APPARICIO SILVA RILLO: A TRANSIÇÃO DA TRADIÇÃO RUMO AO
MODERNISMO
Autor: Luiz Carlos Erbes1, mestrando
Resumo
Este artigo investiga a transição da poesia de Apparicio Silva Rillo rumo ao Modernismo. O
poeta, que retratou de forma idealizada o espaço campeiro nas duas primeiras obras, incorporou
novos elementos a partir do livro São Borja aqui te canto e passou a produzir uma poesia
modernista. Tradicional no começo, Rillo rompe com a visão passadista e assimila um novo
olhar, em que fala da angústia, da solidão, do vazio e de coisas simples. O rompimento vai além
do conteúdo, se dá também com uma inovação na forma.
Palavras-chave: Poesia, Tradição, Modernidade, Rio Grande do Sul
Abstract
This article investigates the transition from Apparicio Silva Rillo’s poetry work towards the
Modernism. The poet, who captured an idealized idea of the pampa countryside in the first two
works, incorporated new elements from the book São Borja aqui te canto and begin to write
modernist poetry. Traditional in his early works, Rillo creates a rupture with his past view and
absorb a new one, in which he talks about grief, loneliness, emptiness, and the unimportant
things. The rupture goes beyond the content in the poems, it is also an innovation in its form.
Key-words: Poetry, Tradition, Modernity, Rio Grande do Sul
Do cancioneiro popular à produção atual, o regionalismo assume um papel relevante na
produção poética no Rio Grande do Sul. A cor local está inscrita na poesia, seja na exaltação do
campo e de seus habitantes seja no retrato humano de seus personagens, e ocupa um lugar
destacado em todos os estilos de época, do Romantismo ao Modernismo.
Esse olhar para o regional está não apenas presente na obra de Apparicio Silva Rillo2, mas
assume um contorno, se não único, expressivo, pela transição que a sua obra poética, composta
por oito livros publicados entre 1959 e 1985, reflete. Tradicional, ele rompe com a visão
passadista e assimila elementos do modernismo.
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras, Cultura e Regionalidade da Universidade de Caxias do Sul –
UCS. Email: [email protected]
2
Vamos nos referir a Apparicio Silva Rilo, na sequência do texto, com as iniciais do nome A.S.R.
A produção literária de A.S.R. vai muito além da poesia, investigada neste artigo. A obra
do poeta inclui contos de sucesso (a série Rapa de Tacho3), estudos folclóricos (destaca-se Já se
vieram! - Tradição, folclore e a atualidade da cancha-reta no RGS, de 1978, que ganhou o
prêmio Ilha de Laytano), textos para teatro e letras para músicas que animaram milhares de fãs
de eventos nativistas e acumularam prêmios. Por essa significativa contribuição, foi eleito
membro da Academia Rio-grandense de Letras, em 1981.
Natural de Porto Alegre e registrado em Guaíba, A.S.R. fez o caminho inverso de muitos
gaúchos na década de 1950: deixou a cidade e foi para o interior. Em 10 de outubro de 1953, dia
do padroeiro de São Borja, ele chegou em Nhu-Porã, distrito do município, para trabalhar como
contabilista numa casa especializada no comércio de lãs. Segundo informa o texto biográfico que
acompanha a obra 30 anos de poesia, foi nesse meio que o autor teve, por cinco anos,
contato permanente com os tipos mais singulares de nossa vida campeira: o fazendeiro e
os peões de campo; o capataz e os esquiladores de safra; o tropeiro e os domadores; o
carreteiro e os contrabandistas de médio e pequeno porte; o jogador profissional e os
simples 'orelhadores de sotá' dos comércios de carreira. (RILLO, 1986, p. 151).
Guilhermino Cesar, em Rio Grande do Sul – Terra e povo, coloca o poeta em um grupo
de escritores, ao lado de Jayme Catetano Braun, João Otávio Nogueira Leiria, Zeca Blau, entre
outros, em que predomina o “lirismo sentimental” (CESAR, 1964,p. 217). Cesar refere-se a esse
grupo, que alcança ótima repercussão junto ao público, como a “linhagem dos poetas
gauchescos” (CESAR, 1964, p. 216), pela fixação na “temática fornecida pelo campeiro e pelas
tradições ligadas à sociedade rural.” (Idem).
Inserido nesse contexto, A.S.R. produz uma obra em que os elementos da tradição são
preponderantes. Em 1959, quando já residia na cidade de São Borja, o autor publicou os
primeiros versos. O olhar do poeta em Cantigas do tempo velho é, em sua essência, tradicional.
As referências ao passado e ao espaço rural idealizado são constantes e aparecem em quase todos
os poemas do livro lançado em 1959 e reeditado nos anos 1970.
Essa tradição encontra-se nas referências ao espaço campeiro – a estância, o galpão, o
bolicho – e a vivência da região, com um tom apológico e ufanista. Lisana Bertussi, ao falar da
obra Alguns poemas, de Augusto Meyer, fala da tradição como
uma visão linear da realidade (...) [com] enfoque do universo regional (...) otimista,
luminoso, alegre, idealizador, como quer a tradição do Regionalismo gaúcho, que
configura, romanticamente, o campo como um paraíso, isento de qualquer tipo de
conflito. (BERTUSSI, 2009, p. 89)
O poema “Galpão” traz uma série desses elementos. A construção presente nas estâncias
3
Série com gaúchos gauchescos conta com três lançados em 1982, 1983 e 1984, pela Editora Tchê.
pelo Pampa afora e ponto de encontro de gaúchos é retratada como simples, mas acolhedora. É
um quadro que se molda ao cancioneiro popular e à poesia romântica, em que o universo do
gaúcho é retratado sempre como simples, com exceção da riqueza dos arreios do cavalo. Embora
escrevendo no período modernista, A.S.R. mantém essa visão idílica no começo de sua produção
poética. Isso evidencia-se na primeira estrofe:
Meu tosco galpão de estância
erguido sem aparato,
aqui no mais de retrato
sem te pedir permissão;
abrigo guasca sem luxo,
lar paterno do gaúcho,
sala de estar do patrão. (RILLO, 1986, p. 126)
Esse abrigo é “sem luxo”, embora o termo patrão indique que temos, no poema, um
proprietário com terras, provavelmente com escravos ou peões contratados. O galpão, retratado
como local da educação do gaúcho, é referido também com um espaço em que tudo é bom e
positivo. Uma das boas referências envolve o churrasco, como nestes versos:
Churrasco feito em teu fogo
tem sabor mais apurado,
porque se entranha no passado
que devagar vai tostando,
um aroma de mel de abelha
que vem da tora vermelha
do velho angico queimado... (RILLO, 1986, p. 126).
Além disso, temos o galpão retratado como espaço para relembrar o passado, como
evidenciam os versos:
“Sob as traves do teu texto
nossa gente rememora
as arrancadas de outrora
glorificadas no passado” (RILLO, 1986, p. 127).
Foi, continua o poema, no “recesso de teu ventre” (RILLO, 1986, p. 127) que se
“amalgamou-se esta raça / soberana nas coxilhas” (Idem) e se escreveu a “história dos
farroupilhas” (Idem). O desfecho do poema reforça esse vínculo do galpão com o gaúcho, e seu
valor do ponto de vista da história. Observe-se:
Ao calor dos carvões rubros
do fogo aceso em teu chão,
a crioula tradição
se retempera e se expande,
conservando nas histórias
as cicatrizes e as glórias
do verdadeiro Rio Grande! (RILLO, 1986, p. 127).
Em “Galpão”, os elementos tradicionais estão presentes do início ao fim. O espaço está
claramente idealizado, como parte formadora da personalidade do gaúcho. Isso repete-se em
“Bolicho”, referindo-se a um outro ponto de encontro do habitante dos pampas. Mais uma vez, é
uma construção simples, com “paredes de pau-a-pique” (RILLO, 1986, p. 128) e o chão de
“barro bem batido, com cobertura de capim” (Idem). Nas prateleiras, garrafas “se entreveram
com chaleiras,/ peças de chita e de brim” (Idem).
Esse bolicho, com o balcão “picado de faca” (RILLO, 1986, p. 128) e com presença de
“algum buraco de bala” (Idem), traz uma referência à luta do gaúcho contra o governo imperial
e, indiretamente, à Revolução Farroupilha. Veja-se: “Bolicho que dá-se o gosto / de nunca pagar
imposto / pro Tesouro da Nação!” (Idem). É o gaúcho bom de briga que ali aparece, que não
aceita dobrar-se ao governo imperial. O lado viril dessa personagem ganha força expressiva na
sequência do poema, sob a forma de uma briga:
De repente estoura o “rolo”
sem que se saiba o motivo!
Rude embate primitivo
onde advoga o facão,
onde o juiz é o destino
que às vezes, fora de tino,
castiga quem tem razão! (RILLO, 1986, p. 129)
O poema fala de um passado não definido na linha do tempo, glorificando-o como algo
bom, idealizado. Isso pode ser observado nos versos “Quanta saudade ao lembrar-te, / bolicho do
meu rincão” (RILLO, 1986, p. 129). Na última estrofe há destaque para o local, como espaço
sagrado de vivência do regional:
Bolicho beira de estrada!
A tábua de teu balcão
é a mesa de comunhão
da gauchada gaudéria;
é o rude confessionário
onde o guasca solitário
chora as mágoas da miséria. (RILLO, 1986, p. 129)
“Bolicho” faz menção ao amor - “Centro social da campanha, / onde se afogam na cancha
/ os deserdados do amor” (RILLO, 1986, p. 129) -, mas é no poema “No bolicho” que o tema
assume a condição central, a partir de um olhar tradicional: o gaúcho quer “beber no gargalo /
para esquecer o pialo / que o tal de amor me atirou” (RILLO, 1986, p. 130). Esse guasca
guerreiro, “índio duro de queda” (Idem), sucumbe diante do feitiço de uma tirana, como fica
claro na estrofe:
Caí no tiro de laço
de um olhar de china atrevida,
que embuçalou minha vida
na armada negra das tranças
pra depois de ter-me preso
marcar-me com seu desprezo
na picanha da esperança. (RILLO, 1986, p. 130-131)
O amor retratado no poema carrega uma série de elementos presentes no cancioneiro
popular, com um tratamento similar: o homem aparece como vítima, enquanto a mulher assume
a condição de vilã, por enfeitiçá-lo.
A produção inicial de Rillo é rica em termos do regionalismo gaúcho. “Galpão”,
“estância”, “guascas”, “churrasco”, “coxilha”, “farroupilha”, “campanha”, “gaudério” são
palavras recorrentes em Cantigas do tempo velho. Há ainda expressões que remetem à vida do
campo, como no poema “No Bolicho”, em que aparece a frase “cancha reta do amor” (RILLO,
1986, p. 130).
Na segunda obra, Violas de canto largo (1968), esse olhar permanece praticamente
idêntico. “Romance de João da Gaita” tem uma série de termos ou expressões do universo
regional gauchesco, como “estância”, “gaudério”, “vaqueano”, “cuia”, “rodas de chimarrão”, só
para citar alguns. O espaço do poema é o pampa gaúcho, com referências à Guerra dos Farrapos.
O protagonista, um tocador de gaita, é essencialmente livre, tal como o gaudério, pois “nem
sabia o que buscava” (RILLO, 1986, p. 84), “andava como os arroios” (Idem) que “procuram seu
próprio curso / pelos acasos do chão” (Idem).
Há referências à hospitalidade gaúcha – “Se alvorotavam as estâncias / quando o gaudério
chegava” (RILLO, 1986, p. 85) – e às apresentações em bolichos. Uma estrofe, em particular, é
exemplar, pelo número de referências à cultura gauchesca:
E o fogo bordava rendas
no bastidor estirado
do santa-fé do galpão.
E a cuia fazia roda
na ciranda centenário
da volta do chimarrão.
E a gaita velha chorava
que nem china candongueira
que enfrenou para carreira
o flerte do coração. (RILLO, 1986, p. 84)
O poema se passa na Revolução Farroupilha, ocorrida entre os anos de 1835-1845, em
que o tocador de gaita é recrutado como “vaqueano da tropa” (RILLO, 1986, p. 87). João da
Gaita se vê na luta e, nas horas de descanso, “puxando a gaita manheira” (RILLO, 1986, p. 88).
O poema explora esse contraste, em que a personagem se vê envolvida. É o autor incorporando
uma nova visão, como neste trecho:
“La fresca, não entendia
por que sina Deus lhe dera
duas funções tão distintas
para o mesmo par de mãos. (RILLO, 1986, p. 88)
O protagonista João da Gaita, que sonha em ver a “querência irmanada”, revolta-se com o
conflito, para ele fruto da “ambição pura de mando / dos chefões da capital...” (RILLO, 1986, p.
88), que levaram os gaúchos a uma guerra civil enquanto “ficavam tomando mate / peleando só
por jornal...” (RILLO, 1986, p. 89). O protagonista resolve desertar. Observe-se:
Desertor? Talvez o fosse
fazia pouca questão.
Mas desertor por consciência,
ficasse bem entendido
- soldado não é bandido
para abater um amigo
só porque manda o chefão... (RILLO, 1986, p. 89)
Nesta parte do poema, A.S.R. constrói uma personagem que está longe de ser o
mitificado herói gaúcho, que não teme inimigos e jamais foge de uma luta. Pelo contrário, João
da Gaita não se coaduna mais com esse rótulo, ao deixar a luta para trás. Embora o poema tenha
uma série de elementos, que configuram o tradicional, “Romance de João da Gaita” já apresenta,
em alguns aspectos, uma visão inovadora.
Essa incorporação do olhar modernista leva A.S.R. e rever as duas primeiras obras, em
um prefácio num relançamento das duas obras iniciais, nos anos 80, em que o poeta afirma:
Cantigas do Tempo Velho e Viola de Canto Largo não seriam editadas. Pelo
menos se a decisão dependesse apenas de mim.
Uma e outra obra (…), embora a boa receptividade do público leitor, tanto que se
esgotaram em menos de dois e um ano, respectivamente, parecem-me, hoje, carecer de
um melhor cuidado formal, de um mais acabado tratamento de estilo, de
aprofundamento e escolha mais acurada de temas. Em sua, enfeixam, com algumas
exceções, trabalhos que classificaria como de principiante. (RILLO, 1984, p. 11)
Nas obras seguintes, há em A.S.R. uma nova visão do universo gauchesco, modernista.
Essa nova abordagem configura-se, na poesia, a partir de uma apreensão da realidade, em que a
intuição, a deformação, a fragmentação, a impessoalidade e o novo conceito de belo feio estão
presentes. Como afirma Lisana Bertussi:
Afastando-se das formas racionalistas com que muitas tendências anteriores olhavam o
mundo real, na modernidade inaugura-se uma nova maneira de captação da realidade
que é intuitiva, sinestésica, deformadora, fragmentária, rearticuladora, respeitando todas
as possibilidades de percepção, inclusive o sonho. Esses procedimentos representam um
esforço grandioso de configuração do sentido, num momento em que a limitação do
mundo remete ao inexorável vazio, o que não rouba do poeta a vontade de recuperar a
oportunidade de momentos epifânicos, reveladores da significação quase impossível.
(BERTUSSI, 2009, p. 21).
Com o modernismo, destaca Bertussi na obra Tradição, Modernidade, Regionalidade, o
foco do fazer poético não está muita vezes centrado no objeto, mas no movimento; o objeto
passa por um processo de “desconcretização” (BERTUSSI, 2009, p. 33). O olhar já não está mais
voltado para o passado, mas para o presente; ou, por vezes, se aborda a influência do passado na
vida presente. O campo cede lugar ao urbano, o público se sobrepõe ao privado. A angústia, a
solidão e o vazio passam a permear a poesia. Há inovação também na forma, numa reação ao
tecnicismo, como afirma Lisana Bertussi, ao citar Paul Verlaine: “Não se poupa a eloquência,
que deve ser destruída e se considera a rima como um confinamento do qual não se podem
controlar as possibilidades.” (BERTUSSI, 2009, p. 35).
As novas ideias, que surgiram na Europa no final do século XIX e começo do século XX,
foram assimiladas pelo movimento modernista brasileiro. No Rio Grande do Sul, poetas como
Augusto Meyer, Vargas Netto, Manoelito de Ornelas e Tirteu da Rocha Viana, só para citar
alguns, incorporam alguns desses elementos no seu fazer poético, a partir de 1928, ano apontado
por Guilhermino Cesar como “o mais significativo para o nosso modernismo” (Schüler, 1987, p.
143).
Na obra de Apparicio da Silva Rillo, esse novo olhar começa a aparecer em São Borja
aqui te canto, lançado em 1970. Em “Nossa Senhora dos Navegantes no seu dia de festa no
Passo de São Borja”, a inovação na forma, marcante no Modernismo, está destacada, como neste
trecho:
Chhhhhhhhhhhhhhhh à – cum PÃO!!!
A molecada corre para apanhar a vareta
que desprendida da carga do foguete
vem
d
e
s
c
e
n
d
o
arranhando
o esmalte do céu. (RILLO, 1986, p. 61)
Essa originalidade formal aparece em outros dois trechos do poema, uma imitando o som
do tambor e outra para falar do “rio abaixo”. Além disso, A.S.R. adota o recurso de usar algumas
palavras em maiúscula – como PÃO –, para dar ênfase ao retrato da festa em homenagem à
Nossa Senhora dos Navegantes. Esse recurso aparece nas obras seguintes do poeta: em Doze mil
rapaduras & outros poemas, embora sem o mesmo destaque de São Borja aqui te canto; nas
demais obras, essa inovação na forma é bem mais sutil.
Outra novidade, em relação aos poemas de obras anteriores, está no uso da linguagem
popular. Nos dois primeiros livros, o poeta recorre a termos e expressões regionais, praticamente
inexistentes agora. Em seu lugar, A.S.R. reproduz a fala de pessoas comuns, como neste diálogo:
- Quanto custa o copo?
- Cinco pila.
- Cruiz... (RILLO, 1986, p. 61)
Outro exemplo:
As empregadinhas se engasgam de paixão
- Manja que bosa o deste pintosão.
“Oiá o dourado
que bateu no inspinhé
traiz a canoa
que rio fundo não dá pé,” (RILLO, 1986, p. 62).
O poema mostra um rompimento em relação às obras anteriores. Nos livros seguintes, o
escritor mantém esse novo olhar. No poema “Meu boi barroso”, do livro Caminhos de
Viramundo (1979), ele retoma um tema do folclore popular, mas para falar de lembranças da
infância. Entre aspas, reproduz uma estrofe do Boi barroso original, para abrir o poema, mas na
sequência ele introduz o tema: “Infância que volta a brincar de saudade.” (RILLO, 1986, p. 53).
O poema foca lembranças, como uma “cantiga de ronda dos pousos de tropo / trauteada baixinho
na rouca garganta.” (Idem) Ou como neste trecho: “Ingênua toada empilchada em simpleza. /
Recanto sereno de acento campeiro / que o ouvido da infância colheu e guardou.” (RILLO, 1986,
p. 53-54).
O poema traz expressões do universo gauchesco, como “empilchada”, “campeiro”,
“tropeiro”, “piá”, mas são termos que apenas identificam uma região, não a idealizando. O tema
é outro, o das lembranças fragmentadas do passado que permanecem vivas, como evidencia a
estrofe que encerra Meu boi barroso:
Quem sabe de onde brotou este canto!
A humana memória não sabe onde foi.
E a velha toada cinzela em constância
no bronze do tempo e no assombro da infância
a gesta campeira do homem e do boi. (RILLO, 1986, p. 54)
Em Pago Vago, essa nova visão fica ainda mais evidente. A.S.R. retoma a temática
regional, em destaque nos dois primeiros livros de poesia, mas a abordagem é distinta. Nas obras
iniciais, ele idealiza a região, permitindo a sua classificação como literatura regionalista,
denominação que se refere, segundo João Cláudio Arendt, a “obras que promovem a cultura da
região como programa e paradigma, que se distinguem de outros espaços ou se defendem em
relação a um centro” (ARENDT, 2010).
A referência a uma região específica se mantém em Pago Vago, mas não no sentido de
idealizá-la; pelo contrário, por vezes esse universo regional assume uma representação de um
fardo. No poema que dá título ao livro, isso está presente. O pago, antes um lembrança que
remetia a algo bom que havia se perdido no tempo, assume a condição de “cicatriz” (RILLO,
1986, p. 112): “Raiz de minhas íntimas origens, / veio subterrâneo de onde vim.” (Idem). A
presença da região é acessória; a essência é o vazio que o poeta sente e o peso da saudade da
terra natal. O desfecho é revelador:
Vago é meu pago
Este que trago,
como sombra e manto.
É meu destino a cruz de sustentá-lo
nos alicerces de vento de meu canto. (RILLO, 1986, p. 112)
Em “Cantiga de não voltar”, o poeta retoma o tema do passado, presente em grande parte
de sua obra poética, no qual aborda a infância de um menino e o seu sonho de se aventurar pelo
mundo. Há referências constantes ao mar, que remete à viagem, ao desconhecido:
Meu cais de sombra e flechilha
onde em tardes de aquarela
sonhava com caravelas
quem não sabia remar (RILLO, 1986, p. 42).
Em outra estrofe, A.S.R. poetiza os sonhos aventureiros do menino, que não se vê preso
aos limites do campo:
Meu porto de fim de campo
onde um piá vagabundo
sonhava ganhar o mundo
na popa de uma canoa. (RILLO, 1986, p. 42).
Em Pago Vago, Rillo também evidencia as dificuldades e os contrastes encontrados na
região. Em “Natalina – III”, o tema é a pobreza do posteiro Zé Qualquer, que vive em um
“rancho de pau a pique / como filho novo e mulher” ((RILLO, 1986, p. 80). As duas últimas
estrofes evidenciam a condição social e, também, a revolta do poeta:
José, Maria e seu filho
e um rancho na solidão.
Natal de fome e silêncios
doendo no coração.
Não quero Natais em festa,
ao menos enquanto houver
tanta pobreza amargando
os ranchos do Zé Qualquer (RILLO, 1986, p. 80).
Em “Devaneio”, que integra a obra Itinerário de Rosa, Rillo fala de uma jovem que se
apaixonou por João. Novamente, os termos regionais estão presentes, mas eles apenas indicam a
região, sem exaltá-la. O tema é outro: o da paixão de uma jovem, como vemos nos versos:
“Quando estourou a carreira / todo mundo olhou pra cancha, /menos João... João não olhou.
(RILLO, 1986, p. 142).
Na parte final, o poeta fala da ponta da trança. O foco, mais uma vez, não está no objeto,
mas no movimento, como preconizam os modernistas. Veja-se:
Chininha sonha acordada
mordendo a ponta da trança
ao lado do coração.
E o laçarote da trança
fazendo cosca nos lábios
parece a boca do João... (RILLO, 1986, p. 142)
Na fase modernista, A.S.R. poetiza as pequenas coisas, pois tudo pode ser tema da poesia.
Na obra Doze mil rapadura & outros poemas (1984), marcada pelas pouquíssimas referências
regionais, temos vários exemplos disso. Em “Mínimos cantos”, ele fala da formiga, da abelha, do
canto do galo, das cigarras. Em “Verbis”, o tema é a palavra. Em “Volta – I”, fala da ausência, do
vazio, como evidenciam esses versos:
A cama feita.
O lençol
nevando no azul da lã.
O Cristo de dois mil anos
na palidez da parede.
A bica vertendo água
e ele morrendo de sede.
Na casa fria
e vazia. (RILLO, 1986, p. 29).
Em Alma Pampa, a temática campeira volta a estar na configuração da poesia de Rillo,
mas ela está longe de ser central. Não está presente em todos os poemas, e quando a região é
referida, não aparece na forma apológica. Em “Perfil”, há vários termos regionais, mas o poema
não está centrado na vida campeira, mas nas experiências vividas e que o acompanham, como
pode se ver nestes versos:
Dou rédia aos potros que monto
na cancha das invenções,
puando esporas de tempo
no pelo dos redomões. (RILLO, 1986, p. 113)
Seria possível ampliar o número de exemplos mostrando esse nova visão que configura a
segunda fase da obra poética de Apparicio Silva Rillo. A partir de São Borja aqui te canto, a
poesia de A.S.R. contempla elementos que evidenciam uma nova abordagem do espaço regional,
em oposição à visão presente nas duas obras iniciais. Há um rompimento, que altera o foco do
poeta: inicialmente, ele fala da vida campeira (o galpão, o bolicho, a pipa, a relação do homem
com esse espaço), de uma forma tradicional; depois, focaliza o ser humano, com suas angústias,
sonhos, alegrias e vazios, desenvolvendo um percurso da tradição à modernidade.
REFERÊNCIAS
ARENDT, João Cláudio. Notas para o estudo das literaturas regionais.
BERTUSSI, Lisana. Tradição, Modernidade, Regionalidade. Caxias do Sul: Educs e
Movimento, 2009.
CESAR, Guilhermino. A vida literária no Rio Grande do Sul, in Rio Grande do Sul: Terra e
povo. Porto Alegre: Ed. Globo, 1964.
OLIVEN, Ruben. A parte o todo: A diversidade cultural no Brasil-nação. Petrópolis-RJ: Ed.
Vozes, 2006.
RILLO, Apparicio da Silva. Cantigas do tempo velho. Porto Alegre: Ed. Martins Livreiro, 1984.
RILLO, Apparicio da Silva. 30 anos de poesia. Porto Alegre: Tchê Editora, 1986.
Schüler, Donaldo. A poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.
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Aparicio Silva RILLO – A transição da tradição rumo ao Modernismo