto dialético tramitou por mais de uma década no Congresso e a continuidade, ou seja, o hospital psiquiátrico foi aprovada em 2001 com substanciais alterações no como realidade ainda presente, os saberes e prá- que se refere aos interesses em jogo. A despeito das ticas hegemônicos de exclusão e segregação ainda lutas sociais que provocaram amplas mobilizações no não superados; e a descontinuidade, que compre- processo de aprovação dessa lei e dos avanços que ela ende o aparecimento de novos serviços respaldados representa, o texto final refletiu a primazia dos inte- pelas iniciativas das políticas públicas de Saúde resses capitalistas burgueses. Mental. (Hirdes, 2008, p. 14). Retomando a condição de classe dos usuários dos serviços de saúde mental, Hirdes (2008, p. 14) enfatiza Ou seja, uma realidade que reflete aspectos de que o campo da Reforma Psiquiátrica refinou conceitos, uma totalidade parcial cujos determinantes capturam possibilitando “o enfoque do trabalho terapêutico sobre as leis que regem o fenômeno da sociedade moderna: os aspectos de vida das pessoas portadoras de sofrimento a vigência de estruturas que garantem a reprodução da psíquico [...], nos aspectos sadios das pessoas”. É sobre sociedade capitalista burguesa. Ressalta-se, como já dito as condições materiais de vida que recaem os esforços da antes, que as políticas públicas no contexto de vigência teoria crítica ao Modo de Produção Capitalista (MPC), das investidas neoliberais vêm sofrendo reveses, deter- pois possibilita a compreensão dos determinantes da minando a pobreza dos novos serviços. condição de pobreza dessas pessoas. Assim, vejamos: Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica Dentro de uma perspectiva mais ampla, de A práxis social, neste caso, refere-se às totalidade, considera-se de fundamental importância o diagnóstico de vida de uma pessoa formas voltadas para influir no comportamento e o conseqüente estabelecimento de um projeto e na ação dos homens [...;] trata-se das relações terapêutico a partir do contexto no qual se sujeito a sujeito, daquelas formas de práxis em insere. [...] Ressalta-se a necessidade de leitura que o homem atua sobre si mesmo (como na do contexto dentro de uma mudança de óptica: práxis educativa e na prática política). (Netto; comumente, tal leitura é realizada em cima dos Braz, 2008, pp. 43-44). déficits, dos aspectos negativos. Sublinhar as forças e os aspectos sadios constitui uma transição Pela práxis, é possível criar condições favoráveis para importante no processo de tratamento e reabili- a tomada de consciência a respeito do pertencimento de tação, assim como a noção de indissolubilidade classe dos sujeitos envolvidos no processo de tratamento de ambos. (Hirdes, 2008, p. 15). e reabilitação, favorecendo as identificações, bem como a elucidação das ideologias pelo exame ético e crítico dos Pretende-se destacar, com relação à situação de vida discursos que atravessam as instituições. Estes pensamen- dos usuários, que essa, além de necessariamente ser alvo tos nos fazem retomar as ideias de Marx e Engels acerca de um projeto terapêutico individual, na perspectiva da divisão do trabalho, havendo distinção das classes que marxista, deve ser um projeto coletivo, no qual os enfren- desempenham as atividades intelectual e material “– o tamentos para superação da alienação e pobreza busquem, gozo e o trabalho, a produção e o consumo –” (Marx; além dos esforços institucionais de obtenção dos recursos Engels, 1974, p. 27), que repercute numa distribuição necessários, a criação de estratégias que possibilitem a desigual do trabalho e de seus produtos em quantidade e práxis social. Os portadores de transtornos mentais severos qualidade. Os autores também fazem referência ao poder são considerados cultural e juridicamente incapazes. A sobre as coisas no mundo, ou seja, a classe que detém o mudança dessa condição implica que a atenção se volte poder material detém o poder intelectual. Esse estado de fundamentalmente para o restabelecimento da crença coisas gera posições em que o saber é usado como fonte de nesses sujeitos. O rótulo de incapacidade levou à perda poder, ou seja, o suposto saber torna-se alvo de disputas ou negação de habilidades e, por conseguinte, a negação (que comumente consomem as energias despendidas nos dessas pessoas enquanto seres sociais. serviços). Hirdes (2008) faz a distinção entre os tipos de atividades – material e intelectual –, afirmando que é O desenvolvimento do ser social implica o necessário, nos serviços assistenciais, haver uma integração surgimento de uma racionalidade, de uma dessas atividades, quando os profissionais terão uma visão sensibilidade e de uma atividade que, sobre a não-dissociativa, assumindo o trabalho reabilitativo e de base necessária do trabalho, criam objetivações tratamento. Acrescenta-se que as atividades relacionadas a próprias. No ser social desenvolvido, o trabalho esses dois aspectos da assistência levam a uma divisão so- é uma das suas objetivações – e [...] quanto ciotécnica do trabalho. A autora enfatiza que essa ideia: mais rico o ser social, tanto mais diversificadas e complexas são as suas objetivações. (Netto; enfrenta um embate que se estabelece muitas Braz, 2006, p. 43). vezes no cotidiano dos serviços: o tratamento é Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 379 380 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica executado por uns e a reabilitação, por outros. saltos qualitativos que se inserem na vida Ou seja, há a necessidade de não-separação do cotidiana das pessoas. A superação dialética é trabalho manual do intelectual reproduzido alcançada no momento em que são reunidos, dentro dos serviços para que haja a superação no mesmo sujeito histórico, aspectos subjetivos dialética. (Hirdes, 2008, p. 16). e objetivos oriundos das demandas singulares de cada pessoa. (p. 17). Hirdes também chama atenção para as contradições geradas pelas disputas internas que, sob o ponto de vista aqui revelado, tem seus determinantes aferrados Entende-se que este pensamento sintetiza o debate que se propôs produzir nesta revisão crítica. nas identificações e pertencimentos de classe (o corporativismo assenta-se nessa premissa). Para a autora, o não-ocultamento dos conflitos e contradições será CONSIDERAÇÕES FINAIS possível a partir do tratamento dialético dessas questões: “o aparecimento do novo e a explicitação das contradições conduzirá a saltos qualitativos que processarão mudanças reais nos serviços” (2008, p. 16). Pode-se considerar como uma característica da assistência em saúde mental no Brasil, o emprego da Sobre as contradições presentes nas relações esta- técnica ter se tornado essencial no acolhimento e na belecidas nos serviços, apoiando-se em Basaglia (1985), abordagem das especificidades, o que determinou o Hirdes (2008) chama atenção para o fato presente, em surgimento de diferentes tendências na orientação das que os discursos sobre a prática não condizem com a práticas desenvolvidas nos serviços designados como prática que é desenvolvida. Aqui, tomamos a noção de substitutivos. As práticas norteadas pelo paradigma da fetichismo desenvolvida por Marx (apud Neto; Braz, atenção psicossocial tem se constituído fértil campo para 2006), ou seja, o produto da prática é resultado da o desenvolvimento teórico e epistemológico. Contudo, relação fantasmagórica entre coisas, à qual é atribuída recorrendo à contribuição de Bisneto (2001), apontam- a relação social decorrente da divisão do trabalho. se as dificuldades na interlocução dos profissionais que Profissionais afetados por essa crença tomam por compõem equipes multidisciplinares nos serviços assis- certo o poder autônomo do produto destas práticas, tenciais, geradas pela adoção de diferentes vertentes teó- já que o discurso sobre elas está crivado pelo ‘poder’ ricas e que repercutem no estabelecimento de barreiras do suposto saber. para a construção da interdisciplinaridade. Sendo assim, Hirdes (2008) conclui sua análise indicando que as concepções positivistas ou sistêmicas, as diversas teo- o método crítico dialético permite a superação de rea- rias psicodinâmicas e o materialismo histórico ancorado lidades a partir da explicitação das contradições, cujo na tradição marxista têm representado o isolamento e a enfrentamento levará à práxis transformadora, possibili- descontinuidade das ações, decorrendo em dificuldades tando o olhar crítico sobre as práticas que se sustentam na troca e complementaridade dos saberes. nos discursos produzidos pela reforma psiquiátrica. O No campo das Ciências Sociais, a teoria crítica, nas resultado do agir que se pautar por esses princípios, últimas décadas, tem sido detratada, situação apontada poderá representar: por alguns autores7 como consequência dos aconteci- 7 Neto e Braz (2003); Antunes (1999); Evangelista (1992). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica mentos históricos, representados principalmente pela sistema econômico que se nutrem de exclusão” (p. 11), derrocada do regime soviético, a queda do muro de Ber- manifestando-se também na obstaculização do pensa- lim, a globalização da economia com o fortalecimento mento crítico. das crenças liberais, gerando a descrença no socialismo Segundo esse autor, o foco do enfrentamento das e provocando a análise sociológica de que o capitalismo perversidades decorrentes do crescimento econômico foi vitorioso. A crise atual da sociedade moderna atinge deve ser a remodelagem do Estado para que haja a todos os regimes e decorre, no desenvolvimento das re- distribuição equitativa de todos os benefícios gerados lações capitalistas burguesas – entre os homens e destes e acumulados pelo desenvolvimento capitalista. É com a natureza –, da prevalência da razão instrumental importante que a “diversidade das inspirações e das sobre a razão emancipatória (Soto, 2004). ações de intervenção na realidade problemática” (p. Um fato importante, que particulariza esse mo- 9) – que busca um novo ordenamento do Estado para mento histórico, é o papel que a sociedade civil organiza- que toda a sociedade seja beneficiária dos acúmulos da vem desempenhando nas suas relações com o Estado. resultantes das relações capitalista, não somente da As investidas neoliberais tiveram como alvo principal renda – seja aceita. Porém, deve-se reconhecer, as a despolitização das lutas sociais, com a incorporação políticas sociais compensatórias como alternativas dos movimentos sociais, causando a institucionalização para atenuar as condições de pobreza, apesar de ne- e a instrumentalização destes que passaram a funcionar cessárias, legitimam a exclusão pelas suas formas de numa relação de dependência do Estado, alterando-se inclusão, muitas vezes degradada, por não constitu- a natureza dos conflitos sociais. írem “legítima apropriação social dos resultados da Em geral, o caminho que os movimentos sociais economia” (p. 14). da saúde mental tomaram não os diferencia dessa reali- No trabalho comunitário, as ações devem levar dade, e sua transformação em Ongs tem determinado, em conta a necessária construção da consciência social, neste ponto de vista, a perda da perspectiva crítica com a partir da reflexão crítica que demova classificações de relação à totalidade social na qual se inserem. Esses or- grupos e pessoas como excluídos e incluídos, posição ganismos compõem o terceiro setor, cujo crescimento política que impede a compreensão da sociedade “como constitui resposta às demandas sociais, promovendo a totalidade contraditória e crítica, como processo social e refilantropização e assistencialização das políticas sociais. histórico”. O que se persegue, na posição crítica, “não é A organização dos movimentos, para tornar possível a o já dado a alguns e não a outros” (p. 12). A práxis social superação da condição de pobreza e privação do acesso deve gerar a crença numa outra realidade possível, a bens e serviços, depende de que seja comum o interesse pela superação da ordem capitalista. Com base o que ainda não é mas está anunciado nas em Martins (2002), defende-se aqui a hipótese de que próprias condições sociais que os seres humanos o motivo da luta deve ser o desenvolvimento anômalo foram capazes de construir até aqui, no esforço da sociedade capitalista, que tende a excluir cada vez de todos e não de alguns. Esse possível só o é, por mais pessoas, aprofundando desigualdades e pobreza. sua vez, se mediado pela consciência social crítica, Os movimentos sociais não podem se recusar a reconhe- pelo conhecimento crítico – pela crítica que revê cer a “competência integradora e até patologicamente continuamente certezas e verdades, suas condi- includente, aliciadora, dos processos econômicos e do ções, suas limitações, seus bloqueios, sobretudo os Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 381 382 MENDES, S.M.O. • Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica bloqueios dos que se crêem isentos de limites de R E F E R Ê N C I A S compreensão. (Martins, 2002, p. 12). O autor destaca a concepção limitada que, por sua vez, limita o horizonte das conquistas possíveis, impede a organização necessária das identidades dispersas e diluídas na figura dos excluídos. A ausência da consciência de pertencimento a uma classe mantém as ações presas às análises sociais cuja consciência política identificase com uma realidade social diversificada, fetichizada pela apologia dos comportamentos individualistas, que marcha de par com o consumismo das mercadorias ‘personalizadas’ da era da produção toyotista. Segundo Lefebvre (2001), as elaborações teóricas de Marx permitem o conhecimento e a revolução, pois conduzem ao saber crítico e ao mesmo tempo concreto da sociedade. O método permite desvendar o real encoberto pelos aparelhos da burguesia, o mundo fetichizado da mercadoria. Há uma lógica neste mundo que é descoberta pelo discurso teórico marxista. Tratase de apreender o mundo vivido “que há sob os olhos” (p. 135), por meio das relações sociais estabelecidas. O pensamento de Marx é conhecimento e revolução teórica, um saber crítico e concreto. Crítico porque ele desvenda os fundamentos e a formação que o compõem e concreto porque ele se expressa numa abstração daquilo que é real. Mas ele não é o real descrito, é o real nas suas relações que não são evidentes nas coisas que retratam tais relações. As relações sociais na sociedade capitalista têm a aparência de relação entre coisas. O real não se dá a conhecer sem indagação sobre ele. Somente o conhecimento que desvenda a aparência é capaz de identificar a relação entre as diferentes formas que são coisas, mercadorias e objetos de consumo. A articulação dessas análises permite a compreensão crítica do funcionamento da sociedade capitalista e seu modo de produção, alcançada só no final do percurso metodológico como totalidade apreendida. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010 Antunes, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. Basaglia, F. (Org.). 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[email protected] 1 RESUMO O objetivo deste trabalho foi analisar as características no Curso de Graduação em Odontologia que são importantes para a formação do cirurgiãodentista visando à sua atuação no Sistema Único de Saúde (SUS). Para tanto, realizou-se uma pesquisa descritiva, na qual foram utilizados questionários e entrevistas como procedimentos de coleta de dados. Os resultados apontam a Professor do Programa de PósGraduação em Educação da PUCCampinas; Pós-Doutorado pela Universidade de Boston. [email protected] necessidade de alguns elementos na formação do cirurgião-dentista para atingir este Professora Titular da Faculdade de Medicina da PUC-campinas; Médica Sanitarista; Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). [email protected] estudo revela a complexidade do desafio imposto às Universidades pela mudança 2 3 fim. Dentre eles, pode-se citar a diversificação dos cenários de ensino/aprendizagem e as relações teoria/prática, ensino/trabalho e realidade social, bem como a construção de sujeitos da aprendizagem no processo de formação profissional. O no processo de formação de cirurgiões-dentistas. PALAVRAS-CHAVE: Odontólogos; Ensino Superior; Sistema Único de Saúde; Ensino-aprendizagem. ABSTRACT The objective of this paper was to analyze the important characteristics of Dentistry graduation course aiming at a better performance of these professionals in the National Health System (SUS). In order to do that, a descriptive research using questionnaires and interviews was carried out as procedure to collect data. Based on the data analysis, the need of some elements in the dentist’s graduation aiming their performance in the National Health System (SUS) was verified. Some of the points observed are the diversification of the contexts of education/learning and the theory/practice, education/work relations and social reality, as well as the formation of people submitted to learning process along professional graduation. The study shows the complexity of the goal of changing the education process of dentists imposed to the Universities. KEYWORDS: Dentists; Education, higher; Single Health System; Educationlearning. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A. I N T R O D U ç ão • Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde sintoma da sociedade da exclusão e da barbárie. (Moysés, 2004, p. 35). Segundo, porque: Atualmente, vivenciamos um modelo de formação e prática odontológica em complexa transição, como a O modelo ainda dominante, sob a lógica da de uma Odontologia de mercado de natureza liberal e competência técnica para o mercado privado e privada (típica das duas últimas décadas do século 20) para ação ‘curadora’, não produz sujeitos polí- para uma Odontologia sujeita às oscilações da oferta ticos capazes de protagonizar novas aberturas de emprego e renda em um mercado extremamente para a sociedade e para a profissão. (Moysés, competitivo (Moysés, 2004). 2004, p. 35). Ao considerarmos esse cenário e, principalmente, a população sem acesso ou com acesso restrito aos serviços E, finalmente, porque: odontológicos (IBGE, 2003; Brasil, 2003), o quadro epidemiológico geral (Brasil, 2004) e o momento de O SUS tem pressa para mudar o modelo de transição demográfica e epidemiológica em saúde bucal atenção dominante, ou seja, um projeto que (Moysés, 2004), verifica-se a necessidade de mudanças seja distinto do modelo biomédico hegemônico na formação e na prática odontológica brasileira. e não pode continuar consumindo recursos no Nesse sentido, as instituições formadoras devem esforço de ‘(des)construção’ de perfis profissionais orientar suas respectivas missões institucionais à efetiva inadequados, por meio de cursos de capacitação implantação e desenvolvimento do Sistema Único Brasi- que visam fornecer o que as graduações não leiro (SUS) – imprescindível para a alteração em abran- oferecem. (Moysés, 2004, p. 35). gência e profundidade do nosso perfil epidemiológico – e dotar a sociedade de recursos humanos adequados às suas Nessa perspectiva, um dos elementos críticos e de necessidades, atendendo às exigências da Constituição absoluta importância ou relevância na agenda de mu- Federal (Brasil, 1988; Narvai, 2003). danças para a construção do SUS tem sido a inadequação Moysés (2004) aponta três motivos para a formação de recursos humanos para o SUS. Primeiro, porque o da formação de seus profissionais perante as necessidades sociais de saúde e as necessidades do sistema público. modelo que alimentou o ensino e a prática para gerações A formação na área da saúde, no século 20, foi mar- de dentistas/professores até meados de 1990 caminha cada pelo ensino centrado na clínica, nos procedimentos para um rápido esgotamento: técnicos, na transmissão vertical professor-estudante e São milhares de profissionais da nova geração viven- centrada no modelo médico-hegemônico. O ensino do o efeito arrasador da ocupação precária, que favorece odontológico, inspirado pelo modelo biomédico flex- uma crescente ‘canibalização’ profissional, fora mesmo dos neriano, caracterizou-se por ser prioritariamente clínico, regramentos de mercado (por exemplo, com graves desvios tecnicista e biologicista, estimulando a prática curativista de ética corporativa). Do ponto de vista da ética maior, de e individualista, com ênfase na especialização (Amorim, inclusão social e sanitária, são milhões de brasileiros sem 2002; Brasil, 2003). respostas aos seus problemas de saúde bucal. A mutilação Por essa razão e considerando as novas Diretrizes bucal ou a falta de acesso a serviços de qualidade é um Curriculares Nacionais, as mudanças por ocorrer cor- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 385 386 FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A. • Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde respondem à preocupação com a consolidação do SUS A partir dessas considerações, este estudo teve e também ao esforço intelectual de romper definitiva- como objetivo principal analisar as características no mente com o paradigma biologicista e medicalizante, Curso de Graduação em Odontologia que são impor- hospitalocêntrico e procedimento-centrado, atendendo tantes na formação do cirurgião-dentista visando à sua aos novos desafios da contemporaneidade na produção atuação no SUS. de conhecimentos e na produção das profissões (Brasil, 2002; Brasil, 2003). O movimento de mudanças na educação dos METODOLOGIA profissionais de saúde, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e os princípios do SUS colocam como perspectiva a existência de instituições formadoras Este estudo constitui uma pesquisa descritiva, na com relevância social. Isso significa escolas capazes qual foram utilizados questionários e entrevistas como de formar profissionais qualificados e sintonizados procedimentos de coleta de dados. Trata-se de uma com as necessidades de saúde; escolas comprometi- pesquisa quantitativa e qualitativa, uma vez que foram das com a construção do SUS, capazes de produzir usados dados quantitativos tabulados e submetidos à conhecimento relevante para a realidade da saúde análise comparativa, e dados qualitativos originários em suas diferentes áreas, ativas, participantes do das questões abertas dos questionários e das entrevistas processo de educação permanente dos profissionais realizadas. de saúde e prestadoras de serviços relevantes e de boa qualidade. Por opção metodológica, a população deste estudo foi constituída por: a) cirurgiões-dentistas formados Nesse contexto, discute-se o papel dos cursos pela PUC-Campinas, que exercem suas atividades em de Odontologia na formação de profissionais para setor público na Região Metropolitana de Campinas atender às necessidades de saúde bucal da população (RMC) e, b) profissionais com experiência na formação brasileira. de cirurgião-dentista e no SUS (Fernandes, 2004). No estágio atual, embora o SUS constitua um Após a definição dos objetivos do estudo, foi significativo mercado de trabalho para os profissionais estabelecido como prioridade identificar o número de de Odontologia, este fato ainda não tem sido suficiente cirurgiões-dentistas formados pela PUC-Campinas que para produzir o impacto esperado sobre o ensino de exercem função em setor público na RMC. Nos 19 mu- graduação (Morita; Kriger, 2004). nicípios pertencentes à RMC, 677 cirurgiões-dentistas Acompanhando as transformações da sociedade, a formação do cirurgião-dentista pressupõe a revisão trabalham no SUS, sendo que 209 são formados pela PUC-Campinas, representando 31% do total. dos projetos pedagógicos dos cursos de odontologia Optamos pela aplicação do instrumento a todos os não apenas através da reorganização dos elementos sujeitos do universo estudado, com a intenção de possi- formais distribuídos em semestres e disciplinas na grade bilitar uma maior extensão acerca das percepções de vida curricular, mas também contemplando a integralização e de trabalho, uma vez que o meio pesquisado, por ser do ensino-aprendizagem e a definição de um projeto amplo, apresentava uma configuração diversificada. pedagógico que capacite os egressos como agentes de mudança dessa mesma sociedade. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 Para evitar possíveis falhas na redação do questionário e na compreensão das questões que o compõem, FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A. • Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde bem como verificar o tempo médio gasto para se respon- semiestruturada ocorreu a fim de possibilitar aos parti- der, o questionário foi pré-testado. O questionário sofreu cipantes a exposição livre e espontânea de ideias sobre algumas alterações para uma melhor adequação quanto o tema proposto e narrativa de sua vivência na área. à compreensão de duas questões, não sendo necessário Além disso, a entrevista foi eleita como instrumento um novo teste, pois as modificações não alteraram sig- por permitir o esclarecimento adicional de informações nificativamente o instrumento de pesquisa. que estivessem sendo prestadas, e ainda por possibilitar Em outro momento, com a finalidade de complementar a análise qualitativa e a discussão dos objetivos a admissão de correções e ajustes que o tornassem eficaz na obtenção dos dados esperados. do estudo, foram realizadas entrevistas junto a cinco Todas as entrevistas foram gravadas com aparelho profissionais com experiência no SUS e ligados direta de fita K7, após permissão prévia dos entrevistados. A ou indiretamente ao ensino odontológico. utilização desse acessório permitiu maior rigor quanto Para realizarmos as entrevistas, optamos por uma seleção intencional dos sujeitos participantes. Verificou- às informações coletadas, bem como a possibilidade de mantê-las arquivadas. se, junto a alguns profissionais da área, a indicação de O projeto de pesquisa e o termo de consentimento alguns nomes que pudessem compor a amostra dentro livre e esclarecido foram submetidos à análise e aprova- do perfil desejado, respeitando-se a definição de alguns dos pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Uni- requisitos para sua inclusão: ser cirurgião-dentista; exer- versidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). cer atividade vinculada à formação de cirurgião-dentista; exercer atividade vinculada ao SUS; ser estudioso de formação e prática profissional do cirurgião-dentista RESULTADOS E DISCUSSÃO no SUS; estar ciente dos objetivos desta pesquisa e ter concordado, espontaneamente, em participar da Do total de 209 questionários enviados, 94 retor- entrevista. As entrevistas foram do tipo semiestruturadas, com naram, o que significa que aproximadamente 45% do a intenção de obter determinados elementos importantes total dos questionários puderam ser objeto do trata- para o estudo em questão. A priorização por entrevista mento pretendido. Dos questionários respondidos, 24 compunham Tabela 1 – Faixa etária dos cirurgiões-dentistas uma amostra de sujeitos do sexo masculino e 70 do sexo formados pela PUC-Campinas que responderam ao feminino. A faixa etária da população de estudo variou questionário, 2003 entre 35 e 50 anos (Tabela 1). Dos sujeitos aos quais foram aplicados questio- Faixa etária n % Menos de 25 anos 1 1,06 nários, representando a parcela mais significativa, 42 e Mais de 25 a 30 anos 14 14,89 34% são formados nas décadas de 1980 e 1990, respec- Mais de 30 a 35 anos 21 22,34 tivamente (Tabela 2). Mais de 35 a 40 anos 25 26,59 A análise consistiu primeiramente na leitura exaus- Mais de 40 a 50 anos 25 26,59 tiva do material relativo às entrevistas e às perguntas Mais de 50 anos 8 8,51 abertas do questionário para orientação na delimitação Total 94 100 do contexto de análise. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 387 388 FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A. • Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde A análise realizou-se a partir da técnica de ‘análise Tabela 2 – Época de conclusão do Curso de gradua- de conteúdo’ (Bardin, 1977), da qual se extraiu a temá- ção em Odontologia na PUC-Campinas dos sujeitos tica e emergiram as principais categorias. Em seguida, aos quais foram aplicados os questionários, 2003 procedeu-se ao recorte e agrupamento de unidades de Época de conclusão n % significado, formando o conjunto de subcategorias Década de 1950 2 2,1 específicas de cada temática. Década de 1960 3 3,2 A seguir, será apresentado o conjunto de categorias Década de 1970 15 16 e subcategorias de forma a possibilitar a discussão sobre Década de 1980 39 41,5 Década de 1990 32 34 Década de 2000 3 3,2 Total 94 100 o ensino de Odontologia. É importante ressaltar que, nos casos em que os sujeitos foram entrevistados, observações como ‘Entrevistado’ serão feitas ao final das citações. As citações referentes às respostas obtidas através de questionários Fonte: Fernandes, 2004. serão destacadas como ‘Respondente’. morais e éticos orientadores de condutas individuais e coletivas (Rede Unida, 2000b). Características da formação importantes para a Quanto às relações desenvolvidas nesses cenários, são atuação no SUS estabelecidas, além da docente-discente, aquelas entre os Cenários de ensino/aprendizagem usuários e a equipe de trabalho. Quanto aos conteúdos, A partir da análise realizada, verifica-se como im- integram-se os de caráter técnico-informativos às questões portante aspecto na formação de cirurgiões-dentistas informativas éticas, morais, psicológicas, ligadas às relações para a atuação no SUS a diversificação dos cenários de sociais estabelecidas nesses cenários (Garcia, 2001). ensino/aprendizagem. Cenários de aprendizagem é um conceito Relação teoria/prática amplo, que diz respeito não somente ao local Quando se discute a valorização dos cenários, é onde se realizam as práticas, mas também importante destacar o papel da prática no processo de aos sujeitos nelas envolvidos, à natureza e ensino/aprendizagem. conteúdo do que se faz, etc. (Rede Unida, 2000b, p. 40). Tal processo em serviços de saúde apresenta aspectos muito diferenciados dos efetuados em sala de aula. Ou seja, ao se deparar com problemas da população ou Assim sendo, cenários de ensino/aprendizagem de determinada sociedade, o estudante tem a oportu- envolvem alternativas pedagógicas que favoreçam a nidade de experimentar, de responder e analisar critica- articulação entre teoria e prática, ensino e processo de mente as soluções. Essa necessidade de dar respostas aos trabalho, o deslocamento do sujeito e do objeto do en- problemas seria o fio condutor da busca e construção sino, a priorização de situações reais de aprendizagem, do conhecimento. bem como a utilização de tecnologias e habilidades Conduzida dessa maneira, a diversificação de cená- cognitivas e psicomotoras, e a valorização dos preceitos rios possibilita a criação de espaços coletivos de reflexão Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A. • Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde e ação, o que propicia aos atores envolvidos no processo estudante no cotidiano dos serviços de saúde e na vida – estudantes, professores e comunidade – a retomada da das comunidades antecipa suas relações profissionais, iniciativa sobre sua vida e sua constituição como sujeitos suas vivências, além de proporcionar o aprendizado capazes de proposição e ação transformadora, objetivo necessário em futuros locais de trabalho. final de todo conhecimento (Rede Unida, 2000b). Ao analisar as atividades desenvolvidas atualmente pelo cirurgião-dentista no SUS, nota-se a diversificação do A aproximação ao cotidiano pode permitir trabalho desde as atividades desenvolvidas até as relações tornar a educação significativa. Pela vivência profissionais nos serviços de saúde (Fernandes, 2004). de situações, objetiva-se conjugar o processo Ao buscar uma solução para os problemas identi- indutivo de conhecimento, parco em genera- ficados, o cirurgião-dentista utiliza-se de todo tipo de lizações, ao processo dedutivo, mediado por tecnologias disponíveis em saúde (Merhy, 2002a) e conceitos sistematizados em sistemas explicativos sua atuação profissional tende para o multiprofissional globais, organizados numa lógica socialmen- e intersetorial (Fernandes, 2004). te construída e reconhecida como legítima. Desta forma, os cursos de graduação, na maioria Procura-se também, pelo cotidiano, possibili- das vezes, se limitam a atividades que contemplam uma tar o questionamento das práticas sociais e a pequena parcela desse ‘arsenal tecnológico’ e do contexto instrumentalização para o conhecer e o agir. de trabalho. (Garcia, 2001, p. 90). Em pesquisa realizada por Unfer (2000), observou-se que a formação na graduação caracteriza-se Portanto, o processo de ensino/aprendizagem nes- principalmente pela diferença entre o que é ensinado ses novos cenários é centrado na resolução de problemas e o que é realizado quando se vai trabalhar no SUS. necessariamente de natureza participativa, e tem como Essas diferenças referem-se aos conceitos e conteúdos, eixo central o trabalho cotidiano nos serviços de saúde, às técnicas de trabalho e procedimentos e também aos motivando a compreensão crítica da realidade (Rede recursos materiais de trabalho (Unfer, 2000). Unida, 2000b). Geralmente, o estudante de graduação está pre- Ao questionar sobre o que deve ser melhorado ou parado para atuar em um sistema controlado por casos ampliado na formação para o SUS, obtivemos respostas clínicos selecionados, materiais de última geração, pro- do tipo: cedimentos ideais para cada necessidade do paciente e um turno inteiro para se dedicar a um paciente. Devem ser ampliados trabalhos que propiciem ao aluno participar da vida da comunidade e [...] Faltaram estágios extramuro em centros de entender de seus problemas, e principalmente saúde, hospitais, etc. Deveriam ter uma clínica levar o aluno a buscar o conhecimento das solu- geral voltada à saúde pública, com o uso de ções para esses problemas. (Respondente 27). materiais e instrumentais disponíveis em serviço público. Acredito que precisaria aumentar a Relação ensino/trabalho Outra questão importante sobre a diversificação dos cenários de ensino/aprendizagem é que inserir o carga horária da odontologia social sem diminuir a carga horária das outras especialidades. (Respondente 8). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 389 390 FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A. • Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde A literatura que aborda o tema e a resposta dos su- Não há o que substitua o contato humano, a vivên- jeitos sugerem que, além de proporcionar o aprendizado cia e o compartilhamento dos problemas, a solidarieda- necessário em serviços de saúde, a inserção antecipada do de, a construção de vínculos pessoais, a apropriação da estudante no meio possibilita uma experiência importante realidade que as experiências práticas propiciam. para a sua formação e para a escolha profissional futura. Deve-se valorizar significativamente esse aprendizado desde o início do curso, realizado nos mais variados espaços [...] Eu sinto que isso é real também quando de ensino/aprendizagem. Considera-se que a oportunidade eles criam preconceitos ou percepções só por ouvir de trabalhar em todo tipo de cenário da ‘vida real’ onde dizer como é o serviço público, mas sem nunca se produz saúde (espaços comunitários, escolas, creches, terem passado por uma experiência real de está- equipes de saúde da família, unidades básicas de saúde, gio comunitário [...]. (Entrevistado 4). ambulatórios, hospitais gerais, hospitais de ensino) é de fundamental importância (Feuerwerker, 2002). Eu entendo que é muito importante do ponto de vista do processo de formação que você trabalhe Esses outros espaços de aprendizagem além dos universitários também características da mesma forma que você faz preparando o profissional para o setor possibilitam aos estudantes integrar-se à lógica privado você também trabalhe preparando para de prestação de serviços, da atenção à saúde o serviço público. (Entrevistado 1). das pessoas e das comunidades, tomando por base problemas e situações reais (UEL apud O SUS tem que deixar de ser apenas um presta- Feuerwerker, 2002). dor de serviço, principalmente na Odontologia [...]. O SUS tem que ser uma instância, um Os cirurgiões-dentistas que trabalham no SUS, órgão de formação profissional; ele tem que ser participantes da pesquisa de Unfer (2000), sugerem uma escola de pessoas, uma escola de profissio- aos estudantes de graduação a busca por experiências nais [...] (Entrevistado 1). fora das clínicas do curso, levando em consideração o contexto social, cultural e psicológico da população [...] as experiências que a gente tem com alguns cursos de graduação que fazem parte de seus currículos algum tipo de estágio curricular dentro atendida no setor público. Ainda nessa perspectiva, Pessoti (apud Unfer, 2001, p. 50), acrescenta que: do SUS você já forma profissionais diferenciados (Entrevistado 3). [...] a formação acadêmica é dirigida para um paciente padrão, um paciente teórico, virtual, e Realidade social que o profissional é preparado para tratar um Um dos objetivos fundamentais da diversificação corpo humano, não um homem. E o médico se de cenários é fazer com que o processo ensino/aprendi- defronta, na realidade, com um homem que tem zagem ocorra na realidade social dos serviços de saúde um corpo que sofre, e este corpo está reagindo e da comunidade, e seja construído ativamente a partir fisiologicamente a toda uma gama de influências dos problemas identificados (Rede Unida, 2000b). concretas do tipo emocional, cultural e moral. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A. • Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde Integrando o ensino aos serviços de saúde, a Uni- latorial, mas também indo para um hospital versidade pode participar dos processos de mudança que de pronto-socorro atender o trauma, atender a sociedade demanda ao inserir-se na prática social da pulpite, quem tem dor, indo para ambulatórios saúde, proporcionando condições para que o processo de especialidades [...] acho que isso é uma visão de ensino/aprendizagem se desenvolva em bases reais. mais ampliada do que é o Sistema Único de Saúde e do que ele precisa. (Entrevistado 4). [...] eu comecei a me preocupar muito com isso, com os cenários de aprendizagem, que fossem Em reunião realizada em 2003, a Comissão de cenários realistas, que fossem cenários em que a Ensino da Abeno definiu o estágio supervisionado vivência e a experiência se desse in loco [...]. Eu como: critico isso desde os fundamentos de um curso de Odontologia ou Medicina lá das ciências básicas, Instrumento de integração e conhecimento do ou até das disciplinas pré-clínicas, em que, por aluno com a realidade social e econômica de sua exemplo, você gasta muito tempo com mane- região e do trabalho de sua área. Ele deve, tam- quins, sendo que tem uma sociedade inteira bém, ser entendido como o atendimento integral precisando de atividades de promoção e preven- ao paciente que o aluno de Odontologia presta à ção, e só vai receber tardiamente [...]. O aluno comunidade, intra e extra muros. O aluno pode depois faz isso de forma viciada, como se estivesse cumpri-lo em atendimentos multidisciplinares trabalhando com manequins vivos quando entra e em serviços assistenciais públicos e privados. em contato com a população real, seres humanos (Abeno, 2004, p. 1). de carne e osso. (Entrevistado 4). Dentre os cenários, a comissão sugere: a Rede de A diversificação de cenários de ensino/aprendizagem é, ao mesmo tempo, uma estratégia para induzir Serviços Públicos, o Programa de Saúde da Família, Internato Rural, Estágio Metropolitano etc. mudanças mais profundas no processo de formação Além disso, formar profissionais de saúde com visão profissional e um elemento em si mesmo constitutivo integral da realidade social, dos problemas e também dos de uma nova maneira de pensar a formação profissional indivíduos contribui para evitar a especialização precoce. (Feuerwerker, 2002). Atuando diretamente nos serviços de saúde, contribui-se também para que os estudantes tenham [...] a gente tem que começar a rever o projeto a oportunidade de perceber como são dinâmicas as pedagógico, a montagem de um currículo, a relações de poder, e como elas se estabelecem, seja na carga horária destinada para essas atividades, sociedade civil, seja no interior dos serviços de saúde. para que os cenários de aprendizagem, além Isso permite que desenvolvam uma interpretação crítica de continuarem ocorrendo intracampus, nos do sistema de saúde e tenham elementos para pautar laboratórios, nas clínicas e etc., também se dê sua atuação de forma sistemática, realizando a análise onde? [...] No programa de saúde da família, situacional da realidade, o planejamento das atividades acompanhando uma equipe multiprofissional, a serem desenvolvidas, de gerenciamento e avaliação numa visita domiciliar, atendimento ambu- (Rede Unida, 2000b). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 391 392 FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A. • Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde [...] Senti que um entrosamento melhor entre facilitada pelo professor, agora criador de con- a faculdade e o serviço público traria grande dições para que o estudante adquira liberdade avanço no entendimento da realidade dos com responsabilidade. Por sua vez, o professor problemas odontológicos da população para os é sujeito no processo de construção da proposta alunos. Prepará-los melhor para a realidade pedagógica e da prática profissional, assim seria uma boa meta para a graduação. (Res- como os pacientes/comunidade são sujeitos da pondente 56). construção de sua saúde. (Rede Unida, 2000c, p. 95). A construção de sujeitos da aprendizagem no processo de formação profissional Ser sujeito da aprendizagem significa que a pessoa aprende por si só e ativamente, buscando os conheci- Outra característica relativa ao ensino que foi mentos necessários para encontrar a resposta para uma importante na formação do profissional para o trabalho pergunta, um problema, uma situação. Nessa concepção, realizado no SUS, segundo as respostas dos entrevis- o estudante aprende a partir da resolução de problemas, tados, é a construção de sujeitos da aprendizagem no da realidade concreta dos fatos. Assim, ocorre uma processo de formação profissional. integração dinâmica da teoria à prática, a partir do A construção do conhecimento deve ocorrer a partir da problematização da realidade, da articulação processo de ação-reflexão-ação (Feuerwerker, 2002; Rede Unida, 2000c). teoria-prática, da interdisciplinaridade e, consequentemente, da participação ativa do estudante no processo [...] Acho importante a graduação ter como de ensino-aprendizagem (Rede Unida, 2000a). referência a formação do aluno crítico em Há reconhecimento geral de que o carro-chefe do relação ao contexto sócio-econômico-cultural. processo de aprendizagem do adulto é o enfrentamento Isso possibilitará o aluno de realizar tarefas de desafios e problemas. Nesse sentido, deve-se buscar, como planejar e executar ações, reavaliando-as. ao invés da transmissão, a construção do conhecimento e (Respondente 17). adoção de metodologias ativas de ensino/aprendizagem. Nesse sentido, a utilização de metodologias ativas Outro elemento importante para pensar o pro- pressupõe uma formação universitária que proponha cesso de construção de sujeitos da aprendizagem na concretamente desafios a serem superados pelos estu- formação de profissionais é uma consequência da dantes, que lhes possibilitem ocupar o lugar de sujeitos velocidade vertiginosa com que se produzem e disponi- na construção do conhecimento (com visão crítica, bilizam conhecimentos e tecnologias no mundo atual. capacidade de ação e de proposição) e que coloquem o Os conhecimentos, habilidades e atitudes exigidas do professor como facilitador e orientador desse processo. profissional modificam-se rapidamente; por isso, perde ainda mais força e sentido a ênfase na transmissão do A aprendizagem é interpretada como um ca- conhecimento. minho que possibilita ao sujeito transformar-se Aprender a aprender constitui, então, um dos e transformar seu contexto. Por isso, o aluno objetivos fundamentais de aprendizagem do curso de tem se tornado sujeito da aprendizagem, que é graduação. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A. • Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde Esse processo envolve o desenvolvimento de ha- Isto é, a prática se torna elemento fundamental bilidades de busca, seleção e avaliação crítica do conhe- no processo de ensino/aprendizagem, mas não garante, cimento que a realidade demanda, através de dados e por si só, a aprendizagem. Dependendo da concepção informações disponibilizados em livros, periódicos, bases pedagógica, existe maior ou menor articulação da situ- de dados locais, além da utilização das fontes pessoais de ação de aprendizagem com a prática e com a produção informação, dentre elas a experiência prévia dos próprios do conhecimento (Feuerwerker, 2002). estudantes (Rede Unida, 2000c). Entretanto, a aplicação de novas metodologias de Essa questão da velocidade com que se produz ensino/aprendizagem não deve ser realizada de forma conhecimento, atualmente, deve servir de base para a isolada, como fruto de algumas iniciativas. A conside- construção dos projetos pedagógicos dos cursos. Nesse ração dos aspectos destacados neste capítulo impõe o sentido, deve existir flexibilidade nos currículos, de for- reconhecimento da importância e busca da construção ma que possibilite mudanças dependendo dos resultados de um projeto político-pedagógico que oriente a cons- e acontecimentos do mundo. trução do currículo, levando em conta a concepção A ênfase nos conteúdos também é insustentável, pois é impossível cobrir e atualizar tudo em tempo real. pedagógica, de homem, de saúde, de modelo de atenção e tudo o mais (Rede Unida, 2000c). Sendo assim, pela necessidade de continuar aprendendo durante toda a vida, o estudante, mais do que receber toneladas de informações, precisa aprender o essencial CONCLUSÕES e, mais importante, aprender a aprender criticamente (Rede Unida, 2000c). Outro conceito-chave na construção da apren- O percurso desenvolvido neste estudo permitiu dizagem é o de ‘aprender na prática’, que pressupõe a destacar alguns elementos importantes para a formação inversão da sequência clássica teoria/prática na produção do cirurgião-dentista que trabalhará no SUS. do conhecimento e assume que esse processo ocorre de forma dinâmica através da ação-reflexão-ação. Formar um profissional de saúde com perfil adequado às necessidades sociais implica propiciar Isso é fundamental para que o processo de ensi- capacidade de aprender a aprender, trabalhar em equi- no/aprendizagem esteja intrinsicamente vinculado aos pe, comunicar-se, ter agilidade frente às situações, ter cenários reais de prática e baseado nos problemas da capacidade crítica e propositiva. Portanto, além de se realidade de determinada população. valorizar a excelência técnica, é necessário enfatizar a Na área da saúde, isso significa dizer que as ati- relevância social das ações de saúde e do próprio ensi- vidades práticas estejam presentes ao longo de toda no. Isso implica a formação de profissionais capazes de carreira e cumpram o papel de ‘disparadores’ do pro- prestar atenção integral mais humanizada, trabalhar em cesso de busca/construção do conhecimento (Rede equipe e compreender melhor a realidade em que vive Unida, 2000c). a população (Morita; Kriger, 2004; Rede Unida, Finalizando, dependendo da metodologia pedagó- 2000c). gica adotada, há maiores ou menores possibilidades de São características da formação que não combinam o estudante desenvolver a iniciativa, o espírito crítico, o com a formação tradicional e com a pedagogia da trans- conhecimento da realidade e o compromisso social. missão que predomina nas universidades. Esses desafios Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 393 394 FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A. • Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde contribuem para que seja grande a pressão sobre as uni- estudante um maior conhecimento da população que versidades pela adoção de metodologias que favoreçam será atendida. o desenvolvimento do senso crítico e da capacidade de Sendo assim, a tendência é sair de uma prática reflexão e a participação ativa dos estudantes na cons- profissionalizante em clínica de especialidades para trução do conhecimento. uma prática em clínicas integradas e atividades extra- Além disso, os conteúdos precisam ser trabalhados murais em unidades do SUS, com graus crescentes de na realidade, possibilitando ao estudante a problema- complexidade. Da mesma forma, é preciso substituir tização daquela situação real. A mudança didático- os serviços próprios isolados da rede SUS por serviços pedagógica que se almeja, visa a sair do ensino centrado próprios completamente integrados ao SUS, com desen- no professor para atingir uma aprendizagem ativa; cabe volvimento de mecanismos institucionais de referência ao professor o papel de facilitador do processo de cons- e de contrarreferência com a rede. trução do conhecimento, caracterizando o estudante Dessa forma, deve-se construir uma relação de par- como o sujeito da aprendizagem. A interação ativa do ceria entre as universidades e o setor público. Construir estudante com a população e profissionais de saúde essa relação pode possibilitar a produção, no bojo desse deve ocorrer desde o início do processo de formação, processo, de alternativas pedagógicas que favoreçam a trabalhando com problemas reais, assumindo respon- articulação entre teoria e prática, ensino e trabalho, bem sabilidades crescentes. como a adoção de enfoques interdisciplinares (Rede Isso ainda não é o suficiente. Um projeto peda- Unida, 2000c). gógico que sinaliza para a transformação da realidade deve ser construído para e com a sociedade. Os esforços devem ser voltados para a construção coletiva, R E F E R Ê N C I A S junto a gestores da Universidade, às Secretarias municipais, aos profissionais e trabalhadores da saúde, ao estudante e à população. Ou seja, ao invés de se criar um “laboratório” dentro do Centro de Saúde, por exemplo, o estudante e o professor devem participar do planejamento e aprender, dentro dessa lógica, com aquilo que é real, e então a aprendizagem passará a ser significativa. Outra ação importante para a reflexão da Universidade parte do conceito ampliado de saúde, em que todos os cenários onde se produz saúde são ambientes relevantes de aprendizagem. No sentido da diversificação dos cenários de ensino/aprendizagem, a rede de serviços públicos passa a ser um espaço privilegiado de ensino. Práticas de ensino também podem ser desenvolvidas com eficácia e eficiência em Unidades Básicas de Saúde, na comunidade e nos domicílios, permitindo ao Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010 Amorim, K.P.C. Nos labirintos da vida: a (bio)ética na formação de odontológos (a visão de docentes). 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Como se dominasse uma língua universal, sua palavra era acatada no plenário do Congresso Nacional, no diretório acadêmico, na congregação, no sindicato. Sua pena parecia também estar em todos os lugares, era encontrada na circunspecta revista técnica, mas não se negava a prestigiar a imprensa das bancas, fosse “A Folha de São Paulo” ou “A Tribuna de Madureira”. Com igual precisão, seu pensamento surgia na monografia Cebes. Carlos Gentile de Mello. Revista acadêmica ou na rápida carta que se estampava na secção própria dos jornais Saúde em Debate, n. 17, jul. 1985. p. 6. de cada dia. Lido ou ouvido, Gentile sabia como ninguém tornar simples as situações mais complexas, assim como era capaz de mostrar a complexidade de formulações, a primeira vista, singelas. Confessava-se um “otimista incorrigível”, mas via com redobrado ceticismo a possibilidade de melhores condições sanitária para a população enquanto prevalecesse um sistema de saúde “caótico, corruptor, incontrolável, irracional e elitista”. Especialista em problemas de magnitude, desenvolvia com esmero o trabalho minucioso da auditoria médica, do controle da infecção hospitalar, do inquérito epidemiológico, sempre acrescentando algo de original e inusitado. Afinal, era um criador. Os livros e os estudos que nos legou continuam rigorosamente atuais, até porque permanecem os mesmos problemas e os mesmos impasses. Dias depois do 27 de outubro de 1982, em uma formatura de sanitaristas, o filho de Carlos Gentile de Mello, herdeiro do nome, da fibra e da disposição, dizia: “O Brasil perdeu um grande homem... vocês perderam um exemplo de profissional da medicina e sobretudo um amigo... eu perdi um Pai Magnífico”. Nós, criaturas, continuamos ainda com a mesma sensação de orfandade. Grafia do texto original mantida Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 396-396, jan./mar. 2010 RESENHA / CRITICAL REVIEW Por Marina Bittencourt 1 A s instituições psiquiátricas nasceram há pouco mais de dois séculos e vêm sofrendo modificações ao longo do tempo, sendo que o Brasil conta com transformações locais, nesse âmbito, consideradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como das mais avançadas do mundo. No livro Reforma Psiquiátrica – as experiências francesa e italiana, de Izabel C. Friche Passos, lançado pela Fiocruz, são analisados alguns modelos de instituição psiquiátrica. O livro, ao abordar o tema da loucura, não se refere a uma realidade delimitada rigorosamente e de composição interna homogênea. É uma questão não só da psiquiatria, mas também das filosofias, artes, história universal, política etc. Izabel Passos discorre sobre dois grandes modelos pioneiros: o francês Passos, Izabel C. Friche. Reforma estatizante de setor e o italiano socializante. A psicoterapia institucional Psiquiátrica – as experiências francesa, do Hospital La Borde, no Vale do Loire, suscitou debates relevantes francesa e italiana. Rio de Janeiro: sobre a nova clínica da atenção psicossocial. Já a psiquiatria democrática Fiocruz, 2009 italiana, que teve sua origem em Trieste, com Franco Basaglia, teve desdobramentos em grande parte da Itália e em diversos lugares do mundo. A autora discorre sobre diversos aspectos favoráveis e desfavoráveis dos modelos citados, analisando seus estabelecimentos fundadores; suas concepções institucionais, organizacionais e também da loucura (que inspira a teoria e a prática dos modelos e seus estabelecimentos) e características políticoeconômico-culturais dos países onde se desenvolveram os programas. A instituição psiquiátrica, predominantemente de forma asilar, sempre sofreu controvérsias e crises sucessivas, mas essa prática institucional continua sólida em nossa sociedade. No prefácio, Gregorio Franklin Baremblitt afirma: depois de analisar e sopesar cuidadosamente cada ‘modelo’, suas realizações e suas limitações, todos os níveis de suas funções e fun- 1 Jornalista, pós-graduanda em sociologia urbana pela UERJ [email protected] Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 397-398, jan./mar. 2010 397 398 RESENHA / CRITICAL REVIEW cionamentos, a autora ‘pinça’, com um sereno e perspicaz critério de seleção, os recursos de cada tendência que podem eventualmente ser aproveitados para um novo modelo que seja um ‘justo meio’ da balança. No processo brasileiro de reforma psiquiátrica, a psicoterapia institucional francesa e a psiquiatria democrática italiana foram duas importantes referências. Esse livro pode ser muito útil aos trabalhadores de saúde mental, mostrando a história dos modelos inovadores de reforma psiquiátrica, suas mudanças ao longo do tempo e sua situação atual. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 397-398, jan./mar. 2010 Associe-se ao Cebes e receba as nossas revistas O Cebes tem duas linhas editoriais. a revista Saúde em Debate, que o associado recebe quadrimestralmente em abril, agosto e dezembro, e a Divulgação em Saúde para Debate, cuja edição tem caráter temático, sem periodicidade regular. QUEM SOMOS Desde a sua criação em 1976 o Cebes tem como centro de seu projeto a luta pela democratização da saúde e da sociedade. Nesses 34 anos, como centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteve assegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta, em movimentos sociais, nas instituições ou no parlamento. Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o Cebes continua empenhado em fortalecer seu modelo democrático e pluralista de organização; em orientar sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir nas políticas e nas práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e a formulação teórica sobre as questões de saúde; e, em contribuir para a consolidação das liberdades políticas e para a constituição de uma sociedade mais justa. A produção editorial do Cebes é resultado do trabalho coletivo. Estamos certos que continuará assim, graças a seu apoio e participação. A ficha abaixo é para você tornar-se sócio ou oferecer a um amigo! Basta enviar a taxa de associação (anuidade) de R$ 150,00 (institucional), R$ 100 (profissional) ou R$ 50,00 (estudante) em cheque nominal e cruzado, junto com a ficha devidamente preenchida, em carta registrada, ou solicitar, nos telefones ou e-mail abaixo. CORRESPONDÊNCIAS DEVEM SER ENVIADAS PARA Cebes – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Av. Brasil, 4.036 – Sala 802 – Manguinhos – 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140 e 3882-9141 – Fax.: (21) 2260-3782 Site: www.cebes.org.br / www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] / [email protected] FICHA DE INSCRIÇÃO (preencher em letra de forma) Valor: R$ 100,00 Para efetuar depósito: Caixa Econômica Federal – Agência: 1343 C/C: 0375-4 Operação: 003 CNPJ: 48.113.732/0001-14 Pagamento de Anuidade Nome: Nova Associação Endereço: Atualização de Endereço Complemento: Bairro: CEP: Cidade: UF: Tel.: ( ) Cel.: Fax.: ( E-mail: Local de Trabalho: Profissão: Data de Inscrição:Assinatura: ) Instruções aos autores - Saúde em Debate A revista Saúde em Debate, criada em 1976, é uma publicação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde políticas de saúde no Brasil, com tamanho entre 10 e 15 laudas. (Cebes) voltada para as Políticas Públicas na área da saú- 3.Revisão: artigos com revisão crítica da literatura de. Publicada trimestralmente, desde 2010, nos meses sobre um tema específico, com tamanho entre 10 e 15 de março, junho, setembro e dezembro, é distribuída a laudas. todos os associados em situação regular com o Cebes. Aceita trabalhos inéditos sob forma de artigos originais, resenhas de livros de interesse acadêmico, político e social, além de depoimentos. Os textos enviados para publicação são de total e exclusiva responsabilidade dos autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos 4.Relato de experiência: artigos com descrições de experiências acadêmicas, assistenciais e de extensão, com tamanho entre 10 e 15 laudas. 5.Opinião: de autoria exclusiva de convidados pelo Editor Científico da revista, com tamanho entre 10 e 15 laudas. Nesse formato não são exigidos o resumo e o abstract. artigos desde que identificadas a fonte e a autoria. A publicação dos trabalhos está condicionada à Resenhas aprovação de membros do Conselho ad-hoc, seleciona- Serão aceitas resenhas de livros de interesse para a dos para cada número da revista, que avaliam os artigos área de Políticas Públicas de saúde, a critério do Conse- pelo método duplo-cego, isto é, os nomes dos autores lho Editorial. Os textos deverão apresentar uma noção e dos pareceristas permanecem sigilosos até a publica- do conteúdo da obra, de seus pressupostos teóricos e do ção do texto. Eventuais sugestões de modificações da público a que se dirige, em até três laudas. estrutura ou de conteúdo, por parte da Editoria, serão previamente acordadas com os autores, por meio de comunicações via site e e-mail. Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois da aprovação final para publicação. MODALIDADES DE TEXTOS ACEITOS PARA PUBLICAÇÃO Documentos e depoimentos Serão aceitos trabalhos referentes a temas de interesse histórico ou conjuntural, a critério do Conselho Editorial. SEÇÕES DA PUBLICAÇÃO A revista está estruturada com as seguintes seções: Artigos originais 1.Pesquisa: artigos que apresentem resultados Editorial Apresentação finais de pesquisas científicas, com tamanho entre Artigos de Debate 10 e 15 laudas. Artigos resultantes de pesquisas que Artigos Temáticos envolvem seres humanos devem ser enviados junto Artigos de Tema Livre de cópia do documento da Comissão de Ética da Artigos Internacionais instituição. Resenhas 2.Ensaios: artigos com análise crítica sobre um tema Depoimentos específico de relevante interesse para a conjuntura das Documentos plo: ‘porta de entrada’. Aspas duplas serão usadas APRESENTAÇÃO DO TEXTO apenas para citações diretas. Sequência de apresentação do texto c. quadros, gráficos e figuras deverão ser enviados em arquivo de alta resolução, em preto e branco Os artigos podem ser escritos em português, es- e/ou escala de cinza, em folhas separadas do texto, panhol ou inglês. Os textos em português e espanhol devem ter título numerados e intitulados corretamente, com indi- na língua original e em inglês. Os textos em inglês devem cações das unidades em que se expressam os valores ter título em inglês e português. e as fontes correspondentes. O número de quadros e de gráficos deverá ser, no máximo, de cinco por O título, por sua vez, deve expressar clara e sucin- artigo. Os arquivos devem ser submetidos um a tamente o conteúdo do artigo. A folha de apresentação deve trazer o nome um, ou seja, um arquivo para cada imagem, sem completo do(s) autor(es) e, no rodapé, as informações informações sobre os autores do artigo, citando profissionais (contendo filiação institucional e titulação), apenas a fonte do gráfico, quadro ou figura. De- endereço, telefone e e-mail para contato. Essas infor- vem ser numerados sequencialmente, respeitando mações são obrigatórias. Quando o artigo for resultado a ordem em que aparecem no texto. de pesquisa com financiamento, citar a agência finan- d. os autores citados no corpo do texto deverão ciadora e se houve conflito de interesses na concepção estar escritos em caixa-baixa (só a primeira letra da pesquisa. maiúscula), observando-se a norma da ABNT Apresentar resumo em português e inglês (abs- NBR 10520:2002 (disponível em bibliotecas). Por tract) ou em espanhol e inglês com, no máximo, 700 exemplo: “conforme argumentam Aciole (2003) caracteres com espaço (aproximadamente 120 pala- e Crevelim e Peduzzi (2005), correspondente à vras), no qual fique clara a síntese dos propósitos, mé- atuação do usuário nos Conselhos de Saúde...” todos empregados e principais conclusões do trabalho. e. as referências bibliográficas deverão ser apresen- Devem ser incluídos, ao final do resumo, o mínimo tadas, no corpo do texto, entre parênteses com de três e o máximo de cinco descritores (keywords), o nome do autor em caixa-alta seguido do ano utilizando, de preferência, os termos apresentados no e, em se tratando de citação direta, da indicação vocabulário estruturado (DeCS), disponíveis no ende- da página. Por exemplo: (FLEURY-TEIXEIRA, reço http://decs.bvs.br. Caso não sejam encontrados 2009, p. 380; COSTA, 2009, p. 443). descritores relacionados à temática do artigo, poderão ser indicados termos ou expressões de uso conhecido no âmbito acadêmico. a. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do artigo, observando-se a norma da ABNT NBR Em seguida apresenta-se o artigo propriamente dito: 6023:2002 (disponível em bibliotecas), com algumas adap- as marcações de notas de rodapé no corpo do texto tações (abreviar o prenome dos autores). Exemplos: deverão ser sobrescritas. Por exemplo: Reforma Sanitária1 b. LIVRO: para as palavras ou trechos do texto destacados a FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Seguridade critério do autor, utilizar aspas simples. Por exem- social, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2009. em página padrão A4, com fonte Times New Roman CAPÍTULO DE LIVRO: FLEURY, S. Socialismo e democracia: o lugar do tamanho 12 e espaçamento entre linhas de 1,5. sujeito. In: FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org). Partici- Os documentos solicitados (relacionados a se- pação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2009. guir) deverão ser enviados via correio, devidamente assinados. ARTIGO DE PERIÓDICO: ALMEIDA-FILHO, N. A problemática teórica Declaração de autoria e de responsabilidade da determinação social da saúde (nota breve sobre de- Segundo o critério de autoria do International sigualdades em saúde como objeto de conhecimento). Committee of Medical Journal Editors, os autores devem Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 83, set./dez. contemplar as seguintes condições: a) contribuir subs- 2010, p. 349-370. tancialmente para a concepção e o planejamento, ou para a análise e a interpretação dos dados; b) contribuir significativamente na elaboração do rascunho ou revisão MATERIAL DA INTERNET: CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE [internet]. Normas para publicação da Revista Saúde em Debate. Disponível em: <http://www.saudeemdebate.org.br/artigos/normas_publicacoes.pdf>. crítica do conteúdo; c) participar da aprovação da versão final do manuscrito. Para tal, é necessário que todos os autores e coautores assinem a Declaração de Autoria e de Responsabilidade, conforme modelo, disponível em Acesso em: 9 jun. 2010. http://www.saudeemdebate.org.br/artigos/index.php Submissão Conflitos de interesse Os artigos devem ser submetidos exclusivamente pelo site: www.saudeemdebate.org.br, após realizar login fornecido junto da senha após o cadastro do autor responsável pela submissão. Todos os campos obrigatórios devem ser devidamente preenchidos. O artigo submetido e o arquivo enviado devem ser iguais, contendo as mesmas informações. No corpo do texto não deve conter nenhuma informação que possibilite identificar os autores ou instituições. Todas as informações relacionadas aos autores Os trabalhos encaminhados para publicação deverão conter informação sobre a existência de algum tipo de conflito de interesse entre os autores. Os conflitos de interesse financeiros, por exemplo, não estão relacionados apenas ao financiamento direto da pesquisa, mas também ao próprio vínculo empregatício. Caso não haja conflito, apenas a informação “Declaro que não houve conflito de interesses na concepção deste trabalho” na página de rosto (folha de apresentação do artigo) será suficiente. devem constar apenas no arquivo submetido. Os arquivos referentes a tabelas, gráficos e figuras Ética em pesquisa devem ser submetidos separadamente do arquivo com No caso de pesquisas iniciadas após janeiro de o texto principal e não devem conter identificações 1997 e que envolvam seres humanos nos termos do sobre os autores. inciso II da Resolução 196/96 do Conselho Nacional ® O artigo deve ser digitado no programa Microsoft de Saúde (pesquisa que, individual ou coletivamente, Word ou compatível (salvar em formato .doc ou .docx), envolva o ser humano de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de aceito para publicação; aceito para publicação (com informações ou materiais) deverá ser encaminhado um sugestões não-impeditivas); reapresentar para nova documento de aprovação da pesquisa pelo Comitê de avaliação após efetuadas as modificações sugeridas; Ética em Pesquisa da instituição onde o trabalho foi recusado para publicação. realizado. No caso de instituições que não disponham de Caso a avaliação do parecerista solicite modifica- um Comitê de Ética em Pesquisa, deverá ser apresentada ções, o parecer será enviado aos autores para correção do a aprovação pelo CEP onde ela foi aprovada. artigo, com prazo para retorno de sete dias. Ao retornar, o parecer volta a ser avaliado pelo parecerista, que terá Fluxo dos originais submetidos à publicação Todo original recebido pela secretaria do Cebes é encaminhado ao Conselho Editorial para avaliação da pertinência temática e observação do cumprimento das normas gerais de encaminhamento de originais. Depois, é verificado pela secretaria editorial, para confirmação de adequação às normas da revista. Uma vez aceitos para apreciação, os originais são encaminhados a dois membros do quadro de revisores Ad-Hoc (pareceristas) da revista. Os pareceristas serão escolhidos de acordo com o tema do artigo e sua expertise, priorizando-se conselheiros que não prazo de 15 dias, prorrogável por mais 15 dias. Caso haja divergência de pareceres, o artigo será encaminhado a um terceiro conselheiro para desempate (o Conselho Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer). No caso de solicitação de alterações no artigo, poderão ser encaminhados em até três meses. Ao fim desse prazo e não havendo qualquer manifestação dos autores, o artigo será considerado retirado. O modelo de parecer utilizado pelo Conselho Científico está disponível em: http://www.saudee mdebate.org.br sejam do mesmo estado da federação que os autores. Os conselheiros têm prazo de 45 dias para emitir o Endereço para correspondência: parecer. Ao final do prazo, caso o parecer não tenha Avenida Brasil, 4.036, sala 802 sido enviado, o consultor será procurado e será ava- CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro liada a oportunidade de encaminhamento a outro (RJ), Brasil conselheiro. O formulário para o parecer está dispo- Tel.: (21) 3882-9140 nível para consulta no site da revista. Os pareceres Fax: (21) 2260-3782 sempre apresentarão uma das seguintes conclusões: E-mail: [email protected] Instructions to authors – Saúde em Debate The journal Saúde em Debate, created in 1976, is a 3. Review: articles presenting literature critical publication by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Ce- comments on a specific theme, presented in 10 to bes) which is directed to the public policies of the health 15 pages. field. Published quarterly since 2010, that is, in March, 4. Experience report: articles describing academic, June, September and December, the journal is distributed assistance and extension experiences, also presented in to all associates in regular situation with Cebes. 10 to 15 pages. Unpublished articles structured as original articles, 5. Opinion: the authorship is exclusive to persons reviews of books of academic, politic and social mean- invited by the journal’s scientific editor, also presented ing, as well as statements, are accepted. in 10 to 15 pages. In this modality, the abstract is not The authors are entirely and exclusively responsible required. for the papers submitted for publication. Total or partial reproduction of the articles is allowed under the condition of indicating the source and the authorship. Review Review of books directed to the field of health public policies will be accepted according to the editorial The publication of the papers is conditioned to board’s criteria. The papers must present a view of the approval by members of the ad-hoc council, who are content of the book, as well as its theoretical principles selected to each issue of the journal and assess the ar- and an idea of the public to which it is directed, being ticles by the double-blind method, that is, the name of presented in up to three pages. the authors and reviewers remain confidential till the paper is published. Eventual suggestions of structure or content modifications by the editors will be previously decided together with the authors via website or e-mail. Additions or modifications will not be accepted after the final approval for publication. TYPES OF TEXTS ACCEPTED FOR Documents and statements Papers referring to historical or conjunctive themes will be accepted according to the editorial board’s criteria. PUBLICATION SECTIONS PUBLICATION The journal is structured in the following sections: Original Articles 1. Research: articles that present final results of Editorial Presentation scientific research, presented in 10 to 15 pages. Articles Debate articles resulting from research involving human beings must be Thematic articles sent with a copy of the form by the Ethics Committee Free articles of the institution. International articles 2. Essays: articles presenting critical analyses on a Reviews specific theme of relevance for the assemblage of health Statements policies in Brazil, presented in 10 to 15 pages. Documents For example: ‘entrance door’. Quotation marks TEXT PRESENTATION will be used only for direct citations. Sequence of text presentation c. printing quality, in black and white or grayscale, The papers may be written in Portuguese, Spanish separately from the text and correctly numbered or English. and entitled, with indication of the value’s units Texts in Portuguese and Spanish must present and respective sources. The number of charts and the title in the original language and in English. Texts graphs should not exceed five per article. The files in English must present the title in English and in must be submitted one by one, that is, one file Portuguese. for each image, without information about the The title, in turn, must express clearly and briefly authors, being mentioned only the source of the the content of the paper. graph, chart or figure. These elements must be The presentation page should present the com- sequentially numbered, being respected their order plete name of the authors and, in the footnote, their of appearance in the text. professional information (institutional bond and titles), address, phone number and e-mail address for contact. d. capital letter), being observed the ABNT NBR the result of financed research, the financial source must 10520:2002 patterns (available in libraries). For be indicated, as well as the existence or not of conflict example: “according to Aciole (2003) and Cre- of interests during the production of the paper. velim and Peduzzi (2005), it corresponds to the The manuscript must present an abstract in Por- clients’ participation in Health Councils…” tuguese and in English or Spanish with up to 700 charthe synthesis of the purposes, methods employed and main conclusions of the paper must be clear. In the end of the abstract, a minimum of three and maximum of five keywords should be included, using preferentially the terms presented in the structured vocabulary Health Science Descriptors (DeCS), available at http://decs. the authors mentioned in the body of the text must be written in small letters (only the first in This information is obligatory. When the article depicts acters with space (approximately 120 words), in which charts, graphs and figures must be sent in high e. the bibliographical references must be presented, in the text body, in parenthesis, being the name of the authors fully written in capital letters followed by the year of publication and, in case of direct citations, by the page number. For example: (FLEURY-TEIXEIRA, 2009, p. 380; COSTA, 2009, p. 443). bvs.br. If the keywords related to the article’s theme are not found, other terms or expressions of common knowledge in the field may be employed. a. The references must be indicated in the end of the article, being observed the ABNT NBR 6023:2002 Next, the article itself is presented: patterns, with some adaptations (abbreviate the author’s the indication of footnotes in the body of the first name). Examples: text must be superscript. For example: Sanitary Reform1 b. BOOK: as to words or passages emphasized to the author’s FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.) Seguridade discretion, simple quotation marks must be used. social, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2009. BOOK CHAPTER: observe the following conditions: a) contribute substantially FLEURY, S. Socialismo e democracia: o lugar do to the conceiving and planning, or to the analysis and data sujeito. In: FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Partici- interpretation; b) contribute significantly to the elaboration pação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2009. of rough copy or critical review of the content; c) participate in the approval of the manuscript’s final version. In order to PERIODICAL ARTICLE: ALMEIDA-FILHO, N. A problemática teórica da determinação social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento). Saúde do that, it is necessary that all authors and co-authors sign the Declaration of Authorship and Responsibility, in conformity with the model available at <http://www.saudeemdebate. org.br/artigos/index.php> em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 83, set./dez. 2010, p. 349-370. Conflicts of interest The papers submitted for publication should contain ON-LINE MATERIAL: CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE [internet]. Normas para publicação da Revista Saúde em Debate. Available from: <http://www.saudeemdebate.org.br/ information about the existence or not of any kind of conflict of interests among the authors. Financial interests, for instance, are not only related to the direct financing of the research, but also to the employment relationship itself. If artigos/normas_publicacoes.pdf>. Cited on: Jun 9, 2010. there is no conflict, the following information in the pre- Submission no conflicts of interests with regard to this article”. sentation page will do: “The authors declare that there are The articles must be submitted exclusively through the site: www.saudeemdebate.org.br, after logging in and indicating the password provided after the registration of the author who is responsible for the submission. All required fields must be correctly filled out. The file submitted and the file sent must be equal, containing the very same information. The text body should not present any information that may allow the identification of the authors or institutions. Information related to the authors must be indicated only in the submitted file. The files containing tables, graphs and figures must be submitted apart from the file containing the main text, and Research ethics As to research initiated after January 1997 and involving human beings, in compliance with item II of the Resolution 196/96 of the National Health Council (research involving individually or collectively, directly or indirectly, totally or partially a human being, including the handling of information and material), a document of approval by the Research Ethics Committee of the institution where the study was carried out must be sent. In case of institutions that do not dispose of an Ethics Committee, an approval by other committee must be sent. should not provide identification of the authors. The article must be typed in Microsoft® Word or compatible software (save as .doc or .docx), in A4 page, Times New Roman typeface 12 pt and 1.5 line space. The required documents (indicated next) should be sent by mail and properly signed. Flow of manuscripts submitted for publication All manuscripts received by the CEBES bureau are conducted to the editorial board to assessment of thematic relevance and observation of the accomplishment of the manuscript submission general rules. Later on, the editorial bureau verifies the paper as to confirm its adequacy to Declaration of authorship and responsibility According to the authorship criteria by the International Committee of Medical Journal Editors, the authors must the journal’s patterns. Once accepted for appreciation, the manuscripts are sent to two Ad-Hoc technical reviewers of the journal (peer-review). The reviewers are chosen accord- ingly to the theme of the article and his/her expertise, and If there is divergence of opinions, the article is sent to priority is given to counselors that do not pertain to the same a third counselor for decision (the editorial board may is- federation state as the authors. The counselors are given a sue a third opinion to its discretion). If other alterations are 45-day deadline to issue their opinion. If the opinion is not requested, they may be sent in up to three months. issued at the end of the deadline, the counselor is contacted At the end of the deadline and not having any mani- and the opportunity of sending the manuscript to other festations by the authors, it will be considered as a with- counselor is considered. The review form is available for drawal. consultation in the journal’s website. The opinions always present the following conclusions: accepted for publication; The model of opinion used by the scientific board is available at: http://www.saudeemdebate.org.br accepted for publication (with non-hindering suggestions); resubmit for new assessment after accomplishing the sug- Mailing address: gested modifications; refused for publication. Avenida Brasil, 4036, room 802 If the reviewer’s assessment requires modifications, the CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), opinion will be sent to the authors, so they correct the manu- Brazil. script within a seven-day deadline. When the manuscript is sent Phone: (21) 3882-9140 back, the opinion is reassessed by the reviewer within a 15-day Fax: (21) 2260-3782 deadline, which may be prorogated to another 15 days. E-mail: [email protected] Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Saúde em Debate DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2009-2011) A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2009-2011) Presidente: Roberto Passos Nogueira Primeiro Vice-Presidente: Luiz Antonio Neves Diretora Administrativa: Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR Paulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ) Diretor de Política Editorial:Paulo Duarte de Carvalho Amarante Diretores Executivos: Ana Maria Costa Guilherme Costa Delgado Hugo Fernandes Junior Lígia Giovanella Nelson Rodrigues dos Santos Diretores Ad-hoc: Alcides Miranda Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL Ary Carvalho de Miranda Assis Mafort Ouverney Lígia Bahia CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL Agleildes Aricheles Leal de Queiroz CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL Alicia Stolkiner – UBA (Argentina) Angel Martinez Hernaez – Universidad Rovira i Virgili (Espanha) Carlos Botazzo – USP (SP/Brasil) Catalina Eibenschutz – UAM-X (México) Cornelis Johannes Van Stralen – UFMG (MG/Brasil) Diana Mauri – Universidade de Milão (Itália) Eduardo Maia Freese de Carvalho – CPqAM/FIOCRUZ (PE/Brasil) Giovanni Berlinguer – Universitá La Sapienza (Itália) Hugo Spinelli – UNLA (Argentina) José Carlos Braga – UNICAMP (SP/Brasil) José da Rocha Carvalheiro – FIOCRUZ (RJ/ Brasil) Luiz Augusto Facchini – UFPel (RS/Brasil) Maria Salete Bessa Jorge – UECE (CE/Brasil) Paulo Marchiori Buss – FIOCRUZ (RJ/Brasil) Rubens de Camargo Ferreira Adorno – USP (SP/Brasil) Sônia Maria Fleury Teixeira – FGV (RJ/Brasil) Sulamis Dain – UERJ (RJ/Brasil) REVISÃO DE TEXTO, CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA PROOFREADING COVER, LAYOUT AND DESKTOP PUBLISHING Zeppelini Editorial Zeppelini Editorial IMPRESSÃO E ACABAMENTO PRINT AND FINISH Corbã Editora Artes Gráficas Corbã Editora Artes Gráficas TIRAGEM NUMBER OF COPIES 2.000 exemplares 2,000 copies Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em Julho de 2010 This publication was printed in Rio de Janeiro on July, 2010 Capa em papel cartão supremo 250 g/m2 Cover in premium card 250 g/m2 Miolo em papel kromma silk 90 g/m2 Core in kromma silk 90 g/m2 Alcides Silva de Miranda Alberto Durán González Editora Executiva / Executive Editor Marília Fernanda de Souza Correia Eleonor Minho Conill Ana Ester Melo Moreira Eymard Mourão Vasconcelos Indexação / INDEXATION Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - LILACS História da Saúde Pública na América Latina e Caribe - HISA Sistema Regional de Informaciónen Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - LATINDEX Sumários de Revistas Brasileiras - SUMÁRIOS Fabíola Aguiar Nunes Fernando Henrique de Albuquerque Maia Julia Barban Morelli Jairnilson Silva Paim Júlio Strubing Müller Neto Mário Scheffer Naomar de Almeida Filho Silvio Fernandes da Silva Volnei Garrafa SECRETARIA / SECRETARIES Secretaria Geral: Mariana Faria Teixeira Pesquisadora: Suelen Carlos de Oliveira Estagiária: Debora Nascimento ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140, 3882-9141 Fax.: (21) 2260-3782 Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] [email protected] Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./ nov./dez.1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2010. Apoio A Revista Saúde em Debate é associada à Associação Brasileira de Editores Científicos Ministério da Saúde v. 34; n. 85; 27,5 cm Trimestral ISSN 0103-1104 1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES CDD 362.1 carlos gentile de mello Saúde em Debate v.34 n.85 abr./jun. 2010 Cebes ISSN 0103-1104