+FESTAS PUBLICAS E DESENVOLVIMENTO URBANO NO
RIO DE JANEIRO DO SECULO XVIII
Sonia Gomes Pereira
Universidad Federal de Rio de Janeiro. Brasil
Dos documentos até agora conhecidos, que descrevem comemorações públicas
no Rio de Janeiro colonial1, vários fazem referências aos espaços urbanos utilizados
nas diversas festividades e aos itinerários seguidos pelas procissões e demais desfiles.
Nessa comunicação, vamos tomar dois grupos de eventos como estudos de
caso. O primeiro diz respeito a festas realizadas durante o mandato do governador
geral Gomes Freire de Andrade, o Conde de Bobadela (1733-1763), ligadas à
construção do Convento da Ajuda. E o segundo caso refere-se à festa de comemoração
do casamento do príncipe D. João com a princesa D. Carlota Joaquina, em 1786,
durante o vice-reinado de D. Luís de Vasconcelos e Sousa (1779-1790).
Mas antes de examinar estas festas, é preciso definir melhor como era o Rio de
Janeiro neste período. O século XVIII representou uma fase de grandes
transformações na história da cidade colonial, que se devem, por um lado, à sua
posição de principal porto de escoamento do ouro de Minas Gerais e de capital da
colônia a partir de 1763 e, por outro lado, ao pensamento ilustrado, que domina a
cena portuguesa na segunda metade do Setecentos.
Do ponto de vista da expansão urbana (FIG. 1), a cidade crescera para além do
seu núcleo original, no Morro do Castelo, e expandira-se para a várzea, inicialmente
ocupando os terrenos à beira da Baía de Guanabara no sentido longitudinal, e,
posteriormente, avançando para o interior, a despeito das dificuldades impostas pelas
condições geográficas do local – cercado por numerosas montanhas e por extensos
alagadiços. A malha urbana apresentava-se composta por ruas dispostas paralela e
perpendicularmente ao litoral, implantando um traçado ortogonal a essa parte mais
nova da cidade. Dos vários caminhos que nortearam o avanço da malha urbana, o
mais importante era o formado pela rua da Misericódia, seguido da rua Direita, que
acompanha o litoral, desde o Morro do Castelo até o morro de São Bento: esta foi
sempre a principal via da cidade colonial – e também de todo o século XIX, apenas
suplantado no início do século XX, pela abertura da Avenida Central, hoje Rio
Branco2.
Foi precisamente nesta via principal, ou em suas proximidades imediatas, que,
desde o século XVII, se fora instalando boa parte dos prédios de governo, como a Casa
da Câmara e Cadeia, na rua da Misericórida, ou a Casa dos Governadores, que se
acomoda em imóvel alugado na rua Direita. É importante observar que, até meados do
século XVIII, a história dos prédios da administração colonial no Rio de Janeiro fora
sempre marcada pela instabilidade e pela improvisação: há exemplos constantes de
trocas de local ou de acomodação indevida de várias repartições num mesmo prédio.
Assim, no Rio de Janeiro, apesar de cidade real e ponto estratégico na consolidação
colonial no sul do Brasil, não se encontra até esse período nenhuma intenção ou
1 Existe um levantamento desta documentação referente a várias partes do Brasil em MORAES,
Rubens Borba de. Bibliografia brasileira do período colonial . São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros.
1969. Para a região de Minas Gerais, ver: AVILA, Affonso. “Festa barroca: ideologia e estrutura”. In
Revista Barroco. Belo Horizonte / Minas Gerais, n° 14, anos 1986/9, p. 71-90; e AVILA, Affonso. Resíduos
seiscentistas em Minas Gerais. Belo Horizonte / Minas Gerais. Centro de Estudos Mineiros. 1967.
2 PEREIRA, Sonia Gomes. “A mudança no espaço urbano do Rio de Janeiro”. In Revista Barroco.
Belo Horizonte: Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais / FAPEMIG, n. 17, 1996, p. 156-157.
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possibilidade de conferir maior monumentalidade a essas construções, que, afinal,
representavam o poder máximo na vida colonial3.
Já em relação aos prédios religiosos, o processo se dera de forma diferente.
Durante o período colonial, a paisagem da cidade sempre foi predominantemente
marcada pela arquitetura religiosa. Em muitos casos, o aparecimento dessas igrejas
claramente funcionou como pontas de lanças na expansão urbana da cidade. De início
distantes e isoladas, as ermidas e capelas acabaram incentivando o crescimento do
casario e do arruamento, funcionando como um agente de grande capacidade de
arregimentação urbana. Certamente interferiram na configuração da malha viária,
uma vez que a legislação eclesiástica, inicialmente a portuguesa, depois a brasileira,
prescrevia normas para a localização e o funcionamento das igrejas, para a realização
de suas cerimônias, tanto fora quanto dentro da igreja, além de garantir as
prerrogativas de imunidade, incluindo o direito de asilo, não apenas nos seus
interiores, mas também nos seus adros4.
Além disso, a expansão urbana do Rio de Janeiro fora acompanhada por uma
mudança progressiva na configuração de sua centralidade. A posição do Morro do
Castelo como centro da cidade foi-se diluindo ao longo dos séculos XVII e XVIII, com a
progressiva perda de seus significados político, econômico, religioso e até mesmo
militar - com a diminuição de sua importância estratégica pela introdução de novos
conceitos militares. E o Largo do Carmo começara a se constituir como o novo centro
da cidade, congregando o porto, algumas repartições da administração colonial e os
Carmelitas5.
Assim, a cidade do Rio de Janeiro chegava a meados do século XVIII - época das
festas acima mencionadas – com algumas feições urbanas, que já vinham se
delineando desde o século anterior. O centro efetivo da cidade era o Largo do Carmo e
a principal via a sequência das ruas da Misericórdia e Direita. As construções
religiosas ainda superavam numericamente as construções civis, dominando
inequivocamente a paisagem urbana. Era notório o decréscimo de poder das ordens
conventuais: a única igreja conventual nova deste período foi a igreja da Ordem
Primeira do Carmo, depois Catedral. O clero regular tinha, então, um pouco mais de
visibilidade na cidade, com a construção recente do Palácio Episcopal e do Seminário
São Joaquim. Mas predominavam as irmandades, que desempenhavam um papel
primordial na cidade, inclusive pelas suas atividades assistenciais, como fica evidente
pelo grande investimento na construção de igrejas e capelas, assim como em
hospitais6.
No entanto, uma novidade já era perceptível na cidade neste período. Apesar de
não suplantar a arquitetura religiosa, houve um notório aumento de investimento nas
construções civis : prédios diretamente ligados à administração da colônia,
construções militares, referentes às atividades portuárias e comerciais, ligados à
instalação dos serviços de abastecimento de água e, até mesmo, voltados para o lazer.
Uma nova mentalidade surgiu neste período na administração da colônia,
marcada sobretudo pelo interesse na implantação de serviços públicos e na
PEREIRA, S. G. (1996), p. 157.
MARX, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo: EDUSP, 1989, p. 26.
5 PEREIRA, S. G. (1996), p. 160-161.
6Nessa categoria, foram construídas no Rio de Janeiro do século XVIII, somente nesta região
central, 18 igrejas e capelas (N. S. do Bonsucesso, Santa Luzia, São José, Santa Cruz dos Militares, N. S.
da Candelária, São Domingos, Senhor Bom Jesus do Calvário, N. S. da Conceição e Boa Morte, N. S. da
Lampadosa, N. S. da Lapa dos Mercadores, Santana, Ordem Terceira do Carmo, N. S. Mãe dos Homens,
São Francisco de Paula, São Gonçalo Garcia, Senhor dos Passos, N. S. da Conceição do Cônego e Santo
Antônio dos Pobres) e quatro instituições assistenciais (o Recolhimento de N. S. do Parto, o Hospício de N.
S. da Conceição e Boa Morte, o Hospício de Jerusalém e o Hospital da Ordem Terceira de São Francisco
da Penitência).
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construção de uma arquitetura civil de porte mais monumental. Na verdade esta
postura começou a ter visibilidade a partir do governador Aires de Saldanha (17191725), continuou com os vice-reis depois da década de 60, até a chegada de D. João e
a corte portuguesa em 18087.
Dos monumentos da administração colonial, é importante destacar o novo Paço
dos Governadores, projeto do brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim, de 1743. Das
construções militares, entre os diversos quartéis, aparece a Casa do Trem, também
atribuída ao engenheiro Alpoim. Uma verdadeira rede de abastecimento de água é
implantada na cidade, a partir da construção do Aqueduto da Carioca, entre 1744 e
1750, pelo mesmo engenheiro Alpoim, e uma série de chafarizes e fontes8. As
atividades portuárias estenderam-se para além do Morro de São Bento, com o
surgimento de novos armazéns e mercados9. E duas construções atestavam a
diversificação na vida urbana: o Passeio Público, construído entre 1779 e 1883 pelo
Mestre Valentim, ao mesmo tempo espaço de lazer e estratégia de saneamento, e a
Casa da Ópera, erguida provavelmente entre 1770 e 1780, ficando em atividade até
1810 - uma das primeiras casas de espetáculos da cidade, fundada pelo português
Manuel Luís Ferreira.
Assim, na segunda metade do século XXVIII, apesar da arquitetura religiosa
ainda predominar na paisagem construída do Rio de Janeiro, já eram plenamente
visíveis a expansão e a diversificação notáveis na arquitetura civil Algumas
construções, como os já citados Paço dos Governadores e Aqueduto da Carioca, ambos
do engenheiro Alpoim, possuíam caráter monumental. Aumentou o número de
equipamentos urbanos, como chafarizes e fontes, que, importantíssimos no cotidiano
da população, certamente influíam na mudança de trajetos e na própria imagem da
cidade. Algumas obras, como o Chafariz do Largo do Carmo ou do Paço, ou o Passeio
Público, ambos de autoria do Mestre Valentim, revelavam sintonia com as vertentes
mais modernas da arte européia de então – como a incorporação de espaços verdes
nas malhas urbanas e a retomada de formas referentes à pesquisa arqueológica10. E
A relação dos governadores deste período é a seguinte: Aires de Saldanha e Albuquerque
Coutinho Matos e Noronha – 1719/1725; Luís Vaía Monteiro – 1725/1732; Manuel de Freitas e Fonseca –
1732/1733; Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela – 1733/ 1763; José Fernandes Pinto Alpoim –
1763/1763; João Alberto Castelo Branco – 1763 /1763; Frei D. Antônio do Desterro – 1763/1763. A
partir de 1763, a relação dos vice-reis é a seguinte: D. Antônio Álvares da Cunha, Conde da Cunha –
1763/1767; D. Antônio Rolam de Moura Tavares, Conde de Azambuja – 1767/ 1769; D. Luís de Almeida
Portugal Soares d’Eça Alarcão de Melo e Silva Mascarenhas, Marquês de Lavradio – 1769/1779; D. Luís
de Vasconcelos e Sousa – 1779/1790; D. José Luís de Castro, Conde de Resende – 1790/1801; D.
Fernando José de Portugal – 1801/1806; D. Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos – 1806/1808.
MEDEIROS, Lícia Carvalho, Governantes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do
Rio de Janeiro, 1997 ). Sobre a repercussão da política ilustrada na administração da cidade ver:
PEREIRA, Sonia Gomes. “O Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX”. In Anais do Museu
Histórico Nacional . Rio de Janeiro: Ministério da Cultura / Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, volume 30, 1998, p. 109-129; PEREIRA, Sonia Gomes. “Arquitetura na cidade do rio de Janeiro
no tempo de D. João VI”. In Anais do Seminário Internacional D. João VI, um rei aclamado na América. Rio
de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000, p. 35-48; PEREIRA, Sonia Gomes. “O Rio de Janeiro do
século XVIII: melhoramentos urbanos, diversificação arquitetônica e administração ilustrada”. In
Portugal-Brasil, Brasil-Portugal. Duas faces de uma realidade artística. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 174-183.
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8 Na região central da cidade, seis chafarizes (do Lagarto, do Largo do Carmo ou do Paço, do
Largo da Carioca, das Marrecas, do Largo do Moura, da Glória) e uma fonte (dos Boiotas).
9 Pelo menos três construções - o Armazém do Selo da Alfândega, o Armazém do Sal e o Mercado
do Peixe.
10 UNDERWOOD, David K. “The chafariz do Largo do Paço in Rio de Janeiro”. In La costruzione di
un nuovo mondo. Genova: Sagep Editrice, 1994, p.277-282.
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certamente a cidade contava não apenas com um jardim público, mas também com
um teatro - indicando o início de diversificação no lazer, antes unicamente
circunscrito às festas religiosas.
Os agentes desta intensa mudança na cidade do Rio de Janeiro foram vários.
De um lado, a contribuição de artistas, como o Mestre Valentim, com uma formação
mais diversificada em relação ao padrão colonial, capaz de dar conta de diferentes
programas e técnicas, como por exemplo o projeto paisagístico e de equipamentos
urbanos, a escultura em bronze e em mármore com temática mitológica ou a talha em
madeira para interiores de igreja.
Por outro lado, a presença dos engenheiros militares - como José Fernandes
Pinto Alpoim ou Jacques Funck entre outros - foi decisiva na concretização de grande
parte desses melhoramentos urbanos. A atuação destes técnicos estendeu-se também
à implantação do ensino formalizado. A formação em engenharia militar no Brasil
tivera início em 1698, quando o engenheiro José Velho d’Azevedo fora nomeado
sargento-mór engenheiro para substituir no Rio de Janeiro a Gregório Gomes
Henriques na função de “ensinar artilheiros”. Mas este ensino só se tornou efetivo em
1738 com a criação da Aula teórica de artilharia e fogos artificiais, para a qual foi
designado como mestre o então sargento-mór Alpoim. Este curso foi instalado na Casa
do Trem, para este fim edificada, segundo risco do mesmo engenheiro. O curso foi
consolidado e ampliado em 1792, ao tempo do Conde de Resende, época em que não
só houve maior diverficação de disciplinas, com a inclusão de um último ano
consagrado à arquitetura civil, como houve maior abertura na clientela, passando a
atender a oficais das diferentes armas – os de infantaria cursavam três anos; os de
artilharia cinco anos; e os de engenharia seis anos – e a permitir a admissão de civis,
que eram chamados de particulares11.
Engenheiros e arquitetos são agentes, enquanto executadores de projetos que,
na verdade, nascem de uma mentalidade, da qual os administradores locais são os
representantes mais evidentes. Todo este processo de modernização resultava
basicamente do esforço das administrações progressistas de governadores e vice-reis
da segunda metade do século XVIII. Vários desses governantes são representantes
típicos do reformismo ilustrado, que se consolidou em Portugal durante o reinado de
D. José (1750/1777) e seu secretário Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro
Marquês de Pombal. No esforço de modenização do Estado português, uma enorme
importância foi conferida à questão da formação de quadros – daí a necessidade da
reforma do ensino. As idéias filosóficas inspiradas nas Luzes dos anos Setecentos
atingiram uma elite de intelectuais, de vivência eminentemente cortesã e que orbitava
em torno do aparelho de Estado, preenchendo-lhe, não raro, os quadros da
administração pública. Egressos da nobreza, do clero ou da diminuta burguesia
emergente, são livre-pensadores, cuja liberdade de devanear pelo campo das idéias
encontrava seus limites na própria dependência a que se viam obrigados para sua
subsistência social e material à égide do poder monárquico. São os agentes
progressistas que se empenhavam pela transformação do Estado, sobretudo através
da racionalização administrativa. Tornaram-se imprescindíveis, como defensores dos
valores científicos e estéticos do período das Luzes e como articuladores da vinculação
entre cientistas, artistas e escritores junto ao aparelho de Estado12.
11 TELLES, Augusto da Silva. “O ensino técnico e artístico, evolução e características: séculos
XVIII e XIX. In Arquitetura Revista. Rio de Janeiro: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / Universidade
Federal do Rio de Janeiro, v. 6, 1988, p. 2-44.
12 RIBEIRO, Marcus Tadeu Daniel. As razões da arte - a questão artística brasileira: política ilustrada e
neoclassicismo. Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 1998, p. 228. Tese de Doutoramento.
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A modernização do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII,
portanto, deve ser entendida na perspectiva destes administradores esclarecidos personagens típicos do meio culto de então e agentes do pensamento político
ilustrado. E é precisamente nese contexto que se realizaram as festas em questão.
Em dezembro de 1746 chegava ao Rio de Janeiro o bispo D. Antônio do
Desterro Malheiro, proveniente de Angola, onde havia servido durante seis anos
também como bispo. Hospedado inicialmente no Mosteiro de São Bento, o bispo
realizou a sua entrada solene na cidade em janeiro de 1747. Neste período, ocorreram
as festividades, que são descritas em documento redigido pelo juiz de fora Luiz
Antonio Rosado da Cunha13.
No dia 11/12/1746, começaram os festejos com a representação da ópera
Felinto Exaltado, com « excelente música » e finalizada com « agrandioso pucaro de
agua » 14. A entrada solene do bispo na cidade deu-se somente em 1/1/1747, o que
permitiu tempo para fazer os preparativos e a construção de sete arcos nas ruas, por
onde o bispo deveria passar com a procissão. O autor descreve com minúcia a
decoração da cidade e o Te Deum na Catedral.
A procissão partiu do Mosteiro de São Bento, desceu a rua Direita e terminou
na Catedral. As ruas com as tradicionais luminárias, ao som das salvas nas fortalezas
e dos sinos nas igrejas. O primeiro arco ficava no fim da ladeira de S. Bento e tinha 80
palmos de altura e 40 de largura. Com a distância de 50 passos, estava o segundo
arco, com 90 palmos de altura e 50 de largura. No meio da rua Direita, ficava o
terceiro arco, com 106 palmos de algura e 50 de circunferência em « sua arquitetura
corinthia » e tendo duas fontes nos ângulos. O quarto arco tinha 60 palmos de altura e
40 de largura. O quinto arco tinha 50 palmos de altura por 30 de largo. A pouca
distância deste, aparecia o sexto arco, com 60 palmos de altura e 40 de largura. O
sétimo arco com 70 palmos de altura, decoração dórica e jônica e pinturas. Em todos
os arcos, a descrição enfatiza a decoração com tecidos e o acompanhamento de
músicos. Terminado o Te Deum na Catedral, o bispo encaminhou-se para o seu
palácio no morro da Conceição15.
É importante destacar que ao longo de todo o documento, é sempre ressaltada a
atuação do governador Gomes Freire de Andrade e engenheiro militar José Fernandes
Pinto Alpoim.
Dois anos mais tarde, em 21/11/ 1749, chegaram ao Rio de Janeiro, vindas do
Convento do Desterro na Bahia, quatro freiras, com a incumbência de serem as
fundadoras de um convento feminino, que havia recebido a autorização real em 1748.
Ficaram hospedadas no Hospício de Jerusalém, onde abriram noviciado, e aí ficaram
até a entrada solene em maio/1750 no Convento de N. S. da Conceição da Ajuda, cuja
pedra fundamental havia sido colocada em 14/5/1742 e estava sendo terminado pelo
13 Relação da entrada que fez o excelentissimo e reverendissimo senhor D.Fr. Antonio do Desterro
Malheyro, bispo do Rio de Janeiro, havendo sido seis annos Bispo do Reyno de Angola, donde por nomiaçao
de sua Majestade, e Bulla Pontificia, foy promovido para esta Diocese. Composta pelo doutor Luiz Antonio
Rosado da Cunha, Juiz de Fora e Provedor dos Defuntos e Auzentes, Capellas, e Resíduos do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro. Na Segunda Officina de Antonio Isidoro da Fonseca. Anno de M.DCC.XLVII. Com
licenças do Senhor Bispo. Edição facsimilar constituindo volume em apêndice, reproduzido em fotozinco,
in PACHECO, Félix. Duas charadas bibliográficas. Rio de Janeiro: Typ. Do Jornal do Commercio,
Rodrigues & Co., 1931 (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 142.7.1). Segundo Borba de Moraes, a
Relação da entrada... é o primeiro livro impresso no Brasil : MORAES, R. B., (1969), p. 114.
14 Relação da entrada..., p. 7-8.
15 Relação da entrada..., p. 9-19.
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bispo D. F. Antonio do Desterro, com a ajuda do governador Gomes Freire de Andrade,
segundo risco de Alpoim16.
A chegada destas religiosas foi logo motivo de uma « academia », descrita
minuciosamente no documento Parnazo Festivo 17. Foram três certames poéticos,
ocorridos nas noites dos dias 10, 11 e 12 /12/174918. O folheto apresenta sonetos e
glosas, escritas em português, espanhol e latim, além de um fato curioso : diversos
«motes para preto», isto é, motes em português entremeado com palavras africanas,
numa aproximação com a fala típica dos escravos 19.
No dia 30/5/1750, em procissão solene, as freiras, acompanhadas já com dez
noviças, fizeram a entrada solene na parte apenas terminada de construir do
Convento da Ajuda. Estas festividades são relatadas em dois documentos : um
atribuído a Feliciano Joaquim de Souza Nunes20 e outro de autoria de Francisco de
Almeida Jordão21.
No sábado, dia 30/5/1750, o governador Gomes Freire de Andrade e demais
autoridades apanharam as religiosas no Hospício de Jerusalém em carruagens e
levaram-nas para o Mosteiro de S. Bento, de onde saíram em procissão, com a
presença do bispo D. Antonio do Desterro e o Cabido, de todas as ordens e
irmandades religiosas, do Senado da Câmara e demais autoridades. A procissão
percorreu o trajeto do Mosteiro de São Bento até o Convento da Ajuda, com as tropas
dispostas em duas alas ao longo das ruas ornamentadas com flores, folhas,
tapeçarias, colchas e cortinas. Na rua de S. Pedro, contígua a do Carneiro, estava o
Oratório de N. S. do Amparo, onde se construiu um « altar de arquitetura romana », de
onde saíam dois anjos cantando e oferecendo flores. Seguiram pela rua Direita, « que é
16 Noticia da chegada das Religiosas que vierão da Bahia para fundarem o Convento de N. Senhora
da Conceição d’Ajuda na Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro este anno de 1749. Manuscrito,
Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro (BN – ms- II – 34, 15, 45). Ver também MORAES, R. B.(1969), p. 219.
17 Parnazo Festivo que em obzéquio reverente das Preclaríssimas Fundadoras do Convento de novo
eregido na Cidade do Rio de Janeyro, transportadas da Capital da América Portugueza celebrarão com
relevante culto literário em elevado e métrico estilo e a agradável melodia dos concertos mais ajustados nas
apuradas Lyras de Apollo os Acadêmicos desta referida Cidade em tres poéticos certames nas lustrozas
noytes dos dias 10, 11, 12 do mez de Dezembro, anno MDCCXLIX para memorável Posteridade Catholica
tão appetecida Fundação; e as Preclaríssimas Fundadoras D.V.C.M.S. Este manuscrito parece preparado
para o prelo, pois contém, em letra diferente, anotações indicando o lugar na página de ante-rosto a
dedicatória e as indicações para a gravação de uma estampa: “Neste lugar a figura de Apollo com huma
cytara entre os dois Picos de Parnazo e de huma Fonte Cristalina saindo da Pegada de Pegazo e no pé do
Monte as Musas com Cytaras ”. Manuscrito, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro (BN- ms –14 ,1 ,19).
18 Borba de Moraes refere-se às “poesias recitadas na Academia”: MORAES, R. B. (1969), p. 273.
No Rio de Janeiro, por esta época, já havia a Academia dos Felizes, fundada em 1736: SUSSEKIND, Flora.
“A literatura, a cidade e a experiência do presente”. In A paisagem carioca. Rio de Janeiro: Prefeitura do
Rio / Rioarte, 2000, p. 110. Catálogo de exposição.
19 MORAES, R. B.(1969), p.273.
20 Rio de Janeiro Ilustrado.Nos domínios do Mujndo Novo d’America Portugueza em A tórrida
Austral pelo Dia mais plauzivel e festejo mais magnífico, q’nele memoravelmente se celebrou para a
Catholica Posteridade em XXX de Mayo MDCCL [1750] por obzequio à Entrada das Quatro Preclarissimas
Fundadoras para o 1o Convento novamente erigido da Cidade do referido Ryo de Janeiro, transportadas da
Capital do Mundo Novo Brazilico. D.V.C. As Religissimas Fundadoras. M.S. Biblioteca Nacional, Rio de
Janeiro (BN 23, 2, 4 n.27). Borba de Moraes credita a autoria desse documento a Feliciano Joaquim de
Souza Nunes, apoiando-se em trecho do prólogo dos Júbilos da América, em que se atribui a Souza Nunes
a “Relação Panegyrica que discretamente compoz, e acertadamente dedicou a S. Excelência [Gomes Freire
de Andrade] que tanta parte teve na ação, excelente e exatamente descrita da Procissão do Triunfo que as
Meritíssimas quatro Religiosas Fundadoras com dez virtuosas Donzellas... com a mais ayroza retirada que
fizerão do século, recolhendo-se ao novo sumptuoso Convento de Nossa Senhora da Ajuda, por Souza
Nunes”. In MORAES, R. B.(1969). p. 311.
21 Relação da Procição das Religiosas Fundadoras que da Bahia vierão em dia 21 de Nov. do anno
passado de 1749 para fundarem o Convento de Nossa Senhora da Conceição e Ajuda no Rio de Janeiro.
Voltarão para a Bahia no dia 31 de Janeiro tendo-se embarcado no dia 28 da tarde no anno de 1761 por
Francisco de Almeida Jordão. Manuscrito, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro (BN – ms – II – 34, 15 ,45).
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a mais nobre, vistosa e larga que tem a cidade ». Nesta noite e nas duas seguintes,
houve luminárias por toda a cidade. No domingo, segunda e terça feiras, realizou-se o
tríduo, envolvendo cerimônias nas mais importantes igrejas da cidade : no primeiro
dia, « magnífico Pontificial » no Mosteiro de São Bento ; no segundo dia, missa no
Convento de Santo Antônio e de tarde o « Te Deum Saudamos » na Ordem Carmelita ;
no terceiro dia, « Pontificial » do Cabido na Sé, oficiado pelo bispo, e « de tarde se
empenharão no complimento Préduo a Ilma religião da Companhia de Jesus ». Durante
todos os três dias, o bispo recolheu-se no Seminário de São José, que ficava fronteiro
ao Convento das Religiosas, oferecendo « manjares de iguarias ». O governador mandou
armar no átrio da portaria do Convento um taboado, onde foi representado o « Oratório
de Santa Elena, obra do Esigne Comico Matastario ». Também aí havia mesas de
« saborosos e delicados manjares » 22.
Esta sequência de festas – relativas à chegada do bispo D. Antônio do Desterro
em 1746-1747 e à abertura do Convento da Ajuda em 1749-1750 – reúne e destaca a
atuação de três personagens fundamentais na história da cidade nesse momento : o
bispo D. Antônio do Desterro, o governador Gomes Freire de Andrade e o engenheiro
José Fernandes Pinto Alpoim. Juntos estiveram envolvidos, não apenas na construção
do Convento de Nossa Senhora da Ajuda, mas também no Convento de Santa Teresa.
Do trabalho conjunto de Gomes Freire de Andrade e o engenheiro Alpoim resultou
toda uma série de intervenções na cidade, como o novo Paço dos Governadores, a
regularização do Largo do Carmo, os Arcos da Carioca, entre outros. Os festejos
relativos à criação e à abertura do Convento da Ajuda marcam, assim, não apenas um
evento religioso, mas também a incorporação à cidade de novos empreendimentos,
numa cidade em franca expansão.
Três décadas mais tarde, uma outra festividade esteve também estreitamente
articulada a mudanças urbanas. Em 1786, ocorreram no Rio de Janeiro as
comemorações do casamento dos príncipes D. João e D. Carlota Joaquina,
organizadas pelo vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa, com a explícita intenção de
exceder a tudo que tinha sido feito até então no Rio de Janeiro. Tanto a imponência
como a duração dos festejos marcaram época na cidade. Bastante mencionada na
literatura especializada, dela existem dois folhetos – um impresso e composto apenas
de poesias23 e outro manuscrito contendo os desenhos para os carros alegóricos feitos
por Antônio Francisco Soares (FIG. 2) 24.
Esta comemoração durou três dias, de 2 a 4 de fevereiro de 1786, mas
estendeu-se de forma mais esparsa até 28 de maio. Constou pelo menos de touradas e
cavalhadas, além do desfile de carros. Para servir de arena às cavalhadas, foi
construído um anfiteatro no Campo da Lapa do Desterro. O Passeio Público foi todo
iluminado e ornamentado, e recebeu uma arquibancada com camarotes. O desfile dos
carros alegóricos percorreu o seguinte itinerário : começou na rua da Misericórdia –
Relação da Procição...
Epithalamio Métrico que canta a muza lranciscana Fluminense nos felicíssimos despozoriosdos
Sereníssimos S.S. Infantes de Portugal e Castella offerecido ao Illmo. E Exmo. Snr. Vice Rei do Estado o
senhor Luiz de Vasconcellos e Souza por mãos do Ministro Provincial dos Reformacos da Imaculada
Conceição do Brasil, 1786. Manuscrito, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro (BN – ms – 9, 1, 26).
24Relação dos magníficos carros que se fizerão de arquitetura, prespectiva [sic] e fogos: os quais se
executaram por ordem do Illustmo. e Excelmo. Senhor Luis de Vasconcelos, Capitão General de Mar e Terra
e Vice-rei dos Estados do Brazil, nas Festividades dos Despozórios dos Sereníssimos Senhores Infantes de
Portugal nesta cidade Capital do Rio de Janeiro em 2 de fevereiro de 1786, feita na Praça mais Lustroza e
Publica do Paseio desta cidade, executados e ideados pelo o minimo subdito Antonio Francisco Soares,
ajudante agregado. Manuscrito, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Numa documentação
praticamente desprovida de material gráfico, a excepcionalidade destes desenhos vem sendo destacada
por alguns autores. Ver MELLO JUNIOR, Donato. “Antônio Francisco Soares, artista dos desenhos e
carros alegóricos das festividades promovidas pelo vice-rei Luís de Vasconcelos, no Rio de Janeiro em
1786”. In Revista Barroco, n° 15, 1990-1992, p. 353-364.
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certamente partia daí, porque os carros foram construídos na Casa do Trem ; seguiu
pelas ruas da Cadeia, dos Ourives, dos Barbonos, das Belas Noites ; e finalizou no
Passeio Público e no Campo da Lapa. O destaque do Passeio Público é feito, não
apenas no programa, mas também no próprio folheto, pois é citado no título que a
festa foi « feita na praça mais lustroza e pública do Passeio desta cidade » 25. Construído
de 1779 a 1783 pelo Mestre Valentim, o Passeio Público constituía provavelmente o
mais formidável elemento de modernização da cidade – entre inúmeros outros
instituídos pela administração progressista do vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa.
Resultado do aterro da Lagoa do Boqueirão, tradicionalmente apontada como
pestilenta, esta obra de saneamento ensejou a construção de um jardim à francesa,
situado à beira-mar. É bastante significativo o fato dessa festa se concentrar na parte
da cidade em torno do recém-criado Passeio Público, contrariando uma tendência que
se vinha consolidando ao longo de todo o século na utilização do Campo de Santana
para esse tipo de eventos26.
Os seis carros alegóricos são minuciosamente descritos na documentação : o
primeiro carro representava Vulcano num monte, puxado por uma serpente
flamívona ; o segundo, Júpiter, puxado por uma águia ; o terceiro, Baco (FIG. 3) ; o
quarto, os mouros (FIG. 4) ; o quinto, as cavalhadas sérias (FIG. 5) ; e o sexto, as
cavalhadas jocosas (FIG. 6).
Estas festas, portanto, além de servirem para a comemoração de fatos
específicos – quer sejam de ordem religiosa ou de reiteração do poder real – tinham
ainda a função de destacar a realização de obras na cidade – não apenas para seus
usuários, mas também para a metrópole, através dos relatos laudatórios. Desta forma,
as festas celebram também a ampliação ou o embelezamento da cidade. Celebram a
construção de um monumento ou de um espaço público, especialmente na segunda
metade do século XVIII - época da história da cidade, marcada por grandes
modificações políticas, econômicas e urbanas, em que inúmeras intervenções são
realizadas por administrações progressistas, identificadas com o programa
modernizador da metrópole durante o período pombalino.
Estas festas públicas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro durante o século
XVIII, são, enfim, não apenas estratégias de confirmação do poder da metrópole e da
monarquia portuguesa, mas também eventos destinados a marcar mudanças
significativas no cenário urbano da cidade colonial.
Relação dos magníficos carros...
Observando outras descrições de festas realizadas no Rio de Janeiro durante o século XVIII,
com programação envolvendo touradas, cavalhadas e outros jogos, verifica-se que a tendência dominante
era aproveitar a vastidão do Campo de Santana para a construção de arena com arquibancas. Essa era,
inclusive, a parte nova da cidade, menos adensada, e, portanto, mais apropriada a tais eventos. Ver
PEREIRA, Sonia Gomes. A representação do poder real e as festas públicas no Rio de Janeiro colonial.
Porto: II Congresso Internacional do Barroco, 2001.
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