carlos gentile de mello
Saúde em Debate
v.34
n.85
abr./jun. 2010
Cebes
ISSN 0103-1104
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
Saúde em Debate
DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2009-2011)
A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral
editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
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Zeppelini Editorial
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Corbã Editora Artes Gráficas
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2,000 copies
Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em Julho de 2010
This publication was printed in Rio de Janeiro on July, 2010
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Indexação / INDEXATION
Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - LILACS
História da Saúde Pública na América Latina e Caribe - HISA
Sistema Regional de Informaciónen Línea para Revistas Científicas de
América Latina, el Caribe, España y Portugal - LATINDEX
Sumários de Revistas Brasileiras - SUMÁRIOS
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Fernando Henrique de Albuquerque Maia
Julia Barban Morelli
Jairnilson Silva Paim
Júlio Strubing Müller Neto
Mário Scheffer
Naomar de Almeida Filho
Silvio Fernandes da Silva
Volnei Garrafa
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Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./
nov./dez.1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2010.
Apoio
A Revista Saúde em Debate é
associada à Associação Brasileira
de Editores Científicos
Ministério da Saúde
v. 34; n. 85; 27,5 cm
Trimestral
ISSN 0103-1104
1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES
CDD 362.1
Rio de Janeiro
ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN
0103-1104
v.34
n.85
abr./jun. 2010
Editorial / EDITORIAL
Apresentação
Debate
/
/
presentation
Debate
187 Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma
política pública voltada para a primeira infância
Social determinants of health and the enabling emotional environment: concepts and a strategic framework for a public
policy focused on early childhood
José Gomes Temporão, Liliane Mendes Penello
Debatedores
/
Discussants
201 Estratégia em defesa da criança saudável: cogestão e não-violência como postura existencial e política
Strategy in favor of healthy children: co-management and nonviolence as existential and political attitude
Gastão Wagner de Sousa Campos
204 Um grande avanço
A big step forward
Osmar Terra
RÉPLICA
/
Reply
208 Vinculo como suporte ao ambiente facilitador à vida: uma questão de saúde pública
Bond as a support for favorable environment to life: a matter of public health
José Gomes Temporão, Liliane Mendes Penello
Artigos originais
/
Original articles
Pesquisa
211 Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família
Specialized orientation: the representation of the Family Health Team
Annaiza Freitas Lopes, Renata Amanda Azevedo de Brito, Fátima Luna Pinheiro Landim, Mônica de Oliveira Nunes, Patrícia
Moreira Collares
Pesquisa
219 Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e
vulnerabilidade
In the edge of life, getting around the problems: strategies of well-being of families at risk and vulnerability situation
Maria Jacqueline Abrantes Gadelha, Raimunda Medeiros Germano
Pesquisa
227 Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil
Profile of the expansion of Community Agents Program in Brazil
José Roberto de Magalhães Bastos, Ricardo Pianta Rodrigues da Silva, Angela Xavier, Sabrina Pulzatto Merlini,
Taís Ferreira Pimentel
Pesquisa
236 Doença crônica: comparando experiências familiares
Chronic disease: comparing familial experiences
Noeli Marchioro Liston Andrade Ferreira, Giselle Dupas, Carmem Lúcia Alves Filizola, Sofia Cristina Iost Pavarini
Opinião
248 Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
Potentialities and challenges of the family health strategy consolidation in major urban centers of Brazil
Ligia Giovanella, Maria Helena Magalhães de Mendonça, Sarah Escorel, Patty Fidelis de Almeida,
Márcia Cristina Rodrigues Fausto, Carla Lourenço Tavares de Andrade, Maria Inês Carsalade Martins,
Mônica de Castro Maia Senna, Maristela Chitto Sisson
Ensaio
265 Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil
Discourse analysis of medicine advertisements in Brazil
Viviane Ramalho
Ensaio
274 Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
Medicalization and consumption: a look over health in contemporaneity
Jurema Barros Dantas, Ariane Patrícia Ewald
Pesquisa
288 Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda
The exceptional drug policy in Espírito Santo: the matter of access by juridical approach
Maria José Sartório, Ronaldo Bordin
Ensaio
299 Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a
gestão em saúde
Democratic prospects and their conditions of possibility: intersections between political participation in SUS and health
management
Francini Lube Guizardi, Felipe de Oliveira Lopes Cavalcanti
Pesquisa
310 Gênese de um conselho local de saúde
Genesis of a local health council
Renata Mota Rodrigues Bitu Sousa, Carlos Botazzo
Pesquisa
321 Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social
Ampére city’s Health Council: evaluating social control
Luciane Maria Pedot Belini, Samuel Jorge Moysés
Opinião
328 Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
Which social protection for which democracy?Dilemmas of social inclusion in Latin America
Sonia Fleury
Pesquisa
349 Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico
Evaluation of the quality of life of elderly chronic renal disease patients undergoing hemodialytic treatment
Fabiana de Souza Orlandi
Pesquisa
356 Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos
Nursing and spirituality in terminal patients: perception of the religious ministers
Joseane de Souza Alves
Revisão
365 Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
A review on the express understanding of reality in mental health care in the second critical social theory
Silvia Maria de Oliveira Mendes
Pesquisa
384 Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde
Education of Dentistry and the National Health System
Gustavo Nicolini Fernandes, Newton Cesar Balzan, Maria Alice Amorim Garcia
MEMÓRIA
/
Memory
396 Especial “In memoriam”
Carlos Gentile de Mello
Resenha
/
Critical Review
397 Passos, Izabel C. Friche. Reforma Psiquiátrica – as experiências francesa e italiana. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009
Marina Bittencourt
EDITORIAL
Política social e eleições
O
ano eleitoral de 2010 começará oficialmente no segundo semestre,
mais precisamente depois da Copa do Mundo. Da parte das candi-
daturas presidenciais pré-lançadas até o presente, pouco se ouve de maneira
objetiva e clara sobre os rumos e proposições a respeito da política social.
O assunto também não é cobrado pela grande mídia e aparentemente não
seria objeto de grandes alterações nas agendas dos dois concorrentes com
maiores chances eleitorais.
Mas esse consenso por aparência e omissão das questões-chave da política
social é enganoso. Há indícios muito fortes de que o tema dos direitos sociais,
com suas inevitáveis implicações fiscais, esteja sendo evitado agora para somente
aparecer claramente em 2011. Viria no bojo de uma proposta de mudanças
fortes na Seguridade Social e no Sistema Tributário, de forma a restringir ainda
mais o núcleo da política social fundamentada em direitos sociais. E nos primeiros seis meses de um novo mandato presidencial, o Congresso costuma aprovar
em geral tudo que venha do Executivo, recém-legitimado pelas urnas.
É preocupante observar o tratamento que vem sendo dado ao tema dos
direitos sociais. Da parte da candidatura oficial, houve declarações explícitas de
simpatia com o tema. Mas, por outro lado, várias manifestações e entrevistas do
atual Presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), tido como
provável futuro coordenador de política econômica da candidata ao governo,
já emitem sinalizações de duas prioridades – uma Reforma Previdenciária de
teor restritivo a alguns direitos constitucionais (a preocupação sub-reptícia é
quanto ao vínculo do salário mínimo a benefícios sociais) e uma Reforma Tributária em moldes parecidos com o projeto oficial de 2008 do Governo Lula.
Nenhum sinal por aqui de redistribuição de renda ou igualdade social como
rumo à política social e à reforma tributária.
Por outro lado, da parte do principal candidato de oposição, leem-se
declarações enfáticas de apoio ao Sistema Único de Saúde (SUS) e, agora,
até mesmo à reforma agrária. Mas quando consultamos várias manifestações
dos seus áulicos e confidentes em assuntos fiscais ou ainda da mídia que lhe é
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EDITORIAL
generosamente favorável, há uma espécie de senha-chave que assim se expressa: “reduzir gastos correntes do orçamento a qualquer custo”. O observador
desavisado perguntará: que tem isto a ver com política social?
Ora, na atual configuração dos direitos sociais já regulamentados, os
“Benefícios Monetários” das políticas sociais estão essencialmente vinculados a
direitos e correspondem a 15,5% do PIB nas “Contas Nacionais” de 2006 (as
mais recentes publicadas em detalhe); e os “Benefícios em Espécie” – serviços
públicos gratuitos oferecidos aos cidadãos – representam 8,6% neste mesmo
ano. Esse conjunto de “Benefícios Monetários” e serviços públicos, ou “Benefícios em Espécie”, na linguagem das Contas Nacionais, já somam cerca de ¼
do Produto Interno Bruto (PIB). Os recursos que financiam esses benefícios
são quase integralmente categorizados nos orçamentos públicos como gastos
correntes. Daí, havendo restrições a direitos, desvinculações constitucionais,
congelamentos ou outros truques para “restringir os gastos correntes”, fatalmente
seriam afetados os benefícios sociais e os salários do funcionalismo.
Para manter o estatuto da política social e viabilizar a melhoria da qualidade na prestação dos serviços universais (SUS e educação básica, principalmente)
ou incluir parcelas expressivas da população ainda não incorporadas aos sistemas
públicos – Previdência e Assistência, Política Agrária, Habitação etc. – não há
como fazê-lo “reduzindo gastos correntes”. Nem mesmo congelando esses gastos
em algum ano isso é possível, como espertamente foi proposto no Projeto de
Reforma Tributária do governo Lula.
Há fatores demográficos, epidemiológicos e de riscos sociais associados a
uma geração de direitos sociais (seguridade social), de pretensão universal, que
não estão congelados, mas, ao contrário, tendem a crescer. Há também uma
geração de novos riscos sociais e ambientais associados às mudanças climáticas
que fatalmente alimentarão demandas futuras por novos serviços públicos de
proteção social. Essas demandas tendem a crescer e precisariam contar com recursos, simultaneamente associados ao crescimento da economia e melhoria.
Universalizar direitos sociais numa sociedade altamente desigual como
a nossa requer compreensão clara de que isso é política social redistributiva.
Integra um modelo de sociedade e de economia com pretensão a um estilo de
desenvolvimento fundado no paradigma da igualdade. Mas isso não se faz sem
uma reforma tributária redistributiva e também requer política social organizada
e planejada com horizonte mínimo de uma década.
Isso tudo não está nas agendas políticas das candidaturas principais, nem
das mídias, nem do “consenso da opinião pública”. Precisa ser explicitado e
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 175-180, abr./jun. 2010
EDITORIAL
discutido na campanha eleitoral e fora dela, para que não tenhamos a ingrata
surpresa de ver “reformas” implementadas na política social e tributária em
2011 que se ponham na contramão da construção dos direitos sociais.
O processo eleitoral e a formação de opinião pública, sob intenso controle
dos partidos e dos meios de comunicação de massa, não são bons aliados para
esclarecer questões essenciais sobre política social. Há que se ter criatividade e
ousadia para colocar essas questões nas agendas políticas do Estado, dentro e
fora das arenas convencionais da política.
Diretoria Nacional
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EDITORIAL
Social policy and elections
T
he 2010 electoral year will officially begin in the second half of the year,
precisely after the World Cup. Very little has objectively and clearly
been heard on the directions and propositions regarding social policy from
the pre-announced presidential candidates till the moment. The subject is
not requested by the press either, and apparently would not be subject of
great alterations in the agenda of the two candidates with more electoral
advantage.
But this consensus on appearance and omission of social policy’s keymatters is deceiving. There is strong evidence that the social rights theme,
together with its inevitable fiscal implications, is being avoided now to clearly
arise only in 2011. It would be intrinsic to a proposal of strong changes in
the Social Security and in the Tributary System as to restrict even more the
core of the social policy which is founded on social rights. And during the
first six months of a new presidential mandate, the Congress usually approves everything that comes from the Executive, recently legitimated by
the electors.
It is disturbing to observe the treatment that has been given to the theme
of social rights. There have been explicit declarations of sympathy with the
theme from the official candidacies. On the other hand, many manifestations
and interviews from the current president of the Brazilian Development Bank
(BNDES, acronym in Portuguese), who is considered to be a likely future
coordinator of economic policy of the government candidate, already show
two priorities – a reform of the social security with a purport restrictive to
some constitutional rights (the hidden preoccupation concerns the bond of
minimum wage with social benefits); and a tributary reform which looks like
the 2008 official government project of president Lula mandate. There is no
sign of income redistribution or social equality as a road to social policy and
tributary reform.
On the other hand, emphatic statements supporting the National
Health System (SUS, acronym in Portuguese) and even the agrarian reform
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EDITORIAL
have been read from the main opposition candidate. But when we inquire
many manifestations on fiscal issues of their representatives and confidents,
or even the press which is generously favorable to such candidate, there is
a kind of password, which is expressed as follows: “to reduce the current
expense budget by any means”. The unadvised observer may ask: what does
it have to do with social policy?
Well, in the current configuration of the regularized social rights, the
“Monetary Benefits” of social policies are essentially bonded to rights and
account for 15.5% of the gross domestic product in the “National Accounts”
of 2006 (the most recent ones being published in details); and the “Cash
Benefit” – free public services offered to citizens – account for 8.6% in the
same year. This assemblage of “Monetary Benefits” and public services, or
“Cash Benefits” in the National Accounts’ language, currently sums ¼ of the
gross domestic product (GDP). The resources that finance these benefits are
almost integrally categorized in the public budget as current expenditures.
In this manner, as there would be restrictions to rights, constitutional dissociations, freezings and other artifices to “restrict the current expenditures”,
the social benefits and functionalism salaries would be severely affected as a
consequence.
To maintain the social policy statute and enable the improvement
of the quality of universal services (mainly SUS and basic education) or
include expressive portions of the population that are not included in the
public systems yet – social security and assistance, agrarian policy, housing
and others – is not possible by “reducing current expenditures”. Not even
freezing these expenses in any year makes it possible, as smartly proposed in
the Tributary Reform Project of Lula government.
There are demographic, epidemiological and social-risk factors which are
associated with the creation of universally-intended social rights (social security)
and that are not frozen, but rather tend to grow. There is also the generation of
new social and environmental risks associated with climatic changes that will
fatally promote future demands for new social protection public services. These
demands tend to grow and need to rely on resources simultaneously associated
with the growing and improvement of the economy.
To universalize social rights in a society highly unequal like ours requires
a clear comprehension of the fact that this is a redistributive social policy.
It comprises a model of society and economy that seek a style of development based on the paradigm of equality. But this can not be done without
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a redistributive and tributary reform, and requires a social policy organized
and planned aiming at no less than one decade.
These issues are not present in the politics agenda of the main candidatures, nor of the press, nor of the “public opinion consensus”. It should
be explicit and discussed in and out the electoral campaign; in this manner, people will not have the unappreciative surprise of watching “reforms”
implemented in social and tributary policies that oppose the building of
social rights in 2011.
The electoral process and the formation of the public opinion, under
intense control of the parties and means of mass communication, are not
good allies to clear up essential matters on social politics. There has to be
creativity and audacity to put these issues on the agenda of State policies, in
and out the conventional political field.
The national directorate
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APRESENTAÇÃO
E
ste é o último número da Saúde em Debate vinculado ao projeto
“Reforma Sanitária em Debate”, responsável pela edição dos últimos
números da publicação. Nesse período, a revista passou por um processo
intenso de reformulações. Houve transformações na sua identidade visual,
em seu conteúdo e em sua periodicidade. Voltou a ser editada regularmente,
foi indexada em outras bases de dados e, a partir deste ano, mudou a sua
periodicidade de quadrimestral para trimestral.
A capa é dedicada a Carlos Gentile de Mello, autor do primeiro livro
editado pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Saúde e Assistência Médica no Brasil, em 1977. Neste número, reproduzimos o texto, em
sua homenagem, publicado originalmente na Saúde em Debate no. 17, de
1989, na ocasião de seu falecimento.
Iniciamos este número com o artigo de debate de autoria de José Gomes
Temporão e Liliane Mendes Penello, no qual os autores propõem uma política
pública de saúde para a primeira infância, fornecendo as bases conceituais
e políticas da “Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis”, recentemente lançada pelo Ministério da Saúde. Na sequência, o artigo é debatido
por Gastão Wagner de Sousa Campos, que considera a iniciativa ousada e
inovadora, e Osmar Terra, que fala do avanço que o texto traz para a compreensão sobre a importância do chamado “ambiente emocional facilitador”
para o desenvolvimento inicial, considerando-o no contexto da determinação
social da saúde. Os dois textos foram replicados pelos autores.
O cuidado à família é um dos temas mais importantes no campo da
saúde, o que é possível constatar pela quantidade e qualidade dos artigos
submetidos à revista e pelo conjunto de textos tratando dos temas aqui publicados. Annaiza Freitas Lopes et al. apresentam os resultados de uma pesquisa
na qual discutem a representação social da Equipe de Saúde da Família em
Fortaleza, a partir do matriciamento promovido pelos Centros de Atenção
Psicossocial (Caps). A pesquisa de Maria Jacqueline Abrantes Gadelha e Raimunda Medeiros Germano analisa as estratégias utilizadas pelas famílias em
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APRESENTAÇÃO
situação de risco e vulnerabilidade no âmbito da Estratégia Saúde da Família.
José Roberto Bastos et al. apresentam a pesquisa que realizaram sobre o desenvolvimento do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no período
de 1998 a 2007, demonstrando o seu grande crescimento em todas as regiões
do país. Outra pesquisa muito importante, de Noeli M.L.A. Ferreira et al.,
faz uma reflexão sobre a experiência de famílias com um membro portador
de doença crônica. O bloco é complementado pelo artigo de opinião de Ligia
Giovanella et al. sobre os fatores que condicionam a efetiva implementação
da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos.
A preocupação com os vários aspectos relacionados à política de medicamentos é abordada nos textos de Viviane Ramalho, um ensaio sobre
os sentidos “potencialmente ideológicos” na propaganda de medicamentos
no Brasil, e de Jurema B. Dantas e Ariane P. Ewald, que analisam a relação
entre o consumo e o fenômeno da medicalização e a forma como tal relação
reposiciona a noção de saúde. O tema dos medicamentos neste número é
encerrado com a pesquisa de Maria José Sartório e Ronaldo Bordin que, a
partir da análise das demandas judiciais no Espírito Santo, revelam aspectos
importantíssimos sobre a questão da judicialização no país.
Outro tema que sempre está na agenda do Sistema Único de Saúde
(SUS) é o da participação e controle social. O ensaio de Francini L. Guizardi
e Felipe O.L. Cavalcanti propõe que pensemos a participação política como
uma atividade de luta e construção de saúde em si mesma. Renata M. R. B.
Sousa e Carlos Botazzo investigam o modo como se articula o discurso de
participação da comunidade na constituição de um conselho da unidade de
saúde da família. A pesquisa de Luciane M.P. Belini e Samuel Jorge Moyses
nos leva a refletir sobre alguns aspectos relacionados aos Conselhos de Saúde
que necessitam urgentemente serem transformados, sob risco de perderem seu
caráter de controle social do SUS. Sonia Fleury, em “Que proteção social para
qual democracia: dilemas da inclusão social na América Latina”, discute “os
ônus que os sanitaristas de esquerda assumiram ao encarregar-se de implantar
reformas dos sistemas de saúde na América Latina em contextos de transição
à democracia marcados pela ausência de hegemonia e pelos acordos que restringem as possibilidades de implementar as políticas universais projetadas
pelo movimento sanitário.”
Na parte final da revista, estão publicados artigos sobre temas variados,
tais como a pesquisa de Fabiana de Souza Orlandi sobre avaliação de qualidade de vida de idosos renais crônicos em hemodiálise, a pesquisa de Joseane
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 181-186, abr./jun. 2010
APRESENTAÇÃO
de Souza Alves sobre o cuidado da enfermagem em relação às necessidades
espirituais do paciente terminal a partir da percepção de ministros religiosos,
o artigo de revisão de Silvia M.O. Mendes sobre a aplicação da teoria social
crítica no campo da saúde mental, e a pesquisa de Gustavo N. Fernandes et
al. sobre a formação do cirurgião-dentista visando à sua atuação no SUS.
A resenha deste número, elaborada por Marina Bittencourt, é sobre o
livro Reforma Psiquiátrica – as experiências francesa e italiana, de autoria de
Izabel F. Passos.
Boa leitura!
Paulo Amarante
Editor Científico
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PRESENTATION
T
his is the last issue of the journal Saúde em Debate which is bound to the
project “Sanitary Reform in Discussion”, responsible for the edition of
the last issues. In this period, the journal went through an intense process of
reformulations. There were some changes in its visual identity, in its content
and periodicity. It is being regularly edited again, was indexed in other databases and, from this year on, has a new periodicity: it is now quarterly.
The cover is dedicated to Carlos Gentile de Mello, the author of the
first book edited by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Saúde e as-
sistência médica no Brasil, in 1977. In this issue, a text is reproduced in honor
to the author, which was originally published in Saúde em Debate issue 17,
1989, on the occasion of his passing.
The present issue is initiated with the debate article by José Gomes
Temporão and Liliane Mendes Penello, who propose a public health policy for
the first infancy, providing the conceptual and political bases of the campaign
“Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis”, recently launched by the
Ministry of Health. Following, the article is debated by Gastão Wagner de
Sousa Campos, who considers it an audacious and innovative initiative, and
by Osmar Terra, who speaks of the advance that the text provides for the
understanding of the importance of the “enabling emotional environment”
in the early development, considering it in the context of social determination of health. Both texts were replied by the authors.
The family care is one of the most important themes of the health field,
which may be verified by the quantity and quality of the articles submitted for
the journal and by the assemblage of papers dealing with the themes generally published in the journal. Annaiza Freitas Lopes et al. present the results
of a research in which the social representation of the family health team of
Fortaleza is discussed based on the matrix-based strategies promoted by the
Centers for Psychosocial Care (Caps, acronym in Portuguese). The article
by Maria Jacqueline Abrantes Gadelha and Raimunda Medeiros Germano
analyzes the strategies used by the families in risked and vulnerable situations
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 181-186, abr./jun. 2010
PRESENTATION
in the scope of Health Family Strategy. José Roberto Bastos et al. present a
paper on the development of the Community Health Agents Program in the
period comprising 1998 to 2007, demonstrating its growth in all regions of
the country. Another important article, by Noeli M.L.A Ferreira et al., brings
a reflection on the experience of families of chronic disease patients. This thematic text group is complemented by the opinion article by Ligia Giovanella
et al., who discuss the factors that condition the effective implementation of
the Family Health Strategy in urban centers.
The concern about the many factors related to the medication policy
is discussed in the articles by Viviane Ramalho, an essay on the “potentially
ideological” meaning of the Brazilian medication publicity, and by Jurema B.
Dantas and Ariane P. Ewald, who analyze the relation between the consumption and the phenomenon of medicalization, as well as how such relation
repositions the notion of health. The theme of medication in this issue is
closed with the research by Maria José Sartório and Ronaldo Bordin which,
from an analysis of the judicial demands in Espírito Santo, Brazil, reveals
important aspects about the matter of judicialization in the country.
Other themes which are always in the agenda of the National Health
System (SUS, acronym in Portuguese) are the social participation and social
control. The essay by Francini L. Guizardi and Felipe O.L. Cavalcanti proposes that we make a reflection on political participation as an activity of
combat and construction of health itself. Renata M.R.B. Sousa and Carlos
Botazzo investigate how the discourse of community participation in the constitution of a council for the Family Health Unit is articulated. The research
by Luciane M.P Belini and Samuel Jorge Moyses leads the reader to consider
some aspects related to the Health Councils which need urgent transformation, otherwise they may lose their characteristic of SUS social control. In
“Which social protection for which democracy? Dilemmas of social inclusion
in Latin America”, Sonia Fleury discusses “costs that the left sanitarians assumed with the responsibility to held the reforms of health care systems in
Latin America during the processes of transition to democracy, marked by
the absence of hegemony and by agreements that restrict the possibilities of
implementing universal policies projected by the sanitary reform.”
In the final section of this issue, articles on varied themes are published:
the paper by Fabiana de Souza Orlandi that approaches the assessment of
quality of life of the elderly population with chronic renal disease under
hemodyalisis treatment, the article by Joseane de Souza Alves on the nursing
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PRESENTATION
care with regard to the spiritual necessities of patients with terminal illnesses
based on the perception of religious ministries, the review article by Silvia
M.O. Mendes on the critical social theory put into practice in the mental
health field, and the research by Gustavo N. Fernandes et al. on the professional formation of dental surgeons aiming at their performance in SUS.
The review of this issue, elaborated by Marina Bittencourt, is about
the book Reforma Psiquiátrica – as experiências francesas e italiana, written
by Izabel F. Passos.
Enjoy your reading!
Paulo Amarante
Scientific Editor
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 181-186, abr./jun. 2010
DEBATE
/
DEBATE
Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador:
conceitos e proposição estratégica para uma política pública voltada
para a primeira infância
Social determinants of health and the enabling emotional environment: concepts and a
strategic framework for a public policy focused on early childhood
José Gomes Temporão 1
Liliane Mendes Penello 2
Médico; Doutor em Saúde Coletiva
pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ); Ministro de Estado da
Saúde do Brasil.
[email protected]
1
Médica; Mestre em Saúde Pública
pela Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/
Fiocruz); Coordenadora do Comitê
Técnico Consultivo da Estratégia
Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis
(MS/Fiocruz).
[email protected]
2
RESUMO Os autores propõe uma política pública de saúde para a primeira
infância, discutindo os Determinantes Sociais da Saúde e o Desenvolvimento
Emocional Primitivo e sugerindo que sua inter-relação define padrões pessoais
de convívio social e de saúde. Utilizaram o modelo de Dahlgreen e Whitehead e
o pensamento de John Bowlby e Donald Winnicott para a resposta ao desafio de
assegurar a promoção da saúde e um ambiente saudável à mulher e à criança de zero
a seis anos. Configurou-se a ‘Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis –
primeiros passos’ para o desenvolvimento nacional, proposta do Ministério da Saúde,
de caráter transversal e intersetorial visando à redução das desigualdades, promoção
de saúde, cidadania e democracia desde as etapas mais precoces da vida.
PALAVRAS-CHAVE: Política de saúde; Determinação social da saúde,
Desenvolvimento emocional primitivo; Saúde materno-infantil
ABSTRACT The authors proposed a public health policy for early childhood, discussing
the social determinants of health, and the early child development and suggesting that
their inter-relationship defines personal standards of socialization and health. They
used the Dahlgreen and Whitehead model and the ideas of John Bowlby and Donald
Winnicott to answer the challenges for ensure the promotion of health and a healthy
environment for women and children from zero to six years old. The strategy ‘Healthy
little Brazilians - first steps towards national development’ was proposed by the ministry of
health, a transversal and intersectorial initiative in order to reduce inequities, promoting
health, citizenship and democracy since the earliest stages of life.
KEYWORDS: Public policies; Health policies; Social determinants of health;
Early child development; Maternal and childhood health policies
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voltada para a primeira infância
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I N T R O D U ç ão
influenciando muitos outros autores, para o trabalho
com um dos temas que queremos aqui discutir, associado
à determinação social da saúde, que é o desenvolvimento
emocional primitivo e os cuidados com a primeira infân-
Estranhos assuntos esses, tão marginais às cha-
cia e sua relação com políticas públicas de saúde.
madas questões nacionais em que se centra o
Com o conceito de ambiente facilitador do cresci-
debate político. É que eles fervilham no pré-sal
mento e amadurecimento dos seres humanos, sugeriu-se
da existência humana, a camada mais submer-
que o ambiente inicial da vida de um novo ser coincide
sa, talvez a mais rica. (Oliveira, 2010).
com o corpo-mente da mãe, incluindo sua própria
condição de existência, suas redes de sustentação, suas
A concepção ampliada de saúde adotada contem-
fantasias e desejos, suas construções imaginárias ou
poraneamente considera que, para uma vida rica em
reais como ambiente de suporte para o filho. A ideia
qualidade, é muito pouco para o homem ser apenas
da ‘mãe suficientemente boa’ como aquela capaz de
são. Torna-se necessário agregar à ausência de doenças a
apresentar intuitivamente ao seu filho aquilo que ele
intensidade de experiências de vida e expressões de cria-
necessita como provisão rumo ao seu crescimento e
tividade que permitam a superação dos fatores geradores
amadurecimento, incluindo as possíveis falhas nesse
de mal-estar e sofrimento que limitam e desqualificam o
caminho, chama atenção para o fato de que a provisão
viver. Hoje, estamos convencidos de que a potência ou a
ofertada pela mãe biológica pode ser executada por uma
capacidade individual para manejar com maior autono-
figura substituta através de vínculo amoroso, criativo e
mia as questões vivenciais estão vinculadas a experiências
não-burocrático.
relacionais dos primórdios da vida, quando são definidos
padrões pessoais do viver e do conviver.
Para o autor, nesta fase de desenvolvimento do
lactente, o amor só pode ser efetivamente expresso em
Argutos observadores do desenvolvimento emocio-
termos de cuidado neste ambiente favorável à con-
nal primitivo, John Bowlby e Donald Winnicott, tra-
fiabilidade. A mãe suficientemente boa é o ambiente
balhando no campo da pediatria, psicanálise e etologia
facilitador para a efetivação do processo maturacional
em meados do século passado, indicavam a importância
da criança pequena, provendo chances à criança de se
destas considerações na formação de padrões adaptativos
tornar uma pessoa real, em um mundo real, e de crescer
à vida, repercutindo desde cedo na liberdade de cada ser
de acordo com seu potencial herdado. Em relação ao
humano para usufruir a sua própria experiência de vida.
amadurecimento, compreende-se como um processo
Insistiram, então, na adoção de um conceito ampliado
jamais finalizado e sempre ‘adaptativo’ do ponto de vista
de saúde que incluísse também os aspectos psicológicos.
evolucionário, que tem sido considerado importante
Bowlby havia sido convidado para assessorar a Organiza-
indicador de saúde que contribui decisivamente para o
ção Mundial de Saúde (OMS) na área de saúde mental
desenvolvimento social:
de crianças sem lar, em 1950, e Winnicott, trabalhara
como voluntário atendendo crianças afastadas de seus
A base para uma sociedade é a personalidade
pais e famílias durante a Segunda Grande Guerra. Essas
humana total [...] não é possível que as pessoas
experiências marcantes foram incorporadas às suas obras,
consigam ir mais além na construção da socie-
sustentando valiosas teorias no campo da psicanálise, e
dade do que de seu próprio desenvolvimento
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voltada para a primeira infância
pessoal. (Winnicott, 1989, p. 193 ).
com participação de todas as Secretarias do MS, o
documento-base para desenho da EBBS.
É neste sentido que propõe uma compreensão
O Brasil possui 14.210.000 crianças na faixa etária
bastante peculiar do desenvolvimento da personalida-
de zero a quatro anos – o que corresponde a 7,59%
de humana total, sua constituição sempre frente a um
da população total (Brasil, 2008). De acordo com o
‘outro’ com o qual estabelece vínculos sugerindo uma
Censo Escolar de 2007, apenas 17,1% das crianças de
configuração em círculos que se amplia e se expande
até três anos estão matriculadas em creches, enquanto
desde o desejo e o corpo da mãe até a participação social
77,6% das crianças de quatro a seis anos frequentaram
mais ampla.
pré-escola. Portanto, mais de 80% das crianças meno-
Considerando a importância do Desenvolvimento
res de três anos estão sendo educadas e cuidadas em
Emocional Primitivo na definição e configuração de
ambiente doméstico, pelos progenitores (em geral, a
padrões de saúde para a vida, um grande esforço para
mãe) ou por um cuidador substituto. Por essa razão,
atender às recomendações da Comissão Nacional de De-
decidimos trabalhar pela maior interação e ampliação
terminantes Sociais da Saúde (CNDSS) e da OMS, no
das ações de saúde com novas ofertas voltadas para a
sentido da produção de ações, estratégias e políticas vol-
Primeira Infância, em sintonia com o relatório final
tadas para a primeira infância, vem sendo desenvolvida
da CNDSS que sugere intervenções que adotem como
pelo Ministério da Saúde (MS), desde 2007, a ‘Estratégia
referência os princípios e estratégias da ‘promoção da
brasileirinhas e brasileirinhos saudáveis, primeiros passos
saúde’, estabelecidos numa série de seis Conferências
para o desenvolvimento nacional’ (EBBS).
Internacionais (Ottawa, Adelaide, Sundsval, Jacarta,
A EBBS surgiu com a rica discussão em torno da
México e Bancoc), entre 1986 a 2005. Destaca-se a
formulação do Programa de Aceleração do Crescimento
primeira delas, na qual foi lançada a Carta de Ottawa,
na Área da Saúde (PAC/Saúde, 2007) visando a apro-
com o objetivo de contribuir para o combate e a supe-
fundar e integrar as reformas sanitária e psiquiátrica bra-
ração de problemas geradores de iniquidades na área e
sileiras articulando-as a um padrão de desenvolvimento
desenvolvimento saudável dos cidadãos. O documento
nacional comprometido com crescimento, bem-estar e
reconhece que paz, educação, moradia, alimentação,
equidade no acesso à saúde do povo brasileiro. Dessa
renda, ecossistema estável, justiça social e equidade
iniciativa, resultou o ‘Mais Saúde’, Plano de Metas do
são requisitos fundamentais para a saúde dos povos
Ministério da Saúde (Brasil, 2010) constituído em
identificando como condições-chave para promover a
torno de sete grandes eixos, dentre os quais, a Promoção
saúde o estabelecimento de políticas públicas saudáveis,
da Saúde. Nesta oportunidade, ficou muito clara nossa
a criação de ambientes favoráveis, o fortalecimento das
expectativa em revigorar o trabalho a partir da área
ações comunitárias, o desenvolvimento de habilidades
da saúde por um projeto civilizatório e, dentro dessa
pessoais e a reorientação dos serviços de saúde.
perspectiva, produzir saúde, cidadania e democracia,
Essa iniciativa do Ministério da Saúde vem fortale-
tornando-se fundamental considerar a constituição de
cer um conjunto de esforços em todo o país para articula-
nossos cidadãos, desde as etapas mais precoces da vida.
ção, interação e desenvolvimento de ações voltadas para
Em decorrência disso, foi produzido no âmbito do
a saúde da mulher, especialmente durante a gravidez, e
Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas
da criança de zero a seis anos, etapa da vida designada
em Saúde da Secretaria de Atenção à Saúde do MS,
como primeira infância, o que, no Brasil, corresponde
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ao momento anterior à entrada obrigatória da criança
pequenas e a rede social que os cerca, considerando
no ensino fundamental (Brasil, 2002).
estágios precoces do desenvolvimento humano, com
A Portaria GM 2.395 de 7 de outubro de 2009,
intervenções sobre uma série de determinantes que
veio instituir a EBBS considerando marcos legais,
incidem sobre o chamado ‘ambiente facilitador’, tal
contribuições institucionais e experiências nacionais e
como o descrevemos acima.
internacionais bem-sucedidas: a Constituição Brasileira; o
Questão que se torna ainda mais importante, diante
Estatuto da Criança e do Adolescente; as Políticas Nacio-
da chamada transição dos cuidados na infância, fenômeno
nais de Atenção Integral à Saúde da Mulher, da Criança
observado em todo o mundo, relacionado com alguns
e Aleitamento Materno, de Saúde Mental, da Atenção
progressos no sentido da igualdade de oportunidades para
Primária, o Planejamento Familiar, a Política Nacional
as mulheres – nos países da Organização para a Coope-
de Humanização, dentre outras, aprovadas no Conselho
ração e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mais de
Nacional de Saúde (CNS) e na Comissão Intergestores
dois terços de todas as mulheres em idade ativa trabalham
Tripartite (CIT); o Compromisso Brasileiro com os Ob-
atualmente fora de casa – o que merece ser festejado, mas
jetivos do Milênio (ODM) (especialmente o 4º, voltado
que passa a representar, com as pressões econômicas cres-
para a Redução em 2/3 da mortalidade de menores de
centes, preocupações para milhares de mães: as pressões
5 anos até 2015), o Pacto pela Vida (Portaria GM 325,
laborais não refletem novas oportunidades, mas novas
2008), o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade
necessidades. Se o cuidado com as crianças pequenas
Materna e Neonatal (PR, 2004), o Compromisso para
era um assunto predominantemente privado e familiar,
Acelerar a Redução das Desigualdades na Região Nordeste
agora tornou-se, em grande medida, uma atividade que
e Amazônia Legal, firmado entre os Governos Estaduais
decorre fora de casa e em que os governos e as empresas
e Federal; Pastoral da Criança, OMS, Organização Pan-
privadas estão cada vez mais envolvidos, pois uma grande
Americana da Saúde (OPAS), Fundo das Nações Unidas
parte delas passa seus primeiros anos de vida não nas suas
para a Infância (Unicef), Organização das Nações Unidas
casas com as respectivas famílias, mas em algum tipo de
para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Or-
estrutura de cuidados à infância. E embora esse não seja
ganizações Não-Governamentais e Redes de Instituições
o quadro predominante da realidade brasileira, sabe-se
voltadas para o Cuidado com a Primeira Infância, Ex-
que um quarto das famílias em nosso país vive de um
periências Nacionais e Internacionais exitosas e Políticas
salário feminino. Em artigo publicado no jornal O Glo-
Públicas Regionais e Nacionais de setores outros que não
bo, de 2 de maio 2010, Rosiska Darcy de Oliveira traz à
a Saúde, mas neste campo e na perspectiva intersetorial.
tona temas tangenciados e confidenciados na sociedade,
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi designada para
como as escolhas sobre a maternidade, as condições da
a Coordenação Técnica da EBBS.
gravidez e do parto, as leis que tolhem ou propiciam
A EBBS traz como preocupação central não
liberdades, o temor atávico da violência sexual. Todas
apenas o desafio de trabalhar nacionalmente pela
essas questões tornadas realidade para o corpo feminino
articulação e interação das múltiplas iniciativas nesse
afligem as mulheres, uma vez que elas sabem habitar
campo sabidamente multissetorial, o que já torna essa
um corpo cujo destino é desdobrar-se em outros. Ainda
proposta bastante ousada, mas também a necessidade
segundo a articulista, respeito e escuta é o que aspiram as
de prover novas ofertas de cuidado na perspectiva de
mulheres para que possam efetivamente contribuir com
fortalecimento dos vínculos entre os pais, suas crianças
reformas modernizadoras de estruturas de acolhimento
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Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública
voltada para a primeira infância
que tornem a vida familiar viável, e não o ponto cego das
corporação no trabalho de saúde pública, da
relações sociais.
responsabilidade pela promoção da saúde física
Nesse sentido, tem sido necessário recorrer a uma
e mental da comunidade. (WHO, 1951).
compreensão mais cuidadosa do que são e como atuam
os determinantes sociais da saúde e como podemos pen-
Já a Conferência de Alma Ata, no final dos anos
sar, neste âmbito, as intervenções sobre as tendências à
1970, e as atividades inspiradas no lema ‘Saúde para
integração psíquica e ao ambiente facilitador.
Todos no Ano 2000’ recolocam em destaque o tema
dos determinantes sociais. No Brasil, trouxe elementos decisivos para a sustentação da Reforma Sanitária
DETERMINAÇÃO SOCIAL E TENDÊNCIAS À
Brasileira, num período ditatorial de nossa história
INTEGRAÇÃO PSÍQUICA NA PRODUÇÃO DE
recente, em que diferentes e importantes atores, como
SAÚDE: APROXIMANDO CONTRIBUIÇÕES,
representantes de instituições de ensino, assistência,
ARTICULANDO AÇÕES DIFERENCIADAS
órgãos de classe, partidos políticos, sociedades médicas
NAS PRÁTICAS DE SAÚDE
e de especialistas da saúde e outros representantes da
sociedade civil discutiam sua relação com o regime
democrático. ‘Democracia e Saúde’ passa a ser o tema
Apesar da preponderância do enfoque médico
biológico na conformação inicial da saúde pública como
em debate e a discussão prosseguirá ampliando-se para
a compreensão de que ‘Democracia é Saúde’.
campo científico em detrimento dos enfoques sociopo-
Nos anos 1980, o predomínio do enfoque da saúde
líticos e ambientais, observa-se, ao longo do século 20,
como um bem privado desloca novamente o pêndulo
uma permanente tensão entre essas diversas abordagens.
para uma concepção centrada na assistência médica
A própria história da OMS oferece interessantes exemplos
individual, a qual, na década seguinte, com o debate
dessa tensão, observando-se períodos mais centrados em
sobre as Metas do Milênio, novamente dá lugar a uma
aspectos biológicos, individuais e tecnológicos intercalados
ênfase nos determinantes sociais, que se afirma com a
com outros em que se destacam fatores sociais e ambientais.
criação da Comissão sobre Determinantes Sociais da
A definição de saúde como um estado de completo bem-
Saúde da OMS, em 2005 (WHO, 2008).
estar físico, mental e social e não meramente a ausência
Segundo a Comissão Nacional sobre os Determi-
de doença ou enfermidade, inserida na Constituição da
nantes Sociais da Saúde do Brasil, os DSS, são aqueles
OMS no momento de sua fundação, em 1948, é uma
econômicos, culturais, psicológicos, comportamentais
clara expressão de uma concepção bastante ampla da saúde
entre outros, que influenciam a ocorrência e a distri-
para além de um enfoque centrado na doença. Observa-se
buição na população dos problemas de saúde e seus
este trecho do relatório da segunda sessão da Comissão de
fatores de risco.
Especialistas em Saúde Mental da OMS:
A CNDSS escolheu o modelo de Dahlgreen e
Whithead (CNDSS, 2008), para balizar as interven-
O mais importante princípio a longo prazo
ções sobre os DSS e promover a equidade em saúde
para o trabalho da OMS, na promoção da
contemplando os diversos níveis que devem incidir
saúde mental, em contraste com o tratamento
sobre os determinantes proximais (vinculados aos com-
de distúrbios psiquiátricos, é o estímulo à in-
portamentos individuais), intermediários (relacionados
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às condições de vida e trabalho) e distais (referentes à
Em relação ao tema em questão, interessa particu-
macroestrutura econômica, social e cultural). A escolha
larmente discutir as duas primeiras: os indivíduos estão
deste modelo foi justificada por sua simplicidade, por
na base do modelo, com suas ‘características individuais
sua fácil compreensão para vários tipos de público e pela
de idade, sexo e fatores genéticos’ que exercem influência
clara visualização gráfica dos diversos DSS. E serviu de
sobre seu potencial e suas condições de saúde; o ‘compor-
base para orientar a organização de suas atividades e os
tamento e os estilos de vida individuais’ estão situados
conteúdos do seu relatório final.
no limiar entre os fatores individuais e os DSS, já que
os comportamentos dependem não apenas de opções
feitas pelo livre arbítrio das pessoas, mas também dos
Modelo de Dahlgren e Whitehead
DSS, como acesso ao trabalho, habitação, informações,
e a importância do ambiente
possibilidades de acesso a alimentos saudáveis e espaços
facilitador na produção da saúde: a
de lazer, entre outros.
contribuição de Donald Winnicott
A EBBS apoia-se na ideia de que a integração do
ser humano ao ambiente social em que vive é precedida de múltiplas experiências do chamado ‘ambiente
Este Modelo inclui os DSS dispostos em diferentes
facilitador’ de origem e, conforme anteriormente co-
camadas, segundo seu nível de abrangência, desde uma mais
locado, este ambiente resulta da interação de fatores
próxima aos determinantes individuais até uma camada distal
genéticos, psicológicos, sociais, econômicos e culturais.
na qual se situam os macro determinantes (Figura 1).
Considerar, portanto, as repercussões destes fatores na
Figura 1 - Modelo de Dahlgren e Whitehead
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Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública
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relação mãe-bebê ou cuidador-bebê e seus efeitos sobre
feitas pelo livre arbítrio das pessoas, como também de
a saúde de ambos, incluindo a saúde mental, é tarefa
DSS, para que mais claramente possamos perceber que,
que nos cabe enquanto profissionais e gestores da área
embora os autores nos alertem para a questão fundamental
da Saúde, trazendo para a saúde pública o desafio de
de como os comportamentos dos indivíduos se expressam
formulação de um modelo de determinação de saúde
na relação com a sociedade, não explicitam que há um
que apresente muito claramente a articulação entre
momento, não tão curto assim em termos de tempos de
seus determinantes sociais e as tendências à integração
vida e impactos na produção de saúde, em que ‘ainda não
psíquica do sujeito.
existe um indivíduo’ capaz de optar e manejar seu livre
Assim, a EBBS, ao eleger o Ambiente Emocional
arbítrio. O motivo, diria Winnicott (1983, p. 40) é que
Facilitador como um dos pilares de sustentação das
“há um momento do desenvolvimento humano em que
ações que propõe para os cuidados com a primeira
não se pode falar em um bebê, a não ser que a ele esteja
infância, sugere que se busque a explicitação do
vinculada sua mãe ou figura que a substitua!”
componente psicológico dentro dos modelos que
Essa peculiaridade experimentada pelos seres
já o consideravam na determinação da saúde sem,
humanos, no que diz respeito à sua constituição como
entretanto, aprofundá-lo. Outra possibilidade, de
sujeito, desde estudos recentes que demonstram a
adotar para esta compreensão ampliada a proposta de
importância das experiências intraútero, das vivências
Winnicott, que sugere uma configuração em círculos
da gravidez da mulher e suas consequências na saúde
que se ampliam e se expandem desde o desejo e o
física e mental do bebê até a constatação nos primór-
corpo da mãe, o ambiente facilitador, à participação
dios da vida de que há uma dependência absoluta do
social mais ampla (Figura 2).
lactente em relação a um ‘outro’ para existir, leva-nos
Para exemplificar, no caso do Modelo de Dahlgren e
a reconhecer que existem etapas do desenvolvimento
Whitehead (CNDSS, 2008), pode-se destacar a camada
deste novo ser, nas quais ele não existe por si só. Isso
situada no limiar entre os fatores individuais e os DSS, já
quer dizer que, na etapa de dependência completa, que
que os comportamentos dependem não apenas de opções
se associa aos primeiros meses de vida, não há como
Figura 2 - O papel da saúde mental na construção da cidadania
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Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública
falar do bebê sem associá-lo à sua mãe ou a quem
num período da vida chamado primeira infância, não
cuida dele. Para Mahler, Pine e Bergman (1977), o
encontra correspondência, em termos de suas peculia-
nascimento biológico do homem e o nascimento
ridades e necessidades de cuidados e intervenções, nos
psicológico do indivíduo não coincidem no tempo.
modelos teóricos de determinação social da saúde. No
O primeiro é um evento bem delimitado, dramático
discurso de abertura do XVIII Congresso Mundial de
e observável; o último, um processo intrapsíquico de
Epidemiologia e do VII Congresso Brasileiro de Epi-
lento desdobrar:
demiologia, que trouxe como tema “A epidemiologia
na construção da saúde para todos: métodos para um
O processo de separação/individuação normal
mundo em transformação”, o Ministro da Saúde do
começa em torno do quarto, quinto mês e vai
Brasil faz a seguinte afirmação:
até o trigésimo, trigésimo sexto [...] caminhando de um período simbiótico até a aquisição
No campo da promoção da saúde o desafio
pela criança de um funcionamento autônomo
para os epidemiologistas é o de produzir co-
na presença da mãe e da prontidão em termos
nhecimentos para a compreensão dos atuais
de desenvolvimento para a funcionamento
determinantes da saúde: o entendimento de
psíquico independente, gerador de prazer.
que múltiplos aspectos materiais e imateriais
(p. 15).
configuram o espaço/ território investigado,
engendrando praticamente todas as dimensões
Essa citação nos ajuda a sustentar o porquê de
da existência humana, demandam novos
consideração tão destacada para esta etapa da vida, a
discursos e abordagens que alcancem aprofun-
caminho da individuação para o desenvolvimento saudá-
dar a perspectiva multi ou transdisciplinar,
vel: o florescimento da capacidade para andar e afastar-se
incorporando dimensões não comumente
mantendo certo controle sobre ir e vir, desenvolvimento
utilizadas nos estudos epidemiológicos. Estas
da linguagem, utilização do pronome ‘eu’, reconhecer e
transformações que trouxeram novos ele-
nomear o outro, diferenciação e identidade de gênero,
mentos para se pensar a relação entre espaço,
dentre outros de igual magnitude na constituição do
tempo, saúde e doença, são fundamentais
ser humano.
para melhor compreensão da proposição de
A aproximação entre as constatações anteriores
determinantes da saúde e estabelecer como
e a observação de que os modelos de determinação
estes se expressam no adoecer e morrer [...].
da saúde estudados pela CNDSS tendem a considerar
(Temporão, 2008, p. 10).
seus determinantes a partir de um ‘indivíduo e suas
inter-relações – o que significa, como vimos, um longo
Essa abordagem nos levou à sugestão da constitui-
caminho já percorrido em termos de crescimento e
ção da saúde atrelada à constituição dos sujeitos em seu
desenvolvimento pessoal – nos alerta para a existência
crescimento rumo à cidadania, ou seja, uma configu-
de um ‘tempo-espaço epidemiológico’ relacionado à
ração em que se pode de fato incluir o ambiente facili-
etapa da dependência completa e relativa de um ser
tador ao pensar o processo saúde-doença, expandindo
humano em relação a outro, que pode se constituir como
sua compreensão para além dos resultados expressados
ambiente facilitador ao crescimento. Este, resguardado
na maneira pela qual em uma determinada sociedade e
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Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública
voltada para a primeira infância
um dado contexto histórico, se organizam a produção
ainda não fala, nos casos de autismo, na criança intimi-
e o trabalho.
dada, deve-se supor uma subjetividade à espera de ser
As descobertas das neurociências vieram confirmar
interrogada. Assim, a escuta da pequena criança e seus
as constatações dos autores que trabalharam com base
cuidadores é uma questão ética que sustenta o direito
na psicologia e na psicanálise o desenvolvimento emo-
da criança de constituir-se como sujeito, especialmente
cional primitivo, reiterando a importância da inclusão
se esta construção estiver enfrentando impasses. E esta
da promoção da saúde mental quando se trata de saúde
constatação só ocorrerá se pais ou cuidadores atentos,
pública. Para Damásio (2004):
incluindo profissionais de saúde, estiverem presentes e
implicados, capturados por um interesse especial nesta
Elucidar a neurobiologia dos sentimentos e das
criança, opondo-se sempre à ideia de que o corpo do
emoções que os percebem altera a nossa visão
bebê seja tomado e lido como um puro organismo, pois
do problema mente-corpo, um problema cujo
não há humano sem vida psíquica. E essa presença cons-
debate é central para a compreensão daquilo
tante e experiente junto ao bebê possibilita o suporte à
que somos. A emoção e as várias reações com
construção de seu aparelho psíquico, permitindo que o
ela relacionadas estão alinhadas com o corpo,
cérebro ofereça sua plasticidade neural à inscrição dos
enquanto os sentimentos, estão alinhados com
processos simbólicos. Diz-se, assim, que os pais são os
a mente. (p. 15).
primeiros e imprescindíveis mestres do cérebro.
O desenho de qualquer modelo deve expressar,
Porém, o mais interessante desta contribuição à
portanto, esta compreensão fundadora em termos de
nossa proposição se dá quando ele questiona o valor
determinação de vida e saúde. Conforme podemos
prático desta nova perspectiva. Diz ele:
observar na Figura 2, sugere-se uma configuração em
que a mãe, vinculada ao seu bebê, representa com seu
O êxito ou o fracasso da humanidade depende
corpo e sua mente o ambiente inicial da vida do filho, o
em grande parte do modo como o público e
primeiro território vivencial; e se ela mesma, como indi-
as instituições que governam a vida pública
víduo, encontra-se exposta a toda série de determinações
puderem incorporar essa nova perspectiva da
sociais, como mostram os diferentes modelos, ela passa a
natureza humana em princípios, métodos e
representar o ambiente total a ser considerado, cuidado
leis capazes de reduzir o sofrimento humano
e protegido – por um dado espaço de tempo e objeto de
e engrandecer o seu florescimento. (Damasio,
eleição de ações promotoras de saúde. Aqui, podemos
2004, p.16).
oportunamente agregar a proposição de Milton Santos
sobre as noções de “espaço e território” onde se produz
Mais ainda nos coloca aspectos éticos de grande
saúde ou doença: o espaço é aquilo que resulta da relação
relevância, discutidos no curso “As interfaces das clínicas
entre a materialidade das coisas e a vida que as animam e
da primeira infância”, organizado pela Comissão de
transformam. A configuração territorial é uma produção
Saúde Primária da Associação Brasileira de Neuropsi-
histórica resultante dessas relações. As ações provêm das
quiatria Infantil (Abenepi, 2009), pois a individuação
necessidades humanas: materiais, espirituais, econômicas,
em processo supõe um sujeito por vir e, mesmo onde
sociais, culturais, morais, afetivas. Sistemas de objetos e
aparentemente não existe sujeito, como na criança que
de ações interligam-se. A dimensão da comunicação no
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voltada para a primeira infância
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Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública
meio ‘técnico-científico-informacional’ produz-se tam-
Recentemente, descobriu-se como um lar estável,
bém através da circulação de palavras, imagens, rumores,
qualquer que seja sua conformação em termos de figuras
afetos. Os elementos simbólicos contribuem de modo
parentais, não apenas capacita as crianças a encontrarem
significativo para a configuração territorial e, certamente,
a si mesmas e aos outros, mas também faz com que elas
para o processo do adoecer individual e coletivo. Isto nos
comecem a se qualificar como membros da sociedade
leva a pensar que o processo saúde-doença seja equacio-
num sentido mais amplo. Isso se deve ao desenvolvimen-
nado em seus determinantes sociais.
to da capacidade de identificação com estes mesmos pais
Entretanto, tratando-se de uma contribuição de
e, em seguida, com agrupamentos cada vez maiores, e
Winnicott à compreensão da relação entre a determinação
começa quando a mãe ‘entra em acordo’ com seu bebê.
social e o desenvolvimento emocional primitivo do bebê,
O pai, aqui, é o agente protetor que liberta a mãe para
por meio da conformação deste ambiente facilitador ao
que ela se dedique ao bebê.
crescimento saudável, torna-se fundamental registrar que
A ressaltar, a lembrança de que estas são funções
o autor não utiliza o conceito ‘determinação’ como uma
que podem ser, a partir de um dado momento, desem-
imposição da natureza que independe do concurso de
penhadas ou não pela mãe ou pai biológicos, incluindo
outros fatores para sua concretização. Plastino (2009) fala
outros familiares, vizinhos, babás ou educadoras de
em tendências ou linhas de força que a natureza imprime
creches e pré-escola capazes de prover continuidade no
ao homem, favorecendo o movimento espontâneo da vida,
cuidado. E a continuidade do cuidado representa, se-
a autopoiese, a autocriação subjetiva e a criação. Não se
gundo Bowlby (2002) e Winnicott, característica central
tratando de determinações, as tendências requerem acon-
do conceito de ambiente facilitador:
tecimentos históricos para virem a ser, ou se atualizarem.
Neste contexto de um ambiente favorável, o infante hu-
é unicamente pela provisão ambiental (presença
mano atinge a integração, personalização e realização, de
da mãe ou ausência dela por tempo que não se
forma absolutamente criativa e original. Assim, somente
prolongue para além da capacidade do bebê em
cada sujeito sabe dizer das vicissitudes de seu sentimento de
manter viva sua imagem) que o bebê em estado de
existir, de ser real ou da ausência deles, todos fundamentais
dependência pode ter uma continuidade em sua
em sua vida, demarcando a diferença entre saúde e doen-
linha de vida. (Winnicott, 1989, p. 48).
ça. Também a ideia de ‘modelo’, como algo terminado e
reproduzível, não se adéqua ao pensamento de Winnicott.
Falhas nesse aporte, em termos de características
Para exemplificar, basta recuperar sua participação e com-
essenciais da vida familiar e sentidas pela criança como
partilhamento na produção dos famosos ‘rabiscos’ que
privação, estão na gênese da tendência e do comporta-
expressavam tão intensamente a emergência de conteúdos
mento antissocial (Winnicott, 1987).
psíquicos de seus pacientes na atualização de questões de
sua história. Então, mais à vontade poderíamos falar em
configuração e arranjo de tendências que possibilitam a
REPERCUSSÕES (NAS) PRÁTICAS
integração psíquica e seu papel na produção de saúde como
uma construção plasticamente e estruturalmente mutável
mediante interação, integração e realização destas mesmas
tendências num dado ambiente.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 187-200, abr./jun. 2010
Com esta compreensão, as estratégias de atenção
à saúde da mulher só estarão completas se passarem a
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•
Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública
voltada para a primeira infância
incluir ações que considerem as vicissitudes de manejo
este aspecto do trabalho intenso a ser realizado sobre a
das questões vivenciadas na gravidez, no pós-parto e
potência dos vínculos entre os principais atores do SUS
estendendo-se pelo menos até o final do primeiro ano de
para a produção de saúde.
vida do bebê, quando é fundamental cuidar de proteger
Além disso, buscou-se conhecer por revisão biblio-
este “ambiente facilitador” para uma vida saudável e um
gráfica e visitas in loco as estratégias já implantadas ou
desenvolvimento pleno. Da mesma forma, as estratégias
em processo de implantação em nosso país consideradas
e políticas voltadas para a saúde materno-infantil devem
também exemplares nesta perspectiva. Tomamos, assim,
aperceber-se da importância das ações nos primórdios
como marcos referenciais o Programa Primeira Infância
da vida, que não só venham trazer a sua garantia, mas
Melhor (PIM) do Estado do Rio Grande do Sul, o Mãe
também qualificá-la. Destacadamente, apontamos para
Coruja Pernambucana, o Mãe Curitibana (ver sites rela-
a importância da detecção precoce da depressão materna
cionados), a Experiência de Sobral (CE) (Silva, 2007) e
como evento sentinela, ou seja, aquele suficientemente
outros, que fazemos questão de citar pelo pioneirismo,
estudado e comprovado como provocador de determina-
ousadia e trabalho árduo para efetivação de propostas
das patologias, que precisa ser registrado e acompanhado
desta magnitude.
em sua remissão e evolução. Mitos como a ‘maternidade
ideal’ e o ‘instinto materno’ precisam também de acolhimento e escuta para sua necessária desconstrução. A
CONCLUSÕES
Estratégia de Saúde da Família e as ações, programas e
políticas de suporte ao trabalho e renda, assim como o estímulo à produção de redes sociais, o vínculo fortalecido
Sabemos como problemas complexos nos colocam
com equipamentos sociais como as creches e as escolas
em condição de ação sempre aquém das necessidades e
voltadas para a criança até seis anos junto a seus fami-
sempre aproximativa do ponto de vista da eficácia, exi-
liares e os dispositivos culturais guardam possibilidades
gindo ciência, ação racional e, ao mesmo tempo, criação,
imensas de abrigar trabalhos efetivos sobre o ambiente
arte, razão estética. Nesse sentido, duas questões surgi-
facilitador e os determinantes sociais da saúde.
ram de imediato, nos desafiando para a construção da
Para a construção da metodologia da EBBS e de
Estratégia: como efetivar a articulação e transversalização
um Plano de Metas para sua implantação, utilizamos
entre as diversas ações pretendidas? Como assegurar a
todos os dispositivos ofertados pela Política Nacional
inclusão de novos desafios na agenda, como a promoção
de Humanização do SUS (PNH), exemplar no que diz
de saúde inovando na inclusão de intervenções sobre o
respeito à ideia do que é uma política pública de natureza
ambiente facilitador?
transversal. Mais ainda, esta política inicia a proposição
A resposta a este desafio de prover ações em defesa
ousada de buscar o humano que se revela no espaço da
do ambiente facilitador ao crescimento, desenvolvi-
micropolítica de atenção dentro de e constituindo o
mento e amadurecimento da criança vinculada à seu
nosso SUS, que até então só parecia poder apresentar,
cuidador no período da primeira infância nos convoca
mesmo que orgulhosamente, sua macroestrutura. Desde
à disponibilização de novos enfoques que enriqueçam as
os anos 1990, com a proposta da reforma da reforma
políticas públicas já instituídas voltadas principalmente
(Campos, 2006), explicitava-se esta necessidade de
para as mulheres e crianças, mas também para os ho-
aprimorar a Reforma Sanitária Brasileira, incluindo
mens, para a saúde mental, com contribuições da PNH,
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voltada para a primeira infância
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Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública
do trabalho de construção de Redes e, principalmente,
como a sua repercussão/determinação sobre a própria
da Atenção Básica, lócus privilegiado da maioria das
saúde e dos demais. Utiliza como suporte a esta reflexão
ações através da Estratégia de Saúde da Família exitosa
a seguinte proposição:
em nosso país. A possibilidade de oferta de novas compreensões e novos aportes procedentes de áreas afins,
A democracia é uma aquisição de uma dada
assim como a formação e a capacitação dos profissio-
sociedade, que num certo momento conta com
nais de saúde, cuidadores e gestores nesta nova lógica
maturidade suficiente no desenvolvimento emo-
e aportes financeiros para essa iniciativa ampliada com
cional de uma proporção de indivíduos que a
novos esforços intersetoriais, certamente, ocupa todas
compõem, a ponto de existir uma tendência em
as linhas e entrelinhas deste artigo, e está relacionado
direção à criação, à recriação e a manutenção
a um ponto relevante do debate político da reforma
da máquina democrática. (Winnicott, 1989,
do setor saúde: o enfrentamento da desigualdade e da
p. 192).
iniquidade. Sabemos que não se constrói um projeto
político nesta área que assegure de forma sustentável e
Sobre democracia, parece possível encontrar um
permanente o acesso universal aos bens e serviços e que
conteúdo latente importante quando é usado o termo: a
garanta os direitos do cidadão sem a decisão política de
relação de uma sociedade democrática com a maturidade
assegurar os recursos necessários para o financiamento
de seus membros saudáveis. Se partirmos da observação
do sistema de saúde que possibilite investimentos na
psiquiátrica individual, maduro é o indivíduo normal,
infraestrutura, na aplicação de novas tecnologias, na
saudável, que age de acordo com sua idade cronológica
manutenção de quadros de profissionais de qualidade e
e seu contexto social, com um grau apropriado de de-
no fomento ao desenvolvimento científico e tecnológico.
senvolvimento emocional.
Para alcançar este objetivo, é preciso que a saúde seja
Algumas categorias básicas da máquina democrá-
pensada e priorizada nos planos de desenvolvimento
tica são o voto livre e secreto não só para que as pessoas
como componente estratégico e não como um agente
escolham lógica e ilogicamente, mas também para que se
secundário. Tal posição recoloca as bases sobre as quais
livrem e removam seus líderes. E essa escolha permitirá
os determinantes de saúde devem ser equacionados. A
mais ou menos celeremente a caminhada do projeto/
desigualdade social, quando manifestada no campo da
processo civilizatório de uma dada cultura. Essa capa-
saúde é, portanto, a expressão mais perversa do modelo
cidade de influência de cada um sobre o todo, e deste
de desenvolvimento e não será plenamente solucionada
sobre todos e cada um, é característica importante do
sem que outras variáveis sejam de fato equacionadas.
desenvolvimento de uma sociedade, estando relacionada
Uma reflexão bastante interessante que envolve a
à possibilidade de amadurecimento da personalidade
luta de toda a sociedade pela redução das iniquidades
individual ao longo da vida e dependente de todos
pode ser tomada do artigo inédito “Ambiente facilitador
os equipamentos que esta mesma sociedade coloca à
e a Determinação Social da Saúde”, de Penello (2009).
disposição de seus cidadãos para este fim. Em seu livro
Examinando do ponto de vista psicanalítico a relação
Desenvolvimento como Liberdade, Amartya Sen (2000)
entre democracia e liberdade, a autora busca sua asso-
enfatiza a importância de eliminar todas as privações de
ciação ao ambiente facilitador para o desenvolvimento
liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das
do indivíduo em e para a sociedade em que vive, assim
pessoas para exercerem sua condição de cidadão.
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Determinação social da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos e proposição estratégica para uma política pública
voltada para a primeira infância
Portanto, se democracia é maturidade, matu-
com a primeira infância. É com esta compreensão e
ridade é saúde, e se saúde é desejável, então vamos
responsabilidade que trabalhamos na perspectiva do
trabalhar para sua promoção, reconhecendo que um
setor saúde pelo crescimento da Estratégia Brasilei-
de seus fatores essenciais repousa no homem comum,
rinhas e Brasileirinhos Saudáveis – primeiros passos
na mulher comum e no lar comum dos brasileiros
para o desenvolvimento nacional.
– devendo esse fator ser seriamente considerado no
desenho de políticas públicas para a área.
A questão de saber se as crianças de hoje vão
R E F E R Ê N C I A S
ganhar ou perder com as mudanças em curso no
ambiente de cuidado na primeira infância não dependerá exclusivamente, como sabemos, da área da
saúde (Unicef, 2008). Iniciativas como a criação da
licença parental estendida com aceitação e compreensão da sua importância pela maioria da sociedade,
a disponibilidade, acessibilidade e qualidade dos
serviços ofertados nas áreas da educação e assistência
social, diante da realidade de cada país, com as cores
do município onde acontece o dia a dia das pessoas,
o trabalho de consciência sanitária a ser realizado
em diferentes mídias, a continuidade de programas
de erradicação da miséria e da fome como o Bolsa
Família, entre outros, deverão necessariamente se
articular a todas as ações de saúde nesta perspectiva.
E, então, a formação de pessoal e sua capacitação
ganha destaque para que possa trabalhar devidamente motivado, bem remunerado e respeitado pela
comunidade. As provas provenientes dos países da
OCDE até agora sugerem que não há atalhos ou
opções de baixo custo que não comprometam o
futuro das crianças (Bennet, 2008). Na ausência de
políticas específicas e bem financiadas destinadas a
proporcionar serviços de qualidade às crianças vulneráveis, é provável que a transição para os cuidados
fora de casa contribua para alimentar a espiral das
desigualdades. E se quisermos evitar que esta possibilidade se torne realidade, os governos federal,
estadual e municipal deverão construir políticas
transversais especialmente voltadas para o cuidado
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voltada para a primeira infância
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DEBATEDORES
/
DISCUSSANTS
Estratégia em defesa da criança saudável: cogestão e não-violência
como postura existencial e política
Strategy in favor of healthy children: co-management and nonviolence as existential and
political attitude
Gastão Wagner de Sousa Campos 1
Médico; doutor em saúde coletiva pela
Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP); Professor da UNICAMP.
[email protected]
1
O artigo de José Gomes Temporão e Liliane Mendes Penello traz um
novo enfoque para a política pública voltada para a primeira infância. É
sugerida uma estratégia ousada e inovadora. A ousadia advém tanto do enfoque teórico desenvolvido como, e principalmente, quando propõem que
o centro da política esteja no “fortalecimento dos vínculos entre os pais, suas
crianças pequenas e a rede social que os cercam” (p. 190). Não custa insistir
que a estratégia para assegurar vida saudável aos pequenos brasileiros está
assentada na
escuta da pequena criança e de seus cuidadores [...], opondo-se sempre à idéia de que o corpo do bebê seja tomado e lido como um puro
organismo, pois não há humano sem vida psíquica. (p. 195).
Observa-se que se trata de uma política assentada sobre uma concepção
ampliada de saúde e, ainda, sobre a visão de que a construção de autonomia,
de que a ampliação da capacidade das pessoas compreenderem e agirem
sobre si mesmo e sobre seu contexto é elemento fundamental para defesa da
vida. Essa concepção de política pública não é frequente, pois, em geral, os
programas sanitários costumam tomar a população ‘alvo’ como objeto a ser
‘atingido’ pelas atividades planejadas a priori. No caso, ao contrário, os autores defendem que a relação mãe-filho seja sempre entendida dentro de um
contexto cultural, histórico e social, e que a melhoria destas relações seriam
os ‘objetos’ centrais da política.
Os autores se valem de um enfoque teórico criativo para compor seu
discurso e argumentos. Articulam a tradição da Saúde Coletiva, em grande
medida sustentada pela concepção de determinação social da produção
de saúde, com a dinâmica concepção sobre a conformação do sujeito de
Donald Winnicott. Partindo do papel da ‘mãe suficientemente boa’ e do
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Estratégia em defesa da criança saudável: cogestão e não-violência como postura existencial e política
‘ambiente facilitador’ na conformação do novo sujeito,
(homenageando) ao nosso passado comum, o da Saúde
individuação do ser humano em fase precoce de seu
Coletiva, que tanto contribuiu para a reforma sanitária
desenvolvimento, os autores imaginam modos de as
brasileira. Sim, sem os pensamentos, palavras e obras
políticas públicas contribuírem com esse processo.
da Saúde Coletiva, o que seria do SUS? Por outro lado,
Estimula-se que a Estratégia da Saúde da Família, a
qual o sentido em apoiar-nos em concepções simplifica-
Política de Saúde Materna, o Humaniza-SUS, dentre
doras, ainda quando sistêmicas, da coprodução singular
outras práticas sanitárias e sociais, adotem não somente
dos processos de saúde, doença, risco, vulnerabilidade
essa compreensão ampliada, mas também modos de
e intervenção?
apoiarem a constituição de ‘ambientes facilitadores’ e de
‘mães suficientemente boas’ em escala coletiva.
Em grande medida, venho pelejando no mesmo
sentido que os autores. Também me inspirei em Win-
Entretanto, vale ressaltar que não é simples integrar
nicott e em autores da Saúde Coletiva, entre outros,
a concepção ‘estrutural’ de determinação social adotada
quando elaborei o Método Paideia, que busca a confor-
pela Saúde Coletiva, inclusive o modelo de Dahlgren
mação simultânea de pessoas e instituições. Para isso, é
e Whitehead utilizado no texto, com o pensamento de
essencial realizar trabalho sistemático junto aos próprios
Winnicott e uma série de outros autores que buscam
sujeitos, objetivando apoiá-los para refletirem sobre sua
escapar das dinâmicas estruturais para pensar alguma
capacidade de atuar sobre si mesmos e sobre o mundo
filosofia da prática, em que os sujeitos realizem mediação
que os cerca, particularmente sobre as relações sociais
entre o estruturado e o situacional. Aliás, os próprios
e instituições.
autores, em certa altura do texto, indicam as contraposições entre estas duas perspectivas:
O método objetiva aumentar a capacidade de compreensão e de intervenção das pessoas sobre o mundo e
sobre si mesmo, contribuindo para instituir processos
[...] tratando-se de uma contribuição de Win-
de construção de sociedades com grau crescente de
nicott à compreensão da relação entre a deter-
democracia e de bem-estar social.
minação social e o desenvolvimento emocional
primitivo do bebê, através da conformação deste
A base para uma sociedade é a personalidade
ambiente facilitador ao crescimento saudável,
humana total [...] não é possível que as pessoas
torna-se fundamental registrar que o autor não
consigam ir mais além na construção da sociedade
utiliza o conceito ‘determinação’ como uma
do que de seu próprio desenvolvimento pessoal
imposição da natureza que independe do con-
[...] A democracia é uma aquisição de uma dada
curso de outros fatores para sua concretização.
sociedade, que num certo momento conta com ma-
Plastino (2009) fala em tendências ou linhas
turidade suficiente no desenvolvimento emocional
de força que a natureza imprime ao homem,
de uma proporção de indivíduos que a compõem,
favorecendo o movimento espontâneo da vida, a
a ponto de existir uma tendência em direção à
autopoiese, a autocriação subjetiva e a criação.
criação, à recriação e a manutenção da máquina
(p. 196).
democrática. (Winnicott, 1989, p. 193).
Fiquei a me perguntar até quando estaríamos,
Essa educação para a vida teria como escola a
os autores e eu próprio, pagando tributo de respeito
própria vida, mediante a construção de modalidades
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 201-203, abr./jun. 2010
CAMPOS, G.W.S.
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Estratégia em defesa da criança saudável: cogestão e não-violência como postura existencial e política
de cogestão que permitam aos sujeitos participarem
do comando de processos de trabalho, de educação, de
convivência comunitária e até mesmo do cuidado de sua
própria saúde. A gestão compartilhada da clínica ou da
saúde pública pode constituir também um espaço onde
se produza esse efeito Paideia.
Bem, de qualquer modo, ficam algumas questões
para o futuro. Adotando-se essa Estratégia, como reagir
quando os ‘fundamentalistas da objetividade’ resolvem
criar um score pra medir o ‘ambiente facilitador’? Uma
planilha para avaliar o desempenho materno? Ironia à
parte, o desafio está também em formar profissionais
com capacidade e desejo para operarem com uma
clínica ampliada e compartilhada, com conceitos da
Saúde Coletiva, psicanálise, promoção etc.? E, ainda,
em como adequar instituições públicas (SUS, Escolas,
SUAS) para que não se aproveitem da ‘necessidade’
de lidar com relações familiares para introduzirem
formas perversas de controle social? O tema da ética
em saúde: qual o compromisso primeiro das equipes?
Como combinar estratégicas sanitárias diretivas e
normatizadas com o respeito à autonomia da função
de mãe e do ser criança?
De qualquer modo, não há como fugir ao repto
lançado pelo artigo: não haverá vida saudável para os
brasileiros sem o concurso dos próprios brasileiros; além,
óbvio, do necessário concurso simultâneo de políticas
públicas voltadas para o bem-estar, para a paz e executadas em modalidades variáveis de cogestão.
R E F E R Ê N C I A
Winnicott, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins
Fontes, 1989.
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DEBATEDORES
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DISCUSSANTS
Um grande avanço
A big step forward
Osmar Terra1
Médico; Especialista em
desenvolvimento infantil pela
Universidade de Brasília (UNB);
Mestre em neurociências pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUC-RS); Deputado Federal
pelo PMDB-RS.
[email protected]
1
O
s autores do texto tratam de uma questão absolutamente transcendental, de um grande passo adiante na promoção da saúde, qual seja
a criação de políticas públicas voltadas para um desenvolvimento humano
integral mais harmônico, que considere não só as variáveis da saúde física,
mas que também priorize, da melhor forma possível, a sanidade mental
e a plenitude das competências humanas.
Esse desenvolvimento deve, obrigatoriamente, ser considerado
desde os seus primórdios. Como diz Allan N. Schore em seu livro Affect
Regulation and the Origin of the Self (1994): “A formação inicial dos sistemas vivos estabelece os condicionantes para o funcionamento de cada
aspecto do organismo, seja interno ou externo, através de toda a vida”.
Ele reconhece o óbvio, que é bem no início da vida que todas as nossas
principais habilidades e competências se organizam, para permitir nossa
sobrevivência posterior.
Embora de importância óbvia, esse cuidado com o desenvolvimento
inicial sempre foi tratado como secundário, em todos os ramos do conhecimento humano. Mesmo na saúde, as preocupações, até alguns anos
atrás, restringiam-se às doenças mais comuns para a idade e aos cuidados
para diminuir a mortalidade infantil.
A grande contribuição que os autores do texto proporcionam aos
leitores é o avanço na compreensão sobre a importância do chamado
‘ambiente emocional facilitador’ para o desenvolvimento inicial, considerando-o num contexto da determinação social da saúde. Eles avançam
numa região ainda pouco explorada do conhecimento, construindo uma
preciosa síntese sobre o valor dos cuidados nos primeiros anos de vida,
que caminhos devem seguir e como eles influenciam, a longo prazo, a
saúde física e mental do futuro adolescente e adulto.
Alem de contribuição teórica, de grande relevância, os autores
também avançam na formulação de políticas públicas inovadoras e que
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TERRA, O.
•
Um grande avanço
certamente terão grande impacto social. No texto,
comportamento violento e antissocial. Também é
eles transitam de uma forma pedagógica e inteligí-
reconhecido o quanto a capacidade de aprendizagem
vel nos principais achados de pesquisas de ponta,
depende da facilidade da linguagem verbal e escrita.
demonstrando com muita clareza a interação entre
Assim, tem-se uma base para compreender a fantás-
a natureza e o estímulo do ambiente. Fazem uma
tica importância de políticas públicas que interfiram
síntese rara que vai da psicanálise aos recentíssimos
positivamente nesse período da vida.
dados da neurociência, passando pela antropologia
Richard Tremblay, pesquisador da Universidade
e pela etologia, sempre demonstrando como são
de Montreal, Canadá, acompanha vários estudos
determinantes os primeiros anos para o restante da
longitudinais de populações nascidas há mais de
existência humana.
duas décadas, em vários países do mundo. Sua con-
A verdade é que mesmo com os trabalhos de
clusão principal é que o comportamento agressivo se
Freud e posteriormente de Vigotski, Piaget, Bowlby
estabelece muito precocemente no ciclo da vida. As
e Winnicott, chamando a atenção para a importância
pessoas mais agressivas e violentas na idade adulta
da organização básica inicial da vida psíquica, alicer-
foram, em geral, crianças com transtornos de conduta
çada na primeira infância, os principais textos e as
facilmente detectáveis e tratáveis, mas que seguiram
principais ações públicas a ignoravam.
sem nenhum tipo diferenciado de atenção até a idade
O impacto que os primeiros anos de vida exer-
adulta. Está cada vez mais comprovado que boa parte
cem sobre a capacidade humana, de melhorar suas
dessas pessoas foi vítima de negligência e/ou abuso
condições de saúde e de aprendizagem futura, além
nos três primeiros anos de vida.
da influência no desempenho social, ao longo de toda
É muito importante entender, também, que
a vida, é cada vez mais demonstrado pela pesquisa
além dos aspectos psíquicos, e até como sua base
científica contemporânea. Nos últimos anos, foi no-
material, acontece uma extraordinária plasticidade
tável o incremento de novas descobertas nesse campo.
cerebral nos primeiros anos, com uma velocíssima
Elas têm demonstrado, com muita precisão, que os
formação de trilhões de novas conexões entre os 100
cuidados nessa fase da vida devem ir muito além da
bilhões de neurônios do cérebro humano. Tudo isso
parte física, eles devem estimular e enriquecer a parte
num curto espaço de tempo, de forma programada
cognitiva e emocional, criando os alicerces para um
para responder aos estímulos do ambiente, e em áreas
melhor desempenho na vida em sociedade.
distintas, acionadas em períodos determinados. São as
Frasier Mustard, pesquisador canadense, desco-
‘janelas de oportunidade’, momentos críticos em que
bridor do efeito anticoagulante do AAS, afirma que
são organizadas as funções e competências importan-
o padrão de stress, carregado pelo resto da vida, se
tes para o desempenho e a sobrevivência em melhores
organiza nos primeiros três anos de vida. Também,
condições. Em nenhum outro momento do ciclo vital
aí, é organizada a futura capacidade de ler e escrever,
acontecerá uma situação tão dinâmica.
o controle de impulsos e as bases do comportamento
O processo de desenvolvimento incrivelmente
na vida adulta. Sabe-se o quanto o stress interfere nas
rápido, que acontece da gestação até o final dos pri-
patologias mais comuns, físicas e mentais, e como
meiros três anos, é marcado geneticamente e influen-
o controle de impulsos inadequado pode induzir o
ciado poderosamente pelo ambiente. A cada estímulo
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205
206
TERRA, O.
•
Um grande avanço
ambiental novo, corresponde uma nova rede de co-
em sintonia com essas assertivas, com as novas desco-
nexões formada. Os autores explicitam esse aspecto
bertas científicas e com os consensos internacionais
de uma forma extremamente didática, resumindo o
sobre a importância da primeira infância. Também,
conceito de ‘ambiente facilitador’ que assume uma
para isso, utilizou as políticas públicas inovadoras
dimensão mais objetiva, quando: “é unicamente pela
em curso em pelo menos dois Estados brasileiros,
provisão ambiental (presença da mãe ou ausência
que procuram oferecer um atendimento integral e
dela por tempo que não se prolongue para além da
privilegiado dos primeiros anos. De um lado, traba-
capacidade do bebê em manter viva sua imagem) que
lhou com a proposta do ‘Mãe Coruja’ pernambuca-
o bebê em estado de dependência pode ter uma con-
no, com uma preocupação maior com a redução da
tinuidade em sua linha de vida” (Winnicott,1989).
mortalidade infantil e os cuidados da amamentação;
Falhas nesse aporte de vida familiar pode levar a al-
do outro, com o ‘Primeira Infância Melhor’ gaúcho,
terações comportamentais e cognitivas importantes,
que focaliza a estimulação cognitiva e emocional,
entre outros transtornos.
educando a família com visitadores especialmente
Reforçando ainda, o ponto de vista dos autores,
capacitados. Ambos os programas trabalham com
está comprovada uma alteração importante na estru-
conceitos que podem ser compreendidos dentro do
tura cerebral da criança maltratada ou negligenciada.
‘ambiente facilitador’, e abrem o leque de opções
“O aumento de glicocorticoides induzido pelo stress
operacionais da EBBS.
(provocado pelos maus tratos), no período pós-natal
Assim, o EBBS, gestado com a participação
imediato, induz à morte neuronal nos “centros afe-
decisiva dos autores do texto, amplia a abrangência
tivos (Kathol et al. 1989), criando circuito límbico
dos programas de saúde convencionais, tanto pela
anormal (Benes, 1994), e danos permanentes no
exigência de ações multidisciplinares, quanto pela in-
direcionamento da emoção em canais adaptativos
trodução do componente psicológico, como parte da
(Dekosky et al.,1982)”. “Está agora estabelecido pela
determinação da saúde, reforçando nessa abrangência
pesquisa que os fatores de stress social (provocados
a importância da díade mãe e/ou cuidadora-bebê.
pelos cuidadores) são mais deletérios a longo prazo
O que é notável e extremamente relevante, nessa
que os estímulos aversivos não-sociais (Sgoifo et al.,
visão exposta, é a perspectiva avançada que se pode
1999)”.
conquistar, estabelecendo novos conceitos alicerçados
Qualquer estratégia exitosa nessa perspectiva
deve, portanto, considerar sempre o envolvimento da
na ciência, e o enorme impacto que isso pode causar
na promoção da saúde física e mental das pessoas.
família, sua capacitação para os cuidados e estímulos
adequados, a cada novo momento do desenvolvimento da gestação e do bebê. As mães com maiores
REFERÊNCIAS
dificuldades podem e devem ser auxiliadas, para chegarem a ser ‘mães suficientemente boas’ no sentido
winnicottiano da expressão.
Ao criar a Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS), o Ministério da Saúde entrou
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Benes, P. Machine-assisted portrait and profile imaging in
New England after 1803. Painting and portrait making
in the American Northeast. Boston: Boston University
TERRA, O.
•
Um grande avanço
and Dublin Seminar for New England Folklife Annual
Proceedings, 1994. p.138-150.
Dekosky, S.T.; Nonneman, A.J.; Scheff, S.W. Morphologic and behavioral effects of perinatal glucocorticoid
administration. Physiology & Behavior. v. 29, n. 5, p.
895-900, 1982.
Schore, A.N. Affect regulation and the origin of the self.
Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1994.
Winnicott, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins
Fontes, 1989.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 204-207, abr./jun. 2010
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208
RÉPLICA
/
REPLY
Vinculo como suporte ao ambiente facilitador à vida:
uma questão de saúde pública
Bond as a support for favorable environment to life: a matter of public health
José Gomes Temporão 1
Liliane Mendes Penello 2
Médico; Doutor em Saúde Coletiva
pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ); Ministro de Estado da
Saúde do Brasil.
[email protected]
1
Médica; Mestre em Saúde Pública
pela Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/
Fiocruz); Coordenadora do Comitê
Técnico Consultivo da Estratégia
Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis
(MS/Fiocruz).
[email protected]
2
I
nicialmente, queremos registrar a imensa satisfação de podermos contar
com os comentários de Gastão Wagner e Osmar Terra sobre nosso artigo.
Ao Gastão agradecemos as contribuições como pensador, formulador e trabalhador incansável por um Sistema Único de Saúde (SUS) humanizado e
capacitado em suas ações para redução das iniquidades em saúde e qualificação
da vida, com produções inovadoras e inspiradoras, inclusive para a proposta
que aqui apresentamos.
Ao Osmar, especialmente pelo belo trabalho que conduz há alguns
anos no Estado do Rio Grande do Sul, direcionado ao tema aqui discutido,
e também inspirador desta proposta estratégica, lá transformado em política
pública estadual, o Programa Primeira Infância Melhor.
De imediato, destacamos a importância dada ao vínculo como um
espaço potencial de produção de saúde sustentando as ações daqueles que
compreendemos como protagonistas do campo: profissionais de saúde, gestores, usuários e seus familiares, população em geral. Esse reconhecimento
faz toda a diferença para os envolvidos, uma vez que permite a compreensão
das implicações e reservas de um sujeito diante do outro, pela atualização na
relação entre o cuidador e aquele que é cuidado (especialmente nos períodos de doença com suas reivindicações singulares) de toda a delicadeza que
permeia a formação dos padrões estabelecidos nos primórdios da vida entre
a mãe, como principal cuidadora, e seu bebê.
A Política Nacional de Humanização (PNH) do SUS aborda, de forma
corajosa, essa questão, inovando ao ressaltá-la não apenas nos princípios e
valores, mas nas estratégias, nos dispositivos ofertados para as ações que articulam clínica e gestão, e no método que utiliza para construí-las, assentado no
Método Paideia, disponibilizando-se, ela mesma como indutora de ‘políticas
públicas suficientemente boas’.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 208-210, abr./jun. 2010
TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M.
• Vinculo como suporte ao ambiente facilitador à vida: uma questão de saúde pública
Nesse sentido, também a Estratégia Brasileirinhas
e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS) apresenta-se como
ensões diversas sobre quais seriam os fatores tidos como
determinantes na produção de saúde.
iniciativa no campo da saúde, buscando sustentar ou
Uma vez que não existe saúde (geral) sem saúde
facilitar a emergência de uma dada necessidade, no caso,
mental, assertiva da própria Organização Mundial de
os cuidados com a primeira infância como fator de de-
Saúde (OMS), qual o espaço, o lugar, desse componente
senvolvimento de nosso país, pela associação claramente
fundamental à vida, ao crescimento e ao desenvolvimen-
exposta entre saúde do sujeito e saúde da sociedade em
to saudável do sujeito em sociedade? Como discutir as
que vive, procurando contemplá-la ao apoiar a integra-
ações de determinantes sociais da saúde sobre o indiví-
ção e realização, tornando reais as movimentações dos
duo, sem considerar que num período extremamente
atores que têm se apresentado e dos que certamente
importante em termos de aquisições para a vida, o
irão se agregar à essa construção, por interesse genuíno
‘individuo’ ainda está em processo de ‘vir a ser’, não exis-
e corresponsabilização.
tindo como tal? Como abordar com maior propriedade
Quando lemos o livro Humanizando nascimen-
o potencial criativo e as habilidades e competências do
tos e partos, organizado por Rattner e Trench (2005),
sujeito nessa emergência, relacionando-as às tendências
deparamo-nos com uma citação de Michel Odent:
à integração de vários fatores, hereditários inclusive, e
“Para mudar a vida é preciso mudar a forma de nas-
ao ambiente em que vive, sem que se amplie a noção
cer”. Acreditamos nessa assertiva, tanto quanto na
de ambiente, incorporando os territórios vivenciais
fundamental modificação do que concebemos sobre
primordiais de todo ser humano: a mente e o corpo da
a potencialização da vida que emerge associada à im-
mãe em sua imersão singular no mundo?
portância do cuidado com quem decide por abrigá-la.
(p.171)
Por todas essas razões, a proposta winnicottiana é
apresentada como um suporte possível à compreensão
Daí tentarmos contemplar com essa estratégia
ampliada de saúde como expressão de potência e de
não só a garantia da vida da mãe ou quem a substitua
vida em desenvolvimento numa dada sociedade, e com
e seu bebê, somando-a a inúmeras outras iniciativas
a possibilidade de agregar outras contribuições que
nesse sentido, mas sua qualificação, por meio de dois
permitam a compreensão do homem em seu desafio
grandes eixos de suporte: o primeiro, teórico-conceitual,
contemporâneo: singular, mas inserido no mundo,
apresenta um ambiente facilitador a essa compreensão,
pertencendo a um coletivo pelo qual é reconhecido e
e o segundo aponta para certo modo de operar, neces-
onde se constitui historicamente.
sariamente voltado para as articulações intersetoriais e
seus atravessamentos.
As questões colocadas por Gastão são, na verdade,
Desafio que precisa ser enfrentado também na
apropriação dessa compreensão com a proposição de
políticas públicas afins.
boas provocações a nos fazer pensar, instigando seu com-
Quanto ao modo de operar, acreditamos que sim,
partilhamento e sua abertura para novas contribuições,
demanda muitos cuidados. Nesse aspecto, a experiência
tal como pretendíamos ao escrever este artigo.
comandada por Osmar Terra, muito nos auxilia, cor-
Do ponto de vista da concepção teórico-conceitual,
roborando já com resultados mensuráveis em termos
foi mesmo nossa intenção provocar um estranhamento
de impacto sobre os indicadores construídos para os
tanto dos atores vinculados ao campo da Saúde Pública
cuidados com a primeira infância em aproximadamente
quanto da saúde mental, com a aproximação de compre-
300 municípios gaúchos.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 208-210, abr./jun. 2010
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210
TEMPORÃO, J.G.; PENELLO, L.M.
• Vinculo como suporte ao ambiente facilitador à vida: uma questão de saúde pública
Concordamos que a questão ética é a grande orienta-
nem para dentro, ou seja, considerando suas diferentes
dora de propostas como essas, já que se referem às condições
Secretarias, nem nas produções laterais com outros Mi-
necessárias à emergência do humano: o encontro com outro
nistérios: Educação, Assistência Social, Políticas para as
humano que sustente este vir a ser, respeitando sua expres-
Mulheres, Direitos Humanos, Justiça, Trabalho, Cultura
são singular. Então, pressupõe-se que o cuidado, encarnado
e Esportes. Todos, entretanto, estão elencados para esse
nos nossos cuidadores, ao perpassar gestão e atenção, venha
primeiro grande levantamento.
favorecer arranjos estratégicos institucionais diferenciados
inclusive pela pactuação de suas normas.
Assim, transversalidade e intersetorialidade caminham com a construção da EBBS em três dimensões:
O Projeto EBBS prevê ações até o
final de 2011
intraministerial, interministerial e local. O momento
atual, após a cartografia das ações realizadas em torno da
primeira infância nos seis municípios polos, consiste em
Muitas pessoas estarão envolvidas nesse projeto:
organizá-las em termos de destaques (inovações), conver-
capacitação e, certamente, formação alinhada aos prin-
gências (utilizando referencial comparativo entre eles) e
cípios éticos aqui discutidos são aspectos fundamentais,
desafios, relacionados a três eixos: (co)gestão, modos de
assim como o reconhecimento do trabalho realizado.
organização do trabalho e ações de cuidado.
A figura do apoiador local é a nossa aposta como
Há disponível um farto material, que vem sendo
operador do apoio matricial que, na ponta, articula ações
trabalhado pela equipe de coordenação da EBBS e seus
da PNH, das diferentes redes e pactos estabelecidos
parceiros, também em diferentes níveis de ação: as ofi-
entre população, gestores, profissionais de saúde, tendo
cinas, que agregam todo o comitê técnico-consultivo e
a Atenção Básica e a Promoção da Saúde como seus
inúmeras ferramentas para manejo da temática apre-
dispositivos mais tradicionais, e a Estratégia de Saúde
sentada, o Grupo Executivo Nacional, que aprofunda,
da Família como eixo orientador das ações.
faz a revisão e a definição de rumos para a ação, tanto
Acreditamos, com a lembrança de Costa (2009, p.
para retorno às Oficinas, como para a contribuição ao
30) sobre a fábula de Higino em Ser e Tempo: das relações
trabalho dos Grupos Executivos Locais. Estes últimos,
entre cuidado, mortalidade e angústia “enquanto houver
coordenados pelo Secretário Municipal de Saúde, dia-
vida, o homem pertencerá ao cuidado a cada hora, minuto
logam com a prefeitura mostrando a importância da
e instante...o homem,vivendo,cuida; cuidando,vive.”
criação de dispositivos que agreguem diferentes áreas
Espera-se que cada vez mais a EBBS, fortalecida
para gerar ações articuladas, assim como produz suas
pela construção coletiva, conduza com vigor a proposta
próprias interações para dentro e fora da Secretaria.
de uma política pública de Estado voltada para os cui-
Como exemplo, a Secretaria Municipal de Saúde de
dados com a primeira infância.
Florianópolis busca, junto à Prefeitura, a criação de um
Nela, associada a tantos outros esforços governa-
comitê intersetorial para implantação da EBBS, compos-
mentais e da sociedade civil, considerando a diversidade
to por representantes das áreas de Educação, Assistência
cultural, econômica e social brasileira, depositamos a
Social, Cultura, Esportes, entre outras.
esperança de caminhar com maior segurança rumo ao
A cartografia das iniciativas do Ministério da
Saúde (MS), em relação ao tema, não está concluída,
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 208-210, abr./jun. 2010
crescimento e desenvolvimento saudável da democracia
em nosso país.
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família
Specialized orientation: the representation of the Family Health Team
Annaiza Freitas Lopes 1
Renata Amanda Azevedo de Brito 2
Fátima Luna Pinheiro Landim 3
Mônica de Oliveira Nunes 4
Patrícia Moreira Collares 5
Enfermeira graduada pela
Universidade de Fortaleza (Unifor).
[email protected]
1
Enfermeira graduada pela
Universidade de Fortaleza (Unifor).
[email protected]
1
RESUMO Esta pesquisa investigou a representação social da Equipe de Saúde
da Família da cidade de Fortaleza (CE) e o matriciamento promovido pelos
Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Em outubro e novembro de 2009, foram
entrevistados seis enfermeiros e cinco médicos; os dados foram organizados por
meio do Discurso do Sujeito Coletivo. As análises respeitaram ideias centrais
Enfermeira pela Unifor; Doutoranda
em Saúde Coletiva pelo Instituto de
Saúde Coletiva da Universidade Federal
da Bahia (UFBA); Professora do curso
de Mestrado em Saúde Coletiva da
Unifor.
[email protected].
A e B: ‘O matriciamento é uma estratégia muito válida para a saúde mental;
Médica com especialidade em
Psiquiatria; Doutora em Antropologia
pela Université de Montreal (Udem);
Professora adjunto do Instituto de
Saúde Coletiva da UFBA.
[email protected]
PALAVRAS-CHAVE: Atenção primária à saúde; Saúde mental; Redes de
2
3
Fisioterapeuta e mestranda em Saúde
Coletiva pela Unifor; Bolsista pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes).
[email protected]
4
um pouco deficitário e a capacitação não deve ser uma só’. Os dados sugerem a
representação do matriciamento como oportunidade de aprendizagem no sentido
de identificar e tratar casos de transtornos mentais. Resta, todavia, a expectativa
de que essa estratégia tenha continuidade assegurada.
cuidado continuado em saúde.
ABSTRACT This search investigated the social representation of the Family
Health Team in the city of Fortaleza (CE) and the specialized orientation given
by the Psychosocial Centers of Attention (PCA). Between October and November
2009, six nurses and five doctors were interviewed and the data were organized
through the Collective Subject’s Discourse. The analysis followed the central ideas
A and B: ‘the specialized orientation is a very valid strategy for mental health;
somewhat deficient and the capacity-building should not stand alone’. The data
suggest that the representation of specialized orientation is an opportunity for
learning, in the sense of identifying and treating cases of mental disorders. The
expectation is the continuance of this strategy.
KEYWORDS: Primary health care; Mental health; Care network health
continuous.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010
211
212
Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M.
INTRODUção
•
Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família
Tendo em conta, ainda, a ambiência da Reforma
Psiquiátrica, bem como a busca pelo aperfeiçoamento
dos dispositivos e das novas ferramentas para o cam-
A atual política de saúde mental no Brasil, a qual
po de saúde mental, é importante mencionar o VII
deu origem à reforma psiquiátrica, propõe a progressiva
Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, promovido
substituição dos hospitais psiquiátricos por uma rede
pela Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde
assistencial em saúde mental, constituída pelo Centro de
Pública (Abrasco), que, em julho de 2003, figurou
Atenção Psicossocial (Caps), ambulatórios, residências
como palco em que, com a participação da coordena-
terapêuticas, centros de convivência e cultura, serviços
ção geral de saúde mental, foram realizadas oficinas
de saúde mental, emergências psiquiátricas em hospitais
das quais resultaram subsídios para a organização das
gerais e atendimento na rede básica de saúde. Essa rede
ações de saúde na atenção básica, dando início ao apoio
de serviços está integrada ao Sistema Único de Saúde
matricial (Brasil, 2003). O papel da Equipe de Saúde
(SUS), sendo sua essência de caráter público e municipal
da Família torna-se fundamental nesse aspecto, quando
(Brasil, 2009).
o matriciamento surge para ‘desafogar’ os Caps, na
Os profissionais cuidadores da saúde mental não
medida em que pensa uma aproximação e modos de
podem se restringir a único dispositivo, devendo, sim,
horizontalizar as relações interpessoais com a atenção
constantemente ampliar seus conhecimentos e instru-
básica, melhorando a qualidade da assistência.
mentos para proporcionar aos usuários do serviço um
O Programa Saúde da Família (PSF), atualmente,
atendimento com resolubilidade. Assim, a criação de redes
conhecido também como Estratégia de Saúde da Família
assistenciais não só auxilia no tratamento, como também
(ESF), surgiu em 1994. Ele constitui o modelo de orga-
conecta toda a equipe de saúde a favor do bem-estar do
nização do serviço de atenção primária característico do
indivíduo, solidificando laços e facilitando a comunicação
SUS, composto por equipes multiprofissionais. A ESF
entre os demais níveis de saúde. As redes assistenciais
tem como foco de atenção a coletividade, objetivando a
necessitam permanecer em constante expansão, pois são
promoção, prevenção, cura e reabilitação do indivíduo
elas que possibilitam os inúmeros artifícios e progressos
(Ducan; Schmidt; Giugliani, 2004).
na saúde mental. Além disso, também são consideradas
O apoio matricial, de seu lado, configura
instrumentos essenciais para ampliar as oportunidades de
ferramenta sugestiva para agenciar a indispensável
tratamento, que não é apenas realizado em consultórios,
instrumentalização das equipes na clínica ampliada,
expandindo-se também ao convívio social.
contrapondo-se ao modelo médico dominante. Essa
O desenvolvimento dos novos serviços substitu-
ferramenta visa tanto expandir a clínica das equipes
tivos em saúde mental marca um progresso na política
de saúde, quanto reorientar a demanda para a saúde
do SUS. O Caps, entretanto, constitui-se porta de en-
mental. Fica, assim, estabelecida uma relação entre a
trada da nova rede assistencial destinada às pessoas que
ESF e o Caps.
vivenciam intenso sofrimento psíquico, não podendo
Observa-se empiricamente que a superlotação do
prevalecer a ideia de que esse é o único meio de trata-
Caps ocorre, em sua maioria, por casos considerados
mento, sob o risco de se incorrer no mesmo equívoco do
leves, podendo estes ser direcionados para as equipes
paradigma anterior à reforma psiquiátrica (Rodrigues;
de Saúde da Família. Avalia-se o apoio matricial como
Campos; Furtado, 2006).
procedimento que pode ampliar a capacidade resolutiva
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010
Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M.
•
Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família
das equipes de referência para o atendimento dos casos
centralizada em seis secretarias executivas regionais
leves, implicando uma triagem da demanda para os Caps
(SER I, II, III, IV, V e VI) – que dividem a Cidade
(Figueiredo; Campos, 2009).
em seis regiões que têm papel executivo das políticas
Uma vez que o Ministério da Saúde assina investi-
setoriais.
mentos para a implantação do matriciamento, estando
A informação das equipes matriciadas veio dos
as equipes de saúde em plena fase de capacitação pelos
Caps, tendo sido agendados encontros com os profissio-
Caps, questiona-se se essa proposta tem boa aceitação
nais em seus locais de trabalho, e, mediante autorização
por parte dos que compõem a Estratégia de Saúde da
da Secretaria Municipal de Saúde, obteve-se o consenti-
Família (ESF), ocupando-se este artigo em evidenciar
mento das ‘regionais’ e o conhecimento dos centros de
suas representações.
saúde de origem de cada um.
Este estudo revela-se importante por favorecer a
Dentro da visão do método qualitativo, torna-se
formulação de conhecimento acerca das dificuldades e
imperativa a possibilidade de se captar a forma como as
experiências positivas enfrentadas pelas equipes da ESF
pessoas realmente se sentem em relação a qualquer tipo
no matriciamento, de modo a beneficiar outras equipes
de situação. Desse modo, lançou-se mão do seguinte
com o relato aqui apresentado, bem como os demais
período gerador de discurso: ‘Relate quais as suas im-
profissionais do campo da saúde mental. Para a comu-
pressões acerca do matriciamento pelo Caps’.
nidade científica, espera-se contribuir com a divulgação
A organização dos dados seguiu a técnica do
da experiência de implantação do matriciamento pelo
Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), cuja origem está
Caps de Fortaleza, Ceará.
nas ciências sociais, mas é passível de ser introduzida
em outras disciplinas e campos, sendo apresentada aos
pesquisadores como opção para que se possa lidar, em
METODOLOGIA
uma escala coletiva ou social, com os pensamentos que
são obrigatoriamente compostos de material discursivo
(Lefèvre; Lefèvre, 2005).
Este estudo descritivo, de natureza qualitativa é
A despeito dos passos da técnica, no primeiro
marcado pela aplicação de entrevistas com 11 profissio-
momento, as entrevistas foram gravadas e transcritas.
nais – 6 enfermeiros e 5 médicos – das equipes da Estra-
O conjunto dos depoimentos compôs as “Expressões-
tégia de Saúde da Família, matriciadas pelos Caps.
chave’ (ECH) no ‘Instrumento de Análise de Discurso’
As entrevistas foram aplicadas durante os meses
(IAD1). O passo seguinte foi identificar as Ideias Cen-
de outubro e novembro de 2009, com o objetivo de
trais (ICs), definidas como uma expressão linguística
eleger pelo menos uma equipe matriciada por Secre-
que revela, ou mesmo descreve, de forma sintética e o
taria Regional, das quais foram escolhidos um mé-
mais fidedignamente possível, o sentido de cada um
dico e um enfermeiro por serem informantes-chave,
dos discursos analisados. Etiquetadas e transferidas
na medida em que se responsabilizavam tanto pela
para o IAD2, as ICs foram trabalhadas no sentido de
abordagem inicial, quanto pela continuidade dada à
agrupá-las em ICs-sínteses, ou seja, reduzindo o mais
assistência em parceria com os demais componentes
possível o escopo de análises. Na última etapa, deu-se
da equipe. É necessário informar que a cidade de
origem ao Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), quando
Fortaleza, Ceará, tem sua força administrativa des-
as ICs coincidentes foram editadas, de um modo que
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Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M.
permitiu resguardar uma natureza discursiva, e ainda,
•
Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família
RESULTADOS E DISCUSSÃO
sua autonomia como objeto empírico.
Considerando o estabelecido na resolução n.º
196/1996, do Conselho Nacional de Saúde, do Mi-
Os resultados se reportam ao quadro-síntese e,
nistério da Saúde, foram obedecidos critérios éticos
portanto, às ICs, em função das quais se disponibilizam
de maneira que a fase de coleta de dados tomou corpo
os DSCs. Vale ressaltar que os grupamentos A (‘O curso
somente após serem prestados esclarecimentos acerca do
de matriciamento é uma estratégia muito válida para a
propósito da pesquisa e da conduta ética a ser adotada
saúde mental’), e B (‘Um pouco deficitário e a capacita-
pelo pesquisador, inclusive para proteger a privacidade e
ção não deve ser uma só’), encontram-se representados
assegurar total anonimato dos informantes. Foi realizada
pelos DSCA e DSCB.
a investigação após a assinatura do termo de consenti-
O DSC (Figura 1) trata da representação social
mento livre e esclarecido. O projeto desta pesquisa foi
de um grupo de médicos e enfermeiros, o qual totaliza
submetido à avaliação pelo Comitê de Ética em Pesqui-
11 sujeitos com procedência das Secretarias Executivas
sas com Seres Humanos da Universidade de Fortaleza,
Regionais I a VI e que expõem ideias positivas acerca do
tendo sido autorizado sob parecer n.º 267/2009.
matriciamento promovido pelo Caps a ESF.
Figura 1 – O Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) correspondente à Ideia Central (IC) A
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010
Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M.
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Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família
No DSC, constata-se a representação do matricia-
exclui a lógica do encaminhamento, pois objetiva au-
mento entre profissionais da saúde mental, consistindo na
mentar a capacidade resolutiva de problemas de saúde
troca de saberes entre si de variados serviços de atenção,
(Brasil, 2003).
tendo como objetivo a aproximação entre as ESF e os
Outra unidade de sentido presente no discurso
Caps. Esse discurso concorda com a literatura (Fortale-
diz respeito à necessidade de sensibilização, bem como
za, s.d), ratificando, ainda, o matriciamento como uma
à criação de vínculos entre os profissionais de saúde e
estratégia favorecedora do estabelecimento de apoio entre
usuários com suas famílias; e dos profissionais de saúde
dois dispositivos estratégicos da rede de assistência.
entre si, sejam eles da ESF ou do Caps. Sobre o tema, a
Destaque-se o fato de que essa parceria estabelecida
literatura explorada expressa que a ESF busca entender
entre os serviços supracitados tem um grande papel a ser
a família em seu espaço social. As ferramentas utilizadas
desempenhado no contexto do paciente que sofre com o
para a promoção da saúde estão inseridas, com ideias de
transtorno mental. Acerca do tema, autores defendem o
obtenção de ambientes mais saudáveis, no espaço familiar,
argumento de que a relação entre o Caps e a ESF deve
o qual envolve, além da tecnologia médica, o reconhe-
ser formalizada e fortalecida a fim de garantir melhor
cimento das potencialidades terapêuticas presentes nas
assistência ao usuário do serviço de saúde mental. Os
relações familiares, bem como em outras redes sociais na
profissionais integrantes da ESF devem entender todo
comunidade (Ducan; Schmidt; Giugliani, 2004).
o contexto, com vistas a respeitar e valorizar as caracte-
Compreende-se que cuidar da saúde mental re-
rísticas particulares de cada família, contribuindo assim
quer não apenas um método centralizador e único – o
para superação de conflitos danosos à saúde de seus
que reúne valores à estratégia de matriciamento – mas
componentes (Ducan; Schmidt; Giugliani, 2004).
também um fator multiplicador que possa assistir, de
O discurso também se reporta à estratégia do
forma holística, o usuário e a família. É importante
matriciamento como forma de educação permanente
salientar que os usuários dos serviços de saúde mental
em Saúde Mental para ESF. O apoio matricial busca
não devem se limitar a uma única forma de tratamento,
ofertar tanto suporte técnico-pedagógico quanto apoio
pois eles não são elementos estáticos, contrapondo-se,
assistencial às equipes de referência, além, evidentemen-
dessa maneira, ao antigo sistema, anterior à reforma
te, de investir na conquista e ampliação de espaços para
psiquiátrica. O sistema de referência e contrarreferência,
comunicar e compartilhar ativamente conhecimentos
estabelecido entre os profissionais que compõem o Caps
entre profissionais (Campos; Domitti, 2007).
e a ESF, possibilita a corresponsabilização, definindo
O apoio matricial constitui arranjo organizacional
quem deve desempenhar as atividades e a criação de
que visa outorgar suporte técnico em áreas específicas
vínculos entre usuários-profissionais e profissionais do
às equipes responsáveis pelo desenvolvimento de ações
Caps-profissionais da atenção básica. A referência, por-
básicas de saúde para a população. Nesse arranjo, a
tanto, deixa de ser a ‘instituição Centro de Saúde’ ou a
equipe por ele responsável compartilha alguns casos
‘instituição Caps’ e passa a ser o profissional e a equipe
com a equipe de saúde local. O compartilhamento se
de referência (Zambenedetti, 2009).
produz em forma de corresponsabilização pelos casos,
Impõe-se destacar o que é preconizado pela Se-
a qual pode se efetivar em discussões e intervenções
cretaria Municipal de Saúde em termos de política de
junto às famílias e comunidades ou em atendimentos
saúde mental do Município de Fortaleza. Para garantir
conjuntos. A responsabilização compartilhada dos casos
efetivamente o acesso a uma vida saudável, é necessário
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010
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Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M.
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Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família
ir além da oferta de serviços voltados para o tratamento
mais rápido aos serviços do nível primário. De acordo com
de enfermidades com base no diagnóstico seguido dos
o Relatório Mundial de Saúde, ano-base 2001, é neces-
cuidados médicos. A ideia de proteção pressupõe a ar-
sário reconhecer que muitas pessoas necessitadas já estão
ticulação de toda uma rede de ações em áreas diversas
à procura dessa assistência. Esse fato não só proporciona
das políticas sociais que garantam proteção às pessoas e
melhores cuidados, como também reduz o desperdício
a grupos mais vulneráveis (Fortaleza, s.d.).
resultante de exames supérfluos e de tratamentos não
A Associação Brasileira de Psiquiatria, em suas
específicos (Relatório Mundial de Saúde, 2001).
Diretrizes para o Modelo de Assistência Integral em
Outro tema aventado no DSC diz respeito à frag-
Saúde Mental no Brasil, defende a noção de que o mo-
mentação da assistência em serviços de saúde. Autores
delo de assistência integral em saúde mental deve ter
postulam a noção de que uma forma de repensar essa
como princípio a integração entre os diversos serviços,
assistência encontra apoio na clínica ampliada, que é
tornando-se, desse modo, um sistema de referência e
uma estratégia com foco não só no adoecimento do
contrarreferência, no qual as unidades devem funcio-
sujeito, mas também na produção de vida (Rodri-
nar de forma harmônica complementando-se e não se
gues; Campos; Furtado, 2006). Um ponto a registrar
opondo a nenhum outro serviço de saúde. Os diversos
é a falta de grandes investimentos na capacitação dos
serviços contam com equipes multiprofissionais e eles
profissionais a fim de proporcionar uma expansão dessa
devem atuar de modo integrado, cada um exercendo o
modalidade de atendimento.
papel inerente a sua profissão (Associação Brasileira
de Psiquiatria, 2006).
Grande parte dos pacientes com sofrimento psíquico leve superlota os serviços de saúde especializados,
O DSC B (Figura 2) trata da representação social de
um grupo de médicos e enfermeiros o qual totaliza o número de sete sujeitos das regionais de I a VI e expõe críticas
acerca do matriciamento promovido pelo Caps à ESF.
dificultando assim o acesso dos usuários que apresentam
A saúde mental, entretanto, está inserida na aten-
casos de moderados a graves. O matriciamento aparece
ção básica. Assim, para que suas ações sejam desenvol-
como fator primordial nesse redirecionamento. Desse
vidas, é necessária uma capacitação dos profissionais,
modo, os Caps dedicam-se com afinco à desinstitucio-
que encontram no matriciamento o suporte essencial, o
nalização de pacientes cronicamente asilados, bem como
qual possibilita uma interlocução dos níveis de atenção.
ao tratamento de casos graves e as crises (Brasil, 2003).
Muitos profissionais da ESF, porém, não se consideram
Na saúde mental, o apoio matricial surge também, pois,
preparados para atuar nesses serviços especializados,
como forma de amenizar o fluxo de pessoas que lotam
motivo que pode interferir na aceitação do apoio ma-
as unidades especializadas, permitindo uma melhoria da
tricial na Unidade Básica de Atenção à Saúde da Família
qualidade no atendimento: junto com isso, surgem pro-
(Ubasf ). A falta de conhecimento dos profissionais, a
postas que visam redirecionar a demanda de casos leves
formação generalista ou a especialidade em outras áreas
para as unidades de menor complexidade que prestam
parecem ser para eles a maior dificuldade; entretanto,
apoio semelhante às unidades especializadas.
esta não se expressa como entrave definitivo, desde que
De seu lado, o controle e o tratamento de pertur-
haja suporte adequado.
bações mentais, no contexto dos cuidados primários,
Nota-se a necessidade por parte dos profissionais
compõem um passo fundamental que está possibilitando
de que o apoio abranja a troca de conhecimentos, orien-
a um maior número de pessoas terem acesso mais fácil e
tações entre equipe e apoiador e diálogo sobre alterações
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 211-218, abr./jun. 2010
Lopes, A.F.; Brito, R.A.A.; Landim,F.L.P.; Nunes, M.O.; Collares, P.M.
na avaliação dos casos. É relevante a continuidade desse
•
Matriciamento: a representação social da Equipe de Saúde da Família
CONSIDERAÇÕES FINAIS
suporte para que esses profissionais se sintam realmente
capacitados e, assim, possam desenvolver com segurança
o que propõe o matriciamento.
Por se tratar de uma estratégia nova no campo
Na saúde mental já é prioridade a incorporação de
da saúde mental, observa-se expectativa por parte dos
ações, como capacitação, supervisão e financiamento das
profissionais entrevistados em relação ao matriciamento.
estratégias, de sorte que se torna inviável o serviço na
Tal expressão se revela no fato de saber como detectar
atenção básica sem as referidas ações. Portanto, o Mi-
os possíveis casos de transtornos mentais e de como
nistério da Saúde propôs a estratégia do apoio matricial
tratá-los, já que a proposta tem por objetivo organizar
para facilitar o direcionamento da demanda de usuários.
a demanda advinda do Caps. Uma vez que os profissio-
Conclui-se, de tal maneira, que a reforma psiquiátrica
nais, em sua maioria, são generalistas ou não possuem
não poderia avançar se a atenção básica não fosse inse-
afinidade com a área da saúde mental, necessitam de um
rida. É necessário, então, estender o cuidado em saúde
acompanhamento lado a lado, possibilitando assim uma
mental, não o centralizando apenas em método único
boa capacitação e o vínculo entre Caps e ESF. Embora
(Dimenstein et al., 2009).
se achem motivados a aderir a essa proposta, os profis-
Figura 2 – Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) correspondente à Ideia Central (IC) B
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sionais da saúde esperam que a educação matricial seja
continuada.
O DSC possibilitou a percepção de uma singularidade de pensamentos, permitindo uma análise de dados
positivos e críticos acerca da proposta do matriciamento.
Entende-se a importância desse tipo de debate como
mecanismo legítimo que ‘empodera’ usuários e profissionais envolvidos a implementar a reforma psiquiátrica
de forma justa e compartilhada.
R E F E R Ê N C I A S
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Recebido: Fevereiro/2010
Aceito: Março/2010
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de
famílias em situação de risco e vulnerabilidade
In the edge of life, getting around the problems: strategies of well-being of families at risk
and vulnerability situation
Maria Jacqueline Abrantes Gadelha 1
Raimunda Medeiros Germano 2
Mestre em Enfermagem pela
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN); enfermeira da Unidade
de Saúde da Família do Panatis em
Natal (RN).
[email protected]
1
Doutora em Educação; professora
do Programa de Pós-Graduação
em Enfermagem da UFRN.
[email protected]
2
RESUMO Este estudo teve por objetivo analisar as estratégias utilizadas pelas
famílias em situação de risco e vulnerabilidade, adscritas na Estratégia Saúde
da Família (ESF), no enfrentamento de seus problemas. Trata-se de um estudo
descritivo, de natureza qualitativa, tendo a entrevista como instrumento de
abordagem empírica, para a análise de conteúdo. Os depoimentos revelam a
existência de um misto de improvisações e criatividade como estratégias para a
superação das privações do cotidiano. A religiosidade e a dádiva são utilizadas
como recursos para obtenção de reconhecimento pessoal e apoio nas adversidades.
A ESF, para essas famílias, representou o locus de atenção e cuidado.
PALAVRAS-CHAVE: Família; Cuidado; Programa Saúde da Família.
ABSTRACT This study aimed to analyze the strategies used by families at risk
and vulnerability situation, ascribed to the Family Health Program (FHP), to face
their problems. This is a descriptive, qualitative study, with the interview as a tool
for empirical approach to content analysis. The statements reveal the existence of a
mixture of improvisation and creativity as strategies for overcoming the hardships
of daily life. The religion and the gift are used as resources to obtain personal
recognition and support in adversity. The FHP, for these families, represented the
locus of attention and care.
Keywords: Family; Care; Family Health Program.
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Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade
I N T R O D U ç ão
adscritas na ESF, a partir da identificação e da análise das
estratégias utilizadas, por essas famílias, para a superação
dos problemas enfrentados no convívio familiar.
A Estratégia Saúde da Família (ESF), criada em
1994, tem como fundamento básico a conquista da
saúde como direito legítimo de cidadania e desponta
METODOLOGIA
como uma alternativa ao modelo curativo individualista. Por meio da convivência com a comunidade onde
atuam, os profissionais devem desencadear mudanças
Trata-se de estudo analítico, de natureza qualita-
na sua área de abrangência. Segundo o Guia Prático do
tiva, que teve a entrevista como principal instrumento
Programa de Saúde da Família do Ministério da Saúde
de abordagem empírica.
(2001a), são atribuições fundamentais do Programa:
Nessa perspectiva, trabalhou-se com as famílias
I – planejamento de ações; II – saúde, promoção e
em situação de risco e vulnerabilidade, considerando
vigilância; III – trabalho interdisciplinar em equipe; e
as circunstâncias contextuais que as envolvem, ou
IV – abordagem integral da família.
seja, famílias carentes com condições socioeconômicas
No cotidiano da ESF, as visitas domiciliares fre-
básicas. Associou-se ao conceito de risco o de vulnera-
quentemente desencadeiam sensações e inquietações
bilidade, compreendendo a necessidade de um diálogo
diversas. Na maioria das vezes, a receptividade das fa-
entre saúde e relações sociais, um entrelaçamento da
mílias e a preocupação em nos acomodar com conforto
epidemiologia, ciências humanas e ciências biomédicas,
divergem intensamente da forma fria e burocrática com
no sentido de superar o conceito de risco empregado na
a qual os usuários são recebidos na Unidade de Saúde.
epidemiologia clássica (Ayres, 2001).
Nos seus espaços de convivência, a comunicação flui
Para isso, procurou-se destacar os principais pro-
com mais facilidade ao mesmo tempo em que nos é dada
blemas existentes no convívio dessas famílias, identificar
a oportunidade de conhecer as relações intrafamiliares,
as estratégias utilizadas no enfrentamento desses proble-
as formas de organização e os modos de vida, tornando
mas e compreender o que representa, para essas famílias,
possível a construção de vínculos.
a ESF diante dos problemas da vida cotidiana.
Um olhar atento pode identificar filhos mais velhos
Buscaram-se ainda caminhos que conduzissem aos
que assumem o papel de pai, crianças que aprendem a
espaços mais profundos das relações, conforme Minayo
cuidar de si mesmas precocemente, meninas que tomam
(2006) descreve a pesquisa qualitativa, cientes de que se
conta da casa e dos irmãos menores exercendo desde
entraria no universo de significados, valores e atitudes.
cedo atribuições de mãe e mulheres que são provedoras
O estudo de campo ocorreu na área de abrangência
de toda a família. Como afirma Certeau (1996) acerca
da Unidade de Saúde da Família do Panatis, região Norte
do cotidiano, há uma criatividade oculta e uma maneira
do município de Natal (RN). A referida unidade fun-
própria de caminhar; uma habilidade que se desconhece;
ciona com 4 equipes de Saúde da Família responsáveis
espaços que rompem regras e ultrapassam fronteiras
por 2.910 famílias.
criando estratégias de bem viver.
A seleção das famílias foi realizada com base na dis-
Este artigo é uma tentativa de aproximação do coti-
cussão dos dados contidos nas fichas de cadastramento
diano das famílias em situação de risco e vulnerabilidade
do Sistema de Informação de Atenção Básica (Siab) das
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Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade
famílias adscritas à ESF junto às enfermeiras e agentes
comunitários de saúde da unidade.
Recorremos aos estudos de Heller (1989) sobre o
cotidiano, aos de Certeau (1996) e Giard (2003) acerca
Foram selecionadas dez famílias em situação de
das estratégias/táticas, mas, igualmente, a outros autores
risco, ou seja, cujas circunstâncias contextuais são carac-
que abordam a resiliência (Cyrulnik, 2006), o cuidado
terizadas por condições socioeconômicas básicas, tendo
com o outro (Mattos, 2001) e os sonhos (Bachelard,
em vista que tal estado compromete a saúde e o desen-
2001), comumente presentes na vida das famílias, apesar
volvimento dos seus membros. Segundo o Ministério
das adversidades.
da Saúde (2001b), essa identificação se dá em relação ao
Com o propósito de preservar e garantir o ano-
trabalho, à renda familiar, à alimentação, à moradia, ao
nimato das participantes deste estudo, os nomes foram
saneamento básico, ao acesso à educação, ao transporte e
substituídos por nomes de poetisas. Tal escolha se deveu
aos serviços de saúde. O conceito de risco foi relacionado
ao sentido poético que permeou muitos dos discursos,
ao de vulnerabilidade também por se considerar que as
em diversos momentos.
privações das necessidades básicas afetam diretamente as
capacidades de enfrentamento e de iniciativas próprias.
As entrevistas foram agendadas após emissão de
parecer favorável à realização do estudo, fornecido pelo
Para atender ao propósito deste estudo, decidiu-se
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal
entrevistar as mulheres, donas de casa. Responsável pela
do Rio Grande do Norte (UFRN) e de acordo com a
sobrevivência no dia-a-dia, em geral, é a dona de casa
orientação da resolução 196/96 do Conselho Nacional
quem convive mais intensamente com os problemas
de Saúde do Ministério da Saúde.
familiares. É ela quem coordena as iniciativas para controlar os recursos existentes e constrói estratégias para
garantir a sobrevivência de todos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foi necessário, para tal, se despir da antiga concepção de ‘uso’ do tempo voltada a procedimentos e
intervenções nas visitas domiciliares de rotina da ESF.
Problemas no convívio familiar
O tempo da entrevista consolidava-se como o tempo
Os problemas identificados pelas entrevistadas
necessário, confrontando-se com o tempo da Unidade
mantêm uma profunda inter-relação e produzem forte
de Saúde e dos fluxos pré-estabelecidos.
impacto na vida dessas mulheres que se veem impossi-
As narrativas foram registradas por um gravador e,
bilitadas de responder às suas necessidades básicas e às
para que não se perdessem as expressões faciais, os gestos,
de suas famílias: desemprego ou baixa renda, moradia
as hesitações e os sentidos das pausas, foram transcritas
precária, sofrimento psíquico, violência intrafamiliar e
tão logo ocorreram.
alcoolismo e outras drogas.
Para a análise, utilizou-se a análise temática. Foram
A gravidade do quadro de pobreza é descrito nas
construídos dois grandes mapas que identificaram os
falas de Adélia Prado, que, morando numa casa de três
problemas existentes no convívio familiar e as estratégias
cômodos com mais dez pessoas – entre elas, seis crianças
utilizadas no enfrentamento desses problemas com as
–, enfrenta, além da falta de recursos para atender às
respectivas falas relacionadas a essas questões do estudo,
necessidades básicas, o envolvimento do filho adoles-
procurando representar os diferentes pontos de vista e
cente com as drogas, a violência intrafamiliar e a própria
os aspectos convergentes dos discursos.
dependência do diazepam:
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Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade
Aqui são 11 pessoas e só 2 pra dar conta: meu
essência da substância social [...]. As grandes
marido que é marceneiro e minha filha que é
ações não cotidianas que são contadas nos livros
doméstica. O ganho dele não é seguro porque
de história partem da vida cotidiana e a ela re-
ele não tem carteira assinada e ainda ajuda a 4
tornam. Toda grande façanha histórica concreta
filhos de outro casamento. [...] Quando eu penso
torna-se particular e histórica precisamente
muito numa coisa, vai me dando um aperto,
graças a seu posterior efeito na cotidianidade.
um arrocho, aí eu tomo diazepam. Eu tomo faz
14 anos, mas é só como eu consigo dormir.
Entrar nas casas dessas mulheres proporcionou
oportunidade para mobilizar e redirecionar diferentes
A violência silenciosa do Estado, da qual nos fala
olhares que contribuíram para uma aproximação da
Betto (2006) é legitimada pela ‘fatalidade’ das atuais
compreensão do cotidiano por elas vivido. A disposição
estruturas sociais e pelos paradigmas da economia de
dos objetos, as imagens dos santos dependuradas nas
mercado que reduzem o desenvolvimento a estatísticas
paredes, as fotografias de família, a panela sobre o fogão
de crescimento do Produto Interno Bruto. Assim, mi-
exalando o cheiro de comida, as roupas estendidas no
lhões de seres humanos são privados de acesso à renda,
varal e as vozes vindas da rua, aos poucos, desencadea-
ao trabalho, aos bens essenciais, à sobrevivência. Uma
ram uma intimidade que, dissipando os estranhamentos
parcela desses excluídos é afetada por distúrbios mentais,
iniciais, transformava-os em encontros.
pelo alcoolismo e pelas drogas.
Para essas famílias, quase nunca é possível fazer
previsões. Cada dia é marcado por incertezas, privações
e pela ausência de um mínimo de recursos que assegure
Estratégias: enfrentando os problemas
a satisfação de suas necessidades humanas básicas.
As estratégias/táticas, descritas a seguir, revelam
As improvisações e a criatividade permitem a essas
as alternativas encontradas pelas entrevistadas no en-
famílias continuarem sobrevivendo. Artes do dia-a-dia
frentamento das adversidades vividas no cotidiano;
na cozinha, na hora de dormir, na divisão das roupas
inventividades que lhes garantem sobreviver e seguir em
e dos alimentos: maneiras de fazer que delineiam a
frente vislumbrando possibilidades que lhes permitam
sobrevivência com arte.
sair da margem da vida. Viver e sobreviver, a ESF: em
Na perspectiva de Certeau (1996), muitas dessas
busca de uma razão sensível, constituem a essência desta
práticas cotidianas se transformam em táticas quando
investigação.
não são subjugadas à estrutura de que provêm, construindo, assim, possibilidades de ações diversas.
A falta de recursos mínimos e a vida marcada pela
Viver e sobreviver
violência e pelo sofrimento aumentam as incertezas. Não
A vida cotidiana é a vida do ser humano em sua in-
se pensa no futuro; todas as forças estão direcionadas
teireza; suas habilidades, seus sentimentos, suas paixões e
para garantir a subsistência no dia de hoje. É o que
suas capacidades. Na expressão de Heller (1989, p. 20):
transmite Florbela Espanca no seu relato:
a vida cotidiana não está fora da história, mas
A gente resolve um dia de cada vez, sem pensar
no centro do acontecer histórico: é a verdadeira
no amanhã. Amanhã é outro dia.
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GADELHA, M.J.A.; GERMANO, R.M.
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Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade
As mulheres que participaram deste estudo percorrem
considerar também os desejos e símbolos porque, além
um interminável trajeto voltado para o trabalho doméstico e
de sobreviverem, as pessoas precisam se sentir vivas
para o cuidado com a família. Atentos aos corpos dos outros,
(Assman, Mo Sung, 2003).
seus gestos cotidianos escondem os próprios desejos nas
Uma das entrevistadas, Palmira Wanderley, revela o
trilhas apontadas pelas necessidades básicas. São gestos que
seu cotidiano conturbado: além das carências materiais,
não encontram reconhecimento, pois estão imersos na in-
do alcoolismo e das agressões do marido, o sofrimento
visibilidade dada pela sociedade às ocupações cotidianas.
psíquico da filha. Num dado momento da entrevista,
Auta de Sousa mora numa casa de quatro cômodos
com os dois filhos. Ela descreve como consegue manter a
seu relato expressa, ao invés de amargura e desespero,
uma força surpreendente:
família na situação de desemprego em que se encontra:
Tem coisas que acontecem na vida da gente que
Eu fiz assim: peguei minha casa e aluguei um
servem de lição; pra gente saber que é forte.
pedaço. Aí eu consegui R$ 100,00. Botei meu
filho no Bolsa Família que me dá garantido R$
Palmira atribui um sentido ao seu sofrimento e o
80,00 e o pai da mais nova botei na Justiça: aí
utiliza como forma de superação. Essa construção de
recebo mais R$ 100,00.
sentido é uma atividade íntima que permite desenvolver
a proteção da identidade. Cyrulnik (2006, p. 29) diz que
Uma casa é dividida entre duas e até por quatro
“o sentido nasce do recuo do tempo, que permite olhar
famílias. O tanque destinado à lavagem das roupas e o
para si e para o passado”, lembrando que, depois de um
banheiro são de uso coletivo. Onde aparentemente mora
trauma, é preciso um tempo para recuperar a esperança.
uma família, quando se entrar, percebe-se que naquele
O autor, em seu livro, Falar de amor à beira do abismo,
espaço convivem duas ou mais.
faz reflexões importantes acerca da resiliência.
O Programa Bolsa Família foi citado neste estudo por
No âmbito da saúde coletiva, a resiliência apresenta-se
oito das dez mulheres entrevistadas. A importância desse
como um tema novo e vem sendo utilizada como a capa-
recurso para essas famílias está na garantia de recebê-lo a
cidade do ser humano de responder às demandas da vida
cada mês. Em meio a tantas incertezas, o fato de contar
cotidiana de forma positiva, apesar das adversidades que
com uma determinada quantia para o orçamento familiar,
enfrenta ao longo do seu ciclo vital de desenvolvimento,
ainda que insuficiente para as despesas, constitui-se em uma
resultando na combinação entre os atributos do indivíduo
certeza que proporciona um mínimo de segurança.
e de seu ambiente familiar, social e cultural (Noronha;
A exclusão ou a inserção desfavorável no mercado
Cardoso; Moraes; Centa 2006). Nessa capacidade de
de trabalho e a consequente exclusão do mercado con-
superar as adversidades se inserem as habilidades da pessoa
sumidor, numa cultura de consumo como a brasileira,
para lidar com as mudanças, a autoconfiança e o repertório
provocam sérias dificuldades na vida dos indivíduos.
de estratégias de que dispõe para enfrentar os problemas.
Estar excluído do mercado consumidor não significa
apenas ter dificuldades em satisfazer as necessidades
básicas, mas também dificuldades para construir uma
A ESF: em busca de uma razão sensível
identidade e se relacionar com outros grupos sociais. É
A busca de cuidado tem sido considerada uma
importante lembrar que falar de necessidades básicas é
das principais demandas por atenção à saúde pela so-
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ciedade civil brasileira, conforme estudos de Pinheiro
Hoje eu vou no posto só pra conversar. Lá todo
e Guizardi (2006) e Luz (2005). Os autores atribuem
mundo me conhece. Tem horas que se a gente
a essa busca o vazio de sentidos culturais da sociedade
não conversar com alguém a gente adoece.
capitalista e apontam para a relevância de reflexões
acerca das funções culturais que o universo do cui-
Nessa fala, ela revela que seu corpo adoece quando
dado e das práticas terapêuticas assume no momento
lhe falta o convívio – o compartilhar das suas vivências.
atual – antes eram partilhadas por outras instâncias
Seu depoimento remete à percepção de que relações
da sociedade.
pautadas numa dimensão ampliada de saúde, que
Nesse sentido, Luz (2005) enfatiza que, no
considerem as reais necessidades do usuário que busca
mundo capitalista contemporâneo, a demanda pela
o serviço, influenciam no surgimento de novos modos
saúde é uma exigência de um universo de significados
de compreensão do processo saúde/doença.
e sentidos que não encontram lugar na racionalidade
econômica atual.
Nesse sentido, é preciso considerar a “materialidade
do encontro” (p. 93) da qual nos fala Teixeira (2003):
A noção de cuidado não se refere a um nível de
perceber que a conversa decorre do encontro entre
atenção do sistema de saúde ou a um procedimento téc-
trabalhadores e usuários sendo a essência do trabalho
nico simplificado, mas a uma ação integral que envolve
em saúde.
o respeito, o acolhimento, a atenção ao ser humano em
A construção de vínculos está diretamente ligada à
seu sofrimento que é, muitas vezes, fruto de sua fragili-
ideia de relação terapêutica implicando responsabiliza-
dade social. A ação integral envolve, assim, as relações
ção. A ESF favorece essa construção a partir do princípio
entre as pessoas; os efeitos e as repercussões de interações
de adscrição das famílias, com base na territorialização.
positivas entre usuários, profissionais e instituições.
É fundamental o conhecimento mútuo e a confiança
As Unidades de Saúde da Família, com clientela
entre profissional e usuário para maior adesão à tera-
definida por delimitação geográfica e intensa convivência
pêutica e efetividade das intervenções propostas. Uma
dos profissionais com a vida da localidade enfatizada
das entrevistadas, Zila Mamede, vai à Unidade de Saúde
pelo trabalho de ligação feito pelos agentes comunitá-
diariamente. Ela relata:
rios de saúde desafiam os profissionais a modificarem a
dinâmica das práticas e direcioná-las ao pensar e ao fazer
Lá no posto eu converso com todo mundo. As
cotidiano da população (Vasconcelos, 2006).
vizinhas soltam até piada porque eu vou lá todo
Neste estudo, as entrevistadas revelam que encon-
dia, mas eu vou assim mesmo. Também converso
tram na Unidade de Saúde um espaço de escuta das suas
muito com as meninas que tiram pressão. Lá eu
angústias e inquietações.
me sinto bem demais.
A escuta relaciona-se intrinsecamente à produção
de sentidos. Sentimentos aprisionados se libertam em
Há cinco anos, quando a equipe chegou à Unidade
busca de uma reelaboração dos fatos, possibilitando a
de Saúde da Família do Panatis, não era possível com-
emergência de novos sentidos.
preender porque Zila ia à Unidade de Saúde todos os
Cora Coralina expressa, em sua fala, que o fato de
dias. Na ocasião da visita domiciliar, percebe-se o quanto
não ter com quem conversar interfere diretamente no
era difícil para ela, aos 78 anos, dividir uma casa de 3
processo de adoecimento:
cômodos com 14 pessoas, entre elas, 6 crianças e 2 ado-
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Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver de famílias em situação de risco e vulnerabilidade
lescentes. Atualmente, quando Zila não vai à unidade, sua
O PSF é a garantia que tem gente olhando
ausência é notada. Ela traz informações preciosas sobre a
pra gente.
saúde das pessoas da comunidade, comunicando quem
adoeceu e quem precisa de uma visita da equipe.
Entrar nas casas das pessoas significa penetrar no
valioso universo do cotidiano; a disposição dos móveis,
Imersas nas incertezas, expressam a gratidão pelo
pouco de atenção que lhes é dispensado e nela se sustenta
para ressignificar suas vidas.
dos objetos pessoais, a forma como se organizam para
dormir e para se alimentar, as relações estabelecidas com
os demais membros da família vão se revelando a partir da
CONSIDERAÇÕES FINAIS
disponibilidade do olhar e dos gestos para com o outro.
As retribuições pela atenção dispensada são as
mais diversas: presentes, frutas, lanches na ocasião das
No dia-a-dia dos serviços de saúde, as inúmeras de-
visitas e orações. Uma das entrevistadas carrega consigo
mandas provocam a sensação de que nada é capaz de mo-
os nomes completos de alguns profissionais da unidade
dificar o cenário de carências, desigualdades e sofrimento.
escritos num papel para não se esquecer de incluí-los
É difícil chegar a algum lugar pré-determinado sem ser
nas suas orações.
interceptado no percurso: exames, remédios, informa-
Os espaços coletivos ou grupos organizados exis-
ções, vaga no programa do leite, encaminhamentos para
tentes na Unidade de Saúde se revelaram de grande im-
consultas especializadas e as mais diversas solicitações que
portância no enfrentamento dos problemas vivenciados
requerem tempo, habilidade e atenção. Trajetos diários,
pelas participantes deste estudo.
seguidos em círculos e que não se findam.
Quando foi iniciada a organização dos grupos na
Aqui, procura-se a inversão dos caminhos. São
unidade, não se sabia bem os caminhos que seriam tri-
silenciados os conhecimentos técnicos para se buscar
lhados. O início foi realizado com grupos de diabéticos
outras vozes. Diante de famílias à margem da vida,
e hipertensos direcionados ao controle dessas patologias,
tentando driblar os problemas por meio de improvisa-
mas, aos poucos, o foco de atuação foi ampliado, dando
ções e equilibrar-se em fios de esperança, visualiza-se a
atenção às diversas e complexas demandas que surgiam.
fragilidade das nossas verdades.
Assim, foram incorporadas outras atividades, como
As mulheres deste estudo mostraram que é possível
festas, passeios de trem, visitas a pontos turísticos da
cultivar a esperança. E em meio à dor e a uma cultura
cidade, entre outras.
que favorece a desesperança e o desgaste das relações, elas
As diversas experiências de participação e a mo-
ensinaram a fazer conexões que recompõem a inteireza
bilização em torno das festas intensificam os vínculos
das coisas partidas e ampliaram os campos de visão. Fio
de apoio social, revelando caminhos que podem abrir
a fio, dia após dia, são tecidas as redes de religações com
novas perspectivas.
seus semelhantes.
Essas mulheres buscam na ESF o cuidado e a aten-
A ESF foi revelada como uma estratégia de atenção
ção que lhes são negados. Procuram partilhar o pesado
e cuidado. Aqui, essas mulheres mostraram a necessi-
fardo de ter que cuidar da família sem a garantia do
dade de adoção de práticas que privilegiem a escuta e
alimento de cada dia, da educação, da moradia digna,
alarguem os estreitos caminhos da ciência, nos quais são
como descreve Florbela Espanca:
‘desperdiçadas as experiências’.
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Movidas por essas imagens, as clausuras do conhecimento científico foram abandonadas para que fosse
assumida a posição de aprendizes. Assim, criou-se, na
Unidade de Saúde, a ‘tenda do conto’, que é montada
durante as reuniões dos grupos no galpão da Unidade de
Saúde, simulando uma sala de visitas onde são colocadas
fotografias, imagens de santos, poesias e cartas trazidas
pelos usuários que representem um acontecimento
vivido. No centro da sala, uma cadeira de balanço é colocada para que cada um que lá sentar, conte algo sobre
sua vida. A tenda tem favorecido a ressignificação das
experiências e a construção de habilidades relacionais
transformadoras.
Nesse sentido, percebe-se que os espaços das instituições de saúde devem estar abertos à construção de
novas práticas que considerem as vontades, os desejos e as
diferentes necessidades de saúde. No cotidiano do cuidado, é necessário unir razão e sensibilidade; construir com
criatividade um agir coletivo pautado numa razão sensível
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Brasília, DF, 2001b.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 219-226, abr./jun. 2010
Recebido: Outubro/2008
Aceito: Janeiro/2010
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Perfil da ampliação do Programa de Agentes
Comunitários de Saúde no Brasil
Profile of the expansion of Community Agents Program in Brazil
José Roberto de Magalhães Bastos1
Ricardo Pianta Rodrigues da Silva 2
Angela Xavier3
Sabrina Pulzatto Merlini4
Taís Ferreira Pimentel5
Professor doutor do Departamento
de Saúde Coletiva da Faculdade de
Odontologia de Bauru da Universidade
de São Paulo (USP).
[email protected]
1
Mestre em Saúde Coletiva pela
Faculdade de Odontologia de Bauru
da USP.
[email protected]
2
Especialista em Saúde Coletiva pelo
Hospital de Reabilitação de Anomalias
Craniofaciais da USP.
[email protected]
3
RESUMO O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), criado
para ser o elo entre a população e as Unidades de Saúde, tem desempenhado um
papel essencial na estruturação da atenção básica. O objetivo deste estudo foi
analisar o desenvolvimento do PACS no país de 1998 a 2007. Para o presente
estudo, foi realizada análise descritiva com enfoque retrospectivo e abordagem
quantitativa. Na região Nordeste foi encontrado o maior número de ACS de todo
o país, finalizando em 2007 com 86.020. Já na região Norte foi encontrado o
Estado com o menor número de ACS do país, Roraima, onde havia 547 agentes
em 2007. Verificou-se disseminação do Programa de Agentes Comunitários de
Saúde em todas as regiões do país.
Especialista em Saúde Coletiva pelo
Hospital de Reabilitação de Anomalias
Craniofaciais da USP.
[email protected]
PALAVRAS-CHAVE: Atenção primária à saúde; Saúde pública; Programa
Especialista em Saúde Coletiva pelo
Hospital de Reabilitação de Anomalias
Craniofaciais da USP.
[email protected]
ABSTRACT The Community Health Agents Program (CHAP), which was
4
5
saúde da família.
created to be the link between people and Health Care Units, has represented an
important role on primary health care organization. This study aimed to analyze
the development of CHA program in Brazil from 1998 to 2007. A retrospective
descriptive analysis with quantitative approach was performed. The Northeast
region presented the greatest number of agents in the country with 86.020 in
2007. In the North region was found the lowest number of agents in Brazil in
Roraima, with 547 in 2007. There was dissemination of the Community Health
Agents Program across the country.
KEYWORDS: Primary health care; Public health; Family health program. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010
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I N T R O D U ç ão
•
Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil
Para isso, propôs a substituição da ênfase da cura pela
promoção da saúde (Ávila, 2008).
O Programa de Agentes Comunitários de Saúde é
No início da década de 1980, alguns países deram
hoje considerado parte do Programa Saúde da Família
os primeiros passos para as mudanças nos serviços pri-
(PSF). Nos municípios onde há somente o PACS, este
mários de saúde de reconhecida resolutividade e impacto
pode ser considerado um programa de transição para
mundial. Foi a partir daí que a estratégia da Saúde da
PSF. No PACS, as ações dos Agentes Comunitários de
Família surgiu com o propósito de alterar o modelo as-
Saúde são acompanhadas e orientadas por um enfermei-
sistencial da saúde brasileira (Santa Catarina, 2008).
ro/supervisor lotado em uma unidade básica de saúde
A finalidade dessa estratégia foi implementar os
(Ministério da Saúde, 2008).
princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), que presa a
O Agente Comunitário de Saúde (ACS), criado
saúde como um direito acessível a todo cidadão, baseado
para ser o elo entre população e as unidades de saúde,
na universalidade de acesso, integralidade de atenção
desempenha um papel essencial na estruturação da
e equidade, compondo um sistema hierarquizado,
atenção básica, promovendo maior acesso aos serviços
descentralizado com diferentes níveis de complexidade
devido ao acolhimento feito por ele, por exemplo, a
(Silva, 2007).
identificação dos principais problemas enfrentados
A partir dessas experiências foi elaborada a estra-
pelas famílias que nele se cadastram. O PACS encontra-
tégia de reorganização da Atenção Primária ou Básica,
se de forma privilegiada na dinâmica da implantação
denominadas de Programa Saúde da Família (PSF) e
de um novo modelo assistencial. Eles estimulam a
Programa de Agente Comunitário de Saúde (PACS).
educação da comunidade e a prevenção e proteção às
A história do PSF teve início quando o Ministério da
doenças, tentando despertar a participação social, ao
Saúde instituiu o PACS em 1991. A partir daí, começou-
mesmo tempo em que auxilia a equipe de saúde no
se a enfocar a família como unidade de ação programática
controle de doenças endêmicas (Espínola, 2006).
de saúde e não mais o individuo, e foi introduzida a noção
Além disso, é composto por uma equipe multiprofis-
de área de cobertura (Viana, 2005).
sional, cujas atividades transcendem o campo da saúde,
O PACS foi criado para ajudar na promoção e
à medida que requerem atenção a múltiplos aspectos
prevenção da saúde no âmbito domiciliar e no nível
da condição de vida da população. Os profissionais
local, por meio de ações simplificadas e conforme
desses programas devem residir nas respectivas áreas
os seguintes pressupostos da Conferência de Alma-
de atuação, possuir idade mínima de 18 anos, saber
Ata: estruturação dos sistemas de saúde por meio da
ler e escrever, ter disponibilidade para trabalhar em
organização dos cuidados primários, cuidados primá-
tempo integral, também devem estar vinculados a
rios e o sistema nacional de saúde e a construção da
uma unidade de saúde tradicional ou a uma unidade
equidade em saúde, direito à saúde e controle social e
de saúde da família e atender entre 400 e 750 pessoas
ação intersetorial e participação cidadã. Ao priorizar
(Silva, 2008).
inicialmente as crianças e mulheres em idade fértil,
A regulamentação dos agentes comunitários de
cumpriu-se um importante papel na reorganização da
saúde ocorreu em 10 de julho de 2002, de acordo com
atenção básica pela forma de trabalho fundamentado
a lei n.º 10.507, e o decreto n.º 3.189/99 que fixa as
no conceito de área de cobertura e ações preventivas.
diretrizes para o exercício da profissão e a portaria
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Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil
GM/MS nº. 1.886/97 que estabelece suas atribuições
assistência à comunidade, deslocando o cuidado para o
(Levy, 2004).
território onde vive a população adstrita.
O objetivo deste estudo foi analisar o desenvolvi-
Na região Centro-Oeste houve um aumento
mento do Programa de Agentes Comunitários de Saúde
no número de agentes comunitários de saúde (ACS)
(PACS) no país, o número e o percentual de municípios
no período de 1998 a 2006, de 7.172 para 15.968
que contêm essas equipes e a população atendida por
e uma pequena queda em 2007 chegando a 15.508,
elas no período de 1998 a 2007.
apresentando o Distrito Federal o menor número de
ACS com 7.172 em 1998, queda em 2003 chegando
a zero e terminando 2007 com uma melhora para 581
METODOLOGIA
ACS. Já o Estado de Goiás se mostrou como o melhor
número dessa região começando 1998 com 2.748 ACS
e terminando 2008 com 7.190.
Para o presente estudo foi realizada uma análise
A região Nordeste é a que encontra o maior núme-
descritiva com enfoque retrospectivo sobre o PACS,
ro de ACS em todo o país, com 47.381 em 1998 com
com abordagem quantitativa. O universo do estudo
ampliação para 91.105 em 2006 e uma pequena queda
foi composto pelas cinco regiões federativas do Brasil,
em 2007, finalizando esse ano com 86.020. O Estado
abrangendo os 27 Estados e o Distrito Federal. As
de Sergipe foi onde se encontrou o menor número de
informações utilizadas foram fornecidas pelo Departa-
ACS com 3.283 em 2007 e a Bahia o maior número,
mento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, no
com 20.804 ACS ao término do mesmo período.
período de 1998 a 2007, considerando o número de
Na região Norte foi encontrado o Estado com o
agentes comunitários de saúde, o número e percentual
menor número de ACS de todo o país, Roraima, onde
de municípios com agentes comunitários de saúde e o
havia 70 agentes em 1998, com um significativo au-
número e percentual de populações acompanhadas pelos
mento, chegando em 2007 com 547 profissionais. Já no
agentes comunitários de saúde.
Estado do Pará há o maior número de ACS, tendo 5.796
Os dados foram reunidos em tabelas e separados
por Estados e regiões do país, no período de 1998 a
2007 (Brasil, 2008).
em 1998, chegando a um total de 11.206 em 2007.
Considerando que os agentes comunitários de
saúde são parte do elenco principal do Programa Saúde
da Família, o trabalho do ACS proporciona um aumento
do volume de tarefas e de responsabilidades, porém sem
RESULTADOS E DISCUSSÃO
que esses fatores sejam acompanhados por aumento salarial correspondente. Em três dos cinco municípios do
interior do Estado da Bahia, os ACS recebiam o salário
Número de agentes comunitários de saúde
mínimo (Nunes, 2002).
O agente comunitário de saúde é o ator que propor-
A região Sudeste apresentou, em 1998, um total
ciona a viabilização das políticas de saúde, e o seu trabalho
de 7.324 ACS e 57.194 em 2007. O Estado dessa região
ultrapassa o atendimento às necessidades da população,
com o menor número foi o Espírito Santo com 4.941 e
pois esse profissional se dedica a cuidar da comunidade e a
o de maior número de ACS foi Minas Gerais com um
pensar na saúde em sua concepção mais ampla, provendo
total de 23.253 em 2007.
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Em Juiz de Fora, um município de porte médio do
uma valorização profissional e pessoal, caracterizando-se
sudeste de Minas Gerais, os agentes comunitários de saúde
como uma nova categoria profissional, tendo um papel
foram inseridos nas unidades básicas de saúde em 1999. Por
de fundamental importância dentro da comunidade
se tratar de uma cidade com características de morbimorta-
onde está inserido o programa (Bachilli, 2008).
lidade diferenciada da região nordestina e por se constituir
em um polo regional de grande influência para a zona da
mata mineira, acredita-se que o perfil dos ACS deva atender
Percentual de municípios com agentes comunitários
ao contexto complexo de um centro urbano. Atualmente,
de saúde
das 41 Unidades Básicas de Saúde existentes no município
A região Centro-Oeste apresentou um aumento de
de Juiz de Fora, 23 têm o PSF, totalizando 56 equipes e 294
38% no percentual de municípios com ACS no período
agentes comunitários de saúde (Silva, 2008).
de 1998 a 2007, perfazendo um total de 97% (452 mu-
No Estado de Santa Catarina, na região Sul, foi
nicípios) no final deste período. O Estado dessa região
registrado, em 1998 e 1999, o menor número de agen-
com maior percentual foi o Mato Grosso do Sul que
tes com 342 e 2.273 respectivamente. Mas a partir de
apresentou aumento de 29,9% de 1998 a 2004, redução
2000, o Estado do Rio Grande do Sul passou a ser o com
de 1,3% em 2005 e terminando 2007 com 98,7% dos
menor número de agentes (com 4.120), chegando em
municípios com ACS, ou seja, 77 municípios. O Estado
2007 com 7.230. Já o Paraná foi o Estado com o maior
que apresentou o menor percentual foi o Mato Grosso,
número no período de 1998 ate 2007, tendo iniciado
onde se verificou um aumento de 15,1% de 1998 a
com 3.874 chegando a 10.514 em 2007.
2000, pequena redução de 0,02% em 2001, aumento
A opção pelo trabalho de agente comunitário
de 13% em 2002 e atingiu 100% dos municípios com
caracteriza-se, não somente por ser uma alternativa
ACS em 2005, portanto 141 municípios. Em 2007
ao desemprego, mas principalmente pela atitude de
houve uma queda de 5,7%, finalizando com 94,3%
presença na vida produtiva, que se lança em busca de
(133) dos municípios com ACS (Gráfico 1).
Gráfico 1 – Percentual de municípios com agentes comunitários de saúde entre 1998 e 2007 de acordo com o
Ministério da Saúde
Fonte: Ministério da Saúde, 2008.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010
BASTOS, J.R.M.; SILVA, R.P.R.; XAVIER, A.; MERLINI, S.P.; PIMENTEL, T.F.
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Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil
O PACS veio para inserir um olhar ativo da inter-
período de 2002 a 2004 houve uma redução de 15,4%,
venção em saúde, não esperar a demanda chegar para
e em 2005 retomou-se o percentual de 100%; de 2005
intervir, e sim atuar preventivamente sobre a população,
a 2007 verificou-se uma redução de 7,7% , finalizando
representando um passo importante na redução da
com 92,3% (48) dos municípios com ACS.
morbimortalidade em comunidades que antes não eram
atingidas pelos serviços de saúde (Fernandes, 1992).
Em Rio Grande da Serra, SP, verificou-se que
houve mudanças positivas na percepção das mulheres
Na região Nordeste observou-se aumento de 21%
e mães sobre aspectos de saúde bucal; esse fato é um
entre 1998 e 2002 e em 2003 houve pequena redução
importante indicador da importância do trabalho dos
de 0,01%. No período de 2003 a 2006 houve novo
agentes comunitários de saúde com relação à promo-
aumento, terminando com 100% (1.793) dos municí-
ção de saúde bucal, principalmente no que concerne
pios com ACS; porém em 2007 apresentou queda de
à superação de barreiras de comunicação entre profis-
1% finalizando com 99% (1.781) dos municípios com
sionais e usuários. Apesar de este estudo ter avaliado o
ACS. Os Estados dessa região que apresentaram maior
impacto do PACS sobre os conhecimentos de saúde
percentual de municípios com ACS foram Alagoas,
bucal, adimite-se que houve mudanças em outras áreas,
Ceará e Sergipe, os quais terminaram o período entre
o que sugere repercussão na autoconfiança e capacidade
1998 e 2007 com 100% dos municípios com agentes
para controlar determinantes do processo saúde-doença
comunitários, ou seja, 102, 184 e 75 respectivamente.
(Frazão, 2006).
Os Estados com menor percentual foram Rio Grande do
Na região Sudeste pode-se verificar um aumento
Norte e Pernambuco, os quais finalizam o período entre
de 50,2% entre 1998 a 2007, terminando o referido
1998 e 2007 com 98,8% dos municípios que possuíam
período com 89% (1.487) dos municípios com ACS. O
ACS, sendo 165 e 183 respectivamente.
Estado dessa região que apresentou maior percentual foi
A região Norte apresentou aumento de 29,6%
o Espírito Santo que apresentou aumento no período de
no período de 1998 a 2002; entre 2002 e 2004 houve
1998 a 2007 de 57,1%, terminando 2007 com 100%
pequena redução de 4,9%. Em 2006 verificou-se novo
(78) dos municípios com agentes comunitários de
aumento de 5,5%, finalizando 2007 com uma pequena
saúde. O Estado dessa região que apresentou o menor
redução de 1,1%, totalizando 97,3% (437) de municí-
percentual foi São Paulo, que no período de 1998 a 2007
pios com agentes comunitários. O Estado dessa região
apresentou um aumento de 52,1% e finalizou o período
com maior percentual de agentes comunitários foi o
com 77,7% (501) dos municípios com ACS.
Acre, onde entre os anos de 1998 e 1999 verificou-se
Um estudo realizado no município de Itapirapuã
um aumento de 36,4%; em 2000 observou-se pequena
Paulista, no Vale do Paraíba, verificou melhorias signi-
redução de 4,6% e a partir daquele ano até 2007 houve
ficativas em indicadores de saúde ao longo de nove anos
um aumento de 27,3%, perfazendo um total de 100%
de estudo, melhorias estas que se intensificaram com a
(22) dos municípios com ACS. O Estado pertencente a
implementação do Programa de Agentes Comunitários
essa região com o percentual mais baixo de municípios
de Saúde (César, 2002).
com agentes comunitários de saúde foi Rondônia, que
Na região Sul, verificou-se um aumento de 46%
entre 1998 e 2000 apresentou percentual de 100% (52),
de 1998 a 2006 e em 2007 houve uma pequena queda
em 2001 houve uma redução de 3,8%, e em seguida re-
de 1% terminando o período com 93,3% (1.108) dos
tornando a 100% de municípios com ACS em 2002. No
municípios com ACS. O Estado dessa região com maior
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Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil
percentual foi Santa Catarina, que de 1998 a 2003 apre-
Percentual de População atendida pelos agentes
sentou aumento de 87,7%; em 2004 apresentou pequena
comunitários de saúde
queda de 0,4% e em 2005 teve novo aumento de 0,4%.
Na região centro-oeste houve um aumento do per-
Em 2006 houve novo aumento de 0,7% e terminou
centual de população atendida pelos ACS de 24,6% no
2007 com redução de 1,1%, totalizando 98,6% (289) de
período de 1998 a 2005. Em 2006 houve uma pequena
municípios com ACS. O Estado dessa região com menor
queda de 0,4% e em 2007 verificou-se nova queda de
percentual foi Rio Grande do Sul, onde no período entre
2,2%, finalizando com 59,1% (7.980.698) da popu-
1998 e 2004 apresentou aumento de 46,5%; em 2005
lação atendida pelos ACS. O Estado dessa região com
houve queda de 2,2%; em 2006 aumento de 1,6% e
maior percentual de população atendida pelos agentes
finalizou 2007 com redução de 1% totalizando 87,7%
comunitários de saúde foi Mato Grosso do Sul, que
(435) de municípios com agentes comunitários.
iniciou em 1998 com 43% (844.208) da população
A expansão do programa de agentes comunitários de
atendida, houve um aumento de 8,6% em 1999 e no
saúde se deu tanto em áreas rurais como em grandes centros
ano seguinte apresentou queda de 2,9%; no período de
urbanos. Esse modelo foi implantado em áreas metropoli-
2000 a 2005 verificou-se novo aumento de 37,4% e,
tanas, mantendo, entre seus pressupostos e estratégias de
até 2007, apresentou redução de 1,8%, terminando o
intervenções básicas, as perspectivas de ampliação do acesso
período com 84,3% (1.981.923) de população atendida
e de extensão de cobertura por serviços de saúde para parcelas
pelos agentes comunitários de saúde. O Estado com
específicas da população brasileira, de racionalidade técnica e
menor percentual de população atendida foi Goiás, ini-
econômica, de integralidade e humanização do atendimento,
ciando 1998 com 31,6%, com aumento do percentual
de participação popular; o estabelecimento de vínculos; e a
até 2006 de 34,2%; finalizando em 2007 com redução
criação de laços de compromisso e de corresponsabilidade en-
de 4%, totalizando 61,8% (3.566.950) de população
tre os profissionais de saúde e a população (Silva, 2002).
atendida (Gráfico 2).
Gráfico 2 – Percentual de população atendida pelos agentes comunitários de saúde entre 1998 e 2007de acordo
com o Ministério da Saúde
Fonte: Ministério da Saúde, 2008.
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BASTOS, J.R.M.; SILVA, R.P.R.; XAVIER, A.; MERLINI, S.P.; PIMENTEL, T.F.
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Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil
Na região Nordeste verificou-se um aumento de
de 12%; e em 2006, novo aumento de 8%; finalizando
27,5% de 1998 a 2006; e em 2007, redução de 3,6%,
2007 com uma redução de 11,4%, perfazendo um total
perfazendo um total de 80,5% (41.965.367). O Estado
de 69% (301.720).
dessa região com maior percentagem de população aten-
No Sudeste, houve um aumento gradativo no pe-
dida pelos ACS foi Piauí que iniciou 1998 com 44,2%
ríodo de 1998 a 2006 de 33,8%; e em 2007, pequena
(1.190.394); no período de 1998 a 2006 verificou-se
redução de 0,9%, totalizando 39% (31.048.341) de
aumento de 55,4% e em 2007 verificou-se pequena
população atendida pelos ACS. O Estado dessa região
redução de 2,6% totalizando 97% (2.994.125). O Es-
com o maior percentual foi o Espírito Santo, que iniciou
tado do Ceará foi o que apresentou menor percentual
1998 com 12,3% (351.786); no período de 1998 a 2006
de população atendida, onde no período de 1998 a
apresentou um aumento de 60,2% e em 2007 verificou-
2000 houve um aumento de 12,9%, pequena redução
se redução de 3,2%, finalizando o referido período com
em 2001 de 1,1% e até 2003, pequeno aumento de
69,3% (2.407.006). São Paulo foi o Estado com menor
1,3%; no período de 2003 a 2007 verificou-se redução
percentual, onde em 1998 havia 3,1% (1.084.350) de
de 3,3%, finalizando-o com 67% (5.517.524) de po-
população atendida pelos ACS; no período de 1998 a
pulação atendida.
2006, apresentou aumento de 25,3%; e em 2007, pe-
Em 1992, o PACS foi implantado no município de
Itabuna, localizado no litoral sul do Estado da Bahia, a
quena redução de 0,3%, finalizando o ano com 28,1%
(11.546.820).
429 km da capital, com 584 km e população estimada
A região Sul do Brasil apresentou aumento no
em 210.604 habitantes. O programa cobre 55,6% dessa
período entre 1998 e 2006 de 38,4% e em 2007
população com 310 ACS e 24.436 famílias cadastra-
verificou-se pequena redução de 2,8%, finalizando
das. O PSF foi implantado no município em 2001 e
aquele ano com 50,9% (13.921.249) de população
atualmente conta com 18 equipes de saúde da família
atendida. Santa Catarina foi o Estado dessa região com
(Ferreria, 2009).
maior percentual de municípios com ACS, onde em
2
A região Norte apresentou um aumento de 35,6%
1998 havia 3,9% (194.693) de população atendida; no
no período de 1998 a 2002; em 2004 verificou-se
período entre 1998 e 2005 houve aumento de 75,2%;
redução de 2,5%; novo aumento em 2005 de 2,9%
em 2006, pequena redução de 0,1%, finalizando 2007
e em 2007 redução de 6,2%, terminando o período
com 76% (4.530.273) de população atendida. O Estado
com 77,3% (12.045.854) de população atendida pelos
com menor percentual foi o Rio grande do Sul, o qual
ACS. O Estado de Tocantins foi o que apresentou maior
no período entre 1998 e 2006 apresentou elevação de
percentual de população atendida, sendo que em 1998
23,7% e no ano de 2007 diminuição de 2%, totalizando
verificou-se 67,7% (731.615), em 2003 houve um au-
34,7% (3.812.405).
mento de 32,1%, pequena redução de 0,9% em 2005;
Um estudo feito em Porto Alegre, em 2000, ava-
novo aumento de 0,8% em 2006, terminando 2007 com
liou que o PSF contava com 114 agentes comunitários
redução de 1,4%, totalizando 98,3% (1.360.389). O
de saúde, sendo em sua maioria mulheres entre 30 e 49
Estado dessa região com menor percentual de população
anos de idade (71%). Do total, 73% eram moradoras a
atendida foi Roraima, que apresentou 15,8% (40.250)
mais de 10 anos da comunidade em que trabalhavam,
em 1998; no período de 1998 a 2002 houve um au-
sendo que o tempo de permanência no PSF também era
mento de 68,6%; em 2004 verificou-se uma redução
alto. A principal atividade realizada era a visita domiciliar
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010
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234
BASTOS, J.R.M.; SILVA, R.P.R.; XAVIER, A.; MERLINI, S.P.; PIMENTEL, T.F.
e a educação em saúde, com orientações sobre higiene,
•
Perfil da ampliação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde no Brasil
R E F E R Ê N C I A S
calendário vacinal, cuidados com recém-nascidos, gestantes e uso correto de medicações (Ferraz, 2005).
Uma pesquisa feita em Florianópolis, Santa Catarina, entre 1994 e 2000, observou que o PSF gerou avanços
na prevenção, na consciência sanitária e na realização de
visitas domiciliares, sendo o trabalho do agente citado
como um grande fator de mudança nesse sentido. A relação equipes/famílias cadastradas é superior ao previsto em
todos os postos. As visitas são feitas principalmente pelos
agentes; os marcadores de processo e resultado mostram
acompanhamento adequado de diabéticos, hipertensos,
gestantes e crianças, situando-se acima dos 80% dos cadastrados em todas as equipes (Conill, 2002).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fundamentando-se nos resultados apresentados,
foi possível verificar a disseminação do Programa de
Agentes Comunitários de Saúde em todas as regiões
do país, iniciada com maior amplitude nos Estados do
Norte e Nordeste, onde havia as maiores carências assistenciais e de promoção de saúde. Posteriormente, esse
crescimento se estendeu para as regiões Centro-Oeste,
Sudeste e Sul, onde persistiam iniquidades no acesso
aos serviços de saúde.
Os agentes comunitários de saúde são atores de
fundamental importância dentro do atual panorama
de saúde da população visto que conhecem a realidade
da comunidade onde atuam, pois fazem parte dela,
conhecem suas crenças, sua linguagem, e suas dificuldades. Esses profissionais também representam uma
possibilidade de trazer para as equipes de saúde o olhar
da população, o qual revela necessidades de um ponto
de vista diferente e que, portanto, abre as portas para
um novo universo de intervenção.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010
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Recebido: Janeiro/2009
Aprovado: Março/2010
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 227-235, abr./jun. 2010
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ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Doença crônica: comparando experiências familiares *
Chronic disease: comparing familial experiences
Noeli Marchioro Liston Andrade Ferreira 1
Giselle Dupas 2
Carmem Lúcia Alves Filizola 3
Sofia Cristina Iost Pavarini 4
Enfermeira; Professora-associada do
Departamento de Enfermagem da
Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar).
[email protected]
RESUMO A pesquisa teve como objetivo compreender a experiência da família
Enfermeira; Professora-associada do
Departamento de Enfermagem da
UFSCar.
[email protected]
semelhantes nas famílias, embora haja diferenças na percepção inicial. A vivência
Enfermeira; Professora-associada do
Departamento de Enfermagem da
UFSCar.
[email protected]
e acionando recursos sociais e de apoio. Compreender o processo vivido pela família
Enfermeira; Professora-associada do
Departamento de Enfermagem da
UFSCar.
[email protected]
Doença crônica.
1
2
3
4
que possui um membro com doença crônica. Foram feitas entrevistas com díades
familiares de: crianças com doença crônica, adultos alcoolistas, adultos com câncer
e idosos com demência. A convivência com a doença crônica gera sofrimentos
da família ocorre num processo em que, após um período de adaptação, há várias
mudanças na estrutura e funcionamento familiar, levando a uma nova dinâmica
contribui para a implantação de políticas públicas e planejamento do cuidado.
PALAVRAS-CHAVE: Família; Enfermagem de família; Enfermagem; Cuidado;
ABSTRACT This study sought to understand the experience of the family with
a carrier of chronic disease. Interviews were conducted with relatives of: children
with chronic disease, alcoholic adults, adults with cancer and elderly with
dementia. Coexisting with chronic disease generates similar afflictions in families.
Although, at first impression, differences occur, the experience takes place through
a process in which, after an adjustment period, there are several changes in the
structure and behavior of the families experiencing a new dynamic in mobilizing
social and supportive resources. Understanding the process that a family faces with
chronic disease contributes to implementing public policies and care plans.
KEYWORDS: Family; Family nursing; Nursing; Caring; Chronic disease.
Parte da pesquisa sobre Família e Demanda de Cuidados, Edital Universal CNPq.
*
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010
FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I.
I N T R O D U ç ão
•
Doença crônica: comparando experiências familiares
da família, permitindo seu desenvolvimento como um
sistema (Duarte, 2001).
A mudança do perfil demográfico e epidemiológi-
O conceito da família contemporânea envolve,
co da população e do paradigma de assistência à saúde
além da arquitetura, a relação entre seus membros. A
tem levado ao retorno da família à agenda do cuidado à
família pode ser entendida como: pessoas aparentadas
saúde e, a partir de seu reconhecimento como unidade
que vivem, em geral, na mesma casa, particularmente
de cuidado, passa a ser objeto de atenção, devendo ser
o pai, a mãe e os filhos; pessoas do mesmo sangue ou
compreendida no contexto em que se insere.
ainda origem, ascendência (Houaiss, 2004). Entende-
Somando-se a essa dimensão, deve-se entender
se que, hoje, a família pode ser constituída de várias
que as relações entre famílias e serviços de saúde estão
formas: famílias unigeracionais, famílias multigeracio-
inseridas em um conjunto de determinações sociais,
nais, famílias compostas por pessoas jovens, famílias
políticas e econômicas e que somente a intervenção e
constituídas por casais heterossexuais ou homossexuais,
recuperação do corpo biológico não têm respondido
famílias monoparentais, entre outros (Anderson, 2000;
plenamente às necessidades de saúde (Rocha; Nasci-
Elsen; Marcon; Silva, 2002; Friedman; Bowden;
mento; Lima, 2002).
Jones, 2003).
Diante desse contexto, há uma necessidade de
Outros autores enfocam modelos diversificados de
buscar um novo paradigma de cuidado: olhar a família
formação da família que não sejam apenas pela união de
e seu funcionamento através da interação de seus mem-
um casal, como exemplos, mulheres que engravidam e
bros e sua interação com a comunidade e o meio em
continuam a viver com seus pais, casais homossexuais
que se vive. Assim, torna-se mister apreender a família
e outros que iniciam essa nova configuração familiar
como um sistema, diagnosticar seus problemas de saúde,
distinta ou ampliada (Cerveny; Berthoud, 1997). Há,
os recursos para enfrentar os problemas e os suportes
ainda, aquelas compreendidas a partir da indicação dos
comunitários disponíveis para a construção do seu bem-
seus membros por um familiar, mesmo sem laços de
estar e qualidade de vida.
parentesco, “a família que considero família” (Wright;
Leahey, 2002).
Essa perspectiva considera, ainda, a estrutura familiar, sua função e as variáveis de saúde, incorporando
As definições de família geralmente abrangem:
os aspectos biológicos, psíquicos, sociais e contextuais,
interação, compromisso e afetividade. O laço sanguíneo
vendo-a como uma unidade de cuidado (Wright;
não é mais importante que a concepção que cada pessoa
Leahey, 2002; Rocha; Nascimento; Lima, 2002;
tem sobre família e a dinâmica das relações construídas
Bomar, 2004).
ao longo da história de vida da família (Duarte; Diogo, 2000).
O enfermeiro, ao interagir com a família em um
momento de crise, de doença crônica, depara-se com a
A família é o núcleo de reprodução, de socialização,
experiência de vulnerabilidade desta e precisa compre-
de controle social e de cuidados ou ainda uma formação
ender como a família vivencia a situação, o que faz com
humana universal, sendo que ainda não foi criada outra
que ela se sinta mais vulnerável, e em que situações, e
formação capaz de substituí-la (Pinto, 1997). Está em
quais estratégias utiliza para lidar com a situação.
contínuo processo de transformação e mudança, que é o
O conceito de vulnerabilidade busca avaliar a
responsável pela evolução da capacidade de crescimento
suscetibilidade de indivíduos ou grupos a um deter-
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010
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238
FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I.
•
Doença crônica: comparando experiências familiares
minado agravo à saúde, e a elaborar indicadores para
a um de seus membros. Utilizamos o Interacionismo
avaliar em que medida a pessoa está suscetível, consi-
Simbólico (IS) (Blummer, 1969; Charon, 1995) como
derando três planos interdependentes de determinação
referencial teórico e os passos iniciais da Teoria fundamen-
da vulnerabilidade, ou seja, individual, programática
tada nos Dados (TFD) como referencial metodológico
e social (Pettengill; Ângelo, 2005).
(Glaser; Strauss, 1967; Chenitz; Swanson, 1986).
A doença crônica é o tipo de enfermidade que
O interacionismo simbólico (IS) é uma teoria das
tem como característica ser de longo curso, podendo ser
relações humanas que considera que o ser humano vai
incurável, deixar sequelas e impor limitações às funções
interagir, interpretar, definir e agir no seu cotidiano
do indivíduo, requerendo adaptações (Vieira; Lima,
de acordo com o significado que ele atribui à situação
2002). Ela pode estar relacionada à disfunção de órgãos, a
vivenciada (Blummer, 1969). A teoria fundamentada
deficiências de funções, como a cegueira, a disfunções do
nos dados (TFD) tem seus fundamentos na perspectiva
aprendizado e neurológicas, como as paralisias cerebrais
teórica do Interacionismo Simbólico. É um método de
ou as doenças mentais (Castro; Piccinini, 2002).
pesquisa que visa a formular novos conceitos e teorias
O portador de doença crônica enfrenta alterações
a partir dos dados levantados sobre o aspecto subjetivo
no seu estilo de vida provocadas pela doença em si e pela
das experiências sociais da pessoa. A coleta e análise
recorrência de internações hospitalares. Este fato é com-
dos dados acontecem concomitantemente através de
partilhado pela família que o segue dia-a-dia, tanto no
um método comparativo constante (Glaser; Strauss,
domicílio como nas internações (Silva et al., 2002)
1967). Nesta pesquisa, realizamos os passos iniciais deste
A família que convive com o familiar com doen-
método, o que é possível, visto que esse referencial per-
ça crônica compartilha perdas, limitações e cuidados,
mite parar em seus passos iniciais (Chenitz; Swanson,
sofrendo abalos no ciclo familiar, mudando papéis e
1986). Portanto, não chegamos ao modelo teórico.
funções e se reorganizando para adaptar-se e prestar
auxílio (Messa, 2007).
Sujeitos
Foram sujeitos do estudo as famílias que tiverem
OBJETIVO
como fato evidenciado: idoso com demência (n=6),
adulto alcoolista (n=5), adulto oncológico (n=5) e criança com doença crônica (n=8), totalizando 24 famílias.
Compreender a vivência com a doença crônica
O total de pessoas consideradas pelos casos-índice
nas famílias de crianças portadoras, adultos com câncer,
como família foi de 182 pessoas, sendo 95% parentes.
adultos alcoolistas e idosos com demência.
A média de membros por família foi 7,6, sendo que
a família com maior número de membros pertencia
ao grupo de adultos oncológicos, com 20 membros,
MÉTODO
e a família com menor número de membros foi uma
família de idoso com demência, apenas dois membros.
Os núcleos familiares possuíam de dois a quatro filhos,
Baseamo-nos nos pressupostos do método qualitativo para a compreensão da vivência da família no cuidado
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010
sendo que 46% delas possuíam dois filhos e apenas uma
não tinha filhos.
FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I.
Dos membros familiares, foram entrevistados
apenas os que moravam na mesma residência que o caso-
•
Doença crônica: comparando experiências familiares
buscando-se compreender aproximações e diferenciações entre elas.
índice e aceitaram participar da pesquisa, totalizando
84 pessoas (47%). Um total de 18% dos entrevistados
possuíam ensino médio completo seguidos de 17% com
ensino fundamental. De toda a mostra, 60% referiram
ser católicos e 10% evangélicos.
Procedimentos éticos
Todos os cuidados éticos que regem pesquisas com
seres humanos foram tomados no desenvolvimento desta
Dos entrevistados, 33% mantinham emprego re-
pesquisa. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética
munerado e 14% eram aposentados. Um total de 11%
em Pesquisa da UFSCar, Processo nº 0001.0.135.000-
necessitaram abandonar o emprego em consequência da
06, Parecer nº 077/2006.
doença. A renda de 40% dos entrevistados girava em torno de um e três salários mínimos, 33% entre três e cinco
salários mínimos e 23% recebiam até um salário mínimo.
RESULTADOS
Da amostra, 52% das pessoas destinavam parte da sua
renda à pessoa doente, sendo que oito delas destinavam
20% da sua renda, e 47% referiram dificuldades para
Compreender o processo de doença no contexto
destinar sua renda ao cuidado da pessoa doente. Uma
familiar é uma tarefa complexa por se tratar de vários
das famílias mencionou destinar 80% da sua renda para a
indivíduos com características peculiares que interagem
pessoa doente e 25% dos entrevistados consideraram sua
dentro de uma instituição – a família – e por se vivenciar
renda inadequada para os gastos com a doença.
um processo de instabilidade e conflitos acarretados pela
doença. É necessário investigar a trajetória da doença e
suas implicações inter e intrafamiliares. Nesse sentido,
Coleta e análise dos dados
o presente trabalho, por meio da análise de entrevistas
Os dados foram coletados no domicílio das fa-
com famílias que enfrentam doença crônica, traz ao
mílias, com agendamento prévio. Foi realizada uma
corpo científico a experiência familiar no processo de
entrevista semiestruturada, que teve como questão
adoecimento.
norteadora “Como tem sido para vocês a experiência de
Dentre as famílias estudadas, a maioria não tem
vivenciar a situação de doença crônica na família?” As
conhecimento sobre a doença que atinge seus parentes.
entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas
A expectativa e preocupação sobre o estado de saúde do
na íntegra.
familiar e as mudanças na vida diária constituem uma
Os dados foram analisados seguindo-se os passos
fase de muitas dificuldades por ocasião da descoberta da
da TFD para cada um dos grupos de sujeitos (idoso
doença. Receber o diagnóstico de uma doença crônica
com demência, alcoolista, adulto com câncer e criança
com a qual terão de conviver por uma longa jornada é
com doença crônica). Estabelecidas as categorias con-
preocupante. Assim, a categoria ‘descobrindo a doença’
ceituais de cada um dos grupos, procedeu-se à análise
trouxe algumas semelhanças e diferenças na forma como
comparativa entre elas.
as famílias reagem.
Este artigo traz uma discussão acerca das vivências
A princípio, as famílias do idoso com demência
das famílias em diferentes quadros de doença crônica,
e do alcoolista têm uma percepção do problema de
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FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I.
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Doença crônica: comparando experiências familiares
forma mais gradativa, como se não fosse uma doença,
associa os primeiros sinais e sintomas a uma doença sem,
e não dão muita importância ao fato. As nuances da
contudo, imaginar que não há cura. Preocupam-se em
doença vão sendo percebidas aos poucos. A demência
demasia, ‘suspeitando da doença’ e temendo o diagnós-
acaba sendo confundida com o processo natural do
tico. Porém, às vezes atribuem os sinais e sintomas às
envelhecimento, pois, para o senso comum, o idoso
características individuais, próprias da criança. Diante
apresenta falhas de memória. Os familiares denomi-
da situação da criança, as famílias percorrem vários
nam os primeiros sintomas de ‘esclerose’. Muitas vezes,
caminhos para saber ao certo o que está ocorrendo. A
o problema é percebido anos depois, por acreditarem
criança é submetida a uma série de exames diagnósticos,
que se tratava de uma ‘consequência do tempo’. Alguns
consultas médicas e internações hospitalares para chegar
autores apontam a dificuldade do diagnóstico precoce
ao diagnóstico. Alguns autores concordam que o início
dos casos de demência, em função de serem muitas vezes
da doença crônica na criança parece ser mais sofrido do
confundidos pelos familiares com o próprio processo de
que para as demais famílias (Damião; Ângelo, 2001;
envelhecimento (Forlenza; Caramelli, 2000; Botti-
Nunes; Dupas, 2004).
no; Lacks; Blay, 2006).
Nos adultos crônicos, a família, após vários exames
A família do alcoolista percebe o uso de álcool
e consultas aos especialistas, acabam ‘descobrindo o cân-
como um problema de interação social e que, portanto,
cer’ de que, muitas vezes, nem se suspeitava, já que os
não traz preocupação, e passam por uma fase inicial
sinais e sintomas iniciais não diferem de outras doenças
longa – ‘negando o alcoolismo’ – na qual nem o usu-
agudas. Também eles percorrem um longo caminho até
ário nem as famílias admitem que o alcoolismo é uma
a definição do quadro, e o momento da confirmação do
doença. Não relacionam o uso ou abuso do álcool às
diagnóstico é sempre muito difícil para as famílias dada a
dificuldades enfrentadas no lar, buscando outras justi-
conotação de doença com poucas possibilidades de cura
ficativas para os problemas, sem reconhecer que seu uso
(Ferreira; De Chico; Hayashi, 2004).
implica prejuízos para a família. Os familiares viven-
No entanto, a partir do momento que o problema
ciam e percebem a existência de problemas e situações
é caracterizado como doença de fato, todas as famílias
constrangedoras, no entanto, não identificam a fonte
seguem semelhantes percursos no processo de mobilização
destas adversidades, justificando-as como decorrentes
em busca entendimento acerca do que está ocorrendo das
de fatores externos. Quando começam a relacionar o
alternativas e recursos para esclarecer as inúmeras dúvidas
alcoolismo com as dificuldades enfrentadas, procuram
e medos que passam a vivenciar. As incertezas e perspec-
as causas e, ao mesmo tempo, buscam formas e saídas
tivas a respeito do curso da enfermidade transformam-se
negando o alcoolismo como doença e relacionando-o à
em ansiedade, que se dá em maior ou menor grau para
irresponsabilidade, ausência de autocontrole e atitude
cada membro da família. De acordo com a enfermidade,
proposital do familiar. Estes dados são corroborados por
vão ‘ocorrendo mudanças’ na dinâmica familiar e no
outros autores (Rossato; Zuze, 2000).
ambiente domiciliar para o ‘enfrentamento da doença’
Nas famílias com criança e adulto com câncer,
e das dificuldades encontradas, como alterações nos re-
ocorre um processo um pouco diferente. Geralmente,
lacionamentos dentro e fora da família e adaptações na
a família não está preparada para o adoecimento da
utilização dos recursos financeiros.
criança, já que a tem como um ser frágil, pequeno e,
Segundo o relato das famílias estudadas, elas pas-
ao mesmo tempo, cheio de vida e saúde. Geralmente,
sam por um período em que vivem a dicotomia entre
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FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I.
•
Doença crônica: comparando experiências familiares
aproximação e afastamento em maior ou menor grau,
reconhecer o ambiente e faz confusão entre as pessoas
dependendo do fator causador da doença, do sujeito
do seu convívio atual e passado. Muitos apresentam
atingido e do tipo e qualidade das relações com cada
episódios de agitação, o que acarreta situações bastante
um dos seus membros.
desgastantes para si próprios, familiares e profissionais.
Nas famílias dos alcoolistas, a harmonia do lar des-
Recusam-se a fazer certas atividades, irritam-se, ficam
morona e os familiares passam a ‘enfrentar conflitos’. As
com raiva, tornam-se violentos e brigam. Perseguições,
relações de afeto ficam comprometidas por consequência
relatos de visões e o comportamento ‘sombra’ de seguir
das discussões, desentendimentos e agressões verbais,
o cuidador a qualquer lugar são as principais fontes de
físicas e psicológicas. Os episódios de violência apresen-
estresse. O medo e a insegurança de permanecer sozi-
tam-se com mais intensidade e frequência, resultando
nhos justificam as alucinações e delírios. A evolução
em traumas nos membros da família e consequente
progressiva da dependência do idoso com demência afeta
fragilização dos vínculos. A instituição familiar adoece
e modifica o estilo e rotina de sua própria vida, da vida
e várias mudanças no ambiente ocorrem. Inúmeros
de todos os familiares e dos cuidadores. Estudos com
sentimentos são gerados e a imagem que o familiar do-
familiares apontam problemas decorrentes da evolução
ente tinha frente à família e à comunidade se altera. O
da doença, destacando-se o estresse do cuidador, espe-
doente passa a não ser ouvido nas tomadas de decisões
cialmente decorrente das alterações comportamentais na
da conjuntura familiar. A família, portanto, deixa de
fase intermediária da doença (Caldas, 2002; Luzardo;
respeitá-lo porque caracteriza seu comportamento como
Gorini; Silva, 2006).
algo que poderia ser evitado, rotulando-o como culpado
A família da criança e do adulto crônico depara-
pela situação. Ele, por sua vez, fica desacreditado, perde
se com a necessidade de se submeter ao tratamento e a
o respeito da família e da sociedade, sendo excluído
uma infinidade de procedimentos, restrições, condutas
do planejamento, das programações e da vida social.
e formas de comportamentos desconhecidas ou não
Como mostram outros autores, as famílias vivenciam
praticadas até então. Vê-se obrigada a frequentar outros
sentimentos negativos como medo, desespero, angústia,
espaços, como consultórios médicos, ambulatórios e
tristeza, mágoa, vergonha, frustração e revolta (Rossato;
até mesmo serviços de saúde de outros municípios. O
Zuze, 2000).
processo vivenciado com a doença leva a caminhos al-
A família do idoso com demência também passa
gumas vezes longos, difíceis e imprevisíveis. Há ocasiões
por sofrimento quando ‘percebem as diferentes fases da
em que a família perde o domínio da situação, surgem
doença’ e se dão conta de que se trata de um problema
dúvidas e angústias devido às ocorrências inesperadas e
crônico, degenerativo cuja demanda por cuidados só
conflitantes, como internação de emergência, agrava-
tende a aumentar, sendo muitas vezes unidirecional. A
mento no quadro clínico ou troca dos profissionais de
perda de memória recente é a característica marcante no
saúde responsáveis pelo cuidado. A rotina do doente e
princípio porque é a primeira função intelectual atin-
de sua família passa a ser regida por exames, interna-
gida. Com a progressão da doença, há um declínio das
ções e deslocamentos que demandam uma organização
habilidades mentais e físicas, surgem alterações do com-
e readequações diárias. Todas as potencialidades são
portamento e desorientação têmporo-espacial, alterações
direcionadas para a manutenção do melhor tratamento
do sono-vigília e da capacidade de reconhecer pessoas. O
e do bem-estar do doente, mesmo que para isso seja ne-
idoso também expressa vontade de ir para casa por não
cessário abrir mão das próprias necessidades e abdicar de
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Doença crônica: comparando experiências familiares
vários planos em prol do bem-estar do familiar doente
despesas contínuas e ajustes no orçamento das famí-
e dos laços que os unem. Encontramos, na literatura,
lias. A falta de recursos materiais e/ou financeiros para
ressonância com esses dados (Collet; Rocha, 2003;
enfrentar a doença interfere no controle terapêutico.
Furtado; Lima, 2003; Bilemann, 2003; Contin;
Para algumas famílias, representa mais do que isso: fica
Chaud; Fonseca, 2005).
comprometida a subsistência. Portanto, a alocação da
A convivência com um familiar com doença
renda familiar à terapêutica também depende do grau
crônica gera muito sofrimento para todas as famílias
de interação e ligação entre o doente e os membros e
estudadas. O prognóstico gera estresse para a maioria
da aceitação do problema como doença. Na família da
dos familiares. É um novo cenário que as famílias passam
criança, boa parte dos recursos financeiros passa a ser
a vivenciar. ‘Sofrer com a doença’ e com suas conse-
direcionada ao tratamento, e a família passa a fazer tudo
quências é uma experiência vivenciada pela maioria das
o que é possível para atender às necessidades da criança.
famílias pesquisadas. A necessidade e tentativa de fazer
O tratamento do doente com câncer, por sua vez, pos-
tudo o que é possível e de envolver todos os membros da
sui característica de ser altamente oneroso, tanto que,
família no cuidado não se apresenta da mesma maneira
mesmo sendo oferecido pela rede pública, consome as
em todas os casos. Na família da criança, esse cuidado
economias da família, levando inclusive à necessidade de
e envolvimento parecem mais naturais e espontâneos.
buscar ajuda de demais familiares, amigos, instituições
Na família dos adultos com câncer, com o passar do
civis e voluntárias, e não raro recorre-se a empréstimos.
tempo, vai havendo um desgaste natural na medida em
As famílias dos idosos com demência e dos alcoolistas
que a situação clínica do doente vai se deteriorando.
não mencionam o aspecto financeiro.
Para a família do idoso com demência, o cuidado em
Com relação ao convívio social, a maioria das
geral é centrado em um membro da família que passa a
famílias acaba por se isolar, evitando eventos sociais,
assumir a maior parte do cuidado. Além de nem todos
como festas, encontros familiares e reuniões com ami-
ajudarem, há outros problemas familiares como finan-
gos, igreja, entre outros, para evitar situações de tristeza,
ceiros, de saúde, de relacionamento que, somados ao
constrangimento e sentimentos de vergonha, raiva e
cuidado do idoso, exigem grande esforço e dedicação,
humilhação. Por diferentes razões, a dificuldade no
sobrecarregando ainda mais o cuidador. Segundo o re-
convívio social ocorreu para todos os entrevistados. Para
lato de alguns familiares, se todos ajudassem, o cuidado
os familiares do alcoolista, há o agravo dos frequentes
poderia tornar-se mais leve. Todavia, para a família do
comportamentos agressivos e desmedidos nos eventos
alcoolista, o entrosamento e aceitação são mais demo-
sociais que causam desconforto a todos os presentes. As
rados e difíceis devido ao comportamento do paciente
alterações de comportamento do idoso com demência,
que, em diversas experiências anteriores, ocasionaram
a ocorrência de alucinações e delírios e a perda da capa-
transtornos. Tais lembranças, juntamente com a mágoa
cidade de julgamento são motivos de constrangimento
frente às agressões, pesam muito na aceitação e colabo-
para a família. Já com a criança, a família se isola a fim
ração, principalmente dos filhos.
de protegê-la do sofrimento por não poder vivenciar
Os resultados apontam que, além de terem de
algumas situações, como diversão e alimentação com
lidar com as imensas demandas que a doença acarreta,
as demais crianças. Na família do doente com câncer,
as famílias têm ainda que enfrentar privações financeiras
o isolamento se deve ao estigma em relação à doença
na garantia do tratamento do doente, o que representa
(Quintana et al.,1999).
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FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I.
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Doença crônica: comparando experiências familiares
Sem dúvida, a necessidade de adaptarem-se à nova
o aparecimento de situações inesperadas – internações
realidade e rotina de vida se mostra presente e essencial
emergenciais, troca de profissionais e terapêuticas e agra-
para todas as famílias. Elas vivenciam isto ‘criando es-
vamento da doença. No idoso, os novos sinais e sintomas
tratégias de enfrentamento’. Surge aí a necessidade de
indicando a progressão das fases da doença fazem com
tratar a família em conjunto com o doente porque todos
que o cuidador sinta-se sem saber o que fazer. Observa-se
cointeragem com um mesmo propósito e não medem
que, apesar de saber o prognóstico e rumo da doença,
esforços para restabelecer o estado de saúde. A aceita-
considera-se muito difícil vivenciar o temido e inevitável,
ção da doença advém do aumento do conhecimento
pois têm a consciência de seu significado: tudo tende a
e domínio das situações, levando a família a se sentir
piorar. No alcoolista, conviver com as recaídas e crises
mais segura e confiante uma vez ciente das variadas
é desolador. Quando tudo parece estar bem, ele retorna
implicações e especificidades da doença. No processo de
ao uso do álcool, o que traz grande sofrimento a todos
vivenciar a doença, mostra-se de extrema importância
os membros da família. Estes momentos de fraqueza e
o conhecimento a respeito, que é apreendido junto aos
derrota trazem à tona lembranças do passado e incertezas
profissionais da saúde, na troca de experiências com ou-
quanto ao futuro.
tros familiares nos grupos de atendimento aos familiares,
É inevitável a percepção do sentimento de impo-
no caso dos idosos e crianças, e de grupos de autoajuda
tência frente ao problema, e um período de adaptação
para familiares de alcoolistas.
parece necessário para as famílias. Para enfrentar as
Os familiares, pouco a pouco, aprendem a conhe-
recaídas, superar os obstáculos e prosseguir lutando,
cer as reações do doente e os sinais que indicam o seu
as famílias continuam recorrendo a outras estratégias
estado, facilitando o enfrentamento das situações. Na
de enfrentamento. Tornam-se criativas. Na família dos
família do alcoolista, os principais sinais são de inquie-
idosos, os familiares tentam de várias formas: aprendem
tação, agressividade, descontrole, falas desconexas, entre
a pedir ajuda; adaptam ambientes; vão lidando com as
outros. Na família do idoso, sintomas como alucinações,
novas demandas de cuidado que surgem, sabendo que
alteração de memória e alterações de comportamento
a doença é crônica e degenerativa.
são frequentes. Na criança, a família observa os sinais e
A família se vê despreparada, com limitações e di-
sintomas atentando para a alteração no seu estado emo-
ficuldades para dar continuidade ao cuidado. A sensação
cional, quieto ou agitado, porque também já aprendeu
de não saber o que fazer e como proceder frente às novas
a compreendê-la. No adulto com câncer, ocorre a piora
e inesperadas situações causa sobrecarga. Os familiares
do quadro clínico.
sentem-se nervosos, ansiosos e incapazes. É então que
Todos os familiares se conscientizam da importân-
cada família vai em busca de auxílio, encontrando-o
cia de saber o curso da doença e o que gira em torno
nos recursos da comunidade, nos grupos, no apoio da
da terapêutica, mas chega o momento em que é preciso
família e na religiosidade.
‘lidar com as limitações’. A doença impõe seus limites e
Com relação ao apoio social, a família da criança
é necessário à família se adaptar às suas imposições. Essa
relatou receber apoio dos vários suportes da sociedade,
vivência torna-se mais árdua ou mais leve à medida que
o que permitiu a eles atravessarem esse momento com
a família se torna capaz ou não de exercer o controle so-
maior tranquilidade. Esses recursos advêm de outros
bre a situação, passando por momentos de turbulência.
familiares, amigos, vizinhos, profissionais de saúde,
No caso das crianças, estes momentos acontecem com
serviços de saúde, entidades governamentais e religiosas.
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A família do alcoolista, ao ‘buscar ajuda’, encontra apoio
•
Doença crônica: comparando experiências familiares
CONSIDERAÇÕES FINAIS
nos grupos de autoajuda, onde várias famílias vivenciam problemas semelhantes. Os membros da família
percebem a necessidade de se manterem unidos para
Os relatos dos familiares das crianças com doença
que se fortaleçam e, assim, consigam apoiar o familiar
crônica, dos adultos com câncer, dos alcoolistas e dos
e enfrentar as dificuldades. A colaboração dos grupos
idosos com demência mostram que o processo de vi-
Alcoólicos Anônimos (AA), AL-Anon e Alateen, fazem-
venciar uma doença crônica abarca semelhanças entre
na perceber que não esta só, e a estimula a frequentá-los
as famílias, embora ocorram peculiaridades relacionadas
para obter mais uma fonte de ajuda e, por conseguinte,
às características da doença e ao tipo de família.
ser uma fonte de apoio intra e interfamiliar.
Na incerteza da nova jornada, as famílias das
A família do idoso sente necessidade de uma rede
crianças com doença crônica, dos adultos com câncer
de cuidados. Os cuidadores percebem suas limitações e
e dos idosos com demência, ao reconhecerem que algo
sobrecarga. O conforto vem no sentido de não se deixar
anormal está ocorrendo com a saúde de seu familiar,
entregar à desilusão e ao pessimismo. Interiorizam a
umas mais rápidas que outras, iniciam um trajeto a
ideia de que estão fazendo todo o possível para melhorar
fim de compreender o que está acontecendo e buscar
a qualidade de vida do idoso. Acreditam que realizar o
a cura. Com as famílias dos alcoolistas, no entanto,
bem e cuidar do seu ente querido trará uma recompensa
ocorre uma negação da doença e, portanto, não há
divina e uma condição de consciência tranquila para con-
busca pela cura.
tinuar seguindo no cuidado. Segundo alguns autores, na
As famílias das crianças com doença crônica, dos
cultura brasileira, o cuidado ao idoso fragilizado em geral
adultos com câncer e dos idosos com demência, ao
é realizado pela família e, na escolha do cuidador familiar
constatarem o diagnóstico de uma doença crônico-
do idoso, levam-se em conta vários aspectos culturais,
degenerativa, vivenciam inúmeras incertezas e expecta-
como o grau de parentesco (filhos), o gênero (mulher) e
tivas sobre a evolução da doença, o seu prognóstico e as
a proximidade física entre eles (morar perto), e o cuidado
possíveis intercorrências que surgem durante o seu curso.
ao idoso é visto, em muitas famílias brasileiras, como uma
Esses fatores são responsáveis pela mudança radical de
obrigação filial (Santos; Rifiotis, 2003).
suas vidas para enfrentar os desafios e se readaptar a
Na convivência com a doença, as famílias viven-
outras possibilidades de projetar o cuidado, passando a
ciam um aumento gradativo dos problemas e, quando
vivenciar uma nova dinâmica familiar. Há uma deses-
se tornam demasiadamente pesados, recorrem à fé, às
truturação da rotina e estilo de vida familiar, mudanças
orações e práticas religiosas. Anseiam por auxílio para
nos vínculos e relacionamentos entre os membros.
superar os momentos difíceis e alimentam a possibilidade de concretizar o milagre da cura.
As formas de enfrentamento são muito particulares
e dependem do contexto de cada família. Há a neces-
Os resultados mostram que a vivência da doença
sidade de um período de adaptação, e várias mudanças
crônica na família caracteriza-se como um processo de
ocorrem na estrutura e funcionamento das famílias. Os
interação que ocorre com o doente, com o contexto
recursos sociais e de apoio são acionados.
familiar e com a rede de apoio em diferentes graus e
A vivência das famílias diante da doença crônica
momentos, configurando-se como um processo dinâ-
gera muito sofrimento em todas as famílias estudadas.
mico e interativo.
Os comportamentos são afetados e as faculdades psico-
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FERREIRA, N.M.L.A.; DUPAS, G.; FILIZOLA, C.L.A.; PAVARINI, S.C.I.
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Doença crônica: comparando experiências familiares
lógica, física, mental e social são estremecidas. Vivenciar
Os profissionais de saúde precisam considerar a
a doença crônica na família é um processo. Todos os
relação da família com todos os contextos e vislumbrar
membros sofrem as consequências, ninguém fica isento
alternativas frente a questões de ordem sociocultural
de ser atingido e influenciado. Percebemos, no entanto,
visando à promoção da saúde. Nesse sentido, uma das
que são formas diferentes de sentir. No caso de crianças
atribuições dos enfermeiros é apontar para as famílias os
e adultos com câncer, o familiar se coloca no papel de
prováveis provedores de apoio social, para que, conhe-
cuidador com muita doação e desejo de compartilhar
cendo, possam se beneficiar dos recursos disponíveis. A
aquele sofrimento de modo a diminuir a dor e o des-
compreensão da experiência da família, sua vulnerabili-
conforto do outro.
dade frente aos agravos à saúde e recursos sociais de apoio
Em nossa realidade brasileira, visando a melhorar a
para o enfrentamento das situações de cronicidade pode
qualidade na assistência à saúde das famílias, o Sistema
contribuir para o aprimoramento de políticas públicas,
Único de Saúde (SUS) tem buscado alternativas, como
melhorando assim a vida familiar.
a Estratégia de Saúde da Família (ESF), que visa a mudanças do padrão de atenção à saúde. Essa estratégia
prevê a assistência domiciliar à saúde, lançando mão
R E F E R Ê N C I A S
da visita domiciliar como forma de instrumentalizar
os profissionais para sua inserção e o conhecimento da
vida da população e estabelecimento de vínculos com
ela e assim poder intervir.
Esse serviço se insere nas chamadas redes sociais caracterizadas por interligar os indivíduos que
possuem vínculos sociais entre si, permitindo que os
recursos de apoio fluam. A rede social é uma dimensão
estrutural ou institucional associada a um indivíduo,
como: vizinhança, organizações religiosas, sistema de
saúde e escola.
Outra rede social do município onde essas famílias
residem são os Centros de Referência de Assistência
Social (CRAS) e os Centros Comunitários, que são
serviços sociais públicos e locais de execução das ações de
proteção social básica da assistência social, cujo objetivo
é prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do fortalecimento
de vínculos familiares e comunitários. São propostos
programas, projetos, serviços e benefícios destinados à
população em situação de vulnerabilidade social decorrente de pobreza, privação e/ou fragilização de vínculos
afetivo-relacionais e de pertencimento social.
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Recebido: Fevereiro/2010
Aceito: Abril/2010
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 236-247, abr./jun. 2010
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ARTIGO DE OPINIÃO
/
OPINION ARTICLE
Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde
da Família em grandes centros urbanos*
Potentialities and challenges of the family health strategy consolidation in major urban
centers of Brazil
Ligia Giovanella1, Maria Helena Magalhães de Mendonça1, Sarah Escorel1, Patty Fidelis de Almeida1,
Márcia Cristina Rodrigues Fausto1, Carla Lourenço Tavares de Andrade1, Maria Inês Carsalade Martins1,
Mônica de Castro Maia Senna 2, Maristela Chitto Sisson3,
Escola Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca da Fundação Instituto
Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).
[email protected]
[email protected]
[email protected]
[email protected]
[email protected]
[email protected]
[email protected]
RESUMO O presente artigo objetivou destacar fatores que condicionam a efetiva
Universidade Federal Fluminense (UFF).
[email protected]
gestores e gerentes da SMS e de outras secretarias municipais. Identificou-se uma série de
1
2
Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC).
[email protected]
3
implementação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos, indicando
potencialidades e obstáculos com base em resultados de estudos de caso realizados em
2008 em quatro capitais com experiências consolidadas da SF: Aracaju, Belo Horizonte,
Florianópolis e Vitória. O eixo da pesquisa foi a integração da rede assistencial e a
intersetorialidade, aspectos cruciais para a implementação do programa, com análise feita
a partir de uma abordagem qualitativa e da avaliação de conteúdo das entrevistas com
fatores facilitadores e limitantes para a consolidação da Estratégia Saúde da Família,
possibilitando a formulação de recomendações mais gerais.
PALAVRAS-CHAVE: Atenção Primária em Saúde; Integração da rede;
Intersetorialidade, Modelo assistencial; Programa Saúde da Família.
ABSTRACT The present paper aimed to identify the factors that allow the effective
implementation of the Family Health Strategy in major urban centers, indicating potentialities
and challenges based on results of case studies carried out during 2008 in four Brazilian
cities with consolidated Health Family experience: Aracaju, Belo Horizonte, Florianópolis,
and Vitória. The research conductor was the integration of health assistance systems and the
intersectoriality, both crucial aspects for the implementation of the program, with analysis
performed based on qualitative approach and assessment of the content of interviews conducted
with managers of Health Secretaries and other municipal secretaries. A series of limiting and
facilitating factors was identified, thus allowing general recommendations.
KEYWORDS: Primary Health Care; Integration; Intersectorality; Care model;
Family Fealth Program
*Este artigo de opinião baseia-se em resultados de pesquisa realizada com financiamento do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010
GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.;
MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
I N T R O D U ç ão
populações de baixa renda, ampliando as desigualdades
em saúde. Recentemente, em contexto democrático, com
a assunção de governos de centro-esquerda, diversos países
Comparações internacionais mostram que uma ro-
na América Latina vêm desenvolvendo políticas que visam
busta Atenção Primária em Saúde (APS), com serviços de
a revitalização e fortalecimento da Atenção Primária em
primeiro contato integrados à rede assistencial com oferta
Saúde como estratégia para organizar o sistema de serviços
ampla de ações e estabelecimento de vínculo longitudinal,
de saúde e promover a equidade.
promove impactos positivos sobre a situação de saúde,
Recentes iniciativas da OPAS e OMS de ‘renovação
produz ganhos de eficiência e melhora o desempenho do
da APS’ orientam-se em parte segundo estas premissas.
sistema de saúde como um todo (Kringos et al., 2010;
O relatório da Organização Mundial da Saúde de 2008
Macinko; Starfield; Shi, 2003; Starfield; Shi, 2002)
tem por tema a renovação da Atenção Primária em Saúde
Na América Latina, pelo contrário, uma abordagem
como coordenadora de uma resposta integral em todos os
seletiva de atenção primária tornou-se hegemônica no con-
níveis de atenção, integrando um conjunto de reformas
texto das estratégias macroeconômicas de ajustes estruturais
para a garantia de cobertura universal (Quadro 1) (WHO,
dos anos 1980 e 1990, e as agências multilaterais difundi-
2008). O Informe da OMS distancia-se das iniciativas de
ram a implementação de uma cesta mínima de serviços para
atenção primária seletiva ao propor uma resposta integral às
Quadro 1 - Relatório Mundial da Saúde 2008 – Como a experiência mudou o rumo do movimento da Atenção
Primária em Saúde no mundo
Primeiras tentativas de implementação da APS
Preocupações atuais das reformas de APS
Amplo acesso a um pacote básico de intervenções em saúde e a
medicamentos essenciais para as populações rurais pobres
Transformação e regulamentação dos sistemas de saúde existentes,
com o objetivo de acesso universal e da proteção social da saúde
Concentração em saúde materno infantil
Preocupação com a saúde de todos os membros de uma comunidade
Focalização em pequeno número de doenças selecionadas, principal- Resposta integral às expectativas e necessidades das pessoas, alarmente infecciosas e agudas
gando o espectro de riscos e de doenças cobertas
Melhorias em higiene, água, saneamento e educação para a saúde das Promoção de estilos de vida mais saudáveis e mitigação dos efeitos
comunidades
dos riscos sociais e ambientais
Tecnologias simples para trabalhadores de saúde comunitários, não
profissionais e voluntários
Equipes de trabalhadores da saúde para facilitar o acesso e o uso
apropriado das tecnologias e dos medicamentos
Participação vista como a mobilização de recursos locais e a gestão
de centros de saúde através de comitês de saúde locais
Participação institucionalizada da sociedade civil no diálogo sobre
políticas e mecanismos de responsabilização e prestação de contas
Serviços financiados e prestados pelo governo, com gestão centralizada e de cima para baixo
Sistemas de saúde plurais num contexto globalizado
Gestão da crescente escassez e redução de postos de trabalho
Orientação de aumento dos recursos para a saúde para alcance de
cobertura universal
Ajuda e assistência técnica bilaterais
Solidariedade global e aprendizagem conjunta
Atenção primária como a antítese do hospital
Atenção primária como coordenadora de uma resposta integrada em
todos os níveis
APS é barata e requer apenas um modesto investimento
APS não é barata: requer investimentos consideráveis, mas é mais
eficiente do que qualquer outra alternativa
Fonte: extraído de OMS, 2008: xvi. Disponível em: http://www.who.int/whr/2008/whr08_pr.pdf
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010
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GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.;
MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
necessidades da população, alargando o espectro de riscos
da população de um determinado território coordena
e de doenças cobertas e ao propugnar a atenção primária
cuidados integrais e incentiva a participação social – tem
como coordenadora de uma resposta integrada em todos
potencialidade para enfrentar os desafios contemporâ-
os níveis: não mais um programa ‘pobre para pobres’.
neos dos sistemas de saúde.
Não se trata apenas de reconhecer que a APS é mais
Indução financeira federal sustentada impulsio-
eficiente do que qualquer outra alternativa. O consenso
nou a gradual difusão da Estratégia SF. Estima-se uma
sobre a necessidade de fortalecer a APS, seja em países
cobertura atual (2010) de cerca de 50% da população
centrais ou em países periféricos, decorre da constatação
nacional com mais de 30 mil equipes de Saúde da Fa-
de que o modelo hegemônico de atenção à saúde – frag-
mília implantadas em território nacional. A Pesquisa
mentado, baseado na especialização progressiva da prática
Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Saúde
médica, desenvolvido para responder aos episódios agudos
2008 corroborou estes resultados: 50,9% da população
– não consegue enfrentar os atuais desafios decorrentes das
brasileira, em 2008, vivia em domicílios cadastrados
mudanças do perfil demográfico e epidemiológico com
pelo PSF.
predomínio de agravos crônicos. A APS, atualmente, é
A implementação inicial do PSF foi mais rápida e
reconhecida como a resposta mais adequada aos atuais
alcançou maior cobertura na região nordeste e municí-
desafios de morbi-mortalidade. Não se trata mais de
pios menores, encontrando dificuldades para expansão
‘curar’ apenas, mas postergar para idades mais avançadas
em grandes centros urbanos, o que vem sendo incen-
o surgimento das enfermidades, acompanhar e cuidar.
tivado pelo MS na última década. Segundo dados da
Responder aos agravos crônicos exige promover a saúde,
PNAD Saúde 2008, o PSF cobre 67,7% da população
retardando seu início, acompanhar os portadores ao longo
da região nordeste e 38,5% da região sudeste.
do tempo, criar vínculos, coordenar o uso dos diversos
Desde a instituição do incentivo financeiro em
serviços de saúde necessários – atributos essenciais de bons
1998 (PAB-variável), a cobertura do PSF tem sido
serviços de atenção primária.
progressivamente expandida de forma sustentada ao
No Brasil, desde meados da década de 1990, uma
longo do tempo, contudo, nos últimos três anos a evo-
nova abordagem em Atenção Primária em Saúde vem
lução tem sido mais lenta. No momento atual, parece
sendo fortemente induzida pelo governo federal: o
prevalecer certa dubiedade da política federal quanto ao
Programa Saúde da Família (PSF). Inicialmente criado
modelo assistencial para a atenção básica no país. Com
como programa seletivo e focalizado no processo de
o propósito de desafogar as emergências dos hospitais
implantação, o PSF foi ampliando seu escopo, sendo
de grandes centros urbanos, o Ministério da Saúde vem
assumido na Política Nacional de Atenção Básica em
incentivando com recursos financeiros específicos a
Saúde de 2006 como a estratégia prioritária para re-
instalação paralela de outros serviços de primeiro con-
orientação do modelo assistencial na atenção básica,
tato: as Unidades 24 horas de Pronto-Atendimento, as
passando a incorporar os atributos de uma APS inte-
chamadas UPAs. Ainda que sejam definidas pelo MS
gral. Desse modo, o modelo assistencial proposto para
como estruturas de complexidade intermediária entre
a Estratégia de Saúde da Família – ao ter como núcleo
as unidades básicas de saúde e as portas de urgência
uma equipe multiprofissional com médico e enfermeiro
hospitalares, devendo proceder ao acolhimento e clas-
generalistas, de fácil acesso/primeiro ponto de atenção,
sificação de riscos para priorizar os atendimentos de
que cria vínculos e se responsabiliza pela atenção à saúde
maior urgência (Portaria GM/MS 1020 de 13.05.2009),
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010
GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.;
MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
sua articulação com a rede de atenção básica não está
responder às perguntas da investigação, articulando as
estabelecida. Assim, tornam-se modelo competitivo à
perspectivas de gestores, profissionais das equipes e famí-
Saúde da Família como serviço de procura regular. O
lias cadastradas. O uso de métodos mistos em avaliação de
modelo assistencial do pronto-atendimento das UPAs
políticas é cada vez mais frequente com propósitos tanto
corresponde ao modelo tradicional da nossa antiga
de triangulação para melhorar a validade dos resultados,
assistência médica previdenciária de ‘queixa – consulta’
em que diferentes métodos são utilizados para medir
ou melhor ‘sintoma – receita de medicamento sintomá-
um mesmo fenômeno, como de complementaridade
tico’. Ainda que possa garantir um atendimento mais
para uma compreensão mais abrangente de fenômenos
oportuno – característica da atenção muito prezada pela
complexos, ou ainda para expansão do escopo do estudo,
população –, o modelo UPA responde apenas a casos
permitindo a análise dos processos de implementação por
agudos ou episódios de agudização de agravos crônicos
meio de métodos qualitativos e a avaliação de resultados
sem possibilitar seguimento. Não atende a qualquer
por métodos quantitativos (Greene, 2007).
outro atributo da Atenção Primária em Saúde, como a
Na pesquisa, o processo de implementação e
criação de vínculos e acompanhamento longitudinal, a
as estratégias da gestão municipal de saúde para a
coordenação da atenção, a integralidade, a territoriali-
integração da rede assistencial e a intersetorialidade
dade ou orientação comunitária. São estes os atributos
foram estudadas com base em abordagem qualitativa
da APS que compõem a Estratégia de Saúde da Família,
com análise de conteúdo das entrevistas com gestores
mas não presentes nas UPAs, que permitem impactos
e gerentes da SMS e de outras secretarias municipais
positivos em saúde e a efetividade da atenção primária
(77). Estudos transversais com amostras de profissionais
no enfrentamento dos agravos crônicos.
das equipes de Saúde da Família (ESF) permitiram
O presente artigo tem por objetivo destacar fatores
examinar as experiências e perspectivas de médicos
que condicionam a efetiva implementação da Estratégia
(224), enfermeiros (261), auxiliares de enfermagem
Saúde da Família em grandes centros urbanos indicando
(264) e agentes comunitários de saúde (587). Um total
potencialidades e obstáculos, com base em resultados de
de 1.336 profissionais respondeu os questionários. As
estudos de caso, realizados em 2008, em quatro capitais
experiências e avaliação dos usuários foram coletadas
com experiências consolidadas da SF (com cobertura
por meio de inquérito de base domiciliar em amostra
populacional maior de 60% e implantação há mais de
representativa de famílias cadastradas. Foram realizadas
cinco anos): Aracaju, Belo Horizonte, Florianópolis e
entrevistas com 3.311 famílias (Aracaju – 800, Belo
Vitória.
Horizonte – 900, Florianópolis – 789, Vitória – 822).
A pesquisa teve como eixos de análise a integração
O trabalho de campo ocorreu entre maio e setembro de
da rede assistencial e a intersetorialidade, aspectos cru-
2008 e a pesquisa teve financiamento do DAB/SAS/MS
ciais para a implementação de uma Atenção Primária
(Giovanella et al., 2009).
em Saúde robusta que garanta atenção integral e priorize
a promoção da saúde.
A discussão articulada dos resultados da pesquisa
desde as perspectivas dos gestores, dos profissionais das
Os estudos de caso realizados corresponderam a
equipes de saúde da família e das famílias permitiu iden-
uma estratégia de pesquisa alicerçada em metodologias
tificar uma série de fatores facilitadores e limitantes para
quantitativa e qualitativa com base em diversas fontes de
a consolidação da Estratégia Saúde da Família, possibili-
informação convergentes que foram trianguladas para
tando a formulação de recomendações mais gerais.
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252
GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.;
MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
Neste artigo, são apresentados os principais fatores
a porta de entrada preferencial e fonte de cuidado regu-
condicionantes da consolidação da Estratégia Saúde da
lar para assistência ou prevenção, o que é proposto por
Família e práticas identificadas que podem subsidiar a
gestores, reconhecido pelos profissionais e experienciado
implementação de políticas municipais e a reorientação
pelas famílias.
da política nacional para a garantia de atenção primária
Nas cidades estudadas, a concepção substitutiva
integral em saúde. A análise dos fatores selecionados está
de modelo assistencial da SF implicou a implantação
organizada em três eixos: integração da rede, interseto-
de três a sete ESF nos centros de saúde preexistentes,
rialidade e gestão do trabalho.
promovendo a reorganização interna destas unidades,
com a manutenção de profissionais médicos das especialidades básicas, outros serviços como coleta de material
INTEGRAÇÃO DA REDE ASSISTENCIAL
para exames, pessoal administrativo e gerência profissional, como apoio às equipes. Esta estratégia facilita
a constituição da Unidade de Saúde da Família (USF)
A análise da integração da Estratégia Saúde da
como porta de entrada e serviço de procura regular
Família com os demais níveis de atenção congregou as
que articula o atendimento a demandas programadas
dimensões: posição da Estratégia de Saúde da Família
e espontâneas e pode incrementar a resolutividade da
na rede assistencial como porta de entrada preferencial
Estratégia SF ao atender melhor o conjunto de neces-
e serviço de procura regular; estratégias de integração da
sidades da população.
rede incluindo os mecanismos de regulação e a gestão
A pesquisa com usuários mostrou que os ser-
do cuidado; o acesso à atenção especializada e serviços
viços de atenção primária têm se configurado como
de apoio diagnóstico e hospitalar; e disponibilidade de
a principal fonte de cuidado regular em três dos
informações sobre a atenção prestada.
municípios estudados. Mais de 70% das famílias
cadastradas nas quatro cidades (em Belo Horizonte
85%) dispõem de um serviço de procura regular.
Posição da Estratégia de Saúde da Família na rede
Dentre estas famílias, 75% em Belo Horizonte, 70%
assistencial como porta de entrada preferencial e
em Vitória, 70% em Aracaju e 50% em Florianópolis
serviço de procura regular
indicaram como seu serviço de procura regular o
Uma rede integrada pressupõe uma porta de
entrada preferencial que organize o acesso (Hartz;
centro de saúde/unidade de saúde da família (Giovanella et al., 2009).
Contandriopoulos, 2004). A existência de um ser-
A ESF estrutura o acesso à atenção especializada.
viço de primeiro contato, procurado regularmente a
O percurso mais comum de acesso às consultas espe-
cada vez que o paciente necessita de atenção em caso
cializadas – informado por gerentes e profissionais – é
de adoecimento e/ou acompanhamento rotineiro de
o agendamento realizado pela USF, seja no momento
sua saúde, e que funcione como filtro para acesso à
do encaminhamento ou com data posteriormente
atenção especializada, facilita a formação de vínculos e
informada ao usuário. Em Vitória e Belo Horizonte,
a coordenação dos cuidados.
mais de 60% dos usuários que consultaram especialistas
Os serviços de atenção básica com Estratégia de
Saúde da Família, nos casos estudados, estão se tornando
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010
nos últimos 12 meses informaram que a consulta com
especialista fora agendada pela USF.
GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.;
MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
Abrindo as portas da USF – adequado equilíbrio entre
demanda espontânea e no agendamento rotineiro das
respostas aos agravos agudos e crônicos
ações de acompanhamento (WHO, 2008).
O adequado atendimento da demanda espontânea
Um fator limitante à integração é a informalidade
articulado com as ações programáticas da demanda or-
da relação dos serviços de urgência e emergência (que
ganizada, por meio do acolhimento e do atendimento
ainda constituem importante porta de entrada para o
diário, facilita a constituição da USF como serviço de
sistema de saúde) com a USF e a ausência de fluxos de
procura regular e porta de entrada preferencial do sis-
contrarreferência, o que dificulta reduzir o número de
tema de saúde, deslocando a demanda dos serviços de
casos sem perfil para este tipo de atendimento. A au-
emergência hospitalar e de atenção especializada.
sência de contrarreferência para a APS é um importante
O atendimento restrito da demanda espontânea
problema a ser enfrentado pelos gestores locais.
nas USF para grupos não-prioritários, como identificado
Urge a articulação com as UPAs para agilizar aten-
em um dos municípios, com o estabelecimento de dia
dimentos de emergência encaminhados pelas USF e para
semanal específico, limita fortemente as possibilidades
garantir o retorno ou reencaminhamento dos usuários
de constituição das USF como serviço de procura regular
desde as UPAs até as suas Unidades Saúde da Família,
de sua população adscrita.
fortalecendo-as como serviços de procura regular e as
O estabelecimento de prioridades estritas para o
UPAs como estruturas intermediárias de atendimento às
atendimento de determinados grupos populacionais,
urgências. Horários de funcionamento estendidos até 19
ainda que facilite o acesso desses grupos com agravos
ou 22 horas e aos sábados e atendimento diário rotineiro
ou condições selecionadas, restringe o acesso às USF
da demanda espontânea são estratégias desenvolvidas nas
dos cidadãos não pertencentes aos grupos prioritários.
cidades estudadas para que a USF/CS se torne de fato ‘o
Essa priorização dificulta a conformação da USF
serviço de saúde’ da população cadastrada. Assim, a UPA
como porta de entrada preferencial ao sistema de
passa a ser serviço complementar de atendimento de urgên-
saúde e serviço de primeiro contato, atributo essen-
cias médicas que não podem ser resolvidas na USF e não
cial de uma APS robusta. Ademais, o atendimento
serviço de primeiro contato competitivo com a USF.
somente da demanda programada leva à redução
O desenvolvimento de estratégias de avaliação de
do volume de pacientes atendidos pela unidade de
riscos nas UPAs com encaminhamento para atendimen-
saúde, dificultando a busca ativa e o diagnóstico
to na USF dos pacientes de baixo risco (em contexto
precoce. Deixa-se de aproveitar as oportunidades
de USFs que também atendem demanda espontânea)
da atenção individual ao caso agudo para atuar nas
facilita a conformação da USF como porta de entrada
prioridades coletivas. Ou seja, redunda no fracasso do
e desafoga as unidades de emergência.
próprio programa prioritário que deixa de identificar
Capacitações específicas e a utilização dos protocolos
e retardar o acompanhamento necessário dos grupos
são estratégias importantes para melhorar a integração da
prioritários (Tejerina Silva, et al. 2009).
Saúde da Família com os serviços de emergência, bem
A articulação da demanda espontânea com a pro-
como a potencialização dos fluxos de informações entre
gramada se efetiva não apenas pela definição de horários
USF/CS e UPAs. A realização de estudos sobre as deman-
diários de atendimento, mas pela identificação de grupos
das mais atendidas por serviços de pronto-atendimento,
prioritários e realização das ações programáticas (promo-
com a identificação das áreas de adscrição de pacientes
cionais e preventivas) em cada contato/atendimento de
de baixo risco que buscam UPAs e das unidades básicas
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GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.;
MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
que mais encaminham para esses serviços, podem orientar
Por outro lado, a habilitação apenas na gestão
estratégias de qualificação dos profissionais e estratégias de
da atenção básica, em duas das capitais, impôs limites
acesso e revisão de atendimento da demanda espontânea
reais à integração da Atenção Primária em Saúde na
nas USFs de referência destes pacientes.
rede assistencial devido à baixa governabilidade do
município sobre parte dos serviços especializados, e
principalmente hospitalares, que permanecem sob
Estratégias de integração
A expansão de cobertura da Estratégia Saúde da
Família é obrigatória a reorganização da rede assistencial
gestão estadual, levando ao uso sub-otimizado de
recursos e da oferta pública existente no território
das capitais.
para garantir o acesso integral. Observa-se intensificação
A Programação Pactuada e Integrada (PPI) mostra-
dos processos regulatórios pelas SMSs, embora ainda
se insuficiente para reduzir a fragmentação entre as redes
seja necessário adequado monitoramento com o esta-
estadual e municipal, pois não há garantias de que as co-
belecimento de metas de desempenho e definição de
tas programadas de procedimentos especializados serão
indicadores para o acompanhamento das filas de espera
distribuídas entre as unidades de saúde municipais.
e garantias de acesso (Escorel et al., 2002; Giovanella
et al., 2009).
Na ausência de articulação com os prestadores
estaduais, a compra de serviços especializados da rede
O legado institucional conta a favor da imple-
privada para superar a insuficiência da oferta municipal
mentação da Estratégia Saúde da Família como centro
é estratégia nem sempre bem-sucedida, seja pela inexis-
ordenador e integrador da rede de serviços de saúde. O
tência de determinadas especialidades na cidade, seja
processo de aprendizado institucional proporcionado
pela baixa remuneração oferecida pela tabela SUS. Por
pela experiência na gestão do sistema municipal de
outro lado, a alternativa da gestão municipal de expansão
saúde produz acúmulos institucionais de tradição e
de oferta própria de atenção especializada por meio de
de disponibilidade da oferta de serviços de saúde e de
policlínicas regionalizadas amplia e facilita o acesso aos
capacidade técnica gerencial.
serviços de média complexidade, sem, contudo, incidir
O caso de Belo Horizonte ilustra este pressuposto. A habilitação como gestor semipleno pela NOB/
na fragmentação da rede assistencial do SUS presente
no território das capitais.
SUS/93 e, posteriormente, como gestor pleno do
sistema de saúde pela NOB/SUS/96, como correu em
Belo Horizonte, exigiu precocemente do município a
Ferramentas de regulação
condução da gestão do sistema nos diferentes níveis
A implantação do sistema informatizado de mar-
de complexidade, concedendo maior autonomia
cação e regulação de consultas e exames especializados
na condução de processos articuladores da rede de
(Sisreg) nas cidades estudadas facilitou a integração
serviços de saúde ao gestor municipal. A habilitação
do sistema por: possibilitar a marcação on-line de pro-
como gestor pleno do sistema implica investimentos
cedimentos na própria USF/centro de saúde, permitir
técnico-assistenciais, incluindo iniciativas de regulação
dimensionar o tamanho das filas de espera e identificar
da assistência por parte do município para gerenciar a
as especialidades com maior demanda, viabilizar o
atenção especializada, o que favorece a integração da
monitoramento de faltas às consultas marcadas e a de-
Saúde da Família à rede assistencial.
finição de prioridades clínicas. Desta forma, constitui
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GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.;
MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
importante instrumento de planejamento em diversos
âmbitos da gestão.
Atividades regulares de articulação entre diversas
gerências nas SMSs também podem propiciar a redução
O Sisreg possibilita à equipe de saúde da família
da fragmentação. A constituição de fóruns comuns
acompanhar o percurso do usuário no sistema de saúde
de discussão entre a atenção básica e especializada,
e tem proporcionado, segundo os gerentes, melhora no
como, por exemplo, Comitês Gestores, compostos
comparecimento, com diminuição do número de faltas
pelos gerentes das SMSs e de serviços de distintos
às consultas especializadas, uma vez que os procedimen-
níveis assistenciais, facilita a troca de informações en-
tos não são agendados para datas tão distantes, além de
tre a atenção especializada, a atenção básica e demais
ter reduzido a interferência de funcionários responsáveis
setores da saúde, com potencialidade para superar a
pela marcação no acesso privilegiado às especialidades.
distância entre gestores e profissionais dos diferentes
O monitoramento dos encaminhamentos feitos pe-
níveis assistenciais.
las ESF por meio da elaboração de relatórios com as listas
Estratégias de territorialização para o cuidado à
de espera pode subsidiar a definição das especialidades
gestante têm habilitado a Saúde da Família a assegurar
com necessidades de contratação/expansão da oferta.
a atenção à maternidade e parto. A maioria dos médicos
Apesar desses avanços, persistem dificuldades de
que participou do estudo afirmou conseguir realizar
acesso à atenção especializada, provocadas por déficits de
sempre ou na maioria das vezes o agendamento para a
oferta e, em certa medida, por dificuldades de contrata-
maternidade (86% em Belo Horizonte, 78% em Flo-
ção/ fixação de especialistas, mesmo os concursados.
rianópolis, 74% em Vitória).
Uma boa organização da rede não prescinde do
O acesso à atenção especializada pode ser facilitado
equacionamento adequado da oferta. A garantia do
pela melhor qualificação das demandas dos profissionais
agendamento possibilitado pelos sistemas de regula-
da ESF por meio de capacitações específicas, definidas
ção não é suficiente para assegurar maior agilidade no
com base em monitoramento dos encaminhamentos
atendimento. As dificuldades de regulação e de oferta se
realizados. A função de filtro por parte do generalista, em
refletem na avaliação dos médicos da SF sobre elevados
situação de baixa qualificação técnica e de inexperiência
tempos de espera. Por exemplo, um tempo médio de
desse profissional, pode incorrer em burocratização ex-
espera para consultas especializadas de três meses e mais
cessiva e no aumento do número de encaminhamentos
foi estimado por 82% dos médicos das ESF em Floria-
desnecessários.
nópolis, 61% em Belo Horizonte, 45% em Aracaju e
34% em Vitória (Giovanella et al., 2009). Chama a
atenção, contudo, que metade dos usuários encaminha-
Gestão do cuidado
dos ao especialista pelo médico da ESF nos últimos 12
A construção de linhas de cuidado e o estabele-
meses informou tempo de espera inferior a 30 dias em
cimento de protocolos, ao organizar a trajetória do
Aracaju, Belo Horizonte e Vitória.
usuário na rede de serviços de saúde e recomendar
Todavia, a demora na marcação de consultas e
ações, facilita a coordenação dos cuidados definindo
exames e a insuficiência de profissionais foram os pontos
fluxos, responsabilidades e normas para solicitação de
negativos da SF mais mencionados pelas famílias, cor-
procedimentos e referências, além de permitir atuação
roborando a necessidade de maior agilidade nos fluxos
mais efetiva e resolutiva. O processo compartilhado
entre os diferentes níveis do sistema local de saúde.
de elaboração de protocolos e linhas de cuidado
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MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
por profissionais de diversos níveis assistenciais,
linhas de cuidado. Em Aracaju, a existência de uma co-
entidades profissionais e gestores facilita o diálogo e
ordenação da gestão do cuidado diretamente vinculada
a cooperação entre especialistas e generalistas, a co-
ao secretário municipal de saúde expressa a centralidade
ordenação dos cuidados e a adesão dos profissionais
da questão na agenda municipal e um esforço de insti-
às diretrizes estabelecidas com sua incorporação na
tucionalização desse processo.
prática diária.
A introdução da consulta pública e de outras
ferramentas de participação e de transparência no
Acesso a serviços de apoio diagnóstico e terapêutico
processo de elaboração de protocolos legitima decisões
(SADT)
e opções, além de quebrar resistências à sua imple-
No caso dos SADT, sua marcação e regulação pelo
mentação. Sua revisão periódica permite a adaptação
Sisreg têm possibilitado os mesmos avanços que os das
às necessidades locais.
consultas especializadas e apresentado os mesmos limites
A adesão dos profissionais, tanto da atenção básica
da falta de integração entre prestadores municipais e
como da atenção especializada, é condicionada por seu
estaduais. Cabe destacar a existência de longo tempo
envolvimento em todo o processo e pode ser reforçada
de espera para alguns procedimentos.
pela elaboração de manuais explicativos e capacitação
Capacitações específicas e a utilização dos proto-
específica. A rotatividade dos profissionais é um entrave
colos podem ser estratégias importantes para qualificar
ao processo de capacitação e, consequentemente, ao uso
as solicitações de procedimentos de apoio diagnóstico.
dos protocolos implantados.
Nas diversas cidades, gestores identificam um excesso de
O matriciamento, utilizado também como ferramenta para supervisão e desenvolvimento profissional
pedidos de exames, pelos médicos das ESF, sem critérios
definidos e sem justificativa clínica.
continuado, é estratégia com potencial para aproximar
Da mesma forma, a atribuição de competência
o especialista e os profissionais de atenção básica, qua-
da solicitação de exames aos enfermeiros qualifica e
lificando-os clinicamente e trabalhando as dificuldades
aumenta a resolutividade clínica do trabalho desses
encontradas pelas equipes em seu próprio espaço laboral.
profissionais, mas deve ser monitorada para evitar soli-
A implantação de equipes matriciais em saúde mental é
citações desnecessárias.
um exemplo de fator facilitador da coordenação desse
O acesso a exames de patologia clínica é facilitado
tipo de cuidado com a responsabilização das ESF por
pela constituição de postos de coleta de material para
meio da organização de fluxos, da discussão de caso e do
exames em todas as USF, pela existência de laboratório
estabelecimento de projetos terapêuticos singulares.
próprio municipal e pela definição de fluxos e metas de
A coordenação dos cuidados pela ESF nem sempre
desempenho. É possível reduzir demoras por meio da
é reconhecida e carece de maior desenvolvimento. A
definição de tempos máximos para retorno de resultados
preocupação com a coordenação dos cuidados em âm-
dos exames à USF e sua entrega ao paciente.
bito gerencial por vezes se reverte em ações concretas,
A definição de cotas físicas de serviços especializa-
porém, em geral dirigidas a poucos grupos específicos,
dos distribuídas igualmente para todos os territórios de
como na atenção ao parto ou à saúde mental. É preciso
saúde afetam potencialmente as iniquidades de acesso,
definir as ações de coordenação como competência e
contudo devem estar condicionadas por critérios epide-
responsabilidade da ESF nos protocolos assistenciais e
miológicos de necessidade.
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MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
A ampliação do acesso ao apoio diagnóstico (rede
episódios e o acesso do paciente aos vários serviços.
laboratorial) e terapêutico (assistência farmacêutica am-
Todavia, envolve o estabelecimento de infraestrutura
pliada), acompanhada de qualificação em competências
computacional, redes ágeis e manutenção adequada e
específicas de ‘núcleo técnico’ dos profissionais, possibili-
permanente.
ta aumentar a resolutividade da atenção básica, efetivá-la
O prontuário eletrônico utilizado por profissionais
como serviço de procura regular e reduzir a necessidade
de toda a rede assistencial possibilita que o médico da
de referências para a atenção especializada.
Saúde da Família receba a contrarreferência logo após a
consulta com o especialista. Por outro lado, este tipo de
registro tem deslocado a organização dos prontuários fa-
Garantia de acesso à atenção hospitalar
miliares para fichas individuais, o que pode incidir sobre
A ausência de regulação dos serviços hospitalares
a atenção dirigida às famílias, reduzindo a compreensão
impede a definição de fluxos e o acompanhamento dos
do enfoque familiar da Estratégia Saúde da Família.
pacientes, minando o exercício das funções de coorde-
Ferramentas de informática poderiam ser desenvolvidas
nação dos cuidados pelas equipes de SF.
para permitir a composição de prontuários eletrônicos
A inexistência de central municipal de regulação de
familiares a partir das entradas individuais.
leitos e internações e de fluxos formais para internações
A implementação de Tecnologias de Informação e
dificulta o acesso dos pacientes, impede o monitora-
Comunicação que dão suporte à diretriz de integralidade
mento sistemático de filas de espera e a definição de
do cuidado implica novas tarefas administrativas de regis-
prioridades clínicas. A não-informatização da central de
tros e solicitações para os profissionais, o que pode causar
controle de leitos é barreira adicional para o acesso do
resistência por serem instrumentos que transferem aos
usuário às cirurgias eletivas. A ausência de regulação dos
profissionais de saúde a responsabilidade direta dos agen-
serviços hospitalares pelo município, que permanecem
damentos e dos encaminhamentos de cada paciente para
sob gestão estadual, faz com que, para parte das cirurgias
exames e tratamentos. Nesse sentido, pode ser necessária a
eletivas, o próprio usuário seja responsabilizado pela
criação de incentivos específicos para seu uso e adesão.
busca do atendimento na rede hospitalar, com base no
Em síntese, a integração da ESF à rede assistencial
encaminhamento feito pelo médico da Saúde da Família,
é facilitada por adequadas estratégias de gestão e qualifi-
que desconhece o percurso posterior do paciente.
cação profissional, e está limitada pela disponibilidade de
oferta especializada, pela fragmentação da rede assistencial
entre diversos prestadores e pela ausência de uma política
Disponibilidade de informações sobre a atenção prestada
nacional para a garantia da atenção especializada.
A disponibilidade e a transferência de informações
A resistência dos prestadores privados contratados
são fundamentais para a coordenação e regulação da
pelo SUS à regulação é um entrave para a integração,
atenção, o que é reconhecido pelos gestores que vêm
dificultando a relação e o contato entre profissionais de
informatizando as unidades e implantando prontuá-
atenção especializada e primária, bem como o retorno do
rios eletrônicos. A implantação destes prontuários com
paciente para acompanhamento longitudinal pela ESF.
acesso on-line e a anotação por diversos profissionais
No contexto de uma rede assistencial organizada, a con-
e serviços, contribui para aprimorar a qualidade dos
tratação de serviços privados implica novas estratégias
registros e a continuidade informacional entre diversos
de regulação, de modo a garantir a contrarreferência e
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MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
a comunicação entre profissionais dos diversos serviços,
sas ações e o enfrentamento articulado de problemas
sejam eles públicos ou privados.
identificados como prioritários, além de propiciar o
reconhecimento mútuo dos vários técnicos e gestores de
diferentes setores atuantes em cada território e a sinergia
INTERSETORIALIDADE
de ações que garantam a efetividade do atendimento
aos munícipes.
As Câmaras Territoriais, como constituídas em
Ações intersetoriais buscam enfrentar a fragmen-
Vitória, são fóruns permanentes de caráter deliberativo,
tação das políticas públicas, potencializam a efetividade
de discussão dos principais problemas do território e
das intervenções e abrem a possibilidade de responder
de integração das políticas públicas através da interface
aos determinantes mais gerais dos processos saúde-
entre as secretarias e a otimização dos recursos humanos,
doença. Na perspectiva da atenção primária no âmbito
financeiros, materiais, organizativos e políticos. Suas
municipal, a atuação intersetorial deve se processar
decisões são viabilizadas pelo Comitê de Políticas Sociais,
em diversos níveis: na ação comunitária do território
composto por gestores das diversas secretarias, como:
integrando ações sociais e fortalecendo a participação
educação, saúde, assistência social, cidadania e direitos
social; na articulação no interior da SMS e com outras
humanos, trabalho e geração de renda, cultura, esporte
secretarias; na integração das políticas municipais para
e lazer, segurança e Projeto Terra Mais Igual.
enfrentar determinantes sociais dos processos saúdeenfermidade.
Assim como as Câmaras Territoriais, a constituição
de Conselhos Gestores Regionais no âmbito municipal
cria espaços de articulação entre serviços de saúde e
outros serviços sociais no território, permite a discussão
Articulação com outros setores de políticas públicas
A abrangência e as estratégias de ação intersetorial
nas cidades estudadas são diversificadas, incluindo desde
coletiva de todos os problemas de determinado território
e contribui para a redução da fragmentação das redes de
serviços públicos e de serviços de saúde.
atuação restrita a projetos específicos de menor abran-
Na ausência de uma modalidade integrada de
gência até ação integrada municipal, como nos casos de
atuação governamental, por outro lado, a constituição
Vitória e Belo Horizonte (Giovanella et al., 2009).
de diversos grupos de trabalho intersetoriais, cada
Iniciativas de atuação intersetorial que respondem
qual vinculado a um projeto específico, pode trazer
a uma política municipal e à modalidade integrada de
dificuldades gerenciais adicionais. Se essas comissões
atuação governamental são mais abrangentes e poten-
representam, de um lado, ganhos ao propiciar a dis-
cialmente mais efetivas do que aquelas relacionadas a
cussão e a tomada de decisão conjunta entre os setores
projetos específicos ou emergenciais, produzindo um
envolvidos, por outro lado podem gerar uma profusão
contexto favorável para uma ação mais efetiva da ESF.
de espaços coletivos que tendem a dispersar as ações no
A presença de políticas municipais integradas de
município em vez de responder a um esforço integrado
abrangência municipal, com a constituição de fóruns
de intervenção pública.
intersetoriais regionais como espaços permanentes de
Todavia, o contexto favorável de articulação
articulação das várias secretarias/setores atuantes no
intersetorial de políticas públicas integradas não é
território, facilita a ação e a integração da saúde nes-
suficiente para intensificar as iniciativas intersetoriais
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MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
desencadeadas pelo setor saúde. Gestores identificam
Ação comunitária das ESF
a necessidade de maior empreendedorismo e de ini-
O território local é a base das iniciativas de ar-
ciativas da saúde que empreguem seu potencial em
ticulação intersetorial e as ESF têm importante papel
pautar a política municipal. A necessidade de atuação
na identificação de situações de risco social e de saúde,
intersetorial mais articulada precisa ser introjetada no
além do potencial de consolidação das redes locais de
nível gerencial da SMS.
serviços sociais.
A estruturação da rede em base territorial facilita
Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) são
a ação intersetorial e a ação comunitária das ESF. A
reconhecidos por gestores de outros setores como im-
perspectiva de atuação intersetorial desde o início da
portantes no estabelecimento das parcerias intersetoriais
implantação da Estratégia SF possibilita o apoio efetivo
tanto por realizarem a divulgação das ações desenvolvi-
de outras secretarias, como sucede em Vitória.
das como também por conhecerem a comunidade na
Há limites para a atuação intersetorial das ESF
e a articulação intersetorial deve ser uma estratégia
qual atuam; com isso, podem identificar as necessidades
e demandas da população.
estruturante da política municipal. A extensão na qual
O agente comunitário de saúde é o agente faci-
o setor saúde toma a iniciativa e lidera a intervenção
litador para a identificação de problemas coletivos e
intersetorial para promover a equidade em saúde
para a mobilização comunitária. Dois terços dos ACS
depende do tipo de problema a enfrentar (PHAC,
em Aracaju, Florianópolis e Vitória realizam rotineira-
2008). O setor saúde deveria tomar a dianteira
mente levantamento de necessidade da população em
quando dispõe de conhecimentos e de experiência,
saneamento e meio ambiente, por exemplo.
como no caso de prevenção de doenças específicas e
Os casos estudados mostram que ainda há carência
da melhoria de acesso à atenção à saúde. Quando a
de desenvolvimento de parcerias para a sinergia da ação
iniciativa envolve problemas sobre os quais o setor
dos diversos agentes de saúde – comunitários, de ende-
saúde dispõe de conhecimento de medidas efetivas,
mias – atuantes no território, tendo como base as USF. A
mas não controla os meios para realizá-las, tal setor
exemplo do combate à dengue, planos de ação podem ser
deve tomar a liderança para promover tais estratégias
realizados em cada território e as intervenções, executadas
em estreita cooperação com outros setores. Todavia,
de forma conjunta por agentes ambientais e ACS, como
quando a iniciativa dirige-se a determinantes sociais
as visitas domiciliares e as de educação ambiental.
mais gerais, como a pobreza, por exemplo, o setor
Os Conselhos Locais de Saúde são espaços coleti-
saúde deve ser um parceiro, pois não controla os
vos de discussão conjunta no nível local que facilitam
meios para a ação (PHAC, 2008).
o envolvimento dos profissionais na ação comunitária;
O reconhecimento destes limites e de que a ação
contudo, a participação da população pode ser mais
intersetorial deve ser política de governo não reduz a
incentivada, ação que poderia ser responsabilidade
importância da ação comunitária local da ESF. Apenas
do ACS.
parte das ESF desenvolve diversas ações comunitárias
Chama a atenção que parte das famílias cadastradas
em conjunto com outros setores. A existência de alta
desconhecia o ACS e não fora por ele visitada. Nesse
proporção de profissionais que declararam não realizar
sentido, é recomendável monitorar a realização dessas
ações intersetoriais sugere a necessidade de estímulo a
visitas e estabelecer rotinas diferenciadas de visita de
essas práticas.
acordo com risco, presença de agravos crônicos etc.
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MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
Em bairros cuja população tem cobertura elevada
à equipe básica, em todas as USF. Esse profissional
por planos privados de saúde, é necessário adequar os
apoia a ação comunitária e amplia as possibilidades
processos de trabalho dos ACS, redimensionar quan-
de acolhimento e resposta da USF às necessidades
titativos, qualificar suas funções e estabelecer distintas
dos usuários.
prioridades como forma de aprimorar os serviços presta-
Todavia, a ação comunitária das ESF, ainda que
dos pela ESF. A ampliação da cobertura de SF para áreas
relevante, é desenvolvida apenas por parte das equipes.
de residência de grupos de classe média exige estratégias
De um terço a 58% dos profissionais participam de
diferenciadas para reduzir a resistência da classe média
atividades voltadas para a solução de problemas da
às ações da SF.
comunidade junto a outros órgãos. Entre 25% (médi-
As visitas domiciliares de ACS são uma atividade
cos em Belo Horizonte e Vitória) e 58% (enfermeiros
avaliada positivamente pelas famílias cadastradas. Entre
em Aracaju) realizam reuniões com a comunidade no
as famílias que receberam visitas, a atuação do ACS é
mínimo uma vez por mês.
bem avaliada no que se refere ao conhecimento dos
A ação comunitária da ESF implica a constituição
problemas de saúde da família e da comunidade, ao
de redes de serviços sociais em nível local, de modo que
estabelecimento de um bom relacionamento com as
o acesso à USF facilite a obtenção de outros serviços
pessoas acompanhadas e ao processo de orientação a
sociais. Implica minimamente a articulação dos setores
respeito de cuidados de saúde.
de saúde, educação e assistência social em nível local.
A organização de grupos pode ser uma oportuni-
O Programa Bolsa Família, com suas condicionalidades
dade para estimular a ação comunitária. Atividades de
em saúde e educação, pode ser um deflagrador dessa
grupos com usuários portadores de agravos específicos
articulação para uma ação integrada.
constituem uma prática incorporada pelas ESF de for-
Destacam-se como fatores limitantes para a atu-
ma rotineira, demonstrando um avanço em relação às
ação e mediação de ações intersetoriais pelas Equipes
ações tradicionais de atenção à saúde por intensificar
de Saúde da Família a insuficiente capacitação de seus
processos de educação em saúde e facilitar a criação de
profissionais para a ação comunitária e o excesso de
vínculos e adesão aos tratamentos. Importa alertar que
demandas assistenciais individuais, que consomem o
a participação em atividades de grupo, contudo, é por
tempo dos profissionais, dado o elevado número de
vezes colocada como exigência/barreira para acesso a
famílias sob responsabilidade de cada equipe.
determinados serviços, como métodos anticoncepcio-
O contexto favorável de articulação intersetorial
nais, por exemplo; prática de cunho autoritário que
com presença de políticas municipais integradas não é
de fato restringe a adesão aos programas que pretende
suficiente para intensificar as iniciativas intersetoriais
incentivar. Atividades de grupos como de antitabagismo,
desencadeadas pelo setor saúde. Gestores identificam
hipertensos e gestantes, além de ações de educação em
a necessidade de maior empreendedorismo e de ini-
saúde como palestras, e atividades para idosos e para a
ciativas da saúde empregando seu potencial em pautar
adolescência e juventude estiveram entre as principais
a política municipal com necessidade de introjetar
sugestões das famílias sobre atividades a serem oferecidas
no nível gerencial da SMS a necessidade de atuação
pelas Equipes de Saúde da Família.
intersetorial e incentivar o desenvolvimento de ação
Uma inovação da Estratégia SF em Aracaju é a
presença do profissional de serviço social no apoio
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comunitária e intersetorial pelas Equipes de Saúde
da Família.
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MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
GESTÃO DO TRABALHO EM SAÚDE
comunidade, saúde da família ou saúde coletiva limitam
o alcance das ações e a resolutividade da APS.
Estratégias de educação permanente e desenvol-
Os recursos humanos em saúde constituem,
vimento profissional contínuo com uso de tecnologias
reconhecidamente, um dos principais desafios para a
da informação e comunicação (TICs), como Telessaúde
implementação da Estratégia Saúde da Família tanto
(Tele-enfermagem, Telessaúde Bucal, Telemedicina),
no que diz respeito à formação e capacitação dos pro-
facilitam a qualificação dos profissionais para o exer-
fissionais para atuação nas ESF, quanto à sua adesão à
cício de suas funções específicas e para o uso de dire-
proposta da SF, vínculos trabalhistas e estratégias de
trizes assistenciais, além de contribuir para a melhoria
fixação de pessoal.
da resolutividade da USF e promover a comunicação
A gestão de trabalho em SF nas cidades estudadas
entre especialistas e generalistas, facilitando referências
tem buscado equacionar diversas dificuldades nestes
e a coordenação dos cuidados pela Atenção Primária
âmbitos, o que pode ser evidenciado por: busca pela re-
em Saúde.
gularização dos vínculos através da realização de concur-
A qualificação técnica em Atenção Primária em
sos públicos, investimento e valorização do processo de
Saúde de prática generalista é uma necessidade sentida
qualificação dos trabalhadores, adoção de mecanismos
pelos médicos que demandam com maior frequência ca-
de remuneração mais adequados por categoria e com-
pacitações clínicas dirigidas especificamente à categoria.
plementações via recompensas específicas para atuação
A competência técnica é uma das bases da resolutividade
em áreas de risco, alcançando tempo de permanência
e credibilidade dos profissionais de atenção primária
dos profissionais nas equipes mais elevado.
(Saltman; Rico; Boerma, 2006). A formação clínica
A realização de concursos públicos para substi-
específica contribui para reduzir os encaminhamentos
tuição dos quadros terceirizados em todas as categorias
aos especialistas e a solicitação de exames complemen-
profissionais tem sido uma preocupação recorrente dos
tares ao garantir maior segurança aos médicos quanto
gestores da saúde dos municípios estudados. Essa forma
aos diagnósticos e à terapêutica, além de melhorar a
de contratação vem possibilitando vínculos trabalhistas
qualidade do cuidado.
mais estáveis, com impacto positivo na fixação dos
A baixa credibilidade e o reconhecimento dos
profissionais na Estratégia Saúde da Família, ao mesmo
profissionais de atenção primária frente aos seus pares
tempo em que contempla a perspectiva de melhoria de
especialistas é obstáculo à coordenação dos cuidados por
desempenho das ações de saúde.
esse nível assistencial. Neste sentido, é recomendável
Na fase de consolidação da Estratégia Saúde da
desenvolver, a nível local e nacional, estratégias para
Família, a qualificação dos profissionais para a efetivação
dar visibilidade ao trabalho e valorizar a atuação dos
da atenção básica resolutiva se sobressai como grande
profissionais das Equipes de Saúde da Família.
desafio, demandando estratégias de desenvolvimento
A análise dos resultados da pesquisa quanto à gestão
profissional contínuo que aprimorem ou desenvolvam
dos recursos humanos aponta, em síntese, como fatores
competências técnicas específicas de ‘núcleo’ de cada
condicionantes da consolidação da Estratégia Saúde da
profissão e competências do ‘campo’ da atenção primária
Família para os seguintes aspectos: i) a centralidade da
para ações coletivas e atuação comunitária. Profissionais
gestão do trabalho e o investimento nos processos de
inexperientes e sem formação em medicina de família e
qualificação como prioridades da gestão; ii) as estratégias
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GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.;
MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
de educação permanente, que privilegiam o espaço de
prestadores de serviços de saúde municipais, estaduais
trabalho como de aprendizagem; iii) a existência de
e privados contratados. As capitais dispõem de ser-
quadro permanente de profissionais selecionados através
viços especializados estaduais em seu território que
de concurso público; iv) a implantação de um sistema
não foram descentralizados e atendem à população de
de remuneração diferenciada, de forma a incentivar e,
todo o Estado. Esta fragmentação resulta em utilização
ao mesmo tempo, recompensar o exercício profissional
sub-otimizada da oferta e dificulta a gestão da rede. Há
em locais de grande vulnerabilidade social.
necessidade de acelerar o processo de negociação para
Outros nós críticos identificados na gestão do traba-
que o município possa regular e articular estes serviços
lho na SF, e que merecem reflexão mais aprofundada sobre
presentes no seu território, garantindo o acesso integral
estratégias de enfrentamento, são: a baixa adesão da catego-
aos munícipes. Por outro lado, a ausência de políticas
ria médica e suas respectivas representações ao novo modelo
para a atenção de média complexidade por parte do
assistencial; o fortalecimento e a ampliação da capacitação
Ministério da Saúde é reconhecida pelos gestores muni-
dos ACS; e a introdução de um sistema de supervisão e
cipais como uma das grandes dificuldades para garantia
acompanhamento do desempenho dos profissionais e das
de acesso à atenção especializada no Sistema Único de
equipes com abordagem pedagógica, permitindo a reflexão
Saúde (SUS).
sobre o processo de trabalho e sua revisão.
A priorização da Atenção Básica dentro do SUS
buscou responder aos compromissos do sistema de saúde
de prover serviços básicos de saúde e outras ações coletivas
CONSIDERAÇÕES FINAIS
de forma descentralizada. Os resultados mostram que
ainda é imperativo avançar nas promessas de integralidade
por meio da necessária desmercantilização dos níveis de
A implementação de uma estratégia de atenção
atenção mais complexos, alcançando certo equilíbrio nas
primária integral implica resposta aos problemas de
relações entre o mercado e a esfera pública na provisão des-
saúde frequentes, na constituição da porta de entrada
sas ações ao conjunto da população (Carvalho, 2004).
preferencial em serviços de atenção básica resolutivos,
Uma questão a ser enfrentada pela Estratégia da
responsabilização pela coordenação dos cuidados e
Saúde da Família nos grandes centros com elevada co-
na garantia de acesso aos demais níveis de atenção
bertura populacional é inverter o total afastamento da
conforme as necessidades de saúde. Nesse sentido,
classe média dos serviços públicos de saúde. A utilização
os esforços dos gestores e os resultados encontrados
da Estratégia Saúde da Família por grupos de classe mé-
na integração da Saúde da Família aos demais níveis
dia pode contribuir para a valorização do SUS por esses
apontam sua potencialidade como estratégia de aten-
segmentos da população e para a redução de iniquidades
ção primária integral. Esta perspectiva, contudo, deve
no acesso à atenção especializada com fluxos muitas vezes
ser monitorada e outras investigações, desenvolvidas,
‘by-passados’ por grupos populacionais de maior renda.
considerando-se as diversas dimensões da integração
e a perspectiva dos usuários.
A ampliação da cobertura da Saúde da Família
para áreas de residência de grupos de classe média é um
Um importante desafio à integração da rede e
importante desafio nos grandes centros urbanos e exige
garantia de acesso à atenção especializada é a fragmen-
estratégias diferenciadas para reduzir a resistência às ações
tação do sistema decorrente da presença de diferentes
da SF, como dificuldades em aceitar a visita domiciliar e
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GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; ESCOREL, S.; ALMEIDA, P.F.; FAUSTO, M.C.R.; ANDRADE, C.L.T.; SENNA, M.C.M.; SISSON, M.C.;
MARTINS, M.I.C. • Potencialidades e obstáculos para a consolidação da Estratégia Saúde da Família em grandes centros urbanos
a baixa utilização dos serviços, exceto para a obtenção de
tendência de maior fragmentação da rede assistencial,
medicamentos para controle de doenças crônicas.
e totalmente incongruente com um sistema público de
Por outro lado, os resultados da pesquisa trazem
saúde que pretende ser universal e integral. Assim, a
indícios de que o atendimento profissional domiciliar
oportunidade de construção de uma Atenção Primária
médico e o cuidado aos idosos são aspectos valorados
em Saúde robusta em nosso país seria perdida, e junto
positivamente por esses estratos populacionais que rei-
com isso a possibilidade de desfrutar de seus impactos
vindicam a assistência de equipes de Saúde da Família
positivos na saúde da população e na eficiência do uso
em suas áreas de moradia.
dos recursos.
Os obstáculos a serem superados para a garantia
de atenção integral em nosso país são de diversas
ordens: financeiros, de oferta insuficiente, organi-
R E F E R Ê N C I A S
zacionais com fragmentação da rede, de formação
inadequada dos recursos humanos (Conill, 2008).
Ainda assim, os resultados dos estudos de caso apontam que o fortalecimento da posição dos serviços da
Estratégia Saúde da Família como porta de entrada
preferencial resolutiva integrada à rede, com referências reguladas para a atenção especializada, tem potencialidades para reorientar a organização do sistema
de saúde para a garantia do direito universal à saúde.
Estas potencialidades tendem a se realizar na medida
em que a Estratégia Saúde da Família seja assumida
como política de governo, esforços sejam envidados
para a integração da rede assistencial, formação de
recursos humanos adequados , e a construção de
interfaces de modo a promover a cooperação com
outros setores para enfrentar os determinantes sociais
mais gerais da saúde.
Para finalizar, impera alertar para a dubiedade da
política federal de saúde quanto ao modelo assistencial
para a atenção básica no país. Ainda que a difusão da
Estratégia Saúde da Família venha sendo estimulada de
forma sustentável, os incentivos concomitantes para
UPAs – modelo com forte apelo eleitoral pela aparente
resolutividade proporcionada às filas das emergências
hospitalares – encerra o risco do desenvolvimento de
modelo competitivo em atenção básica inadequado
para responder ao perfil de morbi-mortalidade, com
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Recebido: Abril/2005
Aceito: Abril/2005
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, abr./jun. 2010
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil
Discourse analysis of medicine advertisements in Brazil
Viviane Ramalho 1
Professora Adjunta do Departamento
de Linguística, Português e Línguas
Clássicas da Universidade de Brasília
(UnB).
[email protected]
1
RESUMO Neste artigo, investigaram-se sentidos potencialmente ideológicos
na propaganda de medicamentos no Brasil. O objetivo foi debater o papel do
discurso na sustentação de relações assimétricas de poder na modernidade tardia.
Com base em pressupostos teórico-metodológicos da Análise de Discurso Crítica,
foram mapeadas conexões entre aspectos semióticos e não-semióticos do problema
social investigado.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Propaganda de medicamentos.
ABSTRACT In this paper, we investigated potentially ideological meanings in
Brazilian medicine advertisements. The aim was to debate the role of discourse
in maintaining asymmetrical power relations in late modernity. Based upon
Critical Discourse Analysis theoretical-methodological concepts, we traced
causal connections between semiotic and non-semiotic aspects in the social issue
considered here.
KEYWORDS: Discourse; Medicine advertisement.
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•
Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil
I N T R O D U ç ão
social da promoção de medicamentos e, na terceira
seção, será apresentada a análise de discurso de um dos
anúncios pesquisados, intitulado aqui Sexo seguro na
Neste artigo, são apresentados resultados de uma
vida adulta (distribuição gratuita, 2005). Por fim, tece-
pesquisa de doutorado em Linguística sobre a propa-
mos algumas considerações sobre a potencialidade do
ganda de medicamentos brasileira (Ramalho, 2008).
discurso da propaganda de medicamentos para sustentar
Na pesquisa, foram investigados sentidos ideológicos
anseios relacionados ao que se entende hoje por ‘saúde’
em textos publicitários com o objetivo de problema-
e enfatizamos a necessidade de um olhar interdisciplinar
tizar o papel do discurso na sustentação de um grave
nos estudos em Saúde e em Linguística. A principal
problema social amplamente discutido na atualidade,
contribuição deste trabalho reside nessa possibilidade
que pressupõe relações assimétricas de poder, sobretudo
de diálogo entre diferentes disciplinas olhando para a
entre ‘leigos’ e ‘peritos’.
mesma preocupação social.
Para realizar a pesquisa, utilizaram-se pressupostos
teórico-metodológicos da Análise de Discurso Crítica
(ADC) (Resende; Ramalho, 2006), uma vertente de
Linguagem e poder: a Análise de
estudos linguísticos que se ocupa da relação entre lin-
Discurso Crítica
guagem e poder. A primeira seção do artigo é dedicada à
apresentação dessa base científica. Para esta corrente de
estudos, linguagem e sociedade são indissociáveis e man-
As diversas correntes de estudos do discurso, que
têm ligações dialéticas, de modo que questões sociais são
começaram a se consolidar em meados de 1960, têm em
vistas como, em parte, questões de linguagem e vice-versa.
comum a preocupação com o uso da linguagem situado
Assim sendo, buscamos investigar conexões entre aspectos
sócio-historicamente e relacionado a questões de poder.
sociais e discursivos envolvidos no problema em foco.
Diferem-se, sobretudo, pelas perspectivas (sociológicas,
De modo geral, na parte mais social do estudo,
filosóficas, epistemológicas) que as orientam. A vertente
foram pesquisados aspectos da história da propaganda de
britânica de Análise de Discurso Crítica (Fairclough,
medicamentos no Brasil (Bueno, 2008); da instauração
1989; 2001; 2003; Chouliaraki; Fairclough, 1999),
de problemas de saúde ligados à promoção de medica-
que fundamenta este trabalho, é uma proposta de
mentos; das políticas de controle da Agência Nacional
abordagem científica para estudo de problemas sociais
de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outras características
parcialmente discursivos. Seu compromisso está em
e instituições relacionadas à ‘sociedade de consumo’
“investigar criticamente como a desigualdade social é
(Barros, 1995; 2004; 2008; Nascimento, 2005). Na
expressa, sinalizada, constituída, legitimada pelo uso
análise discursiva, trabalhamos com um corpus docu-
do discurso” (Wodak, 2004, p. 225).
mental composto por exemplares de anúncios impressos
A proposta insere-se na tradição da ‘ciência social
de medicamento produzidos em épocas diferentes, de
crítica’, comprometida a oferecer suporte científico para
meados de 1920 a 2006.
questionamentos de problemas sociais relacionados a
Na primeira seção deste artigo, será apresentada a
poder e justiça. Como ciência crítica, a ADC está preo-
proposta científica da Análise de Discurso Crítica. Na
cupada com efeitos ideológicos que (sentidos de) textos
segunda, será brevemente contextualizado o problema
possam ter sobre relações sociais, ações e interações,
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•
Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil
conhecimentos, crenças, atitudes, valores, identidades.
de pontos de vista particulares, e identificacional, maneiras
Por sentidos ideológicos entendemos aqueles sentidos
relativamente estáveis de identificar a si e aos outros.
orientados para projetos particulares de dominação e
Essas maneiras de (inter-)agir, representar e identificar(-
exploração, que sustentam a distribuição desigual de
se) em práticas sociais internalizam traços de outros momen-
poder, na perspectiva crítica de Thompson (2002).
tos não-discursivos, assim como ajudam a constituir esses ou-
Com base em Bhaskar (1989), para a ADC, o mundo
tros momentos. Segue-se que a relação linguagem-sociedade
é um sistema aberto, em constante mudança, constituído
é interna e dialética; a linguagem constitui-se socialmente na
por diferentes domínios e diferentes estratos. Os estratos –
mesma medida em que tem “conseqüências e efeitos sociais,
físico, biológico, social, semiótico etc. – possuem estruturas
políticos, cognitivos, morais e materiais” (Fairclough,
distintivas e mecanismos gerativos que operam simultanea-
2003, p. 14). Mais preocupante para esta perspectiva crítica
mente com seus poderes causais, gerando efeitos nos outros
da linguagem são os efeitos ideológicos que (sentidos de)
domínios. Nesses princípios, assenta-se a compreensão de
textos possam ter sobre relações sociais, ações e interações,
que o discurso tem efeitos na vida social que não podem ser
conhecimentos, crenças, atitudes, valores, identidades.
suficientemente investigados levando-se em consideração
Na esteira da ciência social crítica, na ADC ‘ideolo-
apenas o aspecto discursivo de práticas sociais. De acordo
gia’ é um conceito inerentemente negativo por relacionar-
com Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 67), a lógica da
se às maneiras como os sentidos servem para instaurar e
análise crítica é relacional/dialética,
sustentar relações de dominação. Segundo Fairclough
(1989, p. 85), a ideologia é mais efetiva quando sua ação
Orientada para mostrar como o momento
é menos visível, por isso o compromisso da ADC é forne-
discursivo trabalha na prática social, do ponto
cer subsídios científicos para apontar e desvelar sentidos
de vista de seus efeitos em lutas hegemônicas e
ideológicos tendo em vista a possibilidade da superação
relações de dominação.
de relações assimétricas de poder e emancipação daqueles
que se encontram em desvantagem 1.
O foco dessa abordagem relacional/dialética,
Neste trabalho, a ADC fundamenta a investiga-
igualmente informado pela ciência social crítica, está nas
ção de representações, ou discursos, particulares que
‘práticas sociais’, isto é, no nível em que entendemos a
podem ser legitimadas em anúncios publicitários e, em
linguagem como interação social, como ‘discurso’.
determinadas práticas, inculcadas na identidade do/a
Nas práticas sociais cotidianas, o discurso é utilizado
‘consumidor/a de medicamento’.
de três principais maneiras simultâneas: para agir e interagir,
para representar aspectos do mundo e para identificar a si
mesmo e aos outros. Essas principais maneiras como o dis-
Propaganda de medicamento no
curso figura simultânea e dialeticamente em práticas sociais
Brasil: um problema sociodiscursivo
correlacionam-se, conforme a ADC, aos três significados
do discurso: acional/relacional, maneiras relativamente
estáveis de agir e interagir na vida social; representacional,
Estudos como de Barros (1995; 2004; 2008) e
maneiras particulares de representar aspectos do mundo,
Nascimento (2005) permitem verificar que o debate
1
Para aprofundamento nos processos metodológicos da ADC, ver Ramalho (2008) e Resende e Ramalho (2006).
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Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil
sobre os riscos da propaganda de medicamentos não é
setores da economia e igualmente ameaçador para a
novo. As crescentes preocupações envolvem, por exem-
sociedade em geral.
plo, os riscos da automedicação, das intoxicações, do
A propaganda de medicamento desempenha papel
consumo inadequado e exagerado de medicamentos.
central tanto na instauração e manutenção de indús-
Tudo isso somado, no Brasil, a desigualdades sociais e
trias nesse mercado, quanto na criação, sustentação e
dificuldades de acesso a serviços e tratamentos de saúde,
expansão de comunidades de consumidores, e o faz por
dentre outros problemas.
meio do que Lefèvre (1991, p. 53) denominou ‘valor do
A indústria de medicamentos está entre as mais
medicamento como mercadoria simbólica’, pelo qual a
lucrativas do mundo, e seu investimento em propaganda
mercadoria-medicamento passa a incorporar, represen-
é muito maior do que em pesquisa e desenvolvimento de
tar, simbolizar ‘acesso mágico e imediato à saúde’ em
novos medicamentos, cerca de 35% da receita, conforme
forma de comprimidos, cápsulas, gotas.
Angell (2007). No Brasil, parte da população, por um
Como símbolo de saúde, um conceito que agrega
lado, encontra-se desassistida de tratamentos e serviços
valores socioculturais, o medicamento pode represen-
de saúde. Por outro, considerável parcela da sociedade
tar acesso mágico e imediato àquilo que o discurso
é diariamente exposta a apelos comerciais que possuem
hegemônico define como ‘saudável’. Hoje, a grande
potencial para, em práticas específicas, levar as pessoas ao
mídia representa a ‘saúde’ não mais como um padrão
consumo desnecessário e desmedido de medicamentos.
mensurável, mas como um ideal inalcançável e pós-
Esses produtos farmacêuticos são representados na mídia
humano: na magreza extrema; nos estados alterados
como ‘símbolos de saúde’, a materialização de um con-
de excitação, velocidade, vigília, na juventude pre-
ceito que, hoje, significa a busca incessante pela expansão
tensamente eterna, e assim por diante. Como observa
do potencial corporal, conforme Bauman (2001), e pela
Barros (2008, p. 31),
superação das limitações humanas naturais.
Em 2005, quando iniciada a pesquisa que deu
são cada vez mais corriqueiras as notícias
origem a este trabalho, a propaganda de medicamentos
que, circulando na mídia, contribuem para
– reconhecida como causa de diversos problemas –, já
ampliar o número de adeptos de pretensas so-
estava há cinco anos submetida a controle sanitário, ao
luções geradoras de bem-estar e de níveis mais
monitoramento de conteúdo pela Anvisa, amparada
elevados de saúde. Várias dessas notícias têm
pela Resolução de Diretoria Colegiada n. 102, de 2000
se voltado e contribuído para o incentivo de
(Brasil, 2000). Hoje, o que se verifica e se discute
valores relacionados ao desfrute de um corpo
nacionalmente são as preocupantes novas maneiras
saudável, esteticamente aceitável na sociedade.
de promover medicamentos na mídia sem chamar a
Aqui entram, de forma crescente, as indústrias
atenção da vigilância sanitária e, consequentemente,
da moda, cosmética e também a farmacêutica
sem se sujeitar a restrições impostas por esse mecanis-
e seus interesses mercadológicos, com uma série
mo de regulação. A legislação atual (RDC 96/2008,
de equívocos e riscos inerentes às alternativas
Anvisa, 2008) tenta acompanhar as mudanças discur-
que vão criando e disseminando.
sivas, observadas na pesquisa, e estudiosos sanitaristas
reiteram a necessidade de coibir este tipo de prática
Nesse contexto de generalização de equívocos,
promocional exacerbadamente lucrativo para alguns
riscos, ansiedades e inseguranças relacionadas ao
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010
RAMALHO, V.
•
Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil
corpo, a propaganda atua como principal meio de ex-
nologias discursivas’, nos termos de Fairclough (2001),
ploração do valor simbólico do medicamento. Tal qual
capazes de dissimular propósitos promocionais em
propagandas de roupas, celulares e perfumes, a propaganda
textos, de modo que alcancem o(a) consumidor(a)
de medicamentos é um problema social porque, como
potencial como se fossem simples informações. Para
observou Fairclough (1989, p. 203), a publicidade em geral
ilustrar tais mudanças discursivas impulsionadas pelas
contribui para “construir posições submissas para ‘consu-
novas exigências sociais, é apresentado o texto Sexo
midores, como membros de comunidades de consumo,
seguro na vida adulta na Figura 1.
de maneira a legitimar o capitalismo contemporâneo”.
O folheto reproduzido pela Figura 1 foi coletado
Entretanto, diferentemente das primeiras, a propaganda
em um espaço público, em 2005. Nesta data, o controle
de medicamentos é potencialmente mais nociva por posi-
sanitário sobre propaganda de medicamentos já estava
cionar o indivíduo como ‘consumidor de medicamento’ e
consolidado e elaborava-se novo texto, divulgado à época
incitar anseios relacionados à saúde.
na Consulta Pública n. 84/2005 (Anvisa, 2005), para
Ainda assim, não raro encontramos na mídia ou
atualização da RDC 102/2000. Transcorridos cinco
mesmo nas ruas, como é o caso do texto analisado a
anos de vigência do primeiro regulamento e diante de
seguir, propagandas implícitas que simulam informação,
inovadas técnicas publicitárias ‘não-ostensivas’, a Anvisa
mas, de fato, buscam promover medicamentos, muitas
apresentou, em 2005, nova proposta de regulamento,
vezes medicamentos de venda sob prescrição médica,
hoje já publicada, para buscar acompanhar mudanças
cuja promoção nos meios de comunicação em massa é
discursivas nos anúncios publicitários, a exemplo deste
proibida no Brasil.
folheto que simula uma ‘campanha social’, ou ‘campanha
de utilidade pública’. O que se observa é um aumento de
‘novos formatos’ de publicidade, como folhetos, brindes
Sexo seguro na vida adulta:
e midia cards, distribuídos para promover bens e serviços,
campanha de utilidade pública?
mas por meio do ‘approach de serviço público’ que, nos
termos de Sampaio (2003, p. 184), possibilita “ensinar
e divertir as pessoas enquanto vende – o tempo todo e
Como vimos, dados os reconhecidos riscos po-
de modo quase subliminar”.
tenciais à Saúde Pública, as práticas promocionais/
No caso da publicidade de medicamentos, tais
comerciais de medicamento são regulamentadas e
formatos – que possibilitam alcançar o(a) consumidor(a)
fiscalizadas no Brasil desde 2000. A Anvisa é a insti-
potencial em situações de descontração, logo, mais
tuição responsável pelo controle de certos apelos em
suscetível – têm, ainda, outra aplicabilidade. Permite
propagandas de medicamentos de venda livre ou, ain-
promover produtos farmacêuticos pela ‘simulação de
da, pela suspensão de propagandas vedadas ao público
serviço público ou campanha social’, a exemplo do texto
em geral, como de medicamentos de venda sob pres-
da Figura 1, que entendemos ser uma peça publicitária
crição médica. Como resultado e também instrumento
que se destina a promover um medicamento pela si-
das mudanças sociais que inseriram a propaganda de
mulação de campanha de ‘sexo seguro’. Na época, essas
medicamento na lista dos objetos ‘controlados’ pela
ações promocionais foram denunciadas à Anvisa, que
vigilância sanitária, verificamos mudanças discursivas
suspendeu a campanha publicitária e autuou o labora-
na prática publicitária. Dentre elas, estão novas ‘tec-
tório responsável.
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RAMALHO, V.
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Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil
Figura 1 – Sexo seguro na vida adulta
Distribuição gratuita, 2005.
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RAMALHO, V.
•
Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil
O texto do exemplo ilustra um tipo de tecnologia
desejos e emoções que apontam para crenças e valores
discursiva utilizada para promover medicamentos no
particulares característicos de suas autoidentidades. As
contexto de vigilância. Essa técnica da publicidade de
mensagens emitidas pelos personagens podem ser vistas
recorrer a outros formatos para atrair a atenção do leitor,
como verbalização de crenças e valores implicados em
como a história em quadrinhos (HQ), é bastante conhe-
‘identificações’ tanto do mundo quanto dos próprios
cida e amplamente utilizada. No entanto, no caso do
personagens. Esse também é o caso da linguagem verbal,
texto Sexo seguro na vida adulta, o uso das tipificações da
em que os verbos ‘conhecer’, ‘querer’, ‘gostar’, ‘adorar’
‘arte seqüencial de disposição de imagens e palavras para
etc. concorrem para a caracterização dos personagens,
narrar histórias ou dramatizar idéias’ (Eisner, 1989, p.
predominantemente representados no texto segundo o
5) não parece se limitar a atrair os consumidores poten-
que sabem, são, desejam, gostam. Tal seleção de proces-
ciais por meio de uma história que diverte para vender.
sos contribui para construir o perfil do(a) consumidor(a)
Essas finalidades são verificadas no texto, entretanto nele
do medicamento anunciado veladamente.
se observam algumas peculiaridades.
Vários estudos sociais têm apontado uma mu-
Por exemplo, nos anúncios em geral, mesmo com
dança das práticas de consumo utilitaristas, próprias da
formato de HQ, uma história é contada para vender
sociedade industrial, para novas práticas fundadas num
explicitamente um produto, um medicamento; o mesmo
‘consumismo hedonista’, voltado menos para suprir ne-
não ocorre com este texto, em que o produto que se pro-
cessidades do que para satisfazer desejos relacionados a
move não está explícito. Da mesma forma, os anúncios
prazer, bem-estar, felicidade, realização pessoal. É nessa
em geral apresentam um bem/serviço como meio para
perspectiva que, para Bauman (2001), o indivíduo não
resolver uma ‘carência’, uma ‘necessidade’; aqui, a ‘solu-
mais “nasce em” sua identidade. Precisa escolhê-la, o
ção’ não é, ao menos explicitamente, uma mercadoria,
que muitas vezes equivale a ir às compras, sobretudo
mas sim supostas ‘informações sobre sexo seguro’.
de viagens, vinhos, obras de arte, espetáculos. Essa
O texto, em confronto com anúncios tradicionais,
descrição aproxima-se do posicionamento atribuído ao
apresenta apenas um dos três personagens mais fixos de
consumidor do medicamento anunciado no texto, que
publicidades: o ‘consumidor potencial’, representado
‘deveria’ buscar a expansão do potencial do corpo como
por ‘homens e mulheres maduros com vida sexual ativa’.
forma de autorrealização.
O ‘anunciante e o produto’, por sua vez, não figuram na
Se outrora, como verificamos em Ramalho (2006;
narrativa. O primeiro só aparece no logotipo/assinatura
2008), os(as) consumidores(as) potenciais de medi-
ao final do texto, ao passo que o produto é apenas insi-
camento, representados em anúncios, eram chefes de
nuado, e não referido explicitamente.
família e donas de casa, mães, esposas, ‘nascidos(as)
Conforme a Gramática Visual de Kress e van Leeu-
nestas’ identidades, hoje, por outro lado, os consu-
wen (1996), podemos observar que no texto há poucas
midores ‘hedonistas’ do século 21, representados no
‘ações’, gestos, movimentos corporais entre os persona-
texto em análise, por exemplo, são a mulher madura
gens da HQ, visto que não há especificamente ‘ações
e solteira, que não tem filhos, que está em busca de
materiais’ direcionadas a outros participantes, mas sim
relacionamentos amorosos, que expressa desejos; e o
‘ações verbais’. Isso significa que, na composição da ima-
homem (cujo expoente seria o gatão de meia-idade, de
gem, os participantes estão representados principalmen-
Miguel Paiva), separado, que tem filhos mas não é chefe
te pela verbalização de seus conhecimentos, percepções,
de família, que também está em busca de prazer, e assim
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010
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RAMALHO, V.
•
Análise do discurso da propaganda de medicamentos no Brasil
por diante. Essa representação também está associada a
dicamentos, fugindo, assim, ao menos durante o tempo
uma imagem ‘elitista’ de pessoas com poder aquisitivo,
suficiente para atingirem o(a) consumidor(a) potencial,
haja vista elementos como ‘bar da moda’, ‘curriculum’,
do controle da vigilância sanitária.
e comportamentos como ‘falar baixo’, ‘malhar, fazer
check-up’, e outros. As propagandas atuais posicionam
o(a) consumidor(a) de medicamentos como aquele(a)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
que possui poder aquisitivo para alcançar mais prazer e
felicidade com a expansão do potencial corporal, possibilitada pelo consumo de drogas.
Neste trabalho, discutiram-se resultados da tese
Nos anúncios em geral, uma história é ‘contada
de Ramalho (2008) sobre o discurso da propaganda
para vender’, aqui, peculiarmente, além daquele fim, a
de medicamentos brasileira. Aqui, especificamente,
história é ‘contada para simular uma campanha social’
o objetivo foi discutir a emergência de novas ‘tecno-
com vistas a promover um medicamento de venda sob
logias discursivas’ com base na análise do texto Sexo
prescrição. Para fugir a proibições legais que pesam
seguro na vida adulta, distribuído gratuitamente em
sobre esse tipo de propaganda, no texto articulam-se
2005. Foi visto que a hibridização discursiva elevada
convenções discursivas da HQ de ‘condicionamento
em textos promocionais de medicamento consiste
de atitudes’, característica de campanhas de utilidade
em uma ‘tecnologia discursiva’, uma manipulação
pública, segundo Eisner (1989). Isto é, as tipificações da
estratégica da linguagem orientada para projetos de
HQ (personagens, imagens, balões de fala) são articula-
dominação, sobretudo no que toca a relações entre
das no texto para dissimular propósitos promocionais e
‘leigos’ e ‘peritos’, tanto da saúde quanto da lingua-
estratégicos, passando-se por ‘informação’ e resultando
gem. Os sentidos criados no texto analisado ilustram
num híbrido de ‘campanha de saúde e publicidade’.
sua potencialidade para obscurecer fronteiras entre
Este é o caso, previsto na RDC 96/2008, de
publicidade/informação, permitindo que, de modo
“publicidade indireta”, “aquela que sem mencionar
dissimulado, o discurso particular da publicidade seja
o nome dos produtos, utiliza marcas e (ou) símbolos
legitimado em anúncios híbridos e inculcado em iden-
e (ou) designações e (ou) indicações capaz de identi-
tidades projetadas na imagem do(a) consumidor(a)
ficá-los [...]”. Trata-se, portanto, do uso figurado de
de medicamento.
características do ‘folheto de campanha de utilidade
pública’ para dissimular a finalidade comercial do
texto. A finalidade de desencadear a ação de ‘comprar
R eferências
e consumir o medicamento’ é representada como se
fosse orientada para a ação de ‘prevenir doenças sexualmente transmissíveis’.
Muitos outros aspectos discursivos que extrapolam
esta discussão inicial são tratados em Ramalho (2008),
que toma o texto aqui analisado como exemplar de uma
série de outros anúncios publicitários que dissimulam
sua função precípua de promover comercialmente me-
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 265-273, abr./jun. 2010
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ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na
contemporaneidade
Medicalization and consumption: a look over health in contemporaneity
Jurema Barros Dantas 1
Ariane Patrícia Ewald 2
Psicóloga; Doutora em Psicologia
Social pela Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre
em Estudos da Subjetividade pela
Universidade Federal Fluminense
(UFF); Especialista em Psicologia
Clínica pelo Instituto de Psicologia
Fenomenológico-Existencial (IFEN) do
Rio de Janeiro.
[email protected]
RESUMO Os medicamentos assinalaram uma revolução nas atividades de
Doutora em Comunicação e Cultura;
Professora do Curso de Pós-Graduação
em Psicologia Social da UERJ.
[email protected]
pensar a relação entre o consumo e o fenômeno da medicalização e como tal relação
1
2
Saúde Pública e na medicina. Hoje, imersa numa cultura de consumo, a noção
de saúde parece se apresentar como uma extensão do mercado e o medicamento,
como sua mais preciosa e lucrativa mercadoria. Os avanços tecnológicos oferecem
soluções rápidas para qualquer desconforto físico ou emocional. As maravilhas da
neuroquímica da vida cotidiana são festejadas, o que parece refletir um crescente
anseio social por mais saúde e realização de todos os desejos. Este trabalho objetivou
reposiciona a noção de saúde na contemporaneidade.
PALAVRAS-CHAVE: Medicalização; Consumo; Saúde.
ABSTRACT The drugs marked a revolution in Public Health activities and in
medicine. Nowadays, surrounded by a culture of consumption, the notion of health
seems to be presented as an extension of the market and the product, as their most
valuable and lucrative commodity. Technological advances offer quick solutions
to any physical or emotional discomfort. The wonders of the neurochemistry of
everyday life are exalted, which seems to reflect a growing desire for more social care
and fulfillment of all desires. The aim of this paper was to discuss the relationship
between consumption and the phenomenon of medicalization and how such
relationship repositions the notion of health in the contemporary society.
KEYWORDS: Medicalization; Consumption; Health.
* Artigo desenvolvido a partir de pesquisa de doutorado financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010
DANTAS, J.B.; EWALD, A.P.
I N T R O D U ç ão
•
Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
bem como a busca desenfreada por felicidade e bemestar, são assuntos que ocupam lugar de destaque nas
discussões em curso nas diversas áreas do conhecimento.
A multiplicidade de discursos e práticas relacionados
A experiência de dor, desassossego e inquietude
à medicalização parece ganhar relevância no mundo
[...] é provavelmente tão antiga como a história
contemporâneo. E, assim, a medicalização da socieda-
do gênero humano. E atravessa cada existência
de, expressão da tendência a se considerar as situações
do princípio ao fim. Não menos antiga e cons-
adversas da vida como problemas médicos solucionáveis
tante é a busca de soluções, remédios, cura [...].
por meio de medicamentos, parece estar tornando o me-
O urgente é curar. (Garcia, 2001, p. 11).
dicamento, um produto síntese de ciência e tecnologia,
um recurso especial para a solução de variados proble-
O crescente uso indiscriminado de psicofármacos
mas. Queremos pôr em evidência essa efervescência na
tem chamado atenção de profissionais de diversas áre-
crença de que o medicamento, apoiado na química e na
as. Há um gritante contraste entre desenvolvimentos
biologia, dispõe de substâncias capazes de enfrentar a
biotecnológicos sem precedentes e a existência de um
grande maioria das doenças e dos problemas cotidianos,
sentimento crescente de fragilidade da vida. Estudar as
promovendo a saúde e a felicidade a quem se dispuser a
diferentes formas pelas quais a medicalização excessiva
pagar por suas fórmulas.
da sociedade constitui uma prática cultural determinada
Em nossa pesquisa de doutorado envolvendo cinco
torna-se uma indagação fundamental para o campo da
Serviços de Psicologia Aplicada (SPA) de universidades
psicologia.
públicas e particulares no Rio de Janeiro, como Univer-
A medicalização da sociedade é um fenômeno que
sidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade
tem sido sinalizado por vários autores desde o século
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Pontifícia Universi-
19, quando o saber científico se espalhava pelos vários
dade Católica do Rio de Janeiro (PUC), Universidade
domínios sociais. Mas foi a partir da década de 1940,
Veiga de Almeida (UVA) e Universidade Gama Filho
com a introdução dos psicofármacos, que este fenôme-
(UGF), realizamos um trabalho de campo por meio de
no passou a se tornar cada vez mais intrusivo na vida
entrevistas. Este trabalho foi baseado em um roteiro
cotidiana. Compreender de que forma este fenômeno
semiestruturado analisado e aprovado pelo Comitê de
tem alcançado tamanha evidência e repercussão na
Ética da Uerj. Foram entrevistados 50 usuários, sendo
sociedade contemporânea e estabelecido padrões de
10 usuários de cada instituição envolvida escolhidos
comportamento em relação ao uso indiscriminado de
aleatoriamente, seguindo-se somente a exigência de
medicamentos se revela o desafio central deste artigo.
serem maiores de idade. Foram entrevistados usuários
Acredita-se que haja a implicação de uma prática so-
que já se encontravam em atendimento ou que estavam
cial que tem transformado a existência cotidiana num
indo ao SPA pela primeira vez.
problema médico-farmacológico e é essa prática que se
pretende, aqui, compreender.
A faixa etária dos entrevistados foi bem variada. No
público feminino, tivemos pessoas com idade entre 19
O tema da medicalização está na moda. O uso
e 69 anos e, no público masculino, entre 18 e 35 anos.
abusivo de medicamentos vem ocupando um significa-
Dos 50 entrevistados, 48 fazem uso de medicamento e
tivo espaço nos meios de comunicação. A medicalização,
apenas dois buscam alternativas em tratamentos natu-
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Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
rais. Dessas 48 pessoas, 44 usam medicamentos em geral,
sensações àqueles que os consomem. Pensa-se que estes
sobretudo analgésicos, e 35 fazem uso de psicotrópicos.
dados podem ajudar a tecer um panorama geral de algu-
Vale ressaltar que cinco já pensaram em fazer uso de
mas das principais questões do debate contemporâneo
psicotrópicos, mas alegam ter medo da dependência,
sobre o consumo de medicamentos e as questões que
quatro fazem uso dos chamados calmantes naturais,
envolvem a noção de saúde nos dias atuais.
como o Pasalix, e dois usam remédios para emagrecer.
Vários estudos têm sido feitos sobre a sociedade
A maior parte do uso desses medicamentos ocor-
de consumo, sua ideologia e sua vinculação crescente
re por indicação médica, porém verificamos que há
às noções de bem-estar, saúde e felicidade. De acordo
quem consuma medicamentos por procura própria
com Angell (2008), os americanos gastam a quantia
ou indicação de outros, especialmente da família. A
de 200 bilhões de dólares por ano em medicamentos
maioria das pessoas compra medicamentos tanto com
de prescrição médica obrigatória. Segundo a autora, os
receita (remédios controlados) como sem receita (em
laboratórios farmacêuticos canalizam a maior parte de
sua maioria, analgésicos). Do total de entrevistados, 38
seus recursos para a propaganda de produtos de benefício
acreditam que o remédio prejudica a saúde devido aos
duvidoso, colocam no mercado produtos novos que na
efeitos colaterais e à possibilidade de dependência. As
verdade são constituídos de velhas substâncias já usadas
outras 12 pessoas acreditam que o medicamento não faz
pela população e vendem diariamente medicamentos
mal à saúde pela sua confiança no médico.
que supostamente vão recuperar e, sobretudo, promover
Aqueles que fazem uso do medicamento têm
a saúde. Um complexo jogo de interesses dirigido pelas
como expectativa: o resultado rápido (27), a melhora
indústrias farmacêuticas está presente nestas compa-
(19), o alívio (13), a cura (11), a tranquilidade (seis) ou
nhias que investem com diferentes interesses tanto
o equilíbrio (2). Quarenta e três entrevistados acham
em pesquisas, promovendo inovações constantes nesse
que não tomam muitos medicamentos e apenas sete
campo, quanto em publicidade, criando novos mercados
apresentaram um discurso de inquietação no que se
consumidores para os produtos farmacológicos.
refere à quantidade de medicamentos que usam. Dos 50
A publicidade de fármacos pode ser considerada a
entrevistados, 49 acreditam que o remédio é necessário
principal via pela qual estas indústrias tornam seus pro-
porque há situações em que o seu uso é indispensável
dutos atraentes e, logo depois, praticamente indispensá-
(21), porque o remédio existe para ajudar (9), porque
veis à vida do indivíduo contemporâneo. Desta forma, a
acham que o remédio alivia a dor (8), porque serve para
propaganda − direcionada tanto aos médicos quanto ao
curar (6), porque não há necessidade de sofrer se existe o
público em geral − é uma das grandes responsáveis pela
remédio (2), porque ajuda a suportar a vida (2), porque
disseminação de uma cultura que exalta os efeitos dos
é uma solução (2) ou porque pode trazer o equilíbrio
fármacos, promovendo a crença de que ‘para tudo na
(1 entrevistado).
vida há um remédio’ e que estas fórmulas foram desen-
Estes dados estão sendo apresentados como uma
maneira de problematizar, neste artigo, os novos modos
volvidas unicamente ‘para facilitar’ a vida dos indivíduos,
não envolvendo, portanto, nenhum risco.
de ser e estar na contemporaneidade, inscritos nessa lógi-
Acredita-se que a publicidade, associada à facili-
ca em que os medicamentos possuem ‘poderes mágicos’
dade de acesso aos medicamentos em farmácias, super-
e passam a ter como função, além da tentativa de cura
mercados e até camelôs, parece criar a ilusão de que os
das enfermidades, a atribuição de valores, sentimentos e
medicamentos são produtos livres de efeitos graves e em
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DANTAS, J.B.; EWALD, A.P.
•
Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
nenhum momento se pensa, como propõe Nascimento
ra do consumo, o que significa que seus valores, práticas
(2003), que os medicamentos podem aliviar, controlar
e instituições fundamentais estão preponderantemente
ou eventualmente contribuir para a cura de enfermida-
sedimentados sobre as relações de mercado e seus des-
des específicas, mas o caminho para um estado de saúde
dobramentos. Esta cultura tem como meta principal a
melhor passa necessariamente por uma transformação
perpetuação do consumo de mercadorias; para tanto,
cultural e social.
associam-se todos os desejos e necessidades − objetivos
Simultaneamente a esta mudança cultural, assis-
ou subjetivos − aos produtos e serviços oferecidos no
timos que a permanente evolução da prática médica
mercado. Tudo pode ser obtido através da compra dos
demanda, cada vez mais, que novas drogas sejam in-
produtos. Estes, por sua vez, como nos mostra Slater
corporadas ao arsenal terapêutico disponível para tratar
(2002), deixam de ser meros objetos para se tornarem
diversas situações do nosso cotidiano. Este fato amplia
mercadorias/signos, objetos capazes de atribuir qualida-
significativamente o peso da indústria farmacêutica no
des e sensações abstratas a quem os compra.
que se refere às questões que envolvem saúde. Em outras
A crença excessiva e, até certo ponto, ingênua no
palavras, podemos dizer que este ideário, aparentemente
poder dos medicamentos, ao lado da crescente oferta
montado para enriquecer as indústrias do ramo farma-
e indicação desses produtos, com vigoroso suporte da
cêutico, alterou profundamente nossa relação com os
mídia, tendem a aproximá-los da condição de fetiche1
medicamentos e, consequentemente, o uso que é feito
inanimado da atualidade, encarnando o poder sacraliza-
destes produtos, assim como parece reposicionar a questão
do da ciência e da tecnologia sobre a vida dos mortais.
da saúde atrelando-a também à lógica de mercado.
No cenário brasileiro, uma pesquisa realizada pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
Cultura de consumo e
em 2007, revelou que foram gastos pela população 45
contemporaneidade
bilhões em medicamentos. Segundo a pesquisa, a população brasileira envolve 7% de sua renda na compra
de medicamentos. Contudo, tal fenômeno parece não
Entende-se cultura, tal como apresentada por
estar diretamente relacionado à incidência de patologias
Laraia (2001), como o modo de vida de um povo,
ou à erradicação de doenças que há muito acomete a
abrangendo os mais diversos campos contidos neste
população brasileira, mas sim ao consumo de medica-
viver: conhecimentos, crenças, valores, moral, artes,
mentos, legitimados pela ciência e identificados com o
costumes, leis, hábitos, ideias, mitos, lendas, insti-
progresso, que parecem ser vistos por um grande número
tuições, serviços. Na atualidade, todas estas questões
de pessoas como instrumentos eficazes para enfrentar
estão intimamente relacionadas ao consumo de mer-
quase todos os males da vida.
cadorias, ação que se tornou reguladora da sociedade
Nesse sentido, torna-se fundamental um estudo
contemporânea. Nesse sentido, a cultura do consumo,
sobre a cultura de consumo enquanto lógica que regula
embora não seja a única maneira possível do viver em
todos os âmbitos da vida na sociedade contemporânea.
sociedade, é, sem dúvida, a predominante. Esta forma
Os países capitalistas vivem, hoje, imersos em uma cultu-
de reprodução cultural, segundo Slater (2002):
A palavra “fetiche”, segundo o Dicionário Aurélio, se origina do termo feitiço e se refere a um objeto feito pelo homem ou produzido pela natureza ao qual se
atribui poder sobrenatural e se presta culto; ou a uma pessoa, a quem se venera ou obedece às cegas.
1
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Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
Designa um acordo social onde a relação entre a
como era do apogeu da produção de massa fordista. De
cultura vivida e os recursos sociais, entre modos
acordo com Slater (2002), esta época foi marcada pelo
de vida significativos e os recursos materiais e
‘milagre econômico’, que proporcionou uma elevação
simbólicos dos quais dependem, são mediados
dos padrões de consumo dos países-sede do capitalismo.
pelos mercados. A cultura do consumo define
Os indivíduos consumidores contam, então, com um
um sistema em que o consumo é dominado pelo
alto poder aquisitivo, o que configura o cenário de uma
consumo de mercadorias, e onde a reprodução
‘sociedade opulenta’ na qual a prosperidade econômica
cultural é geralmente compreendida como
criou necessidades insaciáveis e moralmente duvidosas;
algo a ser realizado por meio do exercício do
uma crise de valores a respeito da ética do trabalho e
livre-arbítrio pessoal na esfera privada da vida
uma bifurcação do desejo entre o consumo respeitável
cotidiana. (p. 17).
e o consumo hedonista.
Este fenômeno instaura uma era de conformismo,
Desde o século 16, vigorava nos países europeus
de entorpecimento cultural, decorrente do alastramento
uma ‘cultura de comércio’ caracterizada principalmente
do consumismo exacerbado e alienado, incentivado pe-
por uma grande diversificação de mercadorias comercia-
los interesses capitalistas de escoar a gigantesca produção
lizadas. Dois séculos depois, com a progressiva expansão
de mercadorias padronizadas. A sociedade acreditava ter
dos mercados – que passam a intermediar todos os
alcançado o mundo industrial na terra prometida da
aspectos sociais, culturais e ideológicos da vida dos indi-
abundância consumista, era consenso que a cultura do
víduos –, ocorre a cultura de consumo. A ‘revolução do
consumo representava, segundo Slater (2002), garantia
consumidor’ precedeu a Revolução Industrial, portanto,
de prosperidade crescente e de estabilidade político-
a cultura consumista não é uma mera consequência da
econômica. Aproximadamente em 1980, a cultura
industrialização, mas um processo de transformação
do consumo foi articulada à lógica neoliberal. Nesse
muito mais longo.
momento, o consumismo assume novas características
As novas práticas culturais, implementadas na
tanto no âmbito social quanto no individual: inaugura-
modernidade, foram determinantes para que quase tudo
se a era da ‘soberania do consumidor’, que vigora até
se tornasse passível de consumo: todas as novidades –
os dias de hoje.
em termos de experiências ou bens – devem, então,
Em linhas gerais, podemos dizer que a cultura do
ser exibidas e consumidas por representarem símbolos
consumo está inserida na lógica da modernidade cujos
do progresso moderno, da civilização e da grandeza
sinais estão ligados às consequências da Revolução
nacional. Assim, desde os últimos anos das primeiras
Industrial e ao processo de expansão do capitalismo
décadas do século passado, há um intenso processo de
industrial; às novas máquinas e novas tecnologias; à
remodelação cultural no que diz respeito às formas como
dinâmica entre o antigo e o moderno; à ideia de novi-
os bens de consumo deveriam ser produzidos, vendidos
dade; à crença irrestrita na evolução e no progresso; à
e assimilados pela vida cotidiana. Tais transformações
antinomia barbárie versus civilização; a uma aceleração
propiciam uma redefinição da cultura do consumo: que
‘subjetiva’ do tempo; à velocidade; e à entronização do
agora é entendida em termos da produção e de consumo
dinheiro que, gradativamente, passa a mediar todas as
em massa. Esse ideário foi severamente intensificado
relações sociais (Ewald, 2001). A partir disso, surge uma
após a Segunda Guerra Mundial, período destacado
nova ‘sensibilidade moderna’ que pode ser percebida
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DANTAS, J.B.; EWALD, A.P.
•
Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
por uma nova atmosfera de agitação e turbulência, de
e material na qual o homem acredita ser governado
aturdimento psíquico com expansão das possibilidades
por algo que, na realidade, ele próprio criou. O ponto
de novas experiências e destruição das barreiras morais
de partida do seu pensamento é uma crítica ferina e
e dos compromissos pessoais. Gradativamente, como
radical a todo e qualquer tipo de imagem que leve o
parte fundamental do desenrolar deste processo de
homem à passividade e à aceitação dos valores preesta-
construção da modernidade, forjou-se uma ‘cultura do
belecidos pelo capitalismo. Para este filósofo, cineasta e
consumo’ cada vez mais sólida que passou a se incorporar
ativista francês, a sociedade encontra-se contaminada
à lógica da sociedade e exerceu um forte impacto no jogo
pelas imagens, sombras do que efetivamente existe. O
das sociabilidades e das convivencialidades.
espetáculo é, ao mesmo tempo, parte da sociedade,
a própria sociedade e seu instrumento de unificação.
Coloca o autor:
O contemporâneo e o espetáculo:
um olhar sobre a cultura do
O espetáculo, compreendido na sua totalidade
consumo
é simultaneamente o resultado e o projeto do
modo de produção existente. Ele não é um
complemento do mundo real, um adereço deco-
Ao falar sobre cultura do consumo, entra em cena
rativo. É o coração da irrealidade da sociedade
certo percurso histórico que parece estar marcado por
real. Sob todas as suas formas particulares de
uma época de máquinas cibernéticas e computadores,
informação ou propaganda, publicidade ou
em que a comunicação instantânea e o controle contínuo
consumo direto do entretenimento, o espetáculo
formam subjetividades marcadas pela velocidade e ime-
constitui o modelo presente da vida socialmente
diatismo dos fatos e da própria vida. Temos configurado
dominante. Ele é a afirmação onipresente da
uma sociedade calcada em modelos fluídos de controle
escolha já feita na produção, e no seu corolário
da subjetividade, em prazeres descartáveis, em relações
– o consumo. (Debord, 1997, p. 13).
passageiras e obsoletas. Falamos, então, de uma sociedade fluida que se caracteriza pela tentativa de controle
O autor afirma que toda a vida se apresenta como
do tempo, do corpo e da vida. Vida que, por seu caráter
uma imensa acumulação de espetáculos, na qual, pela
trágico e finito, comporta sofrimento.
mediação das imagens e mensagens dos meios de comu-
Esta sociedade fluida e líquida imprime, de acor-
nicação de massa, os indivíduos em sociedade abdicam
do com Bauman (1998), um novo contorno do social
à dura realidade dos acontecimentos da vida e passam a
onde somos intimados a agir incessantemente na busca
viver num mundo movido pelas aparências e consumo
pelo prestígio, pelo reconhecimento e pela informação.
permanente de fatos, notícias, produtos e mercadorias.
Estamos no campo do espetáculo que, de acordo com
Nesse mar de espetáculo e tecnologia, a imagem é pre-
Debord (1997), é uma forma de sociedade em que a
ferida ao objeto, a cópia ao original, o simulacro ao real.
vida real é pobre e fragmentária e os indivíduos são
Prefere-se qualquer medicação a ter que refletir sobre a
obrigados a contemplarem e a consumirem passiva-
existência e a tragicidade que lhe é inerente. Busca-se
mente as imagens de tudo o que lhes falta na vida
a saúde que nos apresentam refletida no corpo deline-
real. O espetáculo é uma verdadeira religião terrena
ado pelas academias ou clínicas de estética, refletida
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Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
nos padrões de beleza, sucesso e juventude. A saúde se
das perdas, o confronto com a morte, com o outro e com
apresenta, hoje, segundo Lefèvre (1991), como exten-
seus próprios limites, o distanciamento e isolamento
são do mercado e, por consequência, o medicamento,
das pessoas propiciado pelos grandes centros urbanos
a sua mais nobre mercadoria. Ao se tornar extensão do
são formas de sofrimento com as quais não queremos
mercado, a saúde, muitas vezes, parece estar associada à
lidar. Nesta sociedade do espetáculo, invadida pelas
obtenção de atributos considerados essenciais para a fe-
imagens, parece que temos uma vida contemporânea
licidade no mundo contemporâneo e os medicamentos,
superexposta operando modos de subjetividade morti-
neste contexto, passam a ser utilizados não só para uma
ficada e medicalizada.
possível cura ou alívio de enfermidades, mas também
Neste campo do espetáculo, vivemos a produção
como caminho mais rápido e efetivo para aquisição
de imagens e verdades efêmeras no que se refere à nossa
destes ícones de beleza, juventude e bem-estar do viver
saúde, já que a cada dia podemos ser surpreendidos
moderno. Sob esse prisma, no enfrentamento de nossos
tanto por uma nova descoberta que mudará nossas
problemas diários, qualquer produto ou mercadoria
vidas quanto pela surpresa em saber que atitudes an-
é mais eficiente e, sobretudo, menos trabalhoso. Na
teriormente incentivadas passam a ser proibidas pelo
busca por cauterizar nossas dores frente às contradições
discurso legítimo e inquestionável da ciência. Assisti-
inerentes à vida, damos passagem a qualquer medica-
mos a uma manipulação dos gostos e das opiniões via
mento ou terapêutica instantânea que alivie o tão temido
construção e veiculação instantânea de sistemas de
‘mal-estar’.
signos e imagens que, por vezes, parece exaltar o uso
Neste espetáculo das brevidades, das soluções rápi-
de medicamentos no nosso cotidiano. Somos cercados
das, da ilusão de que tudo se pode controlar, assistimos à
por fórmulas e substâncias que se mostram capazes
multiplicação de ícones e imagens, principalmente atra-
de oferecer emagrecimento, massa muscular, solução
vés dos meios de comunicação de massa, mas também
para calvície, para os sinais de envelhecimento, para a
dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo,
insônia, impotência sexual, desatenção, entre outros.
de tudo aquilo que falta à vida real do homem comum:
Comportamentos, situações diárias e insatisfações
celebridades, atores, políticos, personalidades, gurus,
podem ser explicados e provavelmente resolvidos por
mensagens publicitárias – tudo transmite uma sensação
todo esse arsenal medicamentoso.
de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e
Com isso, não fica difícil pensar no uso abusivo
ousadia. O espetáculo é a forma mais elaborada de uma
de medicamentos na contemporaneidade como uma
sociedade que desenvolveu ao extremo o ‘fetichismo da
produção de modos de ser e estar que visam ao imedia-
mercadoria’, onde, por vezes, a felicidade identifica-se
tismo, à estetização do corpo, ao prazer a qualquer custo
com o consumo.
e ao bem-estar supremo. Não pensamos nas questões
Lançados então numa sociedade que cria cenários
inerentes à vida como fenômenos passíveis de nos con-
como um espetáculo, em que realidade e imaginação se
vocar à singularização e reflexão temática sobre nossa
confundem; em que a representação se torna a realidade
existência, costumeiramente as tomamos como males a
final, não surpreende que, diante de inibições, temores e
serem extirpados, na medida em que prejudicam a cadeia
emoções, tenhamos construído uma ‘irrealidade cotidia-
dos fluxos do contemporâneo. Fluxos marcados pela
na’ em que a medicalização para estes ‘estados doentios’
volatilidade e valores sociais marcados pela labilidade e
tenha se tornado a regra básica de tratamento. As dores
instantaneidade.
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DANTAS, J.B.; EWALD, A.P.
O consumo de mercadorias - signos
•
Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
O produto não vale apenas pelo seu ‘real’ valor de
uso, ou seja, pela utilidade prática que terá na vida do
consumidor. A valorização que cada indivíduo atribui
O consumo, em uma sociedade marcada pelo
aos objetos depende da promessa de valor de uso, que
capital, se fundamenta na manipulação ativa de sig-
é um somatório de processos concretos e abstratos.
nos: as mercadorias e os signos (valores, características
Segundo Haug (1997), o que impulsiona o interesse
abstratas, ideias) se fundem, formando uma entidade
por uma determinada mercadoria, do ponto de vista
única e coesa, a mercadoria/signo. Tal fusão só é possível
qualitativo, é a promessa do valor de uso que este
porque a cultura assume o papel de disseminadora desta
produto desencadeia em cada indivíduo. Tal promessa
concepção, tornando-a parte integrante da vida dos
constitui um jogo entre fatores objetivos e subjetivos: o
indivíduos contemporâneos. Como coloca Baudrillard
exterior da mercadoria, sua aparência, as propriedades
(1981), “chegamos ao ponto em que o ‘consumo’ invade
de sua superfície, sua cor, seu cheiro, a forma como
toda a vida” (p. 20), uma vez que, atualmente, tudo é
se apresenta a marca. Tudo isso desencadeia no con-
perpassado pela cultura do consumo. Um consumo
sumidor a associação de certos valores ao produto, ou
que absorve cada vez mais partes da vida social, que se
seja, impulsiona a subjetividade do comprador a tecer
ampara em critérios e funções individuais, segundo uma
certos discursos sobre o objeto.
lógica emotiva e hedonista e que dita a especificidade
As promessas ‘emitidas’ por um produto se dão tanto
das relações que estabelecemos com nossos afetos, com
indiretamente, através de seu burilamento estético, quanto
os objetos, com os outros, com a vida.
diretamente, através da atribuição explícita de qualidades
Em um primeiro momento, os signos são asso-
abstratas em mercadorias concretas. Ambos os processos
ciados às mercadorias visando a ‘individualizá-las’ e
configuram o ‘fetichismo da mercadoria’: atribuição de
torná-las mais atraentes aos compradores em potencial.
“faculdades, propriedades, valores e significados” (Slater,
Esta tarefa é fundamental para o estabelecimento de
2002, p. 112) às mercadorias. Tal processo desencadeia
uma conexão entre os produtos – fabricados em massa
uma fusão do conteúdo objetivo utilitário dos produtos
para um público anônimo – e as idiossincrasias de
com valores culturais, sociais e econômicos, que passam
cada consumidor. Slater (2002), com base nas teorias
a parecer uma propriedade natural da coisa em si. Nesse
desenvolvidas por Marx, afirma que a cultura do con-
cenário, “os objetos aparecem divorciados de seu contexto
sumo tem como um de seus pilares de sustentação mais
e submetidos a associações misteriosas, que são lidas na
importantes o processo de:
superfície das coisas” (Featherstone, 1990, p. 44), pois
“os produtos do consumo não se vivem como fruto de
[...] estética da mercadoria: o produtor
trabalho ou de processos de produção; vivem-se como
precisa criar uma imagem de valor de uso
milagre” (Baudrillard, 1981, p. 23).
onde os compradores em potencial possam se
Ao mesmo tempo em que a mercadoria torna-
reconhecer. Todos os aspectos do significado do
se representante de uma série de signos, sensações,
produto e todos os canais através dos quais seu
experiências e outras qualidades, o inverso também
significado possa ser construído e representado
acontece, ou seja, há uma objetivação de conceitos
passam a ser submetidos a um cálculo intenso
abstratos no corpo das mercadorias. Torna-se pos-
e racionalizado. (p. 38).
sível a aquisição concreta de sentimentos, valores e
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Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
fragmentos de personalidade por meio da compra de
[...] os bens, serviços e sinais devem despertar
determinados produtos: parece que tudo que existe no
desejo e, para isso, devem seduzir os possíveis
mundo, incluindo as pessoas, é reduzido à condição
consumidores e afastar seus competidores. Mas,
de objetos manipuláveis e calculáveis. Há uma con-
assim que o conseguirem, devem abrir espaço
cretização de todos os signos através das mercadorias.
rapidamente para outro objeto de desejo, do
Quais signos podemos reconhecer nos medicamentos?
contrário a caça global de lucros e mais lucros
Talvez signos de bem-estar, felicidade, tranquilidade,
irá parar. A indústria atual funciona cada vez
virilidade, entre outros. Da mesma forma, podemos
mais para a produção de atrações e tentações.
ousar em dizer que os signos que envolvem a saúde
(p. 86).
podem ser identificados com medicamentos, academias, clínicas, produtos de beleza, vitaminas, entre
O consumo parece ser a instância ordenadora da
outros. Diariamente consumimos signos. Para nos
vida em sociedade, visto que “as pessoas usam as merca-
sentirmos livres, fumamos um certo cigarro; no in-
dorias de forma a criar vínculos e estabelecer distinções
tento de obter masculinidade, adquirimos um certo
sociais” (Featherstone, 1990, p. 31). O processo de
carro; se o objetivo é ser ‘legal’ compramos um tal
consumo pode ser analisado:
celular; e, naturalmente, se a intenção for alcançar a
felicidade, tomamos Prozac.
[...] como processo de classificação e de di-
O ato de consumir é, segundo Baudrillard (1981),
ferenciação social, em que os objetos/signos
um dever do cidadão, e este processo aparentemente
se ordenam, não só como diferenças signifi-
impositivo, no entanto, não é explícito: não se dá
cativas no interior de um código, mas como
através da coação, mas do convencimento ideológico,
valores estatutários no seio de uma hierarquia.
da persuasão implementada pela cultura. A cultura do
(Baudrillard, 1981, p. 66).
consumo é responsável pela produção incessante de
necessidades e desejos que devem, segundo Bauman
O indivíduo constitui, assim, seu sistema de valores
(2003), conduzir à obtenção de mercadorias. À medida
a partir do consumo de determinados objetos/signos. À
que a constante criação de novas necessidades é o motor
medida que pretende, por exemplo, tornar-se saudável, o
de toda a estrutura consumista, a maior ameaça à sua
sujeito tem que fazer uso de uma série de produtos/saúde
permanência é a possibilidade de satisfação de todos os
e serviços/saúde para que ele próprio sinta-se possuidor
desejos, o esgotamento de todas as necessidades. Para
do valor em questão e os outros o identifiquem como tal.
afastar tal possibilidade, a cultura constantemente renova
Nesse sentido, é necessário apenas tomar um remédio,
os desejos tanto disponibilizando novos produtos no
ou um iogurte light, para ter saúde e, consequentemen-
mercado, quanto promovendo frequentes mudanças nas
te, ser saudável independentemente do fato de fumar
formas de relacionar signos a mercadorias. Portanto, no
muito ou comer alimentos gordurosos com frequência.
sistema ‘consumista’, a única possibilidade de satisfação
A vida parece uma espécie de louca corrida individual
é imediata e efêmera, sendo rapidamente substituída
em busca do bem-estar, da felicidade, do sucesso, do
por outro desejo/mercadoria. Bauman (1999), em
desenvolvimento pessoal, da novidade, da exigência
um parágrafo, prescreve a fórmula da vida eterna do
de desempenho e da excelência, na qual a medida de
consumismo:
bem-estar parece proporcional à medida de mobilida-
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Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
des, de polivalências, de capacidades em fornecer mais
capitalista, uma vez que, além de disseminar valores,
rapidamente as respostas apropriadas.
ideias, formas de agir e maneiras de pensar, pretende
O consumo se tornou o meio de comunicação
engessar nossas necessidades e expectativas em função da
universal da contemporaneidade, instaurando um ce-
demanda econômica. Os anúncios publicitários parecem
nário onde identidades, valores, sentimentos, desejos,
ter o poder de transformar um simples objeto em um
experiências, necessidades, sensações, status, emoções,
misto de sensações, emoções e experiências.
personalidades, relações podem ser encontrados nas
prateleiras do mercado. Em face de tantas possibilidades
A publicidade, para as sociedades que a adotam,
e em face de tantas competências que necessita atingir
é uma das formas que permitem a mediação
e apresentar, o sujeito se vê diante do impossível, isto
entre domínios diversos. Pela publicidade um
é, o sentimento de nunca ser capaz de acompanhar e
produto múltiplo e impessoal se transforma em
atender às exigências cada vez mais intensas e urgentes da
algo único, nomeado, particular, próprio para
sociedade contemporânea. Esses sentimentos fazem com
cada consumidor. (Rocha, 1995, p. 60).
que ele busque o consumo de objetos aos quais possa
aderir na ilusão de suportar seu sofrimento e de alcançar
O conteúdo das mensagens publicitárias assume, de
a felicidade e o bem-estar. Facilmente, tornamo-nos
acordo com Baudrillard (1981), um caráter mágico onde a
dependentes de ‘soluções’ imediatas que se apresentam
sociedade, representada dentro da propaganda, embora es-
ilusoriamente como portadoras da capacidade de pre-
truturada a partir da sociedade real, funciona de um modo
encher qualquer sentimento de vazio.
completamente diferente desta. A publicidade exibe:
Um mundo em férias perpétuas, tranqüilo, sorri-
Publicidade, consumo e
dente e despreocupado, povoado por personagens
medicamentos: um mundo de
felizes que possuem, enfim, o milagroso produto
imagens e promessas
que os fará belos, impolutos, livres, sãos, desejados, modernos.(Ramonet, 2001, p. 34).
A disseminação da cultura do consumo é for-
A publicidade desempenha, no cenário do con-
temente favorecida pelos meios de comunicação que
sumo, uma função fundamental ao veicular e induzir
facilitam, agilizam e dinamizam a universalização dos
ideias, atitudes e padrões de comportamento. O mundo
conteúdos culturais. Os meios de comunicação de massa
da propaganda atinge, assim, seu precioso objetivo de
invadem nosso cotidiano, passando a ser parte integrante
fomentar continuamente desejos e necessidades. A cul-
e indissociável do viver em uma sociedade capitalista.
tura do consumo, em meio a este universo de desejos e
Segundo Rocha (1995), a comunicação de massa é um
necessidades, oferece, através de seu complexo arsenal
lugar privilegiado, uma espécie de janela com vista pa-
de mercadorias-fetiche, um modelo ideologicamente
norâmica para a sociedade. Suas mensagens não fazem
construído e difundido de bem-estar e de felicidade.
outra coisa se não seduzir a sociedade, existindo em
articulação ao seu desenho ideológico. Nesse sentido, a
A linguagem publicitária reforça as motivações
publicidade é fundamental à manutenção da sociedade
existentes e apresenta os medicamentos como
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soluções ideais para um número cada vez maior
algum tipo de medicamento com fins comerciais. Nosso
de problemas típicos da sociedade contemporâ-
viver diário parece ter se tornado comércio, ou melhor, a
nea. A crença de que uma pílula seja capaz de
própria vida se tornou comércio. Nossas questões existen-
eliminar ou, pelo menos, amenizar estes proble-
ciais também parecem ter se tornado comércio na medida
mas é fator complementar e primordial para o
em que podemos medicá-las. Pensar sobre a vida e sobre
consumo. (Nascimento, 2003, p. 22).
a existência parece ser doloroso, dispendioso e demorado
num mundo que vive em ritmo acelerado.
Assim, graças à publicidade, os medicamentos apa-
A vida nos impõe frequentes circunstâncias desen-
recem como ‘milagreiros’ na banalização de seu uso frente
cadeadoras de frustrações, desencantos e sofrimentos,
a qualquer desconforto existencial. Gastam-se, como nos
contudo, a medicação cria a ilusão de que podemos nos
propõe Angell (2008), mais recursos financeiros com
tornar imunes ao sofrimento, às perdas e riscos de viver.
publicidade do que com pesquisa e desenvolvimento de
Logo, quando falamos em saúde, podemos afirmar com
novos medicamentos. Segundo Barros (2000), as cam-
certa segurança que em nenhuma outra época tivemos
panhas publicitárias são planejadas para atingir desde o
tantas e tão significativas mudanças quanto no século
médico e o farmacêutico até o dono da farmácia, o balco-
20. Podemos dizer, também, e neste caso com certa in-
nista e o paciente, conseguindo influenciar a prescrição,
quietação, que em nenhuma outra época consumimos
a dispensação, a venda e o consumo de medicamentos,
tantos medicamentos quanto atualmente e que passamos
além de ser considerada uma atualização terapêutica pelos
a ‘criar’ novas doenças sobre o que antes chamávamos
profissionais da área de saúde. Na tentativa de elevar o
de problemas da existência humana.
padrão de consumo dos medicamentos, a indústria farmacêutica tem utilizado diferentes formas de publicidade
dirigidas aos profissionais de saúde e ao público leigo em
Medicalização e
geral. O fato de existirem várias opções farmacêuticas
contemporaneidade: o consumo de
para o mesmo fim torna a publicidade e outras técnicas
saúde e felicidade
de mercado elementos diferenciais para uma maior ou
menor venda de um produto. Atualmente, a publicidade
se volta cada vez mais para o consumidor, o que parece
Neste cenário, evidencia-se que a cada dia o processo
aumentar drasticamente o uso de medicamentos, enfati-
de medicalização e banalização da existência humana se re-
zando os benefícios e não os possíveis problemas advindos
vigora com diversos medicamentos facilmente receitados
de seu uso. Segundo Wannmacher (2004), a publicidade
pela medicina, pelo balconista da farmácia ou pela própria
parece ter a função de induzir o uso indiscriminado, en-
família. Nossas angústias e nossos sofrimentos existenciais
carecer o custo dos produtos e deseducar as pessoas sobre
foram absorvidos pela lógica de mercado e transformados
seu efetivo papel na recuperação da saúde. Isto porque, do
numa química a ser ingerida cotidianamente em uma
ponto de vista publicitário, a informação sobre os riscos
maneira ‘eficiente’ e ‘prática’ de resolução dos problemas
de um medicamento se mostra como uma espécie de
que atravessam a vida na contemporaneidade.
contrapropaganda, na verdade uma contraindicação ao
produto. Longe de informar ou esclarecer, a publicidade
A necessidade de adequação a valores estéticos
parece se preocupar em divulgar e promover a adesão a
e de conduta, considerados ideais na sociedade
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Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
contemporânea, tem sido uma motivação cres-
esse que, em uma sociedade onde tudo pode e deve ser
cente nos últimos anos. É o caso das pessoas que
transformado em mercadoria (Slater, 2002), torna-se
buscam, em fórmulas farmacológicas, a solução
algo que se encontra em produtos como medicamentos,
para emagrecer ou engordar, obter mais massa
planos de saúde e alimentos saudáveis. Dessa maneira,
muscular, driblar a calvície ou alguns sinais do
a saúde “toma a forma hegemônica de coisa concreta,
envelhecimento. Em se tratando de condutas e
deixando eclipsada sua dimensão de relação com o so-
estados de ânimo, o alvo a ser alcançado pode
cial, com o comportamental” (Lefèvre, 1991, p. 21),
ser mais tranqüilidade no dia-a-dia, sono na
o que propicia o alastramento da ideia de que a saúde
hora de dormir, ou estímulo suficiente para
e o bem-estar estão associados ao consumo progressivo
o trabalho, para o lazer e até mesmo para o
de mercadorias.
prazer. (Nascimento, 2003, p. 21).
Há, portanto, uma mudança da noção de saúde,
principalmente através dos medicamentos. Tal processo,
A saúde e o bem-estar plenos se mostram valores
somado à intensa atribuição de valores e qualidades
primordiais da sociedade contemporânea, à medida que
abstratas aos medicamentos, promove a crença atual de
são pré-requisitos para que o indivíduo possa alcançar
que a saúde está concretamente naquele comprimido
todos os seus desejos. A ideia de saúde, particularmente,
ou naquela gota. A saúde torna-se objeto e os remédios
abrange uma multiplicidade de definições: a princí-
passam a ser investidos de ‘determinados poderes’, sen-
pio seria uma “condição humana prévia, preliminar”
do que o uso destes produtos deixa de estar restrito ao
(Lefèvre, 1991, p. 21), uma premissa existencial. Em
mero utilitarismo, assumindo uma série de significados
segundo lugar, a saúde pode ser definida como a rela-
abstratos. A saúde associada aos remédios (dentre outros
ção que o sujeito estabelece com si próprio e com seu
produtos) torna-se algo vendável e lucrativo, consequen-
meio, ou seja, a forma como lida com os estímulos que
temente possível de ser adquirida como qualquer outro
o ambiente lhe oferece.
produto no mercado.
Na trajetória evolutiva das concepções e da prática
A noção de que se pode encontrar saúde em pro-
sobre a saúde, poderiam ser considerados, de acordo
dutos vendidos em drogarias é um engodo: o mito da
com Barros (2002), alguns paradigmas que, começando
saúde em pílulas. Há uma crença de que a farmacologia,
pela noção mágico-religiosa na antiguidade, termina na
apoiada na química e na biologia, dispõe de pílulas e
abordagem do modelo biomédico, predominante nos
de métodos capazes de enfrentar, senão todas, a grande
tempos atuais. De acordo com o autor, é provável que
maioria das doenças e dos problemas cotidianos, promo-
a expressão mais acabada das distorções e consequências
vendo a saúde e a felicidade a quem se dispuser (e puder)
do modelo biomédico, reducionista, de abordagem da
pagar por suas fórmulas. Seguindo esta lógica, Lefèvre
saúde na vida dos indivíduos resida no que estamos
(1991) afirma que a saúde se transformou, nos dias atu-
apresentando como fenômeno da medicalização.
ais, em uma necessidade jamais satisfeita, encaixando-se
A partir deste modelo biomédico, transfere-se a
perfeitamente no funcionamento da cultura do consu-
responsabilidade de ter saúde “para o próprio corpo”
mo. São fórmulas capazes de nos proporcionar prazer e
(Temporão, 1986, p. 157), sendo que a saúde passa a ser
nos oferecer capacidades para gozar a vida. Substâncias
um fator puramente individual e atrelado à genética e ao
que nos garantem a possibilidade de aproveitar inten-
cuidado que o sujeito tem com seu organismo. Cuidado
samente cada momento da vida. Produtos de última
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Medicalização e consumo: um olhar sobre a saúde na contemporaneidade
geração que nos auxiliam a controlar os riscos, afastar
para negar a temporalidade e buscar a suposta perfei-
os males, bem como prevenir todo e qualquer dano à
ção – várias cirurgias, tratamentos estéticos contra a
saúde. Enfim, buscamos nas promessas da farmacologia
ação do tempo, estudos sobre o controle genético que
felicidade, vitória e sucesso. Buscamos nas promessas de
almejam garantir o afastamento das enfermidades. Estes
“saúde em pílulas” sanar qualquer desconforto físico ou
movimentos confirmam a pretensão de controle sobre
psíquico. Longe de querer oferecer uma conclusão sobre
a existência. As pretensões absolutizantes das ciências
as questões que envolvem a medicalização, optou-se
naturais norteiam o projeto moderno de compreensão
aqui por levantar uma reflexão julgada necessária: até
da subjetividade humana, reduzindo-a a um complexo
que ponto as novas tecnologias atuarão como forma
de sistemas neuronais que, quando em desequilíbrio,
de controle da vida com o objetivo de solucionar os
origina o processo de adoecimento. A suposta eficácia
paradoxos da existência humana?
das medicações é a comprovação do entendimento da
subjetividade como engrenagem que nos cabe consertar
ou ajustar. O mercado vende constantemente próteses
Afinal, há um remédio para tudo?
para que evitam as mínimas possibilidades de sofrermos. A medicina vai aos poucos se tornando mais um
bem de consumo e o vocabulário médico transborda
A medicalização da sociedade contemporânea, de
as fronteiras da ciência e da saúde, invadindo nossa
acordo com tudo que vimos até aqui, se refere à divul-
linguagem cotidiana. Temos, na atualidade, promessas
gação − preponderantemente através da publicidade
infinitas de juventude e bem-estar nas quais a medicina
− de um ideário em que os medicamentos representam
muitas vezes aparece como nossa salvadora ao explicar
fórmulas das principais características que os indivíduos
a subjetividade humana.
devem apresentar para sobreviver em meio à cultura de
consumo contemporânea.
A absolutização da medicação, supostamente
sugerida pelas indústrias farmacêuticas, parece ter a
À medida que a saúde é inserida na lógica con-
pretensão de ser um agente construtor de um indivíduo
sumista contemporânea, ela é impulsionada pelos
sem conflitos e, com isso, temos uma progressiva com-
interesses lucrativos a se espraiar por campos que vão
preensão neuroquímica dos fenômenos psíquicos, onde
muito além da prevenção e da cura de enfermidades.
nos parece que diariamente são criadas novas patologias
Neste sentido, tal conceito se associou aos principais
para as quais se busca uma solução medicamentosa.
valores da contemporaneidade, passando a representá-
Os avanços da medicina são necessários e indis-
los: ser saudável é sinônimo de ser capaz de “curtir a
pensáveis quando pensamos as questões que envolvem
vida”; de ser feliz e bem-sucedido; de ter uma aparência
a saúde, e apenas tentamos apontar sua tendência ao
bela e jovem. Enfim, de estar completamente adequado
reducionismo da experiência humana a uma causalidade
às exigências da atualidade. Segundo Birman (2001),
química. Esta tendência parece tornar o medicamento
“o sujeito busca, pela magia das drogas, se inscrever
mais um produto para consumo negligenciando ris-
na rede de relações da sociedade do espetáculo e seus
cos à saúde. Não estamos sendo contrários ao uso do
imperativos éticos” (p. 249).
medicamento, apenas acreditamos que a questão fun-
A sociedade parece buscar formas ilusórias pauta-
damental é o uso adequado do medicamento para que
das na medicina e em outros suportes contemporâneos
ele se torne um aliado da saúde e não um instrumento
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 274-287, abr./jun. 2010
DANTAS, J.B.; EWALD, A.P.
para cauterizar problemas. Trata-se da reflexão desta
lógica técnica que pretende entender o indivíduo por
princípios deterministas. Pretende entender e controlar
o indivíduo por meio do uso de diversas substâncias. Ao
longo do texto, tivemos a intenção de problematizar
esse campo de práticas e saberes que, no seu modo de
funcionar, vêm produzindo na contemporaneidade a
medicalização da vida.
•
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288
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão
da judicialização da demanda
The exceptional drug policy in Espírito Santo: the matter of access by juridical approach
Maria José Sartório 1
Ronaldo Bordin 2
Farmacêutica do Hospital Estadual Dr.
Dório Silva e conselheira do Conselho
Regional de Farmácia do Espírito Santo
(CRF/ES); Especialista em Farmácia
Hospitalar pela Empresa Brasileira de
Ensino Pesquisa e Extensão (Univix);
Mestre em Ciências Farmacêuticas pela
Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS); Coordenadora do Curso
de Farmácia da Univix.
[email protected]
RESUMO Este trabalho situa o Programa de Medicamentos Excepcionais no
Professor do Departamento de
Medicina Social da Faculdade de
Medicina da UFRGS; Doutor em
Administração pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS); Membro do Conselho
Estadual de Saúde do Rio Grande do
Sul (CES/RS).
[email protected]
de tutela, mandado judicial ou termo de ajustamento de conduta. Conclui-se que a
1
2
Brasil diante da judicialização da demanda, contextualizando a relação entre
direitos humanos e recursos financeiros do programa e identificando os argumentos
que embasam as ações impetradas contra o gestor. Consiste em estudo de natureza
documental, com emprego de dados secundários em bases de dados nacionais e estaduais
e análise da totalidade dos mandados impetrados contra o Estado do Espírito Santo.
Os principais achados foram: as demandas judiciais iniciam-se pelo poder executivo
por meio do Ministério Público e do poder judiciário, com apresentação de antecipação
judicialização gera individualização da demanda em detrimento do coletivo, tendendo
a gerar maiores dificuldades no planejamento dos serviços de saúde.
PALAVRAS-CHAVE: Farmácia; Administração e planejamento em saúde;
Equidade; Financiamento em saúde.
ABSTRACT This paper analyzes the access to the “exceptional medications”
program by lawsuits. It describes the relationship between human rights and the
program funds, identifying the lawsuits supporting reasons against the government.
It consists of a documentary investigation, applying secondary data in state and
national data bases as well as analysis of all the legal actions taken against the
Espírito Santo State government. The main findings were: the judicial demands
start by the executive through the “Public Ministry” and the judiciary, presenting
tutelage in advance, court order or conduct adjustment term. We concluded that
the access to the medication program by juridical approach results in demand
individualization to the detriment of the collectivity, and that it tends to increase
the lack of planning of public services.
KEYWORDS: Pharmacy; Health policy, planning and management; Equity;
Financing health.
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SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R.
•
Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda
I N T R O D U ç ão
medicamentos, no qual estima que 23% da população
venha a consumir 60% da produção nacional e apenas
48% da população tenha acesso aos medicamentos
O acesso a medicamentos é um assunto discutido
essenciais.
por vários autores (Bermudez; Bonfim, 1999; Guerra
Para contextualizar a questão da necessidade,
Jr, 2002; Negri; D’Ávila, 2002; Brasil, 2001) e, de
acesso e satisfação pessoal, pode ser enfatizada a relação
certa forma, ainda está em processo de busca do que
de representação social identificada entre o indivíduo
seria ideal para a Saúde Pública brasileira. A Word Health
e o medicamento que, no momento simbólico do seu
Organization (WHO, 2004), em sua revisão de conceitos,
consumo, consciente ou inconscientemente, busca
acrescentou a questão do custo ao conceito de acesso a
uma materialização imediata equivalente que pode ser
medicamentos essenciais, que ficou assim definido:
interpretada como a cura para seus males tanto físicos
como da alma. Tal prática contribui para uma verdadeira
[...] medicamentos essenciais são aqueles que
“cultura da pílula” (Lefévre, 1991).
satisfazem as necessidades de saúde da maioria
A promulgação da Constituição Federal de 1988
da população, devem estar disponíveis a todo
(Brasil, 2004a) determinou opção pelos princípios da
o momento, em quantidades adequadas e em
universalidade, integralidade e equidade em saúde, ope-
dosagens apropriadas, a um preço com que os
racionalizados no Sistema Único de Saúde (SUS). Em
indivíduos e as comunidades possam arcar.
seu artigo 196, aponta-se a saúde como direito de todos
(p. 24).
e dever do Estado, situação a ser garantida mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução de
Tal assertiva entra em consonância com a necessi-
risco de doença e de outros agravos e ao acesso univer-
dade atual de se observar a questão do custo no acesso
sal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
da população ao medicamento e também da organização
proteção e recuperação.
dos serviços de saúde aos quais se imputa a responsabilidade de favorecer esse acesso.
Vale lembrar, ao se delimitar o escopo da atuação
do Estado na esfera da saúde, a definição de direito
O mercado farmacêutico no Brasil gera um lucro
proposta por Bobbio (1992). Este autor afirma que
de bilhões de dólares e se mantém entre os dez primei-
sempre usou a palavra “exigências” em vez de “direitos”
ros lugares do mercado mundial. Tal fato demonstra a
quando se referia aos direitos não-constitucionalizados,
existência de uma cultura da medicalização, ao mesmo
ou seja, a meras aspirações, ainda que justificáveis com
tempo em que um grande contingente da população
argumentos plausíveis, no sentido de direitos (positivos)
continua à margem do consumo de medicamentos,
futuros, já que “a figura do direito tem como correlato
muitos deles supostamente essenciais, o que se dá pa-
a figura da obrigação”; uma situação facilmente identi-
ralelamente a um uso de produtos desnecessários ou
ficável no texto constitucional brasileiro.
supérfluos, e para isso contribuem valores que passam
Pilau Sobrinho (2003) comenta de modo claro os
a se erigirem como fundamentais para a vida saudável
aspectos da Revolução Francesa de 1789 e como esse
(Barros, 2004).
Nesse contexto, Bermudez (1997) apresenta
episódio se tornou um marco e uma diretriz seguidos
um estudo que se aplica à destacada falta de acesso a
tituições e principalmente da Declaração Universal
nos diversos países, tornando-se base de muitas cons-
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Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda
dos Direitos Humanos. Com relação ao sentido e à
força da constituição brasileira, Ataliba (1993), Dallari
Neste sentido, Amaral (2001) sintetizou o que seria
a relação necessidade-recursos:
(1987; 1995) e Dallari (2001), Demo (1995; 1996) e
Azevedo (1998; 2000) teceram comentários comple-
[...] se os recursos são escassos, como são, é ne-
mentares que narram a interface do direito humano e
cessário que se façam decisões alocativas: quem
o objetivo político, resultados de lutas populares com
atender? Quais os critérios de seleção? Prog-
concretização dos anseios da sociedade, o que significa
nósticos de cura? Fila de espera? Maximização
que o objetivo político insere toda a carga histórica,
de resultados? Quem consegue primeiro uma
cultural, sociológica e ideológica da evolução da so-
liminar? Tratando-se de uma decisão, nos parece
ciedade, também refletida na sua organização para
intuitiva a necessidade de motivação e controle
alcançar esses direitos.
dos critérios de escolha, uma prestação de contas
No bojo da discussão política que envolve as várias estratégias em curso voltadas para a consolidação
à sociedade do por que preferiu-se atender a
uma situação e não à outra. (p. 37).
do SUS, emerge a legitimização da assistência farmacêutica através da Política Nacional de Medicamentos
Há alguns anos, a demanda judicial tem se estabe-
(PNM) (Brasil, 2002). Essa política viabiliza um dos
lecido como um importante instrumento de acesso no
componentes fundamentais da assistência à saúde: a
campo da política de medicamentos – especialmente os
cobertura farmacológica. Seu propósito precípuo é
vinculados ao Programa de Medicamentos Dispensados
garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade dos
em Caráter Excepcional (PMDCE). Acompanhando as
medicamentos, promover o uso racional e o acesso da
mudanças de comportamento do cidadão, sua maior
população àqueles considerados essenciais.
mobilização, acesso à informação e capacidade de
Para que o acesso a medicamentos seja con-
entendimento dos seus direitos, a via judicial tem se
cretizado, alguns desafios importantes impedem o
revelado uma alternativa ao aumento da complexidade
estreitamento entre o ideal e o real, as demandas da
das necessidades e à escassez dos recursos alocados para
população e a operacionalização concreta dos precei-
supri-las.
tos constitucionais. O primeiro deles é a equalização
dos recursos financeiros para satisfação das necessida-
Nessa discussão, recebem especial atenção os medicamentos inseridos no PMDCE, assim definidos:
des de saúde do cidadão, abordada da seguinte forma
por Charles Fried apud Amaral (2001, p. 168): “[...]
Aqueles medicamentos de elevado valor uni-
as necessidades são vorazes, elas devoram os recursos”.
tário, ou que, pela cronicidade do tratamento,
Gustin (1999) definiu de outra forma a questão da
se tornam excessivamente caros para serem
necessidade:
suportados pela população. (Brasil, 2002b,
p. 11).
Por ser distintiva do ser humano, pode-se pressupor que a realização, ou a não realização
O alto custo demandado pelo Programa tornou-se
das necessidades, poderá afetar, positiva ou
um dos principais pontos de questionamento e geração
negativamente, a plenitude da pessoa ou das
de conflitos. O montante de recursos demandados pela
coletividades humanas. (p. 27).
União para o Programa de Medicamentos Excepcionais
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SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R.
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Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda
cresceu vertiginosamente nos últimos anos, passando
MATERIAIS E MÉTODOS
de R$ 687 milhões em 2002 a aproximadamente R$ 2
bilhões em 2008. A mesma dinâmica de ascensão dos
recursos gastos ocorreu no Estado do Espírito Santo,
A descrição do problema foi realizada por meio de:
que passou de R$ 13,8 milhões para atender 69 mil
usuários, em 2002, para R$ 95 milhões, em 2008, para
atender 309 mil usuários.
a) coleta de dados do consumo de medicamentos
excepcionais e custo no nível do Brasil e especificamente
No Estado do Espírito Santo, a dispensação de
no Espírito Santo desde a implantação do Sistema de
medicamentos excepcionais funciona em sete unidades
Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade
ambulatoriais, denominadas ‘Farmácias Cidadãs’. A
(Apac), em 1999;
análise dos processos de solicitação de medicamentos é
realizada pela Comissão de Farmacologia e Terapêutica
(CFT), composta por farmacêuticos e médicos, e a
b) pesquisa em documentos publicados pelo
Ministério da Saúde;
dispensação é feita por farmacêuticos, quando é então
emitida a Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade (Apac).
c) dados dos mandados judiciais impetrados
contra a Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo
Neste contexto, este artigo aborda a questão da
(Sesa/ES), obtidos no Departamento de Assistência Far-
universalidade da atenção à saúde, restringindo-se ao
macêutica (DAF), hoje denominado Gerência Estratégica
processo de assistência farmacêutica, em especial ao
de Assistência Farmacêutica (Geaf ) do mesmo estado.
escopo do PMDCE. Objetivou-se sistematizar as causas
para o embate judicial e as portas de entrada e demais
Procurou-se identificar as fontes de contestação,
condicionantes para esse modelo de acesso, assumindo
ou seja, a porta de entrada do cidadão à justiça e as ar-
como estudo de caso o Estado do Espírito Santo.
gumentações imbuídas nas solicitações diretamente nos
Em texto anterior (Sartório, 2004), foram apre-
processos e liminares impetrados pelos cidadãos contra
sentados dados de análise do período de 1999 a 2003, no
o Estado do Espírito Santo. Foram analisados 20 man-
que se refere ao número de demandas judiciais. Os resul-
dados, 7 antecipações de tutela e um TAC, perfazendo
tados encontrados denotaram um número incipiente de
a totalidade das ações jurídicas contra o Espírito Santo
decisões, com um total de 20 mandados, 7 antecipações
no período entre 1999 e 2003 (n=28).
de tutela e 1 Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
A análise dos recursos gastos em 2008 foi fornecida
Este artigo propõe comparar os dados encontrados no
pela Sesa/ES parcialmente até julho e na sua totalidade de
período de 1999 a 2003 aos de em 2008, objetivando-se
agosto a dezembro de 2008, devido ao processo de orga-
verificar se ocorreram mudanças em parcela das variáveis
nização dos dados presentes no sistema de informações.
abordadas no primeiro estudo.
Dessa forma, para identificação dos valores gastos com
Para além da discussão do recurso gasto com as
decisões judiciais até o mês de julho, os quais incluem
decisões judiciais, este estudo enseja dinamizar o debate
todos os medicamentos não-padronizados no Programa
sobre o direito à saúde, a sua organização, o acesso aos
de Medicamentos Excepcionais, foi utilizada uma média
insumos e sobre como podemos almejar um equilíbrio
baseada nos gastos de agosto a dezembro, que são valores
entre esses três eixos.
reais. Com isso, os valores relatados são aproximados.
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Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda
de Direito, na Assistência Judiciária Municipal e no I
RESULTADOS
Fórum da Fazenda Pública Estadual, de acordo com o
âmbito de atuação da justiça e a possibilidade de acesso
No período 1999-2003, a maioria dos mandados
iniciou pela mesma via, o poder judiciário, à exceção
do cidadão. Na prática, observa-se que as pessoas mais
bem informadas têm maior facilidade de acesso.
O Quadro 1 apresenta síntese das categorias de
de TAC, que objetivou a aquisição e manutenção do
atendimento de aproximadamente 30 medicamentos,
análise dos mandados judiciais de 1999 a 2003.
Observa-se que não há uma lógica nas decisões
dentre os quais apenas dois já tinham sido adquiridos
judiciais. Destaca-se a frequência de demandas de me-
pela Sesa/ES.
As solicitações iniciaram-se na Justiça Federal, na
dicamentos da atenção básica e do programa de saúde
Defensoria Pública, no Tribunal de Justiça, no Juizado
mental de responsabilidade dos municípios ou aqueles
Quadro 1 – Mandados judiciais contra o Estado do Espírito Santo na esfera dos medicamentos excepcionais, 1999-2003
Órgão expedidor
Objeto
Argumentação
Ministério Público do Estado
Medicamentos para fibrose cística
Artigo 196 da Constituição Federal
Justiça Federal – antecipação de tutela
Antidepressivo: efexor 75 mg
Artigo 198 da Constituição Federal
Defensoria Pública da União – antecipação
de tutela
Suplemento alimentar: hidrolizado proteico
Constituição Federal
Tribunal de Justiça – mandado judicial
Cardiologia: ritmonorm 300 mg; oncologia: trastuzumab (importado); neurologia:
dieta enteral
Constituição Federal
Assistência Judiciária Municipal
Cardiologia: ancoron, zestril, caverdilol e
furosemida
Artigo 196 da Constituição Federal
Tribunal de Justiça – mandado de segurança
Cardiologia: lisinopril e verapamil
Artigo 196 da Constituição Federal
Justiça Federal – mandado de segurança
Neurologia: interferon gama
Cita artigo 5º e 196 da Constituição
Federal; artigo 4º do Código Civil; artigo
4º do Pacto de São José da Costa Rica e
explicita direito subjetivo
Ação Ordinária – antecipação de tutela
Neurologia: cortrosina depot (importado)
Cita artigo 273 do Código Civil, artigos
6º, 196 e 198 da Constituição Federal e
artigo 1º e 83 do Código de Processo Civil
Juizado de Direito – mandado de segurança
Timespam (importado), oxcarbazepina,
trastuzumab, anlodipina, propafenona,
levodopa + carbidopa, endapamida, AAS
325 mg, octreotida 20 mg, LAR e riluzol
Artigo 196
Tribunal de Justiça – mandado judicial
Pamidronato dissódico e clodronato dissódico
Artigos 196 e 159 da Constituição Federal
e artigo 165 da Constituição Estadual
Justiça Federal – mandado judicial
Constam da relação de medicamentos
excepcionais: sirolimus e tacrolimus
Artigo 196
I Fórum da Fazenda Pública Estadual
Paroxetina
Artigo 196 da Constituição Federal
Citação/ação ordinária com pedido de
antecipação de tutela
Vigabatrina, valproato de sódio líquido e
tetracosactida Depot
Cita artigo 196, 198 e 6º da Constituição
Federal e artigo 1º da Lei nº 4.317/90
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010
SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R.
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Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda
não inseridos em nenhum nível de atenção ou programa
para a mesma indicação; 103 (30,2%) eram do elenco
estabelecido pelas esferas de governo.
de medicamentos de competência municipal, conforme
Foram observadas demandas de medicamentos
Portaria estadual nº 084-R de 26 de outubro de 20071,
recentemente lançados no mercado, alguns deles sem
que homologou a Relação Estadual de Medicamentos
registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária
Essenciais e Excepcionais (Rememe). Os medicamentos
(Anvisa), o que confirma a articulação e influência
não inseridos na competência estadual ou municipal
da indústria na prescrição médica. Esse último, alvo
foram identificados como ‘outros’ e apresentaram 69
principal das mesmas em virtude do importante papel
(20,2%) solicitações.
social da prescrição, seja ela de produtos que a reque-
Observa-se uma diferença de apenas 8% en-
rem ou não, ou do caráter multiplicador da receita e da
tre as solicitações de medicamentos considerados
peculiaridade da ação do médico como grande agente
do elenco estadual e municipal. No que se refere
intermediador entre o setor industrial e os consumidores
ao elenco municipal, esse montante sugere uma
(Barros, 2004).
deficiência no acesso aos medicamentos básicos ou
Os argumentos apresentam pouca variabilidade.
nas informações à população sobre sua inserção no
O artigo 196 da Constituição Federal é o mais citado,
serviço de saúde para que receba assistência integral,
acompanhado dos artigos 5, 159 e 198. Houve citação
inclusive farmacêutica, cujos objetivos devem ser o
de artigos do Código Civil Brasileiro, da Constituição
fornecimento de medicamento e a orientação para
Estadual do Espírito Santo, do Pacto de São José da
seu uso adequado. Para os medicamentos do elenco
Costa Rica e da lei n.º 4.317/90.
estadual, pôde-se identificar a não-observância, pe-
Já em 2008, foram identificadas 321 ações judiciais
los prescritores, dos protocolos clínicos e diretrizes
contra o Estado, com solicitação de 340 medicamentos/
terapêuticas publicadas pelo Ministério da Saúde,
insumos, configurando um aumento de 1.046% no
prevalecendo a experiência profissional em detri-
número de decisões judiciais em comparação ao período
mento da evidência científica.
1997 a 2003.
Os 20% considerados ‘outros’ por não se enqua-
Embora a origem e as argumentações das decisões
drarem nas situações anteriores são medicamentos uti-
não tenham sido analisadas em 2008, até pela lógica das
lizados nas áreas de oncologia, cardiologia, neurologia,
demandas, observa-se que não ocorreram alterações sig-
reumatologia etc.
nificativas. Em consonância com essa questão, resultados
Além dos medicamentos, houve demanda de
semelhantes foram encontrados em estudo realizado no
insumos para pacientes insulinodependentes, sendo:
Estado do Rio de Janeiro pelas pesquisadoras Messeder,
um de glicosímetro, nove de fitas para dosagem de
Osório-de-Castro e Luiza (2005).
glicemia, um de lancetas e de suplementos alimentares
Quanto aos medicamentos pleiteados, em 2008
para intolerância a lactose (cinco de hidrolisado de soja
ocorreu um incremento, passando a 91 especialidades
e dois de hidrolisado de proteína animal; cinco de leite
farmacêuticas e um total de 340 solicitações. Dessas,
de soja e um de aminoácidos elementares).
143 (42%) constavam do elenco de medicamentos ex-
Percebe-se a necessidade de maior debate políti-
cepcionais de competência estadual ou com alternativa
co e de decisão entre as esferas estadual e municipais
1
Para consulta: www.saude.es.gor.br
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010
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•
Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda
no que se refere à divisão da responsabilidade na
Quadro 2 – Solicitações de medicamentos mais
oferta de medicamentos e também de insumos para
frequentes, 2008
diabéticos.
Medicamento
n
%
Insulina lispro/glargina/aspartane
77
22,64
Atorvastatina
64
18,82
Hilano GF 20
8
2,35
Imatinib
7
2,05
41,46% do montante, demonstrando necessidade
Sertralina
7
2,05
emergente de sensibilização ou de criação de uma
Sorafenid
7
2,05
legislação que normatize a prescrição no SUS.
Semitinib
5
1,47
Clopidogrel
5
1,47
medicamentos, bastando que sejam prescritos. As
Temozolamida
5
1,47
exceções devem ser justificadas e analisadas em con-
Ticlopidina
4
1,17
junto, sempre havendo análise de custo-efetividade
Oxcarbazepina
4
1,17
e observando-se da justiça.
Losartana
4
1,17
Teriparatida
4
1,17
Pantoprazol
4
1,17
Conforme se observa na Tabela 1, houve uma ascensão
Glicosamina + condroitina
4
1,17
não só dos recursos gastos, mas também do número de
Total
209
61,39
No Quadro 2, estão os 15 medicamentos mais
frequentemente demandados em 2008, cujo percentual
soma 61,39% do total de itens demandados. Observase que há uma ampla variedade de indicações de uso.
Os dois primeiros itens perfazem um total de
Nas farmácias públicas estaduais e municipais, são
disponibilizadas alternativas terapêuticas a esses
Os recursos utilizados para aquisição de medicamentos vêm assumindo proporção significativa no
montante do orçamento do Estado do Espírito Santo.
atendimentos.
Do total de recursos disponibilizados no ano de
2008, 85,4% foram gastos com aquisição de medicamentos padronizados e 14,6% com medicamentos nãopadronizados. Nesses, estão incluídos os medicamentos
fornecidos através de demanda judicial.
Como relatado anteriormente, não há dados
disponíveis nos meses de janeiro a julho de 2008 sobre os gastos com medicamentos sob decisão judicial,
havendo apenas após o mês de agosto, como mostra
a Tabela 2.
Tabela 2 – Percentual de recursos gastos por meio de
demandas judiciais nos meses de agosto a dezembro
de 2008
Mês
Recursos gastos (R$)
Percentual
Agosto, 2008
231.036,66
9,74
Setembro, 2008
356.900,78
15,04
Outubro, 2008
402.223,62
16,95
Novembro, 2008
696.293,34
29,35
Dezembro, 2008
Total
686.013,13
28,92
2.372.467,53
100
Fonte: Adaptado de Sesa/Sistema MV, 2008.
Tabela 1 – Gastos com medicamentos na Sesa versus número de atendimentos
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
Gastos com medicamentos (em R$ milhões)
13,98
22,11
29,9
44,64
64,92
70,04
95,00
Número de atendimentos
69.000
107.000
130.000
148.000
208.000
245.000
309.000
Fonte: Adaptação das informações fornecidas pela Sesa/Geaf, 2008.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010
SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R.
•
Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda
Isto posto, para que fosse possível a extração de um
valor anual de gastos com medicamentos advindos de
e da real necessidade do tratamento, ensejando prática
inadequada do impetrante.
decisões judiciais, definiu-se um valor médio, extraído
Tal assertiva encontra consonância e eco no discur-
dos meses de agosto a dezembro de 2008. Dessa forma,
so de Demo (1995), Boff (1984) e Herkenhoff (1999;
partindo do montante dos primeiros meses e dos valores
2000) sobre direito e justiça, os quais afirmam que
reais dos últimos meses, foram encontrados valores apro-
toda essa questão perpassa a necessidade do direito e da
ximados de R$ 5 milhões de recursos para medicamentos
justiça social, esta última a ser perseguida pelo Estado,
oriundos de decisões judiciais – 5% do valor total gasto
em cumprimento ao que está previsto na Declaração
com todos os medicamentos pela Sesa.
Universal dos Direitos Humanos para cada cidadão. Os
argumentos citados referem-se ao instrumento de alcance da justiça, à constituição, que nas palavras de Kelsen
DISCUSSÃO
(2000), é apenas uma parte da ordem geral do Estado,
um método a partir do qual são geradas as normas que
configuram as relações entre os homens. Diz este autor
A porta de entrada dos usuários de qualquer
medicamento, seja ele de baixa, média ou alta comple-
que a constituição jamais pode ser a justiça, mas apenas
o caminho através do qual se chega a ela.
xidade, tem sido as farmácias dos Centros Regionais
Mas como atender a necessidade ou direito de um
de Especialidades (CREs), por se tratar de locais de
cidadão sabendo que está havendo justiça naquela situa-
atendimento e fornecimento de medicamentos de alto
ção específica? Como saber se o insumo que está sendo
custo. Na tentativa frustrada de atendimento nos mu-
solicitado realmente protegerá e recuperará a vida da pes-
nicípios ou em outros serviços e na impossibilidade de
soa se todos os seres devem partir do pressuposto de que
aquisição por conta própria, dirige-se ao CRE e, como
a vida é o bem mais precioso e que deve ser protegido?
ocorre rotineiramente, se o medicamento não consta da
Em contraposição a esse fato, existem situações comuns
Relação do PMDCE ou por algum motivo não consegue
de demanda para fornecimento de medicamento apenas
adquiri-lo, recorre-se à justiça.
lançado no mercado cuja segurança e eficácia terapêu-
As vias pelas quais os cidadãos encontram o acesso
tica ainda aguarda consenso, ou para casos em que foi
aos insumos variam de acordo com as possibilidades
iniciado tratamento com medicamento resultante de
pessoais, sendo por meio da defensoria pública, de
estudo promovido pela indústria, cujo fornecimento é
contratação de advogado ou do Ministério Público. As
suspenso, gerando interrupção e deixando nas mãos do
argumentações descritas nas notificações relacionam-
usuário a continuidade, caso queira ou possa assumir.
se, em sua maioria, aos direitos constitucionais, à
Na maioria das vezes, essa demanda chega ao SUS, pois
universalidade do acesso estabelecido pelo SUS e à
normalmente se refere a produtos de alto custo ou de
iminência do risco de vida, sempre priorizando-se
difícil aquisição por serem exclusivos de alguma empresa,
o direito à vida. Na verdade, pode-se observar, em
o que inviabiliza seu custeio.
algumas situações, o arroubo da urgência ou do risco
Na verdade, além de imputar dúvidas quanto
de vida baseado em prescrição médica pouco esclare-
ao fato de a vida estar realmente sendo protegida ou
cedora para um usuário não-conhecedor do seu agravo
resguardada em inúmeros casos, as ações tem gerado
conflitos na distribuição e utilização dos recursos fi-
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296
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Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda
nanceiros, o que reflete na organização dos serviços.
cupação com a ampliação do acesso a medicamentos
Os gestores devem cumprir a Lei de Responsabilidade
resultou em inclusão de produtos não-constantes da
Fiscal e planejar suas ações assistenciais ou regulatórias
Relação de Medicamentos de Dispensação Excepcio-
de acordo com o orçamento previsto para esse fim. Na
nal publicada pelo Ministério da Saúde. Outro fator
ocorrência de demandas não previstas, há uma realo-
essencial é a organização do serviço com a finalidade
cação de recursos para essa nova necessidade, levando
de minimizar os desgastes sofridos pelo cidadão com
a aquisições de medicamentos ou outros insumos de
interrupções de tratamentos por falta de medicamen-
forma não-planejada.
to. A cobertura constantemente acima de 90% tem
No que se refere ao termo recurso, há de se adentrar
refletido em atendimento mais equânime e justo.
na tão citada e questionada escassez ou limitação de
Por entender que o judiciário e o Ministério
recursos. Para esse assunto, alguns pontos divergentes
Público devem cumprir seu papel de guardiões da
foram encontrados ao longo do estudo. Em entrevista,
lei e que há espaço para diálogo, paralelamente a
houve o relato de que se vislumbra o início da supera-
todo movimento de organização do serviço tem sido
ção dos impasses com a parceria entre os poderes, pois,
evidenciada a priorização de que esse diálogo não seja
apesar da universalidade preconizada, a constituição não
fechado ou impossibilite a resolução das pendências
assegurou recursos suficientes para atender a esse princí-
administrativas da Sesa. No ano de 2004, foram
pio, apesar de se contabilizarem avanços nessa área com
iniciados debates com o judiciário, controle social,
a promulgação da Emenda Constitucional (EC) n.º 29,
sociedade civil e científica, gestores e o Ministério Pú-
que assegura recursos mínimos para a saúde. Infelizmen-
blico. Esses momentos se repetiram e culminou com
te, esta emenda dorme ainda em berço esplêndido, à
a publicação da Portaria estadual nº 036-R de 7 de
espera da decisão dos legisladores do país.
julho de 2005, que tratou da organização do atendi-
Nessa discussão, cabe ressaltar que o Estado é
mento nas unidades de dispensação de medicamentos
considerado o responsável pela saúde do cidadão.
excepcionais e, em 2007, por meio do Decreto nº
Partindo-se das discussões sobre Estado realizadas por
1.956 R, aprovou a Política Farmacêutica do estado
Bobbio (2001), Lima (2002) e Testa (1992) acerca da
do ES e instituiu o Fórum Intersetorial Permanente
inserção do povo na organização e participação das ações
de Assistência Farmacêutica.
estatais, conclui-se que os poderes executivo, legislativo
Para respaldar as análises técnico-científicas das
e judiciário, assim como todo cidadão, são parte do
solicitações de medicamentos, existem os Centros de
Estado, responsáveis pela tarefa de implementar as
Informação sobre Medicamentos (CIM)2, presentes
práticas voltadas ao estado de bem-estar social previsto
nas secretarias de saúde, universidades e em alguns
na constituição e a justiça social.
municípios de grande porte. Observa-se que, na maio-
No caso do ES, há uma evidente busca pelo cum-
ria dos serviços, não existe literatura científica idônea
primento do que determina a Carta Magna. Confor-
que possa embasar os técnicos no momento de emitir
me dados apresentados, o número de atendimentos no
parecer sobre determinada indicação para os juízes.
PMDCE foi aumentado consideravelmente e a preo-
Para que seja viabilizado esse modelo, pode-se utilizar
Realizam a provisão de informação adequadamente referenciada, criticamente avaliada e, sobretudo, imparcial sobre quaisquer dos aspectos relacionados à prática
farmacêutica. A meta principal dos CIMs é a promoção do uso racional dos medicamentos. Para alcançar esta meta, a informação prestada deve ser objetiva,
imparcial e imune a pressões políticas e econômicas (Marin, 2003, p. 143).
2
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SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R.
•
Política de medicamentos excepcionais no Espírito Santo: a questão da judicialização da demanda
o formato de parceria entre o Ministério da Saúde, as
R E F E R Ê N C I A S
Secretarias de Saúde e, se possível, o judiciário para
o incentivo, financiamento, uniformidade nas ações
e, principalmente, para a legitimidade frente aos
Amaral, G. Direitos, escassez e escolha: em busca de critérios
gestores, possibilitando o conhecimento e reconhe-
jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões
cimento dos CIMs como necessários e importantes.
trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
No ES, o Centro de Informação sobre Medicamentos
Ataliba, G. Superação jurídica da constituição de 1988. In:
do Espírito Santo (Ceimes) iniciou suas atividades
em 1999 e tem exercido um papel fundamental em
todos os debates relacionados a medicamentos e ao
seu uso racional.
Não deve ser esquecido o papel do Ministério
da Saúde enquanto órgão regulador e normatiza-
Cunha, S.S. (Org.). Revisão constitucional: aspectos jurídicos,
políticos e éticos. Porto Alegre: Fabris, 1993. p. 27-56.
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dor das ações dos profissionais prescritores com a
Revista dos Tribunais, 1998.
finalidade de minimizar as pressões da indústria
Barros, J.A.C. Políticas farmacêuticas: a serviço dos interesses
para prescrição dos medicamentos não-essenciais
da saúde? Brasília: Unesco/Anvisa, 2004.
e de eficácia desconhecida. Uma das facetas deste
papel está presente na proposta de que os Protocolos
Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) sejam
não apenas recomendações, mas uma determinação
de condutas, como existe oficialmente nos planos
privados de saúde. Com essa finalidade, tramita um
projeto de lei que tratará desse tema a fim de estabelecer regras de prescrição para profissionais que
Bermudez, J.A.Z. Produção de medicamentos no setor
governamental e as necessidades do sistema único de saúde.
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Agradecimento especial ao Professor Doutor.
Boff, L. Do lugar do pobre. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1984.
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até hoje, e aos Doutores Silvio César Machado dos
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pelo apoio e disponibilização das informações para
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Programas e Relatórios, n. 25.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010
297
298
SARTÓRIO, M.J.; BORDIN,R.
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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 288-298, abr./jun. 2010
Recebido: Junho/2005
Aceito: Maio/2007
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade:
interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde
Democratic prospects and their conditions of possibility: intersections between political
participation in SUS and health management
Francini Lube Guizardi1
Felipe de Oliveira Lopes Cavalcanti2
Psicóloga; Doutora em Saúde Coletiva
pelo Instituto de Medicina Social da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (IMS/Uerj); Assistente de
pesquisa do Laboratório de Educação
Profissional em Gestão em Saúde da
Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz).
[email protected]
RESUMO Este é um estudo teórico, com o objetivo de discutir a democratização
Médico residente em Medicina
Preventiva e Social pela Universidade
Federal Fluminense (UFF); Mestrando
em Saúde Coletiva pelo IMS/Uerj.
[email protected]
a participação política como sendo ela própria uma atividade de luta e saúde.
1
2
das relações sociais no SUS. A reflexão foi realizada a partir do conceito de
atividade e tem como foco a interface entre realidade social, política e gestão.
Dado o peso da tradição gerencial hegemônica, discute-se a constituição de planos
de visibilidade sobre os modos como são forjados e confrontados os valores nas
instituições de saúde. Por fim, apresentamos a consideração de que é no âmbito
da gestão desses processos, nos territórios reais onde ocorrem, que podemos pensar
PALAVRAS-CHAVE: Políticas públicas; Democracia; Participação comunitária;
Gestão em saúde.
ABSTRACT This is a theoretical research with the purpose of discussing the
democratization of social relations in the Brazilian National Health System
(SUS). This reflection was made from the concept of activity and focused on the
interface between the social reality, politics and management. Because of the
weight of hegemonic management tradition, the making of a visibility plan on
the ways the values are forged and confronted in health institutions was discussed.
Finally, we presented the importance of thinking of political participation under
the management of these processes, in the real territories where they occur, so that
it becomes itself an activity of struggle and health.
KEYWORDS: Public policies; Democracy; Consumer participation; Health
management.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010
299
300
GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde
I N T R O D U ç ão
Contudo, tal como o direito à saúde não se define estritamente por sua explicitação constitucional,
também a participação política não depende apenas
da existência formal desses espaços para ser efetiva na
A CONSTITUIÇÃO DO PROBLEMA: O QUE É
gestão das políticas públicas de saúde. De modo geral,
PARTICIPAR?
têm persistido inúmeros obstáculos à concretização das
expectativas a eles vinculadas, dentre as quais se destaca a reversão do padrão de planejamento e execução
As lutas políticas pela democratização de nossas
das políticas de saúde em direção à radicalização do
relações sociais têm, no campo da saúde, um horizonte
projeto democrático – aspecto principalmente perti-
promissor, principalmente quando comparado à his-
nente à sua capacidade de determinar a produção das
tória do Estado brasileiro e de suas políticas públicas,
políticas públicas, a partir das características locais e
em especial, as políticas sociais. Esse caráter inovador
regionais e da experiência dos setores e grupos sociais
pode ser particularmente vislumbrado no Sistema
implicados.
Único de Saúde (SUS), com a criação das Conferências
Nessa direção, os estudos sobre o tema apresentam
e Conselhos de Saúde, espaços em que o princípio
um conjunto de dificuldades que tem obstaculizado o
constitucional de participação da comunidade adqui-
exercício de suas prerrogativas na definição, acompa-
riu configuração institucional, expressando o projeto
nhamento e avaliação das políticas de saúde. Nos 19
de democratização do planejamento e execução das
anos de experiência com os conselhos, hoje presentes
políticas de saúde no Brasil. A formalização dessas
em 5.555 municípios e nos 27 estados brasileiros1,
instâncias, com a lei federal no 8.142, de 28 de dezem-
tem-se constatado que a participação, principalmente
bro de 1990, consistiu num esforço de se assegurar a
do segmento dos usuários, tende a ser cerceada, na
existência de espaços de representação dos segmentos
medida em que a presença quantitativa, assegurada
que compõem o SUS, com caráter permanente e de-
com o requisito jurídico da paridade, mesmo quando
liberativo, dotados de prerrogativas de formulação de
cumprida, não significa uma correspondência direta com
estratégias, acompanhamento e fiscalização da execução
a capacidade de intervenção. Interferem nesse aspecto
das políticas de saúde.
os artifícios de poder do discurso técnico-científico
(Wendhausen; Caponi, 2002; Ribeiro; Andrade,
1
Os conselhos foram incorporados à Constitui-
2003; Ribeiro, 1997), as dificuldades dos mecanismos
ção, na suposição de que se tornariam canais
de representação (Cortes, 2009; Escorel; Morei-
efetivos de participação da sociedade civil e
ra, 2009; Coelho, 2007; Bello, 2006; Serapioni;
formas inovadoras de gestão pública a permitir
Romani, 2006; Cohn, 2003; Labra; Figueiredo,
o exercício de uma cidadania ativa, incorpo-
2002; Tatagiba, 2002; Wendhausen; Caponi, 2002;
rando as forças vivas de uma comunidade à
Pessoto; Nascimento; Hiemann, 2001), a tendência
gestão de seus problemas e à implementação de
de reprodução do jogo político local, em suas relações
políticas públicas destinadas a solucioná-los.
de força e exercício de poder (Pinheiro, 1995), e a
(Gerschman, 2004, p. 1672).
apropriação dos conselhos pelo poder executivo, com
Dados disponíveis em: http://conselho.saude.gov.br
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010
GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde
um consequente caráter monológico, prevalecendo na
que ele interrompe necessariamente. [...] Se o
dinâmica desses espaços (Wenhausen; Cardoso, 2007;
sentido da política é a liberdade, isso significa
Moroni, 2005; Guizardi, 2003; Ribeiro; Andrade,
que nesse espaço – e em nenhum outro – temos o
2003; Wendhausen; Caponi, 2002).
direito de esperar milagres. Não porque fôssemos
Tais questões trazidas sobre a concretização do
crentes em milagres, mas sim porque os homens,
controle social nos conselhos de saúde apontam-nos
enquanto puderem agir, estão em condições de
um debate necessário sobre a eficácia dos dispositivos
fazer o improvável e o incalculável e, saibam
institucionais de participação política existentes no SUS.
eles ou não, estão sempre fazendo. (Arendt,
Remetem-nos, sobretudo, à discussão sobre a construção
1998, p. 42).
e articulação de novos recursos e artifícios de participação que expressem a diversidade das experiências e
Pensar a constituição do novo, do que se situa fora
posicionamentos na produção das políticas de saúde.
das possibilidades que o presente reconhece significa,
Isso porque o princípio de participação da comunida-
em nossa compreensão, interrogar radicalmente os
de supõe que a constituição da política seja porosa às
dispositivos e os sentidos que a participação política
demandas, realidades e “fazeres” dos diferentes agentes
adquiriu no SUS. Esse é o propósito deste ensaio, no
e grupos sociais, possibilitando não somente a atuali-
qual buscamos explorar o conceito de participação
zação das formas já instituídas do direito à saúde, mas
política a partir de contribuições vindas da Sociologia
também a expressão de seus movimentos instituintes,
do trabalho e da Filosofia. Salientamos que o esforço
em outros termos, sua expressão como constituição de
de interrogar criticamente este conceito não pressupõe
políticas públicas e, portanto, constituição do próprio
a negação ou desconstrução das alternativas já criadas.
direito à saúde.
Nossa intenção, em contrapartida, foi propor pergun-
Em nossa compreensão, esse desafio não trata, exa-
tas que nos ajudassem a estranhar as realidades que se
tamente, de fazer o político corresponder ao social, mas
apresentam como fechadas, já determinadas em seus
de “inserir a produção do político na criação do social”
horizontes de possibilidade, de modo que possamos
(Negri, 2002, p. 425), de afirmar a dimensão política
avançar na consolidação e efetividade dessas instâncias.
da ação como as possibilidades e os usos na produção de
Perguntas como, por exemplo,
realidades sociais. Como coloca Arendt (1998), o sentido
da política é a liberdade, a liberdade de produção do
o que é – ou o que está sendo entendido como
novo, razão pela qual qualificamos como sendo política
participação?, [...] questão [que] se desdobra em
a participação que esperamos ver no SUS:
outras perguntas também anteriores à análise da
efetividade de um determinado arranjo parti-
[...] sempre que algo novo acontece, de maneira
cipativo. Que processos devem ser considerados
inesperada, incalculável e por fim inexplicável
como participatórios: a escolha de representantes
em sua causa, acontece justamente como um
(e por que vias) ou a expressão direta de demandas
milagre dentro do contexto de cursos calculáveis.
(individuais ou coletivas)? Que dimensões da vida
Em outras palavras, cada novo começo é, em sua
social devem ser destacadas para que se identifique
natureza, um milagre – ou seja, sempre visto e
a ação participativa? Enfim, em termos teóricos,
experimentado do ponto de vista dos processos
como definir participação? (Brasil, 2006).
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302
GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde
Sem tais estranhamentos, deduzimos que, dificilmente, os obstáculos mapeados poderão ser desfeitos
ATIVIDADE HUMANA E SUAS RELAÇÕES
COM A POLÍTICA
e superados, o que significa não somente intervir nos
efeitos que geram, mas também em seus regimes de
produção, nos entrelaçamentos e determinações que
Para interrogar criticamente a restrição da partici-
os atualizam em tão diversas circunstâncias. Colocar
pação política a mecanismos de representação, utilizamos
nesse plano o problema da participação política no SUS
como fundamento o conceito de atividade, que procura
consiste em aceitar o repto de criar novas alternativas e
expor a fragilidade da segregação entre os territórios da
também de reinventar as já existentes, de aproximá-las
prática política e o conjunto das relações sociais. Nesse
das expectativas éticas de democratização social que o
sentido, ele representa uma provocação que busca a
direito à saúde expressa e mobiliza.
expansão dos significados atribuídos comumente à
Partimos de uma formulação teórica que direcio-
política, destacando as implicações políticas inerentes à
na o percurso desta reflexão, segundo a qual discutir
produção de realidade social. Esse é um conceito oriun-
a participação política no SUS exige problematizar
do das contribuições do campo da Ergologia, na qual a
as opções e concepções que orientam sua definição e
atividade corresponde à especificidade de toda experi-
operacionalização, estritamente por meio de mecanis-
ência humana. Tal abrangência baseia-se no fato de que,
mos de representação. Essa posição nos levou a propor
marcada pela singularidade e pela impossibilidade de ser
o deslocamento de nosso objeto de análise. Assim, a
completamente antecipada, esta experiência é sempre
reflexão sobre as possibilidades de participação políti-
produtora de história (Schwartz; Durrive, 2007).
ca no SUS foi, neste trabalho, remetida ao cotidiano
Dimensão inédita da atividade, que, inevitavelmente, é
institucional da gestão. Tal opção não pretende negli-
confrontada com a expectativa de determinações, por
genciar os avanços obtidos com a conquista dos fóruns
meio de imposições normativas à ação humana, posto
institucionalizados de participação. Ao contrário,
que nenhuma prescrição é capaz de conter a atividade
supõe-se que sua necessária e desejada eficácia depende
em seu registro, de esgotar toda variabilidade singular
da capacidade de radicalizar o projeto democrático,
do contexto de sua realização. Frente a esse inédito,
estendendo a participação à construção e gestão coti-
ao qual nenhuma norma antecedente pode responder,
diana da política de saúde, posto que é na dinâmica
faz-se história, são reinterrogados os saberes, as normas
do funcionamento dos serviços que concretamente a
– produz-se incessantemente realidades sociais. Dessa
população vive – como realidade material – o direito
forma, a atividade produz história na medida em que
à saúde. Afinal,
proporciona a experiência inédita do encontrar de sujeitos, saberes, técnicas, normas, instituições etc.
a participação não pode ficar restrita a uma
A atividade é feita, então, no âmbito da problemá-
interpretação meramente formal dada pela
tica negociação frente aos espaços de possíveis abertos
democracia representativa. Faz-se necessário,
à experiência, à renormalização parcial dos meios de
portanto, ampliar a noção de participação
vida, já que, conforme Canguilhem (1990), a saúde
de modo a resgatar um conteúdo mais ativo,
seria justamente a capacidade de criar novas formas de
de modo que a democracia possa realmente se
vida em confrontação com o meio. Assim, o conceito
aprofundar. (Santos, 2008, p. 8).
de atividade pode ser remetido a essa perene tentativa
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010
GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde
de desneutralizar a relação com o meio, de procurar
recentrá-lo, segundo suas próprias normas.
As decisões conformadas pela atividade, no encontro do gerir que se torna, assim, coletivo e compar-
Essa noção de atividade remete, portanto, ao
tilhado, emergem como formas e sentidos para a vida,
desafio – sempre colocado aos homens – de viver e
instituindo uma confrontação de valores que produz o
fazer história. Afinal, a vida não pode ser reduzida ao
humano e seus mundos possíveis. Essa afirmação nos
estrito enquadramento, à absoluta heterodetermina-
reconduz à compreensão das implicações políticas do
ção e assujeitamento (Schwartz; Durrive, 2007).
agir humano.
Ao formular assim o conceito, os autores enfatizaram
A tradição disciplinar das Ciências Políticas ten-
a impossibilidade de conter a vida no prescrito, no
deu a encerrar o político nas instituições estatais, nas
codificado, no instituído. Em sua compreensão, in-
dimensões identificadas como macrossociais, reportando
sistentemente ela os extrapola, exatamente na medida
a política unicamente ao plano do instituído, do norma-
em que exige do humano a criação, a reinvenção
lizado, às tecnologias de governamentalização da vida e
incessante de seus modos de existência. Prerrogativa
suas tentativas de contê-la no existente. Mas a política,
ontológica que garante a todos ser e fazer história, a
ao contrário de restringir-se a tais instituições, abarca-
cada momento singular, sendo essa composição do
as na medida em que remonta às definições acerca do
conceito que nos interessa, por auxiliar o entendi-
existir. Isso, contudo, sem que equivalha à artificialidade
mento da dimensão constituinte do agir que impede
das fronteiras que tradicionalmente separam o social,
sua objetivação absoluta.
o político, o econômico e o subjetivo. O político é,
Tal demanda imperativa somente pode ser di-
segundo essa leitura, horizonte ontológico, perspectiva
rigida a sujeitos. Esclarecemos a necessária distinção
de constituição histórica de ser social (Negri, 2002) que
entre sujeitos e individualidades, sendo o primeiro
se faz política não por ser exclusivamente estatal, mas
conceito pertinente àqueles que, estando no centro da
por incidir nos dispositivos de poder que configuram a
atividade, respondendo ativamente pela gestão de suas
produção de realidades sociais. Tomando por base essa
variabilidades, pela síntese de todos os elementos hete-
compreensão da questão, a atividade humana é emi-
rogêneos por ela requisitados e postos em movimento,
nentemente política. É plano aberto de possibilidades
respondem também pelo debate de normas e, portanto,
ao ser política, ao instituir formas de vida, ao implicar
de valores que dela resulta. Talvez seja esse, justamente,
os contornos e sentidos do humano.
o ‘coração’ da atividade, a despeito de toda diversidade
Olhar para a atividade a partir dessa perspectiva
que o conceito abarca: o fato de a atividade requisitar
significa colocar em primeiro plano a implicação ética
a produção e a confrontação de valores, de pressupor
de sua transversalidade. Se a atividade requisita, por
a existência de escolhas. Escolhas do viver que expõem
definição, a produção e a confrontação dos valores
a implicação dos sujeitos na configuração e atualização
que organizam nossas sociedades (já que não há va-
de territórios existenciais, na constituição de ser. Essas
lor restrito à esfera individual e a linguagem nos faz
definições, ainda que ínfimas, não remetem jamais ape-
impreterivelmente criadores e herdeiros de sentidos
nas às individualidades, uma vez que, por meio delas,
partilhados), ela também nos convida – ou intima – a
são definidas as relações com os outros, com modos de
interrogar permanentemente a forma como os valores
vida, formas de sensibilidade, sociabilidade, referências
engendram e determinam as normas antecedentes do
simbólicas e territórios existenciais.
existir coletivo. Desafio que remete a uma passagem do
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GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde
político ao ético, principalmente quando se observa que
seus membros um certo tipo de comportamento,
grande parte das normas existem como dispositivos de
impondo inúmeras e variadas regras, todas elas
objetivação dos sujeitos, de silenciamento da dimensão
tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-
instituinte e radicalmente democrática de sua atividade.
los ‘comportarem-se’, a abolir a ação espontânea e
São as molduras que delimitam os espelhos através dos
a reação inusitada. (Arendt, 1981, p. 50).
quais nos reconhecemos (Schwartz; Durrive, 2007):
saberes, formas de desejar, de valorar, regras do conviver,
Em nossa compreensão, o que a autora identifica
normas do fazer e do ser. O viver humano, porém, escapa
como “ação espontânea e reação inusitada” é justamente
permanentemente às tecnologias e dispositivos de poder
o caráter de normatividade que constitui a dimensão
que ensaiam sua clausura.
política da atividade humana e que, nesse sentido, é
Em suma, quando colocamos o tema da objeti-
transversal a todas as relações dos homens entre si e com
vação dos sujeitos, nos deparamos com tecnologias de
o mundo (o que, aliás, só arbitrariamente pode ser assim
governo que têm como enredo maior a expropriação
dividido). Tomando como referência as considerações
da dimensão política da atividade humana. O princi-
da autora, podemos dizer que tanto a emergência da
pal mecanismo desse exercício de poder é a produção
esfera social como espaço público por excelência, quanto
de invisibilidade para as implicações políticas do viver,
a organização política do Estado na modernidade têm
mesmo e principalmente em sua dimensão cotidiana
por base o mesmo processo: a redução da autonomia
– tecnologias de governo que se revelam característica
política dos sujeitos na produção de realidade social.
fundamental da sociedade moderna. Consideramos
Quanto a isso, a experiência da polis grega permanece
interessante destacar a sinalização feita por Arendt
emblemática. Não por sua fundação na distinção entre
(1981) sobre as especificidades da experiência política
trabalho e ação, ou seja, na distinção entre o espaço
na modernidade, particularmente no que diz respeito à
privado da família, a produção e a política, mas porque,
substituição da ação pelo comportamento. Fenômeno
apesar dessas exclusões e desigualdades, o que Arendt
cujo maior efeito é a destituição do caráter político da
(1981) identifica como o espaço discursivo da aparência,
esfera pública. O aspecto que Arendt sugere aferirmos,
situava-se em primeiro plano na organização coletiva,
na prevalência dos problemas (e da construção de sua
conferindo visibilidade à experiência política. É o fato
legitimidade), como pertinentes, exclusivamente, à ga-
de ser condicionada pela possibilidade de trazer à apa-
rantia dos processos vitais de subsistência. Levando-se
rência processos – os quais, de outro modo, passariam
em consideração apenas as questões relativas à esfera
por naturais e autônomos – que determina a especifi-
da necessidade, ou pautando-se por ela as demais, não
cidade dessa experiência e torna a ação (definida aqui
se pode estranhar que o uso se converta em consumo,
pelo caráter normativo com que se coloca no artifício
com a emergência da sociedade moderna, e que seus
humano de um mundo de relações) e o discurso seus
processos adquiram aceleração crescente.
elementos essenciais.
Um fator decisivo é que a sociedade, em todos os
[...] Tudo o que os homens fazem, sabem ou
seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que
experimentam só tem sentido na medida em
antes era exclusiva do lar doméstico. Ao invés
que pode ser discutido. Haverá talvez verdades
da ação, a sociedade espera de cada um dos
que ficam além da linguagem e que podem ser
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GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde
de grande relevância para o homem no singular,
tados socialmente torna-se, em nossa compreensão,
isto é, para o homem que, seja o que for, não é
questão política fundamental.
um ser político. Mas os homens no plural, isto é,
Tais considerações devem ser associadas ao fato de
os homens que vivem e se movem neste mundo,
que as instituições que configuram a sociedade signifi-
só podem experimentar o significado das coisas
cam mais que estabelecimentos ou organizações – cor-
por poderem falar e ser inteligíveis entre si e
respondem às lógicas que funcionam como reguladoras
consigo mesmos. (Arendt, 1981, p. 50).
e estruturantes das práticas sociais, e que, segundo o
grau de formalização que adotem, podem expressar-se
tanto em leis e normas, como em regularidades de comportamentos. São, nessa acepção (Baremblitt,1992),
A GESTÃO COMO PRODUÇÃO DE NORMAS
lógicas normativas que fazem movimentar sentidos e
E DE SAÚDE
territorializações existenciais, usualmente, sem que tal
caráter produtivo seja explicitado.
Esse aspecto é relevante no debate sobre a forma
A discussão que empreendemos sobre as relações
como a gestão em saúde se concretiza. Para Campos
entre atividade e política explicitam que a norma remete
(2000), não obstante seus compromissos democráticos,
necessariamente à afirmação de valores. Na medida em
o SUS atualizou o que se designa como racionalidade
que se institui uma referência do normal, alguns valores
gerencial hegemônica, ou seja, todo um conjunto de
são eleitos em detrimento de outros e se afirmam, então,
recursos e métodos de direção que incorporam como
como constitutivos dos parâmetros nos quais certa nor-
objetivo central a restrição das possibilidades de governo
malidade é reconhecida. Em outras palavras, a norma, o
da maioria.
normal apenas existe como afirmação de valores, ainda
que sendo usualmente equivalente à compreensão na-
A gestão clássica sempre trabalhou a dimensão
turalizada de saúde.
do gerir. O gerir como ação sobre a ação dos
outros. Assim sendo, fortemente amarrada ao
O elemento que circula do disciplinar ao regula-
exercício de poder. Seria ingênuo afirmar que
dor, que se aplica ao corpo e às populações, e que
essa abordagem da gestão não pressupõe produ-
permite controlar a ordem do corpo e os feitos
ção. Pois ela produz o tempo todo. A gestão tem
de uma multiplicidade humana é a norma.
sido a disciplina do controle por excelência. Pre-
(Caponi, 1997, tradução nossa, p. 300).
ocupada sempre com o aumento da produção de
mais-valia, de produtividade, e de reprodução
Essa dimensão, em verdade alicerce da normali-
do status quo. (Campos, 2000, p. 124).
dade, não é evidente em si mesma. Implícitos e pouco
enunciados em seus efeitos, os valores que fundamentam
Mesmo com o exercício discursivo da reenge-
a compreensão do normal e, portanto, das normas que o
nharia organizacional – que advoga a recondução dos
organizam, não são debatidos na experiência cotidiana
processos de trabalho em direção a uma maior flexibi-
dos sujeitos. Razão pela qual a constituição de um plano
lidade, interdisciplinaridade e criatividade, defendendo
de visibilidade sobre os valores produzidos e confron-
a composição de parcerias e a gestão do conhecimento
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GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde
na solução de problemas, com aparente ampliação da
Somos aqui confrontados com uma tradição de
autonomia no trabalho – ainda assim não é difícil
concentração das decisões, pautada pelo estriamento
constatar que o eixo primordial da tradição taylorista
hierárquico da realidade social, que se atualiza pelas
permanece atual. Para Campos (1994, 2000), não é
instituições, pela verticalidade e pelo fluxo descendente
excessivo manter a designação de racionalidade geren-
das informações. Uma tradição para a qual os sujeitos
cial hegemônica, dada a manutenção da disciplina e do
que vivem as políticas pouco ou nada sabem delas, para a
controle dos trabalhadores como aspecto fundamental
qual o planejamento dessa esfera, supostamente pública,
dos modelos de administração contemporâneos, finali-
apenas pode dar-se pelo recurso aos saberes disciplinares,
dade a partir da qual “[...] se faz política, inventam-se
numa dinâmica em que a concepção é anterior e exterior
normas e se promovem alguns valores em detrimento
à execução das políticas.
de outros” (p. 34).
Dado o peso dessa tradição, em nossa perspectiva, o
O controle seria, nesse sentido, fruto da concentra-
compromisso ético que fundamenta o SUS apenas pode
ção de poder, de seu exercício em ato na ordenação da
concretizar-se se forem constituídos planos de visibili-
vida institucional. Prerrogativa garantida aos dirigentes
dade sobre os modos como são forjados e confrontados
de construir o sentido e o significado dos processos, dos
os valores nas instituições de saúde. É preciso que sejam
objetos e das pessoas na produção. Ainda que possam
engendrados artifícios e dispositivos de expressão que
recorrer do terror à sedução, o controle revela-se o nú-
permitam a recriação dos sentidos que se atualizam nas
cleo duro de todas as metodologias de gestão (Campos,
instituições (e que nessa medida as atualizam também)
2000). O mecanismo de sua efetivação gira em torno
– usos das palavras e de matérias outras de expressão,
do princípio de autoridade de que se investe a gestão na
para e pela atividade, que conformem novos e diversos
determinação da organização do trabalho, produzindo
sentidos para o real, que não aqueles do silenciamento e
um leque delimitado de efeitos pedagógicos assentados,
da exclusão. Considerações que nos levam a pensar que
sobretudo, em processos de objetivação dos sujeitos das
a participação política no SUS deve ser necessariamente
práticas institucionais. Dessa forma, concentração de po-
remetida ao campo da gestão em saúde, à organização
der, autoridade e obediência são efeitos produtivos – já
do trabalho em suas instituições e à conformação das
que produzidos e produtores das estruturas hierárquicas
práticas que materializam as políticas de saúde.
das instituições.
Porém, sendo relação e não substância ou lugar
passível de ser possuído, o exercício do poder não é
CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INTERSEÇÕES
jamais completamente expropriado dos sujeitos, o que
ENTRE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO SUS E
faz com que essa forma de gestão, que descontextualiza
GESTÃO EM SAÚDE
a experiência e a dimensão normativa da atividade,
apenas seja possível com a limitação de sua autonomia,
muito embora ela permaneça intervindo como elemento
Frente aos desafios evidenciados, endossamos a
essencial de determinação dos processos sociais – do que
avaliação de Campos (2000, p. 41) sobre o problema
advém a necessidade de centralização da capacidade
do “fortalecimento dos sujeitos (em sua capacidade de
de governo e de acesso aos instrumentos e dispositivos
análise e intervenção) e a construção de democracia
formais desse exercício.
institucional”. Imaginamos que essa é uma perspectiva
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010
GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde
interessante de problematização da gestão, posto que
lidade para os valores que permeiam e embasam os
remete a democracia à capacidade de ser normativa,
processos decisórios que o determinam. É no âmbito
o que implica, necessariamente, as possibilidades de
da gestão desses processos, nos territórios reais onde
cogestão dos processos institucionais.
ocorrem, que podemos pensar a participação política.
A participação como sendo ela própria uma atividade
Todo homem quer ser sujeito de suas normas. A
de luta e de saúde. Mesmo porque esses dois sentidos
ilusão capitalista está em acreditar que as nor-
são dificilmente separáveis. Seguindo o caminho deli-
mas capitalistas são definitivas e universais, sem
neado por Canguilhem, a saúde seria essa capacidade de
pensar que a normatividade não pode ser um
“enfrentar e superar as infidelidades do meio” (Caponi,
privilégio. [...] A vida não é, a bem da verdade,
1997, tradução nossa, p. 291), a margem de segurança
segundo nós, senão a mediação entre o mecânico
que nos permite confrontar os fracassos, erros e desafios
e o valor, é dela que se tiram por abstração, como
inerentes à vida. Distante da alternativa de manutenção
termos de um conflito sempre aberto, e por isso
perene de qualquer equilíbrio, a saúde é justamente esse
mesmo gerador de toda experiência e de toda
movimento de luta pela vida, pela condição de ser su-
história, o mecanismo e o valor. O trabalho é
jeito em suas trilhas, autor de seus percursos. Em outras
a forma que toma para o homem o esforço uni-
palavras, não apenas o movimento de adaptar-se, mas
versal de solução do conflito. (Canguilhem,
também a luta em ser normativo.
2001, p. 121).
É preciso pensar em um conceito de saúde caA participação no SUS poderia colocar-se como
paz de contemplar e integrar a capacidade de
o problema de construção dessa democracia institu-
administrar de forma autônoma essa margem
cional e de publicização dos processos decisórios que
de risco, de tensão, de infidelidade, e por não
conformam as políticas de saúde, para o que é preciso
dizê-lo, de ‘mal-estar’com o qual inevitavel-
desarticular os discursos que pretendem justificar como
mente todos devemos conviver. (Caponi, 1997,
questão estritamente técnica a centralização do poder
tradução nossa, p. 300).
de governo. Ao contrário, a tarefa de repensar a gestão
apenas pode ser abordada na opção pela politização da
Enfim, consideramos importante destacar nos pro-
técnica, como expuseram Gonçalves, Schraiber e Ne-
cessos de produção de saúde e doença suas implicações
mes (1990) ao defenderem a ação programática como
políticas, já que o exercício normativo supõe necessaria-
um valor-saúde. O ponto de partida deve ser “tornar
mente a conformação e atualização de territórios existen-
políticas” as ações e seu cotidiano, no sentido de expor
ciais. Nessa medida, as instituições e políticas públicas
suas implicações com a configuração da assistência,
são uma arena normativa incontornável, em que saúde
seus efeitos sobre a produção do bem comum que é a
e autonomia são sentidos que não podem ser dissocia-
política de saúde.
dos. Mas essa garantia depende de lutas que remetem
Tais colocações nos levam a questionar as decisões
à instituição de outras normas, à construção de outros
e opções técnico-políticas que tornaram possíveis os
dispositivos de participação política que proporcionem
desenhos institucionais esboçados no SUS. Falamos,
visibilidade para a produção dos valores legitimados e
aqui, do desafio de constituição de planos de visibi-
institucionalizados pelas práticas de gestão.
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GUIZARDI, F.L.; CAVALCANTI, F.O.L. • Perspectivas democráticas e suas condições de possibilidade: interseções entre a participação política no SUS e a gestão em saúde
Essas questões demonstram a necessidade de
R E F E R Ê N C I A S
repensar os modos de gestão do sistema de saúde,
já que o cotidiano institucional expõe as limitações
que a tradição gerencial enfrenta na concretização
de projetos e programas, principalmente quando se
apresenta como horizonte desejado a transformação
de suas instituições. Nesse sentido, a realização das
políticas públicas do setor vai muito além de sua
adequada formulação ou da criação de mecanismos
de controle burocratizados. A experiência histórica
de implementação do SUS manifestou a ineficácia
resultante de tentativas de estabelecer objetivos, novos
instrumentos de produção de informação, reorganizar
os processos de trabalho, reformular a composição das
equipes, construir novas unidades e disponibilizar verbas, inclusive grandes investimentos em capacitação,
sem que sejam questionadas no âmbito da gestão as
relações cotidianas de poder que permeiam e configuram as instituições de saúde. De fato, as dificuldades enfrentadas nos confrontam com os limites das
tentativas de reformar as instituições sem explicitar
a dimensão política das práticas, sem produzir visibilidade para as implicações que geram na produção
de valor. Aspecto que significa, em outras palavras,
interrogar os dispositivos de poder que respondem
pela restrição da capacidade de governo da vida da
maioria. Com isso, pretendemos justificar a posição
assumida de que a discussão sobre o que seja e o que
se deseja da ação de participar não deve ser entendida
estritamente como representação em espaços instituídos para este fim – como no caso dos colegiados e
conselhos administrativos – mas como pertinente ao
cotidiano das atividades institucionais, sem o que dificilmente os espaços já formalizados de representação
política deixarão de reproduzir as relações de força que
os sujeitos historicamente vivenciam no dia a dia do
sistema de saúde. Condição, enfim, para a reinvenção
das possibilidades democráticas no SUS.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010
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Recebido: Outubro/2009
Aceito: Janeiro/2010
Pinheiro, R. Conselhos de Saúde: o direito e o avesso. Dissertação (Mestrado em Medicina Social). Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1995.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 299-309, abr./jun. 2010
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ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Gênese de um conselho local de saúde
Genesis of a local health council
Renata Mota Rodrigues Bitu Sousa 1
Carlos Botazzo 2
Cirurgiã-dentista; Mestre em
Ciências, Área de Concentração em
Saúde Coletiva, pela Coordenadoria de
Controle de Doenças da Secretaria do
Estado da Saúde de São Paulo (SESSP); Doutoranda em Saúde Coletiva
pela Universidade Federal do Ceará
(UFC).
[email protected]
1
Pesquisador-científico do Instituto
de Saúde; Docente comissionado do
Departamento de Odontologia Social
da Faculdade de Odontologia da
Universidade de São Paulo (Fousp);
Doutor em Saúde Coletiva pela
Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
[email protected]
2
RESUMO O estudo objetivou investigar o modo como se articula o discurso da
participação social na constituição do conselho da unidade de saúde da família do
bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Foram utilizados recursos da pesquisa qualitativa,
com observação, diário de campo e entrevistas com seis conselheiros. Acompanhamos a
história do conselho durante 18 meses consecutivos, desde a sua gênese. Revelou-se que a
necessidade de criação do conselho partiu de meta estabelecida pela prefeitura. Os limites
e entraves para a implantação do PSF na região constituíram fortes propulsores para a
consolidação do conselho na unidade. A consolidação dos conselhos locais é importante
pelo fato de estarem mais próximos da realidade das pessoas e menos impregnados de
burocracia, o que torna as discussões menos técnicas e mais socializadoras.
PALAVRAS-CHAVE: Controle social; Participação social; Estratégia de saúde da
família; relações de poder; Conflitos institucionais; Sistema Único de Saúde.
ABSTRACT This study aimed to investigate how the discourse of community
participation was articulated to the constitution of the Family Health Unit in
the neighborhood of Bom Retiro, Sao Paulo, Brazil. We employed theoretical and
methodological resources of qualitative research, with observation, field journal
and interviews conducted with six councilors. We followed the history of the council
since its genesis during 18 consecutive months. It was revealed that the need for the
creation of the mentioned council came from a goal set by the city government. The
limits and boundaries faced by the program in the region were considered to be strong
boosters for the consolidation of the local council. The establishment of local councils is
important due to their closeness to the reality of life and destitution of the management
bureaucracy, which makes the discussions less technical and more socializing.
KEYWORDS: Social control; Social participation; Family health strategy; Power
relationships; Institutional conflicts; National Health System.
* Esta pesquisa contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
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I N T R O D U ç ão
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Gênese de um conselho local de saúde
do Sistema Único de Saúde (SUS) se apresentaram, entre
elas a participação da sociedade.
Como resultado da aglutinação de distintos seg-
Este artigo toma por base os princípios que nor-
mentos sociais no movimento de constituição da saúde
teiam a construção de um sistema de saúde universali-
como um direito de cidadania, seguiu-se, na elaboração
zado e com capacidade de contribuir para a melhoria
do capítulo de Seguridade Social da Carta Constitu-
da qualidade de vida das pessoas, focando as correntes
cional de 1988, uma seção específica que contempla,
de pensamento que explicitam a saúde enquanto prática
para a organização do SUS, as seguintes diretrizes: a)
social permeável e penetrável por interesses populares
descentralização com comando único em cada esfera de
ou, mais do que isto, literalmente públicos.
governo; b) integralidade no atendimento, priorizando
Sem dúvida, o entusiasmo causado pela ascensão
do discurso sobre a participação popular nos pro-
as ações preventivas; c) participação da comunidade
(Elias, 1996; Brasil, 1988).
cessos que definem o andamento do que é público
Segundo nos apontam Carvalho e Santos (1995), a
fica mais contido na medida em que se aproxima do
sociedade concretiza sua participação institucional pela
plano real das práticas de controle social em si ou,
integração com órgãos colegiados decisórios, os conse-
para sermos mais exatos, tal entusiasmo, como diz
lhos de saúde, definidos pela lei 8.142/90 em caráter
Ferreira, esfria (Ferreira, 1992). Consideramos,
permanente e deliberativo, compostos por representan-
então, que a definição legal não basta, mesmo sendo
tes do governo, prestadores de serviço, profissionais da
parte do contexto de participação e uma das condições
saúde e usuários.
para que o controle social seja entendido como um
atributo público.
Para o controle da gestão do SUS, está garantida,
segundo critérios quantitativos, a paridade entre usuá-
É preciso também recuperar como se estabelece-
rios, trabalhadores e gestores. Tal garantia na formação
ram as relações sociais que concorrem com este fim,
do conselho está prevista em lei (Brasil, 1991). A
ou melhor dizendo, qual a legitimidade do processo
efetividade deste princípio, no entanto, vem sendo ques-
participativo da população e dos profissionais da saúde
tionada a respeito da qualidade com que se concretiza o
nos diversos serviços locais, posto que a ocupação dos
controle por parte da sociedade nos espaços institucio-
espaços públicos por parte da sociedade civil organiza-
nais. Segundo deliberação da 11a Conferência Nacional
da coloca-se ainda agora como desafio para as unidades
de Saúde de 2002, o controle social deve ser defendido
de saúde. Destacamos que tal recorte expressa uma
com enfoque na necessidade de sua legitimação por
forma privilegiada de prover atenção e assistência na
parte da população:
dimensão coletiva.
Foi no bojo do processo de democratização que,
Deve haver o fortalecimento do exercício da
no Brasil, vimos emergir, a partir da década de 1970,
cidadania através do Controle Social da socie-
uma forte tendência de participação da sociedade na
dade e em especial na área de saúde através das
definição e implementação de políticas públicas. No
Conferências e Conselhos de Saúde deliberativos
momento da transição política de um regime militar
e paritários com exigência de respeito às suas
para outro democrático, condições concretas para a
decisões. (Conferência Nacional de Saúde,
aprovação dos princípios fundamentais na construção
11ª, Relatório Final).
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Gênese de um conselho local de saúde
Em decorrência das políticas neoliberais e da
Procedimentos metodológicos
imposição do Estado mínimo, os governos têm sido
pressionados pelas organizações internacionais a
priorizarem a reconstrução de sistemas de saúde no
Ferreira (1992), ao discutir os fundamentos da par-
intuito de atingir maior eficácia, com clara definição
ticipação popular em saúde, faz referência à participação
de ‘prioridades’ centradas na atenção básica, na inter-
como uma unidade discursiva, na qual seus enunciados
setorialidade e na descentralização do poder decisório.
dão conta de uma multiplicidade de objetos e modos
O conceito de participação, todavia, vincula-se a
de enunciar, de conceitos e de escolhas teóricas, enfim,
uma ideia libertária de prática para mudanças, mas,
um verdadeiro sistema de dispersões.
quando acoplado ao de comunidade, assume um
Destacamos, dentro desse sistema de dispersões, a
caráter de certo modo apaziguador dos verdadeiros
relevância das relações cotidianas dos atores envolvidos
propósitos institucionais, em muitos casos restritos
no exercício do controle social local para a constituição
a metas puramente econômicas (Ferreira, 1992).
da participação popular no caso estudado. Portanto,
Eis a necessidade de ressignificá-los pelo resgate his-
dada a multiplicidade de objetos constituintes dessa
tórico e político dos termos, já que não se aposta na
participação, foi preciso resgatar como os conselheiros
neutralidade de ambos.
tecem a rede participativa, ou redes sociais, no bairro
No sentido de pensar a constituição dos diversos
do Bom Retiro para além das reuniões do conselho.
interesses e poderes no espaço micro do cotidiano das
Acompanhamos, então, seus trajetos no exercício de
unidades de saúde, Cecílio (1999) ressalta, quando afirma
seus papéis de conselheiros.
que, para analisar a relação entre controle social e serviços
Consideramos que as práticas referentes ao exercício
de saúde, faz-se necessário explicitar que os interesses lo-
do controle social em si podem ser legitimadoras daquilo
cais são diversos e que nem sempre haverá consenso entre
que está legalmente constituído enquanto norma institu-
as diversas categorias profissionais de trabalhadores, bem
cional. Com base nessas questões, buscou-se desdobrar as
como entre as demandas apresentadas pelos usuários; isso
unidades discursivas que configuram a “participação da
explicita uma das dificuldades em exercer literalmente o
comunidade” no conselho gestor da Unidade de Saúde
controle sobre a organização dos serviços de saúde com
da Família do Bom Retiro em São Paulo.
foco nas necessidades das populações.
Foi utilizado o referencial teórico da pesquisa
Tomando esses pressupostos por base, o presente
qualitativa com ênfase na observação participante e
estudo teve o objetivo de investigar o que está implica-
entrevista não diretiva com os conselheiros. Utilizamos
do no discurso de ‘participação da comunidade’ para
como instrumento de trabalho um diário de campo e
a constituição do poder local no âmbito das decisões
gravação das entrevistas. Além desse procedimento, a
políticas na esfera de unidades de saúde. Na forma
construção da rede de desdobramentos vivos da política
institucionalizada e representativa de tais instâncias,
se deu com base na observação das reuniões ordinárias do
tomou-se como corpus de estudo o conselho gestor da
conselho gestor da unidade. O estudo foi conduzido em
Unidade de Saúde da Família do Bom Retiro (Centro
meio ao processo de consolidação do conselho durante
de Saúde Dr. Otácvio A. Rodovalho), localizado no
18 meses, desde novembro de 2002 até maio de 2004.
bairro do Bom Retiro, região central da cidade de
Consultamos as atas e documentos do conselho e
São Paulo.
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acompanhamos as atividades que pudessem caracterizar a
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Gênese de um conselho local de saúde
vida social dos conselheiros: quem são, o que fazem, quem
Como se sabe, o Programa foi formulado pelo
e de que modo representam, por onde e como se inserem no
Ministério da Saúde do Brasil em 1993, e, no final de
contexto de participação no bairro, por quais olhares. Dessas
2002, estava implantado em 4.114 municípios brasi-
atividades, destacamos as reuniões das equipes de saúde da
leiros. Nesse período, o número de equipes de saúde
família na unidade e as do conselho da Coordenadoria de
da família era de aproximadamente 16.192 e prestava
Saúde Sé, a permanência na unidade nos horários de aten-
assistência a 53 milhões de pessoas (Ribeiro; Pires;
dimento, as caminhadas pelo bairro e as visitas domiciliares
Blank, 2004).
com os agentes comunitários conselheiros, as reuniões do
Na cidade de São Paulo, no período de 1993 a
Orçamento Participativo do Bom Retiro e do Conselho
2000, a opção política para a estruturação das ações e
Municipal de Saúde de São Paulo. Todos esses lugares cons-
serviços de saúde não esteve pautada pelos princípios
tituíam a rede participativa construída pelos conselheiros.
do SUS, verificando-se uma preferência por organizar
Utilizamos nomes fictícios para os sujeitos pesquisados
privadamente cooperativas de saúde ao tempo que
(quatro conselheiros-usuários, dois conselheiros-gestores e
deixaram à míngua a rede de serviços básicos, incluin-
dois conselheiros-trabalhadores), e, para tanto, tomamos por
do as vigilâncias e ações de promoção. É reconhecido
referência o sistema solar, sem associações comparativas dos
pelos próprios conselheiros que os governos de Paulo
planetas com as pessoas. Os relatos utilizados não permitem
Maluf (1992-1996) e de Celso Pitta (1996-2000) não
identificação dos envolvidos e o trabalho foi aprovado pelo
contemplaram a possibilidade de gestão compartilhada,
Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal da
segundo as falas a seguir:
Saúde de São Paulo. Previamente, o projeto foi discutido e
aprovado em reunião do conselho, sendo registrado em ata.
A gente sabe que o Maluf não quer nem ouvir
Posteriormente, os sujeitos da pesquisa manifestaram sua
falar em conselho. (Mercúrio).
concordância em participar, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido.
O conselho não tinha vez no governo do Maluf,
não fomos nem consultados sobre o programa de
saúde implantado. (conselheiro-usuário, em
RESULTADOS E DISCUSSÃO
reunião do Conselho Municipal de Saúde
de São Paulo).
Da gênese ao conselho em si
A partir da administração municipal, eleita em
A construção do problema em torno da participa-
2000, iniciou-se uma discussão acerca da implemen-
ção popular nesta investigação manteve-se em estreita
tação das diretrizes do SUS, efetivando caminhos para
relação com a implantação do Programa Saúde da Fa-
a participação popular e entendendo a ampliação do
mília (PSF) no bairro do Bom Retiro. Neste município,
acesso por meio da implantação do Programa Saúde
também o PSF começou a ser visto como estratégia de
da Família. Alguns mecanismos facilitadores desse
reorganização das ações e serviços de saúde, em nível
processo foram implementados e/ou retomados 1
primário, no início de 2001.
pela nova gestão municipal. Desses instrumentos,
No governo da prefeita Luíza Erundina (1989), anterior ao governo do prefeito Paulo Maluf, houve um espaço aberto para a constituição da participação
popular na gestão da saúde.
1
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Gênese de um conselho local de saúde
podemos destacar o orçamento participativo e a
nalidade técnica do que pela necessidade colocada pela
criação de conselhos gestores em espaços públicos
população usuária, como fica claro na fala da conselheira
nos diversos setores.
a seguir:
O Conselho Municipal de Saúde de São Paulo
participou da decisão por mudanças no modelo de
Em 2001, ‘o governo municipal não tinha
atenção à saúde nesse período de transição política, mas
intenção’ de ampliar os equipamentos, por isto
a consolidação desse processo no plano local ainda estava
também a substituição da unidade básica de
por acontecer com a criação dos Conselhos Distritais e
saúde por unidade de saúde da família. (en-
Locais de Unidades de Saúde. Por esse aspecto, mesmo
trevista com Marte; grifo nosso).
com a democratização dos espaços decisórios na gerência
de recursos públicos, a população local do bairro esteve
Como já relatado, o programa vem sendo implan-
à margem da decisão de implantação do PSF na região.
tado nas grandes cidades com maiores dificuldades de
Portanto, a ideia norteadora do modo programático e
aceitação do que nas cidades pequenas, possivelmente
territorializado de atendimento em novembro de 2002,
porque as relações nas cidades menores são mais estreitas
quando foi criado o Conselho Gestor da Unidade, era
entre as unidades de saúde e os moradores (Vascon-
incipiente e com muitas resistências por parte da po-
celos, 1999). Também no bairro estudado, pudemos
pulação. O relato de um conselheiro-trabalhador que
identificar essas resistências a partir do relato de uma
esteve na unidade desde o princípio da reestruturação
usuária convidada a participar de uma das reuniões
do sistema de saúde no bairro situa algumas dessas
do conselho, explicitando a dificuldade de vivenciar a
resistências:
territorialização local:
Aqui era outra unidade, do Estado, cada um
Fiz o cadastro no Bom Retiro porque a agente
vinha sem receita, era mais por conhecimento
de saúde foi na minha casa, ‘mas eu gosto ser
de alguém, por amizade, tinha um certo dire-
atendida na Barra Funda2, eu já tô acostuma-
cionamento de quem ia ser atendido por estes
da...’ (usuária convidada; grifo nosso).
modos. Era como o povo dizer ‘ Ah, ta com uma
dorzinha, vai no posto que eles dão remédio, e
Outro modo de resistência é que as visitas domi-
pronto.’ E a gente teve que lutar e tentar tirar isso
ciliares não são bem recebidas pelos grupos em situação
da cabeça do pessoal, mostrar que o programa era
de clandestinidade, como os de bolivianos, que não
uma iniciativa nova, ia trazer o médico de fa-
abrem suas portas para o cadastro domiciliar ou mesmo
mília de novo para a região, seria aquele médico
se protegem por meio da comunicação em sua língua de
que ia cuidar sempre não só da senhora, mas das
origem com medo de serem denunciados.
crianças também. (entrevista com Saturno).
A lógica do programa demanda o cadastramento
das famílias por domicílio. Esse modo de atuar implica
A mudança da programação dos serviços de saúde,
envolvimento das pessoas com o serviço de saúde. Dis-
nesse momento, acontecia muito mais por uma racio-
correndo sobre a atenção primária às famílias no PSF,
A Barra Funda constitui área de abrangência limite com o Bom Retiro em direção centro-oeste, e está equipada com uma unidade básica com maior capacidade,
incluindo maior quadro de profissionais e infraestrutura favorável.
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Gênese de um conselho local de saúde
Vasconcelos (1999) insiste na necessidade de haver
O caráter substitutivo do PSF impõe limites e
vínculo e diálogo para o processamento de visitas do-
considerações diante das práticas tradicionalmente exer-
miciliares, já que o domicílio é um espaço particular e
cidas na Unidade Básica de Saúde. Para Bleicher (2004),
de privacidade das pessoas. O autor reforça ainda que é
isso deveria significar que o PSF não deve ser mais um
preciso haver tempo e um trabalho de mobilização das
programa diante de tantos outros, e sim um modo de
pessoas para integração no novo modelo de atenção.
incluir as necessidades primárias das famílias com base
Ainda no campo das limitações do PSF, identificamos
na clínica geral. A autora segue dizendo que o programa
que os encaminhamentos para contemplar tecnicamente a
deve estar, portanto, fortemente inspirado na integra-
concepção do SUS no que se refere à hierarquização, dando
lidade da assistência prestada3, para então dar conta
à atenção básica o caráter generalista de atendimento, não
das demais complexidades presentes, sempre contando
têm conseguido dar conta das necessidades da população
com a efetividade da referência e da contrarreferência.
em relação aos problemas de maior complexidade clínica
Quanto a esse aspecto, a autora nos traz algumas ponde-
e de urgência ou emergência, descaracterizando a integrali-
rações, pois muitos municípios têm experimentado um
dade por desarranjo na referência e contrarreferência. Nesse
estrangulamento das necessidades por não conseguirem
contexto, registramos a fala de um morador boliviano em
garantir o acesso à atenção secundária e terciária a partir
uma reunião de mobilização e sensibilização da população
das unidades de saúde da família, enfatizando:
para compreender o PSF:
Este é um erro grave: ofertar somente a atenção
Às vezes eu me sinto discriminado e, ao contrá-
primária sem garantir a secundária e a terciária
rio do que eu sinto, o programa visa a atender as
pode levar ao descrédito do programa, fazendo
pessoas cadastradas independente de raça, cor ou
com que a população prefira enfrentar as filas
posição social, ‘e que nem tudo pode ser resolvido
dos hospitais a buscar uma unidade de saúde
no posto... é necessário ter um ginecologista e
da família. Eugênio Vilaça Mendes costuma
pediatra na unidade.’ (morador boliviano,
dizer que o PSF deve ser o primeiro contato
usuário do serviço; grifo nosso).
do usuário com o sistema de saúde, salvo nas
ocasiões de urgência e emergência. (Bleicher,
O relato de um conselheiro-usuário reforça a ideia
2004, p. 15).
de que a substituição da Unidade Básica de Saúde, configurada com o serviço de especialidades, pela Unidade
Ribeiro, Pires e Blank (2004) também discutem
de Saúde da Família centrada na clínica médica foi
que a retomada de generalistas e a constituição de
inadequada, como fica explicitado a seguir:
equipes multiprofissionais têm sido conformadas por
uma série de expectativas para compensar a fragmen-
3
Nosso bairro precisa mesmo é de um Pronto-
tação excessiva que a especialização legitima e autoriza.
Socorro, e tinha que voltar a Unidade Básica de
Todavia, o que se requer para a eficácia e eficiência dos
Saúde, não sei por que mudou, era bom, tinha
serviços é a articulação dos diversos níveis de atenção,
pediatra, ginecologista. (Vênus).
contemplando as necessidades em suas complexidades.
Portaria 1.348 de 18/11/99, art. 2º, inciso I, do Ministério da Saúde.
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Sobre essa questão, um representante dos usuários no
Uma mulher veio reclamar que veio com uma
conselho fala sobre as necessidades médicas que estão
criança doente e com febre e não foi atendida
além da capacidade de resolução no PSF:
pelo médico, a enfermeira viu, mas não foi o
médico, pediram na recepção que viesse outro
As pessoas estão elogiando o plano de saúde da
dia para marcar consulta. Isso não tá certo, o
família, eles gostam quando a agente vai na
médico tinha que ver, depois a criatura teve
casa deles e leva remédio ou quando o médico
que ir pra Santa Casa pra resolver o problema
e a enfermeira vão visitar, mas estão cobrando
dela. (Mercúrio).
demais as outras coisas, quando precisa de um
especialista e de um Pronto-Socorro; a gente
Segundo Malta et al. (1998), o acolhimento, ao se
precisa, em primeiro lugar, de uma unidade
colocar como estratégia para reconfigurar o processo de
básica de saúde para depois ter o plano de
trabalho nas Unidades de Saúde, pretende: a) melhorar
família, porque não é só disso que a gente
o acesso dos usuários aos serviços de saúde, mudando
precisa, por exemplo, se a gente passar mal; a
a forma tradicional de entrada, que se dá por meio das
unidade de saúde da família não mede pres-
filas e ordem de chegada; b) humanizar as relações entre
são na hora que precisa, não dá remédio para
profissionais da saúde e usuários e escutar seus problemas
tomar, tem que passar primeiro pela médica
ou demandas numa abordagem que contemple não
com consulta marcada,... enquanto que na
apenas a dimensão biológica, mas também a psicoló-
unidade básica atende emergência, se você
gica, a social e a cultural; c) aumentar, desse modo, a
chega com dor de cabeça a primeira doutora
responsabilidade dos profissionais de saúde em relação
que estiver desocupada atende, dá receita,
aos problemas concretos vividos pelos usuários em seu
dá remédio e pronto vai para casa; é isso que
contexto existencial; d) elevar os coeficientes de vínculo
a gente precisa aqui no bairro. (entrevista
e confiança entre eles.
com Mercúrio).
Os fundamentos teóricos que embasam a tecnologia
de acolhimento atendem a uma lógica ainda não incorpo-
Ainda percorrendo os imbricamentos referentes
rada pela população da área de abrangência da unidade,
à implantação do PSF na região, percebemos que o
e é preciso considerar também que o modo de fazer dos
acolhimento constituiu uma tecnologia de assistên-
profissionais está diretamente relacionado com a possibi-
cia à saúde vista pelos conselheiros como um fator
lidade de estabelecer algum tipo de vínculo. Para Botazzo
complicador pelo modo como vem acontecendo no
(1999), a relação que o profissional desenvolve com a
desencadeamento das ações e serviços na unidade em
população que atende está em estreita conformidade com
estudo. A ideia de ser recebido pela enfermeira e que ela
o modo como o serviço acolhe o próprio profissional.
teria o ‘poder’ de também dar encaminhamentos com
Mais adiante, na descrição e análise do território e tendo
relação à resolutividade do problema, podendo algumas
como ponto de partida a unidade de saúde, discutiremos
vezes dispensar ou adiar a consulta médica, não vinha
melhor essa questão. Com base na realidade estudada, um
sendo bem recebida pelas pessoas daquele lugar. Um
conselheiro representante dos trabalhadores descreve, no
conselheiro-usuário reclama do acolhimento e da lógica
seu modo de operacionalizar as visitas domiciliares, uma
do atendimento programado:
possibilidade de desenvolver esse vínculo:
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Gênese de um conselho local de saúde
Além de ser uma ambiente de trabalho a gente
Ao consultarmos as atas de reuniões anteriores à
desenvolveu uma relação de amizade com a
formação do conselho, constatamos que a mobilização
população da nossa microárea de trabalho,
se concretizou por meio de reuniões com a comunidade
se vê na rua a pessoa já chama, fala ‘Como
dividida por microáreas dentro do território de atua-
foi bom naquele dia que você veio aqui na
ção, e que a pauta constituiu-se de explicações sobre o
minha casa’, a gente se preocupa em articular
PSF e a ‘necessidade’4 de consolidação de um conselho
as senhoras idosas a participarem do grupo que
gestor para aquela unidade de saúde segundo as normas
nós organizamos para a caminhada, bom para
da prefeitura. As ênfases acrescidas se referem ao modo
conhecer outras pessoas, tirar um pouco daquela
de encaminhamento da criação do conselho, que tem
rotina de remédio, tratar também do mental das
seu fundamento enraizado mais na ‘necessidade’ de
pessoas, não é só o físico. Às vezes, na minha
cumprir uma norma e do que na ‘necessidade’ da po-
área, tem visitas que são maiores, tem mais
pulação de participar em campos do poder decisório.
idosos, às vezes eles estão sozinhos, a família
A necessidade partiu da administração, como afirmou
não vai lá, às vezes eu acho que a hipertensão
a primeira gerente da unidade de saúde, na época de
tem a ver com a solidão, então a gente senta,
criação do conselho, em uma reunião com a população
conversa, toma um café, chama para entrar
para esse fim:
no grupo da caminhada... a gente não faz só o
papel de agente comunitário, a gente faz papel
O conselho gestor é uma oportunidade de
de amigo. (entrevista com Saturno).
ouvirmos a comunidade, e atualmente
temos de implantar em nossa ‘unidade pois
Entendemos, por esses termos, que a necessidade
é meta da prefeitura; até o final do ano
de abertura de canais de participação popular emergiu
todas as unidades devem estar com seus
no espaço estudado para dar conta da articulação das
conselhos formados.’ (gerente da unidade;
tecnologias que caracterizam o Programa Saúde da Fa-
grifo nosso).
mília com o modo de compreendê-las e de ‘fazer’ dos
profissionais, assim como a capacidade de integração da
Mesmo que o processo de participação popular
população a esse novo modelo organizador do serviço.
tenha sido desencadeado por uma norma da prefeitu-
A partir das dificuldades da população do bairro do
ra, consideramos que houve abertura de espaços para
Bom Retiro para compreensão e aceitação do modo de
discussão e que as pessoas, tanto moradores quanto
operar no PSF, a gerência da unidade iniciou, em 2002, um
conselheiros-usuários, também reconhecem a impor-
processo de aglutinação da comunidade junto à unidade
tância desse papel, como nas falas abaixo:
de saúde, intensificando sua participação na elaboração e
encaminhamento das práticas de saúde na referida área de
Apesar da demora dos exames e das consultas,
abrangência. O serviço local propôs, então, a consolidação
o posto está melhor do que era e agora a gente
de um conselho gestor da unidade de saúde com o propósi-
tem espaço para falar. (morador usuário – Ata
to explícito de ‘democratizar o planejamento das ações’.
da reunião com as microáreas).
4
O destaque se dá para nos perguntarmos: de quem é a necessidade?
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Gênese de um conselho local de saúde
Parabéns a esta administração da prefeitura e
quatro representantes dos trabalhadores e quatro repre-
ao secretário municipal que, pela primeira vez,
sentantes da administração da unidade.
possibilitou a participação da comunidade e sua
Dos oito conselheiros usuários eleitos, três re-
escuta para expor seus problemas. E mesmo se
presentavam a CDL e cinco eram moradores da área
não resolvê-los, temos a oportunidade de manter
de abrangência. Logo nos dois primeiros meses de
um controle social sobre os serviços prestados pela
atuação do conselho, os membros da CDL pediram
unidade de saúde e, em especial, do atendimento
afastamento, com o argumento de que as reuniões não
dado pelos funcionários. (conselheiro usuário
tinham encaminhamentos concretos, questionando
– Ata da reunião de posse do conselho).
o poder do conselho. Três moradoras conselheiras
afastaram-se gradativamente, logo nos primeiros
Na época da votação, eu fiquei aqui no posto
meses também.
para informar as pessoas que ia ter conselho,
Foram indicados pelos próprios conselheiros usu-
para poder ouvir os usuários; o conselho foi for-
ários dois substitutos. Enfim, o segmento dos usuários
mado para a gente ouvir as pessoas aqui, saber
firmou-se em quatro representantes depois de três meses
se está tudo bem, para dizer que ia ter saúde de
da eleição. São eles: Mercúrio, Vênus, Urânio e Júpiter.
família e explicar como é; eu entrei no conselho
Neste caso, devemos considerar que a paridade estava
para ajudar, vi muitas coisas erradas aqui no co-
comprometida em relação ao inicialmente proposto.
meço, eu não gostava de ver mau atendimento,
Para compor o segmento dos trabalhadores,
os profissionais estavam estressados... o conselho
Saturno e Netuno, dos quatro eleitos, foram os que
melhorou muito esse negócio de atendimento.
assumiram efetivamente, e não há registros dos motivos
(entrevista com Mercúrio – representante dos
pelos quais os outros desistiram. Os dois eram agentes
usuários no conselho).
comunitários. Médicos e enfermeiros não participavam
efetivamente e não visualizavam o conselho como uma
Iniciamos o processo de acompanhamento das
instância deliberativa dentro da unidade. Para caracte-
discussões e da consolidação do conselho gestor local
rizar o maior compromisso da categoria profissional dos
desde a grande reunião, quando a “comunidade” foi
agentes comunitários na unidade, ressaltamos a fala de
convocada para discutir como se daria a sua participação
Marte, a gerente, quanto a esse aspecto:
no serviço de saúde. Estavam presentes representantes
da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), da Sociedade
Os profissionais agentes comunitários são mais
de Amigos do Bom Retiro, do Conselho de Segurança e
envolvidos com o trabalho, com os problemas
da Igreja Católica, profissionais e usuários do grupo de
do bairro e com a população, acho que porque
idosos, médicos e agentes comunitários. Foi constituída
eles são moradores, conhecem a região e são da
uma chapa única para a eleição.
mesma classe social da população. (entrevista
com Marte).
O corpo do conselho em foco
O segmento dos gestores inicialmente foi com-
O conselho foi formado atendendo aos princípios
posto por duas pessoas: a gerente e um agente comu-
de paridade, com oito representantes dos usuários,
nitário indicado pela gerência. Efetivamente, os dois
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não assumiram; a primeira por motivos administrativos
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Gênese de um conselho local de saúde
CONSIDERAÇÕES FINAIS
de transferência logo no primeiro mês de atuação do
conselho, e o segundo desistiu gradativamente sem
explicações formais. Ocuparam esses lugares Terra e
Diante do exposto, consideramos que o controle
Marte, sucessivamente, como exposto anteriormente.
social tem especificidade maior junto à população local,
As mudanças na gerência da unidade e a saída de alguns
que vive e utiliza os serviços de saúde disponíveis, princi-
conselheiros usuários tiveram efeitos nos andamentos do
palmente em uma cidade tão grande e complexa como São
conselho, segundo o relato abaixo:
Paulo. Neste caso, consideramos que a interlocução efetiva
nesses espaços, sejam eles os conselhos municipais ou a
Acho que o conselho deu uma parada depois
coordenadoria de saúde, é fundamental para a consolidação
que a primeira gerência saiu, não sei por que,
real da participação popular nas decisões políticas.
tenho minhas conclusões, mas não gostaria
Foi importante a constituição do conselho gestor
de dizer, pois tenho os meus motivos; mas
na unidade de saúde estudada, mas o modo como
deu uma caída depois desta saída, alguns
foram encaminhadas as formas de ampliação e diver-
conselheiros não entenderam os porquês desta
sificação da participação local indicará, para o futuro,
atitude, não teve reunião extra do conselho,
se o conselho terá condições de atuar na transformação
não fomos consultados. Nós perdemos também
das condições de vida e de acesso à saúde. Desde a gê-
uma participação importante que era um
nese do conselho até o momento de encerramento da
representante do CDL, um representante
pesquisa (período de 18 meses), ainda não tínhamos
forte aqui no bairro. Não sei se poderemos
constatado interesse nos próprios conselheiros usuá-
resgatar isso, mas ainda acho que o conselho
rios de diversificação dos grupos representados. Em
pode se fortalecer, mas vai precisar de muita
associação a esse fato, devemos considerar que o bairro
parceria, a gente já perdeu uma das maiores,
do Bom Retiro, em específico, é marcado por uma
que era o CDL, mas acho que se pararmos
diversidade cultural, étnica e política. Desse modo,
de reivindicar só críticas, podemos continuar
estavam comprometidos a efetividade e o impacto da
caminhando e começar da estaca zero. (en-
incorporação dos usuários de modo deliberativo na
trevista com Saturno).
organização dos espaços e dos recursos públicos.
Discutimos, a partir da questão acima, que o
Consideramos que a consolidação desse con-
conceito de comunidade poderia ser questionado no
selho local tem sua função política com relação
sentido de se superar a concepção de coesão social que
às necessidades dos usuários. Ao acompanhar as
o enunciado reflete e partir em busca da possibilidade
reuniões do Conselho Municipal e do Conselho
de os conselhos serem espaços de conflito amplo de
Gestor da Coordenadoria Sé, constatamos que
interesses e, consequentemente, de poderes. A partici-
quanto mais complexa é a instância de governo,
pação, em sua formulação histórica, estaria em comum
mais tecnicamente densas são as discussões, assim
acordo com essa possibilidade por remeter à mobilização
como mais próximas da burocracia administrativa e
questionadora e transformadora da realidade, reforçando
mais distantes da capacidade de captar e digerir as
aspectos autônomos e libertários para os grupos sociais
necessidades da população.
envolvidos. Portanto, compactuamos que deve ser esti-
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Gênese de um conselho local de saúde
mulada, seja em sua forma institucionalizada, seja por
participação direta da população para a constituição de
espaços públicos abertos e democráticos.
R E F E R Ê N C I A S
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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 310-320, abr./jun. 2010
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social
Ampére city’s Health Council: evaluating social control
Luciane Maria Pedot Belini 1
Samuel Jorge Moysés 2
Enfermeira; Especialista em Saúde
Coletiva; Mestranda em Saúde Coletiva
da Universidade do Oeste de Santa
Catarina (Unoesc), Joaçaba (SC),
Brasil.
[email protected]
1
Cirurgião-dentista; PhD em
Epidemiologia e Saúde Pública pela
Universidade de Londres.
[email protected]
2
RESUMO Estudo exploratório com o objetivo de avaliar a composição, função
e estrutura de um Conselho Municipal de Saúde (CMS) no contexto de um
pequeno município brasileiro, Ampére (PR). Questionários semiestruturados
foram aplicados aos membros do CMS. A análise dos dados foi realizada por meio
de categorias analíticas. Conclui-se que existem inadequações de natureza legal
e funcional na atuação dos conselheiros, com a permanência de determinados
representantes por um longo período, o que reflete um conselho fechado para a
participação de outros segmentos, com relativo desconhecimento dos conselheiros
sobre seu papel no CMS e ausência de capacitação para o exercício da função.
PALAVRAS-CHAVE: Participação comunitária; Controle social; Conselhos
de saúde.
ABSTRACT Exploratory study aiming to evaluate the composition, function, and
structure of the Ampére City Council of Health (CMS, acronym in Portuguese)
(PR, Brazil). Semi-structured questionnaires were applied to the council’s
members. Data analysis was done through analytical categories. The conclusion
is that the council is ill-suited for its legal and functional roles. Some of the
nominated members have been in the council for long periods, which reflects a
council closed to the participation of other segments; some have shown a great
level of unawareness of their roles in the council as well as lack of qualification
for the required duties.
KEYWORDS: Consumer participation; Social control; Health councils.
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I N T R O D U ç ão
lhos de Saúde (CS), órgãos colegiados, são instâncias
deliberativas do SUS em todos os níveis do sistema.
A constituição dos Conselhos deve ter como premissa
Na área da saúde, a versão moderna do que se
básica a paridade entre o número de representantes dos
denomina ‘participação social’ foi institucionalizada
usuários e o número total de representantes dos outros
no decorrer das modificações na relação entre Estado e
segmentos, ou seja, assegurar que 50% dos membros
sociedade a partir da década de 1980. Esta participação
sejam representantes dos usuários e 50%, representantes
foi concebida como controle social, ou seja, o controle
dos segmentos do governo, prestadores de serviços e
que a sociedade deve ter sobre as ações do Estado e, con-
profissionais de saúde.
sequentemente, sobre os recursos públicos, colocando-os
Nos municípios, o número de conselheiros para
na direção dos interesses da coletividade. Interlocuções
a composição dos Conselhos varia de acordo com a
dos movimentos populares com o Estado ocorrem pio-
realidade local, porém, seja qual for o número dos
neiramente, por exemplo, nos conselhos populares da
membros, a paridade deverá ser mantida. O processo
Zona Leste de São Paulo (Correia, 2000).
de escolha acontece a partir da realização das Confe-
A Reforma Sanitária Brasileira (RSB), entendida
rências Municipais de Saúde. Nas fases preparatórias,
como o movimento de construção do novo Sistema
delegados são escolhidos e, na Conferência, votam nos
de Saúde, foi impulsionada pela VIII Conferência Na-
seus representantes.
cional de Saúde (1986) e representou uma matriz do
A representação de usuários vem das centrais sin-
pensamento político contra-hegemônico em relação ao
dicais, associações de moradores, organizações de base
pensamento político dominante da época, marcando e
das igrejas e outros movimentos populares. O Conselho
modificando a história do movimento social pela saúde
Nacional de Saúde recomenda que o presidente do
no Brasil. Muitos dos princípios da Reforma Sanitária
Conselho Municipal de Saúde (CMS) deve ser eleito
materializaram-se na Assembleia Nacional Constituin-
entre seus membros, garantindo-se, assim, maior le-
te (1988), em um contexto de reformas democráticas
gitimidade e autonomia ao Conselho; entretanto, em
voltadas para a redefinição das relações entre Estado e
muitos municípios, a lei de criação do conselho ou o
sociedade civil (Oliveira, 2001).
regimento interno delegam a presidência ao Secretário
Assim, a Constituição Federal de 1988 apresentou
de Saúde (Brasil, 1999).
avanços no campo das políticas sociais e, em especial,
Os Conselhos de Saúde, ao não trabalharem de
na área da saúde, levando ao reconhecimento da saúde
forma sistemática com informações em saúde, perdem
como um direito de todos e dever do Estado. Esse direito
a capacidade de gerar agendas sociais adequadas aos
foi regulamentado em 1990, com o estabelecimento do
problemas de saúde, suas determinações sociais e sua
Sistema Único de Saúde (SUS).
distribuição no território. Essa distância dos Conselhos
A regulamentação do SUS ocorreu por meio das
em relação às informações decorre de dificuldades de
leis federais 8080/90 e 8142/90, estendendo-se às Cons-
acesso às mesmas, pelo não-domínio das tecnologias
tituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais.
usadas na sua produção e pela não-compreensão dos
A participação da população no SUS está prevista
métodos de análise e interpretação (Brasil, 2000).
na Constituição Federal de 1988 e legalizada pela lei
Com base nesses pressupostos, realizou-se uma
federal 8142, de 28 de dezembro de 1990. Os Conse-
pesquisa junto ao Conselho Municipal de Saúde (CMS)
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Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social
de Ampére (PR), com o propósito de analisar a sua
tais, tais como a lei municipal de criação do conselho,
dinâmica de funcionamento quanto à sua base legal e
o Regimento Interno do CMS, o livro com registro
operacional.
das atas das reuniões e o Plano Municipal de Saúde,
Ampére é uma cidade do interior do Estado do
atualmente em vigor.
Paraná, com 15.623 habitantes. O CMS é formado por
Os dados foram organizados por categorias analíti-
dezesseis membros titulares e respectivos suplentes. O
cas que traduziam os objetivos da pesquisa em blocos de
CMS foi instituído pela lei municipal nº 566/91, bus-
informações agrupados por sua relativa homogeneidade
cando garantir que a população deixasse de ser apenas
conceitual e discursiva. A formulação das categorias de
usuária dos serviços para se transformar em protagonista
análise foi obtida a partir dos padrões de resposta do
de mudanças.
questionário aplicado.
No município de Ampére, já foram realizadas cinco
Conferências Municipais, sendo que, na última, em
2003, foram eleitos dezesseis conselheiros, respeitando-
RESULTADOS E DISCUSSÃO
se a paridade, com a seguinte composição final: 50%
representantes de usuários; 25% representantes do governo; e 25% representantes dos profissionais de saúde
Apresentam-se, aqui, os principais resultados obti-
e prestadores de serviços.
dos, buscando responder aos objetivos da pesquisa.
METODOLOGIA
Perfil dos conselheiros
Demograficamente, dez conselheiros são mulheres
e cinco são homens; no que se refere à escolaridade, 11
O presente trabalho constitui um estudo exploratório desenvolvido dentro de uma abordagem qua-
têm 12 anos ou mais de estudo concluído, seguido de 2
que têm de 8 a 11 anos, e 2 que têm de 4 a 7 anos.
litativa. Foram privilegiados os dados obtidos através
Quando questionados sobre sua participação em
da aplicação de questionários semiestruturados, com
algum partido político, observou-se que nove não são
questões abertas e fechadas e dados relacionados ao perfil
filiados a partido algum e os demais sim, destacando-se o
dos conselheiros, bem como à composição, função e
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)
estrutura do CMS.
com três filiados, seguido do Partido Democrático
Os questionários foram distribuídos com au-
Trabalhista (PDT) com dois filiados, e do Partido Tra-
torização dos conselheiros, em reunião realizada no
balhista (PT), com apenas um filiado. É válido salientar
mês de dezembro de 2003. Dos 16 conselheiros, 15
que a atual administração municipal pertence ao PMDB
demonstraram disponibilidade, interesse e reforçaram
(prefeito) e ao PDT (vice-prefeito).
a relevância da pesquisa, mas uma conselheira, repre-
No processo de escolha do conselheiro, dez foram
sentante do Governo Municipal, negou-se a responder
indicados; quatro escolhidos por outras formas: um
ao questionário.
respondeu ser membro nato, já que, no Regimento In-
Além dos questionários, também constituíram a
terno do CMS de Ampére, o Diretor do Departamento
base de análise deste trabalho algumas fontes documen-
de Saúde é considerado membro nato (natural) e será
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Presidente do CMS; um apenas assinalou o campo de
além de ter incluído mais um campo. Entre os demais,
resposta ‘outra forma’ e não descreveu qual; outro é
obteve-se o seguinte perfil: sete são representantes de
representante de bairro como presidente da associação
usuários, sendo que um conselheiro, que representa os
de moradores; outro referiu ter sido escolhido por
usuários, informou fazer parte do Governo Municipal,
representar a Associação Comercial e Industrial de
e três deles informaram serem prestadores de serviço;
Ampére (Aciamp); e um foi eleito pelos seus pares, o
três são representantes do Governo Municipal; dois
que nos permite inferir que os conselheiros são mais
são representantes dos Prestadores de Serviços Públicos
representantes institucionais do que da sociedade civil
e Privados e dois são representantes dos profissionais
organizada propriamente dita.
de saúde.
Em relação a experiências passadas no exercício da
representação de entidades e/ou associações, observou-se
que dez deles já exerceram cargos representativos e cinco
Estrutura e funcionamento do CMS
o estão fazendo pela primeira vez. Sobre a participação
Quando questionados sobre a periodicidade das
prévia de algum curso específico para conselheiros de
reuniões do CMS, oito afirmaram que são mensais; se-
saúde, a grande maioria, ou seja, 12 pessoas afirmaram
guido de cinco respondendo que não têm periodicidade
não ter recebido nenhum curso ou preparação para o
definida; um que afirmou ser trimestral e ainda outro
exercício da função. Estes dados demonstram que inicia-
que disse ser quinzenal. Este dado nos permite inferir
tivas deste tipo ainda são tímidas. Assim, a construção
que existe um desconhecimento entre os conselheiros
de um processo de formação e de capacitação torna-se
que deveriam saber a periodicidade de realização das
importante como forma de instrumentalizar a sociedade
reuniões do CMS.
civil para participar dos diferentes espaços organizativos,
Sobre a existência de comissões, 11 conselheiros
dentre eles os Conselhos, na perspectiva de uma nova
disseram não haver trabalhos realizados por comissões no
cultura política.
CMS e 4 deixaram a questão em branco. Este dado nos
Dos 15 conselheiros, 13 já participaram de Confe-
leva a deduzir que o CMS pode estar pouco aberto à am-
rências Municipais de Saúde, sendo que, destes, 7 foram
pliação de participantes, pois a existência de comissões
delegados e 6 como ouvintes.
técnicas é uma das formas de se ampliar a participação
externa da população e dos profissionais de saúde. Este
dado nos leva a inferir que a ação do CMS tende a ser
Composição do CMS
Quando questionados sobre o tempo de exercício
mais protocolar, ou seja, atuar mais restritamente a uma
função meramente burocrática.
da função de conselheiro, um não informou; quatro
Sobre a divulgação das deliberações do CMS,
atuam há dois a cinco anos, e os demais variam, sendo
nove conselheiros dizem que não ocorre divulgação das
que há quem esteja atuando há menos de três meses e
informações e seis afirmam que ela ocorre e a rádio local
há quem atua há quase oito anos.
é o principal veículo.
No que se refere ao segmento a que pertencem, dos
No que se refere ao papel do Conselho enquanto
15 conselheiros que responderam ao questionário, um
elaborador e aprovador do Plano Municipal de Saú-
teve seu questionário anulado pela inconsistência das
de, onze conselheiros afirmaram que sim e quatro
informações, pois assinalou todos os campos existentes,
que não.
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Em relação à dinâmica de prestação de contas, para
oito conselheiros o CMS não exerce controle sobre os gastos
•
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saúde visando sempre à descentralização das
ações básicas de saúde;
do Fundo Municipal de Saúde; destes, quatro estão atuando
há menos de três meses no CMS e participaram de apenas
[...] são os grupos organizados com uma meta
uma ou nenhuma reunião. Este dado nos permite coligir
comum que se fazem representar através de um
que alguns conselheiros não tiveram oportunidade de
membro;
presenciar nenhuma prestação de contas, ao mesmo tempo
em que três dos que tiveram a mesma opinião atuam no
É quando o poder público trabalha com pla-
CMS entre há dois a cinco anos. Sete deles afirmam que a
nejamento participativo, onde as comunidades
prestação de contas ocorre através de planilhas e o controle
participam do planejamento daquilo que mais
só é feito pelo presidente do conselho e apresentado aos
precisam.
demais, porém sem comprovantes e sem que o conselho
possa opinar sobre o uso dos recursos.
Em relação aos programas de saúde existentes no
município, foram citados pela grande maioria dos conselheiros os programas de controle da hipertensão, de
Percepção dos conselheiros sobre controle social em saúde
diabéticos, de imunização, o Programa Saúde da Família
Em relação ao processo saúde-doença, a maioria
(PSF), programa de controle da Hanseníase e da Tuber-
dos conselheiros tem uma visão ampliada da saúde que
culose, de gestantes, planejamento familiar e puericultura.
pode ser exemplificada pelas seguintes colocações:
Sobre a existência do Programa Agentes Comunitários
de Saúde (PACS) e a discussão para sua implantação no
[...] Saúde é o bem-estar físico, mental e social
CMS, da mesma forma que em relação ao PSF, observou-
de uma comunidade e depende de suas condições
se que a grande maioria afirmou a existência do PACS no
socioeconômicas [...];
município e que sua implantação também foi precedida
de discussão em reunião do CMS.
[...] Saúde é qualidade de vida [...];
Quanto à opinião do conselheiro sobre se o CMS
pode contribuir para a melhoria da saúde da população,
[...] é a forma como vivemos e interagimos com
observou-se que um conselheiro deixou a questão em
o meio, e não somente a ausência de doença.
branco e os demais foram unânimes em afirmar que o
CMS pode contribuir para a melhoria da saúde da popu-
Quando solicitados a exporem o que entendem
lação, porque é onde são trabalhadas as prioridades que a
por controle social ou participação da sociedade orga-
população solicita, porque há representatividade de vários
nizada, observou-se que um conselheiro não respondeu
setores da sociedade, além de ser um espaço de discussão
à questão e, dentre os demais que a responderam, houve
sobre os problemas de saúde e as propostas do governo.
uma boa percepção da importância do controle social e
da participação da população organizada:
Nível de conhecimento dos conselheiros sobre o SUS
[...] é a participação de cada setor da sociedade
Em relação ao significado do SUS, observou-se
para reivindicar melhoramentos na área da
que há uma relativa dificuldade na compreensão do
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Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social
que é o SUS que pode ser exemplificada pelas seguintes
CONSIDERAÇÕES FINAIS
colocações:
[...] sistema criado pelo governo para ajudar
Provavelmente, o relativo desconhecimento dos
com todas ou grande parte das despesas dos
conselheiros sobre seu papel no CMS de Ampére reflete
pacientes com a doença que possui;
a ausência de capacitação para o exercício da função.
Contudo, não há nada que impeça a oferta de capacita-
[...] atendimento para as pessoas sem custo e de
ções aos conselheiros visando a um entendimento maior
competência do governo federal;
sobre sua atuação nas políticas de saúde do município.
Ao contrário, a própria resolução nº 333/2003
Quando questionados sobre o que é Fundo Muni-
(Brasil, 2003), ao tratar da competência dos conselhos
cipal de Saúde, três conselheiros informaram não saber;
em sua quinta diretriz, enfatiza tal aspecto ao menos
um já ouviu falar, mas não sabe muito bem o que é; oito
em três itens:
consideram ser uma conta bancária onde o município
recebe várias verbas do Ministério da Saúde/Governo
XX - Estimular, apoiar e promover estudos e
Federal; um considera ser um consórcio de saúde entre
pesquisas sobre assuntos e temas na área de saú-
municípios de uma mesma regional de saúde e, ainda,
de, pertinentes ao desenvolvimento do Sistema
dois consideram ser um fundo de investimento a que o
Único de Saúde (SUS);
município só pode recorrer em caso de problemas graves
na área da saúde.
XXI - Estabelecer ações de informação, edu-
Quando questionados sobre o que é munici-
cação e comunicação em saúde e divulgar as
palização, 2 conselheiros informaram não saber o
funções e competências do Conselho de Saúde,
que é; 13 foram unânimes em afirmar que significa
seus trabalhos e decisões por todos os meios de
trazer para o governo municipal a capacidade de
comunicação, incluindo informações sobre as
definir, junto com os usuários, as ações e atividades
agendas, datas e local das reuniões;
do setor saúde.
Evidencia-se na pesquisa, a partir dos dados obti-
XXII - Apoiar e promover a educação para o
dos, a fragilidade nas respostas dos conselheiros sobre
controle social. Constarão do conteúdo pro-
as atribuições do CMS, especialmente quanto se busca
gramático os fundamentos teóricos da saúde,
uma linha de coerência de pensamento e ação para
a situação epidemiológica, a organização do
o conjunto das perguntas formuladas. Por exemplo,
SUS, a situação real de funcionamento dos
observa-se a contradição em relação ao papel do CMS,
serviços do SUS, as atividades e competências
particularmente no que se refere à elaboração e aprova-
do Conselho de Saúde, bem como a Legislação
ção do Plano Municipal de Saúde, um tema discutido
do SUS, suas políticas de saúde, orçamento e
nas Conferências Municipais de Saúde, e outras respostas
financiamento.
nas quais a competência dos conselheiros não se afirma
de modo claro, sugerindo que o CMS apenas cumpre
papel burocrático.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 321-327, abr./jun. 2010
Constatou-se que o CMS apresenta um desequilíbrio no exercício da função dos conselheiros, com
BELINI, L.M.P.; MOYSÉS, S.J.
a permanência de determinados representantes por
•
Conselho Municipal de Saúde de Ampére: avaliando o controle social
R E F E R Ê N C I A S
um longo período, o que reflete um conselho fechado
para participação mais ampla de outros segmentos da
população.
Na última Conferência Municipal de Saúde
ocorreu a reformulação de entidades representativas do
CMS, por meio do Decreto Municipal nº 026/2003,
que centralizou o poder do presidente do Conselho.
Isso contraria o que preconizam o Regimento Interno
do Conselho e a Resolução nº 333/2003 do Conselho
Nacional de Saúde, no parágrafo que se refere à criação
e reformulação dos Conselhos de Saúde.
Observou-se que, em sua maioria, os conselheiros
são indicados pelas entidades a que pertencem e demonstram pouco conhecimento sobre o seu papel como representantes de uma entidade ou segmento da população.
Existem sinais visíveis de desinformação sobre aspectos
fundamentais, como, por exemplo, o que é Fundo Municipal de Saúde e também a divulgação das deliberações do
CMS. Constatou-se a necessidade de distribuir materiais
informativos de normas operacionais do Conselho através
da Secretaria Municipal de Saúde, visto que esse órgão
Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução No 333, de 4
de novembro de 2003. [On-line]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/docs/Resolucoes/RESOLU%C7AO333.
doc Acesso em 23/09/2004.
______. O Brasil falando como quer ser tratado. Efetivando
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Oliveira, A. A participação popular nos conselhos populares
de saúde no município de Criciúma, SC. Dissertação (Mestrado em X) – Universidade Federal de Santa Catarina, Santa
Catarina, 2001.
desenvolve o trabalho de Secretaria Executiva.
Concluindo, acredita-se que, por meio de capaci-
Recebido: Abril/2005
tação ampliada dos conselheiros e da pedagogia política,
Aceito: Julho/2005
que pode representar o próprio controle da sociedade
local sobre o CMS por uma ação direta de divulgação de
suas práticas junto a formadores de opinião e à sociedade
em geral, seja possível uma relação mais transparente,
plural e efetiva da população de Ampére no CMS. O
CMS, por sua vez, deverá ser entendido como um
colegiado gestor da política pública de saúde, onde os
conselheiros são impulsionados a transformarem a atual
conjuntura autoritária e desmobilizada. A consequência
desejável seria um protagonismo que legitime os conselheiros como representantes da sociedade local, que
eles devem representar, fortalecendo a construção da
democracia na Política de Saúde.
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ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Que proteção social para qual democracia?
Dilemas da inclusão social na América Latina
Which social protection for which democracy?
Dilemmas of social inclusion in Latin America
Sonia Fleury 1
Doutora em Ciência Política;
Professora titular da Escola Brasileira de
Administração Pública e de Empresas
da Fundação Getúlio Vargas (EbapeFGV).
[email protected]
1
RESUMO A autora discute os ônus que os sanitaristas de esquerda assumiram ao
encarregar-se de implantar reformas dos sistemas de saúde na América Latina em
contextos de transição à democracia marcados pela ausência de hegemonia e pelos
acordos que restrinjam as possibilidades de implementar as políticas universais
projetadas pelo movimento sanitário. No entanto, é preciso ter em conta os
constrangimentos impostos pela correlação de forças desfavoráveis, buscando entender
quais são os pontos estratégicos que podem provocar ruptura na estrutura de poder.
O artigo analisa também as propostas que foram desenvolvidas para reformar
os sistemas de proteção social na região e critica a visão pragmática que tem sido
difundia pelas agências internacionais de cooperação acerca da coesão social.
PALAVRAS-CHAVE: Alames; Movimento sanitário; Estado; Marxismo;
Contra-hegemonia; Reformas de saúde; Coesão social.
ABSTRACT The author discusses the costs of assuming the responsibility to
held the reforms of health care systems in Latin America during the processes
of transition to democracy, which are marked by the absence of hegemony and
by agreements that restricted the possibilities of implementing universal policies
projected by the sanitary reform. However, it is still important to consider the
embarrassments imposed by the correlation of unfavorable powers, aiming at the
understanding of the strategic points of rupture of the power structure. The article
also analyze the proposals developed to reform the social protection systems in the
region, and criticizes the pragmatic vision that has been diffused by international
agencies concerning social cohesion.
KEYWORDS: Alames; Sanitary movement; State; Marxism; Counterhegemony; Health reforms; Social cohesion.
* Texto originalmente publicado na revista Medicina Social, v. 5, n. 1, p. 61-78, mar. 2010. O artigo reproduz a exposição da autora no Congresso da Alames,
realizado em Bogotá em 2009.
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FLEURY, S.
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
I N T R O D U ç ão
de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (IMS/UERJ) e a Escola Nacional de Saúde
Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
É grande a emoção de poder participar deste mo-
no Brasil. Também foram cruciais para a sustentação
mento de celebração dos 25 anos da Associação Latino-
deste movimento os partidos clandestinos de esquerda,
Americana de Medicina Social (Alames). Afinal, são
além das instituições que foram criadas como parte da
muitos anos de sonhos, lutas, emoções e afetos, debates,
estratégia de consolidação deste campo de conhecimento
desilusões e esperanças. Nesse percurso, envelhecemos e
e de práticas políticas transformadoras, como no caso
vimos alguns de nossos mais queridos companheiros(as)
brasileiro o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
partirem, alguns outros nos abandonarem, em certos
(Cebes), a Associação Brasileira de Pós-Graduação em
momentos desanimamos, em outros fomos incapazes de
Saúde Coletiva (Abrasco) e, regionalmente, a própria
ir além das posições dogmáticas e perceber as necessida-
Alames.
des de mudanças, mas depois nos reagrupamos e busca-
Como parte dos processos de transição e de cons-
mos nos atualizar, incorporamos novos conhecimentos
trução de democracias, assumimos os custos de geren-
e novos atores, construímos novas estratégias.
ciar sistemas de saúde iníquos e excludentes, buscando
Essa vitalidade decorre das próprias opções consti-
avançar na direção de uma esfera pública inclusiva e de
tutivas deste campo da medicina social que toma a saúde
um sistema integral e universal. Se isto gerou tensões no
coletiva (na sua tradução brasileira) como a articulação
interior do movimento sanitário que ainda hoje podem
entre a ordem biológica e a social, ou seja, manifestações
ser sentidas, permitiu, por outro lado, uma acumulação
histórico-concretas de determinações sociais que inci-
de conhecimentos e experiências sobre o funcionamento
dem sobre os seres vivos e sobre as relações entre eles.
do setor público e de suas relações com o mercado, além
O que remete à construção do social como um campo
dos processos administrativos e políticos envolvidos na
que conjuga o saber e a intervenção, as disciplinas e as
formulação e implementação das políticas sociais. É esta
práticas de transformação social.
acumulação que nos permite hoje colocarmos questões
Essa característica de militância deu origem a um
que antes não divisávamos.
movimento social que desde suas origens foi interna-
Esse percurso que vai do combate ao estado au-
cionalista e, em especial, latino-americano. Fatores con-
toritário e excludente à ocupação de espaços e direções
junturais contribuíram para este caráter de movimento
no estado de transição e na construção de uma demo-
supranacional, seja pela luta comum contra as ditaduras
cracia, todavia incompleta, requereu a revisão prévia
e a circulação dos exilados, seja pela existência de fi-
da concepção de Estado com a qual trabalhávamos.
guras carismáticas que nos aproximaram (Juan Cesar,
Isto implicou o abandono da concepção marxista-
Berlinguer, Mario Testa, Sergio Arouca, dentre muitos
funcionalista do Estado que compreendia as políticas
outros). Também é importante considerar a existência
públicas exclusivamente e de maneira maniqueísta, no
de instituições que permitiram a produção de ideias e
interior do binômio “Legitimação versus Acumulação” e
apoiaram sua difusão, como a Organização Pan Ameri-
sua substituição pela compreensão do estado como um
cana da Saúde (Opas) e, nacionalmente, por exemplo,
campo estratégico de lutas.
a Maestria de Universidad Autonoma Metropolitana,
Por outro lado, requereu também a tradução da
Unidade Xochimilco (UAM-X), no México, o Mestrado
estratégia política de transformação em saúde como
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
um projeto reformista. Isto significou a formulação
desta forma, reafirmamos nosso compromisso com a
de uma proposta de reforma que, guardando os ide-
luta pela democratização da saúde na América Lati-
ais de solidariedade e luta contra a exclusão social
na, é oportuna a reflexão sobre que proteção social
como princípios doutrinários e diretrizes estratégicas,
se quer defender para qual democracia. É necessário
tivesse sua tradução concreta em políticas públicas
entender a complexidade deste momento, no qual
que se realizaram em contextos adversos. Tratava-se
o discurso neoliberal perdeu força na região e no
de democratizar a saúde, ou seja, constitucionalizar
mundo, mas que, paradoxalmente, as políticas sociais
o acesso universal como direito de cidadania, mesmo
de corte neoliberal continuam a predominar mesmo
com o predomínio da hegemonia neoliberal, a persis-
em governos que retomam o discurso socialista. Essa
tência de uma cultura política elitista e excludente,
defasagem entre discurso e práticas se reproduz tam-
além de contar com enorme debilidade financeira dos
bém na área econômica, com o avanço dos interesses
Estados nacionais defrontados com as prioridades de
do capital financeiro globalizado sobre economias
ajuste macroeconômico e do pagamento dos juros
emergentes de base produtiva extremamente frágil,
da dívida.
na maioria das vezes dependentes da exportação de
De críticos mordazes das políticas e aparatos es-
commodities. Mesmo que a existência de governos
tatais gerados em contextos autoritários e excludentes,
democráticos de caráter mais popular seja vista como
passamos, muitas vezes, à difícil tarefa de defender uma
potencial ameaça às tradicionais elites políticas, com
estatalidade precária diante dos projetos radicais de
perspectivas mais redistributivas e redução da impu-
desmontagem das políticas sociais na América Latina,
nidade e dos privilégios, ainda vivemos democracias
em especial aquelas identificadas como oriundas dos pe-
de baixa intensidade, como as caracterizou O’Donnell
ríodos populistas que privilegiaram grupos corporativos
(2002), com áreas marrons em que o Estado não está
mais organizados. Isto implicou um enorme esforço de
presente, no território nacional, e um elevado grau
refinamento da visão estratégica que permitisse fazer
de iniquidade e exclusão social. As tentativas de re-
avançar um projeto reformador universalista a partir
verter este quadro em favor de políticas públicas mais
de um aparato estatal estratificado e excludente, pro-
inclusivas e com aumento da capacidade estatal de
curando impedir que a voracidade liberal reduzisse a
regulação do mercado e redistribuição de renda têm
política social à focalização na área pública e ao mercado
sido vistas como ameaças à frágil democracia institu-
privado dos bens sociais para a classe média. Não foi fácil
cional. Por outro lado, este esforço de transformação
enfrentar esta etapa, haja vista como alguns aderiram
e recuperação da soberania nacional com respeito à
à proposta de privatização e focalização das políticas
diversidade não tem sido acompanhado por uma
sociais enquanto outros terminaram por acreditar na
nova articulação das políticas econômicas e sociais,
existência, entre nós, de um Estado de bem-estar que
gerando um modelo de desenvolvimento inclusivo e
nos caberia defender.
sustentável que aumente a incorporação tecnológica
1
Por todas estas razões, acredito que, no momento
em que celebramos juntos os 25 anos da Alames e,
e a capacidade de geração de emprego sem ameaçar
com a destruição ambiental.
Esse debate ficou bem documentado na polêmica envolvendo os autores Jaime Oliveira, Gastão Wagner e Sonia Fleury sobre a teoria, estratégia e táticas da
reforma sanitária a partir da democracia progressiva das políticas sociais. Ver a respeito em Fleury, S.; Bahia, L.; Amarante, P. Saúde em Debate – Fundamentos
da Reforma Sanitária, Rio de Janeiro, Cebes, 2008.
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
A compatibilização do Estado
zatório, corresponderia à elevação das massas, por meio
capitalista com a democracia e
de políticas públicas, ao nível cultural correspondente
a radicalização da democracia
ao desenvolvimento das forças produtivas. Portanto, o
contra o capitalismo
Estado cumpre um papel fundamental na consolidação
dos avanços do processo civilizatório, ainda que o faça
como parte da expansão da hegemonia de classe.
O Estado capitalista como instância política que
A contribuição de Gramsci sobre o predomínio do
expressa a relação de dominação de classe, afirmada pela
Estado nas sociedades Orientais enquanto nas sociedades
corrente marxista, e o Estado visto como instituciona-
Ocidentais prepondera uma sociedade civil adensada,
lidade, definida por Weber como aquela que opera a
levou-o a vincular a questão do Estado com a estratégia
dominação legítima de caráter racional-legal com um
de transição, estabelecendo que a guerra de movimento,
quadro administrativo burocrático, foram, durante mui-
ou enfrentamento frontal, só teria êxito em sociedades
tos anos, tratados de forma polarizada e excludente. A
nas quais o Estado predominasse sobre a sociedade.
contribuição de Poulantzas (1981) em sua última obra
Ao contrário, a guerra de posição ou de esgotamento
intitulada ‘O Estado, o Poder, o Socialismo’ foi definitiva
seria indicada para as sociedades civis mais complexas,
para reconciliar estas duas tradições teóricas, ao buscar
onde seria necessário conquistar a hegemonia antes da
evitar a redução do aparelho de Estado tanto ao pacto de
tomada do poder.
dominação e ao poder de Estado, quanto na politização
do aparato institucional.
O resgate do Estado como um campo estratégico
de lutas vai ser também enfatizado por Poulantzas
A concepção do marxismo contemporâneo sobre o
(1981), ao afirmar que as lutas políticas não são exte-
Estado tem início com a ruptura que a obra de Gramsci
riores ao Estado enquanto ossatura institucional, mas,
introduz na concepção hegeliana que diferencia Estado
ao contrário, se inscrevem neste aparato, permitindo
de sociedade civil, adotada também, embora de forma
que ele venha a ter um papel orgânico na luta políti-
invertida, por Marx. Para Grasmci (1980):
ca, como unificador da dominação. Nesta concepção
do Estado, é possível percebê-lo, para além de um
O Estado é todo o conjunto de atividades teó-
conjunto de aparelhos e instituições, como campo e
ricas e práticas com as quais a classe dirigente
processos estratégicos, onde se entrecruzam núcleos e
justifica e mantém não somente sua dominação,
redes de poder que, ao mesmo tempo, articulam-se e
mas também consegue o consenso ativo dos
apresentam contradições e decalagens uns em relação
governados (p. 98).
aos outros. Daí que a fragmentação constitutiva do
Estado capitalista não possa ser tomada como inver-
O Estado, para além de suas funções repressivas
so da unidade política, mas como sua condição de
de tutela de uma sociedade de classes, exerce um papel
possibilidade, o que assegura sua autonomia relativa.
fundamental em sua função pedagógica de construção,
O Estado, sua política, suas formas e suas estruturas
consolidação e reprodução da direção cultural da classe
traduzem, portanto, os interesses da classe dominante
hegemônica, sendo a função de homogeneização exer-
não de modo mecânico, mas através de uma relação
cida pelo Direito, exatamente o que permite a criação
de forças que faz dele uma expressão condensada da
de um conformismo social. O Estado ético, ou civili-
luta de classes em desenvolvimento.
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
No entanto, ao buscar inserir os interesses das
mocrático, com base em uma transformação radical do
classes dominadas nos órgãos de Estado, há que ter em
Estado, articulando a ampliação e o aprofundamento
conta o conceito de Offe (1984, p. 145) de “seletividade
das instituições da democracia representativa e das li-
estrutural” do Estado, que explica a maneira como as
berdades (que foram conquistas das massas populares)
demandas populares, mesmo quando adentram o apa-
com o desenvolvimento das formas de democracia
relho administrativo, são destituídas de seu conteúdo
direta na base e a proliferação de focos autogestores
político nos meandros da burocracia estatal, preservando
(1981, p. 293).
dessa forma os limites do sistema de acumulação, ainda
O problema que se coloca é como desenvolver uma
quando necessário contemplar também aos requisitos
via democrática para um socialismo democrático – já
da legitimação do poder.
que se considera que as instituições da democracia são
A apropriação destes conceitos teóricos para
necessárias para construção de um socialismo democrá-
explicar, no nosso caso, a realidade brasileira, gerou
tico – cujas lutas sejam travadas tanto fora como dentro
um conjunto de estudos sobre políticas públicas que
do campo estratégico do Estado, evitando os riscos de
buscava desvendar, pela análise dos determinantes da
um mero transformismo, ou seja, da contínua e progres-
evolução destas políticas, os mecanismos responsáveis
siva transformação estatal que termina preservando as
pela construção social de uma estatalidade singular.
condições atualizadas da dominação?
Conhecer as relações de forças que se materializaram
Na medida em que se considera que a luta estra-
no processo sociopolítico de construção do Estado e,
tégica pelo poder atravessa o Estado, será necessário
desta forma, o sentido político das políticas públicas
realizá-la neste espaço sempre com a necessidade de
representou um enorme avanço na aproximação do
diferenciá-la da ocupação de posições nas cúpulas go-
pensamento das esquerdas em relação à apropriação da
vernamentais e também do reformismo progressivo, que
temática do Estado e das políticas setoriais. Permitiu
não passa de transformação estatal. O que identificará a
compreender como as lutas populares poderiam se ins-
luta pelo socialismo, mesmo que no interior do Estado,
crever na ossatura do Estado, entendendo-o de forma
será sua capacidade de realizar ‘rupturas reais na relação
menos monolítica, como a condensação material de um
de poder’, tencionando-a em direção às massas popula-
campo de forças, ainda que dotado de sentido e direção
res, o que requer a sua permanente articulação com as
políticos, dado pelo pacto dominante. Ao identificar as
lutas de um amplo movimento social pela transformação
conquistas sociais em conjunturas democráticas onde foi
da democracia representativa.
possível alterar a correlação de forças com maior mobilização social, mesmo que com processos de cooptação
A efetivação desta via e dos próprios objetivos
política das lideranças populares, possibilitou o avanço
que ela comporta, a articulação desses dois
na discussão da importância de se tomar em conta a
movimentos que visa a evitar o estatismo e o
institucionalidade estatal na consolidação dos avanços
impasse da social-democracia, supõem o suporte
das lutas das classes populares.
decisivo e contínuo de um movimento de massa
Em sua última obra, Poulantzas (1981) discute as
baseado em amplas alianças populares. Se esse
relações entre o Estado, o poder e o socialismo a partir
movimento desenvolvido e ativo – opondo-se
da necessidade de se compreender a via democrática
à revolução passiva – não existe, se a esquerda
para o socialismo e a construção de um socialismo de-
não consegue incitá-lo, nada poderá impedir
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
a social-democratização desta experiência: os
indivíduos, mas nega inclusive a existência de atores
diversos programas, por mais radicais que se-
coletivos, as classes sociais com interesses contraditórios
jam, não modificam quase nada o problema.
e antagônicos, sendo, portanto, essencial para a cons-
Esse amplo movimento popular constitui uma
trução da ideologia liberal do Estado como represen-
garantia diante da reação do adversário, mes-
tante da vontade coletiva. Por outro lado, a condição
mo que não seja suficiente e deva sempre estar
de cidadania tem que ser vista como um avanço na luta
aliado a transformações radicais do Estado.
das classes oprimidas ao constituir uma esfera pública
(Poulantzas, 1981, p. 299).
com base na noção de igualdade entre os cidadãos,
rompendo com as concepções autoritárias tradicionais
Neste sentido, é preciso afastar a redução dos
que se fundamentam nas desigualdades e hierarquias
ideais socialistas a uma perspectiva de gestão eficiente
sociais. É neste sentido que se pode compreender o Es-
do capitalismo, em uma socialdemocracia, o que só
tado moderno, garante desta igualdade política, como
pode acontecer com a compreensão de que o capi-
“expressão da dominação de uma classe, mas também
talismo não é um destino inevitável, mas uma etapa
um momento de equilíbrio jurídico e político, um
de processo histórico contraditório. Estas contradi-
momento de mediação” (Gruppi, 1980, p. 31).
ções se manifestam de forma especial no campo do
Algumas proposições analíticas foram levantadas
desenvolvimento da cidadania e dos direitos sociais
para compreender a cidadania e o fundamento das polí-
e coletivos.
ticas sociais, fora de seu marco original liberal (Fleury,
A introdução do conceito de cidadania como eixo
1994):
teórico e estratégico para explicar o desenvolvimento das
políticas sociais se faz a partir da constatação de que a
• a cidadania, hipótese jurídico-política inscrita na
expectativa de obediência do Estado pela introjeção do
natureza do Estado capitalista, como uma mediação
dever político não se funda nem exclusiva nem priori-
necessária, mas não suficiente para explicar a gênese das
tariamente no monopólio que ele detém da violência,
políticas sociais;
mas na sua capacidade de organização do consenso e
na legitimidade alcançada na sociedade. As mediações
• a política social como gestão estatal da reprodu-
necessárias à construção da hegemonia implicam não
ção da força de trabalho que encontra, na dinâmica da
apenas a expansão dos interesses da classe dominante,
acumulação capitalista, sua condição de possibilidade e
mas também na própria ampliação do Estado, acabando
seu limite;
por retirar o fundamento da separação entre as esferas
diferenciadas da economia e da política com a introdução da esfera social.
O capitalismo tem necessidade de criar o cidadão
• as políticas sociais participam da reprodução social
e construção da hegemonia como uma rede especial de
micropoderes;
na medida em que ele é o correspondente jurídico e
político do trabalhador livre e capaz de vender a sua
• a materialização de uma correlação de forças em
força de trabalho; já a cidadania é a abstração necessária
um aparato político-administrativo-prestador de serviços
à constituição, fundamento e legitimidade do poder
dependerá do funcionamento desta institucionalidade
político. Ela reconhece a autonomia e liberdade dos
organizacional;
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
• o desenvolvimento das políticas sociais é históri-
conjunto de direitos para resgatá-la como imaginário
co e manifesta, em seu transcurso, os movimentos da
jurídico-político igualitário, o que inaugura um campo
contradição entre produção socializada e apropriação
de lutas pela atualização dos direitos sociais e permite a
privada, ainda que tenha alterado de forma irreversível a
disputa por seu conteúdo, que vai desde a normalização
separação entre as esferas da economia e da política.
burocrática até a construção de identidades emancipatórias. Neste sentido, a questão democrática passa a ser
Assim como a democracia formal com sua institu-
a construção de novos sujeitos e sua articulação com
cionalidade, a cidadania é uma hipótese ou possibilidade
os movimentos sociais, mesmo que este processo se dê
jurídica que não garante a sua concretização histórica.
fundamentalmente a partir das demandas cidadãs não
Ambas são possibilidades porque permitem a compati-
cumpridas pelo Estado nas democracias capitalistas.
bilização entre democracia e capitalismo, com o status
No entanto, o caminho de articulação desta dupla
igualitário da cidadania sendo reconhecido na esfera
via de lutas, dentro e fora do Estado, não é fácil, pois
política em franca contradição com as disjunções eco-
deve encontrar a capacidade de fortalecer, desenvolver
nômicas entre as classes. Portanto, o Estado ampliado,
e coordenar os centros de resistência difusa seja dentro
aquele que ao incorporar as demandas sociais se trans-
ou fora do aparato institucional do Estado. A tese fou-
forma para além do mero aparato fiscal e coercitivo, é
caultiana de que “onde há poder há resistência” levou
fruto de uma construção histórica impulsionada pelas
Laclau e Mouffe (2001) a se indagarem sobre a existência
lutas de uma correlação de forças transformadoras.
de variadas formas de resistência e em quais casos elas
assumiriam um caráter político.
Na democracia capitalista, a separação entre a
A partir da crítica ao componente Jacobino do
condição cívica e a posição de classe opera nas
marxismo, “o qual postula um elemento fundacional
duas direções: a posição socioeconômica não
de ruptura e um espaço único no qual o político é
determina o direito à cidadania – e é isso o
constituído”, os autores afirmam sua rejeição a um
democrático na democracia capitalista -, mas,
ponto privilegiado de ruptura e admitem a pluralidade
como o poder do capitalismo para apropriar-se
e indeterminação do social. A política não pode ser
do trabalho excedente dos trabalhadores não
localizada a um dado nível do social, pois sua questão
depende de condição jurídica ou civil privile-
é a própria articulação das relações de antagonismo, o
giada, a igualdade civil não afeta diretamente
que leva Laclau e Mouffe (2001, p. 154) a formularem
nem modifica a desigualdade de classe – e é
a tese de que “o antagonismo só pode emergir pela
isso que limita a democracia no capitalismo.
subversão da posição subordinada do sujeito”. Neste
(Wood, 2003, p. 184).
sentido, afirmam o papel dos movimentos sociais que
é de rearticular, por meio do imaginário democrático,
Neste sentido, a superação da compatibilização
as relações de subordinação como relações de opressão,
de capitalismo e democracia tendo como mediação a
evitando que sejam estabilizadas como subordinação e,
cidadania passa pela possibilidade de radicalização da de-
também, denunciar a subordinação ocorrida quando os
mocracia a partir da ruptura provocada pela constituição
direitos adquiridos são negados na prática.
de novos sujeitos políticos. Em outras palavras, trata-se
A pergunta que permanece é acerca da natureza
de superar a visão da cidadania como repositório de um
deste sujeito capaz de portar um projeto emancipatório.
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
Aspectos da modernização, como a divisão social do
sem alcançar a ampliação da democracia nos processos
trabalho, a crescente especialização funcional, o apro-
de gestão e participação no âmbito da empresa.
fundamento da democracia que permite a construção
Boaventura Santos (1994) afirma que o princípio
de novas identidades e a polarização de novos conflitos,
da subjetividade é muito mais amplo que o princípio da
além do poder dos meios de comunicação massiva, in-
cidadania e, se bem a cidadania enriquece a subjetividade
cidirão profundamente nos processos de subjetivação,
e abre-lhe outros horizontes de autorrealização ao con-
acarretando a substituição do sujeito classista unitário
sistir em um conjunto universal de direitos e deveres, ela
por uma fragmentação das subjetividades, em um es-
colide com a diferença da subjetividade e da autonomia
paço político polifônico inevitavelmente mais plural e
que marcam a identidade do sujeito.
indeterminado.
A redução liberal da cidadania aos componentes
A radicalização da democracia só pode ser levada
civil e político e da democracia à sua compatibilidade
a cabo a partir da perspectiva de constituição de novos
com o capitalismo na perspectiva do pluralismo polí-
sujeitos políticos que subvertam sua posição subordina-
tico e de instituições que garantam a constitucionali-
da. A ruptura é, pois, a própria subjetivação, desde que
dade na disputa e alternância de poder tem sido uma
ela seja capaz de tematizar a opressão. A constituição do
tendência predominante em muitos teóricos atuais, da
sujeito deve ser vista dentro desta perspectiva de uma
clássica poliarquia de Dahl aos mais recentes estudos
ação que afirme sua liberdade e consciência, dentro
de O’Donnell. Desde a perspectiva social-democrata,
de um enquadramento que não foi por ele escolhido.
trata-se de combinar a institucionalidade política da
É no interior desta tensão entre determinação social
democracia com a subordinação dos conflitos ao prima-
e afirmação da liberdade individual e grupal que bus-
do da justiça social, o que implica em ganhos substan-
camos encontrar o lugar da constituição dos sujeitos
tivos da dimensão social da cidadania. Neste sentido,
(Fleury, 2009).
o sujeito político representado pelo movimento dos
Este processo, fundado na dinâmica da vida social,
trabalhadores torna-se um sujeito ativo apenas do pro-
não pode prescindir do Estado como um campo estra-
cesso de conciliação da democracia com o capitalismo
tégico de lutas. No entanto, não se está propondo que
(Przeworski, 1989, Genro, 2008, Mészáros, 2006)
a mediação social-democrata da cidadania seja capaz
na medida em opera no interior dos princípios estrutu-
de abrir o caminho de um processo emancipatório. Ou
rais do sistema do capital e é legalmente constituído e
seja, nem se pode construir subjetividades de forma
regulado pelo Estado. Segundo Mészáros (2006, p. 91),
administrativa, nem desconhecer o fato de que as lutas
esta é uma perspectiva historicamente delimitada, pois
populares possam chegar a ocupar certas posições no
“o desenvolvimento do estado de bem-estar foi a última
Estado, o que não implica romper a seletividade estru-
manifestação dessa lógica, que só se tornou viável num
tural das políticas públicas.
número limitado de países”.
A cidadania tem encontrado um obstáculo para
Portanto, a compatibilização entre democracia
expandir a democracia para além da esfera política. Só
e socialismo passa por uma radicalização do processo
recentemente, por exemplo, o âmbito das relações fami-
de autonomização dos sujeitos dominados – agora
liares passou a subordinar-se aos direitos de cidadania
falamos dos sujeitos no plural – em luta que conjugue
enquanto as relações no interior da produção capitalista
a universalidade da cidadania com a singularidade das
só escassamente se submetem ao direito do trabalho,
identidades sociais. Se esta é uma luta política, ela
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
não pode subsumir seu componente de transformação
A busca de uma nova institucionalidade para a
econômica, pois implica a “reintegração da economia”
democracia que seja capaz de atender conjuntamente aos
à vida política da comunidade, que se inicia pela sua
princípios de reconhecimento, participação e redistribui-
subordinação à autodeterminação democrática dos
ção (Fraser, 2001b) marca o momento atual. Trata-se
próprios produtores” nas palavras de Wood (2003,
de uma articulação entre inovação social e inovação
p. 242)
institucional que permitiria a construção de uma nova
No entanto, os caminhos para essa estratégia não
institucionalidade para a democracia, o que implica
se encontram claros e não há, até o momento, uma
o reconhecimento do outro, a inclusão de todos os
formulação consistente do campo das esquerdas em
cidadãos em uma comunidade política, a promoção da
relação à construção do socialismo, mesmo diante da
participação ativa e o combate a toda forma de exclusão.
perspectiva da crise estrutural do capitalismo e de he-
Enfim, a democracia requer o primado de um principio
gemonia neoliberal.
de justiça social, além de novos sujeitos políticos e uma
Parte dessa estratégia está sendo vivida em cam-
nova institucionalidade.
pos particulares como o da saúde e de outras políticas
O modelo deliberativo é uma concepção substan-
sociais, ou na perspectiva mais ampla de consolidação
tiva e não meramente procedimental da democracia,
de novos blocos de poder dos governos democráticos na
envolvendo valores como o igualitarismo e a justiça
América Latina. A possibilidade de expansão da esfera
social. O processo decisório não é para eleger entre al-
pública e de construção de um novo bloco de poder
ternativas, mas para gerar novas alternativas, permitir a
requer e exige um novo modelo de democracia que vá
construção de identidades coletivas e possibilitar maior
além do aprofundamento da democracia representativa,
inovação social.
em direção a um modelo de democracia deliberativa e
As iniquidades socioeconômicas são resultado
de reconstrução do Estado, permitindo a inclusão dos
de uma longa tradição de cultura política autoritária e
interesses excluídos até agora por meio de processos de
excludente. A compatibilização entre democracia e ex-
cogestão social.
clusão social é possível sempre e quando restringimos a
Nossa tese é que a construção da democracia na
democracia a um regime democrático, mesmo que com
região introduz a reivindicação cidadã de um direito de
eleições periódicas e institucionalizadas, relativamente
quinta geração (para além dos direitos civis, políticos,
livres, para o acesso às principais posições governamen-
sociais e difusos), que corresponde à demanda por uma
tais. Nesta concepção, os direitos de participação se
gestão deliberativa das políticas públicas, em especial
identificariam com os mecanismos de representação. Só
das políticas sociais (Fleury, 2003a).
a radicalização da democracia, com a inclusão daqueles
Neste sentido, diferimos daqueles que veem os
que foram alijados do poder em um jogo aberto e ins-
direitos sociais exclusivamente como resultantes da
titucionalizado de negociação e/ou deliberação, pode
expansão dos direitos civis e políticos, e entendemos
romper o círculo vicioso da política caracterizado pela
que, na América Latina, são as lutas pelos direitos sociais
alienação da cidadania, ausência de responsabilidade dos
que estruturam as identidades dos sujeitos políticos,
representantes e autoritarismo da burocracia.
transformam a institucionalidade estatal e introduzem
Neste sentido, o modelo da democracia delibera-
modalidades democráticas inovadoras, especialmente
tiva não abre mão do Estado, ao contrário, reconhece a
ao nível local.
necessidade de radicalizar a transformação de seu aparato
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FLEURY, S.
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
institucional para permitir a inclusão, na agenda das
certo afirmar que é através destas lutas e da construção de
políticas públicas, dos interesses dominados, em um
identidades que se pode articular uma proposta coletiva
processo simultâneo de transformação da instituciona-
de transformação social.
lidade e construção de identidades coletivas.
Em sociedades como as latino-americanas, em que
A radicalização da democracia pela via da conju-
os trabalhadores formais constituem, hoje em dia, grupos
gação da democracia representativa com a democra-
privilegiados pelas políticas públicas sem vínculos solidá-
cia deliberativa não está isenta de contradições nem
rios com outros setores delas excluídos, seria ilusão esperar
mesmo de ilusões. Contradições existem porque nos
que a contestação da dominação e exploração se fizesse
propomos a desenvolver a luta simultaneamente desde
principal e fundamentalmente como parte do conflito ca-
a ocupação dos espaços institucionais e da mobilização
pital versus trabalho. Na análise crítica de Oliveira (2006,
da sociedade civil.
p. 37), encontramos as bases materiais que fundamentam
Mas é preciso reconhecer que a participação dos
este processo de corporativismo excludente:
partidos operários e populares no parlamento é limitada
pelo domínio que o capital tem sobre a esfera parla-
Não apenas a devastação produzida pela desre-
mentar do poder e, cada vez mais, com a articulação do
gulamentação operou a desimportância da base
domínio político e controle da comunicação. Portanto,
classista na nova política. Há uma internali-
somente com a conjugação da representação parlamentar
zação da reestruturação produtiva que produz
com formas articuladas com o movimento da sociedade
uma nova subjetividade, inculcando os valores
civil organizada será possível aumentar sua potência.
de competição, colocando situações objetivas nos
Wood (2003 p. 211) adverte sobre a mistificação
processos de trabalho que corroem a percepção de
da noção de sociedade civil e das formas participativas
classe virtualmente proporcionada pelo precário
ao afirmar que:
fordismo periférico.
Para negar a lógica totalizante do capitalis-
Se somarmos a esta transformação nas bases mate-
mo, não basta apenas indicar a pluralidade
riais e na subjetividade da classe trabalhadora a existência
de identidades e relações sociais. A relação de
de um enorme contingente de trabalhadores informais
classe que constitui o capitalismo não é, afinal,
que sempre foram excluídos dos benefícios das políticas
apenas uma identidade pessoal, nem mesmo um
sociais, percebemos que as possibilidades de democra-
princípio de estratificação ou de desigualdade.
tização são intrinsecamente vinculadas à inclusão deste
Não se trata apenas de um sistema específico
contingente de deserdados à esfera pública da cidada-
de relações de poder, mas também da relação
nia. O fato de se apostar, na região, em um modelo de
constitutiva de um processo social distinto, a
democracia participativa se ancora nesta situação que
dinâmica da acumulação e da auto-expansão
terminou por dar lugar, a partir dos anos 1980 e 1990,
do capital.
à emergência de demandas coletivas por reconhecimento
identitário, políticas distributivas e formas alternativas
Se bem é correto denunciar as tentativas de dissol-
de cogestão entre Estado e sociedade.
ver o domínio do capital em um conjunto inespecífico
No entanto, as diferentes experiências de participa-
de lutas por identidades e relações de poder, também é
ção no controle e cogestão social em políticas sociais têm
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
demonstrado que não podem ser tomadas como o cami-
bargo, las posibilidades de generar estrategias de
nho inequívoco da transformação, dadas suas limitações
institucionalización del poder y cohesión social
e fragilidades, tais como a segmentação e fragmentação
están determinadas por la reducción del poder
da participação em diferentes âmbitos políticos com a
del Estado y por la inserción de estas sociedades
consequente especialização, dispersão e perda de potên-
en una economía globalizada, profundizando
cia; as restrições à participação em questões que afetam
la disyuntiva entre economía/política, estado/
à dinâmica econômica e de reprodução do capital, limi-
nación. (Fleury, 2003b).
tando a participação á políticas sociais (Moroni, 2009);
a apropriação destes espaços de participação por grupos
Os governos democráticos que se instalaram na
corporativos e práticas clientelista (Labra, 2009, Côrtes,
região nos últimos 25 anos têm procurado enfrentar-se
2009); a iniquidade na participação (Young, 2001, Fra-
aos desafios de alcançar níveis sustentáveis de gover-
ser, 2001b, Fedozzi, 2009), dentre outros.
nabilidade ao buscar soluções para os problemas da
Ainda assim, muitos aspectos positivos são levan-
desigualdade e da exclusão social. Autores como Lan-
tados por estes mesmos estudos e por outros autores,
zaro (2008) e Roberts (2008) identificam como uma
tendo em conta que a participação social implica a
novidade absoluta a existência atual de governos do tipo
construção simultânea das identidades particulares e
social-democrata que buscam manter o compromisso
da universalidade do reconhecimento da alteridade,
entre capitalismo e democracia com vistas a uma nova
além de permitir práticas sociais inovadoras (Avritzer,
forma de desenvolvimento que combine progresso eco-
2009) que introduzem novas possibilidades de combate
nômico com coesão social. Roberts, no entanto, aponta
ao desrespeito e à negação dos direitos de cidadania
a debilidade destes governos de caráter social-democrata
(Honneth, 2003).
em construir uma alternativa integral ao modelo de
Em outro momento afirmei que:
desenvolvimento neoliberal, pois mantiveram políticas
macroeconômicas ortodoxas, restringidas pela pressão
El problema central de gobernabilidad en
do mercado mundial, sem desenvolver políticas indus-
América Latina está fundamentado en la con-
triais e de negociação corporativa que caracterizaram
vivencia paradójica entre una orden jurídica
a social democracia europeia. Lanzaro (2008, p. 41)
y política basada en el principio de igualdad
identifica como a característica central dos governos
básica entre los ciudadanos y la preservación
social-democratas na América Latina que ele denomina
simultánea del mayor nivel de desigualdad en
como de esquerda institucional, como a existência de um
el acceso a la distribución de riquezas y a los
partido de esquerda comprometido com a competição
bienes públicos. La pérdida de legitimidad del
eleitoral e com o regime democrático republicano. São
pacto corporativo y de los actores tradicionales
os casos do Brasil, Chile e Uruguai. A onda de governos
vinculados al Estado desarrollista requiere la
de esquerda teria outros matizes como os governos popu-
construcción de un nuevo pacto de poder que
listas (Venezuela, Bolívia e Equador) e governos nacional
contemple las transformaciones que se procesa-
populares (Argentina e, eventualmente, Panamá).
ron con el adensamiento reciente del tejido social
Ambos os autores coincidem em que nem todos
y sea capaz de incorporar, plenamente, a aque-
os governos de esquerda na região preenchem o quesito
llos que hoy se encuentran excluidos. Sin em-
de institucionalidade necessário à construção da social
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
democracia, já que esta incluiria o respeito à democracia
cipativa ou novo socialismo. Neste último cenário ainda
liberal e às liberdades individuais, junto com o compro-
emergente, encontramos a possibilidade de o retorno
misso com as eleições competitivas, o pluralismo político
estatal, também presente no neodesenvolvimentismo,
e o compromisso com a cidadania social. Governos de
ser conjugado com o protagonismo da participação social
esquerda que emergiram de uma forte reação social
dos setores mais desfavorecidos, com construção efetiva
contra o neoliberalismo, frequentemente liderada por
de um novo marco do poder social que pautasse as ações
novos movimentos e sujeitos sociais como indígenas,
tanto do Estado quanto do mercado.
piqueteiros e pobres urbanos, terminaram por gerar go-
Trujillo (2009) demonstra como a participação so-
vernos identificados por estes autores como populistas.
cial foi valorizada pela nova Constituição Equatoriana de
Isto porque a legitimidade do governante prescinde da
2008, compreendida como um direito das pessoas que
institucionalidade democrática, já que o sistema tradi-
passa a ser institucionalizado na iniciativa legislativa e no
cional de partidos acabou sendo desacreditado e não foi
controle da democracia representativa, assim como no
substituído por outra organização partidária.
processo decisório das políticas públicas e, mais ainda,
A disjuntiva entre participação e institucionalização,
ao estabelecer de forma inovadora a participação como
assinalada por Dahl (1991) no estudo do desenvolvimento
o quarto poder do Estado ao institucionalizar as funções
dos sistemas políticos, mais uma vez se coloca na região. A
de transparência e controle social.
opção por priorizar a participação é desqualificada pelos
Sem embargo, os desafios da incorporação da
analistas políticos como populista e geradora de insta-
participação popular em um modelo de democracia
bilidade política, ainda que se considere que tensiona a
que transcenda a democracia representativa não podem
democracia no sentido da ampliação e aprofundamento do
deixar de lado a questão da ineficiência do Estado e a
seu componente social. Já a opção pela institucionalização,
ausência de uma perspectiva republicana na ação dos
ainda que propicie maior estabilidade, tem sido incapaz de
governos, mesmo os mais progressistas.
romper com os interesses dos setores que tradicionalmente
Este contexto regional é em quase tudo diferente
dominaram as sociedades nos países latino-americanos,
daquele que deu origem aos sistemas de proteção social
gerando frustrações entre os membros mais radicais da
do tipo universal que se desenvolveram nos países euro-
coalizão política. Apesar das diferenças entre as duas opções,
peus e foram denominados welfare state. Considerando
evidencia-se a ausência, em ambos os casos, de uma articu-
o contexto em que se situa a América Latina, fica pen-
lação entre progresso econômico e social, demonstrando a
dente a questão sobre qual modelo de proteção deverá
fragilidade de economias exportadoras de commodities para
ser reivindicado pelos setores progressistas.
gerar um projeto de desenvolvimento sustentável.
Ramirez (2009) considera a existência, na região, de
quatro cenários políticos nos quais se podem analisar as
A proteção social como perspectiva
diferentes maneiras de enquadramento da questão social e
de transformação do Estado e da
da participação. São eles: o cenário neoliberal (por exem-
sociedade
plo, México e a maior parte dos países centro-americanos),
o cenário social-liberal (Brasil e Uruguai), o cenário (neo)
desenvolvimentista (Argentina, Brasil, Equador, Bolívia,
O desenvolvimento dos sistemas de proteção social
Uruguai, por exemplo) e o cenário de governança parti-
que caracterizaram o período do ciclo virtuoso do capi-
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
talismo organizado gerou o estado de bem-estar social,
social das contribuições pretéritas e a associa exclusiva-
ou welfare state, que designa o conjunto de políticas
mente à necessidade com base em princípios de justiça
desenvolvidas em resposta ao processo de modernização
social e estratégias solidárias que alcançam garantir os
das sociedades ocidentais, consistindo em intervenções
direitos sociais ‘à cidadania universal’ (Fleury, 1994,
políticas no funcionamento da economia e na distri-
ênfase acrescida).
buição social de oportunidades de vida, que procuram
Este processo histórico de conquista e expansão
promover a seguridade e a igualdade entre cidadãos com
dos direitos sociais correspondeu a uma etapa do capi-
o objetivo de fomentar integração social das sociedades
talismo que foi expansiva na absorção de mão de obra,
industriais altamente mobilizadas.
alcançou taxas inusitadas de inovação e lucratividade
O welfare state consistiu em uma resposta às cres-
na produção industrial e permitiu a construção da uma
centes demandas por seguridade socioeconômica em
institucionalidade estatal capaz de assegurar mecanismos
um contexto de mudança na divisão do trabalho e de
distributivos efetivos que se transformaram em um
enfraquecimento das funções de seguridade das famí-
sólido alicerce para a coesão social.
lias e associações debilitadas pela revolução industrial
Desde o último quarto do século 20 temos as-
e a crescente diferenciação das sociedades. Também
sistido às tentativas de desmontagem destes sistemas,
representaram respostas às crescentes demandas por
o surgimento de inovações e controles de gastos e de
igualdade socioeconômica surgidas no processo de
mecanismos de acesso, bem como de resistências dos
crescimento dos estados nacionais e das democracias de
profissionais e usuários a um processo radical de sua
massa com a expansão da cidadania. Nesta perspectiva,
destruição.
o welfare state é um mecanismo de integração por meio
A inexistência das condições que geraram o
da expansão da cidadania via direitos sociais que neu-
welfare state – homogeneidade e organização da classe
traliza as características destrutivas da modernização, e
trabalhadora, incorporação massiva no mercado de
sua essência reside na responsabilidade pela seguridade
trabalho, valores solidários, expansão da taxa de lucros,
e pela igualdade dos cidadãos.
etc. – associaram-se às contradições introduzidas pelo
Ainda que as origens do estado de bem-estar social
sejam encontradas em um processo histórico comum
próprio estado do bem-estar, tais como o consumismo,
individualismo e desmobilização da cidadania.
– que deu origem ao Estado nacional, à democracia
Correspondentemente ao Consenso de Washing-
de massas e ao capitalismo industrial – o predomínio
ton, que se tornou a ideologia econômica dominante
de distintas culturas políticas, estruturas institucionais,
perpetrada pelos organismos bilaterais ou multilaterais
estratégias de luta e correlações de forças gerou modelos
de cooperação, os princípios de redução do estado,
de proteção social distintos. Identificamos o ‘modelo
privilegiamento do mercado e subordinação da política
assistencial’, no qual predomina o mercado, e a proteção
pública aos mecanismos macroeconômicos de ajuste
social se dirige a grupos vulneráveis focalizados em uma
refletiram-se fortemente nas diretrizes e modelos defi-
situação de ‘cidadania invertida’, o ‘modelo do seguro
nidos para a proteção social.
social’, no qual a ‘cidadania é regulada’ pelas condições
Foi neste contexto adverso que muitos dos países
de inserção no mercado de trabalho, e o ‘modelo de
latino-americanos iniciam seu processo de transição
seguridade social’, mais propriamente identificado como
democrática, depois de experiências autoritárias – popu-
o welfare state por ser o único que desvincula a proteção
listas ou ditatoriais – nas quais predominaram práticas
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
clientelistas e interesses corporativos, com a persistência
xalmente, a solidão e a violência (Baudrillard, 2009).
de uma cultura política elitista e excludente, além de se
Castel (1995, p. 768) anuncia que a contradição que
enfrentar uma situação econômica fragilizada pelas altas
atravessa os processos de individualização na sociedade
taxas de inflação e pelos crescentes encargos das dívidas
atual a ameaçam de uma fragmentação ingovernável e
externa e interna.
de uma bipolarização entre aqueles indivíduos que ti-
O embate ideológico foi travado a partir de have-
ram proveito de sua independência e têm suas posições
rem decretado a falência do estado do bem-estar social,
asseguradas, e aqueles que carregam sua individualidade
visto por seus críticos liberais como um dos grandes
como uma cruz.
responsáveis pela crise do capitalismo, na medida em
Na América Latina, o tema da coesão social tem
que desestimula a competição e o trabalho ao assegurar
sido fortemente impulsionado pela Cepal a partir de
proteção garantida “do berço à sepultura”, como afir-
uma revisão da sua ênfase inicial na modernização
mam Friedman e Friedman (1980). Por outro lado, os
produtiva como eixo decisivo de articulação entre o
benefícios sociais são considerados nocivos ao equilíbrio
crescimento econômico e a integração social. Segundo
das finanças públicas, pois aumentam os ônus do Es-
seu dirigente Machinea (2007, p. 23), o novo marco
tado, ampliando o gasto fiscal com as políticas sociais
prolonga a vocação da instituição na busca de sinergias
cujos custos são crescentes em função do aumento da
positivas entre crescimento econômico e equidade social,
expectativa de vida, dos padrões de consumo, da incor-
dando agora maior ênfase à melhoria da competitividade
poração tecnológica.
e ao fortalecimento da democracia política participativa
Por suposto que a crise do welfare não pode ser cre-
e inclusiva. Considera, outrossim, a proteção social
ditada ao liberalismo dos anos 1970, mas às contradições
como um direito básico de pertencimento à sociedade,
inerentes à desmercantilização da reprodução social no
e propõe um pacto social de proteção regido pelos prin-
interior de uma economia capitalista (Offe, 1984), o
cípios de universalidade, solidariedade e eficiência.
que teve um efeito na transformação do conflito pro-
Colocando ênfase na condição de cidadania como
dutivo em redistributivo, mas que terminou por adiar,
parte do desenvolvimento com direitos, a Cepal (Sojo;
com sua rigidez burocrática, os mecanismos de crise
Ulthoff, 2007, p. 10) identifica a pobreza como uma
que serviriam para corrigir os rumos do capitalismo.
condição que vai além do nível socioeconômico e da
Sem o componente Keynesiano relativo ao crescimento
falta de acesso mínimo ao suprimento das necessidades
econômico, o componente de segurança social do wel-
básicas, afirmando que ser pobre ou excluído é, sobre-
fare não só não se mantém, mas passa a ser visto como
tudo, carência de cidadania ou condição pré-cidadã, na
causador da crise.
medida em que se nega a titularidade de direitos sociais
A transformação cultural operada no período mais
e de participação.
recente nos coloca diante de uma sociedade cada vez
A ênfase da proposta Cepalina é colocada na busca
mais destituída de princípios solidários que concilie
de um pacto fiscal que viabilize as políticas de inclusão
a organização social com base em relações pautadas
social. Por essa razão, apesar do discurso francamente
pelos valores cívicos. As relações sociais passaram a ser
favorável à expansão da cidadania, a proposta termina
pautadas pela desconfiança, insegurança e o medo ao
por condicionar este alargamento da esfera pública às
outro (Rosanvallon, 2007; Lechner, 2007) em uma
condições pragmáticas decorrentes do montante dos
sociedade marcada pelo consumismo que gera, parado-
recursos fiscais disponíveis. Desta forma, a cidadania
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
universal se coloca como uma meta que deve ser alcança-
mais pobres, como trabalhadores rurais, domésticos e
da com medidas bem mais tímidas de combate à pobreza
autônomos.
que produziriam uma inclusão social progressiva.
A crescente incorporação da temática da pobreza
Já Sorj e Martuccelli (2008) criticam a visão uni-
e sua centralidade na agenda política nas duas últimas
lateral que vem sendo dada aos aspectos redistributivos
décadas, no entanto, não deve eludir a questão social
na discussão da coesão social na região. Estes autores
que está colocada, nos termos do questionamento da
reivindicam a necessidade de compreender a natureza
possibilidade de preservação da ordem e da autoridade
da coesão social partindo de contextos e condições de
institucional – ou governabilidade – e preservação da
vida específicos, afirmando que os indivíduos:
organização social.
A individualização da pobreza e seu tratamento
Inclusive (em condições) de pobreza e de limi-
de forma econômica (linhas e mapas) ou cultural (ca-
tadas oportunidades de vida, são produtores
racterísticas e valores) separam este fenômeno tanto das
de sentido e de estratégias e de formas de soli-
condições de produção quanto das condições institucio-
dariedade inovadoras, que não estão inscritas
nais de proteção social. Paralelamente à individualiza-
a priori na história ou nas estruturas sociais,
ção da pobreza, assistimos à individualização do risco
embora obviamente sejam influenciadas por
(Procacci, 1999) através das reformas dos sistemas de
elas. (Sorj; Martuccelli, 2008, p. 2).
políticas sociais de base mais coletiva que traz embutida
a associação entre contribuição e benefício.
A prioridade que têm assumido as políticas de
A sinergia entre políticas de combate à pobreza e
combate à pobreza implementadas pelos governos de-
a matriz liberal de individualização dos riscos tem sido
mocráticos na América Latina tem tido relativo sucesso
pouco discutida entre nós e merece ser criticamente
ao retirar milhões de pessoas da condição de indigência
analisada. Mesmo considerando os avanços em tecno-
nas duas últimas décadas. No entanto, esse desenho
logias sociais no campo assistencial, é necessário levar
priorizado para as políticas sociais na região tem tido
em consideração que reforçam a alienação em relação
menor êxito na redução das desigualdades que persistem
aos determinantes sociais da situação de pobreza e não
e ainda vêm enfrentando sérias dificuldades para cons-
favorecem a organização social dos beneficiários, além
truir cidadania. Para tanto, seria necessário assegurar, de
de reforçarem concepções tradicionais sobre a família e
um lado, direitos sociais livres de condicionalidades e, de
a mulher (Arriagada; Mathivet, 2007).
outro, uma inserção produtiva que permitisse aos indi-
A inexistência de perspectivas concretas de altera-
víduos, famílias e comunidades condições para transpor
ção sustentável das condições de produção da pobreza
o umbral de autonomia e romper com a dependência
como condição indispensável para o desenvolvimento
das transferências governamentais.
material e político de nossas sociedades denuncia a au-
De toda maneira, representa uma mudança signi-
sência de articulação das políticas distributivas com um
ficativa no padrão de proteção social regional, já que, na
projeto de desenvolvimento econômico e de preservação
América Latina, a questão social foi posta historicamente
ambiental que possa gerar condições de absorção na
como associada e delimitada pela reivindicação de um
condição produtiva, se não dos beneficiários atuais, pelo
status sociopolítico para o trabalho urbano, gerando po-
menos de seus dependentes. Não há perspectivas que
líticas de seguro social que não se destinavam aos grupos
articulem as políticas econômicas, sociais e ambientais,
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FLEURY, S.
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
o que tem se traduzido na tensão constante entre os mi-
marcante da insegurança, traduzida como medo da
nistérios responsáveis pela estabilização monetária com
exclusão, medo do outro e medo da falta de sentido. O
relação às demandas distributivas e preservacionistas
medo da exclusão decorre da incapacidade do mercado
encaminhadas pelos ministérios sociais e ambientais.
de satisfazer as demandas de reconhecimento e integra-
Esse tipo de inclusão que se está processando via
ção simbólica anteriormente assegurados pelo estado de
políticas de transferência e combate à pobreza não trans-
bem-estar. O medo do outro é a expressão da percepção
cende a matriz assistencial, sendo incapaz de garantir
do outro como um estranho e potencial agressor, já
uma inserção autônoma, na esfera política e econômica,
que as estratégias de retração individuais e familiares
que assegure estabilidade aos beneficiários. Sem garantir
não se mostram capazes de substituir a sociabilidade.
direitos de cidadania e sem assegurar um modelo de
A falta de um horizonte temporal dificulta encontrar
desenvolvimento econômico que absorva essa mão-
um sentido de ordem, e a vida social aparece como um
de-obra, criam-se condições de dependência pessoal e
processo caótico, aumentando as sensações de solidão
política dos governantes, reificando a cidadania invertida
e incomunicabilidade.
e, por fim, fragilizando as instituições democráticas que
funcionam sob a primazia do direito.
As razões para a agudização deste processo são
encontradas na transformação da relação entre Estado
Não há dúvidas que a transposição da linha de
e sociedade perpetrada por meio de uma Reforma do
pobreza por um grande contingente populacional gerará
Estado que, ao priorizar, as relações de mercado, alterou
efeitos societários importantes, desorganizando as iden-
a capacidade reguladora estatal, deixando de exercer seu
tidades tradicionais e gerando novas identidades sociais.
papel de garante da comunidade.
Calderón e Lechner (1998) mostram que essa diferenciação apresenta efeitos contraditórios, pois, se bem dá
Es por intermedio de un ‘otro generalizado’ un
lugar a um processo de desagregação e atomização das
imaginario y una experiencia de ‘sociedad’ que
tradicionais identidades coletivas que fundamentavam
la persona afirma su autonomía individual.
a ordem tradicional e permite, assim, um jogo mais
La persona se sabe y se siente partícipe de una
democrático e pluralista, ao mesmo tempo dissolve as
comunidad a la vez que es reconocida por ella en
identidades coletivas em tribos coesionadas mais pelo
sus derechos y responsabilidades. ¿Cual es la for-
compartilhamento de emoções fugazes que por laços
ma colectiva que permite respectar y desplegar
duradouros. E concluem: “os atores sociais se multi-
las diferencias individuales? No basta la mera
plicam na medida em que se debilitam.” (Calderón;
sumatoria de individualidades. (Lechner,
Lechner, 1998, p. 18).
2007, p. 10).
Analisando os paradoxos da modernização recente
no Chile, Lechner (2007) encontra que os notáveis
A inexistência de perspectivas concretas de altera-
êxitos deste processo convivem com um sentimento
ção radical das condições de produção da pobreza, como
difuso de mal-estar que se expressa nos sentimentos de
condição indispensável para o desenvolvimento material
insegurança e incerteza.
e político de nossas sociedades, denuncia a existência
Apesar de os indicadores econômicos e de desen-
subjacente de algo mais profundo que realmente se
volvimento social apresentarem um resultado positivo, o
constitui em analisador dos limites da coesão em nossas
autor encontra, em sua pesquisa de opinião, a presença
sociedades. É a situação de violência que experimenta-
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FLEURY, S.
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
mos nos dias atuais, especialmente nas grandes cidades,
governamentais. Ambos os sistemas, público e privado,
que gera um sentimento generalizado de insegurança e
deveriam ser isolados, sendo o setor privado suplementar
medo, que pode ser tomada como a condição atual de
e opcional, mas muitos fluxos permitem que o privado
emergência da questão social, requerendo estratégias de
se beneficie dos recursos públicos, invertendo a lógica
políticas públicas que possam responder a esta situação
da solidariedade proposta no desenho original. Na Co-
crítica e assegurar possibilidades de recriação da coesão
lômbia, um modelo de seguro denominado ‘pluralismo
social. Portanto, é imprescindível resgatar o estreito
estruturado’ pretendeu articular público e privado em
vínculo entre segurança cidadã e seguridade social,
uma rede com funções definidas, sendo da competência
afirmando, como fez Castel (1995, p. 769), que “não
do Estado a modelagem do sistema e da seguridade so-
há coesão sem proteção social”.
cial o seu financiamento, enquanto o asseguramento e
Depois do auge das reformas dos sistemas de
a prestação de serviços deveriam obedecer a uma lógica
proteção social que ocorreram como resposta a dois
competitiva de mercado. As consequências da adoção do
fenômenos estruturais que afetaram a região no últi-
modelo de seguro impactaram negativamente na saúde
mo quarto século passado – a derrocada das ditaduras
pública e tiveram consequências nocivas também para
militares e a crise econômica – parece ter havido uma
a rede de serviços (Fleury, 2001).
acomodação com ênfase na focalização e combate à
As opções por universalizar a cobertura pela via do
pobreza. As reformas sociais do final do século 20 na
sistema público, ou via mercado ou ainda por meio de
região adotaram como objetivo a ampliação da cobertura
um seguro social, representaram um verdadeiro labora-
e a transformação dos sistemas estratificados de proteção
tório de políticas de proteção social. Depois de alguns
social herdados do período da industrialização substituti-
anos, estes esforços que geraram modelos de reforma
va. Os sistemas de saúde e previdência sofreram grandes
paradigmáticos tenderam a ser arrefecidos. Muitos
modificações, com distintas orientações decorrentes
fatores contribuíram para essa redução da capacidade
do timing das reformas em relação ao predomínio dos
de inovação e mesmo de politização da proteção social
fenômenos da democratização e/ou da hiperinflação. As
na região. Entre eles, encontramos a desmobilização
mudanças começaram com a introdução de um novo
da sociedade civil, a resistência de poderosos atores à
paradigma no caso do Chile, onde o Estado criava um
mudança, a reapropriação das políticas inovadoras pelas
sistema dual, repassando ao mercado a parcela da po-
elites corporativas, profissionais e empresariais, e tam-
pulação que pudesse pagar por um seguro de saúde ou
bém a difusão ideológica de um modelo individualista
pensões. O Estado ficaria responsável pela população
de proteção social. No entanto, apesar da redução do
mais pobre, gerando um modelo segmentado, indivi-
empenho inicial na reformulação dos sistemas universais
dualista e perverso de política social. No caso do Brasil,
de proteção social, estas experiências seguem existindo
no auge do processo de democratização, foi estruturado
e buscando soluções para enfrentar as dificuldades e
um sistema universal e de cobertura integral da saúde
gerar um sistema de proteção social com qualidade e
que pretendeu redefinir o pacto federativo por meio de
justiça social.
uma descentralização pactuada e gerar inovadoras for-
Mais recentemente, originada no Banco Inte-
mas de participação social. A autoexclusão das camadas
ramericano de Desenvolvimento, surgiu a proposta
médias do sistema público que sofreu sérios problemas
denominada Universalismo Básico (Molina, 2006).
de financiamento foi em parte promovida por subsídios
Baseada no mesmo pragmatismo já anunciado na dis-
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FLEURY, S.
•
Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
cussão sobre coesão social da Cepal, a proposta atual é
intenta dar tratamiento a las brechas existentes
caracterizada por restringir-se às margens fiscais de cada
para el cumplimiento de cierta meta, no toma en
país, de acordo com o seu nível de desenvolvimento,
cuenta la historia de las distancias sociales ni su
para garantir, assim, a sua viabilidade. Portanto, na
lógica de producción y reproducción… La elecci-
proporção em que permitirem os recursos fiscais em
ón de la ‘igualdad de oportunidades’ - - unida a
cada país, serão implementadas medidas de cobertura
la base de información (lo básico) – como pauta
de um conjunto de prestações essenciais que devem ser
distributiva, tampoco produce la integración
universais e alcançar toda a população que atender a
social que se propone. Su planteo de igualdad de
critérios definidos.
derechos esenciales, en el marco de un recorte de la
Buscando utilizar a focalização como um instru-
universalidad, lo que produce en el mejor de los
mento para assegurar a igualdade de oportunidades para
casos es una nueva modalidad de la focalización,
todos, a proposta acredita estar gerando coesão social.
la de los derechos esenciales. (p. 55).
Por outro lado, pretende ser renovadora ao conjugar as
chamadas velhas prestações – referindo-se às políticas
Diante deste quadro empobrecido de discussão acer-
universais de educação, saúde e seguridade social, mesmo
ca da proteção social, torna-se imprescindível recolocar
que nunca tenham sido universalizadas – com as novas
o tema das políticas universais e do modelo de proteção
prestações, que se referem às transferências condiciona-
social na agenda política regional. A institucionalidade
das. A articulação seria dada a partir da definição, em
que requer a proteção social nesse contexto implica alte-
cada país, das prestações essenciais, condicionada pelos
rações estruturantes na dinâmica social e política, sendo
limites financeiros e pelo modelo de desenvolvimento.
pontos centrais dessa agenda (Fleury, 2009):
Sem discutir as razões que levam às enormes restrições financeiras que reduzem a capacidade dos Estados
• a desvinculação dos benefícios da condição de in-
nacionais na região para ampliarem a cobertura e sem
serção no mercado de trabalho e sua exclusiva vinculação
discutir o que se entende por prestações essenciais, a
aos direitos sociais de cidadania;
proposta não alcança a transcendência do paradigma
liberal de proteção social, revivendo, com roupagem
• o fortalecimento dos sistemas de políticas univer-
conceitual mais sofisticada, medidas e instrumentos
sais em sistemas não-segmentados por clivagens sociais
tão ineficazes como o copagamento, a focalização e a
e regionais, capazes de traduzir noções igualitárias que
subordinação das políticas sociais à lógica hegemônica
consolidam a cidadania;
de pagamento da dívida e investimentos e subsídios que
favorecem a acumulação.
Minteguiaga (2009) analisa as bases conceituais
do Universalismo Básico (UB) e conclui:
• a inserção dos programas de discriminação positiva
no interior dos sistemas universais, sob pena de eles
reproduzirem as discriminações enquanto reduzem as
desigualdades;
[...] La caracterización de La universalidad como
‘básica’ cercena La posibilidad de resolver lo que
• o rompimento definitivo com a discriminação das
supuestamente ES La nueva cuestión social del
mulheres e o não-reconhecimento dos seus trabalhos nas
UB, la cohesión social. Esto es así porque si bien
agendas dos benefícios e pautas da proteção social;
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 328-348, abr./jun. 2010
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FLEURY, S.
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Que proteção social para qual democracia? Dilemas da inclusão social na América Latina
• a construção de mecanismos de participação e
deliberação social que permitam o exercício de uma
de proteção social e tornam o sistema público perversamente complementar ao setor privado;
cidadania ativa, e que não sejam exclusivos das áreas de
políticas sociais, passando a incorporar também transfor-
• imprescindível se faz a criação de mecanismos
mações nos processo decisório das áreas de planejamento
efetivos de regulação das práticas empresariais privadas
e economia;
no campo da proteção social, subordinando-as ao papel
de garantia de bens de relevância pública;
• a existência de políticas públicas de proteção social
que assegurem serviços e benefícios exigíveis dentro de
• prioridade às políticas que visam à difusão de prá-
expectativas conhecidas e padrões de qualidade publi-
ticas materiais e simbólicas de uma cultura de solidarie-
camente definidos;
dade que permitam sustentar programas sociais coletivos
que respeitem as diferenças e fortaleçam a construção
• o fortalecimento institucional dos mecanismos
de formulação de políticas, entrega de serviços e coor-
de sujeitos autônomos, em um processo relacional de
construção de sociedade.
denação da proteção social, o que implica políticas de
pessoal, salários, carreiras e organizações prestigiadas
tecnicamente competentes e resistentes ao uso meramente político partidário;
R E F E R Ê N C I A S
• a construção de mecanismos efetivos e sustentáveis
de financiamento das políticas sociais que não estejam
subordinados à volatilidade da dinâmica de acumula-
Arriagada, I.; Mathivet, C. Los programas de alivio a la
pobreza Puente y Oportunidades. Una mirada desde los acto-
ção do capital e que estruturem de forma irreversível a
res. Santiago do Chile: Cepal, 2007. (Serie Políticas sociales
primazia do social sobre os interesses particulares;
n. 134).
• a construção de um pacto fiscal que estabeleça uma
estrutura tributária baseada nos princípios da justiça
social, da progressividade, transparência e efetividade;
• A construção de modelos de proteção social que
ultrapassem os limites disciplinares e organizacionais
e funcionem como redes de proteção que se definem
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Recebido: Abril/2010
Aceito: Abril/2010
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob
tratamento hemodialítico
Evaluation of the quality of life of elderly chronic renal disease patients undergoing
hemodialytic treatment
Fabiana de Souza Orlandi 1
Enfermeira; Mestre em Enfermagem;
Professora-Assistente do Curso de
Gerontologia do Departamento de
Enfermagem da Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar).
[email protected]
1
RESUMO A insuficiência renal crônica terminal (afeta diretamente a qualidade
de vida (QV) do idoso renal crônico. Este estudo visa a avaliar a qualidade de
vida de idosos renais crônicos em tratamento hemodialítico por meio do método
SF-36. Trata-se de um estudo descritivo, de corte transversal, com abordagem
quantitativa. O estudo foi desenvolvido em duas Unidades de Terapia Renal
Substitutiva do interior do Estado de São Paulo. Participaram desta pesquisa
pessoas acima de 60 anos em tratamento de hemodiálise há pelo menos seis
meses. Revelou-se necessária a avaliação da QV dos pacientes em tratamento
hemodialítico periodicamente, a fim de planejar a assistência a ser prestada e
otimizar as dimensões da QV que se mostrarem comprometidas, sugerindo-se,
por exemplo, a reabilitação física, uma estratégia comprovadamente benéfica, de
acordo com estudos encontrados na literatura.
PALAVRAS-CHAVE: Insuficiência renal crônica; Idoso; Qualidade de vida.
ABSTRACT End-stage renal disease directly affects the quality of life (QOL) of
elderly end-stage renal disease patients. The purpose of this study was to assess the
quality of life of elderly chronic renal disease patients undergoing hemodialysis
therapy, based on the SF-36 method. This descriptive, transversal, and quantitative
study was conducted at two Renal Replacement Therapy Units in the interior of the
state of São Paulo. The subjects of this study were patients older than 60 years old
undergoing hemodialysis for at least six months. Our findings pointed out the need
for periodic evaluations of the QOL of patients undergoing hemodialysis therapy
in order to plan the assistance to be provided, thus optimizing the dimensions of
the QOL that are impaired, based on suggested physical rehabilitation procedures,
which has proven to be a beneficial strategy in literature reports.
KEYWORDS: Renal insufficiency chronic; Aged; Quality of life.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 349-355, abr./jun. 2010
349
350
ORLANDI, F.S.
•
Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico
I N T R O D U ç ão
à necessidade de assistência em suas atividades diárias
(Mckevitt et al., 1990). Isto pode ser visto inclusive
entre os pacientes renais crônicos, pois, em um estudo
O envelhecimento populacional é um fato in-
comparativo sobre a QV do adulto e do idoso renal crô-
contestável (Miguel; Pinto; Marcon, 2007). O
nico, observou-se que “funcionamento físico” e “função
envelhecimento torna as pessoas mais vulneráveis aos
física” foram as dimensões do componente físico que
processos patológicos decorrentes de múltiplos fatores,
obtiveram menores escores médios com significância
levando o idoso a apresentar doenças como as cardio-
estatística (Kusumota, 2006).
vasculares, respiratórias, neoplásicas, cerebrovasculares,
Associado ao comprometimento físico, os pacien-
osteoarticulares e endócrinas que podem ou não estar
tes renais crônicos, em particular os idosos, costumam
associadas, caracterizando as comorbidades (Kusumota;
sofrer alterações no desempenho dos seus papéis sociais
Rodrigues; Marques, 2004).
e dos aspectos psicológicos decorrentes da situação do
Algumas destas doenças, como a hipertensão
adoecimento (Silva et al., 2002). Em estudo compara-
arterial, o diabetes mellitus e a insuficiência cardíaca,
tivo entre o comprometimento funcional, a depressão
predispõem o idoso à doença renal. E as alterações ana-
e a satisfação com a vida entre idosos portadores de
tômicas e fisiológicas nos rins, decorrentes do processo
insuficiência renal crônica terminal (IRCT) sob trata-
de envelhecimento renal, constituem um agravante
mento de hemodiálise e um grupo controle de idosos
para a patologia renal nos pacientes dessa faixa etária,
moradores na comunidade, os autores (Kutner et al.,
aumentando a suscetibilidade à disfunção renal com o
2000) mostraram que os idosos em hemodiálise apresen-
passar dos anos (Romão Júnior, 2004).
taram comprometimento funcional mais significativo,
Nos últimos 20 anos, tem sido observado um
escores de depressão mais elevados, assim como menor
crescimento expressivo no número de idosos com insufi-
satisfação com a vida. Esses achados fornecem subsídios
ciência renal concomitante ao número de comorbidades.
para ratificar a compreensão de que a Insuficiência
Conforme dados do Censo da Sociedade Brasileira de
Renal Crônica (IRC) e a sua terapêutica geram forte
Nefrologia, em 2007 foram registrados 73.605 pacientes
impacto negativo na vida dos pacientes, acometendo
em tratamento dialítico. Desse total, 25,5% apresenta-
inúmeras dimensões da QV (Valderrábano; Jofre;
vam idade superior a 65 anos (Sesso et al., 2007).
López-Gómez, 2001).
A proposta da terapia renal substitutiva nos idosos
Assim, a análise da QV do idoso com IRCT em
fundamenta-se na melhora da sua qualidade de vida
tratamento hemodialítico revela-se importante para
(QV), resgatando-lhes o bem-estar físico e a capacida-
orientar medidas de intervenção que contemplem priori-
de cognitiva, além de mantê-los inseridos no contexto
tariamente os aspectos mais comprometidos da QV nes-
social (Carvalho; Silva; Costa, 1999). Essa proposta,
te grupo de sujeitos e também os não-comprometidos,
entretanto, esbarra nas alterações da vida diária que o
visando à sua manutenção.
tratamento hemodialítico desencadeia pela falta de su-
Dessa forma, é desejável que os instrumentos de
porte familiar e da equipe de saúde para a manutenção
medida de QV sejam multidimensionais e capazes de
do tratamento.
abranger grande parte dos aspectos presentes no cons-
Os idosos em tratamento dialítico geralmente
apresentam comprometimento funcional, o que remete
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 349-355, abr./jun. 2010
tructo QV, ou aqueles mais relevantes para a população
em estudo.
ORLANDI, F.S.
•
A maioria dos estudos que abordam o paciente
idoso com IRCT tem empregado instrumentos ge-
Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico
do Estado de São Paulo, nas cidades de Campinas e São
Carlos, no período de janeiro a março de 2003.
néricos para a medida da QV relacionada à saúde.
Constituíram critérios de inclusão: estar em
Dentre os instrumentos genéricos disponíveis, o SF-36
programa de hemodiálise há pelo menos seis meses;
desenvolvido em 1992 (Ware; Sherbourne, 1992) e
apresentar capacidade de compreensão e de comuni-
validado no Brasil em 1997 (Ciconelli, 1997) é uma
cação verbal; e concordar em participar da pesquisa,
escala que possui diversas vantagens em para estudos
assinando o termo de consentimento livre e escla-
sobre QV relacionada à saúde, pois é muito utilizada
recido. Os critérios de exclusão foram: apresentar
em pesquisas nacionais e internacionais, é multidi-
alterações cognitivas ou distúrbios psiquiátricos, ser
mensional, aborda tanto dimensões do componente
portador de neoplasias ou ter antecedente pessoal de
físico (capacidade funcional, aspectos físicos, dor e
transplante renal.
estado geral de saúde) quanto do componente mental
Considerando-se os valores de coeficiente de cor-
(aspectos sociais, aspectos emocionais, vitalidade e
relação r≥0,40, e de α=0,05 e β=0,05, estimou-se um
saúde mental). Além disso, é um instrumento breve
número mínimo de 75 sujeitos para compor a amostra.
e com boas propriedades psicométricas, mostrando-
Como esse número foi muito próximo do total de
se confiável e válido em diversos estudos nacionais e
sujeitos da população alvo, optou-se por incluir todos
internacionais.
os idosos das duas clínicas eleitas para essa investigação
Diante do exposto, pretendeu-se, com este estudo,
responder ao seguinte questionamento: Qual a percep-
que atendiam aos critérios de inclusão e nenhum dos
de exclusão, totalizando 100 sujeitos.
ção do idoso renal crônico em tratamento hemodialítico
Em relação ao instrumento de coleta de dados, foi
acerca de sua qualidade de vida quando avaliado pelo
utilizado o SF-36. Esta escala, desenvolvida em 1992
SF-36?
(Ware; Sherbourne, 1992) e validada no Brasil em
O objetivo do presente estudo foi avaliar a quali-
1997 (Ciconelli, 1997), contém 36 questões, das quais
dade de vida de idosos renais crônicos em tratamento
uma avalia comparativamente as condições de saúde
hemodialítico por meio do SF-36.
atual e de um ano atrás e as 35 restantes abordam 8
dimensões: capacidade funcional, estado geral de saúde, saúde mental, aspectos físicos, vitalidade, aspectos
MÉTODO
emocionais, aspectos sociais e dor.
Quanto ao procedimento, inicialmente foi realizada uma entrevista individual com os idosos, previa-
Trata-se de um estudo descritivo de corte trans-
mente à terapia renal substitutiva (hemodiálise), ou,
versal, com abordagem quantitativa, acerca da avaliação
havendo impossibilidade, nas duas primeiras horas do
da qualidade de vida de idosos renais crônicos em tra-
tratamento, uma vez que o paciente com frequência
tamento hemodialítico.
apresenta alterações hemodinâmicas após este intervalo
Deste estudo participaram idosos com idade igual
de tempo. Nessa entrevista, foi aplicado o SF-36 sob a
ou superior a 60 anos, com diagnóstico de IRCT, em
forma de entrevista, considerando-se a possibilidade
programa de hemodiálise ambulatorial, atendidos em
de os sujeitos apresentarem queda da acuidade visual e
duas clínicas de terapia renal substitutiva (hemodiálise)
baixo nível instrucional.
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ORLANDI, F.S.
•
Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico
O estudo foi formalmente autorizado pelos diretores das respectivas clínicas de nefrologia, bem como
cativa de idosos (45,0%) apresentava 2 ou 3 condições
clínicas associadas.
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Facul-
No presente estudo, os valores de coeficiente de alfa
dade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de
de Cronbach (α) obtidos na aplicação do SF-36 revela-
Campinas (Unicamp) (Parecer do CEP n° 417/2002).
ram os seguintes valores: instrumento global=0,90; capa-
Em relação às análises estatísticas, os dados co-
cidade funcional (CF)=0,89; aspecto físico (AF)=0,79;
letados foram inicialmente transportados para uma
dor (D)=0,91, estado geral de saúde (EGS)=0,64;
planilha de dados do programa Excel for Windows 98
vitalidade (V)=0,65; aspectos sociais (AS)=0,56, aspec-
e, então, para o programa SAS for Windows (Statistic
tos emocionais (AE)=0,80; saúde mental (SM)=0,79.
Analysis System) versão 8.02 para as seguintes análises:
Sendo assim, a maioria das dimensões obtive valores de
1. descritiva (tabelas de frequência, medidas de posição
alfa maior ou igual a 0,70, apontando uma consistência
e dispersão, bem como os casos válidos e omitidos); 2.
satisfatória, valendo ressaltar que as dimensões EGS e V,
coeficiente de confiabilidade (alfa de Cronbach).
que estiveram próximas do desejável e que a dimensão
AS, como é avaliada por apenas dois itens, pode ter seu
valor de alfa reduzido.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
As medidas de QV obtidas com a aplicação do SF36 são apresentadas na Tabelas 1. Na análise dos escores
do SF-36, observou-se menor pontuação nas dimensões
Os 100 idosos estudados caracterizaram-se pelo
“aspectos físicos” e “capacidade funcional” [média=36
equilíbrio entre os sexos (51,0% do sexo masculino);
(±37,1) e 49,1 (±29,2), respectivamente]. As dimensões
idade entre 60 e 86 anos (média=68,3±6,4); tempo
“aspectos emocionais” e “aspectos sociais” destacaram-
médio de escolaridade de 3,2 anos de estudo (±3,4;
se como as de maior pontuação [média=79,7 (±34,1) e
mediana=3,0); e predomínio da cor branca (81,0%).
82,7 (±24,1), respectivamente] (Tabela 1).
A maioria dos pacientes (67,0%) possuía um parceiro.
No que se refere à QV dos idosos com IRCT sob
Quanto à renda mensal familiar informada, a média
tratamento de hemodiálise em valores quantitativos,
foi de 3,3 salários mínimos (SM) (±5,2; mediana=2,0),
verifica-se que os escores médios do SF-36 variaram de
oscilando entre 0,5 e 42 SM.
36,0 a 82,7. Para quatro das oito dimensões, as médias
O tempo médio de tratamento hemodialítico dos
foram iguais ou superiores a 60,0. A maioria das dimen-
pacientes foi 26,7 meses (±21,7; mediana=20,5), com
sões que avaliam a saúde física (capacidade funcional,
variação entre seis e 117 meses. As condições clínicas
aspectos físicos e estado geral de saúde) apresentou
associadas que se mostraram mais prevalentes no gru-
escores médios mais baixos do que a maior parte das
po estudado foram: diabetes mellitus tipo 2 (42,0%) e
dimensões que avaliam a saúde mental (aspectos sociais,
hipertensão arterial sistêmica (79,0%). Tais condições
aspectos emocionais e saúde mental). Isso também foi
também corresponderam ao fator etiológico da IRCT
observado em um estudo com pacientes em diálise
para 38,0 e 22,0% dos sujeitos, respectivamente. Outras
(Kusumota et al., 2008) que apresentavam pontuações
condições clínicas frequentes, como o déficit visual e a
inferiores, especialmente nas dimensões que avaliam a
insuficiência cardíaca, destacaram-se em 25,0% e 15,0%
saúde física, em relação às que avaliam a saúde mental.
dos pacientes, respectivamente. Uma proporção signifi-
Em um estudo prospectivo com pacientes em programa
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 349-355, abr./jun. 2010
ORLANDI, F.S.
•
Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico
Tabela 1 – Escores das dimensões do SF-36 para os 100 idosos com IRCT em hemodiálise
Dimensões
Média
DP
Variação observada
Variação possível
Capacidade funcional
49,1
29,2
0 - 100
0 - 100
Aspectos físicos
36,0
37,1
0 - 100
0 - 100
Dor
60,0
29,3
0 - 100
0 - 100
Estado geral de saúde
55,6
18,9
15 - 97
0 - 100
Vitalidade
56,5
18,2
20 - 100
0 - 100
Aspectos sociais
82,7
24,1
12,5 - 100
0 - 100
Aspectos emocionais
79,7
34,1
0 - 100
0 - 100
Saúde mental
68,6
20,4
16 - 100
0 - 100
DP: desvio padrão.
de hemodiálise (Abreu, 2005), notou-se também que o
aspecto físico foi mais afetado do que o mental.
A importância do comprometimento do aspecto
físico nos pacientes com IRCT em hemodiálise sobre a
Na comparação das medidas de QV dos idosos
qualidade de vida é reforçada por estudos que eviden-
deste estudo com a medida de QV numa população geral
ciam melhora neste aspecto dos sujeitos quando imple-
do Brasil (Kimura, M. et al., 2002) por meio do SF-36,
mentadas intervenções direcionadas para a melhora da
constatou-se maior comprometimento no grupo dos ido-
capacidade funcional.
sos. Contudo, ao relacionar os escores médios do grupo es-
Destaca-se, na literatura, o estudo de Tawney et al.
tudado com os escores obtidos em outros estudos realizados
(2002), no qual foi avaliado o efeito de um programa de
também com a população idosa, observou-se semelhança
reabilitação física sobre a qualidade de vida de pacientes
entre as dimensões que atingiram escores médios abaixo
em hemodiálise, mensurada pelo Kidney Disease Quality
de 50, que foram: capacidade funcional (Kusumota et al.,
of Life Short Form (KDQOL-SF). Os autores observaram
2008) e aspectos físicos (Kusumota et al., 2008; Pimenta;
que seis meses de intervenção melhorou o funcionamento
Simil; Torres, 2008). Em relação à dimensão “vitalidade”,
físico do referido grupo de pacientes quando comparado
o presente estudo corrobora o estudo de Martins e Cesarino
ao Grupo Controle (pacientes em programa de hemodi-
(2005) que, apesar de incluir pacientes na faixa etária entre
álise que não participaram do programa de reabilitação
36 e 55 anos, obteve um escore médio baixo (48,7±7,2).
física). Essa intervenção consistiu em nove sessões, de 15 a
Segundo estes autores, o escore médio baixo reflete o sen-
30 minutos cada, aplicadas durante o tratamento dialítico.
timento de cansaço e esgotamento.
Os pacientes eram encorajados a realizarem atividades
No estudo sobre qualidade de vida de pacientes em
diálise (Dorn et al., 2004), observou-se que os pacientes
idosos com um alto grau de comorbidade apresentaram
também menores escores na função física.
físicas diariamente, as quais eram planejadas em conjunto
com os pesquisadores e variavam de intensidade.
Kutner e Jassal (2002) reforçam a hipótese de que
a realização de atividade física contribui para a melhoria
Desta maneira, os achados desta pesquisa reprodu-
do aspecto físico e da qualidade de vida relacionada à
zem os da literatura, uma vez que a capacidade funcional
saúde de idosos renais crônicos. Os autores relatam que a
e o aspecto físico também foram as dimensões mais afe-
avaliação de pacientes idosos em diálise submetidos a um
tadas da qualidade de vida dos sujeitos entrevistados.
programa de reabilitação e acompanhados durante sete
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ORLANDI, F.S.
•
Avaliação da qualidade de vida de idosos renais crônicos sob tratamento hemodialítico
anos mostrou que os idosos submetidos à intervenção
geral. Por outro lado, se comparados a idosos no início
apresentaram-se mais ativos fisicamente, com menos
de tratamento dialítico (Loos et al., 2003), pode-se
prejuízos funcionais e limitações.
afirmar que, na presente investigação, eles apresentaram
Tawney et al. (2000) consideram que a atividade
melhores escores de QV. Sendo assim, torna-se necessária
física é um comportamento modificável que pode
a avaliação da QV dos pacientes em tratamento hemo-
influenciar positivamente o funcionamento físico e a
dialítico periodicamente, a fim de planejar a assistência
qualidade de vida em pacientes com IRCT, uma vez
a ser prestada, otimizando, dessa forma, as dimensões
que pequenos declínios no funcionamento físico neste
da QV que se mostrarem comprometidas.
grupo de sujeitos podem levar à dependência funcional.
A avaliação periódica do funcionamento físico ao longo
do tempo é reforçada como uma medida que pode aju-
R E F E R Ê N C I A S
dar pacientes e membros da equipe a detectarem perdas
sutis deste funcionamento.
Assim, o potencial terapêutico da reabilitação de
pacientes com IRCT em hemodiálise pode melhorar a
Abreu, I.S. Qualidade de vida relacionada à saúde de pacientes
em hemodiálise no município de Guarapuava – PR. Dissertação
qualidade de vida e a satisfação com o cuidado destes
(Mestrado em Enfermagem) – Escola de Enfermagem da USP,
pacientes. Contudo, é importante ressaltar que a re-
Ribeirão Preto, 2005.
abilitação dos pacientes renais crônicos não pode ser
Carvalho, F.J.W.; Silva, A.B.F.; Costa R.C. Análise da
compreendida apenas como atividade física, mas como
um conjunto de intervenções planejadas e desenvolvidas
em parceria com uma equipe multiprofissional.
Loos et al. (2003) compararam a QV de idosos
(com idade igual ou superior a 70 anos) portadores de
diálise no paciente idoso. Revista Brasileira de Geriatria e
Gerontologia, v. 3, n. 1, p. 5-10, 1999.
Ciconelli, R.M. Tradução para o português e validação do
questionário genérico de avaliação de qualidade de vida “Medical
Outcomes Study 36-Item Short-Form Health Survey (SF-36)”.
IRCT em início de diálise (planejada e não-planejada)
Tese (Doutorado em Reumatologia) – Universidade Federal
a um Grupo Controle, utilizando-se o SF-36 como
de São Paulo, São Paulo, 1997.
instrumento de avaliação da QV. Foi possível verificar
que todas as dimensões exibiram médias inferiores aos
do presente estudo. Vale lembrar que todos os sujeitos
da atual pesquisa tinham pelo menos seis meses de tratamento hemodialítico, enquanto no estudo de Loos et
al. (2003) eles estavam em início de diálise.
Dorn, K.J.V. et al. Evaluation of funcional and mental state
and quality of life chronic haemodialysis patients. International Urology and Nephrology, v. 36, p. 263-267, 2004.
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In: II Encontro Internacional de Pesquisa em Enfermagem: Trajetória Espaço-Temporal da Pesquisa, 2002, Águas
CONCLUSÕES
de Lindóia, Livro-Programa, São Paulo, 2002, p. 193.
Kusumota, L. Avaliação da qualidade de vida relacionada
Dessa forma, é possível concluir que os idosos
estudados apresentam uma QV pior que a população
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 349-355, abr./jun. 2010
à saúde de pacientes em hemodiálise. Tese (Doutorado em
Enfermagem) – Escola de Enfermagem da USP, Ribeirão
Preto, 2006.
ORLANDI, F.S.
•
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356
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Enfermagem e espiritualidade na terminalidade:
percepção dos ministros religiosos
Nursing and spirituality in terminal patients: perception of the religious ministers
Joseane de Souza Alves1
Mestranda em Saúde Coletiva pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos)
[email protected]
1
RESUMO Trata-se de um estudo qualitativo sobre a contribuição da Enfermagem
nas necessidades espirituais do paciente terminal, segundo a percepção de ministros
religiosos. Foram aplicados um questionário e uma entrevista individual
semiestruturada a sete ministros religiosos de hospitais da grande Porto Alegre,
Rio Grande do Sul, escolhidos intencionalmente. Os resultados apresentaram
que a Enfermagem pode incluir o cuidado espiritual em suas tarefas com o
paciente terminal. Para isso, são necessários uma visão holística, capacidade de
acolhimento, respeito a crenças individuais, além de saber ouvir. Na visão dos
religiosos, a Enfermagem tem uma contribuição singular no apoio espiritual ao
paciente terminal.
PALAVRAS-CHAVE: Enfermagem; Estado terminal; Morte; Espiritualidade.
ABSTRACT This paper is a qualitative study about the contribution of the
nursing to the spiritual needs of terminal patients, from the perception of religious
ministers. A questionnaire and an individual semi-structured interview were
applied to seven religious ministers of hospitals of the metropolitan region of
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, which were intentionally chosen. The
results showed that nursing can include spiritual care in the work with terminal
patients. Therefore a holistic vision, a capability to provide shelter, the respect to
individual beliefs and the ability of listening are necessary. In the vision of the
religious ministers, the nursing has a singular contribution to the spiritual support
of the terminal patients.
KEYWORDS: Nursing; Critical illness; Death; Spirituality.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010
ALVES, J.S.
I N T R O D U ç ão
•
Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos
para sua vida – e determinam sua atitude frente à saúde
e à doença (Martins, 2004).
Na situação de terminalidade, em que o paciente
A espiritualidade pode ser definida de diversas
passa por estágios, conflitos e medos, há a necessidade
maneiras e de diferentes pontos de vista. Ela faz parte
de ele receber um cuidado integral, que abranja também
de um campo de estudo ainda em formação, que tem
a dimensão espiritual. Assim, a espiritualidade pode
atraído, a cada dia, um número crescente de interessados.
ajudar o paciente terminal a enfrentar a morte com mais
A espiritualidade supõe a concepção do homem que leva
serenidade e menos ansiedade.
em conta a dimensão do espírito, ou seja, aquilo que
A equipe de Enfermagem – por estar mais pró-
nos compõe, que não podemos ver, tocar, mas podemos
xima do paciente e conhecê-lo melhor, devido a sua
sentir, pensar e expressar por meio de gestos e atitudes
experiência e formação, além de cuidar dele em todas as
(Guimarães, 2006).
suas fases – tem condições de dar continuidade à tarefa
Na cultura mundial atual, há um resgate muito
grande do místico e do religioso, o que é altamente po-
prestada pelos ministros religiosos, auxiliando, assim, o
paciente a ter uma morte serena.
sitivo. Ao lado da racionalidade instrumental analítica,
Um fator que dificulta o cuidado espiritual é
há uma volta para a profundidade humana, que deve ser
a influência do materialismo, o qual valoriza sobre-
articulada com o cotidiano e com o bom senso (Leloup
maneira a beleza, o poder e o material, esvaziando,
et al., 1997).
assim, o ser humano do valor que ele tem em si como
Apesar da falta de um consenso geral sobre os
ser único, inteligente, livre, responsável e digno.
conceitos, a literatura científica tem demonstrado a
Esse aspecto influencia a atuação dos profissionais
existência de relação entre qualidade de vida e espiritu-
de Enfermagem, que exercem sua profissão junto
alidade. Vários pesquisadores nacionais e internacionais,
a pessoas fragilizadas, como os pacientes terminais
em grupo ou independentemente, têm se dedicado a
(Selli; Alves, 2007).
pesquisar este tema, tendo desenvolvido instrumentos
Não se está falando de nenhuma ideia nova ou
válidos e confiáveis para acessá-lo e produzido vários
recente, pois a dimensão da espiritualidade já vem
estudos com razoável rigor metodológico (Panzini et
sendo estudada. Ao contrário de propor uma crença
al., 2007).
ou o desenvolvimento da espiritualidade nos pacientes,
A fé religiosa pode ser um recurso pessoal e uma
pensa-se em um atendimento pelos enfermeiros aos pa-
fonte de energia vital em situações de dificuldade, de
cientes terminais com um novo olhar, considerando-o
caos, como no caso de uma enfermidade. Na vida do ser
como um todo e respeitando, também, a sua dimensão
humano, a experiência religiosa se apresenta como forma
espiritual.
de resgate e de valorização da vida e das potencialidades,
Este estudo visou propor uma contribuição da
trazendo, assim, a possibilidade de transcendência de
equipe de Enfermagem para as necessidades espiri-
uma vida plena e abundante. Desta forma, o ser humano
tuais do paciente terminal, a partir da percepção de
pode enfrentar o mundo melhor. Por mais desenvolvida
ministros religiosos, tendo abordado dentro da nova
que esteja a sociedade, o mistério da vida e da morte
teoria paradigmática de visão integral e holística da
permanece. Razão e fé, conceitos científicos e religiosos,
Saúde, em que o ser humano é valorizado em todas as
misturam-se no homem moderno – que busca sentido
suas dimensões.
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Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos
Metodologia
uma hora, dependendo do que era complementado
pelas respostas dos entrevistados. As respostas foram
transcritas com autorização dos mesmos, conforme
Sujeitos e local do estudo
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, como
A coleta de dados para o estudo desenvolveu-se
preconiza a resolução 196/96 do Ministério da Saúde
junto a sete profissionais que atuam na área da pastoral
(Brasil, 1996). Os sujeitos de pesquisa foram deno-
da Saúde. Os locais da coleta foram dois hospitais,
minados com nomes de flores, respeitando-se a confi-
um seminário, uma instituição de ensino e duas
dencialidade e o anonimato dos mesmos.
igrejas (Igreja Evangélica Batista e Igreja Evangélica
de Confissão Luterana do Brasil). Os sujeitos pesquisados residem e atuam na grande Porto Alegre, Rio
Coleta e análise dos dados
Grande do Sul, e foram escolhidos intencionalmente.
Procedemos à entrega dos questionários e das en-
Todos eles têm formação pastoral e experiências prá-
trevistas e, em seguida, foi elaborado o material para a
ticas no atendimento espiritual ao paciente em fase
análise. Na pré-análise do material, procedeu-se à leitura
terminal. Dois dos entrevistados são profissionais de
flutuante das falas dos participantes e, posteriormente,
Enfermagem.
à análise temática dos dados, conforme Bardin (1979) e
Minayo (2006). Após a codificação dos dados, surgiram
as seguintes categorias: papel da Enfermagem junto
Instrumentos de coleta de dados
ao paciente na aceitação da morte; direito de saber ou
Foi aplicado um questionário e seus dados foram
não o diagnóstico e de ser ouvido; cuidado espiritual
complementados com entrevista individual semies-
independente de crença religiosa. As categorias foram
truturada. A pergunta norteadora foi se a Enferma-
interpretadas pela análise de conteúdo.
gem pode ter uma contribuição para o atendimento
espiritual ao paciente terminal, a partir da percepção
de ministros religiosos. As perguntas do questionário
APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
foram: ‘como a equipe de Enfermagem pode auxiliar o
paciente na acolhida e na aceitação da morte?’; ‘como
a equipe de Enfermagem pode auxiliar o paciente a
Papel da enfermagem junto ao paciente na aceitação
assumir a morte como parte do processo de existên-
da morte
cia?’; ‘como a equipe de Enfermagem pode dar apoio
Com relação a como auxiliar o paciente na aco-
espiritual para o paciente terminal, independentemente
lhida e aceitação da morte, assumindo-a como parte
de sua crença religiosa?’. Além da aplicação do ques-
do processo de existência, Crisântemo, Rosa, Lírio,
tionário, a coleta de dados foi complementada com
Margarida, Azaleia e Girassol relataram que devemos
perguntas dirigidas aos pesquisados, para aprofundar
respeitar profundamente as fases do processo de morrer
o tema em estudo, colhendo-se dados adicionais. As
do paciente terminal e conscientizá-lo sobre a mesma.
entrevistas foram feitas individual e pessoalmente aos
Devemos conhecer especificamente cada estágio do
entrevistados em seu próprio local de trabalho. O
processo e as reações do paciente, acompanhando res-
tempo de duração das entrevistas foi, em média, de
peitosamente cada um:
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ALVES, J.S.
•
Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos
A acolhida e aceitação da morte exigem um
Flor do Campo, Lírio e Crisântemo mencionam
preparo lento, sem forçar, mostrando o lado
a importância de conscientizar os pacientes de que a
transcendente da vida. (Lírio).
morte faz parte do viver e é parte integrante da natureza
humana. É uma passagem, o início de uma nova vida.
Muitas vezes, o temor diante da passagem da
Rosa, Azaleia e Girassol afirmam que deve haver
vida para a morte está em não saber o que se espera
uma integração do profissional de saúde com a morte.
após a mesma (Kübler-Ross, 2000). Muitas pessoas
É importante que o profissional que oferece apoio tam-
e famílias recebem um diagnóstico de doença grave
bém possa assumir a sua própria morte como parte do
que as põe de frente com os enigmas do viver e do
processo de morrer.
morrer, descobrindo, então, realidades fundamentais,
As questões de espiritualidade são elementos im-
como a da dimensão emocional e espiritual da saúde
portantes nos cuidados da qualidade do final da vida
(Morais, 2006).
(Pessini; Bertachini, 2004). Ao assistir um paciente
O surgimento de uma doença grave, sem probabi-
que está morrendo, a equipe de enfermeiros precisa
lidades de cura, consiste em situação problemática que
reconhecer os estágios desse processo, bem como as
mobiliza os aspectos psicossocioespirituais do paciente
condições emocionais, para poder entendê-lo melhor.
para o seu enfrentamento. A morte provoca nos indiví-
Precisa respeitar suas fases e não forçar a aceitação da
duos reações diferentes, constituindo-se num complexo
morte. O medo da morte diminui quando há ajuda,
processo. Em relação à morte e ao processo de morrer,
diálogo e aconselhamentos. Para o paciente estar pron-
cada sociedade tem seus próprios comportamentos,
to a aceitar a morte, precisa se sentir bem, recebendo
hábitos, crenças e atitudes, que fornecem aos indivíduos
conforto em suas dores, desejos e anseios.
uma orientação de como devem se comportar e o que
Seria necessário criar espaços para que os profis-
devem ou não fazer, o que reflete, dessa forma, a cul-
sionais falem das angústias e tristezas e possam elaborar
tura própria de cada região, diferenciando-a de outras
esses sentimentos, o que os ajudaria a se preparar melhor
(Gutierrez, 2007).
para lidar com o processo de morrer dos pacientes. Isso
O modelo paliativo é centrado no paciente em si,
permitiria a discussão sobre suas vivências relacionadas à
sendo importante a atenção não apenas às necessidades
morte e ao morrer, as quais contribuiriam para formular
físicas, mas também às necessidades psicológicas e espi-
estratégias enriquecedoras para os serviços (Shimizu,
rituais (Brandão, 2005). Esse cuidado mais abrangente
2007).
do que somente tratar o corpo pode ser incluído nas
Estudar as concepções culturais do processo saúde-
tarefas da Enfermagem, principalmente porque a mesma
doença-morte nas diferentes sociedades pode possibilitar
tem mais contato com o paciente do que o profissional
aos profissionais de Enfermagem a compreensão de
que exerce a função de assistente espiritual. Sendo o
seus próprios valores e crenças diante do processo de
cuidado espiritual importante, a Enfermagem pode se
morrer e da morte, bem como de suas atitudes e ações
instrumentalizar para integrá-lo em sua atividade diária.
relacionadas às questões do cotidiano que influenciam
Esse cuidado não supõe um tempo específico, mas se
a sua vida pessoal e profissional. Porém, a doença deve
faz presente na relação e no modo do enfermeiro estar
ser enfrentada como experiência humana, representando
presente, ouvir, orientar e realizar técnicas junto ao
um processo contínuo de aprendizado e crescimento,
paciente (Selli; Alves, 2007).
no qual o paciente, família e profissionais de saúde
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Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos
necessitam adequar seus comportamentos, sempre que
espaço para eles, esclarecendo suas dúvidas, entendendo-
isso for necessário, visando a uma melhor qualidade de
os, aliviando, assim, seus anseios e nunca deixando-os
vida (Gutierrez, 2007).
sem esperança.
São importantes, também, estudos que possibi-
Lírio, Rosa, Girassol, Azaleia e Flor do Campo
litem aos profissionais de Enfermagem desenvolver o
entendem que é importante permanecermos ao lado do
autoconhecimento, além de intervenções que auxiliem a
paciente, ouvindo-o, buscando entender o que acontece
assistência ao paciente e familiares diante do processo de
com ele, deixando-o falar o que quiser, encorajando-o
morrer, minimizando o seu próprio sofrimento psíquico
e animando-o. Essa compreensão é sintetizada na se-
e auxiliando o desenvolvimento de estratégias coletivas
guinte fala:
de enfrentamento (Gutierrez, 2007).
O paciente precisa se sentir seguro, ter confiança
Podemos auxiliar o paciente à aceitação da
na equipe de profissionais que o trata, ter a segurança de
morte na comunicação verbal e não-verbal,
uma companhia que o apoie e não o abandone (Aldeia,
abrindo espaços para falar de sua situação,
1994). A fé, diante de situações difíceis para se assistir
com isso o paciente muitas vezes chega a fazer
um paciente em fase terminal, apresenta-se como fonte
um balanço de sua vida, e podemos ajudar a
de paz e esperança, tanto para os profissionais como
encontrar a paz interior. (Azaleia).
para os pacientes. Nessas condições, proporciona-se o
cuidado espiritual, tão importante e necessário (Selli;
Alves, 2007).
Pacientes terminais sabem intuitivamente que
estão morrendo e precisam expressar sua dor, sendo
compreendidos (Klebis, 2006). Muitas vezes, a equipe
de Enfermagem acredita que, falando, estará ajudando o
Direito de saber ou não o diagnóstico e de ser ouvido
Quanto ao direito do paciente terminal de saber
paciente terminal a diminuir suas ansiedades e se esquece
de que ele quer, acima de tudo, ser ouvido.
a verdade sobre sua saúde, Lírio e Rosa destacam a
É na prática de ouvir o outro que a equipe de
importância das informações e esclarecimentos, os
Enfermagem é essencial no cuidado (Ferreira, 2006).
quais devem ser transparentes e abertos. Apontam que
Não falar é importante e saber ouvir, mais ainda. Talvez
o paciente tem não só o direito de saber a verdade, mas
tenhamos que deixar de lado nossas crenças e ideias sobre
também o direito de decidir sobre si mesmo. É preciso
a vida para aprender sobre ela em sua plenitude (Silva,
respeitar sua liberdade de consciência.
2002). Ouvir o paciente é uma das melhores maneiras
Num passado recente, acreditava-se que quanto
de conhecê-lo para poder ajudá-lo. Precisamos estar
menos o doente soubesse da sua condição maiores seriam
dispostos a ouvir pacientemente tudo aquilo que ele
as chances de recuperação (Pessini, 1995). O paciente
falar e entender, nas entrelinhas, a mensagem dos seus
ou o seu responsável têm o direito de saber todos os
silêncios. Do contrário, se ele não puder se expressar,
dados a respeito de seu corpo, de sua saúde ou de sua
se sentirá solitário.
doença, uma vez que o corpo, a saúde e a doença lhe
Ficou evidenciada por Girassol a necessidade de
pertencem (Gauderer, 1993). Os pacientes terminais já
manter o paciente esperançoso, proporcionando a ele
sabem seus diagnósticos e gostariam de falar sobre isso.
todo o tipo de apoio e assistência que desejar. A fala de
Cabe-nos encontrar o jeito certo de proporcionar esse
Margarida denota que é importante levar o paciente a
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010
ALVES, J.S.
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Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos
sentir satisfação pelo que adquiriu na vida, aproximar
Não só o respeito à sua pessoa, mas principalmente
os amigos que fizeram parte dela e que não vê há muito
à sua crença. Crisântemo, Margarida, Azaleia e Flor do
tempo, bem como preparar e ajudar a família à qual
Campo sinalizam a mesma compreensão e seguem di-
pertence.
zendo que o cuidado espiritual não é momento para se
Flor do Campo considera que o paciente, em fase
fazer discurso sobre religião, defendendo doutrinas.
final, deve ser ajudado a enfrentar a morte da forma
Rosa ressalta que, ao fazermos o serviço pastoral,
mais humana possível, satisfazendo suas necessidades
devemos ter em mente que o cuidado espiritual é para
de calor humano e de respostas reivindicadoras, ofe-
todos, independente da crença religiosa.
recendo tudo para uma morte tranquila, assumida
com dignidade.
A equipe de Enfermagem, ao manter grande respeito e reverência por sua subjetividade, por seu mundo
Girassol salienta sobre a importância de solicitar
alguém da mesma fé do paciente para assisti-lo, jamais
aproveitando esse momento de doença e fragilidade para
impormos nossa crença.
interior – e também pela subjetividade e pelo mundo
O ato de cuidar implica o estabelecimento de inte-
interior do paciente – oportuniza condições de cuidado
ração entre sujeitos (quem cuida e quem é cuidado) que
de modo humanizado (Vianna; Crossetti, 2004). Em
participam da realização de ações, as quais denominamos
tal humanização, se enquadra o cuidado espiritual, tão
cuidados, sendo a verdadeira essência da Enfermagem
importante nesse momento do paciente terminal. O
(Ferreira, 2006). O vínculo criado entre o enfermeiro
acolhimento, na fase de terminalidade, pode diminuir
e o paciente facilita o cuidado espiritual por aumentar
a ansiedade e o medo. A equipe de Enfermagem tem o
a confiança e a comunicação entre eles (Selli; Alves,
objetivo de atender o paciente da forma mais humana
2007). Ao cuidar do paciente, a equipe tem o papel de
possível, considerando não só sua situação física, mas
ser neutra no que se refere às crenças religiosas, além de
também suas necessidades globais.
não impor suas ideias e respeitá-lo, agindo, assim, com
acolhimento e amor, para que o paciente possa sentir que
é amado, independentemente de suas condições.
Cuidado espiritual independente de crença religiosa
A religiosidade e a espiritualidade sempre foram
Quanto à equipe de Enfermagem prestar um
consideradas importantes aliadas das pessoas que estão
cuidado espiritual ao paciente terminal, independente
doentes (Fleck et al., 2003). A saúde espiritual do pa-
da crença religiosa, Lírio, Rosa, Margarida e Flor do
ciente terminal é tão importante quanto sua saúde física,
Campo afirmam que é essencial falar sobre o amor, não
mental e social. Porém, a crença do paciente terminal
importando a convicção.
não é importante nessa fase de sua vida; o que importa
O respeito ao paciente como pessoa deve prevalecer. É necessário conhecer profundamente sua história,
não impondo ideias e crenças.
é ser aceito e ouvido com solidariedade.
A doença é vista como a presença de algo na vida do
ser humano que o tira do seu bem-estar físico, mental e
espiritual, uma vez que ele é a soma dessas partes (Mar-
Tenho que conhecê-lo, digo, investigar sua his-
tins, 2004). As reações de estresse do paciente variam
tória, pelo menos alguns dados mínimos, através
de indivíduo para indivíduo, tornando-se evidente a
dele ou de sua família. Sempre respeitá-lo como
necessidade de acolhimento e valorização da pessoa nesse
pessoa, não impor nada. (Girassol).
momento (Glanzner, Zini e Lautert, 2006).
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Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos
Quando estamos doentes, nos sentimos fracos.
Concluiu-se também, a partir da percepção dos
Porém, podem existir partes que continuam maleáveis
ministros religiosos, que a equipe de enfermeiros neces-
e cheias de recursos e partes que podem mesmo ter cres-
sita de conhecimentos sobre a fase em que o paciente
cido e se desenvolvido numa reação de crise. Quando
se encontra para poder atendê-lo melhor e não forçá-lo
essas partes estão presentes e são reconhecidas, a sua força
a aceitar a doença, que é o último estágio do processo
em cada pessoa pode ser despertada para lidar com o
de morrer. Deve-se deixá-lo fazer seu próprio processo,
problema, ajudando no restabelecimento do bem-estar
que é singular e único para cada indivíduo.
(Remen, 1993).
Os pacientes no leito de morte sentem-se sozinhos,
A enfermeira, com base nos fundamentos de
angustiados e até mesmo revoltados, necessitando de
seu saber técnico, busca o que entende ser bom para
alguém que os ouça, entenda e transmita o conforto
o paciente, promovendo o bem-estar e protegendo
de que necessitam. Por isso, os ministros religiosos su-
os interesses deste. Porém, ao fazer isso, não pode
gerem que é preciso uma conscientização da equipe de
desconsiderar a manifestação da vontade, dos desejos,
Enfermagem quanto à importância do apoio espiritual
dos sentimentos, das crenças e das opções de cada um
aos pacientes terminais e, acima de tudo, um profundo
(Zaboli; Sartório, 2006).
respeito e interesse pelo bem-estar destes. É preciso
Diante de um paciente terminal, não são propícios
humanizar e resgatar valores subjetivos.
ou benéficos discursos religiosos – ou mesmo a expressão
Com base nos resultados obtidos, a equipe pode
de nossa doutrina e crença, sejam elas quais forem – mas
auxiliar o paciente terminal no seu processo de morrer,
sim o acolhimento e escuta do paciente. Isso faz parte do
incluindo, em suas tarefas, o cuidado espiritual. O
atendimento da Enfermagem e proporciona ao paciente
vínculo criado entre enfermeiro e paciente facilita o cui-
a passagem por sua situação de terminalidade com mais
dado espiritual, pois amplia a confiança e comunicação
tranquilidade e menos angústia.
entre ambos. A Enfermagem tem um contato pessoal
e contínuo com o paciente, além de uma convivência
mais simples com a morte, pois não representa para si
conclusões
uma derrota profissional.
Conforme os entrevistados, é necessário ouvir o
paciente terminal, entendê-lo e deixá-lo falar o que qui-
A dimensão espiritual formará um novo paradigma
ser. Precisamos respeitar seus sentimentos, suas mágoas,
social. Cada vez mais se reconhece que a fé ajuda no
desânimo e até mesmo sua revolta e agressividade, sem
processo de recuperação da saúde e enfrentamento da
julgá-lo ou pressioná-lo. Ele precisa expressar sua dor e
doença. Neste estudo, concluiu-se que a espiritualidade
ser compreendido. Ouvi-lo é estar atento às suas neces-
beneficia a saúde integral da pessoa e capacita o profis-
sidades, é expressar o interesse em ajudá-lo, é entender,
sional a lidar com o paciente terminal.
nas entrelinhas, a mensagem dos seus silêncios.
A partir das verbalizações dos sujeitos analisados,
Os dados demonstraram que é fundamental um
concluiu-se que a equipe de Enfermagem tem uma
profundo respeito à crença religiosa do paciente, a fim
contribuição singular no atendimento das necessidades
de que ele possa acreditar que será auxiliado, aliviado e
espirituais de pacientes terminais como meio de enfren-
confortado, independentemente de sua crença ou reli-
tamento diante da terminalidade.
gião. A ampla abertura espiritual por parte dos ministros
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010
ALVES, J.S.
•
Enfermagem e espiritualidade na terminalidade: percepção dos ministros religiosos
religiosos, e até mesmo dos profissionais de Enferma-
Fleck, M.P.A. et al. Desenvolvimento do WHOQOL, mó-
gem, evita a dominação e favorece o ecumenismo.
dulo espiritualidade, religiosidade e crenças pessoais. Revista
A integração entre ciência e espiritualidade tem
de Saúde Pública, v. 37, n. 4, p. 446-455, ago., 2003.
grande importância para o paciente terminal. Muitos
Gauderer, E.C. Os direitos do paciente: um manual de sobre-
estudos têm fornecido uma atenção mais especial à
vivência. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1993.
dimensão espiritual, pois a espiritualidade pode surgir
como um recurso interno de aceitação da doença e de
sentimentos dolorosos do paciente terminal.
O cuidado espiritual é uma tarefa difícil, pois ao
assistir um paciente terminal, estamos nos deparando
com sua morte e, assim, nos lembramos da nossa própria
finitude. A palavra morte constrange e deprime. Não é
fácil ajudar a morrer confortavelmente.
A análise dos dados demonstrou que atender o paciente terminal caracteriza um desafio. É um momento
que exige formação, maturidade, serenidade, habilidade
e sensibilidade às reais necessidades do outro.
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Recebido: Maio/2008
Aceito: Março/2010
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 356-364, abr./jun. 2010
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na
assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
A review on the express understanding of reality in mental health care in the second critical
social theory
Silvia Maria de Oliveira Mendes 1
Assistente social da Prefeitura de Juiz
de Fora (MG); professora colaboradora
do Núcleo de Assessoria, Treinamento
e Estudos em Saúde (Nates) da
Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF) para realização do curso de
especialização em Saúde Mental;
Especialista em Serviço Social Aplicado
à Saúde Coletiva pela UFJF; especialista
em Saúde Mental pela Escola de Saúde
Pública do Estado de Minas Gerais
(ESP-MG); Mestre em Serviço Social
pela UFJF.
[email protected]
1
RESUMO Este artigo teve como objetivo promover uma revisão crítica de
outros dois artigos publicados na Revista Saúde em Debate (v. 32, n. 78/79/80,
2008) e na Coleção Loucura e Civilização: ensaios: subjetividade, saúde mental,
sociedade (2000). Tais artigos utilizaram categorias teóricas do campo marxista
para analisar a realidade expressa na assistência em saúde mental, e a revisão
identificou a existência de equívocos envolvidos na apresentação de um dos
autores examinados e acertos na utilização dos conceitos matizados pela filosofia
materialista histórica de outra autora. O artigo consiste em uma revisão dos
conceitos envolvidos no debate com os autores referenciados, bem como de sua
utilização na análise que procedem, fornecendo análises da conjuntura, no campo
da saúde mental, de acordo com a teoria social crítica.
PALAVRAS-CHAVE: Materialismo histórico; Dialética; Saúde Mental.
ABSTRACT This article aimed to promote a critical review of two articles
published on previous issues of Revista Saúde em Debate (v. 32, n78/79/80,
2008) and on the Coleção Saúde e Civilização (2000). These articles used Marxist
theoretical categories of the field to examine the reality expressed in the mental
health care, and the review identified the existence of ambiguity involved in the
presentation of one of the authors, and successes in the use of concepts qualified
by historical materialist philosophy of another author. The article is a review of
the concepts involved in discussions with the authors mentioned, and the use of
those engaged in the analysis, providing analysis of the situation in the field of
mental health according to critical social theory.
KEYWORDS: Historical materialism; Dialectics; Mental health.
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MENDES, S.M.O.
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
I N T R O D U ç ão
representações intelectuais da época, a infraestrutura
dessa sociedade (sua base econômica ou material) que,
por sua vez, determina a superestrutura (instituições
Tendo como ponto de partida os textos dos autores
políticas, jurídicas e ideológicas).
Costa Rosa (2000) e Hirdes (2008), e respaldando-se
Partindo dessas concepções, foi feita uma discussão
na teoria marxista, procurou-se aprofundar algumas
acerca das principais categorias teóricas relacionadas ao
concepções adotadas por esses autores, buscando uma
debate decorrente da revisão crítica que se segue, tendo
maior compreensão da totalidade social, categoria-chave
como sustentação a produção de autores do campo
nas abordagens cujas concepções se fundamentam no
marxista.
materialismo histórico, uma teoria do conhecimento à
qual se referem os autores citados na sua análise sobre
a assistência produzida em saúde mental com enfoque
DISCUSSÃO DAS CATEGORIAS TEÓRICAS
privilegiado na atenção psicossocial.
Nesta discussão, buscou-se fornecer elementos
sobre a obra elaborada por Karl Marx e Friedrich Engels,
A categoria ‘totalidade social’ é uma criação da
a partir da qual produziram fecunda crítica à sociedade
filosofia materialista; é o esforço de perceber uma tota-
capitalista, demonstrando as contradições geradas pelas
lidade que é produto das transformações do homem, de
assimetrias nas relações de classes. O campo marxista
si mesmo e da natureza. No processo de produção dos
identificou como metodologia de análise desta realidade
objetos pelo homem a partir da transformação da natu-
o materialismo histórico.
reza, os objetos também o transformam. O homem real
A filosofia materialista histórica veio descorti-
é aquele que produz a sua base material de vida; entre o
nar o conhecimento desde a concepção idealista que
sujeito e o objeto há a práxis social. Para o materialismo
incorporava o misticismo como categoria explicativa
histórico, o modo de produção em determinada época
da realidade; parte-se da ideia de que a gênese de tudo
permite destacar totalidades parciais. Na medida em que
é a natureza, não a providência. Sustenta-se que o
a realidade social é criada pelos homens em constante
conhecimento só se revela a partir da consideração da
relação entre si e com a natureza, é preciso considerar
centralidade da ação concreta do homem sobre a na-
as condições materiais da reprodução da vida.
tureza e das relações sociais decorrentes desse processo
Lefebvre (1955, p. 33), ao discutir “a noção de
histórico em transformação. Sendo o homem aquele
totalidade nas Ciências Sociais”, nos esclarece que se
que transforma, cria e recria a realidade à sua volta, a
trata essencialmente de uma noção filosófica que intenta
totalidade em movimento, ele se constitui então como
alcançar a representação do Universo enquanto totali-
sujeito dessa práxis social1.
dade. O materialismo histórico adota a compreensão de
A crença materialista histórica postula que o modo
totalidade social enquanto categoria aberta, que implica
como uma sociedade realiza sua produção material
o estudo de processos historicamente determinados e
em uma época determina sua organização política, as
constantemente superados pelo movimento dialético.
1
“Para denotar que o ser social é mais que trabalho, para assinalar que ele cria objetivações que transcendem o universo do trabalho, existe uma categoria teórica
mais abrangente: a categoria de práxis. A práxis envolve o trabalho, que, na verdade, é o seu modelo – mas inclui muito mais que ele: inclui todas as objetivações
humanas”. (Netto; Braz, 2006, p. 43).
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010
MENDES, S.M.O.
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
Os acontecimentos, fatos da realidade total, dão-se
é preciso separar o essencial, atingir a neces-
num determinado tempo e num determinado espaço,
sidade, o determinismo; a Lei. (Lefebvre,
sendo assim uma totalidade aberta que se relaciona com
1955, p. 40).
outros fatos da mesma realidade social que altera, e é
alterada pela práxis social. Para este autor, existe uma
Este autor destaca que, segundo Hegel, a lei é “o
interpenetração contínua da filosofia com a ciência que
reflexo do essencial no movimento do universo” (apud
é identificada na história da produção de conhecimento.
Lefebvre, 1995, p. 40). Assim, a totalidade contém as
De acordo com Lefebvre (1955), a noção de Totalidade
Leis, os fenômenos (manifestações), os movimentos e
enquanto “unidade e multiplicidade indissoluvelmente
as relações entre todos os acontecimentos. O fenôme-
ligadas, constituindo um conjunto ou um todo” (p.
no é mais abrangente que a lei, pois, além de contê-la,
35) móvel e aberto, corresponde à forma naturalista
contém o movimento, o devir e sua essência. O mundo
ou materialista (p. 36), implicando “aprofundamento
fenomenal produz reflexo e reflexão sobre ele, repercu-
filosófico da objetividade” (p. 36-37), lembrando que,
tindo sobre si próprio e sobre o conhecimento humano
“o concreto humano é a vida real dos seres humanos, na
a seu respeito. O aspecto contraditório do fenômeno faz
sua infinita complexidade”. Para o autor, o importante,
com que, ao mesmo tempo em que ele se revela, seja
no que se refere ao estudo das Leis e da “essência”, não
dissimulado:
é tê-las como um fim em si mesmas, mas interessar-se
De acordo com a teoria marxista, Lefebvre (1955,
pelo desvelamento do real que deve ter por objetivo
p. 47) comenta a noção de totalidade presente nas obras
“compreender e servir o humano” (p. 43-44).
da juventude de Marx, caracterizando-a como profun-
Opõe-se a essa visão de totalidade a visão cartesiana, que concebe o homem e o humano como “totalidade
damente original, presente, por sua vez, na noção de
“homem total”:
na totalidade do universo” (Lefebvre, 1955, p. 37),
marcando uma compreensão unilateral e incompleta,
O indivíduo é social, sem que se tenha o direito
determinada “pelo e no conhecimento” (Lefebvre,
de fixar pelo pensamento a Sociedade numa
1955, p. 37), desprezando-se aspectos como sentidos,
abstração exterior a ele. Nem a natureza e a
práticas e a vida social, não havendo mediação entre o
vida biológica, nem a vida da espécie humana
indivíduo e o universo.
e a sua história, nem a vida individual e a
Para Lefebvre (1955), o desenvolvimento da teoria
vida social se podem separar. O homem é tota-
marxista evidenciou a contradição interna à noção de
lidade. Através das suas necessidades e dos seus
Totalidade, presente em Hegel, traçando o caminho do
órgãos, através dos seus sentidos e das suas mãos,
conhecimento do fenômeno à lei, da aparência à essência
através do seu trabalho, através da práxis que o
a ser desvelada.
transforma transformando o mundo, o homem
apropria-se totalmente de toda a natureza e da
O imediato, fenômeno ou fato, não se basta,
sua própria natureza.
pois é apenas manifestação, aparência. É
preciso ir mais longe, ou melhor, mais fundo
Assim como Lefevbre (1955), Kosik (1976, p.
e trabalhar para descobrir o que se esconde,
33) considera a categoria totalidade como uma posição
não por detrás dele, mas nele. Para conhecer
abrangente diante da realidade, compreendendo-a “nas
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
suas íntimas leis”, desnudando a essência e as conexões
ou ciência. Esta situação pode ser evitada com o esta-
internas “sob a superfície e causalidade dos fenômenos”.
belecimento da autoconfiança através da ligação com
Afirma também que a perspectiva da totalidade permite
o conceito de práxis, no qual o sujeito se aproveita de
a compreensão dialética das leis e da causalidade dos
algum conhecimento, e cuja interferência no mundo
fenômenos. Para este autor, a concepção de totalidade
provoca a transformação da realidade e, como conse-
é dialética, sendo que Marx a tornou “um dos conceitos
quência, do sujeito.
centrais da dialética materialista” (p. 34).
Kosik (1976, p. 36) afirma que a dialética da
Para Marx, os homens, sujeitos da práxis,
totalidade concreta “é uma teoria da realidade e do co-
se servem daquilo que conhecem ou julgam
nhecimento que dela se tem como realidade”. A postura
conhecer. Na práxis, o sujeito age conforme
de considerá-la um método que possibilita “conhecer
pensa; a prática ‘pede’ teoria, as decisões
todos os aspectos da realidade” fornecendo um “quadro
precisam ter algum fundamento consciente,
‘total’ da realidade, na infinidade dos seus aspectos e
as escolhas devem poder ser justificadas.
propriedades” é ingênua.
Na práxis, o sujeito projeta seus objetivos,
A dialética é o movimento que caracteriza a evo-
assume seus riscos, carece de conhecimentos.
lução materialista da história, e significa pensar e com-
[Marx] afirma que os mistérios em que a
preender a realidade como essencialmente contraditória,
teoria tropeça são solucionados na práxis
na qual a luta dos contrários levam à permanente trans-
e na compreensão da práxis. (Konder,
formação da realidade. Konder (2003), na sua discussão
2003, p. 3).
sobre dialética, afirma que superar o mal-entendido que
existe sobre esse tema, em geral, pode ser impossível,
pois tal mal-entendido:
Essa visão indica que a dialética marxista possibilita
a articulação entre a crítica das ideologias e a práxis,
evitando a distorção ideológica:
[...] brota incansavelmente das brechas que
sempre existem na articulação entre o nosso
[...] se a práxis não se ligar a uma constan-
saber e o real; ele aproveita a inesgotabilidade
te crítica das ideologias, ela degenera em
do real, a irredutibilidade do real ao conheci-
pragma. De fato, as três se condicionam
mento. (p. 1-2).
reciprocamente; a práxis precisa da crítica
das ideologias para melhorar o conhecimento
Para o autor, “a construção do conhecimento ne-
com base no qual se orienta; a crítica das
cessita de desconfiança em relação a si mesma e também
ideologias precisa ao mesmo tempo contribuir
de autoconfiança”.
para a orientação e para o questionamento da
Konder (2003) afirma que, em Marx, a dialética
práxis. Cada uma das duas, então, precisa da
pode auxiliar no atendimento dessas necessidades,
outra. E ambas necessitam da dialética (como
uma vez que elucida a ligação entre a desconfiança e a
a dialética necessita de ambas). O conceito de
ideologia, ou seja, pode haver uma sutil distorção ideo-
práxis é decisivo na distinção entre a dialética
lógica que impeça o sujeito de perceber sua infiltração
de Marx e a do seu mestre, Hegel. (Konder,
no pensamento em dado ponto de vista, em dada razão
2003, p. 2).
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
Para Konder (2003), é necessário reconhecer que a
produção capitalista da vida material, que condiciona a
dialética é mais ampla do que o marxismo, e a compre-
vida social, política e espiritual, constituindo um método
ensão dialética da realidade não depende dessa tradição.
de análise da realidade, caracterizada (a realidade é que
Porém, o método materialista histórico depende da
é moderna) pela modernidade, apesar de alguns autores
compreensão marxista da dialética.
e estudiosos acreditarem que a pós-modernidade, um
movimento de superação da modernidade, também
superou a compreensão marxista da história, decretando
o capitalismo como fim da História.
CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Diante do exposto, com base nos autores de referência deste estudo, considera-se crucial para a compreUtilizando-se da ciência dialética, Marx buscou
ensão materialista da história o posicionamento segundo
verificar, na história das realizações humanas, a sucessão
o qual as relações assimétricas, causadas pela exploração
de fatos encadeados no tempo, cujas contradições deter-
do trabalho no modo capitalista de produção, implicam
minavam a superação e a transformação num fato novo.
a estruturação da sociedade, determinando contradições
O processo histórico de desenvolvimento humano levou
e confrontos nas relações entre diferentes classes sociais.
ao desenvolvimento das forças produtivas, determinadas
A práxis social, incluindo os estudos investigativos,
pelo modo de produção de cada época (por exemplo, o
constitui a maneira pela qual os homens transformam a
capitalismo como superação do feudalismo).
natureza e a si próprios, mas que também, pela ação da
A concepção materialista da História orienta-se
ideologia dominante, pode repercutir no reforço dessa
por esses princípios, sendo que o modo de produção
mesma ideologia, contribuindo para que a essência dos
material de uma dada sociedade determina como ela se
fenômenos permaneça escondida se à práxis não se ligar
organiza política, social e economicamente, bem como
a crítica permanente às ideologias.
define suas representações em dado momento histórico.
A realidade está em constante transformação devido às
suas contradições internas, cujas relações sociais, de-
A ABORDAGEM DA ASSISTÊNCIA EM
terminadas pelo modo de produção, são sua principal
SAÚDE MENTAL SEGUNDO CATEGORIAS
expressão, havendo nos processos de reificação dessa
MARXISTAS
2
realidade os principais conteúdos a serem desvelados.
A ideologia, como já dissemos, é a principal forma de
desvirtuamento da realidade que expressa por meio dos
fenômenos a sua aparência.
Utilizando-se de categorias teóricas do campo
marxista, Costa-Rosa (2000) busca realizar uma análise
A dialética materialista, fundada por Marx e
de fatos da realidade expressa na assistência em saúde
Engels, compreende o movimento histórico como de-
mental. Considera-se, aqui, que a análise do autor neces-
rivação das condições materiais de vida. O materialismo
sita de uma revisão crítica, uma vez que apresenta pontos
histórico desvela as relações pertinentes ao modo de
polêmicos. Sabe-se, contudo, que este tipo de análise
2
“[...] o fenômeno da reificação (em latim, res = coisa; reificação, pois, é sinônimo de coisificação) é peculiar às sociedades capitalistas; é mesmo possível afirmar que a
reificação é a forma típica da alienação (mas não a única) engendrada no modo de produção capitalista. O fetichismo daquela mercadoria especial que é o dinheiro, nessas sociedades, é talvez a expressão mais flagrante de como as relações sociais são deslocadas pelo seu poder ilimitado (Neto; Braz, 2006, p. 93, grifos dos autores).
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
pode implicar repetições e contribuição ao ecletismo que
uma forma de produção de assistência é alternativa a
tem representado, para a filosofia materialista histórica,
outra, isso pressupõe uma contradição. Considera-se,
distorções na compreensão da realidade social.
aqui, que essa concepção fundamenta-se na crença de
Costa-Rosa, no texto de referência, busca caracteri-
que uma contradição pode ser considerada sem levar em
zar e conceituar as formas de produção em saúde mental
conta seus determinantes histórico-estruturais, podendo
nos aspectos político-ideológico e teórico-técnico, como
passar, na visão do autor, de um estágio “de uma dife-
define, sob o ponto de vista das contradições que deter-
renciação não-essencial das ‘visões’ e dos interesses em
minam o confronto entre os paradigmas que conformam
jogo” para um estágio de “diferença essencial”. Porém,
a assistência em saúde mental – o modo asilar e o modo
de acordo com o autor:
psicossocial , opondo um ao outro. A intenção aqui é
3
discordar da visão do autor que percebe duas realidades
Somente aquelas diferenciações capazes de se
diferentes, afirmando que as contradições presentes em
manifestar com força radical, a ponto de im-
um e em outro modo de assistência são determinadas
primir a determinado fenômeno um sentido
por uma mesma realidade que corresponde ao ‘todo
contrário àquele seguido até então, poderão
social’. Por essa razão, não se restringem a uma das
requerer o estatuto de contradição (p. 143).
formas de produção em saúde mental as contradições
imanentes das relações estabelecidas, especificamente
O autor afirma que essa é uma visão dialética de
ao modo asilar, segundo Costa-Rosa. É ilusório separar
uma contradição. Costa-Rosa tem concepções sobre
partes desse todo, atribuindo-lhes leis que não estejam
‘forças motrizes’ que, nas formações sociais, possibilitam
em inter-relação. Se determinadas práticas são substitu-
a passagem “de um estágio de desenvolvimento a outro,
tivas ou alternativas a outras em dado fenômeno social,
mudando radicalmente as suas características essenciais”
constituídas em um mesmo período histórico (capita-
(p. 144).
lismo), elas fazem parte de uma mesma realidade social.
Discutindo essas ideias, salienta-se primeiramente:
Analisar as influências dessa realidade sobre as partes
de acordo com a crença materialista histórica, as relações
que se relacionam e os efeitos das práticas sociais sobre
da sociedade capitalista estão eivadas de contradições,
a realidade constituem um momento importante para
explícitas e implícitas, sendo que a ideologia dominante
análise. Retomando Lefebvre (1955, p. 40), é preciso
cumpre o papel de inibir a reflexão crítica, distorcendo e
descobrir o que se esconde não por trás do fenômeno,
escamoteando as contradições sob os véus da alienação e
mas nele.
reificação dessa realidade, como dito antes. Contradição,
Discutindo as categorias de análise de seu estudo,
no sentido amplo designado pela condição de fenômeno
Costa-Rosa (2000) aproxima o sentido de “alternati-
social, não é diferença, mas gera desigualdades devido
vidade” do conceito de “contradição”, dizendo que se
ao choque de interesses subjacente ao ordenamento
3
Costa-Rosa (2000) considera que o modo asilar concebe o sujeito como doente e, por esse motivo, as intervenções recaem sobre a doença, desconsiderando
subjetividades e necessidades, isolando esse indivíduo “como centro do problema” (p. 152). Decorre desta situação a medicalização como prioritária e intervenções
multiprofissionais desconectadas de um objetivo comum, sendo o hospital psiquiátrico fechado o locus institucional modelar e central, mesmo que se ligue a
serviços extra-hospitalares que, em muitos casos, funcionam na lógica hospitalocêntrica, reproduzindo práticas asilares. E o modo psicossocial concebe o sujeito
portador de transtornos como centro das intervenções e participante deste planejamento. As ações deverão se dar de forma interprofissional, voltando os esforços
do tratamento para a reintegração sociocultural, e as intervenções sobre o tecido social, já que a loucura, nesta perspectiva, na visão do autor, “não é um fenômeno
exclusivamente individual, mas social e como tal deverá ser metabolizada” p. 154). O locus institucional modelar deste modo de tratar compõe-se de serviços
abertos inseridos na comunidade (Caps, serviços residenciais, centros de convivência etc.). As manifestações da loucura são consideradas parte da existência e
elementos constitutivos dos sujeitos. Essas concepções correspondem às concepções pertinentes ao campo da reforma psiquiátrica.
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
burguês. Também não deve ser comparada ao conflito
apesar de representar inequívoca evolução no trata-
que pode ser solucionado pelo consenso. As contradi-
mento da loucura, reflete as contradições próprias ao
ções carregam consigo uma essência primordial, que se
ordenamento burguês nas práticas sociais pertencentes
refere à condição de classe, às assimetrias provocadas
ao seu campo.
pela exploração do trabalho alheio que gera, para um
Saraceno (1999, p. 63) afirma que a ciência psiqui-
lado, lucro e riqueza; para outro, alienação, pobreza e
átrica possui significado “antigo e imutável”, permitindo
despossessão. As contradições presentes na assistência
a legitimação de práticas que perpetuam a expropriação
em saúde mental – tanto asilar quanto psicossocial –
dos indivíduos loucos, tornando-a independente das
referem-se à condição de classe dos assistidos, à condição
condições socioeconômicas do lugar onde se instale a
de classe de quem os assiste e ao papel das instituições
situação que iguala todos os manicômios do mundo.
no Estado capitalista burguês.
Em segundo lugar, argumenta-se que a compre-
Existe uma lógica que explicita esta situação,
ensão dialética se fundamenta na premissa básica de
estando fundamentada na ordem societária
que todo fato novo carrega a essência do fato superado,
burguesa. [...] Esta ordem não é autônoma, é
o que corresponde à síntese do que era antes com o
inerente ao capitalismo. A ordem que iguala
que foi contraposto. Se essa premissa é compreendida
a condição dos hospícios em todos os cantos do
sob o ponto de vista da compreensão materialista
mundo, lugar de pobreza e miséria, no sentido
histórica da situação analisada pelo autor no que diz
de privação daqueles que lá se encontram inter-
respeito às contradições geradas pela assistência pres-
nados e dos recursos terapêuticos a eles destina-
tada pelas instituições correspondentes às formas asilar
dos, também iguala a condição dos pobres, em
e psicossocial – uma em oposição à outra –, devemos
qualquer lugar do mundo. Ou seja, à pobreza
considerar este fato como uma totalidade parcial de um
não se faz distinção; às mesmas condições são
todo social, pois desde que a psiquiatria foi inventada
submetidos e com os mesmos recursos degradados
(entendendo-a como campo multidisciplinar), e com
ou ausentes são aviltados nas suas necessidades.
ela as formas de tratamento da loucura, nosso mundo
(Mendes, 2007, p. 54).
se encontra na modernidade, fundada pela sociedade
capitalista burguesa. Portanto, as formas de atenção
A lógica de que lugar de louco pobre é no asilo
psicossocial, bem como o tratamento asilar, inserem-se
perpetuou-se na sociedade moderna, embora alguns
num contexto caracterizado pelo modo de produção de
lugares promovam mudanças significativas na condição
uma época histórica, permitindo destacar totalidades
de tratamento desses indivíduos, permanecendo, no
parciais, partes de uma mesma realidade que se inter-
entanto e em geral, a condição de pobreza. Saraceno
relacionam, não sendo possível ‘mudanças radicais’
(1999, p. 65) nos dá uma visão global sobre a situação
das características essenciais desses fenômenos, deter-
da pobreza dos e nos asilos, mesmo com o advento da
minadas pelas leis que regem as relações capitalistas
atenção psicossocial:
burguesas.
Em seus aspectos essenciais, a sociedade burguesa
Pode parecer paradoxal, mas certamente eram
produz contradições que acarretam implicações para
melhores os manicômios milaneses do início de
a assistência em saúde mental. O modo psicossocial,
1900 do que os de hoje e assim, provavelmente,
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
em todas as partes do mundo, na medida em
Essa é a realidade de que se trata aqui. A questão
que eram mais pais normatizadores do que
gira em torno de saber se a ideologia psiquiátrica mo-
patrões violentos: à diminuição da ‘violência
derna poderá ser superada no contexto de dominação
direta’ sobre os pacientes corresponde um
burguesa. E, nesse sentido, como a situação de pobreza
crescimento da ‘violência indireta’ (miséria
em que se encontram os sujeitos dos quais trata, nos
e abandono); a diminuição da organização
asilos e serviços substitutivos, poderá deixar de ser um
rígida e asilar [...], conduz à cultura do cárcere
impedimento para sua emancipação.
que caracteriza o manicômio atual (misé-
A abordagem do papel do Estado nas relações
ria, relações violentas, anomia, abandono).
capitalistas torna-se importante para prestar maiores
(Saraceno, 1999, p. 65).
esclarecimentos.
Na abordagem de Costa-Rosa (2000) sobre as
Aqui é retomada a indicação desse autor: a so-
concepções acerca das instituições do Estado burguês,
ciedade burguesa vem legitimando um sentido “antigo
considera-se que o autor acabou por minimizar o
e imutável” da psiquiatria. Afirmando que a raciona-
comprometimento desse Estado com os interesses
lidade instrumental configura o estágio da sociedade
que representa, apesar de mencionar sem discutir, as
capitalista (Mendes, 2007), ressalta-se que as relações
contradições do contexto refletidas nas práticas que
sociais se caracterizam pela exploração, alienação e
se desenvolvem a partir dessas instituições. O autor
violência, cujos mecanismos de sujeição refletem-se
parte do pressuposto de que a sociedade “é articulação
na expropriação,
de interesses divergentes” (p. 145). Quanto a isso,
destaca-se que a teoria crítica-dialética postula que
[...] com o aprofundamento das desigualdades,
a sociedade está dividida em classes com interesses
despersonalização e anonimato social, situações
antagônicos, sendo impossível ‘articular ou conci-
que são expressão das contradições inerentes à
liar’ as contradições essenciais que emanam dessa
razão contemporânea que configuram a barbá-
realidade.
rie. (p. 54-55).
Para que seja possível a reprodução dessa sociedade, as relações entre capital e trabalho necessitam
Então, transpondo a afirmação de Saraceno
ser metabolizadas, e o Estado, ao longo da história do
(1999), a substituição da “violência direta” pela “violên-
desenvolvimento capitalista, desempenha um impor-
cia indireta”, nos asilos e fora destes, “corresponde ao
tante papel. Não se trata de considerar as instituições
processo de agudização da barbárie que atinge a todo o
do Estado como “simples efeitos da base econômica
corpo social” (Mendes, 2007, p. 55).
ou como meras reprodutoras das relações sociais do-
As práticas antiterapêuticas (as quais se associam
minantes” (Costa-Rosa, 2000, p. 145), uma “visão
à alienação dos terapeutas, bem como aos interesses de
mecanicista” como salienta o autor, mas de ir além da
classe), não são condições só do manicômio, mas tam-
consideração dos fenômenos sociais e econômicos per
bém se tornaram práticas sociais que independem do
si, sem inter-relação com a infraestrutura e a superestru-
lugar onde ocorrem, pois estarão filiadas à manutenção
tura implicadas nas suas determinações. A esse respeito,
do status quo que vem se perpetuando nas relações ca-
tomemos o conhecimento já produzido sobre o tema
pitalistas burguesas.
para esclarecer esse ponto.
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
Retomando a história de efetivação do capitalis-
ção, assim como o endividamento crescente dos países
mo monopolista, corresponde ao período do segundo
da periferia, não puderam ser contidos com medidas do
pós-guerra o desenvolvimento das políticas sociais
grande capital para conter a ‘crise’. Na realidade, essas
enquanto função dos Estados capitalistas de proteção
medidas de ajuste para restauração do capital, de corte
social (Pereira, 1998). Os Estados passaram a desen-
neoliberal (dentre estas, as privatizações, cortes nos
volver atividades de regulação por meio da criação e
gastos públicos, incluindo a seguridade social, a desre-
aparelhamento de complexas instituições destinadas
gulamentação da economia, que passa a ser operada pelo
a efetivação das políticas sociais; medidas fiscais, leis
mercado), geraram intensificação das tensões sociais. A
trabalhistas, serviços e benefícios públicos passaram a
financeirização do capital, tendo em vista investimen-
garantir a reprodução da sociedade capitalista por meio
tos mais rentáveis frente à perda de lucratividade nos
desse complexo político-institucional, identificado
investimentos produtivos, caracteriza outra mudança
como seguridade social. Configurou-se, nesse período,
fundamental na economia mundial.
o Estado de Bem-estar Social nos países da Europa que
No contexto de crise e reestruturação capitalista,
atingiram alto nível de desenvolvimento econômico,
assiste-se ao desmonte das políticas sociais e à am-
compatível com o financiamento de tais políticas. A
pliação da pobreza, sendo esta apontada como uma
legitimação desse pacto se deu através da expansão dos
das consequências mais graves da globalização. O
direitos de cidadania e, podemos apontar ancorados
projeto neoliberal é responsável pelo estabelecimento
nas considerações de Coutinho (2000): se por um lado
da atual política anticíclica, por meio da qual busca
havia uma causa subjacente – uma resposta do capita-
retomar o patamar de acumulação do ciclo estabele-
lismo, ainda que pactuada, à ameaça socialista – por
cido no padrão fordista-keneysiano, promovendo a
outro, poderia representar uma evolução na direção do
reorganização do capital.
socialismo democrático:
No caso específico do Brasil, a formação da complexa
rede de instituições governamentais criadas para dar susten-
[...] conquistar reformas substantivas ainda no
tação aos serviços e benefícios considerados como direitos
interior do capitalismo, [mas] se essas reformas
de cidadania, institucionalizada como Seguridade Social,
não forem claramente dirigidas contra a lógica
tem como marco legal fundamental a Constituição de 1988
do capital, elas se tornam frágeis, instáveis e
e como protagonista o movimento dos trabalhadores. De-
terminam por ser abandonadas. (p. 85).
ve-se à legislação decorrente a institucionalização de novos
direitos políticos e sociais, a universalização da assistência à
Pode-se considerar que só em meados da década
saúde e previdência para segmentos vulneráveis, mudanças
de 1970 passaram a ser processadas mudanças na ordem
na legislação trabalhista, dentre outros. Além disso, o direi-
econômica. A saturação do padrão de acumulação da
to à assistência social passou a abranger os desassistidos e
era fordista-keynesiana pode ser apontada como causa
‘incapacitados’ a partir daquele momento. Entretanto, nos
importante dos ajustes e correções no rumo que se se-
anos que se seguiram, a seguridade social não se consolidou
guiu. A queda na taxa de lucros [causada, dentre outros,
como política pública que promovesse todos os segmentos
pela superprodução e baixo consumo – este último,
que dela necessitassem. As políticas assistenciais não-
para Antunes (1999), devido à queda dos salários e ao
contributivas vêm se expandindo gradualmente nos estados
desemprego estrutural], e nos investimentos na produ-
e municípios, estando o poder governamental nos níveis
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
correspondentes responsáveis pela execução da política
trabalho; a classe que vive do trabalho alheio tem sob
dirigida aos grupos considerados vulneráveis, com finan-
seu domínio o conjunto das relações sociais, pois:
ciamento exíguo e crescente participação do terceiro setor
na assistência. A assimilação das estratégias neoliberais para
a história de todas as sociedades que existiram
diminuição dos gastos estatais com as políticas públicas,
até nossos dias tem sido a história das lutas de
desencadeando mudanças no sistema de seguridade social
classes, [sendo que] [...] a burguesia, durante seu
brasileiro, contribuiu para a limitação e maior dificuldade
domínio de classe, apenas secular, criou forças
na implementação dos direitos assistenciais obtidos desde
produtivas mais numerosas e mais colossais que
o movimento Constituinte, havendo a responsabilização
todas as gerações passadas em conjunto [...]. A
de todos pelas dificuldades geradas pela crise, inclusive pela
burguesia só pode existir com a condição de
falta do financiamento da seguridade.
revolucionar incessantemente os instrumentos
Com estas considerações, enfatiza-se que a colo-
de produção, por conseguinte, as relações de
cação de Costa-Rosa (2000) sobre “visões mecanicistas”
produção e, como isso, todas as relações sociais.
que associam as instituições aos determinantes econô-
(Marx; Engels, 2003, pp. 26-29).
micos é equivocada, possibilitando enuviar o papel dos
serviços assistenciais nas relações capitalistas burguesas.
As classes sociais se constituem a partir dos proces-
Essa posição contraria a crença materialista histórica.
sos econômicos, do processo produtivo e da produção
Por mais bem intencionados que os agentes da reforma
social e relacionam-se não só com o que se tem, mas
psiquiátrica estejam, existe uma realidade que precisa ser
com o que se é:
conhecida, para que não deixem de ser considerados os
impedimentos estruturais postos nesse caminho.
pela ‘divisão do trabalho’, torna-se possível, ou
Mais ainda: as relações das instituições da saúde
melhor, acontece efetivamente que a atividade
mental com as demais (saúde em geral, de forma direta,
intelectual e a atividade material – o gozo e o
como salienta o autor) e com o contexto social não se
trabalho, a produção e o consumo – acabam
dão num vazio, de forma que a existência de outras ins-
sendo destinados a indivíduos diferentes; [...]
tituições, como famílias, escolas, religiões e processos de
essa divisão do trabalho encerra ao mesmo tem-
produção possam ser considerados como pertencentes
po a repartição do trabalho e de seus produtos,
a uma realidade secundária, um pano-de-fundo, ou
distribuição ‘desigual’, na verdade, tanto em
seja, cujas inter-relações com as instituições da saúde
quantidade quanto em qualidade. (Marx;
mental possam ser consideradas “mais indiretas”, como
Engels, 2002, p. 27, grifo dos autores).
ressalta Costa-Rosa (2000, p. 145). Como “palcos de
luta social”, as instituições não expressam simplesmente
A cooperação entre os indivíduos condiciona-
“articulação de interesses divergentes”. As “contradições
da pela divisão social do trabalho, segundo Marx,
dominantes no contexto mais amplo” são mero reflexo
não é voluntária e não pode ser percebida por eles
das contradições vividas no cotidiano, essas sim mate-
como força própria, parecendo-lhes então uma força
rialmente presentes na vida das pessoas, e expressam
estranha. Essa situação caracteriza a alienação num
a correlação de forças entre as classes. Não é possível
contexto de dominação: “[...] a classe que é o poder
conciliar interesses que se pautam pela exploração do
material dominante numa determinada sociedade
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MENDES, S.M.O.
•
Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
é também o poder espiritual dominante” (Marx;
democracia e do exercício de cidadania. Acredita-se que
Engels, 2002, p. 48). Ou seja, a posse dos meios de
políticas sociais robustas, articuladas, permanentes, com
produção material está associada à posse dos meios
financiamento suficiente para a estruturação de serviços
de produção intelectual, submetendo o pensamento
que superem a reprodução da pobreza dos asilos para
às relações cuja expressão de ideias é a legitimação
a obtenção de renda digna, estratégias de inclusão no
da dominação por meio da regulamentação da pro-
mundo do trabalho com respeito às diferenças são con-
dução e da distribuição dos pensamentos em todas
quistas essenciais nessa caminhada. Também se deve ter
as épocas históricas.
consciência de que essas medidas se opõem ao receituário
“Identificação com a fração dos interesses es-
da ordem vigente no momento de crise estrutural do
truturalmente subordinados” (Costa-Rosa, 2000, p.
capitalismo. A ampliação das políticas públicas está na
146) não depende da capacidade das pessoas, mas da
contramão dos investimentos dos Estados Nacionais
consciência de classe que se pode atingir a partir da
que envidam esforços para a retomada dos patamares
crítica à ordem societária determinada pelo modo de
de acumulação capitalista, citando-se como evidência
produção capitalista. Ou lutamos por ajustes e melhorias
mais recente os investimentos de trilhões de dólares na
que podem representar, no contexto capitalista, que os
recuperação de empresas e instituições financeiras que
indivíduos passem da condição de despossessão à con-
ruíram em consequência da financeirização da econo-
dição de inclusão degradada no processo de produção
mia. Inverter essa ordem significa retomar a luta com a
e reprodução social, ou lutamos por transformações es-
recuperação da capacidade de enfrentamento do poder
truturais, o que representa o investimento na construção
estatal que representa os interesses burgueses.
de um projeto societário contra-hegemônico para o qual
Quanto à discussão do autor sobre mais-valia4,
a classe de intelectuais tem importantes contribuições a
tentando representar os valores expressos na realidade
oferecer. Ao desenvolvimento da práxis social dentro e
da assistência em saúde mental, existe uma enorme
fora das instituições, deve corresponder, nesta perspec-
confusão no entendimento dessa categoria teórica. As
tiva, um conjunto de ações que visem não somente à
instituições que oferecem serviços não produzem mais-
adoção de estratégias que confrontem o modelo asilar
valia. Não há extração de mais-valia em relações em que
e possibilitem ações voltadas para os sujeitos singulares
não existe a apropriação de lucro direta ou indiretamen-
cujas diferenças sejam ‘aceitas’ no convívio social, mas
te. Essa operação determina a acumulação para a qual
cujas diferenças possibilitem mudanças no tipo de in-
se voltam todos os esforços de manutenção das relações
clusão permitida pela ordem societária vigente. Nesse
de dominação de classe. Quem se apropria da mais-valia
momento, a ampliação e a efetivação de direitos são
produzida a partir da exploração do trabalho alheio são
conquistas fundamentais, para as quais a mobilização
os donos do capital, donos dos meios de produção. As
social constitui condição. No nosso entendimento, essa
instituições que oferecem serviço pertencem ao setor
abordagem permite que um primeiro passo seja dado
terciário da economia, sendo caracterizado pelo trabalho
a fim de se atingir a compreensão de uma realidade
improdutivo. Por oposição, vejamos, segundo Mandel
que precisa ser transformada a partir da ampliação da
(apud Netto; Braz, 2006, p. 117-118):
A mais-valia é obtida a partir do trabalho produtivo que ocorre na transformação de matérias brutas ou primas em mercadorias, para isto também contribuindo
o trabalho intelectual envolvido na produção. A mais-valia corresponde a um “acréscimo de valor que surgiu no processo de produção, valor criado pela força
de trabalho que [...] produz um valor maior (excedente) ao que custa. A apropriação, pelo capitalista, desse excedente configura a exploração do trabalho pelo
capital” (Netto; Braz, 2006, pp. 118-119).
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
A definição de trabalho produtivo como tra-
anteriores. Reiteramos que as relações sociais na sociedade
balho produtor de mercadorias, que combina
burguesa expressam relações de exploração e dominação
trabalho concreto e abstrato (ou seja: que com-
de uma classe sobre a outra.
bina a criação de valores de uso e a produção de
O dono do capital não é um intermediário, assim
valores de troca), exclui logicamente ‘os bens não
considerado por Costa-Rosa (2000, p. 148) ao tratar
materiais’ da esfera da produção de valor. [...]
das “características” que o Modo de Produção Capita-
Para a humanidade, a produção é mediação
lista (MPC) imprime às instituições da saúde mental.
necessária entre a natureza e a sociedade; não
No caso das instituições asilares, a lógica do capital é
pode haver produção sem trabalho (concreto),
que dita as regras, e salientar a intermediação que essas
nem trabalho concreto sem apropriação e trans-
instituições estabelecem é fazer recair sobre o aparente
formação dos objetos materiais.
a importância do fato em si: nessas relações, o que se
busca é o isolamento, situação que determinou o lugar
Com relação aos beneficiários de políticas sociais
social que os portadores de transtornos mentais severos
condizentes com a atenção psicossocial, não existe a pos-
ocupam. A lógica da acumulação capitalista perma-
sibilidade de eles se apropriarem de mais-valia: considerar
nece na organização dos serviços, mesmo naqueles
isso é conceitualmente equivocado e politicamente incor-
cujas práticas caracterizam-se por serem substitutivas.
reto, pois dá a falsa noção de que a atenção psicossocial
Como já mencionado, assistimos ao desmonte das po-
inverte as relações capitalistas presentes na realidade dos
líticas públicas cuja principal causa é, segundo Soares
assistidos. A natureza da mais-valia é uma só: lucratividade
(2003), o ajuste global que se desenvolve a partir da
que, por sua vez, gera a acumulação. A atenção psicosso-
mundialização financeira e produtiva, segundo ideário
cial não pode gerar excedente do qual se apropriariam os
neoliberal produzido pelos organismos internacionais
usuários de serviços assistenciais: a horizontalidade das
políticos e financeiros5.
relações é apenas o esperado, o justo, o mínimo necessário
Mesmo quando existem mudanças significativas
para permitir o avanço a estágios ainda não dimensiona-
na assistência prestada, só poderão ampliar seu alcance
dos pela ausência de crítica estruturada à atual conjuntura
e serem perpetuadas se houver garantia de continuidade
política. Os serviços que conseguem melhorar a condição
possível por meio da ‘amarração’ das estruturas jurídicas,
de seus usuários em termos de relações interpessoais mais
políticas, sociais e econômicas no território nacional, re-
amistosas e aceitação social de sua condição de saúde, e
fletida no nível local; e se representarem a legitimação de
que lhes permite participação democrática na realidade
instituições e práticas condizentes com os pressupostos
institucional e inserção em lugares diferenciados, contudo,
da reforma psiquiátrica. Do contrário, ocorre a situação
não são capazes de provocar a transformação das relações
em que mudanças políticas administrativas repercutem
sociais que lhes conferem a condição de pobreza, a mes-
numa mudança geral da programação institucional,
ma situação em que se encontra a maioria dos serviços
ocasionando retrocesso e abalo na confiança de que as
assistenciais, pelos motivos delineados em parágrafos
mudanças poderão ser efetivas. O exíguo financiamento
“a questão social passa a ser objeto de ações filantrópicas e de benemerência, deixando de ser responsabilidade do Estado. As ‘redes’ de proteção social devem
ser ‘comunitárias’ e ‘locais’. Quando o desajuste social assume proporções preocupantes, caberia então ao Estado intervir com programas sociais focalizados nos
pobres, tratando de reinseri-los no ‘mercado’. Como os bens e serviços sociais são considerados de ‘consumo privado’, tratar-se-ia de promover algum tipo de
subsídio à demanda desses pobres para que eles possam adquiri bens e serviços no ‘mercado’. É a antiga ideologia liberal que ressurge com ‘nova roupagem’ e que
tem predominado na última década em todos os documentos ‘sociais’ do Banco Mundial e assemelhados” (Soares, 2003, p. 27).
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dos serviços, principalmente no nível local, compromete
texto nos quais agem quando projetam as intervenções”.
sobremaneira a efetivação de mudanças duradouras que
(Saraceno, 1999, p. 72). As intervenções conservadoras
possam evoluir.
podem se reproduzir em qualquer lugar onde prevaleçam
A partir das ponderações até aqui colocadas,
interesses compatíveis com a ordem burguesa. A cons-
retoma-se a indagação a respeito da possibilidade de
ciência dos usuários dos serviços assistenciais da saúde
se superar a ideologia psiquiátrica conservadora no
mental, dos técnicos e da sociedade acerca da condição
contexto de dominação burguesa. Não se trata aqui
de imersão das relações no antagonismo de classes é uma
de responder à questão, mas provocar a crítica à razão
situação que tem sido negligenciada devido à alienação,
instrumental a qual se filiam os interesses subsumidos
ou negada segundo interesses que privilegiam o indi-
no fenômeno de produção de cronificação e cronicidade
vidualismo escamoteado por visões que trabalham em
(Mendes, 2007). Entende-se, aqui, que as instituições
prol de uma ‘inclusão’ promovida por políticas sociais
moldadas pela psiquiatria tradicional são portadoras
compatíveis com o ideário neoliberal para que se possa
de interesses econômicos que se traduzem no lucro
“atingir uma suposta ‘estabilidade’, condição para um
obtido pelas empresas do ramo e no corporativismo
futuro crescimento e, quiçá, alguma distribuição das ‘so-
decorrente da mercantilização da saúde, intensificada
bras’ num futuro [...] remoto”. (Soares, 2003, p. 13).
com o período de “desajuste social”, onde iniciativas
privatizantes como a terceirização6 da assistência tem
repercutido em que:
UMA APLICAÇÃO DO MATERIALISMO
DIALÉTICO NA SAÚDE MENTAL
a filantropia substitui o direito social. Os pobres
substituem os cidadãos. A ajuda individual substitui a solidariedade coletiva. O emergencial e o
Hirdes (2008), a partir de uma breve revisão de au-
provisório substituem o permanente. As micros-
tores do campo marxista (Konder, 1981, Kosik, 1995,
soluções ad hoc substituem as políticas públicas.
Lefebvre, 1991, Lukács, 1979), nos oferece sua análise
O local substitui o regional e o nacional. É o
a respeito da utilização do método crítico-dialético que
reinado do minimalismo no social para enfrentar
compara as formas de produção na assistência em saúde
a globalização do econômico. ‘Globalização só
mental. Como Costa-Rosa (2000), a autora também tem
para o grande capital. Do trabalho e da pobre-
como parâmetros de análise o campo da atenção asilar,
za, cada um que cuide do seu como puder. De
que denomina como de institucionalização, e o campo
preferência com um Estado forte para sustentar o
de atenção psicossocial, que denomina de desinstitu-
sistema financeiro e falido para cuidar do social’.
cionalização. Hirdes identifica como unidade comum
(Soares, 2003, p. 12).
aos dois campos, que situa como opostos, “o foco na
abordagem da doença mental” (Hirdes, 2008, p. 13).
Tanto dentro quanto fora dos asilos, as práticas
Destaca-se que, na compreensão crítico-dialética, tam-
psiquiátricas tradicionais habituam os técnicos a produ-
bém há em comum entre os dois campos a Totalidade
zirem “menos realidade, ou seja, a fazer menos no con-
Social que os abrange.
A terceirização é a forma contemporânea de promover a ‘re-filantropização’: o trabalho voluntário ou precarizado, a contribuição de ‘associados’, isentando o
Estado de gastos públicos, etc, caracterizam as relações estabelecidas pelas ONGs.
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Entende-se, aqui, que existem aspectos na leitura de
Hirdes que merecem destaque pela coerência de signifi-
A historicidade é uma condição da análise da
autora que destaca:
cados acerca da utilização das categorias matizadas pelo
conhecimento marxista. O primeiro destes diz respeito ao
[...] foi possível observar, nas últimas décadas,
salto dialético compreendido nas mudanças decorrentes
alguns períodos em que se intensificaram as
da luta política por melhorias nas condições assistenciais
discussões e o surgimento de novos serviços, assim
na saúde mental – acrescenta-se uma das partes de um
como períodos em que houve uma desacelera-
todo historicamente determinado pelas lutas empre-
ção do processo. [...] em 1992, aconteceu a 2ª
endidas por trabalhadores insatisfeitos com a situação
Conferência Nacional de Saúde Mental. Em
socioeconômica e política do país que, por sua vez, refletia
seguida, houve uma lacuna no que se refere às
um movimento global pela retomada da democracia ple-
conferências e à legislação (porque os serviços
namente comprometida por governos ditatoriais e pelo
continuaram sendo constituídos) até a apro-
imperialismo de nações centrais, especialmente a norte-
vação, em abril de 2001, da Lei de Reforma
americana. Um mundo no qual a insatisfação também
Psiquiátrica. (Hirdes, 2008, p. 14).
era gerada pela intensificação da pobreza quando ruía o
pacto fordista-keynesiano. Entretanto, destaca a autora,
Diante desses dados, a análise que se quer corre-
à superação dialética corresponde o resíduo da essência
lacionar é, primeiramente, o fato de os governos neoli-
que determina, em outras palavras, a convivência de duas
berais que se iniciaram no país em 1992 possivelmente
formas de considerar a existência dos sujeitos-alvo das
terem determinado a lacuna à qual se refere a autora.
intervenções profissionais:
Também, o longo percurso da lei federal, designada
Lei da Reforma Psiquiátrica (de número 10.216), que
Observa-se como característica do salto dialético
tramitou por mais de uma década no Congresso e
a continuidade, ou seja, o hospital psiquiátrico
foi aprovada em 2001 com substanciais alterações no
como realidade ainda presente, os saberes e prá-
que se refere aos interesses em jogo. A despeito das
ticas hegemônicos de exclusão e segregação ainda
lutas sociais que provocaram amplas mobilizações no
não superados; e a descontinuidade, que compre-
processo de aprovação dessa lei e dos avanços que ela
ende o aparecimento de novos serviços respaldados
representa, o texto final refletiu a primazia dos inte-
pelas iniciativas das políticas públicas de Saúde
resses capitalistas burgueses.
Mental. (Hirdes, 2008, p. 14).
Retomando a condição de classe dos usuários dos
serviços de saúde mental, Hirdes (2008, p. 14) enfatiza
Ou seja, uma realidade que reflete aspectos de
que o campo da Reforma Psiquiátrica refinou conceitos,
uma totalidade parcial cujos determinantes capturam
possibilitando “o enfoque do trabalho terapêutico sobre
as leis que regem o fenômeno da sociedade moderna:
os aspectos de vida das pessoas portadoras de sofrimento
a vigência de estruturas que garantem a reprodução da
psíquico [...], nos aspectos sadios das pessoas”. É sobre
sociedade capitalista burguesa. Ressalta-se, como já dito
as condições materiais de vida que recaem os esforços da
antes, que as políticas públicas no contexto de vigência
teoria crítica ao Modo de Produção Capitalista (MPC),
das investidas neoliberais vêm sofrendo reveses, deter-
pois possibilita a compreensão dos determinantes da
minando a pobreza dos novos serviços.
condição de pobreza dessas pessoas. Assim, vejamos:
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
Dentro de uma perspectiva mais ampla, de
A práxis social, neste caso, refere-se às
totalidade, considera-se de fundamental importância o diagnóstico de vida de uma pessoa
formas voltadas para influir no comportamento
e o conseqüente estabelecimento de um projeto
e na ação dos homens [...;] trata-se das relações
terapêutico a partir do contexto no qual se
sujeito a sujeito, daquelas formas de práxis em
insere. [...] Ressalta-se a necessidade de leitura
que o homem atua sobre si mesmo (como na
do contexto dentro de uma mudança de óptica:
práxis educativa e na prática política). (Netto;
comumente, tal leitura é realizada em cima dos
Braz, 2008, pp. 43-44).
déficits, dos aspectos negativos. Sublinhar as forças e os aspectos sadios constitui uma transição
Pela práxis, é possível criar condições favoráveis para
importante no processo de tratamento e reabili-
a tomada de consciência a respeito do pertencimento de
tação, assim como a noção de indissolubilidade
classe dos sujeitos envolvidos no processo de tratamento
de ambos. (Hirdes, 2008, p. 15).
e reabilitação, favorecendo as identificações, bem como
a elucidação das ideologias pelo exame ético e crítico dos
Pretende-se destacar, com relação à situação de vida
discursos que atravessam as instituições. Estes pensamen-
dos usuários, que essa, além de necessariamente ser alvo
tos nos fazem retomar as ideias de Marx e Engels acerca
de um projeto terapêutico individual, na perspectiva
da divisão do trabalho, havendo distinção das classes que
marxista, deve ser um projeto coletivo, no qual os enfren-
desempenham as atividades intelectual e material “– o
tamentos para superação da alienação e pobreza busquem,
gozo e o trabalho, a produção e o consumo –” (Marx;
além dos esforços institucionais de obtenção dos recursos
Engels, 1974, p. 27), que repercute numa distribuição
necessários, a criação de estratégias que possibilitem a
desigual do trabalho e de seus produtos em quantidade e
práxis social. Os portadores de transtornos mentais severos
qualidade. Os autores também fazem referência ao poder
são considerados cultural e juridicamente incapazes. A
sobre as coisas no mundo, ou seja, a classe que detém o
mudança dessa condição implica que a atenção se volte
poder material detém o poder intelectual. Esse estado de
fundamentalmente para o restabelecimento da crença
coisas gera posições em que o saber é usado como fonte de
nesses sujeitos. O rótulo de incapacidade levou à perda
poder, ou seja, o suposto saber torna-se alvo de disputas
ou negação de habilidades e, por conseguinte, a negação
(que comumente consomem as energias despendidas nos
dessas pessoas enquanto seres sociais.
serviços). Hirdes (2008) faz a distinção entre os tipos de
atividades – material e intelectual –, afirmando que é
O desenvolvimento do ser social implica o
necessário, nos serviços assistenciais, haver uma integração
surgimento de uma racionalidade, de uma
dessas atividades, quando os profissionais terão uma visão
sensibilidade e de uma atividade que, sobre a
não-dissociativa, assumindo o trabalho reabilitativo e de
base necessária do trabalho, criam objetivações
tratamento. Acrescenta-se que as atividades relacionadas a
próprias. No ser social desenvolvido, o trabalho
esses dois aspectos da assistência levam a uma divisão so-
é uma das suas objetivações – e [...] quanto
ciotécnica do trabalho. A autora enfatiza que essa ideia:
mais rico o ser social, tanto mais diversificadas
e complexas são as suas objetivações. (Netto;
enfrenta um embate que se estabelece muitas
Braz, 2006, p. 43).
vezes no cotidiano dos serviços: o tratamento é
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executado por uns e a reabilitação, por outros.
saltos qualitativos que se inserem na vida
Ou seja, há a necessidade de não-separação do
cotidiana das pessoas. A superação dialética é
trabalho manual do intelectual reproduzido
alcançada no momento em que são reunidos,
dentro dos serviços para que haja a superação
no mesmo sujeito histórico, aspectos subjetivos
dialética. (Hirdes, 2008, p. 16).
e objetivos oriundos das demandas singulares
de cada pessoa. (p. 17).
Hirdes também chama atenção para as contradições geradas pelas disputas internas que, sob o ponto
de vista aqui revelado, tem seus determinantes aferrados
Entende-se que este pensamento sintetiza o debate
que se propôs produzir nesta revisão crítica.
nas identificações e pertencimentos de classe (o corporativismo assenta-se nessa premissa). Para a autora,
o não-ocultamento dos conflitos e contradições será
CONSIDERAÇÕES FINAIS
possível a partir do tratamento dialético dessas questões:
“o aparecimento do novo e a explicitação das contradições conduzirá a saltos qualitativos que processarão
mudanças reais nos serviços” (2008, p. 16).
Pode-se considerar como uma característica da
assistência em saúde mental no Brasil, o emprego da
Sobre as contradições presentes nas relações esta-
técnica ter se tornado essencial no acolhimento e na
belecidas nos serviços, apoiando-se em Basaglia (1985),
abordagem das especificidades, o que determinou o
Hirdes (2008) chama atenção para o fato presente, em
surgimento de diferentes tendências na orientação das
que os discursos sobre a prática não condizem com a
práticas desenvolvidas nos serviços designados como
prática que é desenvolvida. Aqui, tomamos a noção de
substitutivos. As práticas norteadas pelo paradigma da
fetichismo desenvolvida por Marx (apud Neto; Braz,
atenção psicossocial tem se constituído fértil campo para
2006), ou seja, o produto da prática é resultado da
o desenvolvimento teórico e epistemológico. Contudo,
relação fantasmagórica entre coisas, à qual é atribuída
recorrendo à contribuição de Bisneto (2001), apontam-
a relação social decorrente da divisão do trabalho.
se as dificuldades na interlocução dos profissionais que
Profissionais afetados por essa crença tomam por
compõem equipes multidisciplinares nos serviços assis-
certo o poder autônomo do produto destas práticas,
tenciais, geradas pela adoção de diferentes vertentes teó-
já que o discurso sobre elas está crivado pelo ‘poder’
ricas e que repercutem no estabelecimento de barreiras
do suposto saber.
para a construção da interdisciplinaridade. Sendo assim,
Hirdes (2008) conclui sua análise indicando que
as concepções positivistas ou sistêmicas, as diversas teo-
o método crítico dialético permite a superação de rea-
rias psicodinâmicas e o materialismo histórico ancorado
lidades a partir da explicitação das contradições, cujo
na tradição marxista têm representado o isolamento e a
enfrentamento levará à práxis transformadora, possibili-
descontinuidade das ações, decorrendo em dificuldades
tando o olhar crítico sobre as práticas que se sustentam
na troca e complementaridade dos saberes.
nos discursos produzidos pela reforma psiquiátrica. O
No campo das Ciências Sociais, a teoria crítica, nas
resultado do agir que se pautar por esses princípios,
últimas décadas, tem sido detratada, situação apontada
poderá representar:
por alguns autores7 como consequência dos aconteci-
7
Neto e Braz (2003); Antunes (1999); Evangelista (1992).
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
mentos históricos, representados principalmente pela
sistema econômico que se nutrem de exclusão” (p. 11),
derrocada do regime soviético, a queda do muro de Ber-
manifestando-se também na obstaculização do pensa-
lim, a globalização da economia com o fortalecimento
mento crítico.
das crenças liberais, gerando a descrença no socialismo
Segundo esse autor, o foco do enfrentamento das
e provocando a análise sociológica de que o capitalismo
perversidades decorrentes do crescimento econômico
foi vitorioso. A crise atual da sociedade moderna atinge
deve ser a remodelagem do Estado para que haja a
todos os regimes e decorre, no desenvolvimento das re-
distribuição equitativa de todos os benefícios gerados
lações capitalistas burguesas – entre os homens e destes
e acumulados pelo desenvolvimento capitalista. É
com a natureza –, da prevalência da razão instrumental
importante que a “diversidade das inspirações e das
sobre a razão emancipatória (Soto, 2004).
ações de intervenção na realidade problemática” (p.
Um fato importante, que particulariza esse mo-
9) – que busca um novo ordenamento do Estado para
mento histórico, é o papel que a sociedade civil organiza-
que toda a sociedade seja beneficiária dos acúmulos
da vem desempenhando nas suas relações com o Estado.
resultantes das relações capitalista, não somente da
As investidas neoliberais tiveram como alvo principal
renda – seja aceita. Porém, deve-se reconhecer, as
a despolitização das lutas sociais, com a incorporação
políticas sociais compensatórias como alternativas
dos movimentos sociais, causando a institucionalização
para atenuar as condições de pobreza, apesar de ne-
e a instrumentalização destes que passaram a funcionar
cessárias, legitimam a exclusão pelas suas formas de
numa relação de dependência do Estado, alterando-se
inclusão, muitas vezes degradada, por não constitu-
a natureza dos conflitos sociais.
írem “legítima apropriação social dos resultados da
Em geral, o caminho que os movimentos sociais
economia” (p. 14).
da saúde mental tomaram não os diferencia dessa reali-
No trabalho comunitário, as ações devem levar
dade, e sua transformação em Ongs tem determinado,
em conta a necessária construção da consciência social,
neste ponto de vista, a perda da perspectiva crítica com
a partir da reflexão crítica que demova classificações de
relação à totalidade social na qual se inserem. Esses or-
grupos e pessoas como excluídos e incluídos, posição
ganismos compõem o terceiro setor, cujo crescimento
política que impede a compreensão da sociedade “como
constitui resposta às demandas sociais, promovendo a
totalidade contraditória e crítica, como processo social e
refilantropização e assistencialização das políticas sociais.
histórico”. O que se persegue, na posição crítica, “não é
A organização dos movimentos, para tornar possível a
o já dado a alguns e não a outros” (p. 12). A práxis social
superação da condição de pobreza e privação do acesso
deve gerar a crença numa outra realidade possível,
a bens e serviços, depende de que seja comum o interesse pela superação da ordem capitalista. Com base
o que ainda não é mas está anunciado nas
em Martins (2002), defende-se aqui a hipótese de que
próprias condições sociais que os seres humanos
o motivo da luta deve ser o desenvolvimento anômalo
foram capazes de construir até aqui, no esforço
da sociedade capitalista, que tende a excluir cada vez
de todos e não de alguns. Esse possível só o é, por
mais pessoas, aprofundando desigualdades e pobreza.
sua vez, se mediado pela consciência social crítica,
Os movimentos sociais não podem se recusar a reconhe-
pelo conhecimento crítico – pela crítica que revê
cer a “competência integradora e até patologicamente
continuamente certezas e verdades, suas condi-
includente, aliciadora, dos processos econômicos e do
ções, suas limitações, seus bloqueios, sobretudo os
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Uma revisão sobre a compreensão da realidade expressa na assistência em saúde mental segundo a teoria social crítica
bloqueios dos que se crêem isentos de limites de
R E F E R Ê N C I A S
compreensão. (Martins, 2002, p. 12).
O autor destaca a concepção limitada que, por sua
vez, limita o horizonte das conquistas possíveis, impede
a organização necessária das identidades dispersas e diluídas na figura dos excluídos. A ausência da consciência
de pertencimento a uma classe mantém as ações presas
às análises sociais cuja consciência política identificase com uma realidade social diversificada, fetichizada
pela apologia dos comportamentos individualistas, que
marcha de par com o consumismo das mercadorias
‘personalizadas’ da era da produção toyotista.
Segundo Lefebvre (2001), as elaborações teóricas
de Marx permitem o conhecimento e a revolução,
pois conduzem ao saber crítico e ao mesmo tempo
concreto da sociedade. O método permite desvendar o
real encoberto pelos aparelhos da burguesia, o mundo
fetichizado da mercadoria. Há uma lógica neste mundo
que é descoberta pelo discurso teórico marxista. Tratase de apreender o mundo vivido “que há sob os olhos”
(p. 135), por meio das relações sociais estabelecidas.
O pensamento de Marx é conhecimento e revolução
teórica, um saber crítico e concreto. Crítico porque ele
desvenda os fundamentos e a formação que o compõem
e concreto porque ele se expressa numa abstração daquilo que é real. Mas ele não é o real descrito, é o real
nas suas relações que não são evidentes nas coisas que
retratam tais relações. As relações sociais na sociedade
capitalista têm a aparência de relação entre coisas. O real
não se dá a conhecer sem indagação sobre ele. Somente
o conhecimento que desvenda a aparência é capaz de
identificar a relação entre as diferentes formas que são
coisas, mercadorias e objetos de consumo.
A articulação dessas análises permite a compreensão crítica do funcionamento da sociedade capitalista e
seu modo de produção, alcançada só no final do percurso
metodológico como totalidade apreendida.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010
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Recebido: Agosto/2009
Aceito: Fevereiro/2010
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 365-383, abr./jun. 2010
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384
ARTIGO ORIGINAL
/
ORIGINAL ARTICLE
Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde
Education of Dentistry and the National Health System
Gustavo Nicolini Fernandes1
Newton Cesar Balzan2
Maria Alice Amorim Garcia3
Professor-assistente da Faculdade de
Odontologia da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (PUCCampinas); Cirurgião-Dentista; Mestre
em Educação/Ensino Superior pela
PUC-Campinas.
[email protected]
1
RESUMO O objetivo deste trabalho foi analisar as características no Curso de
Graduação em Odontologia que são importantes para a formação do cirurgiãodentista visando à sua atuação no Sistema Único de Saúde (SUS). Para tanto,
realizou-se uma pesquisa descritiva, na qual foram utilizados questionários e
entrevistas como procedimentos de coleta de dados. Os resultados apontam a
Professor do Programa de PósGraduação em Educação da PUCCampinas; Pós-Doutorado pela
Universidade de Boston.
[email protected]
necessidade de alguns elementos na formação do cirurgião-dentista para atingir este
Professora Titular da Faculdade de
Medicina da PUC-campinas; Médica
Sanitarista; Doutora em Saúde
Coletiva pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
[email protected]
estudo revela a complexidade do desafio imposto às Universidades pela mudança
2
3
fim. Dentre eles, pode-se citar a diversificação dos cenários de ensino/aprendizagem
e as relações teoria/prática, ensino/trabalho e realidade social, bem como a
construção de sujeitos da aprendizagem no processo de formação profissional. O
no processo de formação de cirurgiões-dentistas.
PALAVRAS-CHAVE: Odontólogos; Ensino Superior; Sistema Único de
Saúde; Ensino-aprendizagem.
ABSTRACT The objective of this paper was to analyze the important
characteristics of Dentistry graduation course aiming at a better performance
of these professionals in the National Health System (SUS). In order to do that,
a descriptive research using questionnaires and interviews was carried out as
procedure to collect data. Based on the data analysis, the need of some elements
in the dentist’s graduation aiming their performance in the National Health
System (SUS) was verified. Some of the points observed are the diversification
of the contexts of education/learning and the theory/practice, education/work
relations and social reality, as well as the formation of people submitted to learning
process along professional graduation. The study shows the complexity of the goal
of changing the education process of dentists imposed to the Universities.
KEYWORDS: Dentists; Education, higher; Single Health System; Educationlearning.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010
FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A.
I N T R O D U ç ão
•
Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde
sintoma da sociedade da exclusão e da barbárie. (Moysés,
2004, p. 35).
Segundo, porque:
Atualmente, vivenciamos um modelo de formação
e prática odontológica em complexa transição, como a
O modelo ainda dominante, sob a lógica da
de uma Odontologia de mercado de natureza liberal e
competência técnica para o mercado privado e
privada (típica das duas últimas décadas do século 20)
para ação ‘curadora’, não produz sujeitos polí-
para uma Odontologia sujeita às oscilações da oferta
ticos capazes de protagonizar novas aberturas
de emprego e renda em um mercado extremamente
para a sociedade e para a profissão. (Moysés,
competitivo (Moysés, 2004).
2004, p. 35).
Ao considerarmos esse cenário e, principalmente, a
população sem acesso ou com acesso restrito aos serviços
E, finalmente, porque:
odontológicos (IBGE, 2003; Brasil, 2003), o quadro
epidemiológico geral (Brasil, 2004) e o momento de
O SUS tem pressa para mudar o modelo de
transição demográfica e epidemiológica em saúde bucal
atenção dominante, ou seja, um projeto que
(Moysés, 2004), verifica-se a necessidade de mudanças
seja distinto do modelo biomédico hegemônico
na formação e na prática odontológica brasileira.
e não pode continuar consumindo recursos no
Nesse sentido, as instituições formadoras devem
esforço de ‘(des)construção’ de perfis profissionais
orientar suas respectivas missões institucionais à efetiva
inadequados, por meio de cursos de capacitação
implantação e desenvolvimento do Sistema Único Brasi-
que visam fornecer o que as graduações não
leiro (SUS) – imprescindível para a alteração em abran-
oferecem. (Moysés, 2004, p. 35).
gência e profundidade do nosso perfil epidemiológico – e
dotar a sociedade de recursos humanos adequados às suas
Nessa perspectiva, um dos elementos críticos e de
necessidades, atendendo às exigências da Constituição
absoluta importância ou relevância na agenda de mu-
Federal (Brasil, 1988; Narvai, 2003).
danças para a construção do SUS tem sido a inadequação
Moysés (2004) aponta três motivos para a formação de recursos humanos para o SUS. Primeiro, porque o
da formação de seus profissionais perante as necessidades
sociais de saúde e as necessidades do sistema público.
modelo que alimentou o ensino e a prática para gerações
A formação na área da saúde, no século 20, foi mar-
de dentistas/professores até meados de 1990 caminha
cada pelo ensino centrado na clínica, nos procedimentos
para um rápido esgotamento:
técnicos, na transmissão vertical professor-estudante e
São milhares de profissionais da nova geração viven-
centrada no modelo médico-hegemônico. O ensino
do o efeito arrasador da ocupação precária, que favorece
odontológico, inspirado pelo modelo biomédico flex-
uma crescente ‘canibalização’ profissional, fora mesmo dos
neriano, caracterizou-se por ser prioritariamente clínico,
regramentos de mercado (por exemplo, com graves desvios
tecnicista e biologicista, estimulando a prática curativista
de ética corporativa). Do ponto de vista da ética maior, de
e individualista, com ênfase na especialização (Amorim,
inclusão social e sanitária, são milhões de brasileiros sem
2002; Brasil, 2003).
respostas aos seus problemas de saúde bucal. A mutilação
Por essa razão e considerando as novas Diretrizes
bucal ou a falta de acesso a serviços de qualidade é um
Curriculares Nacionais, as mudanças por ocorrer cor-
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386
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Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde
respondem à preocupação com a consolidação do SUS
A partir dessas considerações, este estudo teve
e também ao esforço intelectual de romper definitiva-
como objetivo principal analisar as características no
mente com o paradigma biologicista e medicalizante,
Curso de Graduação em Odontologia que são impor-
hospitalocêntrico e procedimento-centrado, atendendo
tantes na formação do cirurgião-dentista visando à sua
aos novos desafios da contemporaneidade na produção
atuação no SUS.
de conhecimentos e na produção das profissões (Brasil,
2002; Brasil, 2003).
O movimento de mudanças na educação dos
METODOLOGIA
profissionais de saúde, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e os princípios do SUS colocam como
perspectiva a existência de instituições formadoras
Este estudo constitui uma pesquisa descritiva, na
com relevância social. Isso significa escolas capazes
qual foram utilizados questionários e entrevistas como
de formar profissionais qualificados e sintonizados
procedimentos de coleta de dados. Trata-se de uma
com as necessidades de saúde; escolas comprometi-
pesquisa quantitativa e qualitativa, uma vez que foram
das com a construção do SUS, capazes de produzir
usados dados quantitativos tabulados e submetidos à
conhecimento relevante para a realidade da saúde
análise comparativa, e dados qualitativos originários
em suas diferentes áreas, ativas, participantes do
das questões abertas dos questionários e das entrevistas
processo de educação permanente dos profissionais
realizadas.
de saúde e prestadoras de serviços relevantes e de boa
qualidade.
Por opção metodológica, a população deste estudo
foi constituída por: a) cirurgiões-dentistas formados
Nesse contexto, discute-se o papel dos cursos
pela PUC-Campinas, que exercem suas atividades em
de Odontologia na formação de profissionais para
setor público na Região Metropolitana de Campinas
atender às necessidades de saúde bucal da população
(RMC) e, b) profissionais com experiência na formação
brasileira.
de cirurgião-dentista e no SUS (Fernandes, 2004).
No estágio atual, embora o SUS constitua um
Após a definição dos objetivos do estudo, foi
significativo mercado de trabalho para os profissionais
estabelecido como prioridade identificar o número de
de Odontologia, este fato ainda não tem sido suficiente
cirurgiões-dentistas formados pela PUC-Campinas que
para produzir o impacto esperado sobre o ensino de
exercem função em setor público na RMC. Nos 19 mu-
graduação (Morita; Kriger, 2004).
nicípios pertencentes à RMC, 677 cirurgiões-dentistas
Acompanhando as transformações da sociedade,
a formação do cirurgião-dentista pressupõe a revisão
trabalham no SUS, sendo que 209 são formados pela
PUC-Campinas, representando 31% do total.
dos projetos pedagógicos dos cursos de odontologia
Optamos pela aplicação do instrumento a todos os
não apenas através da reorganização dos elementos
sujeitos do universo estudado, com a intenção de possi-
formais distribuídos em semestres e disciplinas na grade
bilitar uma maior extensão acerca das percepções de vida
curricular, mas também contemplando a integralização
e de trabalho, uma vez que o meio pesquisado, por ser
do ensino-aprendizagem e a definição de um projeto
amplo, apresentava uma configuração diversificada.
pedagógico que capacite os egressos como agentes de
mudança dessa mesma sociedade.
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Para evitar possíveis falhas na redação do questionário e na compreensão das questões que o compõem,
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•
Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde
bem como verificar o tempo médio gasto para se respon-
semiestruturada ocorreu a fim de possibilitar aos parti-
der, o questionário foi pré-testado. O questionário sofreu
cipantes a exposição livre e espontânea de ideias sobre
algumas alterações para uma melhor adequação quanto
o tema proposto e narrativa de sua vivência na área.
à compreensão de duas questões, não sendo necessário
Além disso, a entrevista foi eleita como instrumento
um novo teste, pois as modificações não alteraram sig-
por permitir o esclarecimento adicional de informações
nificativamente o instrumento de pesquisa.
que estivessem sendo prestadas, e ainda por possibilitar
Em outro momento, com a finalidade de complementar a análise qualitativa e a discussão dos objetivos
a admissão de correções e ajustes que o tornassem eficaz
na obtenção dos dados esperados.
do estudo, foram realizadas entrevistas junto a cinco
Todas as entrevistas foram gravadas com aparelho
profissionais com experiência no SUS e ligados direta
de fita K7, após permissão prévia dos entrevistados. A
ou indiretamente ao ensino odontológico.
utilização desse acessório permitiu maior rigor quanto
Para realizarmos as entrevistas, optamos por uma
seleção intencional dos sujeitos participantes. Verificou-
às informações coletadas, bem como a possibilidade de
mantê-las arquivadas.
se, junto a alguns profissionais da área, a indicação de
O projeto de pesquisa e o termo de consentimento
alguns nomes que pudessem compor a amostra dentro
livre e esclarecido foram submetidos à análise e aprova-
do perfil desejado, respeitando-se a definição de alguns
dos pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Uni-
requisitos para sua inclusão: ser cirurgião-dentista; exer-
versidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).
cer atividade vinculada à formação de cirurgião-dentista;
exercer atividade vinculada ao SUS; ser estudioso de
formação e prática profissional do cirurgião-dentista
RESULTADOS E DISCUSSÃO
no SUS; estar ciente dos objetivos desta pesquisa e
ter concordado, espontaneamente, em participar da
Do total de 209 questionários enviados, 94 retor-
entrevista.
As entrevistas foram do tipo semiestruturadas, com
naram, o que significa que aproximadamente 45% do
a intenção de obter determinados elementos importantes
total dos questionários puderam ser objeto do trata-
para o estudo em questão. A priorização por entrevista
mento pretendido.
Dos questionários respondidos, 24 compunham
Tabela 1 – Faixa etária dos cirurgiões-dentistas
uma amostra de sujeitos do sexo masculino e 70 do sexo
formados pela PUC-Campinas que responderam ao
feminino. A faixa etária da população de estudo variou
questionário, 2003
entre 35 e 50 anos (Tabela 1).
Dos sujeitos aos quais foram aplicados questio-
Faixa etária
n
%
Menos de 25 anos
1
1,06
nários, representando a parcela mais significativa, 42 e
Mais de 25 a 30 anos
14
14,89
34% são formados nas décadas de 1980 e 1990, respec-
Mais de 30 a 35 anos
21
22,34
tivamente (Tabela 2).
Mais de 35 a 40 anos
25
26,59
A análise consistiu primeiramente na leitura exaus-
Mais de 40 a 50 anos
25
26,59
tiva do material relativo às entrevistas e às perguntas
Mais de 50 anos
8
8,51
abertas do questionário para orientação na delimitação
Total
94
100
do contexto de análise.
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A análise realizou-se a partir da técnica de ‘análise
Tabela 2 – Época de conclusão do Curso de gradua-
de conteúdo’ (Bardin, 1977), da qual se extraiu a temá-
ção em Odontologia na PUC-Campinas dos sujeitos
tica e emergiram as principais categorias. Em seguida,
aos quais foram aplicados os questionários, 2003
procedeu-se ao recorte e agrupamento de unidades de
Época de conclusão
n
%
significado, formando o conjunto de subcategorias
Década de 1950
2
2,1
específicas de cada temática.
Década de 1960
3
3,2
A seguir, será apresentado o conjunto de categorias
Década de 1970
15
16
e subcategorias de forma a possibilitar a discussão sobre
Década de 1980
39
41,5
Década de 1990
32
34
Década de 2000
3
3,2
Total
94
100
o ensino de Odontologia.
É importante ressaltar que, nos casos em que os
sujeitos foram entrevistados, observações como ‘Entrevistado’ serão feitas ao final das citações. As citações
referentes às respostas obtidas através de questionários
Fonte: Fernandes, 2004.
serão destacadas como ‘Respondente’.
morais e éticos orientadores de condutas individuais e
coletivas (Rede Unida, 2000b).
Características da formação importantes para a
Quanto às relações desenvolvidas nesses cenários, são
atuação no SUS
estabelecidas, além da docente-discente, aquelas entre os
Cenários de ensino/aprendizagem
usuários e a equipe de trabalho. Quanto aos conteúdos,
A partir da análise realizada, verifica-se como im-
integram-se os de caráter técnico-informativos às questões
portante aspecto na formação de cirurgiões-dentistas
informativas éticas, morais, psicológicas, ligadas às relações
para a atuação no SUS a diversificação dos cenários de
sociais estabelecidas nesses cenários (Garcia, 2001).
ensino/aprendizagem.
Cenários de aprendizagem é um conceito
Relação teoria/prática
amplo, que diz respeito não somente ao local
Quando se discute a valorização dos cenários, é
onde se realizam as práticas, mas também
importante destacar o papel da prática no processo de
aos sujeitos nelas envolvidos, à natureza e
ensino/aprendizagem.
conteúdo do que se faz, etc. (Rede Unida,
2000b, p. 40).
Tal processo em serviços de saúde apresenta aspectos muito diferenciados dos efetuados em sala de aula.
Ou seja, ao se deparar com problemas da população ou
Assim sendo, cenários de ensino/aprendizagem
de determinada sociedade, o estudante tem a oportu-
envolvem alternativas pedagógicas que favoreçam a
nidade de experimentar, de responder e analisar critica-
articulação entre teoria e prática, ensino e processo de
mente as soluções. Essa necessidade de dar respostas aos
trabalho, o deslocamento do sujeito e do objeto do en-
problemas seria o fio condutor da busca e construção
sino, a priorização de situações reais de aprendizagem,
do conhecimento.
bem como a utilização de tecnologias e habilidades
Conduzida dessa maneira, a diversificação de cená-
cognitivas e psicomotoras, e a valorização dos preceitos
rios possibilita a criação de espaços coletivos de reflexão
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Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde
e ação, o que propicia aos atores envolvidos no processo
estudante no cotidiano dos serviços de saúde e na vida
– estudantes, professores e comunidade – a retomada da
das comunidades antecipa suas relações profissionais,
iniciativa sobre sua vida e sua constituição como sujeitos
suas vivências, além de proporcionar o aprendizado
capazes de proposição e ação transformadora, objetivo
necessário em futuros locais de trabalho.
final de todo conhecimento (Rede Unida, 2000b).
Ao analisar as atividades desenvolvidas atualmente
pelo cirurgião-dentista no SUS, nota-se a diversificação do
A aproximação ao cotidiano pode permitir
trabalho desde as atividades desenvolvidas até as relações
tornar a educação significativa. Pela vivência
profissionais nos serviços de saúde (Fernandes, 2004).
de situações, objetiva-se conjugar o processo
Ao buscar uma solução para os problemas identi-
indutivo de conhecimento, parco em genera-
ficados, o cirurgião-dentista utiliza-se de todo tipo de
lizações, ao processo dedutivo, mediado por
tecnologias disponíveis em saúde (Merhy, 2002a) e
conceitos sistematizados em sistemas explicativos
sua atuação profissional tende para o multiprofissional
globais, organizados numa lógica socialmen-
e intersetorial (Fernandes, 2004).
te construída e reconhecida como legítima.
Desta forma, os cursos de graduação, na maioria
Procura-se também, pelo cotidiano, possibili-
das vezes, se limitam a atividades que contemplam uma
tar o questionamento das práticas sociais e a
pequena parcela desse ‘arsenal tecnológico’ e do contexto
instrumentalização para o conhecer e o agir.
de trabalho.
(Garcia, 2001, p. 90).
Em pesquisa realizada por Unfer (2000), observou-se que a formação na graduação caracteriza-se
Portanto, o processo de ensino/aprendizagem nes-
principalmente pela diferença entre o que é ensinado
ses novos cenários é centrado na resolução de problemas
e o que é realizado quando se vai trabalhar no SUS.
necessariamente de natureza participativa, e tem como
Essas diferenças referem-se aos conceitos e conteúdos,
eixo central o trabalho cotidiano nos serviços de saúde,
às técnicas de trabalho e procedimentos e também aos
motivando a compreensão crítica da realidade (Rede
recursos materiais de trabalho (Unfer, 2000).
Unida, 2000b).
Geralmente, o estudante de graduação está pre-
Ao questionar sobre o que deve ser melhorado ou
parado para atuar em um sistema controlado por casos
ampliado na formação para o SUS, obtivemos respostas
clínicos selecionados, materiais de última geração, pro-
do tipo:
cedimentos ideais para cada necessidade do paciente e
um turno inteiro para se dedicar a um paciente.
Devem ser ampliados trabalhos que propiciem
ao aluno participar da vida da comunidade e
[...] Faltaram estágios extramuro em centros de
entender de seus problemas, e principalmente
saúde, hospitais, etc. Deveriam ter uma clínica
levar o aluno a buscar o conhecimento das solu-
geral voltada à saúde pública, com o uso de
ções para esses problemas. (Respondente 27).
materiais e instrumentais disponíveis em serviço
público. Acredito que precisaria aumentar a
Relação ensino/trabalho
Outra questão importante sobre a diversificação
dos cenários de ensino/aprendizagem é que inserir o
carga horária da odontologia social sem diminuir a carga horária das outras especialidades.
(Respondente 8).
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A literatura que aborda o tema e a resposta dos su-
Não há o que substitua o contato humano, a vivên-
jeitos sugerem que, além de proporcionar o aprendizado
cia e o compartilhamento dos problemas, a solidarieda-
necessário em serviços de saúde, a inserção antecipada do
de, a construção de vínculos pessoais, a apropriação da
estudante no meio possibilita uma experiência importante
realidade que as experiências práticas propiciam.
para a sua formação e para a escolha profissional futura.
Deve-se valorizar significativamente esse aprendizado
desde o início do curso, realizado nos mais variados espaços
[...] Eu sinto que isso é real também quando
de ensino/aprendizagem. Considera-se que a oportunidade
eles criam preconceitos ou percepções só por ouvir
de trabalhar em todo tipo de cenário da ‘vida real’ onde
dizer como é o serviço público, mas sem nunca
se produz saúde (espaços comunitários, escolas, creches,
terem passado por uma experiência real de está-
equipes de saúde da família, unidades básicas de saúde,
gio comunitário [...]. (Entrevistado 4).
ambulatórios, hospitais gerais, hospitais de ensino) é de
fundamental importância (Feuerwerker, 2002).
Eu entendo que é muito importante do ponto de
vista do processo de formação que você trabalhe
Esses outros espaços de aprendizagem além dos
universitários
também características da mesma forma que
você faz preparando o profissional para o setor
possibilitam aos estudantes integrar-se à lógica
privado você também trabalhe preparando para
de prestação de serviços, da atenção à saúde
o serviço público. (Entrevistado 1).
das pessoas e das comunidades, tomando por
base problemas e situações reais (UEL apud
O SUS tem que deixar de ser apenas um presta-
Feuerwerker, 2002).
dor de serviço, principalmente na Odontologia
[...]. O SUS tem que ser uma instância, um
Os cirurgiões-dentistas que trabalham no SUS,
órgão de formação profissional; ele tem que ser
participantes da pesquisa de Unfer (2000), sugerem
uma escola de pessoas, uma escola de profissio-
aos estudantes de graduação a busca por experiências
nais [...] (Entrevistado 1).
fora das clínicas do curso, levando em consideração
o contexto social, cultural e psicológico da população
[...] as experiências que a gente tem com alguns
cursos de graduação que fazem parte de seus currículos algum tipo de estágio curricular dentro
atendida no setor público.
Ainda nessa perspectiva, Pessoti (apud Unfer,
2001, p. 50), acrescenta que:
do SUS você já forma profissionais diferenciados
(Entrevistado 3).
[...] a formação acadêmica é dirigida para um
paciente padrão, um paciente teórico, virtual, e
Realidade social
que o profissional é preparado para tratar um
Um dos objetivos fundamentais da diversificação
corpo humano, não um homem. E o médico se
de cenários é fazer com que o processo ensino/aprendi-
defronta, na realidade, com um homem que tem
zagem ocorra na realidade social dos serviços de saúde
um corpo que sofre, e este corpo está reagindo
e da comunidade, e seja construído ativamente a partir
fisiologicamente a toda uma gama de influências
dos problemas identificados (Rede Unida, 2000b).
concretas do tipo emocional, cultural e moral.
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FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A.
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Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde
Integrando o ensino aos serviços de saúde, a Uni-
latorial, mas também indo para um hospital
versidade pode participar dos processos de mudança que
de pronto-socorro atender o trauma, atender
a sociedade demanda ao inserir-se na prática social da
pulpite, quem tem dor, indo para ambulatórios
saúde, proporcionando condições para que o processo
de especialidades [...] acho que isso é uma visão
de ensino/aprendizagem se desenvolva em bases reais.
mais ampliada do que é o Sistema Único de
Saúde e do que ele precisa. (Entrevistado 4).
[...] eu comecei a me preocupar muito com isso,
com os cenários de aprendizagem, que fossem
Em reunião realizada em 2003, a Comissão de
cenários realistas, que fossem cenários em que a
Ensino da Abeno definiu o estágio supervisionado
vivência e a experiência se desse in loco [...]. Eu
como:
critico isso desde os fundamentos de um curso de
Odontologia ou Medicina lá das ciências básicas,
Instrumento de integração e conhecimento do
ou até das disciplinas pré-clínicas, em que, por
aluno com a realidade social e econômica de sua
exemplo, você gasta muito tempo com mane-
região e do trabalho de sua área. Ele deve, tam-
quins, sendo que tem uma sociedade inteira
bém, ser entendido como o atendimento integral
precisando de atividades de promoção e preven-
ao paciente que o aluno de Odontologia presta à
ção, e só vai receber tardiamente [...]. O aluno
comunidade, intra e extra muros. O aluno pode
depois faz isso de forma viciada, como se estivesse
cumpri-lo em atendimentos multidisciplinares
trabalhando com manequins vivos quando entra
e em serviços assistenciais públicos e privados.
em contato com a população real, seres humanos
(Abeno, 2004, p. 1).
de carne e osso. (Entrevistado 4).
Dentre os cenários, a comissão sugere: a Rede de
A diversificação de cenários de ensino/aprendizagem é, ao mesmo tempo, uma estratégia para induzir
Serviços Públicos, o Programa de Saúde da Família,
Internato Rural, Estágio Metropolitano etc.
mudanças mais profundas no processo de formação
Além disso, formar profissionais de saúde com visão
profissional e um elemento em si mesmo constitutivo
integral da realidade social, dos problemas e também dos
de uma nova maneira de pensar a formação profissional
indivíduos contribui para evitar a especialização precoce.
(Feuerwerker, 2002).
Atuando diretamente nos serviços de saúde,
contribui-se também para que os estudantes tenham
[...] a gente tem que começar a rever o projeto
a oportunidade de perceber como são dinâmicas as
pedagógico, a montagem de um currículo, a
relações de poder, e como elas se estabelecem, seja na
carga horária destinada para essas atividades,
sociedade civil, seja no interior dos serviços de saúde.
para que os cenários de aprendizagem, além
Isso permite que desenvolvam uma interpretação crítica
de continuarem ocorrendo intracampus, nos
do sistema de saúde e tenham elementos para pautar
laboratórios, nas clínicas e etc., também se dê
sua atuação de forma sistemática, realizando a análise
onde? [...] No programa de saúde da família,
situacional da realidade, o planejamento das atividades
acompanhando uma equipe multiprofissional,
a serem desenvolvidas, de gerenciamento e avaliação
numa visita domiciliar, atendimento ambu-
(Rede Unida, 2000b).
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Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde
[...] Senti que um entrosamento melhor entre
facilitada pelo professor, agora criador de con-
a faculdade e o serviço público traria grande
dições para que o estudante adquira liberdade
avanço no entendimento da realidade dos
com responsabilidade. Por sua vez, o professor
problemas odontológicos da população para os
é sujeito no processo de construção da proposta
alunos. Prepará-los melhor para a realidade
pedagógica e da prática profissional, assim
seria uma boa meta para a graduação. (Res-
como os pacientes/comunidade são sujeitos da
pondente 56).
construção de sua saúde. (Rede Unida, 2000c,
p. 95).
A construção de sujeitos da aprendizagem no processo
de formação profissional
Ser sujeito da aprendizagem significa que a pessoa
aprende por si só e ativamente, buscando os conheci-
Outra característica relativa ao ensino que foi
mentos necessários para encontrar a resposta para uma
importante na formação do profissional para o trabalho
pergunta, um problema, uma situação. Nessa concepção,
realizado no SUS, segundo as respostas dos entrevis-
o estudante aprende a partir da resolução de problemas,
tados, é a construção de sujeitos da aprendizagem no
da realidade concreta dos fatos. Assim, ocorre uma
processo de formação profissional.
integração dinâmica da teoria à prática, a partir do
A construção do conhecimento deve ocorrer a
partir da problematização da realidade, da articulação
processo de ação-reflexão-ação (Feuerwerker, 2002;
Rede Unida, 2000c).
teoria-prática, da interdisciplinaridade e, consequentemente, da participação ativa do estudante no processo
[...] Acho importante a graduação ter como
de ensino-aprendizagem (Rede Unida, 2000a).
referência a formação do aluno crítico em
Há reconhecimento geral de que o carro-chefe do
relação ao contexto sócio-econômico-cultural.
processo de aprendizagem do adulto é o enfrentamento
Isso possibilitará o aluno de realizar tarefas
de desafios e problemas. Nesse sentido, deve-se buscar,
como planejar e executar ações, reavaliando-as.
ao invés da transmissão, a construção do conhecimento e
(Respondente 17).
adoção de metodologias ativas de ensino/aprendizagem.
Nesse sentido, a utilização de metodologias ativas
Outro elemento importante para pensar o pro-
pressupõe uma formação universitária que proponha
cesso de construção de sujeitos da aprendizagem na
concretamente desafios a serem superados pelos estu-
formação de profissionais é uma consequência da
dantes, que lhes possibilitem ocupar o lugar de sujeitos
velocidade vertiginosa com que se produzem e disponi-
na construção do conhecimento (com visão crítica,
bilizam conhecimentos e tecnologias no mundo atual.
capacidade de ação e de proposição) e que coloquem o
Os conhecimentos, habilidades e atitudes exigidas do
professor como facilitador e orientador desse processo.
profissional modificam-se rapidamente; por isso, perde
ainda mais força e sentido a ênfase na transmissão do
A aprendizagem é interpretada como um ca-
conhecimento.
minho que possibilita ao sujeito transformar-se
Aprender a aprender constitui, então, um dos
e transformar seu contexto. Por isso, o aluno
objetivos fundamentais de aprendizagem do curso de
tem se tornado sujeito da aprendizagem, que é
graduação.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010
FERNANDES, G.N.; BALZAN, N.C.; GARCIA, M.A.A.
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Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde
Esse processo envolve o desenvolvimento de ha-
Isto é, a prática se torna elemento fundamental
bilidades de busca, seleção e avaliação crítica do conhe-
no processo de ensino/aprendizagem, mas não garante,
cimento que a realidade demanda, através de dados e
por si só, a aprendizagem. Dependendo da concepção
informações disponibilizados em livros, periódicos, bases
pedagógica, existe maior ou menor articulação da situ-
de dados locais, além da utilização das fontes pessoais de
ação de aprendizagem com a prática e com a produção
informação, dentre elas a experiência prévia dos próprios
do conhecimento (Feuerwerker, 2002).
estudantes (Rede Unida, 2000c).
Entretanto, a aplicação de novas metodologias de
Essa questão da velocidade com que se produz
ensino/aprendizagem não deve ser realizada de forma
conhecimento, atualmente, deve servir de base para a
isolada, como fruto de algumas iniciativas. A conside-
construção dos projetos pedagógicos dos cursos. Nesse
ração dos aspectos destacados neste capítulo impõe o
sentido, deve existir flexibilidade nos currículos, de for-
reconhecimento da importância e busca da construção
ma que possibilite mudanças dependendo dos resultados
de um projeto político-pedagógico que oriente a cons-
e acontecimentos do mundo.
trução do currículo, levando em conta a concepção
A ênfase nos conteúdos também é insustentável,
pois é impossível cobrir e atualizar tudo em tempo real.
pedagógica, de homem, de saúde, de modelo de atenção
e tudo o mais (Rede Unida, 2000c).
Sendo assim, pela necessidade de continuar aprendendo
durante toda a vida, o estudante, mais do que receber
toneladas de informações, precisa aprender o essencial
CONCLUSÕES
e, mais importante, aprender a aprender criticamente
(Rede Unida, 2000c).
Outro conceito-chave na construção da apren-
O percurso desenvolvido neste estudo permitiu
dizagem é o de ‘aprender na prática’, que pressupõe a
destacar alguns elementos importantes para a formação
inversão da sequência clássica teoria/prática na produção
do cirurgião-dentista que trabalhará no SUS.
do conhecimento e assume que esse processo ocorre de
forma dinâmica através da ação-reflexão-ação.
Formar um profissional de saúde com perfil
adequado às necessidades sociais implica propiciar
Isso é fundamental para que o processo de ensi-
capacidade de aprender a aprender, trabalhar em equi-
no/aprendizagem esteja intrinsicamente vinculado aos
pe, comunicar-se, ter agilidade frente às situações, ter
cenários reais de prática e baseado nos problemas da
capacidade crítica e propositiva. Portanto, além de se
realidade de determinada população.
valorizar a excelência técnica, é necessário enfatizar a
Na área da saúde, isso significa dizer que as ati-
relevância social das ações de saúde e do próprio ensi-
vidades práticas estejam presentes ao longo de toda
no. Isso implica a formação de profissionais capazes de
carreira e cumpram o papel de ‘disparadores’ do pro-
prestar atenção integral mais humanizada, trabalhar em
cesso de busca/construção do conhecimento (Rede
equipe e compreender melhor a realidade em que vive
Unida, 2000c).
a população (Morita; Kriger, 2004; Rede Unida,
Finalizando, dependendo da metodologia pedagó-
2000c).
gica adotada, há maiores ou menores possibilidades de
São características da formação que não combinam
o estudante desenvolver a iniciativa, o espírito crítico, o
com a formação tradicional e com a pedagogia da trans-
conhecimento da realidade e o compromisso social.
missão que predomina nas universidades. Esses desafios
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Ensino de Odontologia e o Sistema Único de Saúde
contribuem para que seja grande a pressão sobre as uni-
estudante um maior conhecimento da população que
versidades pela adoção de metodologias que favoreçam
será atendida.
o desenvolvimento do senso crítico e da capacidade de
Sendo assim, a tendência é sair de uma prática
reflexão e a participação ativa dos estudantes na cons-
profissionalizante em clínica de especialidades para
trução do conhecimento.
uma prática em clínicas integradas e atividades extra-
Além disso, os conteúdos precisam ser trabalhados
murais em unidades do SUS, com graus crescentes de
na realidade, possibilitando ao estudante a problema-
complexidade. Da mesma forma, é preciso substituir
tização daquela situação real. A mudança didático-
os serviços próprios isolados da rede SUS por serviços
pedagógica que se almeja, visa a sair do ensino centrado
próprios completamente integrados ao SUS, com desen-
no professor para atingir uma aprendizagem ativa; cabe
volvimento de mecanismos institucionais de referência
ao professor o papel de facilitador do processo de cons-
e de contrarreferência com a rede.
trução do conhecimento, caracterizando o estudante
Dessa forma, deve-se construir uma relação de par-
como o sujeito da aprendizagem. A interação ativa do
ceria entre as universidades e o setor público. Construir
estudante com a população e profissionais de saúde
essa relação pode possibilitar a produção, no bojo desse
deve ocorrer desde o início do processo de formação,
processo, de alternativas pedagógicas que favoreçam a
trabalhando com problemas reais, assumindo respon-
articulação entre teoria e prática, ensino e trabalho, bem
sabilidades crescentes.
como a adoção de enfoques interdisciplinares (Rede
Isso ainda não é o suficiente. Um projeto peda-
Unida, 2000c).
gógico que sinaliza para a transformação da realidade
deve ser construído para e com a sociedade. Os esforços devem ser voltados para a construção coletiva,
R E F E R Ê N C I A S
junto a gestores da Universidade, às Secretarias municipais, aos profissionais e trabalhadores da saúde, ao
estudante e à população. Ou seja, ao invés de se criar
um “laboratório” dentro do Centro de Saúde, por
exemplo, o estudante e o professor devem participar
do planejamento e aprender, dentro dessa lógica, com
aquilo que é real, e então a aprendizagem passará a
ser significativa.
Outra ação importante para a reflexão da Universidade parte do conceito ampliado de saúde, em que
todos os cenários onde se produz saúde são ambientes
relevantes de aprendizagem. No sentido da diversificação
dos cenários de ensino/aprendizagem, a rede de serviços
públicos passa a ser um espaço privilegiado de ensino.
Práticas de ensino também podem ser desenvolvidas
com eficácia e eficiência em Unidades Básicas de Saúde, na comunidade e nos domicílios, permitindo ao
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 384-395, abr./jun. 2010
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MEMÓRIA
/
Memory
Carlos Gentile de Mello
C
arlos Gentile de Mello foi indubitavelmente um criador. Criador de
idéias, de lógicas, de frases: as vezes, criador de casos, não rejeitava a
polêmica. Professor por excelência, atingiu a perfeição: foi um criador de
outras criaturas, que aprenderam a pensar por sua cabeça. Possuía uma espécie
de dom que o fazia se entendido por toda a gente, até mesmo por aqueles
desentendidos crônicos. Como se dominasse uma língua universal, sua palavra era acatada no plenário do Congresso Nacional, no diretório acadêmico,
na congregação, no sindicato. Sua pena parecia também estar em todos os
lugares, era encontrada na circunspecta revista técnica, mas não se negava a
prestigiar a imprensa das bancas, fosse “A Folha de São Paulo” ou “A Tribuna
de Madureira”. Com igual precisão, seu pensamento surgia na monografia
Cebes. Carlos Gentile de Mello. Revista
acadêmica ou na rápida carta que se estampava na secção própria dos jornais
Saúde em Debate, n. 17, jul. 1985. p. 6.
de cada dia. Lido ou ouvido, Gentile sabia como ninguém tornar simples
as situações mais complexas, assim como era capaz de mostrar a complexidade de formulações, a primeira vista, singelas. Confessava-se um “otimista
incorrigível”, mas via com redobrado ceticismo a possibilidade de melhores
condições sanitária para a população enquanto prevalecesse um sistema de
saúde “caótico, corruptor, incontrolável, irracional e elitista”. Especialista
em problemas de magnitude, desenvolvia com esmero o trabalho minucioso
da auditoria médica, do controle da infecção hospitalar, do inquérito epidemiológico, sempre acrescentando algo de original e inusitado. Afinal, era
um criador. Os livros e os estudos que nos legou continuam rigorosamente
atuais, até porque permanecem os mesmos problemas e os mesmos impasses.
Dias depois do 27 de outubro de 1982, em uma formatura de sanitaristas, o
filho de Carlos Gentile de Mello, herdeiro do nome, da fibra e da disposição,
dizia: “O Brasil perdeu um grande homem... vocês perderam um exemplo de
profissional da medicina e sobretudo um amigo... eu perdi um Pai Magnífico”.
Nós, criaturas, continuamos ainda com a mesma sensação de orfandade.
Grafia do texto original mantida
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 396-396, jan./mar. 2010
RESENHA
/
CRITICAL REVIEW
Por Marina Bittencourt 1
A
s instituições psiquiátricas nasceram há pouco mais de dois séculos e vêm sofrendo modificações ao longo do tempo, sendo que o
Brasil conta com transformações locais, nesse âmbito, consideradas
pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como das mais avançadas
do mundo. No livro Reforma Psiquiátrica – as experiências francesa e
italiana, de Izabel C. Friche Passos, lançado pela Fiocruz, são analisados
alguns modelos de instituição psiquiátrica. O livro, ao abordar o tema
da loucura, não se refere a uma realidade delimitada rigorosamente e de
composição interna homogênea. É uma questão não só da psiquiatria,
mas também das filosofias, artes, história universal, política etc.
Izabel Passos discorre sobre dois grandes modelos pioneiros: o francês
Passos, Izabel C. Friche. Reforma
estatizante de setor e o italiano socializante. A psicoterapia institucional
Psiquiátrica – as experiências
francesa, do Hospital La Borde, no Vale do Loire, suscitou debates relevantes
francesa e italiana. Rio de Janeiro:
sobre a nova clínica da atenção psicossocial. Já a psiquiatria democrática
Fiocruz, 2009
italiana, que teve sua origem em Trieste, com Franco Basaglia, teve desdobramentos em grande parte da Itália e em diversos lugares do mundo. A
autora discorre sobre diversos aspectos favoráveis e desfavoráveis dos modelos citados, analisando seus estabelecimentos fundadores; suas concepções
institucionais, organizacionais e também da loucura (que inspira a teoria
e a prática dos modelos e seus estabelecimentos) e características políticoeconômico-culturais dos países onde se desenvolveram os programas.
A instituição psiquiátrica, predominantemente de forma asilar, sempre sofreu controvérsias e crises sucessivas, mas essa prática institucional
continua sólida em nossa sociedade. No prefácio, Gregorio Franklin
Baremblitt afirma:
depois de analisar e sopesar cuidadosamente cada ‘modelo’, suas
realizações e suas limitações, todos os níveis de suas funções e fun-
1
Jornalista, pós-graduanda em sociologia urbana pela UERJ [email protected]
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 397-398, jan./mar. 2010
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RESENHA
/
CRITICAL REVIEW
cionamentos, a autora ‘pinça’, com um sereno e perspicaz critério
de seleção, os recursos de cada tendência que podem eventualmente
ser aproveitados para um novo modelo que seja um ‘justo meio’
da balança.
No processo brasileiro de reforma psiquiátrica, a psicoterapia institucional francesa e a psiquiatria democrática italiana foram duas importantes referências. Esse livro pode ser muito útil aos trabalhadores de
saúde mental, mostrando a história dos modelos inovadores de reforma
psiquiátrica, suas mudanças ao longo do tempo e sua situação atual.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 85, p. 397-398, jan./mar. 2010
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artigo. Os arquivos devem ser submetidos um a
tamente o conteúdo do artigo.
A folha de apresentação deve trazer o nome
um, ou seja, um arquivo para cada imagem, sem
completo do(s) autor(es) e, no rodapé, as informações
informações sobre os autores do artigo, citando
profissionais (contendo filiação institucional e titulação),
apenas a fonte do gráfico, quadro ou figura. De-
endereço, telefone e e-mail para contato. Essas infor-
vem ser numerados sequencialmente, respeitando
mações são obrigatórias. Quando o artigo for resultado
a ordem em que aparecem no texto.
de pesquisa com financiamento, citar a agência finan-
d.
os autores citados no corpo do texto deverão
ciadora e se houve conflito de interesses na concepção
estar escritos em caixa-baixa (só a primeira letra
da pesquisa.
maiúscula), observando-se a norma da ABNT
Apresentar resumo em português e inglês (abs-
NBR 10520:2002 (disponível em bibliotecas). Por
tract) ou em espanhol e inglês com, no máximo, 700
exemplo: “conforme argumentam Aciole (2003)
caracteres com espaço (aproximadamente 120 pala-
e Crevelim e Peduzzi (2005), correspondente à
vras), no qual fique clara a síntese dos propósitos, mé-
atuação do usuário nos Conselhos de Saúde...”
todos empregados e principais conclusões do trabalho.
e.
as referências bibliográficas deverão ser apresen-
Devem ser incluídos, ao final do resumo, o mínimo
tadas, no corpo do texto, entre parênteses com
de três e o máximo de cinco descritores (keywords),
o nome do autor em caixa-alta seguido do ano
utilizando, de preferência, os termos apresentados no
e, em se tratando de citação direta, da indicação
vocabu­lário estruturado (DeCS), disponíveis no ende-
da página. Por exemplo: (FLEURY-TEIXEIRA,
reço http://decs.bvs.br. Caso não sejam encontrados
2009, p. 380; COSTA, 2009, p. 443).
descritores relacionados à temática do artigo, poderão
ser indicados termos ou expressões de uso conhecido
no âmbito acadêmico.
a.
As referências bibliográficas deverão ser apresentadas
no final do artigo, observando-se a norma da ABNT NBR
Em seguida apresenta-se o artigo propriamente dito:
6023:2002 (disponível em bibliotecas), com algumas adap-
as marcações de notas de rodapé no corpo do texto
tações (abreviar o prenome dos autores). Exemplos:
deverão ser sobrescritas. Por exemplo: Reforma
Sanitária1
b.
LIVRO:
para as palavras ou trechos do texto destacados a
FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Seguridade
critério do autor, utilizar aspas simples. Por exem-
social, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2009.
em página padrão A4, com fonte Times New Roman
CAPÍTULO DE LIVRO:
FLEURY, S. Socialismo e democracia: o lugar do
tamanho 12 e espaçamento entre linhas de 1,5.
sujeito. In: FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org). Partici-
Os documentos solicitados (relacionados a se-
pação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2009.
guir) deverão ser enviados via correio, devidamente
assinados.
ARTIGO DE PERIÓDICO:
ALMEIDA-FILHO, N. A problemática teórica
Declaração de autoria e de responsabilidade
da determinação social da saúde (nota breve sobre de-
Segundo o critério de autoria do International
sigualdades em saúde como objeto de conhecimento).
Committee of Medical Journal Editors, os autores devem
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 83, set./dez.
contemplar as seguintes condições: a) contribuir subs-
2010, p. 349-370.
tancialmente para a concepção e o pla­nejamento, ou
para a análise e a interpretação dos dados; b) contribuir
significativamente na elaboração do rascunho ou revisão
MATERIAL DA INTERNET:
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE
SAÚDE [internet]. Normas para publicação da Revista
Saúde em Debate. Disponível em: <http://www.saudeemdebate.org.br/artigos/normas_publicacoes.pdf>.
crítica do conteúdo; c) participar da aprovação da versão
final do manuscrito. Para tal, é necessário que todos os
autores e coautores assinem a Declaração de Autoria e
de Responsabilidade, conforme modelo, disponível em
Acesso em: 9 jun. 2010.
http://www.saudeemdebate.org.br/artigos/index.php
Submissão
Conflitos de interesse
Os artigos devem ser submetidos exclusivamente
pelo site: www.saudeemdebate.org.br, após realizar login
fornecido junto da senha após o cadastro do autor responsável pela submissão. Todos os campos obrigatórios
devem ser devidamente preenchidos. O artigo submetido e o arquivo enviado devem ser iguais, contendo as
mesmas informações.
No corpo do texto não deve conter nenhuma
informação que possibilite identificar os autores ou instituições. Todas as informações relacionadas aos autores
Os trabalhos encaminhados para publicação deverão conter informação sobre a existência de algum tipo
de conflito de interesse entre os autores. Os conflitos
de interesse financeiros, por exemplo, não estão relacionados apenas ao financiamento direto da pesquisa,
mas também ao próprio vínculo empregatício. Caso
não haja conflito, apenas a informação “Declaro que
não houve conflito de interesses na concepção deste
trabalho” na página de rosto (folha de apresentação do
artigo) será suficiente.
devem constar apenas no arquivo submetido.
Os arquivos referentes a tabelas, gráficos e figuras
Ética em pesquisa
devem ser submetidos separadamente do arquivo com
No caso de pesquisas iniciadas após janeiro de
o texto principal e não devem conter identificações
1997 e que envolvam seres humanos nos termos do
sobre os autores.
inciso II da Resolução 196/96 do Conselho Nacional
®
O artigo deve ser digitado no programa Microsoft
de Saúde (pesquisa que, individual ou coletivamente,
Word ou compatível (salvar em formato .doc ou .docx),
envolva o ser humano de forma direta ou indireta, em
sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de
aceito para publicação; aceito para publicação (com
informações ou materiais) deverá ser encaminhado um
sugestões não-impeditivas); reapresentar para nova
documento de apro­vação da pesquisa pelo Comitê de
avaliação após efetuadas as modificações sugeridas;
Ética em Pesquisa da instituição onde o trabalho foi
recusado para publicação.
realizado. No caso de instituições que não disponham de
Caso a avaliação do parecerista solicite modifica-
um Comitê de Ética em Pesquisa, deverá ser apresentada
ções, o parecer será enviado aos autores para correção do
a aprovação pelo CEP onde ela foi aprovada.
artigo, com prazo para retorno de sete dias. Ao retornar,
o parecer volta a ser avaliado pelo parecerista, que terá
Fluxo dos originais submetidos à publicação
Todo original recebido pela secretaria do Cebes
é encaminhado ao Conselho Editorial para avaliação
da pertinência temática e observação do cumprimento
das normas gerais de encami­nhamento de originais.
Depois, é verificado pela secretaria editorial, para
confirmação de adequação às normas da revista.
Uma vez aceitos para apreciação, os originais são
encaminhados a dois membros do quadro de revisores Ad-Hoc (pareceristas) da revista. Os pareceristas
serão escolhidos de acordo com o tema do artigo e
sua expertise, priorizando-se conselheiros que não
prazo de 15 dias, prorrogável por mais 15 dias.
Caso haja divergência de pareceres, o artigo será
encaminhado a um terceiro conselheiro para desempate
(o Conselho Editorial pode, a seu critério, emitir um
terceiro parecer). No caso de solicitação de alterações no
artigo, poderão ser encaminhados em até três meses.
Ao fim desse prazo e não havendo qualquer
manifestação dos autores, o artigo será considerado
retirado.
O modelo de parecer utilizado pelo Conselho
Científico está disponível em: http://www.saudee­
mdebate.org.br
sejam do mes­mo estado da federação que os autores.
Os conselheiros têm prazo de 45 dias para emitir o
Endereço para correspondência:
parecer. Ao final do prazo, caso o parecer não tenha
Avenida Brasil, 4.036, sala 802
sido enviado, o consultor será procurado e será ava-
CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro
liada a oportunidade de encaminhamento a outro
(RJ), Brasil
conselheiro. O formulário para o parecer está dispo-
Tel.: (21) 3882-9140
nível para consulta no site da revista. Os pareceres
Fax: (21) 2260-3782
sempre apresentarão uma das seguintes conclusões:
E-mail: [email protected]
Instructions to authors – Saúde em Debate
The journal Saúde em Debate, created in 1976, is a
3. Review: articles presenting literature critical
publication by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Ce-
comments on a specific theme, presented in 10 to
bes) which is directed to the public policies of the health
15 pages.
field. Published quarterly since 2010, that is, in March,
4. Experience report: articles describing academic,
June, September and December, the journal is distributed
assistance and extension experiences, also presented in
to all associates in regular situation with Cebes.
10 to 15 pages.
Unpublished articles structured as original articles,
5. Opinion: the authorship is exclusive to persons
reviews of books of academic, politic and social mean-
invited by the journal’s scientific editor, also presented
ing, as well as statements, are accepted.
in 10 to 15 pages. In this modality, the abstract is not
The authors are entirely and exclusively responsible
required.
for the papers submitted for publication.
Total or partial reproduction of the articles is allowed under the condition of indicating the source and
the authorship.
Review
Review of books directed to the field of health
public policies will be accepted according to the editorial
The publication of the papers is conditioned to
board’s criteria. The papers must present a view of the
approval by members of the ad-hoc council, who are
content of the book, as well as its theoretical principles
selected to each issue of the journal and assess the ar-
and an idea of the public to which it is directed, being
ticles by the double-blind method, that is, the name of
presented in up to three pages.
the authors and reviewers remain confidential till the
paper is published. Eventual suggestions of structure or
content modifications by the editors will be previously
decided together with the authors via website or e-mail.
Additions or modifications will not be accepted after the
final approval for publication.
TYPES OF TEXTS ACCEPTED FOR
Documents and statements
Papers referring to historical or conjunctive
themes will be accepted according to the editorial
board’s criteria.
PUBLICATION SECTIONS
PUBLICATION
The journal is structured in the following sections:
Original Articles
1. Research: articles that present final results of
Editorial
Presentation
scientific research, presented in 10 to 15 pages. Articles
Debate articles
resulting from research involving human beings must be
Thematic articles
sent with a copy of the form by the Ethics Committee
Free articles
of the institution.
International articles
2. Essays: articles presenting critical analyses on a
Reviews
specific theme of relevance for the assemblage of health
Statements
policies in Brazil, presented in 10 to 15 pages.
Documents
For example: ‘entrance door’. Quotation marks
TEXT PRESENTATION
will be used only for direct citations.
Sequence of text presentation
c.
printing quality, in black and white or grayscale,
The papers may be written in Portuguese, Spanish
separately from the text and correctly numbered
or English.
and entitled, with indication of the value’s units
Texts in Portuguese and Spanish must present
and respective sources. The number of charts and
the title in the original language and in English. Texts
graphs should not exceed five per article. The files
in English must present the title in English and in
must be submitted one by one, that is, one file
Portuguese.
for each image, without information about the
The title, in turn, must express clearly and briefly
authors, being mentioned only the source of the
the content of the paper.
graph, chart or figure. These elements must be
The presentation page should present the com-
sequentially numbered, being respected their order
plete name of the authors and, in the footnote, their
of appearance in the text.
professional information (institutional bond and titles),
address, phone number and e-mail address for contact.
d.
capital letter), being observed the ABNT NBR
the result of financed research, the financial source must
10520:2002 patterns (available in libraries). For
be indicated, as well as the existence or not of conflict
example: “according to Aciole (2003) and Cre-
of interests during the production of the paper.
velim and Peduzzi (2005), it corresponds to the
The manuscript must present an abstract in Por-
clients’ participation in Health Councils…”
tuguese and in English or Spanish with up to 700 charthe synthesis of the purposes, methods employed and
main conclusions of the paper must be clear. In the end
of the abstract, a minimum of three and maximum of
five keywords should be included, using preferentially
the terms presented in the structured vocabulary Health
Science Descriptors (DeCS), available at http://decs.
the authors mentioned in the body of the text
must be written in small letters (only the first in
This information is obligatory. When the article depicts
acters with space (approximately 120 words), in which
charts, graphs and figures must be sent in high
e.
the bibliographical references must be presented,
in the text body, in parenthesis, being the name
of the authors fully written in capital letters followed by the year of publication and, in case of
direct citations, by the page number. For example:
(FLEURY-TEIXEIRA, 2009, p. 380; COSTA,
2009, p. 443).
bvs.br. If the keywords related to the article’s theme
are not found, other terms or expressions of common
knowledge in the field may be employed.
a.
The references must be indicated in the end of
the article, being observed the ABNT NBR 6023:2002
Next, the article itself is presented:
patterns, with some adaptations (abbreviate the author’s
the indication of footnotes in the body of the
first name). Examples:
text must be superscript. For example: Sanitary
Reform1
b.
BOOK:
as to words or passages emphasized to the author’s
FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.) Seguridade
discretion, simple quotation marks must be used.
social, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2009.
BOOK CHAPTER:
observe the following conditions: a) contribute substantially
FLEURY, S. Socialismo e democracia: o lugar do
to the conceiving and planning, or to the analysis and data
sujeito. In: FLEURY, S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Partici-
interpretation; b) contribute significantly to the elaboration
pação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2009.
of rough copy or critical review of the content; c) participate
in the approval of the manuscript’s final version. In order to
PERIODICAL ARTICLE:
ALMEIDA-FILHO, N. A problemática teórica da
determinação social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento). Saúde
do that, it is necessary that all authors and co-authors sign the
Declaration of Authorship and Responsibility, in conformity
with the model available at <http://www.saudeemdebate.
org.br/artigos/index.php>
em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 83, set./dez. 2010,
p. 349-370.
Conflicts of interest
The papers submitted for publication should contain
ON-LINE MATERIAL:
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE
[internet]. Normas para publicação da Revista Saúde em Debate. Available from: <http://www.saudeemdebate.org.br/
information about the existence or not of any kind of conflict of interests among the authors. Financial interests, for
instance, are not only related to the direct financing of the
research, but also to the employment relationship itself. If
artigos/normas_publicacoes.pdf>. Cited on: Jun 9, 2010.
there is no conflict, the following information in the pre-
Submission
no conflicts of interests with regard to this article”.
sentation page will do: “The authors declare that there are
The articles must be submitted exclusively through the
site: www.saudeemdebate.org.br, after logging in and indicating the password provided after the registration of the author
who is responsible for the submission. All required fields must
be correctly filled out. The file submitted and the file sent must
be equal, containing the very same information.
The text body should not present any information that
may allow the identification of the authors or institutions.
Information related to the authors must be indicated only
in the submitted file.
The files containing tables, graphs and figures must be
submitted apart from the file containing the main text, and
Research ethics
As to research initiated after January 1997 and involving human beings, in compliance with item II of the
Resolution 196/96 of the National Health Council (research
involving individually or collectively, directly or indirectly,
totally or partially a human being, including the handling
of information and material), a document of approval by
the Research Ethics Committee of the institution where the
study was carried out must be sent. In case of institutions
that do not dispose of an Ethics Committee, an approval
by other committee must be sent.
should not provide identification of the authors.
The article must be typed in Microsoft® Word or compatible software (save as .doc or .docx), in A4 page, Times
New Roman typeface 12 pt and 1.5 line space.
The required documents (indicated next) should be
sent by mail and properly signed.
Flow of manuscripts submitted for publication
All manuscripts received by the CEBES bureau are
conducted to the editorial board to assessment of thematic
relevance and observation of the accomplishment of the
manuscript submission general rules. Later on, the editorial bureau verifies the paper as to confirm its adequacy to
Declaration of authorship and responsibility
According to the authorship criteria by the International Committee of Medical Journal Editors, the authors must
the journal’s patterns. Once accepted for appreciation, the
manuscripts are sent to two Ad-Hoc technical reviewers of
the journal (peer-review). The reviewers are chosen accord-
ingly to the theme of the article and his/her expertise, and
If there is divergence of opinions, the article is sent to
priority is given to counselors that do not pertain to the same
a third counselor for decision (the editorial board may is-
federation state as the authors. The counselors are given a
sue a third opinion to its discretion). If other alterations are
45-day deadline to issue their opinion. If the opinion is not
requested, they may be sent in up to three months.
issued at the end of the deadline, the counselor is contacted
At the end of the deadline and not having any mani-
and the opportunity of sending the manuscript to other
festations by the authors, it will be considered as a with-
counselor is considered. The review form is available for
drawal.
consultation in the journal’s website. The opinions always
present the following conclusions: accepted for publication;
The model of opinion used by the scientific board is
available at: http://www.saudee­mdebate.org.br
accepted for publication (with non-hindering suggestions);
resubmit for new assessment after accomplishing the sug-
Mailing address:
gested modifications; refused for publication.
Avenida Brasil, 4036, room 802
If the reviewer’s assessment requires modifications, the
CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ),
opinion will be sent to the authors, so they correct the manu-
Brazil.
script within a seven-day deadline. When the manuscript is sent
Phone: (21) 3882-9140
back, the opinion is reassessed by the reviewer within a 15-day
Fax: (21) 2260-3782
deadline, which may be prorogated to another 15 days.
E-mail: [email protected]
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
Saúde em Debate
DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2009-2011)
A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral
editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2009-2011)
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Primeiro Vice-Presidente:
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EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR
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Diretor de Política Editorial:Paulo Duarte de Carvalho Amarante
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Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
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CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL
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Angel Martinez Hernaez – Universidad Rovira i Virgili (Espanha)
Carlos Botazzo – USP (SP/Brasil)
Catalina Eibenschutz – UAM-X (México)
Cornelis Johannes Van Stralen – UFMG (MG/Brasil)
Diana Mauri – Universidade de Milão (Itália)
Eduardo Maia Freese de Carvalho – CPqAM/FIOCRUZ (PE/Brasil)
Giovanni Berlinguer – Universitá La Sapienza (Itália)
Hugo Spinelli – UNLA (Argentina)
José Carlos Braga – UNICAMP (SP/Brasil)
José da Rocha Carvalheiro – FIOCRUZ (RJ/ Brasil)
Luiz Augusto Facchini – UFPel (RS/Brasil)
Maria Salete Bessa Jorge – UECE (CE/Brasil)
Paulo Marchiori Buss – FIOCRUZ (RJ/Brasil)
Rubens de Camargo Ferreira Adorno – USP (SP/Brasil)
Sônia Maria Fleury Teixeira – FGV (RJ/Brasil)
Sulamis Dain – UERJ (RJ/Brasil)
REVISÃO DE TEXTO,
CAPA, DIAGRAMAÇÃO E
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
PROOFREADING
COVER, LAYOUT AND
DESKTOP PUBLISHING
Zeppelini Editorial
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PRINT AND FINISH
Corbã Editora Artes Gráficas
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TIRAGEM
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Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em Julho de 2010
This publication was printed in Rio de Janeiro on July, 2010
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Cover in premium card 250 g/m2
Miolo em papel kromma silk 90 g/m2
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Editora Executiva / Executive Editor
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Eleonor Minho Conill
Ana Ester Melo Moreira
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Indexação / INDEXATION
Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - LILACS
História da Saúde Pública na América Latina e Caribe - HISA
Sistema Regional de Informaciónen Línea para Revistas Científicas de
América Latina, el Caribe, España y Portugal - LATINDEX
Sumários de Revistas Brasileiras - SUMÁRIOS
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Fernando Henrique de Albuquerque Maia
Julia Barban Morelli
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Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./
nov./dez.1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2010.
Apoio
A Revista Saúde em Debate é
associada à Associação Brasileira
de Editores Científicos
Ministério da Saúde
v. 34; n. 85; 27,5 cm
Trimestral
ISSN 0103-1104
1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES
CDD 362.1
carlos gentile de mello
Saúde em Debate
v.34
n.85
abr./jun. 2010
Cebes
ISSN 0103-1104
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