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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
JOSÉ HUMBERTO TORRES FILHO
Eles têm asas e querem voar: a experiência urbana dos
dragões de Caio Fernando Abreu
Rio de Janeiro
2011
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ELES TÊM ASAS E QUEREM VOAR
A experiência urbana dos dragões de Caio Fernando Abreu
José Humberto Torres Filho
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro como quesito para a obtenção do
Título de Mestre em Letras Vernáculas
(Literatura Brasileira).
Orientador: Profa. Doutora Rosa Maria de
Carvalho Gens
Rio de Janeiro
Março de 2011
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Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de
Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Profa. Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens
_________________________________________________
Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto – UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor André Bueno – UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Adauri Bastos – UFRJ, Suplente
_________________________________________________
Profa. Doutora Marta Alckmin – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Março de 2011
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Sobre o focinho de escamas, o olho se abre e
se fecha, e é esse olho “evoluído”, dotado de
olhar, atenção, tristeza, que dá a idéia de que
um outro ser se esconde sob aquela
aparência de dragão: um animal mais
semelhante àqueles nos quais depositamos
confiança, uma presença viva menos distante
de nós do que parece...
Italo Calvino, Palomar
Quero outra vez um quarto todo branco e um
par de asas. Mesmo de papelão.
Caio Fernando Abreu, Ovelhas negras
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RESUMO
Eles têm asas e querem voar:
a experiência urbana dos dragões de Caio Fernando Abreu
José Humberto Torres Filho
Orientadora: Prof. Dra. Rosa Gens
O presente estudo tem por objetivo oferecer uma leitura da obra Os dragões
não conhecem o paraíso, de Caio Fernando Abreu, assumindo como fio
condutor a experiência do homem habitante da metrópole. A visão crítica do
autor concentra-se numa modernização que desvaloriza as relações humanas,
subjuga a sensibilidade e a memória e sentencia à apatia os jovens dos anos
80. A percepção do espaço urbano revela-se comprometida pela construção
arquitetural aparentemente sem limites e pelo acúmulo de imagens. A cidade
de São Paulo, no fim do século XX, serve de cenário para as narrativas,
embora o ambiente externo seja minimamente referido. Cinza e solitária, ela
surge repetidamente contraposta a uma luminosidade que se ensaia enquanto
desejo de transformação dessa realidade. A herança contracultural do autor o
posiciona
em
direta
oposição
a
essa
sociedade
uniformizadora
e
racionalizante. O campo, associado à natureza e à infância, funciona como
espaço da memória, remetendo a valores de uma sociedade pré-capitalista.
Palavras-chave: cidade; campo; contracultura; anos 80; ficção brasileira; Caio
Fernando Abreu
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ABSTRACT
They have wings and want to fly: the urban experience of Caio Fernando
Abreu’s dragons.
José Humberto Torres Filho
Supervisor: Prof. Dra. Rosa Gens
This study aims to offer a reading of Os dragões não conhecem o paraíso, by
Caio Fernando Abreu, assuming as a guide the human inhabitant’s experience
of the metropolis. The author’s critical view is concentrated on the
modernization process which devalues the human relations, subjugates
sensitivity and memory and sentences the apathy of the 1980s youth. The
perception of urban space seems to be compromised by the apparently limitless
architectural construction and the accumulation of images. The city of São
Paulo in the late twentieth century serves as a scenario to the narratives,
although the external environment is minimally described. Lonely and gray, the
city is repeatedly contrasted to luminosity that means a desire to change that
reality. The author's countercultural heritage stands in direct opposition to that
standardizing and rationalizing society. The countryside, associated to nature
and childhood, works as memory space, referring to values of a pre-capitalist
society.
Key words: city; country; counterculture; 1980s; Brazilian fiction; Caio Fernando
Abreu
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AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal do Rio de Janeiro, que tão carinhosamente me recebeu
durante esses dois anos.
À Rosa Gens, que de imediato aceitou orientar esta pesquisa com um sorriso
acolhedor diante da proposta de trabalhar com Caio Fernando Abreu.
Aos professores, que com seus cursos me proporcionaram, além do
conhecimento, o contato com colegas brilhantes.
Aos funcionários Laelson e Ângela, pela paciência que demonstraram em
guiar-me pelas burocracias que a academia por vezes nos reserva.
A meus pais que continuam apostando suas fichas nessas letras.
A meus amigos de sempre, pelo apoio, carinho e palavras de estímulo,
especialmente Viviane Souza, Germana Rodrigues e Fagner Silveira, pela
revisão que realizaram deste trabalho.
A Eliane Alves e Érico Muniz, amigos que esta cidade me proporcionou e que
em vários momentos foram também um pouco minha família.
A Vinício Brígido por ter sido um ouvinte tão atencioso e novamente a voz mais
grave que poderia me aconselhar.
À CAPES, pela bolsa de estudos.
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SUMÁRIO
Introdução ...................................................................................................... 10
Capítulo 1: O magnésio explodiu em claridade ......................................... 16
1.1.
Cego na cidade cega ............................................................................ 23
1.2.
A linguagem cinematográfica ................................................................ 29
Capítulo 2: Moloch incompreensível prisão ............................................... 40
2.1. Saia da frente da minha luz! ..................................................................... 52
Capítulo 3: Em rua em vão ........................................................................... 67
3.1. Campo e cidade ....................................................................................... 77
Considerações finais .................................................................................... 88
Bibliografia ..................................................................................................... 92
Apêndice: Nada a falar, só a mostrar ..........................................................102
10
INTRODUÇÃO
Este trabalho analisa a produção do autor gaúcho Caio Fernando Abreu
a partir da representação da vida do homem urbano do final dos anos 80. A
cidade contemporânea de que trata o autor é uma São Paulo escura,
incrivelmente vazia, cuja lógica conduz o sujeito a uma solidão aparentemente
irremediável. Publicado em 1988, Os dragões não conhecem o paraíso, livro de
Caio que funciona como fio condutor para a discussão aqui proposta,
apresenta a imagem de um Brasil atordoado, poluído, vivendo uma
modernização violentamente desumana.
Logo no primeiro conto, uma folha de jornal estampa a manchete: “País
mergulha no caos, na doença e na miséria” (2005, p. 22). O olhar pessimista
sobre o país, redemocratizado havia pouco, volta-se para o homem,
focalizando as misérias pessoais dessa gente quase sempre anônima.
A escolha pelo estudo da vida nas cidades nasceu justamente do desejo
de compreender a produção de Caio Fernando a partir dessa, que é uma de
suas facetas mais fortes, a política. Sua ficção é responsável por alguns dos
mais importantes momentos de lucidez crítica com relação à experiência da
opressão pelo regime militar na prosa brasileira e, conforme observa o
professor Jaime Ginzburg (apud DIP, 2009, p. 137), ainda está para ser melhor
compreendida
nesse
sentido.
Longe
de
apresentar-se
apenas
como
testemunho ou puro relato de um período histórico, a escrita de Caio Fernando
revela uma linguagem rigorosamente trabalhada, apostando na sutileza de
metáforas bem construídas, definindo um caminho crítico que se concentra no
sentimento do homem, sempre em busca de uma transformação.
Principalmente a partir da publicação de Os dragões não conhecem o
paraíso, o autor transcende a questão da ditadura e assume um
posicionamento crítico em relação ao capitalismo, ressaltando sua natureza
excludente. Surge aqui o protesto relativo à mecanização da vida, à reificação
das relações sociais, à dissolução de um passado ligado a tradições pré-
11
capitalistas. Nesse sentido, o tema da cidade revela-se inescapável. O principal
símbolo da crítica ao progresso técnico assumida por Caio Fernando reside
justamente nesse “testemunho vivo do legado da história” (FABRIS, 2000)
chamado cidade. É no ambiente urbano por excelência que se sente mais
agudamente as conseqüências do desenvolvimento do sistema capitalista e da
Revolução Industrial. O signo do progresso transforma o espaço citadino,
dando origem a uma cidade que se dispersa, ultrapassando suas próprias
fronteiras, sentenciada a um gigantismo crescente. O caos da metrópole leva
seu habitante a viver num permanente auto-aniquilamento.
Na obra de Caio Fernando, a representação da cidade labiríntica é
assumida reiteradamente, invocando sempre a imagem do homem perdido,
abandonado. Curiosamente, em nota ao leitor, ele define Os dragões como um
livro sobre o amor – “amor e sexo, amor e morte, amor e abandono, amor e
alegria, amor e memória, amor e medo, amor e loucura” (2005, p. 19). A cidade
que ele nos apresenta, no entanto, evoca a todo instante a dispersão que não
oferece espaço para o sensível, a impossibilidade de comunicação,
compreensão. Márcia Denser não deixa de observar que se trata, na verdade,
de um livro “sobre o que o amor não é” (2005, p. 9), revelando uma concepção
de amor por parte de Caio distante da solaridade do sentimento, apoiando-se
numa visão sombria catalisada pelas relações com a morte, o abandono, a
memória, o medo e a loucura. Ela lembra que esse amor “sinistro e noturno,
representado sempre como maldição, nunca benção” (idem), é o amor tal como
era vivido por ele próprio.
Caio Fernando, de fato, é um autor cuja produção revela-se indissociável
da biografia, um pouco como Oswald de Andrade ou ainda o cubano Reinaldo
Arenas, por quem possuía profunda admiração. Nesta análise, optei por não
dedicar um tópico específico voltado para os aspectos biográficos no intuito, é
claro, de conferir certa fluidez para o texto, mas, sobretudo, de abordar as
incontáveis relações entre ficção e realidade em diálogo direto com outros
elementos interpretativos, compondo uma teia capaz, assim espero, de dar
conta da complexidade das narrativas.
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A morte de Caio, em fevereiro de 1996, aos 47 anos, interrompeu uma
carreira de ficcionista exemplar. Ele se descobriu doente em 1994, em pleno
processo de internacionalização da sua obra que teve início em 1991 com as
traduções francesa e inglesa de Os dragões, chegando a disputar o Prêmio
Laura Batttaglion com nomes como Philip Roth e Paul Auster na categoria
melhor romance estrangeiro traduzido com Onde andará Dulce Veiga?. Já
internado com AIDS em um hospital de São Paulo, Caio partilha a experiência
com seus leitores nas “Cartas para além do muro” – conjunto de crônicas
publicadas em O Estado de S. Paulo. Ele passou os últimos dias de sua vida
no tradicional bairro do Menino Deus em Porto Alegre cuidando do jardim da
casa dos pais. A imagem de Caio já fragilizado ao lado de imensos girassóis,
planta que acabou tornando-se um símbolo de sua escrita sombria em busca
de luminosidade, conforme Italo Moriconi, não poderia ser mais significativa.
Reunidas na antologia Pequenas epifanias, as crônicas de Caio
Fernando mostraram-se fundamentais para a construção deste trabalho.
Resgato Raúl Antelo, que, analisando os escritos de João do Rio, observa que
a crônica é a própria alegoria da modernidade, por concentrar-se numa
observação atenta do ritmo urbano. No caso de Caio, que sempre protagonizou
uma
relação
autobiográficas,
conflituosa
possuem
com
o
uma
jornalismo,
natureza
as
crônicas,
“explicitamente
além
de
literária”
(GONÇALVES FILHO, p. 6). Em uma de suas mais belas crônicas, intitulada
“Pálpebras ardentes”, ele situa o leitor numa tarde fria em plena Rua Augusta
diante de uma mulher, encostada na porta de um bar, de cabelos e rosto
exageradamente pintados, de minissaia. Trata-se de uma prostituta, “explícita,
nada sutil, puro lugar-comum patético” (2006, p. 61), chorando, silenciosa, com
a maquiagem escorrendo pela face, “meio palhaça”. Sozinha, ela não é notada
por ninguém e parece não notar os demais, tão voltada para sua própria dor.
O sofrimento dessa mulher se funde à realidade do Brasil, tantas vezes
explorado, maltratado, abandonado. Assim, ele pergunta: “Quem consola
aquela prostituta? Que me consola? Quem consola você, que me lê agora e
talvez sinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo?” (idem).
Lembrando a cena final de “Noites de Cabíria”, de Fellini, o autor sugere que a
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arte e a beleza talvez sejam as únicas expressões positivas que essa
experiência poderia gerar. Essa crônica possui movimento que se apresentará
em toda produção do autor, de uma valorização da sensibilidade como
resistência à desumanização da metrópole.
A primeira parte do título deste trabalho surge justamente a partir de
uma crônica1 publicada à ocasião do lançamento de Os dragões não
conhecem o paraíso, em 1988, em que Caio Fernando reitera a importância da
loucura, do inconformismo como signos da liberdade de uma sociedade de
classe média. Os dragões são figuras que simbolizam a renúncia desse
paraíso oferecido pelo capital. As asas que eles possuem assumem a metáfora
mais forte que comumente lhe é conferida, a da liberdade, que também pode
representar a imaginação, a criatividade, o amor. “Eles têm asas e querem
voar”, afirma o autor. Certa nuance melancólica se ensaia na dose de
impossibilidade que o verbo “querer” carrega. De alguma forma, eles parecem
presos – como os habitantes de uma cidade babélica –, desejando transcender
a realidade urbana.
Para realizar a leitura desses contos, apoiei-me basicamente nos
escritos de Walter Benjamin, considerando sua intenção de recontar a história
do ponto de vista dos vencidos2, a utilização da nostalgia do passado como
crítica do presente. O método de resistência benjaminiano diante do
empobrecimento das relações, da mecanização da vida baseia-se na
delicadeza de uma linguagem essencialmente metafórica, apresentando uma
visão crítica que procura restituir a sensibilidade que a vida na cidade pôs fim.
Na primeira parte deste trabalho remeto-me ao trabalho de Benjamin sobre a
modernização de Paris no século XIX, concentrando-me no papel que o olhar
assume ainda na cidade moderna, da percepção das mudanças urbanísticas,
do embate com a multidão.
1
2
O titulo da crônica é “Venham ver os dragões”. Ela está publicada na antologia Caio 3D: 80.
Michael Löwy considera o caráter universal da proposição de Benjamin em privilegiar a
versão dos vencidos: “não só a história das classes oprimidas, mas também a das mulheres –
metade da humanidade –, dos judeus, dos ciganos, dos índios das Américas, dos curdos, dos
negros, das minorias sexuais, isto é, dos párias – no sentido que Hannah Arendt dava a este
termo – de todas as épocas e de todos os continentes”. (2005, p. 39)
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Nesse momento inicial, procuro compreender a relação dialética que os
elementos visível e invisível assumem na obra de Caio Fernando,
considerando o consumo de imagens que o estilo de vida moderno impõe, as
construções arquiteturais que limitam a sensibilidade do homem, representados
por uma linguagem essencialmente visual.
Os dois capítulos seguintes apresentam movimentos complementares e
que, de alguma forma, sintetizam uma espécie de ritmo dos treze contos que
compõem Os dragões não conhecem o paraíso. A estratégia narrativa de não
priorizar a descrição de espaços externos oferece uma cidade representada a
partir de espaços internos, tendo o apartamento e o bar como ambientes
predominantes.
Assim sendo, o capítulo seguinte trata daqueles personagens que estão
isolados em casa. A janela, elemento que funciona como limiar entre o público
e o privado, o externo e o interno, surge recorrente nesses contos. A paisagem
que se ensaia de seus domínios desvela uma São Paulo sufocante, dominada
pelo cinza do concreto. O envolvimento da produção de Caio com São Paulo é
tão intenso que leva Moriconi a perguntar: “Caio é escritor gaúcho ou paulista?”
(2002, p. 17). Em Caio, a representação dos símbolos da modernização vem
sempre acompanhada da ausência humana. Trata-se de uma opção estilística.
São nas sombras desse confinamento que ele parece indicar uma saída,
mesmo que discreta. Identifico essa saída como a luz utópica que move sua
literatura. Essa utopia tem raiz no movimento contracultural, que desponta no
Brasil já sob a insígnia da desilusão.
No terceiro e último capítulo, identifico o espaço do bar como um
ambiente que mantém a atmosfera de transição típica da rua, concentrando
suas contradições. À cidade como promessa de encontro com o outro, é
contraposta mais uma vez a cidade dispersiva. A AIDS é representada como
um elemento que trabalha a favor do isolamento. Essa cidade conduz o homem
a uma valorização da relação com a natureza. O contraponto campo e cidade é
aqui analisado, assumindo as metáforas que envolvem a fictícia Passo da
Guanxuma como um refúgio da memória.
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Algumas observações pessoais para concluir esta introdução. Descobri
os escritos de Caio Fernando Abreu em fevereiro de 2006, após ler um
especial de domingo do caderno “Vida & Arte” do jornal cearense O Povo
dedicado exclusivamente ao autor. Desde o ano anterior à publicação do
periódico, a obra de Caio passava a ser relançada pela editora Agir, marcando
os dez anos de seu falecimento. Os fac-símiles das cartas, os títulos dos livros,
as análises dos especialistas, difícil localizar no tempo o que exatamente me
levou a ir além da leitura daquele jornal direto para as páginas de Morangos
Mofados. De todo modo, realizei a leitura de boa parte dos livros de Caio
Fernando no conforto e segurança da casa paterna, no coração do cartesiano
bairro da Aldeota, a pequena aldeia fortalezense, tantas vezes modificada,
vítima da incontrolável especulação imobiliária. Já a produção deste trabalho
deu-se quase completamente no Rio de Janeiro, na confusa Copacabana de
tantos estrangeiros. Estar em trânsito entre cidades ao longo de uma pesquisa
que trata do homem deslocado, da memória, da solidão, conduziu-me a
percepções inéditas de narrativas tão íntimas, só possíveis graças um olhar de
estranhamento que, espero, também tenha influenciado meu texto de uma
verdade muito pessoal.
16
CAPÍTULO I –
O MAGNÉSIO EXPLODIU EM CLARIDADE
Falta-lhe a disposição mais elementar para
poder seguir os passos de seu primo digno e
paralítico, ou seja, um olho! Um olho que
realmente enxergue!
E. T. A. Hoffmann, A janela de esquina
do meu primo
Considerada uma das mais remotas manifestações da tematização
literária da metrópole moderna, a novela A janela de esquina do meu primo3,
de Hoffmann, relaciona-se de maneira direta com a observação e a
contemplação da vida urbana. A narrativa tem como fio condutor a visita do eunarrador à casa de seu primo, um escritor paralítico, que, do alto de sua janela
situada diante de uma praça berlinense, observa a movimentação dos
frequentadores de uma feira a céu aberto. Revelando uma multidão convulsiva,
representada por diferentes cores e movimentos, como um campo de tulipas
sacudido pelo vento, a vista panorâmica serve, sobretudo, para o exercício do
olhar empreendido por aquele que visita o primo doente. Este personagem
ensina ao visitante que é necessário certa sensibilidade para comungar a visão
exterior com a interior, inaugurando “um olho que realmente enxergue” (2010,
p. 16).
A partir dessa concepção de um olho íntimo, o autor apresenta não por
acaso o cenário de um amplo comércio, contemplando os passantes que
compram, vendem, regateiam ou apenas flanam na feira. A escolha por um
mercado como pano de fundo remete a uma representação crítica da cidade
grande. O olhar, mais que adaptar-se a esse quadro tão confuso de pessoas,
3
Escrita em 1822, essa narrativa é considerada a produção mais fortemente autobiográfica do
autor. Hoffmann a concebeu poucas semanas antes de morrer, no último estágio de uma
doença que lhe privou o uso dos membros, obrigando-o a ditá-la ao enfermeiro que o
acompanhou. Além da doença, outro importante dado utilizado a partir de circunstâncias
pessoais é exatamente a vista panorâmica de seu apartamento de esquina diante do
Gendarmenmarkt (Cf. MAZZARI).
17
precisa interpretar as ações, os gestos dos indivíduos. Dessa forma, as
mulheres descritas logo no início da narrativa tornam-se elementos da
ganância econômica, da inveja que rivaliza os comerciantes. A sociedade
burguesa é representada pela figura de uma mulher, que, “embora haja lugar
suficiente para passar, vai abrindo caminho às cotoveladas” (p. 18),
desvendando também uma ácida perspectiva sobre o casamento, confundido
com a administração de um negócio (Cf. Mazzari). Em outro caso, a jovem
escarnecida pelas vendedoras por não ter o dinheiro suficiente para a compra
de um lenço é contraposta a outra, “filha de um alto secretário de Fazenda” (p.
25), que, acompanhada por uma empregada, transparece a falta de intimidade
com o ritmo da multidão.
Walter Benjamin, no sétimo capítulo de “Sobre alguns temas em
Baudelaire”, observa que o personagem de Hoffmann representa o homem
privado que não interage com a multidão, isolado no ambiente doméstico,
aproximando-o de valores conservadores que enaltecem a solidez da vida
burguesa. Marcus Mazzari, em ensaio intitulado “Hoffmann e as primícias da
arte de enxergar”, não deixa, entretanto, de ponderar que as observações do
escritor paralítico sobre os indivíduos que frequentam a feira e a opção por
retratar o mundo das mercadorias e de sua circulação definem uma decidida
posição crítica sobre o mundo burguês. Benjamin, no entanto, a toma no intuito
de lê-la em comparação ao conto O homem da multidão, de Poe, buscando
estabelecer uma marca definidora para a figura do flâneur: a mobilidade na
multidão.
Figura multifacetada e essencialmente dialética, o flâneur é, antes de
tudo, um caráter social típico da Paris do século XIX (Cf. Bolle), em seu deleite
pelo espetáculo da metrópole, percorrendo suas vias sem objetivo específico,
contracenando com uma multidão encantada pelo consumo, que disputa
espaço com a paisagem que constantemente se modifica. O primo da novela
de Hoffmann não poderia ser um flâneur exatamente por estar afastado da
multidão, escondido no interior de seu apartamento. Sua condição de paralítico
o impede de seguir o fluxo dos passos na feira. Além disso, Benjamin
considera que Berlim não seria o cenário ideal para uma multidão moderna.
18
Sobre isso ele diz: “Se algum dia Hoffmann houvesse conhecido Paris ou
Londres, se houvesse visado à representação da massa como tal, não se teria
fixado, então, em uma feira” (p. 123).
O flâneur, assim como o escritor de Hoffmann, é um solitário, mas vive
sua solidão entre as pessoas. Ele precisa misturar-se a elas e ao mesmo
tempo preservar sua privacidade. Essa ambivalência sobrevive no cenário das
galerias parisienses, espaço privilegiado para o exercício de observação do
ritmo urbano. Funcionando como uma cidade, ou ainda, como um mundo em
miniatura, segundo Benjamin, as galerias eram um meio-termo entre a rua e o
interior da casa, despontando como o lugar propício para o desenvolvimento da
flânerie.
Já o homem da multidão do conto de Poe também não poderia ser o tipo
do flâneur justamente porque a ele falta o espaço livre encontrado nas galerias
e o comportamento tranquilo – Benjamin o aproxima a um maníaco –,
fundamental para o exercício de uma percepção aguda, que o faz se interessar
vivamente pelas coisas, inclusive as mais triviais. Para Benjamin, Baudelaire é
a verdadeira figura do flâneur. Seus poemas condensam a imagem do homem
morador das grandes cidades que, além de observar, vive em seu cotidiano as
intensas transformações consequentes do processo de modernização. O
próprio Baudelaire não experimentou as mudanças a que Paris era submetida
à distância. Enquanto a capital francesa seguia seu curso modernizador, sob o
comando de Napoleão III e das construções e desconstruções de Haussmann,
Baudelaire trabalhava na cidade, lado a lado com as multidões, nos bulevares.
É no cenário das transformações urbanas que caracterizam a Paris do século
XIX que a flânerie ganha espaço.
No flâneur, conforme Benjamin, “o desejo de ver festeja o seu triunfo”
(1989, p.69). Aqui o autor alemão ressalta que o olhar que esse homem lança
sobre a cidade concentra-se na observação da vida urbana. Um olhar que
resvala para a estupefação transforma o flâneur no basbaque, naquele que
transita inerte pela metrópole, perdido em suas preocupações e pensamentos.
O exercício gratuito do olhar é “o único capaz de satisfazer um espírito curioso,
19
de trazer alimento a um sistema nervoso eternamente crispado e alerta”
(FABRIS, p. 70). A rua na flânerie passa a funcionar, portanto, como um
dispositivo do olhar; e a cidade, por sua vez, revela-se imagem. Sobre isso
Benjamin nos diz: “Aquilo que sabemos que, em breve, já não teremos diante
de nós torna-se imagem” (1989, p. 85). A paisagem dessa metrópole moderna
se erige exatamente a partir da destruição de um presente que rapidamente
transforma-se em passado remoto.
A Paris do final do século XIX ganha configuração em um mundo ainda
dividido entre as mudanças próprias da vida moderna e a forte presença de um
espírito tradicional. O homem que flana era habitante de uma cidade cujas vias
eram ainda estreitas e, no entanto, já tomadas por veículos. Na cidade
contemporânea, o passado passa a fazer parte da malha urbana, sendo
recuperado e preservado.
Essa valorização do antigo divide cena com a
destruição de instituições tradicionais, assim como, das mais belas realizações
da própria cultura moderna (Cf. Berman). Não existe apenas uma multidão,
trata-se agora de diversas multidões que fragmentariamente se cruzam
frenéticas no espaço da cidade. Se, na Paris do século XIX, os pedestres já
disputavam espaço com os veículos, no cenário atual, com as construções das
avenidas expressas e autovias, o homem cede completamente território aos
automóveis. A proliferação de signos na cidade contemporânea parece
irreprimível. Berman compara Nova York a uma “floresta de símbolos
baudelairiana”, lembrando que a cidade se transformou numa “produção”, num
“espetáculo multimedia”, tendo o mundo como audiência. A maior e mais
importante metrópole atual, continua Berman, é um lugar em que seus
símbolos estão em incansável conflito uns com os outros, eliminando-se
mutuamente.
A concentração de símbolos monumentais é própria da estrutura de
megalópoles, constituindo uma desordem visual que conduz seu habitante a
uma “aventura da percepção cotidiana da cidade” (2005, p. 81). O olhar do
flâneur, como o concebia Benjamin, já não encontra lugar no cenário da
metrópole contemporânea. Os modernistas de hoje, observa Berman,
orientam-se para espaços mais pessoais e privados que a rua. Observar a
20
cidade a partir de suas vias, como era o propósito do olhar desatento do
homem que flana, torna-se tarefa impossível de ser realizada na cidade atual.
A nova imagem urbana que se forma resulta em confuso palimpsesto. Nelson
Brissac Peixoto considera a ação do olhar do homem citadino “um embate com
uma superfície que não se deixa perpassar” (PEIXOTO, 2004, p. 85). A
paisagem das cidades tem horizonte espesso e concreto. Da janela, o
habitante descobre o muro do edifício em frente como única paisagem.
No universo literário de Caio Fernando Abreu, o olhar humano ganha
espaço privilegiado, revelando que viver em uma cidade que não se deixa
contemplar nem ousa contemplar quem a habita resulta em aterradora solidão.
Os olhos são elementos recorrentes em crônicas, cartas e contos do autor
gaúcho, conduzindo o leitor a uma inevitável aproximação da realidade
concebida por seus personagens. São Paulo, invariavelmente noturna e
confusa, surge como a metrópole contemporânea que serve de cenário para
suas narrativas, impondo-se inacessível ao olhar de seu habitante. Como
estratégia narrativa, o autor distancia-se da descrição do espaço urbano,
voltando-se para a dificuldade de perceber o outro, concentrando-se em
personagens abandonados que assumem o movimento de encarar com certo
ineditismo a cidade e, ao mesmo tempo, parecem despercebidos pelos demais.
Em um de seus mais famosos contos, intitulado “Dama da noite”, a
mulher que assume integralmente a narração parece propor ao boy, seu
interlocutor, um exercício do olhar. “Agora quero falar na roda. Essa roda, você
não vê garotão? Está por aí, rodando aqui mesmo. Olha em volta, cara. Bem
do teu lado” (p. 84). Essa mulher anônima, de meia idade, sentada num bar
qualquer, recorre à imagem de uma roda gigante para atestar seu isolamento.
Os olhos do boy, integrante dessa roda que exclui sem piedade os que ousam
diferenciar-se, estão viciados e não percebem o que para a dama da noite é
tão evidente. Olhar em volta e reparar no outro parece tarefa difícil na
metrópole. Para a dama da noite, deslocada que está no espaço urbano, lhe é
impossível assumir outra visão da cidade senão a do lugar estranho. Em seu
discurso pautado por certa desilusão e profunda revolta, essa mulher parece
querer conduzir o olhar do boy ao estranhamento da sociedade. Marcados pela
21
posição de estrangeiros na cidade, os personagens de Caio Fernando têm a
ação do olhar como preponderante, funcionando como recurso capaz de guiar
o leitor a essa visão “esquerda”.
Mais que um olhar de viés que se volta para a cidade, os personagens
de Caio Fernando procuram um olhar que os olhe de volta. A dama da noite
parece reiterar em seu discurso que estar fora da roda significa assumir-se
opaca ao olhar dos demais. Nonato Gurgel, em ensaio publicado na revista
Terceira Margem, ressalta a existência de um “olhar invisível” nos personagens
que povoam a produção de Caio Fernando. Segundo ele, ao realizar a ação de
observar um indivíduo, essas personagens não são percebidas por esse outro
a ser observado, potencializando assim o sentimento de abandono que aflige o
homem urbano. No conto “À beira do mar aberto”, o narrador-personagem
revela: “teu olho bate em mim e se desvia, como se em minhas pupilas
houvesse uma faca, uma pedra, um gume” (p. 39). A estética do olhar invisível
assumiria exatamente o desvio inerente aos homens e mulheres que dominam
as narrativas.
Conferindo vitalidade a esse olhar solitário, a contemplação por parte
dos personagens da própria imagem no espelho surge com recorrência. O filho
que visita a mãe no conto “Linda, uma história horrível” busca os olhos dela ao
longo da narrativa para que, desse encontro de olhares, uma troca possa
realmente ocorrer. Trata-se de uma tentativa de captar um olhar que o olhe de
volta. Ser visto, além de ver, é um desejo que domina essa personagem. O
jogo de encontros e desencontros entre os olhos dessa mãe e seu filho marca
o ritmo que conduz o conto e define a posição de incompreensão e abandono
em que ele se encontra. No final da narrativa, descobrindo que seu intento em
dividir a verdade sobre sua condição de soropositivo com a mãe seja talvez
impossível, esse homem percebe que o único encontro que lhe resta é com
seu próprio reflexo: “No fundo do espelho na parede da sala de uma casa
antiga, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase
raspados, olhos assustados feito os de uma criança” (p. 28).
22
A imagem que se revela no espelho parece não se mostrar inteiramente.
O personagem do filho consegue avistar apenas sua sombra, vulto estranho
que evidencia o desgaste de um ser desprotegido e sem chance de redenção.
Em outro conto, intitulado “Saudade de Audrey Hepburn (nova história
embaçada)”, o narrador em certo momento diz: “ele agora se interrompe para ir
até o banheiro, onde olha a cara no espelho sem ver precisamente nada, fora
os dois vincos cada vez mais fundos ao lado da boca” (p. 50). As pessoas
parecem difusas, ou mesmo embaçadas, como sugere o subtítulo deste conto,
diante da reprodução da própria imagem. O espelho surge nas narrativas de
Caio Fernando como elemento capaz de dar vigor ao sentimento de isolamento
que domina suas personagens. Eles estão perdidos, lutando para resistir ao
embrutecimento que a metrópole impõe. Porém a vida na cidade parece não
oferecer saída. Esse homem, incapaz de perceber seu próprio rosto no
espelho, em certo momento se descobre “sobre o viaduto, onde perdido,
caminhava sem poder escolher o lugar para onde ia. Porque os viadutos, você
sabe, conduzem a um só lugar, independente de você querer ir ou não pra lá”
(p. 50).
Figura metonímica da cidade, o viaduto condensa a imagem do indivíduo
atordoado, sem possibilidade de transcender essa realidade e a paisagem
aprisionadora que lhe indica apenas um caminho a seguir. Nesse cenário,
surgem os rostos que perderam a nitidez diante do sofrimento imposto pela
vida urbana. A fisionomia desses homens acaba assim por revelar a fusão que
aí existe com a paisagem da cidade que eles habitam.
A arquitetura localiza suas casas, cidades, monumentos
e fábricas, que funcionam como rostos numa paisagem
que ela transforma. A pintura retoma o mesmo
movimento, mas invertido, colocando uma paisagem em
função do rosto, tratando um como o outro: tratado do
rosto e da paisagem. (Deleuze; Guatari apud PEIXOTO,
2003, p. 73)
23
Difusa, imprecisa, a paisagem que essa metrópole contemporânea
oferece aos personagens de Caio Fernando indica que talvez essa fixação pelo
olhar esconda o medo da cegueira. Se os rostos desses homens evocam a
paisagem da cidade, que imagem um espelho poderia revelar de suas
fisionomias? Sombras e embaçamentos, parece nos responder o autor gaúcho.
Como a Nova York de Berman, imersa na luta que envolve seus símbolos
monumentais, a cidade que serve de cenário para as narrativas de Caio
Fernando também parece aproximar-se cada vez mais dessa cegueira que
envolve a todos. Como único resultado possível tem-se uma paisagem
dominada pelo cinza do concreto, catalisador da desordem visual própria do
espaço citadino.
1.1.
Cego na cidade cega
Como um papel fotográfico mergulhado em seus químicos, a metrópole
moderna evidencia-se ao olhar, sugerindo contornos, ameaçando paisagens.
Na revelação de uma fotografia, o surgimento quase mágico da imagem sobre
o papel tem a luz como único instrumento capaz de transformar os
microscópicos sais de prata em forma e textura, desvendando ângulos,
enquadramentos. A cidade, por sua vez, deixa-se notar por seus outdoors
luminosos, seus anavalhados arranha-céus, seus automóveis de faróis
incandescentes, desafiando o olhar humano com o que lhe parece
infinitamente maior. No processo fotográfico, no entanto, é preciso encontrar o
ponto certo, um limite, para que a imagem que então desponta não se perca na
escuridão de uma super-revelação. Para tal, utiliza-se novo produto químico,
capaz de neutralizar aquela solução primeira, responsável pela mágica de
transformar o nada em imagem. A metrópole que se oferece a seu habitante
desconhece fórmula semelhante, encontrando-se fadada a uma revelação
descontrolada que intervenção alguma poderia interromper. O encantamento
urbano turva o olhar do habitante, lembrando que tanta sedução visual pode
24
encontrar seu ponto máximo na cegueira do homem, como uma fotografia
abandonada em eterna revelação.
O olhar que se volta para a cidade assume um embate com a superfície
de uma paisagem que não se deixa perpassar. Trata-se de uma paisagem
construída a partir de uma arquitetura que divide espaço com um emaranhado
de imagens e seus diversos suportes. Susan Sontag diz que vivemos em um
mundo-imagem, lembrando-nos que “uma sociedade torna-se ‘moderna’
quando uma de suas principais atividades passa a ser a produção e o consumo
de imagens”(SONTAG, 1981, p. 147). Uma sociedade capitalista requer uma
cultura com base em imagens. “A liberdade de consumir uma pluralidade de
imagens e de bens é equiparada à liberdade em si” (p. 195). Sendo assim,
Sontag considera as câmeras, além de um meio de se apropriar da realidade,
um meio de torná-la obsoleta. O ponto extremo do pensamento de Sontag é
uma sociedade sufocada pelo excesso de informação visual, encontrando o
reflexo de sua claustrofóbica modernidade na paisagem urbana.
Walter Benjamin, ao pensar sobre o fenômeno da fotografia, o encara
como um atributo da vida moderna capaz de aproximar as massas da arte,
mas, ao mesmo tempo, não esquece a contribuição que seu advento trouxe
para o empobrecimento das relações humanas. Assim ele nos diz: “Ficamos
pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio
humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor
para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’” (1994, p. 119). Benjamin
apontará ainda uma relação entre o avanço técnico da fotografia e a pobreza
da experiência, lembrando-nos que, nos primórdios da invenção da câmera
fotográfica, o modelo era obrigado a permanecer imóvel durante longo período,
o que o levava “a viver não ao sabor do instante, mas dentro dele” (p. 96). Com
o aprimoramento do aparato técnico, em uma fração de segundo a fotografia
passa a ser produzida, e a experiência se esfacela.
Esse avanço técnico mudará, sobretudo, a forma como as pessoas
percebem a obra de arte e se relacionam com ela. Para Benjamin, o olhar
descompromissado que as massas passaram a dirigir à arte permitiu que elas
25
absorvessem a obra de arte e não se diluíssem nela. Esse olhar distraído o
autor chama de tátil e encontra na arquitetura seu exemplo mais evidente, por
ser a arte que, há mais tempo, mantém relação com as massas. Otília Arantes,
em ensaio intitulado “Arquitetura simulada”, ressalta, numa leitura de Benjamin,
uma predominância absoluta do tátil em que culmina no cerceamento da
experiência do homem. Assim, ela aponta que o contato das massas com a
arquitetura é, desde sempre, eminentemente tátil, promovendo a construção de
uma atenção descontínua e superficial. Dessa forma, afirma Arantes: “A
‘tatilidade’ beira aqui a cegueira”(1988, p. 269). A confiança que Benjamin
depositava na tatilidade da cultura moderna converteu-se em vazio, no que
Arantes chama de obscenidade: “o reino chapado da superfície” (idem). A
cegueira que ela alude reside exatamente numa hipervisão de uma realidade já
transmutada, exagerada, tratando-se de uma exposição tão absurda que cega,
antes de seduzir. Nisso, como em outros pontos, a arquitetura se aproxima
muito da fotografia.
Nesse cenário, a vida do homem citadino se apequena diante da
impossibilidade de uma troca verdadeira com o outro. Isolando-se em espaços
fechados e observando a rua de longe, o indivíduo urbano se vê abandonado a
uma solidão aparentemente irremediável. Caio Fernando explora esse
sentimento ao inserir personagens atordoados no espaço da metrópole urbana.
Cegos eles estão, abandonados em uma cidade que também não os percebe.
O olhar desses homens e mulheres esbarra em monótonos tons de cinza,
lembrando que, na vida daquele que habita a cidade grande, parece não haver
espaço para a transcendência. “As cidades, mais do que qualquer outra
paisagem, tornaram-se opacas ao olhar. Resistem a quem pretenda explorálas. (...) Tornaram-se uma paisagem invisível” (p. 25), diz Nelson Brissac.
Diante de uma cidade que escapa à representação, Caio Fernando
recusa uma descrição detalhada dessa paisagem voltando-se para seus
habitantes e suas apropriações imaginárias do espaço (Cf. Jeudy). O olhar,
além de não encontrar qualquer cumplicidade nos olhos de outro, também se
perde ao encarar a metrópole. Nelson Brissac Peixoto, a partir de uma análise
sobre o estado de cegueira que aflige o habitante da cidade, sinaliza nova
26
percepção sobre os rumos da tatilidade do olhar. Resgatando o trabalho do
fotógrafo esloveno Evgen Bavcar, ele sugere que, talvez, a impossibilidade de
ver possa sensibilizar o homem urbano. De repente, ver com as pontas dos
dedos, com sons e aromas difíceis de classificar pode ser o caminho capaz de
conduzir o habitante citadino à transcendência tão procurada pelos
personagens de Caio.
Evgen Bavcar é cego. Ele fotografa contra o vento. A imagem da coisa
fotografada se forma a partir da força do vento que molda seu perfil, transporta
seu cheiro e ruído, armando a visão do fotógrafo4. Trata-se de uma visão
múltipla, que ultrapassa a confortável posição central ocupada pela retina. É
exatamente o apelo a outros sentidos que o permite encontrar o visível na
invisibilidade do vento. Esse deslocamento da visão resulta em absoluta
entrega à sensibilidade. Ser vidente na metrópole contemporânea saturada de
imagens, sufocada pela arquitetura frenética que se amontoa e se confunde, é
conseguir “enxergar no visível sinais invisíveis aos nossos olhos profanos”
(PEIXOTO, 2003, p. 40).
No conto que dá título ao livro Os dragões não conhecem o paraíso,
Caio Fernando Abreu metaforiza a vivência nesse ambiente de profunda
escuridão e incerteza, recorrendo à imagem de dragões. Esses seres
mitológicos surgem como contraponto ao homem banal, imerso em suas
automáticas atividades cotidianas, limitado a uma realidade circunscrita ao que
apenas se deixa apreender pelo olhar. Em certo ponto, o narrador-personagem
nos diz: “Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os
dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o
que não é visível”. Criaturas invisíveis, os dragões deixam-se perceber apenas
por um forte aroma de alecrim e hortelã, e representam o incompreensível, o
excêntrico, tudo o que parece não encontrar lugar em meio à vida urbana.
4
Em texto, Bavcar considera: “Não sou fotógrafo, mas iconógrafo, porque a imagem captada
pela máquina fotográfica é sempre antecipada na minha cabeça, e assim constitui um ato
mental. Deficiente da imagem visual física, tento exprimir, por meio da máquina fotográfica, as
aparições que se formam dentro de mim e que, como tais, se tornam um pouco as imagens da
transcendência invisível” (BAVCAR, 2003, p. 187).
27
Os dragões são como o vento capaz de oferecer todo um universo de
percepções a Bavcar. Eles condensam a imagem daquele que se rebela diante
de uma sociedade repressora e aniquiladora do belo e do sensível. Esses
dragões aproximam-se dos bebês, donos de mundos muito largos, conforme o
narrador, e se posicionam sempre do lado esquerdo das pessoas, o lado do
sentimento. O homem que nos conta essa história de dragões protagoniza uma
espera dolorosa por esses seres, revelando-se no final da narrativa incapaz de
transcender o aprisionador paraíso que a vida urbana impõe.
Então olhava para cima, para os lados, à procura de
Deus ou qualquer coisa assim – hamadríades, arcanjos,
nuvens radioativas, demônios que fossem. Nunca os via.
Nunca via nada além das paredes de repente tão vazias
sem ele (p. 135).
Os dragões, o paraíso e a roda gigante do conto “Dama da noite” são
algumas das metáforas que povoam o universo literário de Caio Fernando
Abreu. Olgária Matos analisa a relação que Benjamin mantinha com a
linguagem imagética em nome da desconstrução de uma evidência racional. A
própria cidade é também um corpo metafórico explorado abundantemente pelo
pensador alemão, o que leva a ensaísta a classificá-lo como um “filósofo da
cidade na cidade” (p. 128). O racionalismo, no entanto, subtraiu toda a
imaginação que se aliava à cidade, proscrevendo a metáfora. Nesse diapasão,
afirma Matos, “Benjamin restitui potência de conhecimento à imagem, à
alegoria, à metáfora, pois condensam aparência, ilusão, luminosidade e
cintilância” (p. 129). Dessa forma, Benjamin adota como método a utilização de
imagens como caminho alternativo para expor uma crítica mais atuante e
reflexiva. As imagens de pensamento surgem então como fragmentos que se
agrupam numa montagem surrealista num registro da experiência de vida na
metrópole, “a escrita da cidade” (BOLLE, 2000, p. 297).
Nesse horizonte, Caio Fernando insufla valor poético ao discurso de
personagens marcados pela insígnia do abandono por meio de metáforas. A
28
roda gigante sai do universo lúdico dos parques de diversão para representar
um sistema opressor, pautado na razão. Sua engrenagem trabalha para que o
mesmo movimento se repita indefinidamente, num ciclo de automatismo
assustador. Encontrar-se fora dessa lógica está longe de significar o ideal de
uma liberdade pacificadora. Como uma criança esquecida pelos demais, a
dama da noite posiciona-se fora da roda, observando seu movimento com a
amargurada solidão dos esquecidos, desejando tanto, entre ímpetos de lúcida
revolta, fazer parte dessa roda. A liberdade, parece constatar essa mulher,
pode também ser aprisionadora, como um terrível brinquedo que não te
permite desistir da diversão que oferece.
Os dragões, figuras centrais do conto-título, representam o que está
oculto, o misterioso, o imprevisível. Ao contrário daquilo que se mostra à vista,
originalmente esses animais não fazem parte do cenário urbano. Saídos dos
contos de fadas e das histórias de cavaleiros, eles invadem a cidade para
marcar essa resistência a um mundo unicamente centrado na razão. Os
dragões surgem na narrativa como signo do olhar estrangeiro, dos que não se
submetem à força do sistema capitalista. Em depoimento, o próprio autor
descortina essa cena metafórica:
Quando eu falo de dragões eu falo do mito chinês
daqueles animais fantásticos, que não existem e que eu
acho que são muito semelhantes às pessoas ditas
loucas, muito criativas e pessoas que não se adaptam
simplesmente a trabalhar, ganhar dinheiro, ter uma vida
normal. Eu acho que estas pessoas são dragões e não
conhecem o paraíso, que é o paraíso da gratificação
burguesa, da gratificação do sistema forno de microondas, da casa própria. Esse tipo de dragão não conhece
mesmo esse tipo de paraíso (ABREU apud DIP, 2009, p.
302-303).
A imagem de um ser mitológico que recusa o paraíso cinzento e
previsível corrobora o movimento assumido por Benjamin de um desvio da
racionalidade, a favor da paixão da linguagem. A ambiguidade dos elementos
29
dragões, paraíso e roda gigante sintetiza uma ambivalência própria da obra de
Caio Fernando. Uma relação dialética também parece marcar pontos extremos
que perpassam os contos de Os dragões não conhecem o paraíso, como
adaptação e revolta, visão e cegueira, efêmero e permanente, definindo seu
ritmo. Apostando em elementos que obedecem, sobretudo, à fantasia para
penetrar no real, o autor confere a sua ficção um profundo sentimento de vida
mesmo ao distanciar-se da referência ao mundo exterior. A capacidade do
texto de convencer dá-se mais pela sua organização própria do que por fatores
aliados à realidade, atendendo a esse que é um paradoxo inerente à literatura
(Cf. Candido, 2004). Dessa forma, pode-se assumir os dragões também como
signo para o próprio fazer literário, dando vigor a um estranhamento poético.
Trata-se de um projeto literário que se volta para a constituição de uma lucidez
que percebe o mundo a partir do questionamento e da errância.
1.2.
A linguagem cinematográfica
Caio Fernando Abreu define Os dragões não conhecem o paraíso como
um romance-móbile, em que os contos funcionam como partes que podem
“completar-se, esclarecer-se” (p. 19). Para ele, o amor destaca-se como
elemento comum entre as narrativas, fazendo-as transitar pelo tema, cada uma
a seu modo, compondo uma espécie de unidade a partir desses fragmentos
aparentemente desconexos. Os livros de contos de Caio Fernando em geral
apresentam uma organicidade própria. As narrativas não se repetem em outras
publicações, evidenciando a preocupação do autor em conferir singularidade a
cada produção. Em seu primeiro livro de contos, O inventário do ir-remediável,
publicado originalmente em 1970, ele apresenta os vinte e cinco contos que o
compõem em quatro partes: Da morte, Da solidão, Do amor, Do espanto.
Apesar de ser um dos livros mais fragmentados, a divisão em inventários
menores confere alguma sistematização à disposição desses contos que não
ultrapassam as cinco páginas. Aqui, Caio Fernando já sinaliza a discussão
envolvendo os temas que marcarão tudo o que veio a escrever posteriormente.
30
Maria Adelaide Amaral, numa breve resenha do livro, ressalta o espantoso tom
antecipatório desses escritos, “como se as palavras brotassem de um
subterrâneo conhecimento” (2005, p. 11).
O livro seguinte, O ovo apunhalado, de 1975, também apresenta
organização própria. O autor recorre a nomes de estrelas para marcar a divisão
dos contos, são elas: alfa, beta e gama. Os astros definem a estrutura do livro,
estando de acordo com a atmosfera onírica que parece dominar os contos,
indicando uma afirmação de pelo menos duas grandes influências literárias do
autor: a produção latino-americana, concentrando-se na figura de Julio
Cortázar, e Clarice Lispector, que, assim como Caio Fernando, nutria profundo
interesse pelo universo místico. Já Pedras de Calcutá, lançado em 1977, é
aparentemente o livro menos circunscrito a um projeto estabelecido. Seus
contos segmentam-se em dois momentos, intitulados simplesmente de “Parte I”
e “Parte II”, cada uma delas iniciada pelos contos “Mergulho I” e “Mergulho II”,
respectivamente. Delineia-se aqui um ciclo de narrativas que dão conta da
experiência da morte, da loucura, do imobilismo, do amor, temas centrais para
toda a produção de Caio Fernando.
Na próxima publicação, Morangos Mofados, de 1982, o rigor estrutural
alcança talvez o seu auge. “O mofo”, “Os morangos” e “Morangos mofados”
são as subdivisões que marcam esse livro, que trata das desilusões daqueles
que vivenciaram o período da contracultura, mostrando-os vinte anos depois,
amargurados e solitários, anestesiados diante do fim de um sonho que parecia
tão real. No Mofo, segmento que abre o livro, os sentimentos de repressão e
desespero chegam ao seu extremo, apresentando ao leitor imagens escuras de
uma realidade inescapável. Seu ponto máximo encontra-se no conto “Luz e
sombra” que fecha esse momento inicial, sendo seguido da narrativa
“Transformações”, a primeira do segmento Os morangos. Como indica o título
deste conto, as narrativas nesse estágio da obra vão revelar, ainda que
sutilmente, que há possibilidade de redenção, que, mesmo em meio a tanta dor
e abandono, é possível colher frutos saudáveis. Essa imagem se condensará
no último segmento que também intitula seu único conto. Em “Morangos
Mofados”, o personagem descobre que “frescos morangos vivos vermelhos” (p.
31
149) podem realmente brotar em pleno cimento da cidade, potencializando seu
significado com a repetição de afirmações que fecha a obra, fazendo-nos
lembrar um poema concreto que tivesse a força de enraizar uma ideia nas
páginas de um livro:
“Achava que sim.
Que sim.
Sim.” (p. 149)
Em todas essas obras, o conto derradeiro intitula o livro, reforçando a
idéia de uma organização lógica, objetivando alcançar um dado fim. Em Os
dragões não conhecem o paraíso, não há divisões, o que acaba por dar força à
ideia de um romance desmontável. Tomando como base comparativa o
romance Onde andará Dulce Veiga?, nota-se que sua unidade é também
fragmentada,
apresentando
71
cortes
ao
longo
dos
sete
capítulos,
aproximando-se de um mosaico, como as pistas que um detetive – no caso do
livro, um jornalista investigativo – deve aprender a decifrar e organizar. Renato
Cordeiro Gomes, em breve análise do romance, ressalta essa estrutura
‘espatifada’ do livro:
Declara este autor [Caio] que “a realidade que Dulce
Veiga mostra é aterrorizante e louca; é um espelho talvez
nítido demais do Brasil”. Este romance espatifado (a
expressão é do autor) dramatiza a sua ação, camuflada
de narrativa detetivesca (...), em São Paulo, a cidadeespelho do Brasil, refletindo nos fragmentos que se
agrupam como um puzzle cujas peças não se ajustam
perfeitamente. A cidade por onde circulam personagens
variados e heterogêneos que compõem esta espécie de
Babel, é também espatifada, é uma cidade contaminada.
(Texto on-line)
Cada fragmento é um marco, um trecho de um mapa que não funciona
como guia, incompleto que está. Como uma Babel, confusa e sem lógica, o
cenário fugidio das cidades grandes, marcado pela carga ilusória da sedução,
ganha reflexo na própria linguagem de Caio Fernando. Para dar vitalidade a
32
essa cidade de espelhos em cacos, o autor recorre a um discurso erigido a
partir do constante cruzamento com outras linguagens, como a publicidade, a
fotografia, a música e o cinema. Como uma colagem de sons e texturas, temse a construção de um mundo que leva sua ficcionalidade ao extremo. De
repente, como personagens de um filme meio B, como o subtítulo de Onde
andará...? acusa, os homens e mulheres que se descortinam nessas páginas
se aproximam também de atores, simulando a própria realidade. Apresentando
a cidade contemporânea como um lugar em acelerado processo de
apagamento, palco de uma vivência decorada pela efemeridade de imagens
precárias, Nelson Brissac Peixoto sinaliza que: “A produção de um espaço
artificial e fantasioso é tipicamente cinematográfico. As metrópoles de papelão,
espelhos, bill-boards e luminosos constituem uma arquitetura de desaparição”
(p. 1987, p. 177).
Os personagens que habitam essa cidade-cenário apegam-se a
experiências efêmeras, assumindo identidades imaginadas. Em “Os sapatinhos
vermelhos”, Adelina, a secretária abandonada pelo amante, à medida que se
veste para ir a um bar, usando seus sanguíneos sapatos vermelhos, tem a
imagem construída a partir de referências a nomes como Liz Taylor, Lauren
Bacall, Billie Holiday, Mae West. Essas mulheres emprestam à Adelina o ar de
Gilda, a atriz escorpiana que ganha vida na simulação. Em certo ponto, essa
aproximação da personagem com o cinema torna-se evidente quando o
narrador nos diz:
(...) falava como a dublagem de um filme. Uma mulher
movia o corpo e a boca: ela falava. Um filme preto e
branco, bem contrastado, um filme que não tinha visto,
embora conhecesse bem a história. Porque alguém
contara, em hora de cafezinho, porque vira os cartazes
ou lera qualquer coisa numa daquelas revistas femininas
que tinha aos montes em casa. (p. 69)
33
Como se a vida fosse um filme, com atmosfera noir e de cartazes
espalhados pelos cinemas da cidade, Adelina (ou seria Gilda?) sabe
exatamente que papel desempenhar, respeitando as deixas e a marcação no
palco. Calçando os sapatos vermelhos, ela aposenta, por preciosos instantes, a
realidade de secretária enfiada em neutras roupas marrons e tanta solidão. Em
seu lugar, surge a segurança da atriz perfeita em sua atuação, de cores
violentas e apaixonantes. A simulação, mais que tudo, parece ser a única
forma de sobreviver em uma cidade mergulhada no reino da efemeridade de
imagens e construções arquitetônicas que não passam de estruturas
provisórias. As ações de Adelina, quase ensaiadas, revelam a cumplicidade do
narrador nessa simulação, por meio das tomadas cinematográficas que
apresenta, como se uma câmera registrasse toda a ação, remetendo-se a
gestos fartamente conhecidos. “Depois jogou a cabeça para trás – a marcação
era perfeita -, tragou fundo e, entre a fumaça, soltou as palavras sobre os
patéticos pratinhos de plástico com amendoim e pipocas” (p. 68). Susan
Sontag observa que a realidade passou a ser cada vez mais parecida com
aquilo que as câmeras mostram5.
É comum, agora, que as pessoas, ao se referirem a sua
experiência de um fato violento em que se viram
envolvidas – um desastre de avião, um tiroteio, um
atentado terrorista – insistam em dizer que “parecia um
filme”. Isso é dito a fim de explicar como foi real, pois
outras qualificações se mostram insuficientes. (p. 177)
No bar, Gilda conhece três homens e os leva para seu apartamento. As
cenas seguintes são quase pornográficas, conforme considera o próprio autor.
Depois do sexo, o narrador sinaliza que ela “não era mais Gilda, nem Adelina
nem nada. Era um corpo sem nome, varado de prazer, coberto de marcas de
5
No conto “Uma praiazinha...”, o narrador-personagem diz: “Fechei a porta, encostei a parte de
cima da cabeça contra ela. Só nos filmes as pessoas fazem isso, nunca vi ninguém fazer de
verdade. Comecei a fazer para ver se sentia o que as pessoas no filme sentem – pessoas
sempre sentem coisas nos filmes, nos bares, nas esquinas, nas músicas, nas histórias. Nas
vidas acho que também, só que não se dão conta”. (p. 78-79).
34
dentes e unhas, lanhado dos tocos das barbas amanhecidas, lambuzada do
leite sem dono dos machos da rua” (p. 73). Parece que apenas nesse
momento, ela se liberta de qualquer representação. Nesse sentido, surge a
questão: não seria Adelina também um personagem? Esse, porém, o que
todos esperam, da funcionária eficiente, vestida de marrom e de cabelos
presos,
cumpridora
de
seus
serviços?
Não
estariam
essas
duas
personalidades em pontos extremos entre a exposição e a intimidade,
indicando que uma posição equilibrada nesse lugar de passagem seja talvez
impossível na metrópole?
Flora Sussekind ressalta que a prosa de ficção da década de 80 parece
encontrar-se no limbo entre o segredo e a exposição, “deixando que as falas
individuais sofram uma interferência tão forte da media que mal se diferenciem
dela, que se enunciem de ‘dentro’ dela” (p. 246). Nesse sentido, a incorporação
do cinema na produção de Caio Fernando é tão profunda que ultrapassa seus
personagens e o cenário que os envolve, atingindo intensamente sua
linguagem. O autor gaúcho, assim como tantos outros nomes das nossas
letras, é herdeiro direto das conquistas modernistas, tendo incorporado
técnicas e procedimentos inaugurados pelas vanguardas nas suas criações. A
linguagem cinematográfica é sem dúvida uma das mais marcantes.
Para compreendermos como se deu essa conexão com as vanguardas,
é necessário, antes de tudo, resgatarmos a intenção desses movimentos
históricos, qual seja, “a destruição da instituição arte, instituição esta dissociada
da práxis vital” (BURGER, p. 165). Peter Burger ressalta que o significado
dessa intenção não aponta para um real aniquilamento da arte enquanto
instituição ou mesmo que a arte tenha sido de fato transportada para a vida das
pessoas como queriam os vanguardistas. Essa intenção consiste antes na
concepção de promover um impacto social por meio da arte produzida
individualmente.
Assim, ao atacarem a arte da sociedade burguesa, os movimentos de
vanguarda não negavam um estilo de época ou uma manifestação artística
anterior, mas toda a tradição de arte. Com a radical ruptura da concepção de
35
arte e de estética vigente até então, o receptor experimenta o choque diante do
não compreensível. Para os vanguardistas, o choque funcionaria como indutor
de uma mudança de atitude do receptor, alertando-o para sua práxis vital e a
necessidade de transformá-la. Conforme Burger, a problemática em torno do
choque enquanto previamente elaborado pelo artista de vanguarda objetivando
uma reação do receptor se assentaria em dois pontos. O primeiro seria a
“impossibilidade de se tornar duradouro esse tipo de efeito” (p. 159), tendo em
vista que seu elemento fundamental reside exatamente em provocar surpresa
no receptor, superando suas expectativas. O segundo daria conta do fato de
que a atitude que o receptor tomaria a partir do choque quando do contato com
a obra não pode ser calculada, podendo ele seguir, portanto, qualquer direção.
O que permanecerá dessa quebra dos padrões de produção será o caráter
enigmático da obra, desautomatizando a leitura, no caso das letras, e tornando
o receptor parte fundamental na construção de seu significado. Ao propor ao
receptor o desafio de extrair da obra um significado que se encontra oculto, a
arte vanguardista inaugura uma nova forma de recepção, pautada agora
também na análise da construção da obra, e não mais apenas no seu sentido.
A superação da categoria de obra de arte também empreendida pelos
movimentos de vanguarda encontrará no urinol de Marcel Duchamp talvez a
sua mais vigorosa expressão. Ao assinar e enviar a exposições essa peça,
Duchamp promove a ridicularização do princípio da arte segundo a lógica da
sociedade burguesa. A sua assinatura, enquanto marca de individualidade e
exclusividade, num objeto industrializado, produzido em larga escala, fere
diretamente a concepção do produto de arte como único e irrepetível,
concebida desde o Renascimento. O mesmo Duchamp vai, em certo ponto,
buscar exatamente no período renascentista a Mona Lisa de Leonardo da Vinci
para promover uma sátira à tradição artística ao desenhar bigodes na mais
famosa figura das artes plásticas.
Oswald de Andrade surge como o nome mais irreverente do nosso
Modernismo, incorporando em suas prosa e poesia um elemento de extrema
força combativa contra a sociedade burguesa: o humor. Em suas paródias de
textos clássicos, como acontece, por exemplo, no poema “Meus oito anos”,
36
numa referência explícita ao poema homônimo do romântico Casimiro de
Abreu, Oswald propõe a desauratização da arte, como havia realizado
Duchamp em sua paródia de Mona Lisa. A relação entre textos e, sobretudo,
entre as variadas artes também terá sua origem nas vanguardas. No famoso
ensaio A escrava que não é Isaura (1924), Mário de Andrade, ao teorizar o
diálogo entre as artes, utiliza a seguinte imagem:
Cada arte no seu galho. Os galhos é verdade entrelaçamse às vezes. A árvore das artes como a das ciências não
é fulcrada mas tem rama implexa. O tronco de que
partem os galhos que depois se desenvolverão
livremente é um só: a vida (ANDRADE apud TELES, p.
307).
É explorando esse entrelaçar dos ramos que Oswald inaugura a
narrativa cinematográfica no Brasil, por meio de seus cortes cênicos, da aposta
na simultaneidade, abandonando a sequência linear do texto (CAMPOS,
2006a). Caio Fernando Abreu, enquanto artista pertencente a uma fase pósvanguarda, utiliza, para fins artísticos, os procedimentos inventados no período.
A fonte brasileira oswaldiana da narrativa cinematográfica terá especial
significado nas narrativas de Caio Fernando, encontrando no romance Onde
andará Dulce Veiga?6 sua mais forte expressão. O diálogo entre as artes,
principalmente no que concerne à linguagem cinematográfica, será intenso em
todas as obras do autor gaúcho, explorando o procedimento da montagem que
foi tão caro aos vanguardistas europeus, assim como, aos modernistas
brasileiros.
Caio Fernando era um escritor cinéfilo e construía as aproximações
entre a prosa e o cinema no intuito de explorar seu instrumental expressivo. Em
contos, crônicas e romances, ele recorre a um acervo de imagens e clichês
cinematográficos por vezes para conferir valor poético ao seu texto, por outras
6
Em 2007, o romance de Caio chegou ao cinema pelas mãos de Guilherme de Almeida Prado.
37
pensando numa construção irônica. Com frequência, o narrador de Caio
Fernando funciona como se estivesse nos bastidores de uma filmagem,
descrevendo movimentos de câmeras, panorâmicas. “Eu estava irritado com
aquela cena em câmera lenta & closes nos olhos reminiscentes” (p. 56),
observa o narrador de Dulce Veiga. José Geraldo Couto sinaliza que a
aproximação da prosa de Caio com o cinema não objetiva ser imperceptível. A
intenção é exatamente explorar as engrenagens dessa linguagem.
A prosa de Caio Fernando Abreu incorpora as conquistas
do cinema moderno, expondo os andaimes da
representação, inserindo o narrador no centro da cena,
revelando ao espectador/leitor o modo de produção da
escrita (COUTO, 2007, p. 6-7).
Repleto de avanços e recuos no tempo, o conto “Saudade de Audrey
Hepburn”, de Os dragões não conhecem o paraíso, apresenta inclusive
marcações explícitas dessas passagens temporais. Em certo ponto, o narrador
nos diz em meio a um parêntese que se abre no texto: “Flash-back: Nara
Claudina dizia Puber” (p. 53). Em outro momento, o autor interrompe o fluxo da
narrativa e, em negrito, surge novamente a expressão ‘Flash-back’,
apresentando uma seção diferenciada do restante do conto, dessa vez com as
palavras graficamente marcadas pelo itálico. Essa seção dá conta do que
talvez seja a infância do personagem. Nela é descrita uma simpatia junina que
consiste em debruçar-se sobre um poço com uma vela e nas águas ver o
futuro. Mas para o personagem não foi possível ver nada, só o fundo escuro,
em consonância com a apatia e a solidão de sua vida. Essas mudanças no
tempo exigem do leitor a participação direta na construção do significado, como
um quebra-cabeça a ser posto em ordem. Nesse caso, os espaços em branco
funcionam também como recurso, como se se ausentassem propositalmente
algumas peças do jogo, para que assim, fragmentado, uma imagem inesperada
possa surgir.
38
Utilizando a técnica da montagem, o autor dá outra dimensão ao
sentimento de abandono desse personagem, conforme podemos notar a partir
da citação que segue:
Eu parado na porta às quatro da manhã. Você indo
embora. Eu me perdendo então desamparado entre
cinzeiros cheios e garrafas vazias. Você indo embora. Eu
indeciso entre beber um pouco mais ou procurar uma
beata em plena devastação ou lavar copos bater sofás
guardar discos mastigar algum verso adoçando o
inevitável amargo despertar para depois deitar partir
morrer dormir sonhar quem sabe. Você indo embora.
Acordar na manhã seguinte com gosto de corrimão de
escada na boca: mais frustração que ressaca, desgosto
generalizado que aspirina alguma cura. Tocaria, o
telefone? Você indo embora, fotograma repetido. Na
montagem, intercalar. Você indo embora você indo
embora. (p. 52)
A imagem que se repete torna-se filme. Deixado sozinho, perdido em
uma cidade que funciona como um viaduto que não lhe permite seguir outra
direção, esse homem toca suas atividades cotidianas adiante, sem vírgulas,
sem
pausas.
A
experiência
do
abandono
surge
repetida,
quase
obsessivamente, revelando as saudades tão verdadeiras “daquela moça magra
chamada Audrey Hepburn”, que surge aqui como um estranho flash-back que
denuncia a desilusão, a amargura de um sonho abandonado em detrimento de
uma realidade pautada pela cinzenta cidade uniformizada sem espaço para a
loucura e a beleza.
A montagem assume as características da técnica da colagem,
aproximando imagens de diversas origens e suportes na confecção de um
texto aparentemente desordenado. “A diversidade, a proliferação das formas e
códigos, as múltiplas linguagens conotam a ótica babélica da metrópole
monumentalizada e ajustam-se à técnica de composição que o artista adota”
(GOMES, 2008, p. 26). A única linguagem possível capaz de dar conta dessa
cidade obscura, feita para confundir, desorientar é aquela que se baseia num
39
caos de palavras. A imagem do labirinto de uma Babel moderna condensa-se
na linguagem, permitindo que o autor decline da representação do emaranhado
de
monumentos
que
definem
simbolicamente
o
caótico
espetáculo
metropolitano. Além disso, as inúmeras referências que se somam ao texto – a
reprodução do quadro de Degas, os versos de Ricardo Redisch, Charlie
Parker, Caetano Veloso, Gilberto Gil, o filme “Gervaise”, Audrey Hepburn –
também funcionam como metáfora da cidade fragmentada. É a partir da
linguagem que Caio Fernando Abreu apresenta a confusão da metrópole,
concentrando-se no coração selvagem desse homem aprisionado nesse
labirinto urbano.
40
CAPÍTULO II – MOLOCH INCOMPREENSÍVEL PRISÃO
Dado que há um mundo do lado de cá e um
mundo do lado de lá da janela, talvez o eu não
seja mais que a própria janela através da qual
o mundo contempla o mundo. Para contemplarse a si mesmo o mundo tem necessidade dos
olhos (e dos óculos) do senhor Palomar.
Italo Calvino, Palomar
Vou, venho e me atrapalho, a cidade me foge.
O que estas ruas, esquinas, praças me dão,
dão noutra cidade, não minha; esta nada tem a
ver.
João Antonio, Abraçado ao meu rancor
Há uma janela que se debruça sobre o mundo, lembra-nos Calvino,
revelando uma única paisagem, como uma fotografia Polaroid, uma dentre as
infinitas possibilidades que as infinitas janelas de uma cidade apresentam aos
olhos de alguém, como a esse senhor míope e introvertido, chamado Palomar.
Seus olhos, considera esse personagem, talvez sejam apenas o instrumento
que o mundo precisa para uma autocontemplação. Dessa forma, o mundo
interno contempla o externo, revelando sua natureza duplicada, ou bipartida,
através do balcão de uma janela, por meio das lentes dos óculos de um
homem que possui o nome de um observatório astronômico. Do lado de cá da
janela, ele também é parte desse mundo que observa e é observado. Enquanto
aguarda que, da “superfície muda das coisas”, parta um sinal indicando que
algo se destaca do todo igual e uniforme, expondo-se discretamente a seus
olhos, brilhante e sedutor, confundindo céu e cidade, o narrador das histórias
curtas de Calvino antecipa que “o senhor Palomar tampouco deve esperar,
porque essas coisas acontecem apenas quando menos se espera” (p. 103)
Da janela de seus apartamentos, os personagens de Caio Fernando
Abreu vivem essa espera angustiada. A paisagem emoldurada pelos limites
físicos da janela oferece uma cidade curiosamente estagnada, como um filme
41
preso ao mesmo fotograma, distante das transformações que caracterizam a
metrópole moderna. Eles desejam o mesmo sinal brilhante e sedutor capaz de
interromper tanto silêncio, de resgatá-los do costumeiramente banal já-dado
que o concreto representa. Em crônica publicada, em 19877, o autor,
observando por trás do vidro de sua janela, apresenta uma cena que registra a
fugacidade desse instante luminoso. Uma mulher muito jovem parece chorar
enquanto abraça um homem, jovem também, numa tarde fria de domingo. Ele
se deixa abraçar, imóvel, de braços cruzados. Ela passa a beijá-lo e só pára
quando precisa afastar “os cabelos do rosto e, de vez em quando, olhar o céu
cinza”. Logo depois, começam a caminhar, subindo a ladeira mais próxima.
“Até sumirem do quadrado da janela. Certamente, da minha vida também”.
Assim ele conclui: “Não acontece mais cena alguma do lado de fora da minha
janela. Talvez tome mais um café, fume outro cigarro, qualquer coisa assim.
Foi exatamente há um ano, na lua cheia de maio. Depois, nunca mais”.
Ítalo Calvino, em As Cidades Invisíveis, ao apresentar-nos Ândria, cujas
ruas e edifícios possuem correspondentes nas órbitas dos planetas e na ordem
das constelações, adverte: “a cidade e o céu nunca permanecem iguais” (p.
144). Os personagens de Caio Fernando parecem conservar esse pensamento
com fé inabalável a despeito de todo sofrimento. O céu, nas narrativas desse
autor gaúcho, é sempre uma promessa de luz a enfrentar a escuridão que o
espaço urbano impõe. A natureza dessa transformação desejada, é certo,
transcende os limites do espaço físico para atingir o âmago da vida do homem
urbano, como um completo reajustamento dos astros capaz de embaralhar
qualquer previsibilidade matemática do universo.
Nesse sentido, Caio Fernando apresenta-nos São Paulo em suas
narrativas como a cidade da solidão de cimento armado8, revelando-se corpo
estranho e disforme. Em seus contos e crônicas, raras são as descrições da
cidade, catalisadas pela cor cinza dos muros que bloqueiam a visão. As
7
Trata-se da crônica “As primeiras azaléias”. São muitas as crônicas de Caio Fernando que
apresentam essa visão a partir da janela. Dentre elas, destaco “61: verdade interior” e “Por trás
da vidraça”, todas publicadas no volume Pequenas epifanias.
8
A expressão é de João Antônio.
42
referências a ruas e bairros paulistanos situam o leitor geograficamente,
indicando que não se trata de um espaço imaginário. O autor parece querer
sinalizar que esse cenário de opacidade é real, atinge seus habitantes de
maneira sub-reptícia, roubando-lhes vitalidade e beleza. Surge então o medo
de que cidade e habitante possam fundir-se. Em crônica intitulada “Calamidade
pública”, Caio Fernando simula um diálogo com a cidade de São Paulo,
decidindo, como se tratasse de um casamento, lançar uma ameaça a pessoa
amada: “Antes de ficar feio, violento e sujo feito você anda, peço o desquite.
Litigioso, aos berros” (2006, p. 35). A calamidade pública a que o autor se
refere ainda no título não poderia ser outra que a solidão. A feiúra que se abate
sobre a cidade é ainda mais assustadora que a dos enormes prédios sem cor
que compõem sua paisagem porque atinge fatal a humanidade dos que nela
vivem. Assim o autor nos diz:
Feio é a palavra mais exata. A feiúra desabou sobre São
Paulo feito as pragas desabavam dos céus, biblicamente.
Uma feiúra maior, mais poderosa e horrorosa que a das
gentes, que a das ruas. Uma feiúra que é talvez a soma
de todas as pequenas e grandes feiúras aprisionadas na
cidade, e que pairam então sobre ela, sobre nós, feito
uma aura. Aura escura, cinza, marrom, cheia de fuligem,
de pressa, miséria, desamor e solidão. Principalmente
solidão, calamidade pública. (idem).
Publicada dois anos antes de Os dragões não conhecem o paraíso, a
crônica sintetiza o espírito de revolta em relação ao processo de
embrutecimento da vida humana pela lógica da metrópole presente em toda a
obra de Caio Fernando. São Paulo surge em suas narrativas como corolário
desse ambiente sufocante, lugar do homem estrangeiro que, assim como o
próprio autor, vive em eterno conflito com a grande boca de mil dentes
paulistana9. Em carta a Charles Kiefer, em 1983, Caio confessa: “Faz tempo
tenho problemas com Sampa – barulhenta, pouco saudável, solitária, amarga”
9
Verso do poema “Os cortejos”, de Paulicéia Desvairada.
43
(In. MORICONI, 2002, p. 41). Já em carta a Jacqueline Cantore, ele parece
conseguir encontrar certa beleza na cidade a despeito de todo cinza que
domina as imagens da capital paulista nas narrativas desse autor. “Como São
Paulo pode ser bonito às vezes, com uns crepúsculos cor de pêssego
querendo amadurecer, demoradíssimos, tão lentos quanto um acorde de Erik
Satie” (idem, p. 33). São Paulo, de fato, ganha a dimensão de uma cidadeespelho do Brasil, conforme Renato Cordeiro Gomes salientou. Porém ela é
ainda a referência nacional de uma metrópole. O tema da solidão ganha, em
São Paulo, proporção de uma cidade da errância.
Desde sua fundação, a maior cidade brasileira tem como marca
exatamente a abertura de suas fronteiras. Já no século XVII, a então Vila de
São Paulo era centro de expedições de exploração de territórios, que visavam,
além de terras, minérios e a escravização indígena. Como uma cidade que só
conhece partidas e não retornos, a São Paulo dos bandeirantes era espaço de
forasteiros que entravam e saíam de seus domínios, explorando a terra e
assassinando o homem. No século XIX, com a expansão do cultivo do café, a
província passa a ocupar o lugar de destaque no cenário econômico do país,
que, desde o descobrimento, cabia ao Nordeste brasileiro.
Nesse período, a crise da escravidão negra conduziu à importação,
inicialmente subsidiada, de milhares de europeus, na sua maioria, italianos e
espanhóis, para trabalhar na lavoura cafeeira. A chegada dos imigrantes
impulsionou a irrupção modernizadora de São Paulo, sendo possível a geração
do emblema do Brasil pautado no progresso, tão desejada pelos modernistas
anos depois. Trata-se do nascimento do povo de mil origens de que falaria
Oswald de Andrade. Com o desenvolvimento da região, deu-se também a
configuração de uma segregação do espaço urbano, marcando a separação
geográfica de cada grupo social, dependendo da atividade realizada no ciclo de
produção do café. É no final desse século que nasce o bairro dos Campos
Elíseos – o Champs-Elysées paulistano – logo depois, o bairro de Higienópolis,
concentrando os palacetes mais elegantes da cidade, e, por fim, a Avenida
Paulista, inaugurada em 1891. Essa região da cidade, juntamente com o que
depois seriam os loteamentos da Companhia City nos Jardins, representa até
44
hoje uma centralidade da elite local, concentrando imóveis de alto valor,
consumo cultural e investimento público.
Na virada para o século XX, houve o primeiro surto industrial da cidade,
acompanhado do que Raquel Rolink chama de surto de “urbanidade”, que
consiste na implantação de serviços de água encanada, iluminação pública,
pavimentação das ruas. Dá-se, então, uma verdadeira transformação
urbanística em certa região da cidade proposta pela nova elite dirigente. Ao
alargamento das vias, à construção de cafés e lojas elegantes no centro
histórico de São Paulo, contrapõem-se os bairros populares, afastados dessa
região, cuja paisagem resume-se a um emaranhado de vilas e de cortiços que
dividiam espaço com as chaminés das fábricas. Annateresa Fabris fala sobre
uma modernidade peculiar no Brasil, pautada na fantasia e no sonho, que
investe boa parte de suas energias no consumo de mercadorias-fetiche. A
transformação urbanística, antes de considerar questões como saneamento
básico, qualidade de moradia para os mais pobres, voltava-se para um ideal de
cidade. Essa regeneração do espaço urbano assumida por São Paulo acaba
servindo de exemplo para a capital federal, que, no período, estava envolvida
com a construção da Avenida Central, principal registro urbano de Pereira
Passos. Olavo Bilac, em crônica publicada, em 1905, observa:
Ah! Por que não há de a nossa Sebastianópolis pedir à
Paulicéia o segredo desse culto do belo, deste amor do ar
livre, da arquitetura elegante e do arruamento regular? As
avenidas, bordadas de palacetes lindos, multiplicam-se e
cruzam-se. Nem uma só rua nova ousa, como as nossas,
desviar-se e torcer-se em coleios de cobra. E já nenhum
mestre-de-obras se atreve a plantar na platibanda das
casas essas abomináveis compoteiras de gesso, que são
o privilégio da arquitetura carioca (BILAC, 1996, p. 50).
O desejo do progresso nada leva em conta a não ser as construções e
demolições. No final da década de 20, os rios Tietê, Anhangabaú, Tamanduateí
e Pinheiros passam a sofrer as primeiras intervenções, como construções de
canais e estações elevatórias, invertendo o curso dos rios, destinando suas
45
margens para a construção de avenidas e a ocupação de suas várzeas.
Annateresa Fabris considera essa modernidade brasileira peculiar no que
tange sua pauta na fantasia e no sonho, investindo suas energias no consumo
de mercadorias-fetiche. A modernização das cidades funciona como uma
“fachada brilhante de uma sociedade que se quer cosmopolita, parisiense. Por
isso antepõe representações simbólicas ao desenvolvimento propriamente dito
(FABRIS, 2000, p. 22).
O cultivo do café cede lugar às indústrias, levando São Paulo a
despontar como uma das metrópoles americanas de maior vigor econômico. É
então chegada a vez dos próprios brasileiros, principalmente mineiros,
nordestinos e paulistas provenientes do interior do estado, invadirem a cidade,
conduzindo-a a um intenso crescimento demográfico que geraria uma crise de
habitação. Como resultado, tem-se primeiramente o povoamento de morros e
várzeas, conduzindo inevitavelmente à conurbação com municípios vizinhos. A
conseqüência desse processo é uma expansão horizontal ilimitada que
marcaria a cidade até hoje. Ao longo do século passado, a cidade viveu ainda
sucessivas transformações inerentes ao seu desenvolvimento, resultando na
São Paulo contemporânea que extrapola seus próprios limites físicos,
totalizando 17 milhões de habitantes espalhados pelos 39 municípios que
compõem sua região metropolitana. Segundo classificação de Rolnik, a capital
paulistana é uma cidade-mundo, tendo em vista que sua “aglomeração urbana
ocupa hoje uma área que vai muito além disso, atingindo pontos distantes do
país, do continente, do mundo” (p. 9).
A locomotiva do Brasil registra na letra de seu Hino Oficial, estabelecido
em 197410, verbos imperativos, como “Galga!”, “Vai!”, “Segue!”, “Enfrenta!”,
“Avança!”, “Investe!”, que conferem a real medida da voracidade dessa
máquina nacional que certamente jamais intenciona parar. São Paulo é hoje
um imenso mercado, centro de negócios e de cultura, aglomerando moradores
e visitantes. A para sempre cidade do café, como não nos deixam esquecer
seus símbolos, tem um fiel compromisso com o desenvolvimento. Assim,
10
Segundo o site da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP).
46
Guilherme de Almeida, autor do canto de louvor à cidade de aço que avança
rigorosa sobre seus trilhos, resume na última estrofe do hino a trajetória de São
Paulo: “Do Cafezal, Senhor dos Horizontes, / Verás fluir por plainos, vales,
montes, / usinas, gares, silos, cais, arranha-céus!” (Texto on-line). O paulista
do século XX parece ter como única meta a expansão da cidade. É a presença
da fábrica que conduz os modernistas a buscarem uma nova arte em
consonância com a modernidade de São Paulo.
A literatura brasileira, nesse contexto, adquire consciência urbana
exatamente a partir do nascimento de São Paulo como uma metrópole
moderna, no início do século passado, segundo Willi Bolle. O livro de poemas
Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade, surge como o responsável pela
estréia da metrópole brasileira como protagonista literária. Para Bolle, “trata-se
de uma visão adivinhatória, em que o poeta detecta energias que iriam
transformar a cidade naquilo que ela é hoje” (2000, p. 34). São Paulo, nos
versos de Mário, é a comoção de uma vida, é uma paisagem de inverno
londrino, é a monotonia da retina. Revelando sentimentos de ambigüidade
diante da cidade arlequinal, o poeta anuncia a caducidade da metrópole na
imagem de homens que se confundem em massa uniforme, impossibilitados de
viverem sua subjetividade, “Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...”
(p. 38).
O olhar antecipatório dos poemas de Mário de Andrade vai muito além
do cor-de-cinza sem odor da alma e da paisagem paulistanas, alcançando em
cheio o sentimento de abandono do homem que habita uma cidade gélida,
palco da ambição e das invejas, apoteose da ilusão. Envolta em neblinas, São
Paulo escapa à apreensão do eu-lírico, turvando-lhe a visão. A cidade é
percebida pela perspectiva de um amante negligenciado, movimento similar a
da crônica de Caio Fernando. Condensada na imagem do arlequim, São Paulo
é simultaneamente representada por seus armazéns abarrotados de café e as
primeiras chaminés que despontam no horizonte. As influências estrangeiras
marcam o cosmopolitismo da cidade, ironizado pelo poeta. Os automóveis,
símbolos da velocidade, dividem espaço com a imobilidade de estátuas que
47
encaram o passado, definindo bem a posição de incerteza da metrópole
nacional.
A ambigüidade própria de uma cidade moderna perpassa os poemas
andradinos, resultando em um exercício melancólico de transformar em
material poético as fantasmagorias dessa São Paulo dos anos 20. Dessa
forma, na mesma medida em que o poeta lança olhares para elementos que
posteriormente viriam a compor a metrópole contemporânea, ele também
contempla o que, em breve, já não pertencerá a esse cenário. Esse movimento
de Mário o singulariza em meio à euforia da modernidade que caracterizou os
textos dos modernistas, em especial o de Oswald de Andrade. Como observa
Annateresa Fabris, “toda a cidade girava em volta da questão do progresso e,
em função dele, havia desprezo pelo atraso do resto do país” (p. 73). Existia
uma urgência moderna na criação de uma correspondência entre uma cidade
impulsionada pelo maquinário das fábricas e um sistema cultural, sintonizado
com as conquistas técnicas do momento, capaz de expressar os anseios e os
desafios do século XX (idem).
A literatura brasileira urbana produzida décadas após a publicação de
Paulicéia Desvairada, já no final do século, apresenta como temas principais a
violência, a degradação humana, a miséria, a falta de esperança, já, de certa
forma, sinalizadas na produção de Mário. Bolle destaca que, nos autores dos
anos 70 e 80, um elemento comum se sobressai: a consciência pessimista da
história. Nomes como o de João Antonio surgem para ressaltar que o
desenvolvimento irreprimível da metrópole deixou cicatrizes profundas, como a
exclusão daqueles que nem nomes possuem. Dedicando seu projeto literário
ao protagonismo de malandros, jogadores de sinuca, prostitutas, crianças que
perambulam pelas ruas, João Antonio não nos deixa esquecer que a cidade
volta-se implacável sobre os que não convêm, reduzindo suas existências,
desumanizando-os. O movimento de resistência empreendido pelo autor
paulistano a esse processo racionalizante da dor humana consiste em lançar
um olhar a essas pessoas capaz de transcender a miséria que as envolve
alcançando sua subjetividade.
48
Os personagens de João Antonio percorrem o espaço da cidade,
revelando uma cartografia construída a partir da singularidade do olhar. O
mapa real de São Paulo fica em segundo plano diante do foco nos gestos e
nas sensações dos que caminham por suas ruas. Tendo buscado uma
linguagem capaz de apreender a essência desses homens, fazendo-os,
conforme apontou Antonio Candido, existirem acima de sua triste realidade, o
autor joga luz sobre o sentimento dos andarilhos urbanos. A solidão de
homens, mulheres e crianças soma-se ao inevitável estranhamento da cidade.
Marcado pelas constantes transformações, o espaço citadino resulta em algo
totalmente diverso, potencializando a falta de vínculos dos personagens com o
mundo. Assim eles observam o conhecido boteco da esquina se transformar
em um pasteurizado restaurante, os bairros mudarem de nome e a
malandragem abandonar seus códigos de ética. “Deu em outra cidade, como
certos dias dão em cinzentos, de repente, num lance” (p. 80), conclui em certo
ponto o narrador de “Abraçado ao meu rancor”, conto que dá título a obra que
marca a volta do escritor a São Paulo após sua estadia carioca.
Imprescindível apontar que mais de vinte anos separam a publicação de
Abraçado ao meu rancor, de 1986, do livro de estréia de João Antônio,
Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963. O autor buscou, nesse primeiro livro,
alcançar uma linguagem paulistana de um grupo determinado, a exemplo do
que Guimarães Rosa fez com o sertão brasileiro (Cf. CANDIDO, 2009), capaz
de apreender o espírito desse homem urbano e de gerar um processo de
transformação social. Abraçado ao meu rancor sinaliza a consciência do
fracasso desse projeto diante da brutalidade da sociedade, representada pelo
sentimento de rancor que pontua não apenas os títulos do conto e do livro,
mas, sobretudo o discurso de um narrador, que, nesse estágio, funde-se à
identidade do escritor, implacável consigo e com a lógica da cidade. Em carta,
João Antônio assim descreve esse morador de São Paulo que ganha
representação em sua obra:
Homem difícil, fragmentado, prisioneiro de uma cidade de
que em geral não gosta. Homem limitadíssimo, mal
49
formado, piorado terrivelmente nesses últimos dez anos.
Homem que não é covarde, mas a quem quase sempre
falta coragem. Homem de transição e de solidão (repare
nos bares cheios), cujo destino é desaparecer, dar lugar
a um tipo mais concreto e de algum caráter. (ANTONIO
apud MAGRI, 2010, p. 20)
Imersos em uma sociedade que os marginaliza, sem família e profissão,
esses homens dominam as ruas da cidade, expondo a todo instante vestígios
de seu abandono e miséria. A metáfora da grande boca de mil dentes do
poema de Mario de Andrade mostra-se aqui ainda mais pertinente. O medo de
ser devorado por essa cidade que nunca cansa do ritmo alucinante das
transformações é uma constante nos contos de João Antônio, como se ruas e
avenidas pudessem tragar os que nelas vivem, confundindo pessoas e
concreto. Caio Fernando Abreu – assim como João Antônio, Rubem Fonseca,
Ignácio de Loyola Brandão e outros – desenvolve uma produção marcada pelo
olhar pessimista da vida urbana. Na obra do autor gaúcho, o ambiente externo
da cidade é minimamente referido. Seus personagens vivem na metrópole,
mas, com freqüência, encontram-se isolados em seus apartamentos. Enquanto
na obra de João Antonio a cidade, além de cenário, funciona também como
personagem, nos contos de Caio Fernando, ela surge como uma triste sombra
sem contornos ou detalhes que encobre a todos.
Essa presença pouco física da cidade revela uma estratégia narrativa
que intenciona entranhar a paisagem de São Paulo às pessoas e aos espaços
internos. Os personagens, com freqüência, surgem debilitados, sob o efeito de
álcool e muito magros, evidenciando uma fragilidade física que comunga
diretamente também com a confusão interna que os marca. A pele muito
branca, os músculos flácidos e a barba por fazer do personagem anônimo do
conto “Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga” definem bem
essa relação metonímica com a metrópole. Em seu corpo, surgem as marcas
de uma cidade impessoal, em que a pobreza das ruas, há tempos, invadiu a
alma de seus habitantes. Esse homem, ao longo da narrativa, escreve uma
carta a um amigo, confessando-se, em um discurso melancólico, doente de um
mal aparentemente desconhecido:
50
Esse é só um dos sintomas, ficar muito tempo deitado.
Tem outros, físicos. Uma fraqueza dentro de mim, assim
feito dor nos ossos, principalmente nas pernas, na altura
dos joelhos. Outro sintoma é uma coisa que chamo de
pálpebras ardentes: fecho os olhos e é como se
houvesse duas brasas no lugar das pálpebras. Há
também essa dor que sobe do olho esquerdo pela fronte,
pega um pedaço da testa, em cima da sobrancelha,
depois se estende pela cabeça toda e vai se desfazendo
aos poucos enquanto caminha em direção ao pescoço. E
um nojo constante na boca do estômago, isso eu também
tenho. Não tomo nada, nenhum remédio. Não adianta, sei
que essa doença não é do corpo. (p. 77)
Os sintomas denunciam a decadência da humanidade vinculada,
sobretudo, a uma São Paulo dominada pelo lixo, pela poluição do ar, pelos
prédios que se agigantam ao redor. A leitura que o autor promove da cidade é
rigorosamente soturna, invocando constantemente lugares fechados, com
pouca luz. Nesse diapasão, Caio Fernando recorre ao espaço do apartamento
para apresentar personagens, como o do conto em questão, realizando um
movimento de interiorização que desvela um ser atordoado pela dor de “uma
memória, uma vergonha, uma culpa, um arrependimento em que não se pode
dar jeito” (p. 79). Ao invés de captar o espetáculo de mudanças da rua, a
exemplo de Baudelaire ou mesmo de João Antonio, há uma tendência em
privilegiar o lugar fixo, estável. Essa escolha pelo permanente não funciona
como oposição à cidade moderna, espaço típico do provisório. O apartamento
ou o quarto são, na verdade, extensões do ambiente urbano, remetendo à
opressão e à apatia de uma vida sem escolhas. “Sozinho em casa, sozinho na
cidade, sozinho no mundo” (p. 84), conclui certo personagem, evidenciando
essa similaridade entre o espaço interno e o externo. A janela, único elemento
que permite alguma interação do homem com a cidade, possui natureza
paradoxal, já que, ao mesmo tempo em que viabiliza o contato com o exterior,
acaba, em contrapartida, intensificando a reclusão por evidenciar uma
paisagem terrivelmente sombria do espaço urbano.
Marca da individualidade e uniformização, o apartamento é um inegável
símbolo da classe média, representando o sonho da estabilidade, do
51
investimento financeiro, da segurança familiar. Nas narrativas de Caio, esse
elemento aparece desconstruído, apresentado como um ambiente sem vida,
cenário do confinamento a que se submete o personagem. Aqui reside a
grande crítica que o autor elabora da lógica enganosa da gratificação do
trabalho convertida em felicidade plena de uma vida de classe média,
catalisada no livro pelas metáforas do dragão e do paraíso que buscamos
discutir no primeiro capítulo. O sonho converte-se em pesadelo porque a
liberdade que está em jogo é limitada e ilusória, gerando insatisfação.
No conto “A outra voz”, esse espaço interno é trabalhado a partir de uma
atmosfera onírica, que situa o personagem em um ambiente ainda mais
assustador que o claustrofóbico apartamento daquele homem de pálpebras
ardentes. Nessa realidade, o personagem conta apenas com uma voz do outro
lado do telefone para conectá-lo ao mundo exterior. Cristalina, como as águas
saudáveis de um rio, a outra voz surge em contraste com o tronco áspero que
arranha a garganta dele. Aqui o isolamento chega a seu extremo. A janela
agora possui grades e a paisagem que oferece consiste apenas no “muro de
cimento, alto como uma parede, a aridez do pátio coberto de lajes, sem
plantas” (p. 105). Em claras referências ao suicídio da poeta Ana Cristina
César, o tema da loucura delineia-se, confundindo autor e personagem,
revelando fantasmas interiores que surgem por meio de vozes que não
permitem que se escape daquela prisão. Em meio a tantos elementos sombrios
que pontuam a narrativa como mofo, cinzeiros, cavernas, poeiras, teias de
aranha, as imagens do sol, da luz surgem, a todo instante, como contraponto,
como desejos que possivelmente jamais serão satisfeitos.
O tom marcadamente pessimista do conto cede espaço somente no
último momento. Vislumbrando uma mão estendida, entre súplicas para que
não seja abandonado, esse homem sinaliza acreditar que, mesmo em meio à
escuridão absoluta, alguma espécie de luz possa inaugurar-se. Assim conclui o
narrador: “Porque queria – e queria porque queria – a luz da outra voz, não a
escuridão deles: escolheu” (p. 110). A fuga da dimensão racional que o autor
ensaia nesse conto, longe de pôr em total suspensão a dor do personagem,
revela-a em níveis extremos. Como um negativo desse mundo dominado por
52
sombras, tem-se o signo da claridade constituído a partir do tom nostálgico do
cheiro dos cinamomos que, aos poucos, perdem a precisão na lembrança do
personagem. O autor parece evitar permanentemente a desorientação do
sentido imposta pela vida na cidade e que caracteriza o homem moderno,
escolhendo, em seu lugar, os feixes de luz ligados à natureza e à infância.
2.1. Saia da frente da minha luz!
“Se oriente, rapaz
Pela rotação da Terra em torno do Sol”
Gilberto Gil, Oriente
Vista no conjunto, a obra de Caio Fernando Abreu parece evocar quase
obsessivamente o mesmo homem abandonado, desajustado e morador das
grandes cidades11. Desde o Inventário do ir-remediável, de 1970, até o
romance Onde andará Dulce Veiga?, de 1990, o autor tende a distanciar-se de
uma acepção solar do espaço urbano, apresentando seus personagens em
ambientes sombrios e fechados, que se aproximam, por vezes, de uma prisão
ou manicômio. Nessa ambientação em que a solidão ganha destaque, o desejo
por algo que os tire do estado de letargia em que se encontram surge nas
narrativas como presença estranhamente incômoda. As imagens do telefone
ou da campainha que nunca tocam, a espera daquele que jamais virá, mais do
que representarem apenas o isolamento, indicam na verdade uma promessa
de mudança, a crença de que o mal pode ser passageiro. É na sutileza dessa
luminosidade que sobrevive na sombra que reside o inconformismo do autor e
a força de seu texto. Sobre isso, o estudioso das cartas de Caio Fernando, Ítalo
11
A imagem de contos que se completam transcende Os dragões não conhecem o paraíso,
representando o movimento de toda produção do autor. Assim ele diz: “Ultimamente tenho
pensado se Cortázar tinha razão quando dizia que o escritor passa a vida tentando escrever
um livro só. Proust conseguiu dar essa ordem. Mas Proust era Proust”.
53
Moriconi afirma: “A escrita de Caio, ficcional ou não, lembra o girassol a buscar
o facho de luz renovadora, nutritiva, de dentro da noite mais escura do ser
puramente material, corporal.” (2002, p. 14-15).
Herdeiro do imaginário contracultural que tardiamente chegou no Brasil,
na década de 70, a produção de Caio inevitavelmente foi contaminada pelo
espírito de resistência ao autoritarismo que marcou o período. Sua vida e sua
obra estão intimamente ligadas à fé fundamental que iluminou o projeto
libertário de então. Quando Caio deixou Porto Alegre aos 20 anos de idade e
partiu para São Paulo, integrando como repórter a primeira equipe de Veja, o
ano era 1968 e a ditadura no país havia chegado a seu momento mais crítico
com a institucionalização do AI-5. No mesmo ano, passou a ser perseguido
pelo DOPS12, após sair da revista, refugiando-se no sítio da amiga Hilda Hilst
em Campinas, a chamada Chácara do Sol. Depois de voltar a Porto Alegre, já
no início da outra década, Caio mudou-se novamente, dessa vez para o Rio de
Janeiro vivendo como hippie nas ruas de Ipanema. A capital fluminense
despontava como epicentro da nova tendência contracultural.
Poucos anos depois, em 1973, realizou “a clássica viagem riponga pela
Europa, cabelos longos feito John Lennon, magreza e viagens lisérgicas”
(MORICONI, 2002, p. 17). Caio Fernando considerava-se mesmo um
estereótipo de sua geração, o que em grande medida proporcionou a seus
textos a capacidade de também criarem as imagens que compõem o painel
daquela década. Marcia Denser não deixa de apontar Caio como “um inventor
de novas linguagens na prosa de ficção e na mídia, um criador de expressões
e vocábulos” (2005, p. 9). Marcelo Secron Bessa avalia como essa
característica do autor inevitavelmente inundou seus textos:
Embora não sejam textos documentais, os contos
apresentam um quê de retrato de época, uma espécie de
registro ficcional, por um viés bem peculiar, das ultimas
quatro décadas. Não é à toa que, ao falar de si mesmo,
12
Nos anos 70, Caio Fernando foi preso duas vezes e torturado. Ele conta a história de sua
tortura no conto “Garopaba, mon amour”, do livro Pedras de Calcutá.
54
Caio gostava de repetir um epíteto que lhe deram:
biógrafo das emoções contemporâneas (BESSA, 1997).
O cineasta Guilherme de Almeida Prado, com quem Caio escreveu o
roteiro do que mais tarde se transformaria no romance Onde andará Dulce
Veiga?, ressalta o papel decisivo da produção literária do autor para a
construção da década seguinte:
A literatura dele não é só tradução da época. Existe um
lado dos anos 80 que ele praticamente ajudou a inventar.
Palavras, maneiras de dizer algumas coisas. Não é que a
gente falasse daquele jeito, ele melhorava, antecipava.
Ele era contemporâneo, mas ao mesmo tempo somava,
não apenas refletia (PRADO, 2006).
Em Londres, morou em casas abandonadas e invadidas por imigrantes
latino-americanos, denominadas squats, enfrentou o inverno europeu sem
contar com qualquer sistema de aquecimento, dormindo em sleeping-bags,
sendo expulso pela polícia diversas vezes. Trabalhou como faxineiro, modelo
vivo em uma escola de belas-artes e lavador de pratos em bares13 da capital
inglesa. O nomadismo era uma espécie de prerrogativa do período, o que
casava com a própria personalidade de Caio Fernando. Sobre isso, ele diz:
“(...) eu não gosto de São Paulo. Mas eu não gosto de Porto Alegre, não gosto
do Rio também. Não gosto de nenhum lugar. Não suporto lugares geográficos”
(ABREU apud DIP, p.174). O resultado dessa insatisfação é uma eterna
procura, marca também de seus personagens.
Enquanto viveu em Estocolmo, passou a assinar suas cartas como Caio
F., numa referência a Christiane F., drogada e prostituída nas estações de
metrô berlinenses (Cf. Gonçalves Filho, 2006). De fato, figuras como a jovem
alemã que ganhou fama na década de 70 com sua autobiografia sobre a luta
contra o vício em heroína, povoam a produção do autor, reforçando seu
13
Sobre essa experiência escreveu os contos “London, London, ou Ajax, brush and rubbish” e
“Lixo e Purpurina”. O primeiro foi publicado no livro Estranhos Estrangeiros, o segundo está no
livro O essencial da década de 70 e na antologia Ovelhas Negras.
55
interesse por outsiders. Ele mesmo era considerado um esquisito ou freak –
seja qual for o termo que melhor sintetize o deslocamento de Caio Fernando.
Natural de Santiago do Boqueirão, cidade gaúcha quase fronteira com a
Argentina, ele possuía uma personalidade tímida e claramente confusa,
alternando momentos de euforia com fortes depressões. Era homossexual em
um período de forte repressão política e sobretudo comportamental14. Nunca
teve endereço estável, sendo ajudado por amigos e familiares não apenas
financeiramente, mas também com burocracias envolvendo os imóveis por que
passou, questões para as quais se revelava incrivelmente inábil. Homem
solitário, jamais viveu uma relação amorosa duradoura, o que constituía uma
enorme frustração pessoal, conforme depoimentos de amigos. Sua produção é
pontuada exatamente por imagens da busca incessante pelo outro, da
incompreensão, da loucura e sempre, repetidamente, do peso da dominação.
Dan Joy, no prefácio do livro Contracultura através dos tempos, oferece
ao leitor uma cena protagonizada por Alexandre, o Grande que, certa vez,
caminhando por um campo próximo a Atenas, no auge de sua conquista do
mundo mediterrâneo, contemplava o território que fazia parte de seus
domínios. Em dado momento, ele se aproxima de um homem que descansava
na beira de um córrego e, identificando-se, disponibilizou-se em ajudá-lo com o
que fosse preciso. Esse homem chamava-se Diógenes e era “um renomado
autor teatral e ao mesmo tempo um completo miserável e excêntrico criador de
casos ateniense sem residência fixa” (2007, p. 11). Olhando para Alexandre de
onde estava, sua resposta ao imperador do mundo foi simplesmente: “Saia da
frente da minha luz”. Simbolizando a atitude de uma contracultura frente à
autoridade imposta, a frase de Diógenes ajuda a alcançarmos o peso que as
sombras e todos os elementos noturnos possuem na obra de um autor
marcadamente de resistência ao sistema como é Caio Fernando Abreu. Joy,
por fim, procura pôr em palavras o que a luz bloqueada por Alexandre na
rápida cena de seu prefácio significa.
14
A questão tornou-se tema para diversos contos de Caio, entre eles, ressalto “Terça-feira
gorda” e o excelente “Aqueles dois”, ambos do livro Morangos Mofados.
56
A luz – a força brilhante de uma expressão individual sem
amarras, o brilho radiante da criatividade humana liberta
de roteiros e controles externos. A luz – o brilho liberado
quando, individualmente, e em especial coletivamente, os
seres humanos livremente compartilham recursos
internos e externos para criar seu mundo de acordo com
os ditames do verdadeiro eu. E o brilho numinoso do
próprio mundo nos olhos daqueles que exercitam esse
tipo de liberdade. (2007, p. 11-12)
O protesto nas narrativas de Caio Fernando concentra-se justamente em
desvelar uma
cidade
marcada
pela miséria
das
relações humanas,
encontrando no seu espaço físico cicatrizes profundas. A formação
contracultural do autor está presente em todos os seus livros, apresentando a
cidade como o mais poderoso bloqueio de qualquer luminosidade que se
ensaie exatamente porque representa o progresso desenfreado da tecnocracia.
Theodore Roszak define a lógica tecnocrática a partir de um domínio absoluto
da técnica e da especialização, reduzindo a organização humana a um grau de
previsibilidade e automatismo assustador. É a tentativa de colocar a vida sob o
controle da autoridade. A natureza desse sistema político o prepara para
devorar a cultura em que se inscreve, reduzindo o humano ao absolutamente
mecânico. Avaliando o poder da tecnocracia, Hebert Marcuse, cujas idéias
revolucionárias contagiaram os jovens dos anos 1960, lembra que a sociedade
civilizada é incompatível com a livre gratificação das necessidades instintivas.
O progresso apóia-se na renúncia e no adiamento constante da satisfação.
Dessa forma, ele conclui que essa lógica é constituinte da cultura tecnocrática:
A felicidade deve estar subordinada à disciplina do
trabalho como ocupação integral, à disciplina da
reprodução monogâmica, ao sistema estabelecido de lei
e ordem. O sacrifício metódico da libido, a sua sujeição
regidamente imposta às atividades e expressões
socialmente uteis, é cultura (MARCUSE, 1978, p. 27).
Marcuse destaca ainda que o desenvolvimento da produtividade está
diretamente vinculado a ausência da liberdade, intensificando a dominação do
homem pelo homem na civilização industrial. O caminho da humanidade em
57
direção a essa tendência violentamente repressora não se apresenta como
algo passageiro. Lembrando os campos de concentração, as guerras mundiais,
as bombas atômicas, o autor deixa claro que todos esses massacres não são
meras “recaídas no barbarismo” (1978, p. 27), mas a solidificação dos ganhos
da tecnologia que dominam a sociedade. Melancolicamente, ele pondera que a
mais eficaz destruição do homem pelo homem surge no apogeu da civilização,
enquanto se imaginava que após tanto avanço técnico a humanidade poderia
construir um mundo verdadeiramente livre, dizimando doenças, combatendo a
fome, a desigualdade.
Nesse diapasão, a contracultura, conforme Theodore Roszak, surge
como uma cultura tão radicalmente dissociada do estabelecido pela sociedade
que muitos não a consideram propriamente uma cultura, mas antes “uma
invasão bárbara de aspecto alarmante” (1972, p. 54). Tendo escrito nos
Estados Unidos, no fim dos anos 1960, o autor preserva em seu livro o espírito
de novidade e certo entusiasmo com a revolução jovem que então marcava a
sociedade norte-americana e logo depois alcançaria todo Ocidente. Para ele,
mesmo carente de um melhor background radical, foi a juventude americana
que compreendeu com mais lucidez que o verdadeiro inimigo era a
tecnocracia, o que exigia uma nova postura de combate capaz de alterar o
contexto cultural. Enquanto os jovens da Europa Ocidental protestavam contra
a guerra no Vietnã, a injustiça racial e a pobreza imposta, sendo sempre
silenciados por uma sociedade insensível a esse tipo de revolta, os norteamericanos, mais íntimos da tecnocracia como forma social, foram capazes de
percebê-la como alvo verdadeiro. Os jovens arrancaram as teorias “de livros e
revistas escritos por uma geração mais velha de rebeldes, e as transformaram
num estilo de vida” (ROSZAK, p. 28).
Os hippies surgem como a personificação dessa rebeldia radical,
satisfazendo a necessidade da juventude dos anos 60 de incorporar em seu
comportamento a demonstração de desacordo com os rumos da sociedade. A
cultura hippie tem origem na força das sementes plantadas pela chamada
58
geração Beat ou Beatnik15 que marcara a década anterior nos Estados Unidos.
On the Road, de Jack Kerouac e Howl, de Allen Ginsberg despontam como as
mais importantes produções da prosa e poesia beat, respectivamente.
Concentrando-se na busca por uma arte que se caracterizava pela recusa do
intelecto como mediador, os artistas beats privilegiavam a imaginação,
desprezando qualquer tipo de revisão do texto. Conforme aponta Roszak,
revisar significaria repensar e, portanto, duvidar. O romance de Kerouac foi
escrito em apenas três semanas (Cf. BUENO; GÓES, 1984). Já a parte inicial
do poema Howl foi datilografa em uma tarde (Cf. Roszac).
A idéia por trás de um fluxo textual espontâneo e de linguagem incontida
era romper as barreiras de uma racionalização redutora, para que se fosse
possível inaugurar, não apenas uma expressão literária mais livre e verdadeira,
mas de caráter transformador, atingindo a vida dos leitores. Ginsberg aspirava
funcionar como um “instrumento de poderes acima de seu domínio consciente”
(1972, p. 135), remontando aos profetas visionários de Israel. Sobre Howl,
Rozsac diz:
É como se, inicialmente, Ginsberg dispusesse a escrever
uma poesia de aflição encolerizada: bradar contra a
angustia do mundo que ele e seus amigos mais chegados
experimentaram nas sarjetas, guetos e instituições
mentais de nossa sociedade. O que resultou desse
sofrimento foi um uivo de dor. No fundo desse uivo,
porém, Ginsberg descobriu o que o Moloch burguês mais
desejava sepultar em vida: os poderes curativos da
imaginação visionária (idem).
A experiência psicodélica e a adoção de religiões e filosofias orientais
unem-se a esse combate ao conservadorismo. O sábio silêncio da cultura Zen
revela-se em contraste com a palavrosa doutrinação do cristianismo, ajudando
a difundir um ideal de liberdade, sobretudo sexual. Roszak não deixa de
15
Criado por Jack Kerouac, o termo surge a partir da fusão das palavras “beat” e “sputinik” – a
nave soviética que foi ao espaço na segunda metade da década de 50. A idéia era unir o ritmo,
o movimento das batidas do jazz – e, pensando no texto dos poetas beats, o improviso, a
ausência de normas fixas, a união entre vida e obra – com a liberdade que uma nave espacial
simboliza (Cf. BUENO; GÓES, 1984).
59
ressaltar que esse novo orientalismo soube buscar na tradição tântrica e no
Kama Sutra a riqueza erótica que o caracterizou. Por outro lado, o autor
pondera que isso se aproxima de uma “permissividade burguesa de apósguerra” (1972, p. 142) que encontrou uma sanção religiosa para uma
licenciosidade indiscriminada. As toscas simplificações em torno do Zen não
devem, segundo Roszak, confundir-se com a importância da atitude jovem de
crítica radical frente à convencional concepção científica do homem e da
natureza. Para ele, essa rejeição do materialismo e do absolutamente cerebral
aproxima-se de um “instinto saudável” (idem) que acabou conduzindo a
juventude à procura de uma compreensão mais profunda do Zen.
No caso do Brasil, a ditadura impunha o protesto contra a violência
militar e o controle social. O movimento tropicalista, que surge no fim da
década de 60, juntamente com diversas expressões internacionais, foi o ponto
de referência para a contracultura brasileira dos anos 70. O termo tropicália é
uma referência à composição “Tropicália” de Caetano Veloso, que, por sua vez,
foi inspirada em uma instalação visual de Hélio Oiticica. Rica em conotações, a
expressão remonta diretamente a imagens do Brasil associado a um “paraíso
tropical”, como o descrito na carta de Pero Vaz de Caminha. A apropriação
dessas representações promovia a sátira de emblemas da brasilidade. No
entanto, como aponta Christopher Dunn, longe de caracterizar-se enquanto
movimento antinacional, a tropicália promovia, na verdade, um nacionalismo
agressivo. Profundamente inspirado na antropofagia de Oswald de Andrade, o
movimento aproximava-se de uma renovação estética com articulações com a
cultura nacional. Era preciso ser originalmente brasileiro e ao mesmo tempo
moderno.
Os tropicalistas16 criticavam certas formas de nacionalismo cultural
vinculadas ao ufanismo do regime, por um lado, e à esquerda política, de outro.
16
As principais referências internacionais dos tropicalistas eram exatamente aquelas que
impulsionaram os movimentos culturais e políticos da juventude americana e européia, como
Bob Dylan, os hippies, os Beatles. Heloísa Buarque de Hollanda observa: “Cabelos longos,
roupas coloridas, atitudes inesperadas, a crítica política dos jovens baianos passa a ter uma
dimensão de recusa de padrões de bom comportamento, seja ele cênico ou existencial” (1992,
p. 55).
60
Como observa Heloísa Buarque de Hollanda, esse movimento começa a
pensar a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento, “rompendo
com o tom grave e a falta de flexibilidade da prática política vigente” (1992, p.
61). A partir de 1968, passa a chegar ao país a informação da contracultura
internacional, dos poetas beats, como Allen Ginsberg, e de autores, como
Marcuse. A tropicália concentrava suas produções musicais nos desejos e
frustrações cotidianos dos moradores das grandes cidades, revelando a
proposta de uma crítica à modernidade brasileira. Não apenas no conteúdo,
mas sobretudo na forma era preciso se opor ao sistema. Os parangolés de
Hélio Oiticica propunham a abolição entre arte e vida a partir de um exercício
experimental de liberdade, de transformação por meio da experiência sensorial.
A música “Tropicália”, de Caetano Veloso, oferecia um sem-fim de referências,
compondo uma montagem fragmentada de ditados populares, citações
musicais e literárias. O resultado é uma alusão à trajetória de Brasília como
símbolo do progresso nacional e do fracasso de uma modernidade
democrática.
Distanciando-se do pensamento de esquerda da época, os tropicalistas
trabalhavam com a idéia de que a música deveria ser compreendida como um
produto comercial para venda. Nesse sentido, os artistas baianos17 mostravam
consciência de que a música era um produto pop, mesmo quando se
expressava em oposição a instituições políticas e culturais dominantes. Apesar
de não serem recebidos como artistas abertamente de oposição, Caetano
Veloso e Gilberto Gil foram presos em dezembro de 1968 e em seguida
exilados em Londres por dois anos e meio. Dunn e Hollanda atribuem à prisão
primeiramente a forte contestação comportamental que os tropicalistas
encabeçaram. Seguido a isso, é considerado o fato dos artistas realizarem
esse ataque em apresentações na televisão, e não somente nos teatros e
17
O chamado “grupo baiano” que trabalhou em colaboração com Gil e Caetano: Gal Costa,
Tom Zé, José Carlos Capinam, Torquato Neto – que era piauiense, mas havia se mudado aos
16 anos para Salvador. Eles migraram para São Paulo, trabalhando com vários compositores
do cenário musical de vanguarda, como Rogério Duprat e a banda Os Mutantes. Dunn observa
que o movimento tropicalista, “até certo ponto, era produto da tensão criativa entre os baianos
e o meio cultural cosmopolita que encontraram em São Paulo” (2009).
61
clubes.
Para
Dunn,
essa
invasão
dos
músicos
na
mídia
“parecia
particularmente perigoso a um regime que usava os veículos de comunicação
de massa para projetar sua própria visão harmoniosa do Brasil” (2009, p. 172).
No final de 1968, é promulgado o AI-5, marcando um período de forte
desilusão política, “concretizando o que se chamou de ‘segundo golpe’” (1992,
p. 69). No início dos anos 70, quando a repressão alcançava seu auge, a
contracultura brasileira surge tardiamente no país. Heloísa Buarque de
Hollanda considera que a impossibilidade de mobilização e debate político no
período transferiu naturalmente para as manifestações artísticas “o lugar
privilegiado da resistência” (p. 92). Gil e Caetano, que voltaram do exílio em
1972, recusaram papel de liderança do movimento contracultural, revelando
certa descrença em uma mudança social a partir da arte. Em entrevista, Gil
confessa:
Teve um momento em minha vida em que eu achei que
tinha obrigações políticas com a sociedade, no sentido de
contribuir o mais intensamente possível para as
transformações desejadas. E, de certa forma, eu ainda
penso assim e ainda faço assim, só que eu tive
desilusões muito grandes, eu aprendi que a gente não
pode tanto, não pode. A gente pode outras coisas, mas
não necessariamente transformar o mundo da noite pro
dia (GIL apud DUNN, p. 201).
A desilusão que marca a fala de Gilberto Gil faz-se presente também em
seu primeiro álbum pós-exílio, Expresso 2222. Ao mesmo momento em que
adota o estilo de vida contracultural, o cantor também sintetiza o sentimento de
fim do sonho que chegou ao país já sem a mesma força que atingira os
Estados Unidos e Europa. Em 1975, Caio Fernando já sinaliza a ruptura com o
sonho hippie, indicando a sintonia com os acontecimentos da época. O conto
“Loucura, chiclete & som”, publicado na antologia Ovelhas Negras, apresenta
um jovem que avalia a conseqüência do consumo de drogas, antes libertário,
agora marcado pela paranóia, pela morte por overdose. O dentista “careta”
aproxima-se do estilo hippie, utilizando suas gírias, indicando o vazio da
62
experiência. “The dream is really over”, afirma em certo ponto o personagem
numa referência ao pronunciamento de John Lennon no início da década, em
entrevista a Rolling Stone18, sentenciando o fim do sonho contracultural. No
final do conto, é formulada a pergunta de toda uma geração: “a culpa é deles
que deixaram tudo torto assim ou é a gente mesmo que está envelhecendo
sem achar outra coisa, hein, cara?” (2009, p. 81).
Na virada entre as décadas de 60 e 70, tanto na tropicália quanto no
movimento contracultural (ou pós-tropicalista, como quer Holanda), existia um
desinteresse crescente pela política, marcando uma recusa pelo projeto
anterior da esquerda, vinculado a uma “arte revolucionária”, engajada. O tema
da liberdade, da desrepressão, simbolizados pelos tóxicos e pela psicanálise,
substituía os temas políticos. Em uma espécie de balanço do que significou os
anos 70, Caio Fernando Abreu, em crônica intitulada “Pequenas e grandes
esperanças”, avalia a influência das drogas no cenário de combate à repressão
política no país:
Foram anos em que não se podia viver muito para fora: a
repressão política nos empurrava pra dentro. Nesse
movimento, havia duas opções principais e radicais: ou
você caía de cabeça nas drogas ou mergulhava na
clandestinidade política. O que ligava os dois
comportamentos era uma vontade poderosa de mudar o
País e o planeta, fosse através do ácido lisérgico nas
caixas-d’água das cidades, fosse pela revolução do
proletariado. (2005, p. 141)
Nesse sentido que Caio atribui ao uso de drogas para contestação
política, resgato novamente Hollanda, destacando a relativização que ela busca
traçar no que diz respeito a um movimento de resistência. Considerando que
tanto a participação política, como o uso de tóxicos desempenham papeis
desviantes e por isso sujeitos a repressão, ela percebe uma “remapeamento da
18
Em janeiro de 1971, John Lennon concede uma entrevista em que anuncia o fim dos Beatles
e da contracultura. “O sonho acabou. Não estou falando só dos Beatles, estou falando de toda
a geração. Acabou, e nós temos – eu pessoalmente – que descer à Terra e voltar à realidade”
(LENNON, 2008, p. 45).
63
realidade”, a partir de uma alteração na direção dos interesses. Sendo
valorizada a realidade dos grandes centros urbanos, a identificação do artista
não é mais imediatamente com o proletariado revolucionário, mas com as
minorias sociais.
A produção de Caio Fernando é marcada por esse olhar voltado para os
desajustados, pelo fantasma de um sonho interrompido, pela loucura e pela
repressão. Morangos Mofados surge como o ápice desse momento que já
pontuava a obra do autor pelo menos desde Pedras de Calcutá, mostrando
ativistas políticos de esquerda e protagonistas do chamado desbunde
completamente atordoados. Heloísa Buarque de Hollanda, numa análise da
obra, afirma: “Morangos não deixa de revelar uma enorme perplexidade diante
da falência de um sonho e da certeza de que é fundamental encontrar uma
saída capaz de absorver, agora sem a antiga fé, a riqueza de toda essa
experiência” (HOLANDA, 2005, p. 9). O livro, não por acaso, é dedicado a
Caetano Veloso e todos os amigos vivos do autor, e à memória de John
Lennon e a de todos os amigos mortos.
Além disso, o próprio título Morangos Mofados pode ser lido como uma
referência a uma das músicas mais conhecidas dos Beatles: “Strawberry fields
forever”19. Nessa música, o sonho contracultural é representado pelos
morangos que se espalham por vastos campos. Caio, porém, nos apresenta
frutos mofados, indicando o aparente tom pessimista da obra. Essa leitura do
título enquanto referência à música de Lennon e McCartney é autorizada pelo
próprio autor ao fazer uso do refrão de “Strawberry fields forever” como
epígrafe em sua obra. Recorrendo ao trecho da música dos Beatles, Caio
Fernando introduz o leitor à última parte de Morangos Mofados, constituída de
um único conto, homônima ao livro. Aqui se revela uma nova chave de leitura,
apontando que talvez haja uma saída positiva para o doloroso despertar das
personagens desse mundo de desilusão. Nesse conto, Caio dá vida a um
19
O sucesso dos Beatles também serviu de referencia para as musicas “Sugarcane Fields
Forever” e “Chuck Berry Fields Forever”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, respectivamente. A
primeira alude às plantações na Bahia, evocando uma historia de miscigenação e hibridismo
cultural, reforçando a idéia do palimpsesto tão explorada pelos tropicalistas. Já a composição
de Gil vincula o surgimento do rock à cultura negra.
64
publicitário, ex-hippie que acredita ter um câncer na alma. O único sintoma é
um forte gosto de morangos mofados em sua boca. Em visita ao médico, o
publicitário tem como diagnóstico uma saúde perfeita. No entanto, lhe são
receitados alguns tranqüilizantes. Ao tomar uma dose três vezes maior que a
receitada pelo médico, a personagem relembra a música de Lennon e um
passado de esperanças perdidas, constatando em certo ponto: “Tudo já passou
e minha vida não passa de um ontem não resolvido, bom isso. E idiota. E inútil”
(p. 145).
No vômito, induzido pelos comprimidos, a personagem consegue ainda
“distinguir aqui e ali alguns pedaços de morangos boiando, esverdeados pelo
mofo” (p. 146). A mão estendida, pronta para agarrar a mão perdida de John
Lennon, mostra-se vencida por uma forte ventania daquele “terrível cheiro de
morangos guardados há muito tempo” (p. 146). Porém, é do terraço de seu
apartamento que ele consegue perceber que brota uma espécie de luz no
horizonte e que no lugar das perdas irreparáveis encontram-se positivas
transformações. O gosto de morangos mofados desaparece e agora ele,
“exatamente como era, sem aditivos” (p. 148), questiona-se ao observar o
concreto da cidade: “será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui,
procurar algum lugar em outro lugar?” (p. 149). A resposta positiva a essa
pergunta associa-se à leitura que Hollanda faz da obra de Caio, ao identificar
um desejo de absorção da experiência da juventude dos anos 70 capaz de
gerar novas saídas, reiterando a crítica à modernização desumanizadora
representada pela solidão imposta pela metrópole. Avaliando Morangos
Mofados, Pedro Paulo de Sena Madureira oberva:
Os mais jovens, as pessoas que tinham 20 anos em 80, e
que não viveram nada do que nós vivemos, receberam
aquela experiência como uma herança boa, positiva,
profícua. Essa herança está no livro de Caio e serviu,
ainda que de forma inconsciente, como uma espécie de
escudo contra o começo da padronização dos costumes
e comportamentos que se inicia logo depois dos anos 80
com a globalização (apud DIP, p. 178).
65
Trata-se de uma produção que carrega não apenas as experiências,
mas todo o universo que as circunda, composto pelas gírias, pelos hábitos
cotidianos, pelas roupas. Nonato Gurgel ressalta:
Muitos dos seus personagens herdaram os hábitos
alimentares do universo hippie e suas técnicas de
meditação; herdaram também seus produtos naturais,
suas fumaças; um jeito de ver o mundo que nem sempre
privilegia os chamados vencedores. (2008, p. 63)
Os dragões não conhecem o paraíso, publicado no fim dos anos 80,
ainda preserva a herança histórica da linguagem da década anterior, o estilo de
vida, as referências artísticas. A imagem dos dragões que compõe o título da
obra surge exatamente a partir do I ching, o livro das mutações, um clássico
texto chinês que pode ser compreendido tanto como oráculo quanto como um
livro de sabedorias. Na epígrafe que abre o conto-título, os dragões
representam o instrumento que conduzem o homem aos céus, como resultado
de uma contemplação do mundo, que lhe permite perceber efeitos e causas
com clareza. O I Ching é constituído por 64 hexagramas que representam um
momento universal. O escolhido por Caio na epígrafe é Ch’ien, o criativo, que
simboliza a força inicial, luminosa, sugerindo um momento de desenvolvimento
e realização. O hexagrama de Ch’ien surge reproduzido no final do livro.
O texto chinês não é a única referência ao universo místico na obra. O
candomblé, a astrologia20, a filosofia zen surgem abundantemente nessa obra
remetendo-nos
justamente
ao
desejo
contracultural
de
uma
fuga
à
racionalização do mundo. Em uma reportagem sobre o zen-budismo, produzida
por Caio, em 1985, ele diz: “Zen não tenta compreender nada que seja esteja
fora de ser” (apud DIP, p. 262). E deixa claro como os ensinamentos orientais
20
Caio era um estudioso de astrologia e inclusive produziu um livro de novelas intitulado
Triângulo das águas, todo delineado a partir de uma simbologia astrológica. As três novelas
que compõem o livro se estruturam sobre o elemento água, arquétipo da emoção. A narrativa
final, intitulada “Pela noite”, faz ainda referências claras ao personagem Pérsio do romance Os
prêmios, de Julio Cortázar, que sempre estava tentando compreender os astros. A narrativa de
Cortázar se passa em alto-mar.
66
devem pontuar o cotidiano do homem metropolitano, ao introduzir a matéria
com a clássica cena de alguém despertando atrasado para o trabalho, preso no
trânsito, irritado com as pessoas em volta e consigo mesmo, pontuando: “Zen,
seria, em vez do terrível esforço do grand-jeté da dança, um daqueles
movimentos quase imperceptíveis do leque num passo do teatro Nô” (idem).
Resgatar as conquistas e influências da década de 70, a década, como
diversos personagens de Caio afirmam repetidamente, que ainda acreditava
em alguma coisa, é manter-se resistente diante de um capitalismo ainda mais
feroz porque foi capaz de silenciar a geração que sucede a do autor. A revolta
diante da passividade e descrença dessa juventude dos anos 80 marca
singularmente essa obra de Caio. O conto “Dama da noite” é todo estruturado a
partir do choque geracional, revelando a crítica do autor não apenas a nova
geração, mas sobretudo aos rumos da geração da qual ele faz parte que
parece abandonada e perdida como a personagem do conto, incapaz de
avaliar os ganhos e as perdas da experiência contracultural.
67
CAPITULO III – EM RUA EM VÃO
Distantes dos elementos ligados à velocidade e à transformação que
caracteriza a rua, os personagens de Caio Fernando são percebidos na
sutileza de entrevisões. O apartamento ganha importância singular por catalisar
sentimentos de apatia e solidão apresentando a realidade urbana como
fatalidade, como algo diante do qual não há nada que se possa fazer. No intuito
de priorizar a paralisia, o medo e a sensação de impotência, o autor volta-se
para uma narrativa de cunho psicológico, marcando a tomada da subjetividade
por lógicas que levam à destruição. Nesse sentido, à rua – lugar da mobilidade,
dos acontecimentos – são atribuídas apenas breves referências e dificilmente o
ambiente externo funciona como espaço para as ações dos personagens.
Em um desses raros momentos em que a rua ambienta a narrativa, o
autor trabalha reiteradamente a dificuldade do indivíduo em preservar sua
condição humana em meio ao caos da metrópole. O conto “Creme de alface”,
de 1975, publicado na antologia Ovelhas negras, é desenvolvido a partir de
uma linguagem fragmentada, que evoca o ruído do trânsito, a poluição visual
das lojas que se amontoam e principalmente a multidão que avança como
“boiada, manada” (p. 129). A violência e a amargura da mulher que protagoniza
essa narrativa são levadas ao extremo, expondo-a “biônica atômica
supersônica eletrônica” (p. 132). O movimento frenético da rua parece trabalhar
no sentido de uma desumanização dessa “mulher-monstro fabricada pelas
grandes cidades” (p. 127), conforme comentário do próprio autor. Diante da
brutalidade do espancamento de uma garota que a pede dinheiro na rua, as
vozes do narrador e da personagem se fundem sinalizando: “Mas tantos carros
passando e tanto barulho mas tanto tanto, justificaria depois, à noite, na mesa
do jantar” (p. 131).
A velocidade das ruas pautando também novas relações sociais
associa-se à categoria que Simmel denominou de “intensificação dos estímulos
nervosos” (1973, p. 12). É exatamente essa intensificação que marca a vida
metropolitana, submetendo seu habitante ao descontínuo, a uma “rápida
68
convergência de imagens em mudança” (p. 12), ao invés de uma apreensão
regular e pausada. Respondendo a esse fluxo com acréscimo de consciência,
com o predomínio da inteligência, esse homem “reage com a cabeça, ao invés
de com o coração” (p. 13), caracterizando a vida citadina. O foco narrativo de
Caio Fernando parece concentrar-se num deslocamento do sujeito urbano do
ambiente caótico da rua, poupando-lhe dessa multidão desordenada, desse
apelo visual e sonoro. A intenção do autor, de explorar a experiência do
homem que busca resistir a esse turbilhão, recusando o atordoamento imposto
pela vida na cidade, ganha força exatamente na exploração de ambientes que
estimulam a introspecção.
Nesse sentido, os personagens da obra em análise raramente se
encontram em trânsito pelas ruas. Quando existe uma movimentação espacial
dos personagens faz-se a opção de não descrevê-la. Em “Linda, uma história
horrível”, a narrativa tem início exatamente com a chegada do filho a casa de
sua mãe. A distância entre a cidade grande que o filho habita e a interiorana
Passo da Guanxuma ganha referência apenas na recordação da mãe, quando
ela relembra a visita que fez ao filho anos atrás, chegando de avião naquela
cidade que parecia “coisa de louco, aquela barulheira” (p. 26). O conto “Os
sapatinhos vermelhos” é dividido em três partes, cada uma delas marcando a
localização de Adelina em um ponto diferente da cidade. A narrativa é
interrompida a cada mudança de cenário. Essa mesma lógica se repete ainda
nos contos “Dama da noite” e “O rapaz mais triste do mundo”.
Na produção de Caio, rua e cidade não são sinônimos. O único
momento em que a cidade labiríntica21 é representada em Os dragões surge a
partir da fusão entre a rua e o bar, reiterando a tendência do autor em
privilegiar os espaços fechados. No conto “Uma praiazinha...”, o personagem
21
O labirinto é uma imagem-chave na análise benjaminiana sobre a modernidade, refletindo a
atrofia da experiência sendo substituída pela vivência do choque. A cidade moderna
assemelha-se a um presídio complexo de ruas cruzadas, marca da dispersão (Cf. GOMES,
2008).
69
deixa seu apartamento para realizar uma busca confusa por Dudu, o amigo de
infância assassinado. Assim ele nos diz:
Eu fui atrás, eu nem sabia que aquilo era um bar. Me
perdi numas salas cheias de fumaça e gente estranha,
gente falando muito e muito alto, atravessei umas portas,
uns arcos, desci escadas, tornei a subir, fui parar numa
janela grande aberta para a rua. Então olhei para o outro
lado e lá estava você, na calçada oposta, embaixo de um
outdoor de carro, calcinha ou dentes, não me lembro ao
certo (p. 80).
Espaço público, a rua, como lembra Fabris, “é o próprio mundo com
seus imprevistos e suas paixões. Território da novidade, da ação, do
movimento” (p. 71). Ela apenas ganha representação a partir da janela do bar,
que acaba assumindo o papel dispersivo da rua, mostrando-se complexo,
tomado pelas pessoas. O personagem contribui para essa aproximação
quando em dado momento diz: “Amor aos montes, por todos os cantos,
banheiros e esquinas” (p. 80). A equivalência entre os elementos banheiro e
esquina indicam a estreita relação que rua e bar assumem. O afeto que um
ambiente de transitoriedade e errância oferece, no entanto, não poderia ser
outro que o “amor picadinho, claro, amor bêbado, amor de fim de noite, amor
de esquina, amor com grana, amor com fissura, chato nos pentelhos e doença”
(p. 80). Esse homem sinaliza que existe algo a lhe roer por dentro que não é
esse amor “que não mata a sede da gente”, nem a falta dele. O personagem
está à procura de outra coisa que apenas Dudu poderia oferecer.
Todas as noites ele vai ao bar à procura do amigo: “Penso às vezes que,
quando eu estiver pronto (...) um dia, um dia comum, um dia qualquer, um dia
igual hoje, vou encontrar você claro e calmo sentado no Bar, à minha espera”
(p. 81). Dudu, assassinado – pelo narrador-personagem, como é revelado ao
fim do conto –, é agora memória de uma relação associada à sensibilidade, à
pureza da infância. É justamente por ele que o personagem procura
obsessivamente no bar, em contraposição à fugacidade dos encontros que
70
esse ambiente sugere. O bar, nesse sentido, carrega ao mesmo tempo a
marca da dispersão do homem citadino e a possibilidade de encontro.
No conto “O rapaz mais triste do mundo”, o bar e os personagens que
nele transitam são apresentados a partir de metáforas marítimas. Esse “aquário
de águas sujas” (p. 55), a que se refere o narrador, ambienta o encontro entre
um homem de quase quarenta anos e um rapaz de quase vinte anos, ambos
em trânsito. O primeiro volta à cidade de sua infância em visita ao pai, o
segundo planeja dela sair. Nessa narrativa, o bar não surge apenas como
cenário de mais um encontro fugaz. Ele representa um exercício de recordação
de uma vida passada, simboliza a angústia de um futuro que nada oferece.
Assumindo a leitura da água enquanto símbolo da emoção e do inconsciente, o
bar (o mar) é visto também como lugar de reflexão22, exercício que o ritmo
acelerado das ruas labirínticas da cidade não permite. Assim sendo, o autor
explora a natureza desse ambiente noturno para desenvolver uma narrativa
que sempre trabalha no sentido de uma interiorização.
Em “Dama da noite”, a narrativa é construída a partir do olhar de
profunda amargura da mulher que mantém a fé no encontro com “O Verdadeiro
Amor”23. Nesse conto, é desvendada a crítica das relações humanas pautadas
na lógica do consumo, em que a rua – sempre representada pelo bar –
desponta como a própria essência da mercadoria. A postura de resistência que
a dama da noite assume é definida na recusa em construir relações a partir da
troca monetária. “Se quiser, posso ter. Afinal trata-se apenas de um cheque a
menos no talão (...). Mas eu quero mais é aquilo que não posso comprar” (p.
88).
22
Aqui lembro as palavras de Buñel em Meu último suspiro: “O bar é para mim um lugar de
meditação e recolhimento, sem o qual a vida é inconcebível. Hábito antigo que se arraigou ao
longo dos anos (...), passei nos bares longos momentos de devaneio” (BUÑUEL, 2009).
23
Em geral, o autor utiliza a marcação gráfica das letras maiúsculas ao referir-se a
personalidades clichês, como veremos mais adiante. Nesse caso, trata-se de uma expressão
clichê. A marcação pode sugerir certa descrença diante desse encontro, aproximando-o ainda
mais de uma ilusão. Apresentá-la bêbada, com discurso por vezes cômico, revela o
pessimismo que parece considerar a potência da dispersão que a metrópole impõe.
71
Os freqüentadores dessa passarela da novidade e da moda simbolizada
pelo bar “vestem preto e têm o cabelo arrepiadinho” (p. 84), incluindo a dama
da noite e seu interlocutor. O figurino, nesta narrativa, parece apagar as
diferenças entre as pessoas. Não por acaso, ela imagina O Verdadeiro Amor
diferente de toda a gente do bar, conferindo-lhe singularidade em meio à
uniformização. Além disso, se a moda associa-se ao artifício, instantâneo, fútil
e passageiro, ela tenta apegar-se justamente a elementos que se contrapõem
a esses valores. O tom fortemente pessimista do conto ganha força justamente
no jogo de opostos entre o que o bar representa e a expectativa dessa mulher.
Ambiente da fugacidade e de ilusões, esse espaço é trabalhado pelo autor
como arquétipo da solidão e, no caso desse conto, de desejos não satisfeitos.
É nesse cenário que a solidão ganha nova perspectiva e a dispersão da
cidade labiríntica parece novamente sobrepor-se à irrupção de paixões. A AIDS
é apresentada na obra como fator de isolamento desse homem que manifesta
repetidamente a necessidade do outro. A única narrativa de Os dragões não
conhecem o paraíso que tematiza a questão é a que introduz o livro, intitulada
“Linda, uma história horrível”. A AIDS, no entanto, mesmo que apenas
pontualmente, surge também nos contos “Mel e Girassóis” e “Dama da noite”,
sempre se estabelecendo como um mal urbano que age no sentido da
desconfiança do outro, da solidão inescapável. Em todos eles, a AIDS é
subentendida em maior ou menor grau, podendo ser encontrada a sigla escrita
unicamente nos dois contos em que ela não ocupa a discussão central. A
escolha de não utilizar a sigla explicitamente considera a carga de significado
embutida na síndrome, forçando o autor a procurar transcendê-la no intuito de
uma problematização das conseqüências da AIDS – mais especificamente do
que a AIDS representa – no convívio humano. Quem desvenda a intenção
dessa elipse é Marcelo Secron Bessa: “Reconhecendo que o ato de nomear
imprime valores já dados, alguns escritores retiram-lhe o nome, e podem,
assim, discutir a doença e suas imagens pré-fabricadas” (p. 73).
Susan Sontag, no ensaio “Doença como metáfora”, de 1978, empenhase exatamente em esvaziar os significados do câncer, objetivando exorcizá-lo
da acepção da doença como uma maldição, um castigo, uma vergonha. A idéia
72
de concentrar-se no “câncer apenas como uma doença, uma doença muito
grave, mas apenas uma doença” (p. 88), objetiva livrar o paciente de
roupagens metafóricas deformantes capazes de impedir até mesmo a busca
por um tratamento eficaz. Estimulados pela crença de que o câncer vinculavase a um estilo de vida reprimido ou a personalidades sensíveis, muitos
pacientes procuravam tratamentos inúteis como terapias e dietas, em
detrimento de métodos eficientes como a quimioterapia. “Eu estava convencida
de que as metáforas e os mitos podiam matar”, analisa a autora dez anos mais
tarde no ensaio “AIDS e suas metáforas”.
Consciente de que doenças como o câncer e a AIDS são também
construções
discursivas
e
ideológicas,
Caio
Fernando
busca
esse
esvaziamento de significado utilizando a elipse. No conto “Linda, uma história
horrível”, o narrador em terceira pessoa conduz o leitor paulatinamente a
descobrir, por pistas, a condição de soropositivo do filho em visita a mãe em
sua cidade de infância. A estratégia de não explorar a onisciência do narrador
possibilita que essa descoberta se dê principalmente a partir do olhar da mãe
que o percebe magro demais, com o cabelo rareado e uma forte tosse. A
velhice da mãe também ganha existência a partir do olhar do filho, que observa
a pele enrugada, as machas da ceratose. A cadela Linda completa o triângulo
de solidão e proximidade da morte composto por esses personagens. A elipse
da AIDS nesse conto permite exatamente a exploração do sentido da vida
diante da finitude, do abandono, dos amores perdidos.
Os olhos que não se encontram simbolizam o medo de se saber outro,
de tomar consciência de uma natureza condenável. Apenas no final da
narrativa, diante do espelho, sozinho na sala, o filho passa os dedos sobre as
manchas roxas no peito e parece se reconhecer na sombra daquele homem
que lhe é tão estranho. É no encontro com o mais assustador de si que uma
verdade transcendente ganha força, um pouco como GH, de Clarice
Lispector24. Dessa forma, na evolução descritiva do reflexo no espelho, os
24
Na “Última carta para além do muro”, em que Caio Fernando anuncia sua condição de
soropositivo, ele sugere imagem semelhante: “ o que importa é a Senhora Dona Vida, coberta
de ouro e prata e sangue e musgo do tempo e creme Chantilly e confetes de algum carnaval,
73
olhos assustados de uma criança completam essa imagem, desvendando
movimento muito similar ao que ele empreendeu nessa volta ao local de
infância. Em geral, os personagens de Caio Fernando fantasiam regressar ao
Passo, mas nunca o fazem. O conto em questão proporciona essa volta a um
personagem vinculado à vida na cidade grande, distante de tudo o que é
passado, “porque não têm passado os homens de quase quarenta anos que
caminham sozinhos pelas madrugadas” (p. 55). Quando se arrepende da
viagem que o levou a casa de sua mãe, ele se imagina retrocedendo no tempo,
como se volta uma fita de videocassete, “para outra cidade, longe do Passo da
Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços, nem passado”
(p. 23).
O encontro com a mãe tão debilitada pela passagem do tempo, da casa
que já não possui as mesmas cores – imagens catalisadas sempre pela figura
de Linda, cega e de pêlo manchado – apresenta aquele que talvez seja o
sentimento mais forte da obra: a melancolia de um passado associado à
pureza, ao amor. No entanto, ao conferir novas metáforas a AIDS, o autor não
esquece o discurso excludente que a ronda. Em certo ponto, o personagem da
mãe usa o termo “peste”, explorando, mesmo que apenas nessa breve
passagem, talvez a mais grave metáfora atribuída a AIDS. Ela pergunta:
“Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes” (p. 25).
A peste está invariavelmente associada ao perigo do contágio
desenfreado inter-humano, conduzindo ao isolamento como mais urgente
medida de proteção. “O tempo de peste é o da solidão forçada”, completa Jean
Delumeau em sua análise sobre o medo, este, considerado por Lutero, “a peste
mais temível” (apud DELUMAEU, p. 194). O outro surge então como ameaça.
A peste vincula-se a uma espécie de invasão, representando o desconhecido,
o estrangeiro, indicando, conforme Sontag sinaliza, raízes do conceito de
errado. O personagem do conto de Caio ao mirar-se no espelho descobre esse
outro que a sociedade aponta e condena. A AIDS, como lembra Bessa, “é
percebida e vivenciada como uma doença do outro, daquele que é visto como
descobrindo pouco a pouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Precisamos suportar. E beijála na boca” (p. 90).
74
(...) marginal à sua própria sociedade” (p. 91). A pessoa poluente é sempre
errada, assim como o inverso da sentença é válida, a pessoa errada é a fonte
de poluição (Cf. Sontag). Sobre a tendência histórica de culpar o outro diante
da peste, Delumeau aponta:
Os culpados potenciais, sobre os quais pode voltar-se a
agressividade coletiva, são em primeiro lugar os
estrangeiros, os viajantes, os marginais e todos aqueles
que não estão bem integrados a uma comunidade, seja
porque não querem aceitar suas crenças – é o caso dos
judeus –, seja porque foi preciso, por evidentes razões,
isolá-los para a periferia do grupo – como os leprosos –,
seja simplesmente porque vêm de outros lugares e por
esse motivo são em alguma medida suspeitos (p. 204).
Partindo dessa idéia, Sontag lembra que a visão clássica do surgimento
da AIDS remete-nos exatamente a África, ao “continente negro”. A
culpabilidade do estrangeiro extrapola a questão geográfica, atingindo aqueles,
conforme salientou Delumeau, que são de alguma forma considerados
diferentes dos demais. Os homossexuais masculinos surgem como os
principais culpados, liderando o grupo do “eles”, juntamente com os pobres, os
negros e os consumidores de drogas ilegais, contrapondo-se, por sua vez, ao
grupo do “nós”, composto pelos heterossexuais, brancos, de classe média e
usuários de drogas legais. Em carta a Luciano Alabarse, em 1985, Caio
Fernando diz: “Nunca me senti tão maldito. Homossexualidade agora é
sinônimo de peste – ninguém se toca mais” (p. 123).
A metáfora da peste evidencia uma exploração moralista dessa
epidemia, que apenas se torna tão bem-sucedida devido ao meio de
transmissão mais comum do vírus: o ato sexual. O sentimento de culpa
também está intimamente relacionado a essa idéia, associando o doente a um
comportamento delinqüente e irresponsável. Delumeau observa que “se a
epidemia era [interpretada como] uma punição, era preciso procurar bodes
expiatórios que seriam acusados inconscientemente dos pecados da
coletividade” (p. 204). No caso da AIDS, a ciência e a imprensa ajudaram a
75
difundir a crença de que antes de se tratar de uma doença causada apenas por
excessos sexuais, tratava-se sobretudo de uma doença causada pela
perversão sexual (Cf. Sontag). Reinaldo Arenas, na introdução de sua
autobiografia Antes que anoiteça, concluída em 1990, registra com pessimismo
o sentimento de quem se sabe vítima de uma doença acompanhada de forte
julgamento moral: “grande parte da população marginal que deseja apenas
viver e, por isso mesmo, passa a ser inimiga de todo dogma e da hipocrisia
política, irá desaparecer com essa calamidade” (p. 15).
Contrair AIDS é descobrir-se parte de um “grupo de risco”, expondo uma
identidade que “poderia ter permanecido oculta dos vizinhos, colegas de
trabalho, familiares e amigos” (SONTAG, p. 97), tendo como conseqüência a
discriminação e a perseguição. Bessa ressalta que, no caso do Brasil, “a AIDS
chegou antes da AIDS” (p. 44-45), apontando que as informações sobre a
doença chegavam rapidamente ao país, “quase sempre de intolerância
travestida de ciência” (idem), quando nem mesmo havia sido registrada alguma
morte em decorrência da AIDS em território nacional25. Nesse sentido, a mídia
surge como principal meio difusor dessa concepção negativa da AIDS nos
contos de Caio Fernando. A personagem da mãe em “Linda, uma história
horrível” acompanha pela televisão as notícias sobre a “peste”. Em “Dama da
noite”, a confusão de informações sobre a síndrome também ganha destaque:
“Transmite pela saliva, você leu em algum lugar. (...) Transmite pelo suor, você
leu em algum lugar. (...) Pega até de ficar do lado, beber no mesmo copo” (p.
86).
Essa atmosfera de desconfiança revela aquilo que Caio Fernando, em
crônica26 de 1987, chamou de AIDS psicológica, “a mais grave manifestação do
vírus”. “Dama da noite” é talvez o conto em que mais claramente se evidencia o
medo do outro, apresentando um discurso doloroso que representa uma
geração marcada pela liberação sexual de repente surpreendida “por uma
25
A primeira morte em decorrência da AIDS reconhecida publicamente no Brasil foi do estilista
Markito, em 1983.
26
“A mais justa das saias”.
76
espécie de vírus de direita”. A voz da dama da noite sobrepõe-se absoluta
anulando qualquer intervenção do boy, representante de uma nova geração
ignorante, educada pela mídia, dominada pelo pavor da contaminação. “Conta
pra tia: você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei.
Mas na tevê também dá, o tempo todo: amor mata amor mata amor mata” (p.
86).
A fala dessa mulher é marcada pela revolta diante de uma sociedade
que trabalha a favor do isolamento, lembrando sempre que tocar o corpo do
outro se trata agora de ameaça. A despeito de todos esses elementos, ela
apresenta uma postura de resistência frente à solidão que se coloca
irremediável. Confundindo-se com o vírus, ela evoca a metáfora da peste,
reiterando o medo da contaminação:
Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu
perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e
noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo
de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem
nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos,
contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado
comigo: eu sou a dama que mata, boy (p. 86).
Nesse momento, ela parece assumir a relação que o estranho e o
inadequado mantêm com a síndrome. Neste conto, narrado em primeira
pessoa por esta mulher que representa a solidão, a cidade aparentemente quer
se preservar saudável e forte, excluindo os que, de alguma forma, representam
certo desvio ameaçador. É dessa forma que a dama da noite se percebe, como
um perigo capaz de desestabilizar, ou talvez pôr fim, a uma lógica
conservadora, limpa, perfeita, segura em sua felicidade burguesa. No entanto,
na produção de Caio, comumente a cidade é que surge contaminada “por uma
peste desconhecida, mortal e sem nome que atinge habitantes, prédios e
bairros” (texto on-line), como observa Renato Cordeiro Gomes, em análise
sobre Onde andará Dulce Veiga?, em que considera o discurso aí embutido
sobre a AIDS. Doente, deteriorado, detentor desse poder infeccioso, o espaço
77
citadino trabalha sempre no sentido da dispersão, desvelando uma acepção de
uma AIDS psicológica, da qual falava Caio.
Isso se revelará mais claramente no conto intitulado “Anotações de um
amor urbano”, publicado em Ovelhas negras. Aqui o narrador questiona como
os amores, as paixões podem resistir a esse ambiente poluente, de
desconfiança. “Como chamar agora essa meia dúzia de toques aterrorizados
pela possibilidade da peste? (Amor, amor certamente não)” (p. 188). O mal que
acomete o espaço urbano é justamente o medo do outro, a solidão, a
valorização do intelecto sobre as emoções. “A cidade está podre, você sabe.
Mas a cidade está louca, você sabe. Sim, a cidade está doente, você sabe. E o
vírus caminha em nossas veias, companheiro” (p. 189). A progressão desse
argumento que considera uma cidade doente, envenenada por sua própria
loucura, culmina na busca por elementos associados ao sentimento, à
memória, numa tentativa de preservar o humano constantemente ameaçado
pelo concreto.
3.1. Campo e cidade
“Para todos eles, a verdadeira pátria
encontrava-se para além dos muros desta
cidade sufocada. Ela estava nas matas
perfumadas das colinas, no mar, nos países
livres e no peso do amor”.
Albert Camus, A peste
Passo da Guanxuma surge nas narrativas de Caio Fernando como uma
cidade do passado, lugar da infância, símbolo da natureza. Tratando-se de
uma cidade imaginária, um pouco como a Santa María, de Juan Carlos Onetti,
como queria o autor, ela funciona como contraposição à realidade cinza de São
Paulo. Em “Introdução ao Passo da Guanxuma”, de 1990, publicado em
Ovelhas Negras, Caio nos apresenta o que seria o primeiro capítulo de um
78
romance dedicado à cidade, projeto nunca concluído27. Aqui, à semelhança de
as Cidades Invisíveis de Calvino, o autor apresenta uma cidade quase mágica,
como uma pequena aranha “inofensiva, embora louca” (p. 65), cujas quatro
patas indicassem quatro corredores definindo sua estrutura. No texto, lendas
envolvendo guerreiros tapuias, mulheres que dominam a ciência das ervas,
narrativas orais remetem a uma sociedade pré-capitalista que, conforme
descobrimos por fim, encontra-se ameaçada. Nenê Tabajara, personagem que
simboliza a ambição do progresso, habita o lado oeste da cidade, em vias de
desaparecimento diante de um deserto28 que avança, “transformando tudo em
lenda e passado” (p.73).
O deserto é signo do esquecimento e do avanço técnico, referido no
texto pelas antenas de tevê e as parabólicas, o veneno nas plantações, as
monoculturas. No sentido contrário, a escolha pela planta guanxuma como
representação dessa cidade desvela uma metáfora da resistência diante da
destruição da natureza e da sensibilidade engendrada pelos elementos
associados ao capitalismo. Tendo a função de chá digestivo e utilizada para
produzir vassouras, guanxuma batiza essa cidade-refúgio da memória,
lembrando que apenas os ramos dessas vassouras podem assentar a poeira
que aquele deserto “sopra e sopra noite e dia sem parar e, dizem, dizem tanto,
ai como dizem nesse Passo, nunca pára de crescer” (p. 73).
Em crônica intitulada “São Paulo”, Olavo Bilac mostra-se encantado com
as transformações urbanísticas da capital paulista, não sem revelar certo
espanto em face de tantas mudanças. “Porque o que envelhece a gente é a
27
O autor previu, conforme depoimento, que, por se tratar de um romance tão ambicioso e
caudaloso, jamais viria a realizá-lo.
28
O deserto é uma imagem recorrente na produção do autor. Destaco o conto “Pela passagem
de uma grande dor”, de Morangos Mofados. A personagem em certo ponto diz: “Eles vão se
espalhando cada vez mais. Acabam se encontrando uns com os outros um dia, entende? O
deserto fica maior. Fica cada vez maior. Os desertos não param nunca de crescer, sabia?” (p.
39). Nessa narrativa, Caio imprime uma preocupação ecológica que seria lembrada
posteriormente por uma espécie de pioneirismo para a época e também por associá-la ao
isolamento dos personagens que compõem esse conto marcado por silêncios, entre duas
pessoas que falam ao telefone. Em outro conto do mesmo livro, “Aqueles dois”, o narrador
compara a burocrática repartição que funciona como elemento repressor a um “deserto de
almas”.
79
perpétua transformação das coisas” (1996, p. 45). Apesar do tom romântico
dessa “crônica de saudades” que pontua seu exercício de rememoração da
cidade calada dos tempos de estudante, dos amigos já mortos, ele não deixa
de ressaltar a excitação diante da evolução daquela aldeia em que viveu
enquanto jovem na cidade de então, treze anos depois, “essa lenta passagem
do estado de lagarta ao estado de borboleta” (p. 49). Em meio a sentimentos
ambíguos diante do ritmo de mudanças da metrópole, o cronista não deixa de
ressaltar a felicidade do aldeão que nunca saiu de sua aldeia, distante do
sentimento de morte que acompanha os habitantes das grandes cidades,
protegido pela segurança da imutabilidade da natureza.
A natureza não muda: quem viu hoje o seio de uma rude
selva vem achá-la com a mesma fisionomia daqui a dez
anos, com os mesmos troncos que os cipós enlaçam,
com as mesmas sombras que os ninhos das aves e as
tocas das feras povoam de gorjeios e uivos. Nas aldeias
humildes,
cerradas
à
ambição,
também
as
transformações são tão lentas, tão morosas que ninguém
sente: o homem nasce e morre, vendo as mesmas gentes
e as mesmas coisas, paradas e calmas, na beatitude de
uma paz inalterável... Mas, as cidades! As cidades
mudam de ano em ano, de dia em dia, de hora em hora.
(p. 46)
O ritmo da vida metropolitana apresenta contraste profundo com a vida
de cidade pequena. A vida no campo é marcada não apenas por um ritmo
menos acelerado, mas sobretudo por um fluxo menos intenso do conjunto
sensorial de imagens mentais. Simmel considera que é neste ponto que o
caráter da vida metropolitana se torna mais compreensível, “em oposição à
vida de pequena cidade, que descansa mais sobre relacionamentos
profundamente sentidos e emocionais” (1973, p. 12). Os laços mais fortes do
relacionamento interpessoal se enraízam em camadas mais inconscientes do
psiquismo, crescendo ao ritmo constante da aquisição ininterrupta de hábitos
em contraposição ao intelecto que se situa nas camadas conscientes, mais
altas do psiquismo. O intelecto não exige choques ou transtornos para
acomodar-se a mudanças. Tendo em vista que apenas através desses
80
transtornos seria possível acomodar-se a vida na metrópole, o homem que a
habita acaba por desenvolver uma consciência elevada, numa predominância
do intelecto sobre o coração. A intelectualidade acaba por funcionar como um
mecanismo de preservação da vida subjetiva contra o poder avassalador da
vida das grandes cidades.
Enquanto sede da economia monetária, a metrópole vincula-se
diretamente ao intelecto. A fragilidade do comércio rural, aponta Simmel, não
teria condições de permitir a multiplicidade e a concentração da troca
econômica própria da cidade grande. Mesmo assim, o comércio de cidades
pequenas trabalha no sentido de que a produção sirva ao cliente que solicita a
mercadoria, de modo que o produtor e o consumidor se conheçam. A
metrópole é provida quase completamente da produção para o mercado, para
compradores desconhecidos. Esse ritmo da cidade grande sustenta um
comportamento que encara como prosaico o lidar com homens e coisas,
unindo-se, por fim, a uma dureza desprovida de consideração. A mente
moderna se torna mais e mais calculista. O dinheiro, com toda sua ausência de
cor e indiferença, torna-se o denominador comum de todos os valores. A
cultura moderna se desenvolve exatamente no sentido de uma preponderância
do espírito objetivo sobre o subjetivo.
Nesse sentido, Passo da Guanxuma e todos os elementos associados à
vida no campo surgem na produção de Caio Fernando como elementos ligados
à sensibilidade. O conto talvez mais positivo do livro Os dragões não conhecem
o paraíso, intitulado “Mel e girassóis”, dá conta do encontro de um homem,
definido pelo narrador como um “Alto Executivo Bancário A Fim de Largar Tudo
Para Morar Num Barco Como O Amir Klink”, e uma mulher, uma “Psicóloga
Que Sonhava Escrever Um Livro”. Ambos estão de férias em uma praia,
distantes do espaço urbano, porém o espírito objetivo metropolitano de que fala
Simmel domina esses personagens. A lógica do mercado, que envolve as
ofertas, os produtos, os consumidores, não é excluída desta narrativa. Antes
disso, ela é ressaltada, expondo a ilusão que envolve as férias desses dois.
Eles são mostrados como caricaturas pelo narrador, como revela a marcação
gráfica que funciona no sentido de um rótulo social.
81
O movimento do narrador é exatamente de desconstrução da falsa idéia
de um afastamento da lógica da metrópole quando da aproximação com a
natureza. O sistema também controla esse universo e devolve às pessoas
como mercadoria. Não por acaso, marcas de produtos são mencionadas com
freqüência nessa narrativa. O óleo de bronzeamento é Copertone. Os cigarros
são Marlboro. Os óculos de sol são raibans. O tranqüilizante é Dienpax. Em
certo ponto ela arrisca que o cheiro dele possa ser Paco Rabanne ou Eau
Sauvage ou ainda Phebo. E quando se imagina, com desgosto, em seu carro
avançando pelo Minhocão, ela está em um Fiat verde. Aquela praia, com
aquele sol e aquela brisa, é mais uma aquisição do consumidor, como todos os
outros produtos referenciados ao longo do texto. A ironia reside no fato de que
as personagens não percebem que ainda estão vivendo sob a lógica da cidade
grande, mesmo sem as buzinas, a pobreza, os altos edifícios e o ar poluído.
Apesar dessa praia fundir-se à lógica metropolitana, ela aproxima-se ao Passo
da Guanxuma na medida em que a estadia desse casal tão urbano em contato
com a natureza parece ter engendrado uma transformação, tendo se
reconhecido amorosamente.
A primeira vez que a cidade fictícia aparece em um conto de Caio
Fernando é em “Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga”,
escrito em 1984 e publicado no livro Os dragões não conhecem o paraíso,
quatro anos depois. Essa narrativa dá conta de arrependimentos, amarguras e
da profunda solidão do personagem após sua saída do Passo da Guanxuma. É
exatamente nesse conto que a cidade interiorana ganha maior espaço no livro
de Caio. Mais que oposição à cidade grande, o Passo surge nessa narrativa
como um fantasma, personificado na figura de Dudu, do qual o protagonista
tenta fugir e ao mesmo tempo reencontrar. Esse movimento dialético marca a
relação dele com sua cidade de origem. Recorrendo à imagem de um
equilibrista circense que ao andar sobre um arame “gelado e cortante tipo fio
de faca” (p. 78) sente o arame arrebentar, restando sozinho suspenso no ar,
com o enorme vazio embaixo dos pés, esse personagem procura significar o
sentimento do errante em que se transformou ao deixar o Passo.
82
Você não sabe, mas acontece assim quando você sai de
uma cidadezinha que já deixou de ser sua e vai morar
noutra cidade, que ainda não começou a ser sua. Você
sempre fica meio tonto quando pensa que não quer ficar,
e que também não quer – ou não pode – voltar. (p. 76)
Passo da Guanxuma é, sobretudo, a representação de Santiago do
Boqueirão, cidade natal de Caio Fernando Abreu, onde este viveu até os 15
anos, quando se mudou para Porto Alegre para concluir os estudos em um
colégio interno. Logo após sua partida, em cartas aos pais, que só mudariam
para a capital gaúcha anos depois, ele dizia estar doente, precisando voltar a
Santiago. Por vezes, ameaçava o suicídio, revelando uma incrível incapacidade
em adaptar-se à nova cidade. Na biografia Para sempre teu, Caio F., Paula Dip
revela: “Foi um dos períodos mais difíceis de sua vida, em que aconteceu o
que se chama em literatura a ‘perda da inocência’, seu primeiro embate com a
dura realidade” (DIP, p. 108). O autor assim analisa a experiência:
Lá o mundo começou a doer – dor conscientizada pela
solidão insuportável e o mergulho um pouco desesperado
em Dostoievski, Joyce, Proust, Virginia Woolf, Clarice
Lispector, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Salinger,
Satre, Simone de Beauvoir, Nietzsche, Katherine
Mansfield, Hermann Hesse – dessa mistura toda
nasceram os contos que comecei a publicar no
suplemento do Correio do Povo. (ABREU apud DIP, p.
108)
Algo semelhante se repetiria na mudança de Caio para São Paulo, em
1968, reverberando em seus textos que se tornariam mais densos e urbanos a
partir de então. O ponto de vista adotado nas narrativas em geral passa a ser o
de um homem da cidade, desiludido com a cultura urbana de seu tempo. Existe
também a consciência de que na passagem do campo para a cidade algo se
perdeu, intensificando a sensação de desajuste. Essa passagem associa-se a
outra, a da infância para a fase adulta, como sinaliza Dip. No conto “Pequeno
monstro”, dedicado a Grace Giannoukas e Marcos Breda, amigos gaúchos do
autor que também enfrentaram a mudança para São Paulo, esse sentimento de
transição ganha força no adolescente que a narrativa nos apresenta. Como um
83
pequeno monstro em formação, ele se sabe diferente e inadequado,
escolhendo caminho muito semelhante aos demais personagens de Caio
Fernando, o isolamento. Em certo ponto, ele diz: “E não queria que ninguém
ouvisse minha voz de pato grasnando, visse meus braços compridos demais,
minhas pernas de avestruz, meus pêlos todos errados” (p. 111).
A narrativa evolui no sentido de uma transformação do narradorpersonagem, engendrada pela visita do primo Alex à casa de praia alugada
pela família no verão. Trata-se da descoberta da sexualidade desse
adolescente, morador do Passo da Guanxuma, de natureza sombria e
introspectiva29. Como contraponto, já adulto, morador de Porto Alegre, o primo
surge solar, de pele morena, dentes brancos demais, a voz grave e firme. Esse
personagem conduz o adolescente a um processo de ampliação da visão de
mundo, fazendo-o enxergar para além de uma família que não o compreende,
de uma cidade que o limita, oferecendo, em troca, a liberdade do adulto. Nesse
caso, ao contrário de grande parte dos contos de Caio Fernando, os elementos
ligados à cidade grande e à fase adulta surgem carregados de positividade. Ser
adulto e sair do Passo é, sobretudo, desligar-se das convenções que
apequenam, da tradição que aprisiona e poda antes de conferir vitalidade. Esse
é o único momento de Os dragões em que o espaço do campo surge
claramente associado ao conformismo da tradição, indicando a inevitabilidade
da mudança do personagem. Para esse garoto fã de Elvis, o desconhecido
bairro do Partenon, em Porto Alegre, confunde-se com os mistérios dos lugares
exóticos que servem de cenário para as histórias de aventura que pontuam a
narrativa. “Partenon era quase tão bonito e longe quanto Sumatra, Zanzibar,
Uganda” (p. 124), desvendando uma imagem dialética que aproxima o distante
desconhecido à descoberta mais íntima. O mundo imaginário criado pelas
29
A aproximação desse personagem com Caio Fernando Abreu é inevitável. A pintora Maria
Lídia Magliani, amiga do autor e sua colega no Instituto de Letras da Faculdade de Filosofia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1967, diz em entrevista a Paula Dip: “Ele
morava numa pensão e era muito só, calado, acho que foi a pessoa mais tímida que já
conheci. Tinha uma voz horrível: era um sussurro agudo e desafinado. Não tinha coragem nem
de responder à chamada; João Gilberto Noll é que respondia por ele” (apud DIP, p. 115).
Lembrando o personagem de “Pequeno Monstro” e do protagonista Maurício, do romance
Limite Branco, Jeanne Callegari, em sua biografia sobre o autor, observa: “A voz de Caio, junto
com outras preocupações típicas da adolescência, como a magreza excessiva, pode ter
inspirado alguns contos em que os personagens se sentem feios, inadequados, até
monstruosos” (p. 40).
84
estórias desemboca na percepção do cotidiano, marcando oposição à vida em
família, fechada, pautada em regras que lhe são invasivas, humilhantes.
Ao vislumbrar a mudança para Porto Alegre, depois de sentir tanto
medo, ele confessa que foi “vindo uma coragem boa e uma alegria no coração,
ia ser que nem filme” (p. 124). A previsão do personagem de sua vida na
cidade grande é construída a partir de um discurso eufórico, que o autor
sinaliza na verborragia de uma passagem que dispensa pontos finais, poupa
vírgulas. Quase como um delírio ou mesmo um filme, ele se imagina como
Elvis, ao lado de Alex que estuda para ser médico, “desses modernos que
curam a cabeça dos outros para deixar todo mundo feliz o tempo todo pra
sempre sem nenhuma culpa” (p. 124), como aparentemente curou ele mesmo
de sua monstruosidade. Até que certo ponto, segurando-o pelo braço, o primo
o traz à realidade, lembrando a família que os espera em casa, estabelecendo
assim um corte nesse crescendo de expectativa ilusória.
O autor sabe a dor que essa viagem sem volta reserva ao garoto. Ele, o
narrador, não a imagina, nem seria possível imaginá-la, tão encantado com as
possibilidades que a nova vida oferece. No desfecho do conto, ele abandona
os discos de Elvis para ouvir uma dolorosa Maísa no rádio, ensaiando talvez a
nostalgia e, em certa medida, o pessimismo que envolve essa viagem. O
elemento musical apresenta-se de alguma forma profético em relação ao
futuro, lembrando as palavras de Susan Sontag sobre a produção de Benjamin:
“o trabalho da memória (ler-se ao contrário, ele o definia) faz o tempo
desmoronar” (p. 90). O detalhe denuncia a consciência do autor diante do início
da recordação que se dará no instante em que esse adolescente deixar a
cidade de sua infância. Fundindo sua ficção com lembranças da adolescência,
Caio Fernando trabalha no sentido de um encontro com a imagem da cidade
interiorizada como imagem mnemônica.
A
alegoria
da
viagem
para
Benjamin
marca
esse
passado
irremediavelmente perdido, sempre resgatado através de um texto que prioriza
a espacialização do mundo. “Compreender alguma coisa é compreender sua
topografia, saber como mapeá-la. E saber como se perder” (SONTAG, p. 90).
85
Compreender o passado, ao invés de recuperá-lo, é exatamente o objetivo
desse movimento para trás que o autor investe. A valorização das metáforas
espaciais nesse processo tem origem no elemento saturnino, signo da lentidão
e da falta de senso prático. Localizar-se numa cidade, interpretar seus mapas
trata-se de tarefa complexa para o melancólico. Daí, as imagens sempre
frequentes do labirinto, da densa floresta, associadas ao ambiente urbano,
sugerindo não apenas a dificuldade de orientação, mas também os obstáculos
que o próprio temperamento impõe (Cf. Sontag).
O tempo para o melancólico significa repetição, inadequação, um
maquinário incansável que conduz o passado a empurrar o homem,
expulsando-o do presente em direção ao futuro. O espaço, ao contrário, é
múltiplo, promove a novidade do entrelaçar de ruas, avenidas, viadutos,
autoestradas. Por isso mesmo a memória está tão associada à alegoria da
viagem, revelando, conforme Benjamin, “motivações de quem, em vez de viajar
para longe, viaja para o passado” (apud BOLLE, p. 316). É nesse sentido que
Sontag concebe um tempo que desmorona, liberto da seqüência linear, agora
multifacetado na imagem complexa do mapa de uma cidade. Ela considera que
o pensamento topográfico de Benjamin tem raízes principalmente no barroco
alemão e no surrealismo, sensibilidades com as quais o autor possuía especial
afinidade. A concepção dos dramaturgos alemães sobre a história do mundo
enquanto crônica da desolação os fazia buscar escapar da história,
recuperando a ausência da percepção temporal do paraíso. “A sensibilidade
barroca do século XVII tinha uma concepção ‘panorâmica da história’: ‘a
história se funde com o cenário’” (SONTAG, p. 90). A cidade surrealista, por
sua vez, concebe a realidade como um conjunto de elementos, passíveis de
reordenação e de ressignificação, revelando um empenho de tornar os signos
urbanos decifráveis, como mensagens secretas.
Benjamin recorre à alegoria da viagem para desenvolver o tema do eu
que recorda e do eu recordado. São movimentos em direções opostas, que no
texto tornam-se complementares. O adulto que recorda caminha para trás,
86
rememorando30, no exercício da escrita. A criança recordada caminha para
frente, descobrindo o mundo. “A vida e a poesia da memória se encontram no
meio do caminho” (BOLLE, p. 322). Caio Fernando explora a viagem como
memória no conto “O rapaz mais triste do mundo”, representando esse duplo
movimento já assumido por Benjamin. Em trânsito, os personagens se
encontram em um bar, apresentados por um narrador onisciente que se
confunde com o autor. Em certo ponto ele revela: “eu invento, sou Senhor de
meu invento absurdo e estupidamente real, porque o vou vivendo nas veias
agora, enquanto invento” (p. 58).
O narrador evidencia a todo instante seu poder de construção do texto,
substituindo palavras, desistindo de ações – “depois olha com olhos molhados
pro rapaz e diz assim. Não, ele não diz nada. Ele olha com olhos molhados pro
rapaz” (p. 60) –, expondo as engrenagens da ficção com o intuito também de
tornar o autor elemento participante dessa narrativa. Desconstruindo a
linearidade do tempo, ele reforça que apenas através do fazer literário seria
possível promover esse encontro entre passado, presente e futuro. A volta do
homem de quase quarenta anos a sua cidade de origem aproxima-se à volta
daquele filho que ao visitar sua mãe a descobre tão fragilizada em sua velhice.
Esse movimento revela dois caminhos interpretativos indissociáveis na obra de
Caio Fernando. O primeiro marca que um regresso em busca de um paraíso
perdido não faz sentido. Em “Linda, uma história horrível”, o narrador salienta
repetidamente a transformação da casa, dos objetos, agora sem cor,
danificados pela ação do tempo, além dos próprios personagens – Linda, a
mãe e inclusive ele, que, ao voltar, já não é o mesmo de antes. Diante da
imagem daquela mulher que é sua mãe, ele parece tentar recompô-la em sua
mente, identificando gestos conhecidos num corpo agora tão estranho para
ele31.
30
Importante ressaltar que para Benjamin há diferença entre a recordação e a rememoração.
Conforme Bolle: “O trabalho de ‘recordação’, sustentado pela escrita, é reforçado pela
‘rememoração’, que inclui elementos ritualísticos, culturais e mitológicos. A rememoração
implica a capacidade de ‘reconhecimento’ e de volta ao momento inicial” (p. 322).
31
Inevitável lembrar de A câmara clara, em que Barthes vasculha fotografias de sua mãe,
morta havia pouco, no intuito de apreendê-la em uma imagem. O reencontro se realiza numa
87
Porém, é somente a partir dessa volta, desse reconhecimento de seu
passado, do encontro com sua mãe, que ele consegue realizar o encontro
consigo diante do espelho – e aqui está o segundo caminho interpretativo. É
nesse retorno que o filho encontra a possibilidade de um autoconhecimento
pleno, uma verdade transcendente. Os contos que sucedem esse que introduz
Os dragões, invocando lembranças de uma vida tão luminosa associada ao
passado, revelam na verdade o sentimento crítico de Caio Fernando diante do
progresso vinculado à imagem da metrópole que representa a desumanização,
a burocratização das relações, a ausência de amor, o medo entre as pessoas.
Da mesma forma, o rapaz de menos de vinte anos chega a confundir-se àquele
adolescente preso a sua monstruosidade. Ambos descobrem essa viagem em
direção ao futuro e consequentemente à rememoração como inevitável.
foto dela enquanto menina, que ele não reproduz no livro porque não poderíamos compreender
o valor que assumira pra ele. Morte e memória são os grandes temas desse livro,
principalmente da segunda parte, como observa Italo Calvino no belíssimo ensaio escrito à
ocasião do falecimento do amigo, intitulado “Em memória de Roland Barthes”.
88
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Caio Fernando morou em diversas cidades, no Brasil e na Europa, e
jamais conseguiu estabelecer-se definitivamente em uma delas. Nos anos que
passou no Rio de Janeiro, escolheu para si o bairro de Santa Teresa. Em
cartas, sempre ressaltava o contato com a natureza que a vida distante do
centro proporcionava, conferindo ao bairro carioca uma realidade quase
fantástica, descrevendo-o “meio tropical, meio colonial, meio bávaro. Meio
muito” (p. 52). A distância que assume da cidade por vezes revela-se
incrivelmente revitalizante: “É assim que me sinto: amanhecendo” (idem). Em
carta a Maria Adelaide Amaral, explica sua relação com o Rio: “Aqui em cima
do morro fico em retiro quase absoluto. Quando vou à cidade, volto irritado.
Silêncio, ando obcecado por silêncio” (p. 66). Porém, com as chuvas de
setembro, isolado no alto de Santa Teresa, sem conseguir se comunicar com
ninguém, lembrando que é preciso cantar ou falar sozinho para ouvir a própria
voz, ele confessa ao amigo João Trevisan: “Várias vezes tive impulsos fortes
de voltar imediatamente para Porto Alegre” (p. 70).
A inconstância do autor diz mais sobre a tensão que se estabelece em
sua relação com os elementos de urbanidade, do que exatamente sobre uma
cidade em especial, no caso o Rio de Janeiro. Durante sua existência, Caio
Fernando pareceu procurar nas cidades pelas quais passou lugares que, de
alguma forma, lhe inspirassem afeto, segurança, tentando resistir ou escapar
da rapidez urbana, da sujeira das ruas, da violência da multidão. Porto Alegre,
cidade para qual sempre voltou e que, por fim, elegeu habitar nos últimos
meses de vida, nunca foi objeto de amor de Caio. Sobre ela dizia: “somos
apenas bons amigos” (apud DIP, p. 429). Porém confessava amar o bairro do
Menino Deus, o mais antigo da capital, repleto de casinhas antigas, resistindo à
avalanche da modernização. Era ali que cuidava do jardim de sua casa, dos
girassóis, ao lado do pai, pouco antes de morrer. Sobre sua volta ao bairro
gaúcho após o agravamento de sua doença, Caio analisava:
89
Volto ao Menino Deus como um beduíno que desistisse
de enfrentar o deserto para voltar ao oásis de onde saiu.
Morto de sede, e com a faca da nostalgia do longe
cravada, fundo, no peito. Às vezes dói, mas logo passa.
(apud DIP, p. 430)
O deserto, imagem tantas vezes resgatada por ele em suas narrativas,
nunca foi mais trabalhada em sua associação com outra cidade, do que com
São Paulo. A maior cidade da América do Sul povoa o imaginário do autor,
funcionando sempre como símbolo de sua crítica ao capitalismo. Logo que
chegou a São Paulo, Caio enfrentou uma forte depressão, sempre acusando
em suas cartas e crônicas a pobreza das ruas, a violência das pessoas.
Diferente do que ocorreu em Porto Alegre e Rio de Janeiro, ele não encontrou
um refúgio em São Paulo capaz de abrigá-lo do ritmo urbano. Talvez por isso
sua convivência com esta cidade tenha sido particularmente conflitante. No
entanto, São Paulo, como tentei mostrar ao longo do trabalho, funcionava para
Caio como representação do próprio país, uma imagem fragmentada e
naturalmente caótica da realidade brasileira. Talvez por isso tenha morado
mais tempo em São Paulo do que em qualquer outra cidade. Sobre a
convivência com a capital paulistana ele observa, resgatando novamente a
imagem de um casamento tumultuado, dessa vez dialogando com o estilo
epistolar que se faz presente em toda sua produção:
Sampa é definitivamente um caso de amor mal resolvido,
sabe como? Você já amaldiçoou mil vezes a vez em que
a conheceu, você já deu na cara dela, ela já deu na tua
cara (vezenquando ficam marcas feias, roxuras,
inchaços, cicatrizes), você já bateu forte a porta de casa
jurando vingança e nunca mais voltar. Perfídia, injúria:
abolerados blues. Mas voltou sempre... diz que até o ano
2000 abre uma fenda embaixo de Sampa e engole tudo.
Deus, eu preciso dar um jeito de acabar com este caso.
Devolva minhas cartas e minhas fotografias, diaba.
Apesar de tudo, para sempre teu,
Caio Fernando Abreu. (apud DIP, p. 137)
A cidade da infância de Caio, Santiago do Boqueirão, associada à
natureza e a elementos libertadores, estando sempre em contraposição à
90
metrópole, surge em seus contos a partir da fictícia Passo da Guanxuma.
Santiago, para Caio, é também símbolo do conservadorismo familiar, da
repressão comportamental típica de uma cidade provinciana. Na novela “Pela
noite”, publicada no volume Triângulo das águas, é narrado o encontro de dois
amigos de infância em que os traumas envolvendo a vida no campo se
revelam, principalmente através do discurso de Pérsio, considerado um
personagem autobiográfico (Cf. DIP, p. 102). Ele lembra: “Era medonho, cara.
Era duma solidão horrenda, era dum desespero pânico. Era duma. Duma
agressão, de um desprezo, de uma crueldade. Você não lembra?” (2008, p.
156).
Este personagem se refere a uma reação de desprezo com relação a
sua homossexualidade. Porém a solidão a que ele se refere pode ser também
considerada num sentido mais amplo, que abarca uma maneira de perceber o
mundo que se diferencia dos demais. Voltar já não é possível, como esse
personagem mesmo constata. No entanto, o sentimento de nostalgia em
relação à infância apresenta-se recorrente, sendo utilizada em sua produção
em geral como resistência ao embrutecimento humano na cidade. De certa
forma, quando Caio utiliza a imagem do beduíno que retorna do deserto para
representar sua volta ao Menino Deus, ele evoca a imagem de seus
personagens e da sede que eles sentiram em seus dramas urbanos.
Caio Fernando manteve-se distante não apenas do ritmo urbano durante
sua vida, mas da lógica capitalista que a domina. Quando morreu, os únicos
bens que deixou foram um computador que ganhou de amigos, seus livros,
discos e CDs, um aparelho de som, uma máquina de escrever, que chamava
de Virginia Woolf, e sua coleção de galinhas de porcelana, que ficou para os
sobrinhos (Cf. Dip). A essas galinhas ele dedicou uma novela infantil, intitulada
As frangas. O tema das cidades se apresenta mais uma vez. Associando
campo e cidade, o narrador dessa história diz:
Como quase todo mundo numa cidade grande, moro num
apartamento. Sei, agora você vai me perguntar assim:
mas como é que você consegue ter um galinheiro dentro
91
de um apartamento? Pois não é que tenho mesmo?”
(2001, p. 23).
A memória na produção de Caio surge justamente como possibilidade de
reencontro, como se de repente fosse possível guardar a infância num cômodo
de apartamento, a imagem da rua em que morou para sempre preservada no
hall de entrada do edifício. O itinerário assumido por Caio ao longo de sua vida
revela um mapa complexo, de rumos que parecem conduzir sempre ao
encontro com a sensibilidade.
Ao longo desta pesquisa, em que tentei construir meu próprio itinerário,
revelou-se impossível não me remeter, de alguma forma, a diversas cidades,
como a Turin, de Italo Calvino, a Buenos Aires, de Cortázar, a Roma, de Fellini,
a Tóquio, de Yamamoto, pela ótica de Wim Wenders, além de São Paulo,
logicamente do Rio de Janeiro, lugar de escrita desse trabalho, e
inevitavelmente a cidade de onde vim. O exercício de compará-las foi
inescapável, tentando compreendê-las em suas trajetórias, suas marcas,
assumindo suas contradições, vivendo a experiência dos becos sem saída que
elas me impunham. Nesse sentido, rotas de desenvolvimento desse trabalho
também foram deixadas de lado, como não poderia deixar de ser, atestando
que o caminho tortuoso das cidades também é feito de perdas. Chego aos
momentos finais dessa pesquisa com a certeza da relevância que a produção
de Caio Fernando possui na discussão sempre atual que envolve o espaço
urbano como cerceador da vida. Reitero, contudo, a beleza que envolve a
vigilância do olhar pessimista desse autor que não deixa de considerar possível
entrever em meio a sombras, mesmo que ainda fracos e distantes, vitais focos
luminosos.
92
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102
APÊNDICE – NADA A FALAR, SÓ A MOSTRAR
À EXEMPLO DE SUSAN SONTAG, EM HOMENAGEM A W. B.
Passei horas deliciosas nos bares. O bar é para mim um lugar de meditação e
recolhimento, sem o qual a vida é inconcebível. Hábito antigo que se arraigou
ao longo dos anos (…), passei nos bares longos momentos de devaneio,
raramente conversando com o garçom, na maioria das vezes comigo mesmo,
invadido por cortejos de imagens que não cessavam de me surpreender. Hoje,
velho como o século, não saio mais de casa. Sozinho, nas horas sagradas do
aperitivo, na saleta onde guardo minhas garrafas, gosto de lembrar dos bares
que amei”.
(BUÑEL, Luis. Meu último suspiro)
E eis que começava a nascer a pergunta essencial; será que eu a reconhecia?
Ao sabor dessas fotos, às vezes eu reconhecia uma região de sua face, tal
relação do nariz e da testa, o movimento de seus braços, de suas mãos. Eu
sempre a reconhecia apenas por pedaços, ou seja, não alcançava seu ser e,
portanto, toda ela me escapava. Não era ela e, todavia, não era nenhuma outra
pessoa. Eu a teria reconhecido entre milhares de outras mulheres, e no entanto
não a “reencontrava”. Eu a reconhecia diferencialmente, não essencialmente. A
fotografia me obrigava assim a um trabalho doloroso; voltado para a essência
de sua identidade, eu me debatia em meio a imagens parcialmente verdadeiras
e, portanto, totalmente falsas. Dizer diante de tal foto “é quase ela!” era-me
mais dilacerante que dizer diante de tal outra: “não é de modo algum ela”. O
quase: regime atroz do amor, mas também estatuto decepcionante do sonho –
por isso odeio os sonhos. Pois com freqüência sonho com ela (só sonho com
ela), mas jamais é inteiramente ela: ela às vezes tem, no sonho, alguma coisa
de um pouco deslocado, de excessivo: por exemplo, jovial ou desenvolta – o
que ela jamais era; ou ainda, sei que é ela, mas não vejo seus traços (mas será
que no sonho se vê ou se sabe?): sonho com ela, não a sonho. E diante da
foto, como no sonho, trata-se do mesmo esforço, do mesmo trabalho sisifino:
103
remontar, aplicado, para a essência, descer novamente sem tê-la contemplado,
e recomeçar.
(BARTHES, Roland. A câmara clara)
Quando abrir a porta e assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a
rua; não a norma já aceita, não as casas já conhecidas, não o hotel em frente;
a rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se em cima de mim como
uma magnólia, onde os rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar
mais um pouco, quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e
as unhas contra a pasta do tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto
avanço passo a passo para ir comprar o jornal na esquina.
(CORTAZAR, Julio. História de cronópios e de famas)
Durante anos, meu amor pelas ruínas me levou ao ódio pela arquitetura.
Eu queria ser um anarquiteto de desengenharias.
Ainda hoje, quando vejo um belo caixote de vidro e cimento na avenida
Paulista, ainda me consola pensar:
– Calma, calma, rapaz. Imagine que bela ruína isto vai dar um dia.
(LEMINSKI, Paulo. A nova ruína.)
Somente na fotografia, ao revelar-se o negativo, revela-se algo que
inalcançado por mim, era alcançado pelo instantâneo: ao revelar-se o negativo
também se revela a minha presença de ectoplasma. Fotografia é o retrato de
um côncavo, de uma falta, de uma ausência?
(LISPECTOR, Clarice. Paixão segundo G. H.)
O fluxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema) constitui o nosso
meio circundante, mas, quando se trata de recordar, a fotografia fere mais
fundo. A memória congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada.
Numa era sobrecarregada de informação, a fotografia oferece um modo rápido
de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-lo. A foto é como uma
citação ou uma máxima ou um provérbio. Cada um de nós estoca, na mente,
centenas de fotos, que podem ser recuperadas instantaneamente.
104
(SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros.)
O prazer de cheirar e saborear é “de uma natureza muito mais corporal, mais
física, logo também muito mais aparentado ao prazer sexual do que o prazer
mais sublime suscitado por um som ou ao menos corporal de todos os
prazeres, a visão de algo belo”. É como se o olfato e o paladar dessem um
prazer não-sublimado per se (e uma repulsa irreprimida). Relacionam (e
separam) os indivíduos imediatamente, sem as formas generalizadas e
convencionalizadas de consciência, moralidade, estética. Tal imediatismo é
incompatível com a efetividade da dominação organizada, com uma sociedade
que “tende para isolar pessoas, para distanciá-las e impedir as relações
espontâneas e as expressões ‘naturais’, à semelhança dos animais, dessas
relações”.
(MARCUSE, Herbert. Eros e civilização)
A cidade de Paris ingressou neste século sob a forma que lhe foi dada por
Haussmann. Ele realizou sua transformação da imagem da cidade com os
meios mais modestos que se possa pensar: pás, enxadas, alavancas e coisas
semelhantes. Que grau de destruição já não provocaram esses instrumentos
limitados! E como cresceram, desde então, com as grandes cidades, os meios
de arrasá-las! Que imagens do porvir já não provocam!
(BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo)
Não existe volta para quem escolheu o esquerdo.
(ABREU, Caio. F. Pela noite)
Assim, hoje, passados dez anos, percebo que para um exilado não existe
nenhum lugar onde possa viver; não existe nenhum lugar, porque aquele com o
qual sonhamos, onde descobrimos uma paisagem, lemos nosso primeiro livro,
tivemos a primeira aventura amorosa, continua sendo o lugar sonhado. No
exílio, ele não passa de um fantasma, a sombra de alguém que nunca
consegue alcançar sua complexa realidade. Deixei de existir desde que
cheguei no exílio; a partir de então, comecei a fugir de mim mesmo.
105
(ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça)
Mudar de casa já era
um aprendizado da morte.
(...)
As casas, as cidades,
são apenas lugares por onde
passando
passamos
(GULLAR, Ferreira. Poema sujo)
O que me interessa neste momento é fugir à engrenagem, saber se o inevitável
pode ter uma saída. Mudei de cela. Desta, quando estou deitado, vejo o céu,
apenas o céu. (CAMUS. O estrangeiro)
Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar bem os músculos, andando pelas ruas
cheias de gente, ausentes de homens.
(RUBIÃO, Murilo. O pirotécnico Zacarias)
Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas
nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
Embora não agüente bem ouvir um assovio no escuro, e passos.
(LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela)
Porque as cidades, como as pessoas ocasionais e os apartamentos alugados,
foram feitas para serem abandonadas.
(ABREU, Caio. F. O rapaz mais triste do mundo)
Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de
uma sabedoria e uma amargura impressionantes é lenta e quase não fala. Tem
olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais
nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura
106
tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la
antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa.
(Trecho da carta de Caio Fernando a Hilda Hilst sobre seu primeiro encontro
com Clarice Lispector)
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na
terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não
suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é
escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou
para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase
tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só queria ter o que eu
tivesse sido e não fui.
(LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela)
Prefiro as máquinas que
servem para não funcionar:
quando cheias de formiga e musgo – ela podem um dia milagrar flores.
(BARROS, Manoel de. Livro sobre nada)
– Pensa então, como Paneloux, que a peste tem o seu lado bom, que abre os
olhos, que obriga a pensar?
O médico sacudiu a cabeça com impaciência.
– Como todas as doenças deste mundo. Mas o que é verdade em relação aos
males deste mundo é também verdade em relação à peste. Pode servir para
engrandecer alguns. No entanto, quando se vê a miséria e a dor que ela traz, é
preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste.
(CAMUS, Albert. A peste)
Mas da classe média você não vai escapar, seu. A armadilha é inteiriça,
arapuca blindada, depois que você caiu. Tem anos e anos de aperfeiçoamento,
sofisticação, tecnologia, ah o cartão de crédito, o cheque especial, o
financiamento do telefone, da casa própria e do resto da merdalhada que for
moda e, meu, sem ela você não vive. Não respira, é ninguém. Ou melhor, é
107
nada: você já virou coisa no sistema. E não pessoa. Dane-se! Futrique-se, meu
bom, meu paspalho, pague prestação pelo resto da vida. e o carro, é preciso
carro. Os donos da arapuca querem você comprando. Compre. E de carro.
Ande de carro, ouça musica e veja filmes no carro, coma no carro e trepe ali.
Namore, noive e ame ali, enquanto vê os filmecos nos drives.
(ANTONIO, João. Abraçado ao meu rancor)
Num dado momento, trepado e de pé na cumieira, falando, cabelos revoltos, os
braços levantados para o céu fumacento, esse pobre homem surgiu-me como
a imagem da revolta... Contra quem? Contra os homens? Contra Deus? Não;
contra todos, ou melhor, contra o Irremediável!
(BARRETO, Lima. Diário do hospício)
Você certamente não esqueceu a regra famosa no início de Anna Karenina
quando Tolstoi envolve-se com um manto de divindade campesina tranqüila,
pairando sobre o vazio de tolerância e bondade, e declara das suas alturas que
todas as famílias felizes se parecem, enquanto as famílias infelizes são
infelizes cada uma à sua maneira. Com todo respeito a Tolstoi, eu digo que o
contrario é o correto: os infelizes na maioria estão imersos em sofrimentos
convencionais, vivem numa única rotina estéril entre quatro ou cinco clichês de
miséria gastos. Enquanto a felicidade é um objeto fino e raro, uma espécie de
vaso chinês, e os poucos que chegaram a ele cinzelaram-no traço por traço
durante anos, cada um à sua imagem, cada um segundo as suas medidas,
portanto não há uma felicidade que se pareça com outra. E ao moldar sua
felicidade, instilaram também seus próprios sofrimentos e humilhações. Como
se refinassem ouro. Existe felicidade no mundo, Alec, mesmo que ela voe
como um sonho. Mas no seu caso, ela passou longe. Como uma estrela, fora
do alcance da toupeira.
(Trecho da carta de Ilana para Alex. OZ, Amós. A caixa-preta)
A rua é um espaço vazio que percorro no vácuo. Mas a neutralidade é desejo
vão. Tudo deixa sua marca. As artérias permanecem cheias e pulsantes e o
oco não existe. Se o sangue pára de correr, seca e entope, os vermes
108
alimentam-se, sempre haverá matéria viva a ocupar os corredores estreitos da
cidade.
(Beatriz Bracher. Ficção)
Lançando continuamente novas necessidades, a publicidade contenta-se em
explorar a aspiração comum ao bem-estar e ao novo. Nenhuma utopia,
nenhum projeto de transformação dos espíritos: o homem é aí considerado no
presente, sem visão do futuro.
(Lipovetsky, Gilles. O império do efêmero)
– Indique-me sua direção, onde você se encontra
agora?
– Estou exatamente na esquina da Rua Walk
com a Rua Don’t Walk.
(Waly Salomão, Poema Jet-lagged)
Chora retrato, chora.
vai crescer a tua barba
neste medonho edifício
de onde surge tua infância
como um copo de veneno.
(Carlos Drummond de Andrade, Edifício Esplendor)
109
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JOSÉ HUMBERTO TORRES FILHO Eles têm asas e querem voar