ISSN 2175-8204 I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas: Atualidade da Obra de Jean Piaget Aprendizagem e Conhecimento em Construção Anais Organização Josana Ferreira Bassi de Moura – UNESP Vicente Eduardo Ribeiro Marçal – UNIR Alessandra de Morais Shimizu – UNESP Faculdade de Filosofia e Ciências Universidade Estadual Paulista – UNESP Campus Marília-SP – 2009 – © by Autores Comissão Editorial Ficha Catalográfica Josana Ferreira Bassi de Moura (UNESP – Marília/SP) Vicente E. Ribeiro Marçal – UNIR – Porto Velho-RO Alessandra de Morais Shimizu (UNESP – Marília/SP) Ricardo Pereira Tassinari (UNESP – Marília/SP) Aline Aparecida Gonçalves (UNESP – Marília/SP) Aline Monges dos Santos Soares (UNESP – Marília/SP) Ana Cláudia Saladini (UEL – Londrina) Antônio dos Reis Lopes Mello (UNIMAR – Marília) Dilian Martins de Oliveira (UNESP – Marília/SP) Fabrício Costa de Oliveira (UNESP – Marília/SP) Nelson Pedro da Silva (UNESP – Assis/SP) Orlando Mendes Fogaça Júnior (UEL – Londrina) Rafael dos Reis Ferreira (UNESP – Marília/SP) Sabrina Sacoman Campos (UNESP – Marília/SP) Silvia Nathaly Yassuda Diagramação e Composição Vicente Eduardo Ribeiro Marçal Capa Maria Leila de Marins Orquizas Formato – Digital – PDF Distribuído em CD-ROM Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas (1.: 2009: Marília. SP). C719a Anais do I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas: atualidade da obra de Jean Piaget – 08 a 11 de setembro de 2009, Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP – Campus de Marília / Organização: Josana Ferreira Bassi de Moura, Vicente Eduardo Ribeiro Marçal e Alessandra de Morais Shimizu. – Marília: UNESP/FFC, 2009. 1 Meio Digital: http://www.fundepe.com/coloquiopiaget/brazil/pdf/anais.pdf ISSN 2175-8204 1. Epistemologia Genética. 2. Psicologia Genética. 3. Aprendizagem. 4. Jean Piaget. I. Moura, Josana Ferreira Bassi. II. Marçal, Vicente Eduardo Ribeiro. III. Shimizu, Alessandra de Morais. VI. Título. CDD 121 Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto n.º 1.825 de 20 de dezembro de 1907. Todos os direitos para a língua portuguesa reservados para o autor. Nenhuma parte da publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer meio, seja eletrônico, mecânico, de fotocópia, de gravação, ou outros, sem prévia autorização por escrito dos Autores. O código penal brasileiro determina, no artigo 184: Dos crimes contra a propriedade intelectual: violação do direito autoral – art. 184; Violar direito autoral: pena – detenção de três meses a um ano, ou multa. 1º Se a violação consistir na reprodução por qualquer meio da obra intelectual, no todo ou em parte para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de quem o represente, ou consistir na reprodução de fonograma ou videograma, sem autorização do produtor ou de quem o represente: pena – reclusão de um a quatro anos e multa. Todos os direitos reservados e protegidos por lei. Apresentação É inegável a forte presença e importância da obra de Jean Piaget em Ciências Humanas, principalmente, em áreas da Psicologia, Educação e Filosofia, no Brasil e no exterior. No contexto brasileiro, diversas pesquisas têm sido realizadas tendo como referência o sistema e as descobertas de Jean Piaget e, os resultados dessas pesquisas têm influenciado fortemente nossas vidas em seus diferentes âmbitos: acadêmicos, político-educacionais (e.g., Parâmetros Curriculares Nacionais) e culturais em geral. Muitos grupos de pesquisa nas universidades do país têm tido como eixo de referência as Psicologia e a Epistemologia Genéticas, fundadas por Jean Piaget, e o volume de pesquisas realizadas por esses grupos, bem como a sólida formação que oferecem, evidenciam a maturidade da academia brasileira nessa área. Neste cenário, surge a necessidade de estabelecer um fórum de discussão de pesquisadores brasileiros e estrangeiros que tenha como foco a análise da teoria e das práticas referentes à obra de Jean Piaget, para contribuir no avanço consistente e de qualidade dos conhecimentos nessa área. Em especial, o Grupo de Estudo e Pesquisa de Epistemologia Genética e Educação (GEPEGE), nos seus 20 anos de existência, tem realizado um grande número de pesquisas e contribuído na formação de diversos pesquisadores. Esse grupo conta com pesquisadores que atuam nas mais diferentes áreas de conhecimento e com muitos estudantes de pós-graduação e de graduação. O GEPEGE também mantém contato com diferentes grupos de estudo e pesquisa da UNESP e de outras universidades do Brasil e do exterior. É neste espírito de contribuição à continuidade desse grande e consistente movimento que iniciamos a realização do I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas - Atualidade da Obra de Jean Piaget. Comissão Organizadora I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 4 Objetivos • • • • • • Promover o encontro de pesquisadores brasileiros dedicados ao estudo da obra de Jean Piaget e de questões atuais abordadas pela Psicologia e Epistemologia Genéticas. Promover o encontro de grupos de pesquisa de Psicologia e Epistemologia Genéticas no Brasil. Promover a aproximação de pesquisadores brasileiros com pesquisadores estrangeiros (latinoamericanos, europeus e americanos) sobre questões e pesquisas de Psicologia e Epistemologia Genéticas. Oferecer elementos de discussão e subsídios teóricos aos estudantes de Programas de PósGraduação e de Graduação na elaboração de suas pesquisas. Promover a discussão e divulgação dos trabalhos do Grupo de Estudo e Pesquisa de Epistemologia Genética e Educação – GEPEGE, da UNESP – campus de Marília. Publicar os resultados alcançados no Evento. Local e Data Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP – Campus de Marília/SP Av. Hygino Muzzi Filho, 737 CEP: 17525-900 Marília - SP – Brasil De 8 à 11 de Setembro de 2009. Eixos Temáticos 1. Filosofia e Epistemologia Genética 2. Conhecimento Matemático 3. Conhecimento Social 4. Conhecimento Escolar 5. Aprendizagem 6. Linguagem e Pensamento 7. Moralidade 8. Afetividade 9. Jogos e Brincadeiras 10. Desenvolvimento Infantil e/ou do Adolescente 11. Interação Social e Desenvolvimento Psicológico 12. Formação de Professores Palavras-Chaves Epistemologia Genética; Psicologia Genética; Aprendizagem; Jean Piaget Público Alvo • • Pesquisadores e estudiosos interessados na obra de Jean Piaget. Estudantes de graduação, pós-graduação e profissionais ligados aos cursos de Psicologia, Filosofia, Educação e áreas afins. Atividades Previstas • • • • Conferência de abertura Mesas redondas Relatos de Pesquisa Minicursos I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genética 5 Comissão Organizadora Presidente: Adrián Oscar Dongo Montoya (UNESP – Marília/SP) Vice-Presidente: Alessandra de Morais Shimizu (UNESP – Marília/SP) Secretaria: Vicente Eduardo Ribeiro Marçal (UNIR – Porto Velho/RO) Ivone Emília de Oliveira Fogaça (UNESP – Marília/SP) Tesouraria: Inaiara Bartol Rodrigues (UNESP – Marília/SP) Rosimar Bertolini Poker (UNESP – Marília/SP) Comissão Científica Presidente: Ricardo Pereira Tassinari (UNESP – Marília/SP) Membros: Adrián Oscar Dongo Montoya (UNESP – Marília/SP) Alessandra de Morais Shimizu (UNESP – Marília/SP) Ana Cláudia Saladini (UEL – Londrina) Ângela Pereira Teixeira Victoria Palma (UEL - Londrina) Antônio dos Reis Lopes Mello (UNIMAR – Marília) Carmen Lúcia Dias (UNOESTE - Presidente Prudente/SP) Clélia Maria Ignatus Nogueira (UEM – Maringá/PR) Eliane Giachetto Saravali (UNESP – Marília/SP) Inaiara Bartol Rodrigues (UNESP – Marília/SP) Marcelo Carbone Carneiro (UNESP – Bauru/SP) Maria Suzana De Stefano Menin (UNESP – Presidente Prudente/SP) Maria Thereza Costa Coelho de Souza (USP – São Paulo/SP) Nelson Pedro da Silva (UNESP – Assis/SP) Ricardo Pereira Tassinari (UNESP – Marília/SP) Rita Melissa Lepre (UNESP- Bauru) Rosely Palermo Brenelli (UNICAMP – Campinas/SP) Rosimar Bortolini Poker (UNESP – Marília/SP) Telma Pileggi Vinha (UNICAMP – Campinas/SP) Comissão de Trabalho Presidentes: Carla Luciane Blum Vestena (UNICENTRO – Guarapuava/PR) Josana Ferreira Bassi de Moura (UNESP – Marília/SP) Membros: Ademar Simões Motta Jr. (FACCAT – Tupã) Aline Monges dos Santos Soares (UNESP – Marília/SP) Camila Pinheiro (UNESP – Marília/SP) Carla Andressa Placido Ribeiro (UNESP – Marília/SP) Carla Luciane Blum Vestena (UNESP – Marília/SP) Cristiane Pereira Marquezini (UNESP – Marília/SP) Danubia Ferraz dos Santos (UNESP – Marília/SP) Danuza Dal Bom (UNESP – Marília/SP) Dilian Martins de Oliveira (UNESP – Marília/SP) Elaine Cristina Cabral Tassinari (UNESP – Marília/SP) Elaine Rezende (UNESP – Marília/SP) Fabrício Costa de Oliveira (UNESP – Marília/SP) Fernanda Reis (UNESP – Marília/SP) I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 6 Gerson Alves de Oliveira (UNESP – Marília/SP) Jussara da Silva (UNESP – Marília/SP) Karina Luciana Silva Deolindo (UNESP – Marília/SP) Kelly Cardoso dos Santos (UNESP – Marília/SP) Leonardo Miranda (UNESP – Marília/SP) Leticia Humberto Guinato (UNESP – Marília/SP) Luciana Batista Spiller (UNESP – Marília/SP) Maewa Martina Gomes da Silva e Souza (UNESP – Marília/SP) Marina Carara Americhi (UNESP – Marília/SP) Orlando Mendes Fogaça Júnior (UEL- Londrina) Paulo Eduardo Marciano (UNESP – Marília/SP) Rafael dos Reis Ferreira (UNESP – Marília/SP) Rita de Cássia Vieira Martins (UNESP – Marília/SP) Sabrina Sacoman Campos (UNESP – Marília/SP) Simone de Melo (UNESP – Marília/SP) Talita Deniz Amâncio (UNESP – Marília/SP) Tamires Alves Monteiro (UNESP – Marília/SP) Thais de Biagi Viana (UNESP – Marília/SP) Vanessa Latansio (UNESP – Marília/SP) Comissão de Tradução Taiana de Freitas Vanucci (UNESP – Marília/SP) Promoção FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado São Paulo PROPG – Pró- Reitoria de Pós-Graduação – UNESP PROEX – Pró-Reitoria de Extensão Universitária – UNESP FUNDUNESP – Fundação para o Desenvolvimento da UNESP Fundação VUNESP Apoio Departamento de Psicologia da Educação/ FFC/ UNESP – Marília/SP Pós-Graduação em Educação/ FFC/ UNESP – Marília/SP Pós-Graduação em Filosofia/ FFC/ UNESP – Marília/SP Conselho de Curso de Pedagogia FFC/ UNESP – Marília/SP Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar/ FCL - UNESP – Assis/SP FUNDEPE - Fundação para o Desenvolvimento do Ensino, Pesquisa e Extensão – Marília/SP I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genética 7 Sumário Comunicações Orais por Eixo Temático.......................................................................................................9 1. Filosofia e Epistemologia Genética.......................................................................................................9 2. Conhecimento Matemático.................................................................................................................62 3. Conhecimento Social.........................................................................................................................103 4. Conhecimento Escolar.......................................................................................................................226 5. Aprendizagem...................................................................................................................................242 6. Linguagem e Pensamento..................................................................................................................330 7. Moralidade........................................................................................................................................366 8. Afetividade........................................................................................................................................513 9. Jogos e Brincadeiras..........................................................................................................................525 10. Desenvolvimento Infantil e/ou do Adolescente..............................................................................561 11. Interação Social e Desenvolvimento Psicológico...........................................................................596 12. Formação de Professores.................................................................................................................610 Relatos de Grupos de Pesquisa..................................................................................................................690 I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 8 Comunicações Orais por Eixo Temático 1. Filosofia e Epistemologia Genética A Epistemologia Genética como Referencial Teórico a Investigações Epistemológicas acerca da Relação Informação-Conhecimento CASTIGLIONE, Luiz Henrique G. UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected] Resumo Este trabalho enfoca a modelagem e estruturação epistemológica da informação-conhecimento. Esta relação, como objeto de pesquisa, se contextualizou numa investigação mais ampla, que consubstanciou a tese de doutoramento em Ciência da Informação intitulada Epistemologia da geoinformação: uma análise histórico-crítica. Neste contexto, impôs-se como necessária a busca por quadros conceituais que afluíssem de uma epistemologia científica ampla, capaz de bem modelar não apenas a epistemologia desta ou daquela seara científica, mas que antes se mantivesse referencial mesmo em face de um enfoque interdisciplinar amplo. Nestas circunstâncias, os estudos epistemológicos básicos elegeram a Epistemologia Genética como referência teórica à estruturação de todas as investigações e impuseram como essencial o estabelecimento de uma modelagem epistemológica da relação informação-conhecimento, em face do papel vital que esta relação desempenha na pesquisa acerca da epistemologia das geoinformações. O trabalho aqui apresentado contempla a investigação de aspectos da teorização da Epistemologia Genética que permitem a construção de um modelo referencial para a relação informaçãoconhecimento, bem como apresenta a própria modelagem que resulta desta investigação. As expectativas desta pesquisa dão conta de que o desenho epistemológico da relação informação-conhecimento permitiria uma melhor qualificação da natureza essencial desta relação, tão cara aos estudos epistemológicos em Ciência da Informação. Palavras-chave: Epistemologia Genética. Informação. Conhecimento. Ciência da Informação. Abstract This paper focuses the epistemological model and structures of the relationship between information and knowledge. This relationship, as a research object, is included in a broad research that was done as a core of a doctoral thesis in Information Science, entitled Epistemology of geoinformation: an analysis historical-critical. In this context, it was necessary a search for theoretical frames that came from a broad scientific epistemology, able to model not just a specific epistemology for a specific kind of science field, but large interdisciplinary fields of research. In this circumstances, the basic analysis choice the Genetic Epistemology as a reference to infrastructure all the investigations and impose as essential to establish an epistemological model of the relationship between knowledge and information, in light of the importance that this relationship has to the research in the epistemology of geoinformation. The work showed here keep an eye on the aspects of Genetic Epistemology that make possible to built a referential model for the information-knowledge relationship, as well as show the model of that relationship that emerge from this investigation. The expectative of this research is that the epistemological modeling of the information-knowledge relationship will just make viable a better comprehension of its essential nature, which is very important to the epistemological studies in Information Science. Keywords: Genetic Epistemology. Information. Knowledge. Information Science. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 9 Introdução Este trabalho reporta os esforços de investigação empreendidos no sentido da modelagem e estruturação epistemológica da relação informação-conhecimento. A relação informação-conhecimento como objeto de pesquisa se contextualizou numa investigação mais ampla, que consubstanciou a tese de doutoramento em Ciência da Informação intitulada Epistemologia da geoinformação: uma análise histórico-crítica. Esta tese contemplou uma análise das transformações da geoinformação desde a pré-história até o século XXI, com o objetivo de analisar o sentido epistêmico destas transformações e de ensejar uma melhor compreensão acerca da natureza epistemológica do fenômeno geoinformacional. Neste contexto, impôs-se como necessária a busca por quadros conceituais que afluíssem de uma epistemologia científica ampla, capaz de bem modelar não apenas a epistemologia desta ou daquela seara científica, mas que antes se mantivesse referencial mesmo em face de um enfoque interdisciplinar amplo, capaz de articular perspectivas matemáticas, como as geometrias e a topologia, perspectivas semióticas, como a semiologia gráfica, em cartografia, e ainda perspectivas analíticas amplas, como aquelas que hoje se colocam à base da formação dos chamados SIG – Sistemas de Informações Geográficas. Nestas circunstâncias, os estudos epistemológicos básicos elegeram a Epistemologia Genética como referência teórica à estruturação de todas as investigações e impuseram como essencial o estabelecimento de uma modelagem epistemológica da relação informação-conhecimento, em face do papel vital que esta relação desempenha na pesquisa acerca da epistemologia das geoinformações. O trabalho a seguir apresentado contempla a investigação de aspectos da teorização da Epistemologia Genética que permitem a construção de um modelo referencial para a relação informaçãoconhecimento, bem como apresenta a própria modelagem que resulta desta investigação. Referencial teórico À luz da consideração metafórica de que o uso, a produção e o compartilhamento de informações seria uma espécie de prótese intelectual de que os humanos se servem para alargar suas capacidades representativas e cognitivas, as demandas pela eleição e adoção de uma epistemologia referencial atinham-se à importância de se perscrutar teorias do conhecimento de amplo espectro, que, expostas à crítica, respondessem consistentemente não apenas às questões mais abstratas do conhecer, mas também às questões mais correntes de um conhecer que, ao longo do século XX e mais ainda neste alvorecer de século XXI, não cessa de se transformar e de criar novos contextos de cognição, em tudo desafiadores a todas as teorias epistemológicas já desenvolvidas. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 10 Em termos epistemológicos amplos, ao tratar da constituição dos conhecimentos válidos, JeanLouis Le Moigne (1995) estabelece que as três questões essenciais de uma epistemologia geral são o seu estatuto (o que é o conhecimento – a questão gnosiológica), o seu método (como o conhecimento se constitui – a questão metodológica) e o seu valor (como validar o conhecimento – a questão ética). Neste ponto inicial, parece importante estabelecer algumas premissas que parametrizam a questão que Le Moigne chamou de metodológicas, em epistemologia. Neste sentido, a complexificação da vida e do conhecimento, da forma como o homem se relaciona com o meio, como ele cria próteses para apoio à cognição, sinalizam uma imbricação entre as estruturas do sujeito e do objeto, que dão muito sentido à consideração, como modelo desta relação cognoscitiva, das perspectivas trazidas à luz pelo Construtivismo, que, reconhecendo a importância das estruturas de ambos os pólos, questiona a sobrevalorização de uma ou de outra estrutura. Com efeito, “a restauração por J. Piaget das epistemologias construtivistas, que ele formulava [...] sobre um suporte construído em 1934 por G. Bachelard” (LE MOIGNE, [1999?], p. 72), transcende a limitação ou a inadequação do idealismo e do empirismo à compreensão epistemológica da complexidade, propondo “um quadro de validação sólido e argumentado” (LE MOIGNE, [1999?], p. 72), que privilegia “a interação do sujeito observador e do objeto observado mais do que a sua absoluta separação, considerando o conhecimento mais um projeto construído do que um objeto dado.” (LE MOIGNE, [1999?], p. 72). Com efeito, o referencial teórico da modelagem da relação informação-conhecimento se estabeleceu à luz do Construtivismo e se orientou inicialmente pela síntese de Adrián Oscar Dongo Montoya (2005) acerca do uso do termo representação na obra de Piaget. A esta referência inicial associaram-se diversas outras referências epistemológicas da obra teórica coordenada por Jean Piaget, desde as mais sintéticas de toda a teoria, como Epistemologia Genética (2002) até obras mais específicas como A equilibração das estruturas cognitivas (1976). Objetivos O objetivo desta investigação é elaborar uma modelagem epistemológica consistente para a relação informação-conhecimento, à luz das referências teóricas da Epistemologia Genética. Este trabalho tem a expectativa de poder contribuir para a discussão epistemológica em Ciência da Informação, bem como, de aduzir novos subsídios a uma melhor compreensão, da perspectiva das ricas construções teóricas do Construtivismo, desta que é uma relação tão importante à chamada sociedade do conhecimento. Metodologia Nos termos de uma epistemologia de referência que permitisse uma fundamentada reflexão acerca I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 11 da relação informação-conhecimento, há, na teorização construtivista, diversos aspectos teóricos que parecem profundamente ricos como bases de sustentação ao entendimento desta relação. Se, de partida, se considera que o usuário de uma informação é um integrador de informações através de suas condutas sensório-perceptivas e representativas, as modelagens epistemológicas que resultam da teoria construtivista se consubstanciam numa matriz profundamente rica ao estabelecimento da relação entre conhecimento e informação. O que se investigou, e o que se apresenta no trabalho que se segue, são as consonâncias entre as modelagens epistemológicas da Epistemologia Genética e o processo assimilador/emissor de informações do sujeito, em relação aos seus objetos de conhecimento, de forma a que se pudesse, através da investigação destas consonâncias, melhor qualificar, em termos epistêmicos, a relação que articula a geração/integração de informações ao processo constitutivo do conhecer. Desenvolvimento A modelagem da relação informação-conhecimento à luz da Epistemologia Genética origina-se da observação de que o caráter essencial do pensamento é seu duplo aspecto representativo e operativo. Desta perspectiva, parece razoável considerar que na mente constitui-se uma representação de natureza imagética, figurativa, de forte caráter simbólico, que pode ser essencial à modelagem da relação informação-conhecimento. No entanto, focar a modelagem epistemológica apenas na questão da representação imagética e simbólica não resolve o problema, porque o conhecimento transcende esta representação. Representar simbolicamente é apenas uma das condutas do ato cognitivo, ou, em outras palavras, este representar cognitivamente trataria essencialmente da formação do lócus sobre o qual operam intelectualmente as estruturas superiores da cognição conceitual. Com efeito, a representação mental como um todo se constituiria de dois grandes níveis de representação. Um primeiro nível de representação imagética, figurativa, simbólica e mais um nível, superior ao primeiro, de representação conceitual, que seria o lócus das estruturas lógicas e conceituais essenciais do pensamento. Como observa Piaget, “pode-se distinguir, em todos os níveis do desenvolvimento das funções cognitivas, um aspecto operativo (da motricidade às operações intelectuais) e um aspecto figurativo (percepção, imagem, etc.).” (PIAGET apud BATTRO, 1978, p. 113). A representação simbólico-imagética, constituída a partir da gênese da função simbólica, nasceria “da união de significantes, que permite evocar os objetos ausentes com um jogo de significação que os reúnem aos elementos presentes.” (PIAGET apud BATTRO, 1978, p. 113). Em face da função operativa da cognição e da natural necessidade de que a modelagem desta cognição constitua um lócus operativo, ou seja, um teatro de operações sobre o qual os significantes pudessem ser articulados pela operação cognitiva, a idealização de um nível de representação simbólico-imagética parece estabelecer adequadamente este lócus, onde aconteceria a “conexão específica entre os significantes e os significados [que] constitui o que é próprio de uma função nova, que ultrapassa a atividade sensorial-motora, e que se I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 12 pode chamar de modo muito geral de função simbólica.” (PIAGET apud BATTRO, 1978, p.114). O desenvolvimento permanente deste lócus da representação simbólico-imagética nos sujeitos irá permitir o estabelecimento de uma espécie de centro de funcionamento da inteligência; ou, em outra figura teórica semelhante, num nível de operação de sínteses cognitivas que se constituiria num centro de integração da memória com as informações afluentes. Importante se torna ter presente que, para a Epistemologia Genética, o conhecimento não é estado, mas sim processo. “Conhecer consiste em construir ou reconstruir o objeto do conhecimento de modo a apreender o mecanismo desta construção [...] conhecer é produzir um pensamento, de modo a reconstituir o ‘modo de produção dos fenômenos’.” (PIAGET apud BATTRO, 1978, p.114). A questão que se coloca então é: onde pode o sujeito reconstruir, cognitivamente, o modo de produção dos fenômenos? Neste modo de produção do pensamento, de construção e reconstrução, não seriam necessárias simbolizações e atribuições de significados que permitissem a elaboração de sínteses ou de representações repletas de significantes? Neste nível representacional da cognição, onde o sujeito reconstrói cognitivamente seu objeto de conhecimento, a função simbólica e a representação tornam “possíveis a constituição de outras estruturas figurativas tais como as imagens e as representações imaginadas.” (PIAGET apud BATTRO, 1978, p.131). Este nível representacional simbólico e imagético parece ser o nível da cognição em que as informações afluentes ao sujeito são postas em relação com o seu estado de conhecimento prévio. Isto, contudo, obriga a trazer para esta análise uma questão ainda não devidamente incorporada: a da assimilação das informações em termos da representação simbólica. Como se dá esta assimilação? Tratase de uma assimilação seletiva, cognitivamente ativa, que atribui valor simbólico à informação quando de sua assimilação, ou se trata de uma assimilação acrítica, que traz a informação em termos da representação simbólica para que, apenas neste, haja a sua adequada qualificação? Para uma mais precisa descrição modeladora deste processo de assimilação parece importante ter presente o entendimento de que o pensamento opera símbolos e não signos. Ele opera simbolicamente e não linguisticamente, ou seja, ele opera sobre o simbolismo que constrói a partir das informações que recebe, interpreta e às quais atribui valor simbólico. Ele opera sobre os símbolos que constrói a partir dos signos das informações que assimila. Esta modelagem da assimilação e da sua relação com a formação da representação simbólica resulta do entendimento de que as operações simbólicas e conceituais implicam a elaboração de representações, exatamente para que essas operações tenham um continente sobre o qual operar. Com efeito, a razão provável para a relevância sempre crescente dos processos informacionais, para o homem, desde os primórdios da formação das civilizações, prende-se ao fato de que, para ele, a simples ação e interação no mundo exterior não se faziam suficientes à formação segura da representação I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 13 simbólica que ele precisava constituir mentalmente, para representar e operar as antecipações que lhe permitiriam melhor orientar sua própria existência. As informações passaram então, cada vez mais, a constituir meios artificiais para obtenção de dados significativos à construção do seu horizonte de representação interior. Daí, muito provavelmente, a elaboração dos signos e de todos os meios sociais de compartilhamento simbólico, que são semióticos no sentido mais amplo, e que transcendem em muito a simples língua escrita, como demonstra a farta utilização social de imagens e de figurações, desde a figuração rupestre até a existência de registros cartográficos, mesmo em civilizações bastante primitivas. Se assimilação de elementos exteriores à representação simbólica interior é então um procedimento ativo, inteligente, de qualificação simbólica daquilo que é assimilado, parece importante à tentativa de modelagem que aqui se estabelece tentar descrever as condutas que interligam e constituem o que seriam, então, os três níveis de inteligência ativa do sujeito epistêmico, ou, em outras palavras, as três condutas generalizáveis mais importantes do pensamento: a inteligência perceptiva, a representativa e a conceitual. Estas três condutas não devem ser tratadas de forma independente, a despeito de terem funções relativamente especializadas na equilibração das estruturas cognitivas como um todo (PIAGET, 1976, p. 64). A figura apresentada a seguir ilustra esquematicamente os três níveis de cognição propugnados por esta modelagem do processo cognitivo, servindo de referência permanente à modelagem funcional que aqui se tenta estabelecer. Figura 1 – Três níveis de cognição da inteligência representativa I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 14 Em termos sintéticos e introdutórios, cumpre dizer que a inteligência perceptiva seria responsável pela interação inteligente do sujeito com o mundo exterior, seja na assimilação das informações perceptivas (sensoriais) que recebe continuamente no curso de suas ações, seja na assimilação de informações que são por ele recebidas, qualificadas simbolicamente e levadas à cognição. Trata-se de uma inteligência eminentemente prática, que é pautada tanto pela interação entre sujeito, objeto de conhecimento e informações dos mais variados tipos, durante os processos de assimilação, quanto pela operação dos dois níveis superiores (inteligência simbólico-imagética e inteligência formal-conceitual) sobre a ação do sujeito. Quanto à inteligência representativa simbólico-imagética, esta se constituiria pela construção das representações interiores à mente, de natureza imagética e simbólica, sobre as quais irão atuar as operações conceituais e simbólicas que caracterizam a produção de conhecimentos. Trata-se, portanto, de uma conduta inteligente posta no centro da cognição, formando um verdadeiro teatro de operações, sobre o qual atuam tanto a inteligência perceptiva, através da incorporação de novos elementos à representação, como a inteligência formal-conceitual, através da operação dos esquemas que estruturam a representação. Finalmente, nos mais elevados níveis da cognição, encontram-se representadas as estruturas de conhecimento que operam as inteligências representativa e perceptiva e que são responsáveis pela estruturação lógica e abstrata de todo o pensamento. Com efeito, em se tratando do sistema cognitivo como um todo, poderia se observar que a interação do sujeito com seus objetos de conhecimento dar-se-ia segundo a seguinte conduta genérica e simplificada: o sujeito epistêmico possui uma determinada modelagem de conhecimento sobre algum objeto, que constitui como representação no plano da inteligência simbólico-imagética. Esta modelagem, esquematizada lógica e conceitualmente através das operações da inteligência formal-conceitual superior, elabora esquematizações do objeto de conhecimento, que ela representa e opera ao nível da inteligência simbólico-imagética, preenchendo as representações formais-conceituais puras com o conteúdo imagético e/ou simbólico que caracteriza a inteligência representacional. No âmbito desta operação relativamente equilibrada de uma representação interior suportada por uma estrutura conceitual bem acabada, num determinado momento, e por razões diversas, podem surgir demandas pela assimilação de novos elementos exteriores (informações, por exemplo), a ponto de, após a assimilação dos elementos à inteligência representativa, se produzir um desequilíbrio no esquema representacional. Em cada uma destas três condutas, este processo de desequilíbrio circunstancial ensejaria uma ação do sistema cognitivo na busca de um novo equilíbrio, num movimento de tentativa de reequilibração, que essencialmente parte em busca do restabelecimento da coerência interior da cognição, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 15 em cada conduta. Este processo consistiria na equilibração das estruturas cognitivas. Para tentar estabelecer mais amiúde o papel de cada uma das três condutas cognitivas desta modelagem construtivista que aqui se desenha, parece mais adequado que se inicie pela caracterização da inteligência perceptiva e de sua relação próxima com a inteligência representacional simbólico-imagética, lócus da formação das imagens mentais. Parece haver uma atividade de cognição que opera a percepção e a integração daquilo que é percebido ou assimilado, no nível da inteligência representacional simbólicoimagética. Montoya (2005, p. 39) destaca que “a imagem mental não é o prolongamento da percepção como tal, mas da atividade perceptiva, a qual é uma forma elementar de inteligência.” No conjunto da atuação cognitiva do sujeito, esta atividade ou inteligência perceptiva opera em tempo real na relação do sujeito com o mundo exterior, o que dela retira a característica de atividade reflexiva integralmente endógena, e a obriga a ajustar-se às imposições temporais da relação homemmundo. Apesar disso, a despeito dos ditames da velocidade que a ação do homem no mundo lhe impõe, trata-se de uma atividade que, dinamicamente, na medida do possível, interage com os níveis mais endógenos da inteligência, principalmente com aqueles nos quais ela irá lançar suas assimilações exteriores, que é o nível da inteligência representacional simbólico-imagética. Essa assimilação, que incorpora novidades ao plano representacional possui uma seletividade restrita. Pode considerar rejeitáveis elementos exteriores que pareçam, grosso modo, incompatíveis com as estruturas operatórias que comandam a inteligência representativa, como também podem assimilar perturbações que, em face de sua interação dinâmica com os objetos do mundo exterior, lhe pareçam assimiláveis, ou que contenham uma capacidade potencial de articulação com as representações interiores, que são paradigmáticas às suas ações. Montoya observa que, “os elementos exteriores”, e aqui parece importante destacar que se poderia considerar as informações como elementos exteriores, “selecionados entre todos que será possível considerar, são organizados de um modo tal que obedecem às possibilidades de coordenação operatória do sujeito” (MONTOYA, 2005, p. 108), coordenações estas que, ao momento da assimilação, estarão em atividade no nível da inteligência representacional simbólico-imagética, sob a forma de esquemas, que são elaborados à luz das estruturas conceituais consolidadas, àquele momento, no nível superior da inteligência formal-conceitual. Há, portanto, uma atuação direta da inteligência perceptiva na relação homem-mundo exterior, mas esta atuação, apesar de restrita pelo tempo possível da ação do sujeito, nada tem de independente em relação aos níveis mais endógenos da inteligência, quais sejam o representacional simbólico-imagético, que ela ajuda a construir, e o formal-conceitual, no qual estão as estruturas superiores, que operam a busca permanente pela equilibração mais ampla do sistema cognitivo e pelo fechamento coerente da estruturação cognitiva como um todo. Com efeito, o teatro de operações efetivo da cognição não é o real em seu sentido absoluto, nem I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 16 um espelhamento desta realidade refletida interiormente na inteligência, mas, sim, essas “organizações que constituem os ‘modelos’ a partir dos quais os objetos e os fenômenos do mundo exterior são interpretados” (MONTOYA, 2005, p. 108), situadas e construídas ao nível da inteligência representacional. Vale observar que a ideia, já aqui apresentada, do plano representacional da inteligência como um teatro de operações do sujeito inspira-se nas considerações do próprio Piaget, que, a respeito das relações da percepção com a cognição, resume a ação construtora e diretora do sujeito da seguinte forma: Já sobre o terreno da percepção, o sujeito não é o simples teatro em cujo palco se representam peças independentes dele e previamente reguladas por leis de uma equilibração física automática: ele é o ator e, com frequência mesmo, o autor dessas estruturações que ajusta, na proporção de seu desenrolar, por uma equilibração ativa feita das compensações opostas às perturbações exteriores, portanto, por uma contínua autoregulação (PIAGET, 2003, p. 54). O palco do teatro, o plano representacional simbólico-imagético, seria o lócus da construção do objeto percebido, construção esta que já atribui simbolismo àquilo que é percebido, através de uma inteligência perceptiva ativa, no sentido de selecionar e (re) significar o que lança ao palco (ao plano da representação). Esta atuação do sujeito é essencialmente sincrônica, mas, ao fim e ao cabo, ela é orientada de forma operatória pela ação intelectual da inteligência formal-conceitual, que lança suas estruturas de pensamento anteriores na direção operativa da peça do teatro e, desta forma, cria uma dinâmica de interação entre as dimensões sincrônicas (representação simbólico-imagética) e diacrônicas (representação formal-conceitual), que tanto dirigem e reconfiguram a representação simbólica pela ação operatória, como podem abrir processos reestruturais aditivos na representação formal-conceitual, através da abstração reflexiva, esta sim capaz de introduzir alterações de natureza diacrônica, porque construtivistas ao nível formal-conceitual. As informações, para retomar o foco das preocupações com a relação informação-conhecimento, no sentido amplo, fazem parte do jogo sincrônico, são manipuladas operatoriamente no plano da representação, porque são parte daquilo que é percebido, assimilado, que é trazido para a cena do teatro, sempre que o sujeito-diretor as atribui valor na percepção, porque nelas reconhece, algumas vezes intui uma função potencial na encenação que ele está operacionalizando. Operando no plano da representação simbólico-imagética, o sujeito pode, também, em face da sua ação operatória, feita à luz das estruturas que formam a representação formal-conceitual, identificar motivos para efetuar avanços e retroações na sua busca perceptiva. Esta demanda por avanços e retroações pode se transformar numa busca por informação que o permita encontrar aquelas que podem dar mais sentido lógico e coerência aos esquemas que ele constrói e reconstrói, sincronicamente, no palco do teatro. E afinal, quando estes esquemas se fecham em coerência, eles começam a ganhar forma I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 17 (diacrônica, estrutural, construtiva) e a se liberar, a se abstrair dos conteúdos (sincrônicos, contextuais, variados). Os esquemas amadurecidos, consolidados, se abstraem em formas (mais permanentes) e se elevam do plano da representação simbólico-imagética para o plano da representação formal-conceitual, provocando a abertura das estruturas já existentes para a incorporação de uma nova subestrutura (os esquemas consolidados), num jogo de assimilações e reequilibrações que são a síntese do processo construtivista do pensamento superior. Com efeito, e consoante um esforço de síntese do que foi até aqui apresentado, parece importante relembrar que a modelagem do conhecer que aqui se tenta estabelecer, à luz da Epistemologia Genética, com o objetivo de compreender a relação informação-conhecimento, fundamenta-se nos quatorze pontos expostos a seguir: I – A inteligência representacional comporta três grandes níveis, três grandes lócus de processos cognitivos: a inteligência perceptiva, a inteligência simbólico-imagética e a inteligência formalconceitual. Neste contexto, “a inteligência (adaptação) é, assim, um termo genérico que designa as formas superiores de organização ou de equilíbrio das estruturações cognitivas;” (PIAGET apud BATTRO, 1978, p. 138). II – Em cada um dos três grandes lócus ocorre um ciclo epistêmico que comporta assimilações e acomodações, sendo estas últimas ensejadas pelas desequilibrações, que por sua vez ensejam regulações e reequilibrações majorantes; III – A ação inteligente, assim como a operação cognitiva, contempla uma teleonomia. Os meios da ação inteligente do sujeito em relação ao objeto devem adaptar-se às duas primeiras espécies de equilibração (inteligência perceptiva e representação simbólico-imagética), enquanto que os objetivos novos da ação devem fluir das duas últimas (representação formal-conceitual e representação simbólicoimagética) (PIAGET, 1976, p. 43); IV – Os desequilíbrios cumprem um papel fundamental no desenvolvimento dos conhecimentos, porque “obrigam um sujeito a ultrapassar seu estado atual e a procurar o que quer que seja em direções novas.” (PIAGET, 1976, p. 14); V – Os desequilíbrios externos (dificuldades de aplicações e de atribuições das operações aos objetos) e internos (dificuldades de composição) se constituem em motores do desenvolvimento, uma vez que a equilibração é necessariamente majorante e constitui um processo de ultrapassagem, tanto quanto de estabilização; (PIAGET, 1976, p. 43); I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 18 VI – Como observa Piaget, “a atividade do sujeito é relativa à constituição do objeto, assim como esta implica aquela: é a afirmação de uma interdependência irredutível entre a experiência e a razão.” (PIAGET apud BATTRO, 1978 p. 23); VII – As regulações ilustram como se efetua a equilibração sob suas três formas de equilíbrio, entre o sujeito e os objetos, no nível da inteligência perceptiva, entre os esquemas e os subsistemas de mesmo grau hierárquico, ao nível da inteligência simbólico-imagética, e entre sua diferenciação e integração em totalidades superiores, no nível superior da inteligência formal-conceitual (PIAGET, 1976, p. 34); VIII – Como observa Piaget, “a equilibração cognitiva não marca jamais um ponto de parada, senão a título provisório.” (1976, p. 34). Os equilíbrios circunstanciais são sempre ultrapassados porque “todo conhecimento consiste em levantar novos problemas à medida que resolve os precedentes.” (PIAGET, 1976, p. 34); IX – Esta modelagem se fundamenta no estruturalismo, e que o lócus das estruturas lógicas e conceituais que parametrizam todos os processos e todas as condutas inteligentes, de uma forma mais ou menos direta, é o nível da representação formal-conceitual, superior, que opera sobre os dois níveis inferiores, o das representações simbólico-imagéticas e o da inteligência perceptiva; X – A operação do pensamento se constitui nas transformações reversíveis de esquemas e estruturas, seja por modificação da forma estrutural de ambos, seja pela modificação que incida sobre os conteúdos circunstanciais que aderem às estruturas atemporais, porque “uma atividade estruturante não pode consistir senão em um sistema de transformações.” (PIAGET, 2003, p. 12). E ainda, que “o próprio das operações é constituir sistemas” (PIAGET apud BATTRO, 1978, p. 173); XI – O nível integrador das informações aos esquemas, e, portanto, o nível mais importante à compreensão da relação entre informação e conhecimento, é o nível da representação simbólicoimagética, onde ocorrem os principais processos de assimilação de informação aos esquemas e de integração da informação às estruturas de conhecimento prévias do sujeito; XII – A inteligência perceptiva comporta uma ação inteligente e crítica do sujeito, que não lança ao plano da representação simbólico-imagética tudo aquilo que sensorialmente recebe, mas que antes qualifica e atribui valor simbólico àquilo que assimila e incorpora à cognição dos níveis mais elevados (representações simbólico-imagéticas e formal-conceituais); XIII – A chamada função semiótica (linguagem, jogo simbólico, imagens etc.) é central à I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 19 modelagem que aqui se ensaia, porque é mesmo esta capacidade do sujeito que “permite a evocação de situações não atualmente percebidas, ou seja, a representação ou pensamento” (PIAGET, 2003, p. 58-59), tanto na recepção da informação percebida quanto na elaboração e emissão da informação a disseminar/compartilhar; XIV – As abstrações reflexivas, desde as primeiras etapas da gênese do sujeito epistêmico, consistem em tirar dos esquemas as estruturas conceituais, estas cognitivamente superiores àqueles, que se abstraem e constroem a estruturação lógica e conceitual nos níveis mais elevados da cognição (PIAGET, 2003, p. 58-59). Conclusões A partir desta síntese em quatorze pontos, parece sensato considerar que o lócus da integração das informações assimiladas à cognição do sujeito ocorre ao nível da representação simbólico-imagética, consoante as condutas inteligentes aqui descritas. Primeiramente, age a inteligência perceptiva, que efetivamente comanda a ação do sujeito no uso e na interpretação preliminar e seletiva da informação. É fundamentalmente esta conduta inteligente que interage com a informação e a coloca em confrontação com os esquemas da representação simbólico-imagética. Neste nível, no qual ele representa seus esquemas acerca do objeto do conhecimento, ao assimilar a informação ele passa a operá-la numa tentativa de articulação entre ela e seus esquemas. Estes esquemas contemplam não apenas uma estruturação, estabelecida em consonância com o quadro de referências que se encontra representado no nível superior formal-conceitual, como também comportam conteúdos circunstanciais que revestem estas estruturas/esquemas, como é característico das representações simbólicas e imagéticas. A descrição, a despeito de assim apresentada, ou seja, de forma fragmentada, não deve deixar dúvidas quanto à simultaneidade ou não de certas condutas do pensamento. A descrição precisa se fazer compartimentada, mas as operações, por certo são simultâneas. Enquanto opera sobre o teatro de operações da representação simbólico-imagética, colocando em jogo a equilibração de conhecimentos antes existente com a nova realidade decorrente da incorporação da informação, num processo de regulação em tudo equivalente ao descrito por Piaget, por certo que o sujeito se referencia, com frequência, à matriz estrutural que se encontra ao nível da representação formal-conceitual. Certamente há condutas do pensamento que são muito interiores, muito endógenas, deixando o sujeito imerso em sua atenção aos ciclos epistêmicos interiores (da representação simbólico-imagética e da representação formal-conceitual), assim como há momentos em que, em face de desequilíbrios internos à equilibração simbólico-imagética, o sujeito se volta ao exterior, ao mundo exterior, para, novamente conduzido pela inteligência perceptiva, buscar novas informações ou dados sensíveis capazes de enriquecer seus ciclos epistêmicos interiores. A informação cumpriria, assim, o papel de ser um dos elos de integração I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 20 representacional da inteligência com o mundo exterior. Referências BATTRO, Antonio M. Dicionário terminológico de Jean Piaget. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1978. LE MOIGNE, Jean-Louis. Les Épistémologies Constructivistes. Paris: Presses Universitaires de France, 1995. ______. O Construtivismo, volume 1: Dos fundamentos. Lisboa: Instituto Piaget, [1999?]. MONTOYA, Adrián Oscar Dongo. Piaget: imagem mental e construção do conhecimento. São Paulo: Editora Unesp, 2005. PIAGET, Jean. A equilibração das estruturas cognitivas: problema central do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1976. ______. Epistemologia Genética. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. O Estruturalismo. Rio de Janeiro: Difel, 2003. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 21 Duas Epistemologias em Debate: Piaget e Vygotsky BELLINI, Marta Bellini PAVANELLO, Regina Maria Universidade Estadual de Maringá [email protected] [email protected] Resumo As autoras analisam os postulados epistemológicos de Piaget e Vygotsky. Apresentam a posição epistemológica de Piaget pautada nos três tipos de conhecimento: o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático e o conhecimento social. Estes três tipos de conhecimento são construídos mediante a interação de um quarto fator, a equilibração. Uma dimensão do conhecimento não existe sem a outra, e sua interação produz a dinâmica da inteligência. A posição epistemológica de Vygotsky supõe dois tipos de conhecimento: um derivado do conhecimento físico (que é permitida pelos processos elementares) e, outro, o conhecimento social, ou seja, os conhecimentos gerados pela interação com os adultos. O postulado de Piaget supera o empirismo, uma vez que estabelece uma dinâmica de pensamento regulado pelas abstrações e pelo processo de equilibração. Em Vygotsky a conduta empirista se mantém quando a inteligência fica atrelada às determinações sociais e o sujeito do conhecimento não aparece senão como aquele que interioriza o social. Palavras-chave: Epistemologia empirista. Epistemologia genética. Piaget. Vygotsky. Abstract Piaget’s and Vygotsky’s epistemological foregroundings are provided. Piaget’s epistemological position is based on three types of knowledge: physical, logical and mathematical, and social knowledge, which are constructed through the interaction of a fourth factor, namely, equilibration. One type of knowledge does not exist without the other whilst their interaction produces the dynamics of intelligence. Vygotsky’s epistemological position supposes two types of knowledge, or rather, whereas one is derived from physical knowledge (through elementary processes), the other, or social knowledge, is knowledge produced by the interaction with adults. Piaget’s postulate goes beyond empiricism since it establishes the dynamics of thought governed by abstractions and by the equilibration process. The empiricist behavior in Vygotsky is supported by the intelligence linked to social determinations and the subject of knowledge only appears to interiorize the social factor. Keywords: Empiricist epistemology. Genetic epistemology. Piaget. Vygotsky. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 22 Introdução Neste artigo discutimos as epistemologias que orientaram os estudos de Piaget e Vygotsky procurando discernir suas diferenças. Piaget e Vygotsky elaboraram projetos sobre o desenvolvimento da mente que superassem os postulados empiristas para a explicação da origem do pensamento abstrato predominantes, até então, nas ciências do homem. Consideramos, no entanto, que esses dois pensadores, embora possam ser vistos como próximos do ponto de vista do desenvolvimento de uma teoria da inteligência, apresentam epistemologias que se opõem. Piaget dedicou-se, desde o início dos anos 20 até sua morte em 1980, aos estudos das epistemologias hegemônicas no século XIX ainda presentes no século XX. Os séculos XVIII e XIX presenciaram o debate sobre o desenvolvimento humano, no qual se envolveram Lamarck, Kant, Darwin, Hegel, Marx, Spencer e Comte. Piaget, fundamentando-se em sua trajetória investigativa no universo das questões epistemológicas propostas por estes autores, conduziu por mais de 50 anos seu projeto de pesquisa elaborando, nesse trajeto, uma epistemologia que superasse os postulados empiristas. Vygotsky, por outro lado, preocupou-se em estudar o desenvolvimento humano com vistas a ultrapassar os métodos descritivos e/ou fenomenológicos empregados pela psicologia russa das décadas de 20/30 do século XX. Nesse seu estudo centrou-se na investigação das ações conscientemente controladas (a atenção voluntária, a memorização e o pensamento abstrato) vinculadas à psicologia e à cultura. As mesmas preocupações não levaram, todavia, Piaget e Vygotsky a trilhar o mesmo caminho. Piaget desenvolveu uma epistemologia construtivista, sobretudo quando pesquisou as abstrações pseudoempíricas e a reflexionante como derivadas da abstração empírica. Esses processos construiriam o sujeito epistêmico; um sujeito que representa a todos os outros sujeitos, mas a nenhum de nós, especificamente. Vygotsky, centrado na questão de como os processos naturais se entrelaçam aos processos culturalmente determinados, elaborou o sujeito social que representa todos os sujeitos determinados historicamente. Este modo de pensar a cognição do sujeito manteve Vygotsky, a despeito de seu belo trabalho com crianças, jovens e adultos analfabetos, preso a uma concepção empirista, a mesma que ele criticava. Ou seja, o sujeito de Vygotsky é produto de determinações sociais, mas ele as interioriza de fora para dentro. As funções psicológicas superiores advêm da interiorização da cultura e da sociedade. São criadas do entrelaçamento biológico com a transmissão social. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 23 A epistemologia de Piaget: as quatro dimensões do desenvolvimento da inteligência Tratar da posição epistemológica de Piaget requer levantar o debate central de suas obras em torno dos três tipos de conhecimento: o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático e o conhecimento social. O conhecimento físico é o construído pela interação da criança com as propriedades físicas dos objetos e dos eventos. Desde o sensório-motor as crianças extraem dos objetos com os quais interagem aspectos como forma, textura, tamanho e aspectos gerais como mobilidade, por exemplo. Pela ação podem conhecer a mecânica dos objetos e pela observação as mudanças dos objetos (pensando no açúcar “desaparecendo na água”). O que Piaget chama de conhecimento lógico-matemático é a ação mental da criança de classificar as ações que realiza. Por exemplo: crianças de 7 a 10 anos, fazendo experiência com flutuação de corpos na água, observam que um pedaço de sabão pequeno não afunda e um grande afunda. Elas concluem que objetos pequenos não afundam, os grandes afundam. Ao estabelecerem esta “divisão”, estão realizando o que chamamos de inclusão de classes: um ato de pensar que é lógico-matemático. O conhecimento lógico-matemático é, então, aquele construído a partir do pensamento sobre experiências com os objetos e os eventos. Para essa construção o sujeito não ter diante de si o objeto, o sujeito, agora, estabelece relações lógicas e tece relações de relações. Ele representa o objeto e dessa forma, diríamos que ele “inventa” conhecimentos cuja base é lógica. Faz inferências lógicas considerando suas ações. Quanto ao conhecimento social, este não é extraído diretamente das relações sobre os objetos, mas de ações – interações – com outras pessoas e grupos sociais. Piaget enfatiza a transmissão social, a qual se constitui por meio da linguagem. Dessa forma, a aquisição social não pode ser vista apenas como advinda de uma transmissão cultural, como uma copia, porque ela sempre envolve uma atividade de representação social que envolve a atividade cognitiva. Estes três tipos de conhecimento são construídos graças à interação de um quarto fator, a equilibração, que permite que a construção de um sistema auto-regulado. Uma dimensão do conhecimento não existe sem a outra, e sua interação produz a dinâmica da inteligência, o próprio ato da cognição. Assim, temos intervindo na cognição os fatores: • A maturação – quando falamos em maturação isto significa falar em sistemas fechados e fechados. Os sistemas fechados são os ligados à hereditariedade; os abertos, os sistemas que construímos I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 24 durante nossa vida. A maturação é condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento cognitivo. Precisamos trazer, então, mais uma dimensão necessária ao desenvolvimento da inteligência, a experiência ativa. • A Experiência Ativa – as ações sobre os objetos, as ações mentais e as ações sociais são experiências que permitem ao sujeito que conhece a construção do conhecimento físico e permitem a construção das noções de peso, volume, comprimento, área e outras. Se esta experiência possibilita a construção do conhecimento lógico-matemático, ela é também uma condição necessária, mas não é suficiente para o desenvolvimento da inteligência. Assim, Piaget fala em um terceiro fator, a interação social. • A interação social é a transmissão linguística que advém do intercâmbio de ideias entre as pessoas. É importante lembrar não se tratar aqui de transmissão em seu sentido empirista, mas de uma dimensão cultural, uma vez que a linguagem é também, como os outros objetos, construída. Como se trata de objeto socialmente construído, outras implicações desse processo estão sendo, hoje, estudadas, sobretudo do ponto de vista das Representações Sociais (DUVEEN, 1995). Estes três fatores, no entanto, ainda que necessários, não são suficientes ao desenvolvimento da inteligência. Há um quarto fator a considerar: a equilibração. Esta rege a coordenação entre os três fatores: maturação, experiência física (lógico-matemática) e a transmissão social. Sem o conceito de equilibração a epistemologia genética não traria novidade alguma para as discussões sobre o desenvolvimento da inteligência humana. A equilibração não é um mecanismo linear. Falar em equilibração é falar em abstração reflexionante, que se constitui nas coordenações de ações ou operações do sujeito. Pensamos em um sistema de transformações e, ao pensar este sistema, estamos pensando nas operações ou ações do sujeito. Este processo não linear é o processo de assimilação-acomodação, as regulações que permitem o enriquecimento das estruturas, a admissão de novas possibilidades, a capacidade de fazer inferências (previsão sem necessidade de constatação). Importante ressaltar aqui que a abstração reflexionante não se dá apenas no período das operações formais, ela ocorre desde o período sensório-motor. Em um escrito póstumo (L S., 1987), Piaget dá um exemplo de abstração reflexionante no nível sensório-motor. O lactente constrói o esquema de conteúdo a continente (que lhe permite brincar de inserir um pequeno cubo em um maior) por abstração reflexionante a partir do esquema “colocar na boca”. O autor pôde, com efeito, observar um lactente que, antes de colocar um pequeno cubo em um grande, colocou o pequeno em sua boca (MONTANGERO; NAVILLE, 1998, p. 92). O conceito de abstração reflexionante é um dos mais originais de Piaget. O conceito de abstração foi estabelecido por Aristóteles e significava abstração empírica. Para Piaget este conceito significa abstrair a partir dos objetos, mas o sujeito não para ai, a atividade operatória do sujeito lhe permite atingir I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 25 um grau mais rico de abstração o que sustenta a formação de novos conhecimentos. Este modelo de equilibração refere-se ao jogo de contradições nas atividades cognitivas do sujeito. Por exemplo, aos cinco anos uma criança acredita que na transposição de quantidade de líquido de um copo estreito para outro mais largo, resulte menos líquido. Um ano depois ela avalia, na mesma situação, que há mais liquido no mais largo, porque o copo é mais gordo. Mais tarde ainda, ela coordena os dois aspectos: embora o copo possa ser mais estreito ou mais largo a quantidade de liquido se mantém. Ela está reorganizando suas inferências ou lógica elementar, reorganização esta que podemos descrever como processo de equilibração ou de abstração reflexionante. Desta forma, o conhecimento não é uma cópia do real. Para conhecer um objeto ou um evento não basta olhá-lo e elaborar uma cópia mental ou uma imagem. Para conhecer um objeto é preciso agir sobre ele. Conhecer é modificar o objeto, é compreender o processo de sua transformação e, em conseqüência, compreender o caminho pelo qual o objeto é construído. A operação é, então, a essência do conhecimento, é a ação interiorizada que modifica o objeto de conhecimento. Operação é ato de pensar; é o conjunto de ações mentais modificando o objeto. É uma ação que constrói estruturas lógicas. E a operação nunca é isolada, ela está sempre ligada a outras operações. Os conhecimentos são produzidos por desequilíbrio na interação. O apreendido é o conhecimento reestruturado. É um processo de construção e reconstrução contínua, no qual não há ponto de partida e não há ponto de chegada final. A generalização pode ser indutiva em um primeiro nível e, também, construída por outras novas formas de raciocinar, formas de inferir, formas de pensamento lógico. A generalização produz novas formas para atuar sobre os conteúdos de conhecimento: noções, conceitos, relações e tudo por abstrações reflexivas e por equilibrações sucessivas. Em consequência, o sujeito amplia seu poder dedutivo. Isso nos leva a falar das estruturas cognitivas ou sistemas de transformações – que comportam leis como sistema e conservam-se ou enriquecem-se pelo próprio jogo de suas transformações, sem que estas ultrapassem suas fronteiras ou façam apelo a elementos exteriores. Aqui, Piaget, mais uma vez, refina a definição do conceito de estrutura: Estruturas pressupõem um conjunto de elementos que tenham sempre as características: totalidade, transformação e auto-regulação. Totalidade ou estabilidade porque a relação entre os elementos (eventos no qual a criança age) nunca resulta em outro elemento estranho ao conjunto. Transformação, porque os elementos estão sempre relacionando dinamicamente entre si. Auto-regulação, porque uma estrutura nunca pode ser regulada por outra. Um exemplo: podemos pensar em quando uma criança soma números naturais ou faz outra operação e é capaz de chegar a uma outra operação mais complexa com números naturais. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 26 É o que ocorre com a criança quando, por exemplo, é confrontada com o novo “objeto” vaca. Ela tem conhecimento das semelhanças com outros animais, porém há um novo evento – pode ser o som do animal, pode ser qualquer outra experiência ou ação. Então: ela pode modificar seu antigo esquema de conhecimento e acomodar este novo evento aos velhos esquemas cognitivos. Neste caso, ela transforma sua estrutura e acomoda um dado novo. A acomodação explica o desenvolvimento – mudança qualitativa – e a assimilação explica o crescimento – mudança quantitativa; juntos estes dois processos explicam o que Piaget chamou de adaptação intelectual. Assimilação e acomodação são pólos da adaptação cognitiva. Um pode ocorrer sem o outro deixando lacunas na construção da cognição. Uma pessoa que só assimilou estímulos e nunca fez acomodações acabaria com poucos esquemas (pouco enriquecimento da estrutura) e incapaz de detectar diferenças nas coisas. Veria somente o similar. Por outro lado, se uma pessoa somente fizesse acomodações e nunca assimilasse, faria um grande número de esquemas, mas pouco ricos para poder realizar o ato cognitivo de generalizar. Essa pessoa seria incapaz de detectar semelhanças; a maioria das coisas seria vista como diferente. Este processo é o ato cognitivo, ou seja, uma atividade de organização e adaptação ao meio. As interações – assimilação e acomodação – são partes constituintes da adaptação. Temos aqui a construção de esquemas - subsistemas ou sistemas de transformações - que enriquecem as estruturas. Estrutura é um conceito que, conforme Piaget, “não se define ... pelo que a criança pensa, mas pelo que ela sabe fazer”. Isto não significa que Piaget seja um positivista. Para Piaget as ações que a criança faz indicam as possibilidades de coordenar as ideias entre si. Vale apontar aqui que certa crítica a Piaget intitulando-o de positivista origina-se na confusão que muitos fazem entre empirismo e experimentação. De fato, para precisar o termo desenvolvimento em sua teoria, Piaget recorreu a uma exaustiva experimentação, mas tendo em foco seu plano teórico: o da construção de conhecimento tomando a noção de auto-regulação e sistemas de transformações como base. O trabalho A equilibração das estruturas cognitivas ilustra bem o modelo piagetiano para pensarmos a construção do conhecimento. Nele, vemos a precisão do termo interação em sua teoria: não se trata de falar de interação, mas de estabelecer um modelo explicativo para os níveis de interação que ele denomina de equilibração cognitiva. Nesse caminho, Piaget “desenha” sua teoria de sistema auto-regulatório na qual a interação do Sujeito com o Objeto pode ser traduzida como uma relação dialética em que o sujeito passa de um nível de conhecimento (temos aqui que pensar nas diferentes abstrações e nas equilibrações) para outro, mais complexo. Nessa espiral o conhecimento anterior não é superado ou substituído, mas enriquecido, diferenciando-se e integrando-se em um sistema mais complexo de coordenações. Por isso, Piaget fala de equilibração cognitiva e não simplesmente equilíbrio o que denotaria algo linear. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 27 Pensando sobre o ato de conhecer, Piaget argumenta que tanto a realidade quanto as estruturas cognitivas do sujeito são transformadas constantemente em um autêntico “movimento do conhecimento”, um sistema de mudanças contínuas de controles e equilíbrios entre quem conhece e a realidade a ser conhecida. O que requer a criatividade do sujeito na invenção de novos meios de coordenação entre ele e a realidade. O percurso de Vygotsky e a definição de uma epistemologia empirista de conhecimento Luria (1988) contextualiza o surgimento da obra de Vygotsky como produto de um tempo em que os intelectuais russos questionavam o empirismo, o idealismo, a introspecção na psicologia. Esses intelectuais também eram produtos de um espaço em que a política, a educação e a psicologia eram repensadas. Estavam no início da Revolução Russa e novos projetos eram elaborados para acompanhar a mudança econômica, política e cultural da época. Quando Vygotsky conheceu Luria e Leontiev, no II Congresso de Neurologia, em 1924, era professor na Escola de Formação de Professores em Gomel (Minsk) e estudava crianças com defeitos congênitos. Entre 1924 e 1926 o projeto de Vygotsky guiava-se pelas formulações: Quais eram os mecanismos psicológicos elementares que podiam ser estudados em laboratório? Como se davam as ações conscientemente controladas, como a atenção voluntária, a memorização ativa e o pensamento abstrato? Para Vygotsky essas ações eram estudadas apenas pelos psicólogos mediante métodos descritivos ou fenomenológicos e, desse modo, pesquisava-se a mente desvinculada da cultura (LURIA, 1988.). Em 1925 Vygotsky iniciou seu percurso em direção ao projeto sobre a construção social da mente. Estudou Pavlov, sobretudo a psicofisiologia, para obter daí um apoio materialista nas discussões sobre a origem da mente. Para compreender a evolução biológica dos homens estudou V. A. Wagner, especialista russo em comportamento animal. Para além dos estudos biológicos, Vygotsky pesquisou Kurt Levin, Bulher e Köhler, por considerar que o reflexo pavloviano insuficiente para a compreensão das realidades estruturais do comportamento complexo. Leu, também, a obra de Piaget, A linguagem e o pensamento da criança, da qual retirou o método clínico para estudar o processo cognitivo individual com o objetivo de descobrir as diferenças qualitativas das crianças em diferentes idades. Além dessas fontes, estudou Marx, marco de seu conceito chave de que a consciência é produto da transformação dos processos elementares aos processos complexos dentro das determinações culturais (LURIA, 1988). Seu projeto era constituído de duas dimensões a serem pesquisadas, a biológica e a social. Como essas dimensões se entrelaçam? Como os processos de maturação física, os mecanismos sensórios elementares (os processos naturais) interagem com os socialmente determinados e produzem as funções I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 28 psicológicas dos adultos? (LURIA, 1988). Do ponto de vista metodológico, Vygotsky reuniu três fontes para sua pesquisa: a instrumental, com a qual estudou os comportamentos culturais como, por exemplo, “amarrar um barbante no dedo para não esquecer algo”; a cultural, pela qual investigou os meios socialmente estruturados que permitiam à criança se organizar em sociedade como a linguagem e o pensamento. A terceira fonte é a dimensão histórica. Nesta ocorre a fusão do indivíduo com o cultural. Aí o papel da linguagem torna-se vital, pois ela carrega conceitos culturais que, por exemplo, ajudam a escrita e a aritmética (LURIA, 1988). Como se desenvolve a criança, então? No início as crianças são dominadas pelos processos naturais, isto é, a maturação física dos sistemas sensórios motores. A interação com os adultos faz nascerem os processos interpsíquicos: os adultos são agentes externos e, conforme as crianças crescem, os processos partilhados com esses adultos passam a ser executados dentro das próprias crianças. As respostas mediadoras da criança em relação ao mundo externo transformam-se em um processo interpsíquico que as leva à interiorização das informações historicamente organizadas. Esta organização é de natureza psicológica (LURIA, 1988). A epistemologia que sustenta essa tese supõe dois tipos de conhecimento: um derivado do conhecimento físico (que é permitida pelos processos elementares) e, outro, o conhecimento social, ou seja, os conhecimentos gerados pela interação com os adultos. O sujeito é o sujeito passivo que mediante suas experiências sensório-motoras adquire as capacidades para ler, escrever e interagir com os adultos de uma sociedade historicamente determinada. A partilha das crianças com os adultos é, mais uma, vez passiva. Destas, as crianças recebem e operam um conhecimento já pronto, sem lançar mão de equilibrações e abstrações sucessivas. Considerações finais Os postulados epistemológicos de Piaget e Vygotsky têm fundamentos diferentes. A hipótese piagetina para o desenvolvimento cognitivo centra-se na ideia de interação como processos de equilibração e a equilibração majorante, indicando sua distância do empirismo e do apriorismo. Vygotsky, ao contrário de Piaget, aproxima-se do empirismo, uma vez que seu modelo de desenvolvimento da inteligência não ultrapassa dois fatores: a dimensão da maturação e da transmissão social. Sua ênfase na transmissão social indica que seu modelo de desenvolvimento cognitivo foi estabelecido nos limites do postulado empirista uma vez que o espírito humano se submete ao real. É a acomodação do sujeito ao objeto. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 29 Referências CARVALHO, José Sérgio Fonseca de. Construtivismo e racionalidade científica: as contribuições de Piaget para a filosofia da ciência. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1994. DUVEEN, Gerard. Crianças como atores sociais: as representações sociais em desenvolvimento. IN: GUARESCHI, Pedrinho; JOVCHEVITCH (Org.). Textos em Representações Sociais. Petrópolis: Vozes, 1995. LURIA, A. R. Vygotsky. IN: LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/Editora da Universidade de São Paulo, 1988. MONTANGERO, J. ; NAVILLE, D. M. Piaget ou a Inteligência em evolução. Porto Alegre: ArtMed, 1998. MACEDO, Lino de. Ensaios construtivistas. São Paulo: casa do Psicólogo, 1994. PIAGET, Jean. Biologia e conhecimento. São Paulo: Vozes, 1973. PIAGET, Jean. Piaget pour Piaget. Vídeo produzido em Genebra/ Suiça, 1977. PIAGET, Jean. Estudos sociológicos. Rio de Janeiro: Forense, 1973. PIAGET, Jean. A equilibração da estruturas cognitivas. Rio de janeiro: Zahar, 1976. WADSWORTH, Barry J. Inteligência e afetividade da criança na teoria de Jean Piaget. São Paulo: Pioneira, 1989. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 30 O Tempo como Noção A PRIORI: Contribuições da Epistemologia Genética à Teoria do Conhecimento ROCHA, Caio Universidade do Estado do Amazonas. [email protected] Resumo Nesta comunicação pretendemos analisar as contribuições oriundas da Epistemologia Genética para a Teoria do Conhecimento. Para tanto, partiremos de um estudo do tempo como uma intuição a priori no texto kantiano e da proposta teórica da Epistemologia Genética que o considera como uma construção realizada nos primeiros dez a doze anos de vida do ser humano. Preocuparemos-nos em pensar sobre as condições de possibilidade presentes no aparato cognitivo humano que possibilitam a elaboração de um campo temporal e, principalmente, na discussão do tempo como uma noção a priori na Epistemologia Genética. Adiantamos que tanto para Kant quanto para Piaget o tempo é um elemento fundamental para a elaboração da realidade como o ser humano a conhece. No entanto, o primeiro considera o tempo como uma forma a priori da sensibilidade humana, já dada no aparato cognitivo humano; enquanto o segundo busca compreender as maneiras de estruturação desta noção. Enquanto a filosofia crítica kantiana não discute as possíveis maneiras de elaboração desta noção, entendendo o tempo como dado, fruto do funcionamento interno da mente humana, a Epistemologia Genética encontra uma historicidade na construção dessa noção, ou seja, a forma como o ser humano organiza o tempo passa por sucessivas mudanças no decorrer do desenvolvimento cognitivo. Palavras-chave: Epistemologia Genética. Filosofia crítica. Noção de tempo. Abstract The currently study aimed to analyze the deriving contributions of the Genetic Epistemology for the knowledge theory. For in such a way, we will leave from a study of the time as a intuition a priori on the kantian text and the Genetic Epistemology proposal which considery as a construction from the first ten to twelve years old of human been. We will focus on think about the conditions of possibilities presents on the human cognition that allows the development of a time field and mainly, in the discussion of time as an a priori notion on the genetic epistemology. Advanced as that for both Kant and Piaget time is a key to the development of reality as human beings to know. However, the first considered time as a priori way of human sensitivity, already given in the human cognition, while the second search for understand the ways of structuring this notion. While the kantian critical philosophy does not discuss the possible ways of developing this concept, considering the time given as the result of the internal workings of the human mind, the genetic epistemology finds a historical building on this concept, that is, the way how humans organize time and passes for successives changes in the course of cognitive development. Keywords: Genetic Epistemology. Time notion. Kantian philosophy. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 31 Introdução No presente trabalho temos como objetivo analisar e compreender alguns problemas levantados pela Teoria do Conhecimento sobre a forma como um sujeito epistêmico universal organiza seu campo temporal. Nos preocuparemos em pensar sobre as condições de possibilidade presentes no aparato cognitivo humano que possibilitam a elaboração de um campo temporal e, principalmente, na discussão do tempo como uma noção a priori na Epistemologia Genética. Como Immanuel Kant é o primeiro filósofo a considerar e analisar de forma sistemática o tempo como forma a priori da sensibilidade humana, e dada sua influência sobre Jean Piaget (cf. RAMOZZICHIAROTTINO, 1972, pg. 75.) empreendemos também uma análise do tempo como forma a priori em Kant e sua relação com a análise da Epistemologia Genética, buscando evidenciar contribuições desta última à Teoria do Conhecimento. Três questões se colocam então: o sujeito apreende o tempo por percepção direta ou o tempo é uma estrutura presente no sujeito epistêmico que ordena os elementos percebidos por ele? Neste último caso, o tempo teria uma gênese ou se encontraria já dado no sujeito desde seu início? Após o estudo dos dois autores pretendemos fazer uma comparação visando destacar os momentos em que a Teoria do Conhecimento elaborada por Kant e a Epistemologia Genética, no que concerne ao tempo como uma noção a priori, se aproximam e se distanciam. Para compreendermos as possíveis relações entre a concepção de tempo elaborada por Kant e a desenvolvida por Piaget, faremos primeiro uma apresentação da concepção kantiana do a priori e posteriormente mostraremos suas possíveis vinculações com a Epistemologia Genética. Nossa proposta de mostrar as possíveis relações entre a Teoria do Conhecimento piagetiana (no que concerne a construção do tempo como uma forma a priori) e a forma como a filosofia crítica kantiana entende a relação entre o ser humano e o tempo não deve ser entendida no sentido de enxergamos uma continuação da filosofia kantiana em Piaget, mas apenas que, nos problemas relativos ao tempo, Piaget foi buscar as origens do que Kant entendeu como um princípio a priori. Referencial teórico O referencial teórico utilizado para a elaboração da presente pesquisa se pauta pelos trabalhos elaborados por Immanuel Kant e por Jean Piaget. É importante ressaltar que não temos a pretensão de analisar a filosofia crítica kantiana em seu todo, tampouco será nosso objeto de estudo a totalidade dos conceitos elaborados pela Epistemologia Genética. Nos preocuparemos, essencialmente, com a primeira parte do texto “A Crítica da Razão Pura”, no qual Kant analisa o espaço e o tempo com os quais o ser humano estrutura a sua realidade e com o texto “A Noção de Tempo na Criança” onde Piaget estuda as maneiras pelas quais as crianças, paulatinamente, constroem a noção de tempo. Nos socorreremos I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 32 também de Alexandre Fradique Morujão, Leonel Ribeiro dos Santos e Antonio Marques comentadores dos texto kantiano e de Zélia Ramozzi-chiarottino, comentadora do trabalho realizado por Piaget. Objetivos O objetivo central do presente trabalho é mostrar os momentos nos quais a concepção de tempo elaborada por Kant e a noção de tempo construída pela Epistemologia Genética convergem e divergem. Temos como objetivos secundários a análise sistemática da “Estética Transcendental”, primeira parte da “Crítica da Razão Pura” e do texto “A Noção de Tempo na Criança”. O estudo destes dois textos nos leva a outro objetivo secundário, qual seja, a compreensão do método utilizado por Piaget para analisar a estruturação da noção de tempo levada a cabo pelo ser humano. Posteriormente visamos encontrar algumas contribuições da Epistemologia Genética à Teoria do Conhecimento. Metodologia de trabalho Como método de trabalho nos pautamos pela leitura sistemática dos textos supracitados, estudando-os primeiro em separado, para posteriormente analisá-los em conjunto. A leitura dos comentadores, visando uma melhor compreensão tanto do texto piagetiano quanto do texto kantiano e a elaboração de apresentações orais e textos escritos também foram maneiras às quais recorremos quando do desenvolvimento da presente pesquisa. Desenvolvimento A noção de tempo em Kant Reconhecemos a profundidade e dificuldade da obra kantiana e salientamos que iremos nos debruçar, no presente estudo, apenas sobre suas reflexões elaboradas a respeito do tempo como uma noção a priori da sensibilidade humana. Começaremos nosso estudo da noção de tempo na filosofia kantiana a partir da distinção elaborada por Kant entre conhecimento empírico ou a posteriori e conhecimento puro ou a priori. Nas palavras de Deleuze, com as quais faz uma paráfrase do próprio texto kantiano, fica claro que “Os critérios do a priori são o necessário e o universal. O a priori define-se como independente da experiência, mais precisamente porque a experiência jamais nos dá algo que seja universal e necessário.”1 Esses critérios deixam claro o tipo de conhecimento designado por Kant como a priori, ou seja, aqueles que não recorrem a nenhuma influência da experiência para serem constituídos e que podem desenvolver-se sem o auxilio da empiria, como “A matemática [que] oferece-nos um exemplo brilhante 1 DELEUZE, G., 1976, p. 25 (grifo do autor). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 33 de quanto se pode ir longe no conhecimento a priori, independente da experiência”2. Os conhecimentos tipificados como empíricos são aqueles nos quais a universalidade e a necessidade absoluta não estão presentes, isto porque sua elaboração se apoia em dados oriundos dos sentidos e generalizar uma lei para a absoluta maioria dos casos não é o mesmo que deduzir uma necessidade lógica. Na introdução da tradução portuguesa da primeira “Crítica” temos o seguinte sobre o a priori: Para além do saber a posteriori, extraído da experiência, haverá um saber de outra ordem, saber a priori, que precede a experiência e cujo objecto não nos pode ser dado pela experiência. Um objecto desta ordem será o próprio sujeito, a estrutura do sujeito, e é esta estrutura que torna possível a experiência.3 Após esta breve apresentação do a priori para a filosofia kantiana, passamos agora para o estudo da noção de tempo no mesmo autor. No texto kantiano as formas puras da sensibilidade – espaço e tempo – têm que estar presentes no espírito humano justamente porque sem elas não seria possível ordenar o diverso sensível dos fenômenos segundo determinadas relações. Como são elas as condições de possibilidade da sensibilidade humana, precisam estar presentes antes de qualquer experiência, justamente para possibilitar que a mesma aconteça. Para MORUJÃO, Uma análise mais atenta da forma do conhecimento mostra-nos que as formas a priori da sensibilidade – o espaço e o tempo – não são conceitos, mas intuições, isto é representações singulares, e quando falamos em espaços ou tempos no plural, não queremos significar espaços diferentes, mas partes de um espaço ou de um tempo únicos.4 Quando consideramos intervalos de tempo muito afastados, o que estamos fazendo, segundo a filosofia crítica kantiana, é recortar um intervalo de tempo dentro de um mesmo e único tempo universal, não existem tempos diferentes e sim pedaços de um mesmo e único tempo. Estas formas são a priori, pois para originar uma sensação é necessário a presença delas sendo, portanto, impossível que procedam ou tenham sua origem nas sensações e mesmo em qualquer experiência. Sobre este ponto Kant assim se expressa no sexto parágrafo dedicado ao tempo na “Dissertação de 1770”: É absurdo, portanto, querer armar a razão contra os primeiros postulados do temo puro, por exemplo contra a continuidade, etc., uma vez que estes derivam de leis tais que não se encontra nada mais primitivo e mais importante que elas, e a própria razão não pode dispensar o apoio deste conceito no uso do princípio de contradição; a tal ponto ele é primitivo e originário.5 2 3 4 5 KANT, I., 1997, p. 41 (grifo do autor). MORUJÃO, A. F. Introdução, in Kant, I. , 1997, p. XI. (grifo do autor). MORUJÃO, A. F. Introdução, in Kant, I., 1997, p. XIII. (grifo do autor). KANT, I., 2004, p. 56. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 34 Para a filosofia kantiana, sem um tempo já dado na constituição cognitiva humana, o contato mais imediato com a realidade que nos cerca seria impossível dentro dos moldes por nós conhecidos. É necessário, então, que esta forma primeira de organizar os estímulos por nós recebidos através dos sentidos – o tempo – seja dada a priori, ou seja, que ela já esteja presente na constituição cognitiva humana, apesar de ser indispensável o contato com a experiência para que ela “entre em funcionamento”. Tanto o espaço quanto o tempo são condições de possibilidade da experiência humana, sensações primeiras e puras que não dependem da empiria para serem elaboradas, mas necessitam dela para entrar “em funcionamento”. “A representação do espaço e do tempo não seria então derivada da experiência (...), mas constitui antes a sua condição. Eu nada posso imaginar, em mim, ou fora de mim, que não situe, a priori, no espaço e no tempo.”6 Como o mundo fenomênico organizado pelos seres humanos situa tudo num espaço e num tempo e não existe a possibilidade de abstraí-los de nossa experiência sensitiva e, afora isso, o próprio princípio racional da não contradição necessita da sucessão temporal para ser compreendido, a filosofia crítica kantiana considera os espaço e o tempo como aspectos formais, primeiros e independentes da experiência presentes no aparato cognitivo humano. A gênese da noção de tempo em Piaget Na teoria piagetiana o tempo é uma das quatro categorias principais para a elaboração de uma concepção objetiva do real, junto com a noção de conservação de substância, de campo espacial e de causalidade. Segundo Piaget, estas formas são “(...) as principais “categorias” de que a inteligência faz uso para adaptar-se ao mundo exterior - o espaço e o tempo, a causalidade e a substância, a classificação e o número etc. - correspondem, cada uma delas, a um aspecto da realidade (...)”7. No livro “A noção de tempo na criança”, Piaget e seus colaboradores realizam diferentes situações experimentais onde os sujeitos são questionados, após presenciarem situações nas quais a maneira como organizam o tempo é verificada, sobre a ordem de sucessão, duração ou simultaneidade dos acontecimentos que acabaram de perceber. A situação experimental que analisaremos no presente estudo é a seguinte: os pesquisadores apresentam à criança dois recipientes superpostos onde o superior tem a forma de uma pêra (D I) e o outro é cilíndrico (D II); ambos têm exatamente o mesmo volume e são ligados por um orifício que pode ser aberto ou fechado durante o transcorrer da experiência. Ao iniciar a situação experimental o recipiente superior é preenchido por um líquido colorido através de uma abertura em sua parte mais elevada, uma vez repleto de líquido é aberto o orifício que interliga os dois recipientes e todo o volume de D I é 6 7 PIETTRE, B., 1997, p. 98. PIAGET, J., 1982, p. 19. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 35 transvasado para D II, com isso os experimentadores mostravam para as crianças que o volume dos dois frascos é o mesmo.8 Após deixar claro a igualdade de volume entre os dois vidros é efetuado um transvasamento em seis fases sendo elas DI 1, DI 2, DI 3, DI 4, DI 5 e DI 6 que correspondem no frasco inferior a DII 1, DII 2, DII 3, DII 4, DII 5 e DII 6. São fornecidos às crianças uma série de desenhos xerocopiados onde a situação acima descrita é representada e, após cada fase de transvasamento de D I para D II é solicitado à criança que marque com um lápis colorido os respectivos níveis do líquido, tanto em D I quanto em D II. Depois de marcar com o lápis todo o escoamento do líquido os desenhos são misturados pelos experimentadores e se pede a criança que os serie segundo a ordem que viu ocorrer na experiência; num segundo momento os desenhos D I e D II são recortados e embaralhados entre si e também se pede a criança que os serie segundo a ordem que percebeu.9 O tempo como a priori construído A análise dos dados obtidos com crianças de variadas idades submetidas a situação experimental descrita permitiram a Piaget e seus colaborados distinguir três diferentes etapas na construção efetuada pelo sujeito da noção temporal: na primeira etapa a criança não consegue reconstruir pelos desenhos a série temporal que viu ocorrer na situação experimental, ela adota uma seriação que geralmente começa pelos extremos (o recipiente todo vazio ou repleto de líquido) e, mesmo com a ajuda do experimentador, tem dificuldade em aceitar mudanças na sua seriação. O tempo da primeira etapa é então um tempo local no duplo sentido de um tempo não geral, que varia de um movimento para outro, e no sentido de um tempo que se confunde com a ordem espacial própria de cada deslocamento num sentido positivo do percurso. Ele é então, pode se dizer, um tempo sem velocidades, ou um tempo que não poderia tornar-se homogêneo, a não ser que as velocidades sejam todas as mesmas e todas uniformes.10 Qual o significado da expressão: “Um tempo sem velocidades”? Acreditamos estar ai a chave para compreender como Piaget concebe o tempo na primeira etapa. “Um tempo sem velocidades” significa que, no começo do desenvolvimento da noção temporal, a criança negligencia as diferenças de velocidades que podem existir entre dois movimentos. Isto ocorre porque ela ainda não tem a capacidade de coordenar os dois movimentos em questão em um tempo único e homogêneo, neste caso ela cria uma série temporal para cada um dos movimentos que percebe. A noção tempo da primeira etapa também é completamente fundida com a noção de espaço, segundo Piaget: Efetivamente correspondendo a ordem de percurso espacial à ordem de sucessão temporal, no caso de um só movimento de velocidade uniforme, a criança desta 8 9 10 A criança presencia este processo. Cf. PIAGET, J., 1946, p. 17 e ss. PIAGET, J., 1946, p. 296. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 36 fase [etapa 1] aplica simplesmente este mesmo esquema no caso de dois movimentos do mesmo sentido e de velocidades distintas.11 Na outra ponta do desenvolvimento da noção temporal, o tempo operatório (etapa 3), começa a surgir quando a sujeito consegue levar em consideração as variações de velocidade dos móveis (muitas vezes percebida pela ultrapassagem de um móvel por outro) e, a partir destas co-varianças, elaborar uma série temporal única e homogênea além de diferenciada do espaço percorrido, para todos os movimentos que percebe. Segundo a análise da Epistemologia Genética o campo temporal sofre profundas modificações durante o desenvolvimento cognitivo da criança. “A começar pelas estruturas espaço-temporais, verificase que, no princípio, não existe espaço único nem ordem temporal que englobe os acontecimentos como os continentes englobam os conteúdos.”12 No início as noções temporais são profundamente egocêntricas, ou seja, estão imbricadas com julgamentos psicológicos imediatistas referentes às expectativas da criança quanto à sucessão ou duração dos eventos. Quando a criança está fazendo uma atividade que proporciona prazer e divertimento ela tende a julgar a passagem do tempo muito rápida. Por outro lado, quando a atividade em questão exige muito trabalho intelectual ou físico, a passagem do tempo tende a ser considerada excessivamente demorada. Destes exemplos podemos retirar que o julgamento relativo ao tempo de crianças tende a ser alterado pelas sensações que elas experimentam no decorrer da atividade sendo, portanto egocêntrico, ou seja, relativo não a um sistema lógico e coerente de relações onde a sucessão, a simultaneidade e velocidade dos eventos têm um papel central. Nas palavras de Piaget, a constituição do tempo (...) vai igualmente do imediatismo característico do egocentrismo radical a uma relacionação tal que o espírito se liberta do ponto de vista próprio do sujeito para situar-se num universo coerente. O tempo confunde-se, pois, no seu ponto de partida, com as impressões de duração psicológica inerentes as expectativa, de esforço, e de satisfação, em resumo, à atividade do próprio sujeito.13 Segundo o trabalho de Carneiro, para a teoria do conhecimento desenvolvida por Piaget “O tempo é uma noção física construída na relação com as coisas, isto é, consiste em coordenações de ações especializadas que levam em conta as relações e as propriedades dos objetos.”14 Para a Epistemologia Genética, portanto, o tempo esta no rol dos conhecimentos físicos, que dependem de uma propriedade do objeto para ser elaborado e organizado; isto não o torna um apanhado de relações exteriores, ou uma simples constatação de regularidades causais presentes no real, ainda seguindo o texto de Carneiro: 11 12 13 14 PIAGET, J., 1946, p. 103- 104. PIAGET, J., 1989, p. 20. PIAGET, J., 1946, p. 299. CARNEIRO, M. C., 2002, p. 137. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 37 O tempo não é um mero derivado de relações exteriores (...) mas “emerge” de um conjunto de coordenações que se formam na relação do sujeito com o meio físico, isto é, desde o princípio do desenvolvimento do sujeito, o tempo não é uma mera comprovação empírica ou de regularidade causal, senão uma assimilação do objeto à atividade própria do sujeito que progressivamente o coordena.15 O tempo é entendido por Piaget como uma construção elaborada sobre os deslocamentos espaciais ou, em outras palavras, é um sistema de deslocamentos considerados em conjunto (co-deslocamentos). No final do livro “A Construção do Real na Criança” Piaget diz “(...) o tempo, tal como o espaço, constroem-se pouco a pouco, e implicam a elaboração de um sistema de relações.”16 Esta construção deve ser elaborada por meio de ações efetuadas sobre o real, mais especificamente, sobre determinadas características do objeto que, no caso do tempo, são as diferenças de velocidade. No início da elaboração da noção temporal estas diferenças de velocidades são simples ultrapassamentos, mas uma vez que a criança construa a capacidade de coordenar estas co-variações elas possibilitam a elaboração de um tempo único e homogêneo para todos os eventos. Em outra palavras, o “sistema de relações” ao qual Piaget alude é especificamente um sistema onde, para ter uma noção operatória de tempo, a criança precisa desenvolver a capacidade de estabelecer relações logicamente coerentes entre a noção de diferenças de velocidade e de sua organização em conjunto com as noções de sucessão, duração e simultaneidade. Do ponto de vista da experiência imediata, a criança chega muito cedo a avaliar as velocidades, de que tem uma consciência direta, e os espaços percorridos em um tempo idêntico ou “antes” e “depois” na chegada à meta escolhida, no caso de trajetórias de mesmo comprimento. Mas daí a decompor as velocidades para aduzir uma medida do próprio tempo vai uma diferença considerável, pois tratarse-ia, precisamente, de substituir as intuições diretas próprias da acomodação elementar do pensamento às coisas por um sistema de relações que implica uma assimilação construtiva.17 O Tempo como Noção a priori: contribuições da Epistemologia Genética à Teoria do Conhecimento Nos dois autores hora analisados é essencial a relação entre uma forma (proveniente do funcionamento do aparato cognitivo humano) e um conteúdo (possibilitado pelo contato entre nossos órgãos dos sentidos e o ambiente) para a constituição do conhecimento. No que concerne ao tempo, Kant compreende esta noção como um aspecto primeiro, formal, totalmente independente da experiência e, portanto, já dado no aparato cognitivo humano. Nesta perspectiva, a noção humana de tempo não precisa passar por uma construção na qual seus elementos centrais (simultaneidade, duração e sucessão) seriam gradativamente coordenados. Para a filosofia crítica 15 16 17 CARNEIRO, M. C., 2002, p. 139. PIAGET, J., 1975, p. 298. PIAGET, J., 1975, p. 357. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 38 kantiana o tempo é um aspecto formal e a priori da sensibilidade humana, e a “noção de tempo” já é dada no aparato cognitivo humano, sem a necessidade do concurso da experiência para que ela seja construída. Na realidade, dentro da filosofia kantiana, não tem sentido falar em construção da noção temporal, justamente porque ela é dada já completamente estruturada e organiza em nosso aparato cognitivo. “O espaço e o tempo são as formas puras desse modo de perceber sensação em geral a sua matéria. Aquelas formas só podemos conhecê-las a priori, isto é, antes de qualquer percepção real e, por isso , se denominam intuições puras; (...)”18. Na filosofia kantiana o tempo é um elemento formal, é uma das condições de possibilidade da sensibilidade humana sem a qual nossa relação mais imediata com a realidade seria inconcebível. Tudo aquilo com o que entramos em contato é imediatamente organizado segundo a sua sucessão, sua duração e sua simultaneidade, ou seja, organizado temporalmente. O tempo (e o espaço) são as condições de possibilidades de todos os fenômenos, sendo a sensibilidade humana, dentro da filosofia kantiana, impensável sem estes dois aspectos formais. A Epistemologia Genética, diferente de Kant, pensa no desenvolvimento de algumas noções fundamentais consideradas como as condições de possibilidade do conhecimento humano. Falando especificamente sobre o tempo, Piaget e seus colaboradores encontraram características tão diversas durante o processo de construção desta noção que elencaram três diferente etapas. No início da organização do tempo temos as seguintes idiossincrasias: I) incapacidade de seriar os eventos segundo sua sucessão, duração ou simultaneidade; II) confusão absoluta entre os julgamentos temporais e os espaciais; III) uma incompreensão da velocidade como inversamente proporcional ao tempo necessário para executar determinada tarefa; IV) inexistência de um tempo comum a todos os acontecimentos. Por exemplo, quando é colocada na presença de dois movimentos de velocidades diferentes, a criança cria uma série temporal para cada movimento e não une os dois em uma única e mesma série. Já no final da construção das condições de possibilidade da noção temporal, ela passa a ser operatoriamente estruturada (com a sucessão sendo extraída da duração e a duração podendo ser elaborada a partir da sucessão, ou seja, a seriação dos eventos passa a ser fundamenta no tamanho do intervalo de tempo que eles levam para ocorrer). Além disso, a criança já consegue compreender a velocidade como inversamente proporcional ao tempo gasto ou ao trabalho executado. Segundo Piaget, o tempo operatório é aquele tempo universal e único para todos os acontecimentos, fruto da capacidade de coordenar velocidades diferentes tendo como referencial as posições sucessivas dos móveis. É o tempo que ordena em comunhão as diferentes sucessões, durações e simultaneidades que existem em movimentos de velocidades diferentes. “O tempo é uma noção física, construída na relação com as coisas, isto é, consiste em coordenações de ações especializadas que levam em conta as relações e as propriedades dos objetos.”19 18 19 KANT, I., 1997, p. 79 (grifo do autor). CARNEIRO, M. C., 2002, p. 137. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 39 O tempo, para a Epistemologia Genética, não é dado a priori, já organizado no aparato cognitivo humano, ele é uma noção que precisa ser elaborada pelo sujeito no contato com a realidade. Para Kant ele é um aspecto formal a priori, portanto completamente independente da experiência. Existe a possibilidade de conciliar estas formas de compreender o tempo que, a uma primeira vista, mostram-se totalmente antagônicas? Acreditamos que sim. Ao nosso ver o epistemólogo genebrino vai buscar as origens e maneiras de estruturação daquilo que o filósofo de Königsberg considera dado a priori. Piaget conclui que as condições de possibilidade da noção temporal sofrem profundas modificações durante o desenvolvimento cognitivo do ser humano. Nesse sentido, Piaget utiliza a ideia kantiana20 do tempo como um aspecto fundamental para a construção da realidade feita pelo ser humano mas também a altera, uma vez que mostra a historicidade, ou seja, as profundas modificações que esta noção sofre durante o desenvolvimento cognitivo do sujeito. O tempo passa a ser uma noção fundamental apenas depois de ser laboriosamente construído por meio da coordenação levada a cabo pelo sujeito sobre as diferenças de velocidades. Ele não é mais compreendido como dado, pronto e acabado no aparato cognitivo humano e muito menos como independente da experiência. Com a proposta teórica oriunda da Epistemologia Genética, a noção de tempo precisa ser construída pelo sujeito por meio de sua ação no ambiente em que se encontra, ou seja, a experiência, a ação no mundo é fundamental. “Logo, o a priori não se apresenta sob a forma de estruturas necessárias senão no final da evolução das noções, nunca em seu início (...)”.21 Tanto para Kant quanto para Piaget o tempo é um elemento fundamental para a elaboração da realidade como o ser humano a conhece. No entanto, o primeiro considera o tempo como um forma a priori da sensibilidade humana enquanto o segundo busca compreender as maneiras de estruturação desta noção “(...) para Piaget, as operações temporais derivam das condutas pré-operatórias e o tempo nada mais é que o conjunto dessas condutas e operações.” 22 Enquanto a filosofia crítica kantiana entende o tempo como dado e fruto do funcionamento interno da mente humana, a Epistemologia Genética encontra uma historicidade na construção dessa noção, ou seja, a forma como o ser humano organiza o tempo passa por sucessivas mudanças no decorrer do desenvolvimento cognitivo. “Entretanto, o que para Kant parecia ser um “dado” (todo sujeito dotado de razão possui os instrumentos do pensamento postulados nas categorias a priori) é para Piaget um instrumento em permanente reelaboração.”23 É justamente neste aspecto onde encontramos uma divergência substancial entre os autores pois, para Kant, a 20 21 22 23 Utilizamos aqui “ideia kantiana” mas temos claro que estes dois autores não são os únicos a considerar o tempo como um elemento fundamental para a estruturação da realidade feita pelo ser humano. PIAGET, J., 1982, p. 15 (grifo do autor). PIAGET, J., 1971, p. 60. “(…) para Piaget, las operaciones temporales, derivan de las conductas preoperatorias y el tiempo no es otra cosa que el conjunto de esas conductas y operaciones.” (traduzimos livremente). FREITAG, B. 1991, pg. 50 (grifo da autora). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 40 constituição do tempo é totalmente independente e anterior à experiência, já para Piaget é necessário que a criança construa a capacidade de coordenar velocidades diferentes para que ela estruture um campo temporal coerente, neste sentido a experiência é fundamental. Acreditamos ter mostrado, por meio do estudo da noção de tempo no ser humano, as contribuições oriundas da Epistemologia Genética para a teoria do conhecimento. Ou seja, a proposta teórica de encontrar as diferentes maneiras de elaboração pelas quais passam as condições de possibilidade do conhecimento humano durante o desenvolvimento cognitivo. 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Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. 360 p. PIAGET, J.; GRIZE, J-B.; HENRY, K.; MEYLAN-BACKS, M.; ORSINE, F.; VAN DEN BOGAERTROMBOUTS, N. La Epistemologia del Tiempo. Tradução de Jorge A. Sirolli. Buenos Aires: El Ateneo, 1971. 226 p. PIETRE, B. Filosofia e Ciência do Tempo. Tradução de Maria Antonia Pires de C. Figueiredo. Bauru: Edusc, 1997. RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. Piaget: modelo e estrutura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. 94 p. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 41 O conceito de interdisciplinaridade em Jean Piaget: questões teóricas e contribuições para o âmbito educativo CHARCZUK, Simone Bicca NEVADO, Rosane Aragón de Universidade Federal do Rio Grande do Sul, CAPES [email protected] [email protected] Resumo As discussões em torno do conceito de interdisciplinaridade aparecem de forma recorrente nas pesquisas e práticas educacionais. A fim de contribuir com os debates desenvolvidos em obras dedicadas ao tema, nesse trabalho discute-se esse conceito a partir de diversos textos de Jean Piaget. Os artigos e livros utilizados para análise foram selecionados através da realização de uma revisão bibliográfica, priorizando-se aqueles nos quais o autor apresenta e caracteriza o conceito. Nos textos analisados, Piaget propõe uma concepção de ciência que se organiza em espiral ascendente, na qual as fronteiras entre as disciplinas são compreendidas como artificiais, contrapondo-se à classificação linear proposta, principalmente, por Comte. Segundo o autor, as ciências ocupam-se com a abordagem dos observáveis e não com a pesquisa de relações explicativas sobre a gênese dos fenômenos. Tais pesquisas requerem uma abordagem interdisciplinar, sendo que essa é compreendida como condição para o progresso das ciências. Nesse sentido, a interdisciplinaridade é concebida como a colaboração entre diversas disciplinas ou setores heterogêneos de uma mesma ciência que conduz a interações nas quais se estabelecem reciprocidades nas trocas e que possibilitam um enriquecimento mútuo das disciplinas envolvidas, ou seja, onde exista assimilação recíproca. Quando essas colaborações são efetivadas, um campo ou disciplina é enriquecido por outro, sendo que se estabelece uma complementaridade entre eles. Embora as pesquisas de Piaget não tenham como foco prioritário a educação, este campo de saber e prática foi objeto de reflexão deste autor, além do que, estas pesquisas foram e ainda são utilizadas por uma ampla gama de pesquisadores desta área. Neste sentido, considera-se que a concepção de interdisciplinaridade proposta por ele permite pensarmos a prática e pesquisa educacional como um espaço possível para o estabelecimento de assimilações recíprocas entre as diversas disciplinas que o compõe contribuindo assim para uma abordagem menos fragmentária. Palavras-chave: Piaget. Interdisciplinaridade. Educação. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 42 Abstract Discussions around the concept of interdisciplinarity are frequent in research and educational practices. In order to contribute to this issue, this work presents the discussion of this idea starting from several texts of Jean Piaget. Articles and books used for this purpose were selected through a literature review, prioritizing those in which the author presents and typifies the concept. In the texts analyzed, Piaget proposes a conception of science that is organized in ascending spiral in which the boundaries among disciplines are understood as artificial, in contrast to the linear classification proposed, mainly, by Comte. According to the author, science deals with the approach of the 'observable' and not with the search for explanatory relations on the genesis of phenomena. Such studies require an interdisciplinary approach that is understood as a condition for progress in science. In this sense, interdisciplinarity is conceived as the collaboration among different disciplines or heterogeneous sectors of a same science that leads to interactions that allow mutual enrichment of the disciplines involved, ie, where there is reciprocal assimilation. When these collaborations are effective, a field or discipline is enriched by another, and the complementarity is installed between them. Although Piaget's investigation did not focus primarily on education, this field of knowledge and practice was subject of consideration by this author, besides the fact that these studies were and still are used by a wide range of researchers in this area. Therefore, it is considered that the design of interdisciplinarity suggested by him enables thinking the practice and educational research as a possible area for the establishment of reciprocal assimilations among the various disciplines that comprise it, contributing to a less fragmented approach. Keywords: Piaget. Interdisciplinarity. Education. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 43 Introdução Diferentemente de outros temas, tais como aprendizagem e desenvolvimento moral, o conceito de interdisciplinaridade na teoria de piagetiana é pouco investigado em trabalhos brasileiros. Raros são os trabalhos em língua portuguesa que se dedicaram a investigar as especificidades desse conceito segundo a formulação que lhe deu o pesquisador genebrino. A este tema, Piaget dedicou alguns trabalhos de relevância, além de implementar, na prática, o trabalho interdisciplinar juntamente com seus colaboradores no Centro de Epistemologia Genética em Genebra. Neste Centro, vários especialistas de diferentes áreas do conhecimento trabalhavam de forma cooperativa visando o estudo dos mecanismos responsáveis pela evolução dos conhecimentos, seja na ciência ou no estudo da ontogênese (PORTELA, 1997). Além disso, segundo Thiesen (2008), as obras piagetianas serviram de base para fomentar discussões de pesquisadores brasileiros acerca do tema da interdisciplinaridade. Considerando o que acima foi exposto, este artigo busca contribuir para uma melhor compreensão do tema, tanto procurando precisar o seu significado para o autor em questão, quanto o discutindo a fim de obter subsídios que possam auxiliar as pesquisas e práticas no campo educativo. Para tanto, selecionou-se artigos e livros através de revisão bibliográfica na qual foram priorizados aqueles textos em que o autor apresenta e caracteriza o conceito. O objetivo deste trabalho não é esgotar a discussão sobre o tema nem abarcar toda obra do autor, mas sim trazer para o debate algumas concepções de Piaget que poderão orientar as reflexões sobre interdisciplinaridade, sobretudo, como já foi afirmado, no âmbito educacional. Sobre a pesquisa bibliográfica e os textos encontrados A pesquisa bibliográfica foi realizada através dos sites da web Google e Google Acadêmico utilizando-se como palavras-chave “Piaget” e “interdisciplinaridade”. A partir da busca realizada, foi possível localizar três artigos e um livro publicados que tratam especificamente sobre interdisciplinaridade. Levando em consideração a organização cronológica dos artigos, o primeiro intitula-se “La psychologie, les relations interdisciplinaires et le systeme des sciences24” e é resultado de uma conferência pronunciada por Piaget no XVIII Congresso Internacional de Psicologia em agosto de 1966 na cidade de Moscou. O segundo, “L’epistemologie des relations interdisciplinaires25”, foi apresentado em um seminário sobre interdisciplinaridade nas Universidades em setembro de 1970 na Universidade de 24 25 Não foi localizada tradução deste texto para o português. Desta forma, a responsabilidade pela tradução do original em francês cabe às autoras deste artigo. Foi localizada uma tradução comentada deste texto, de autoria de Terezinha M. Vargas Flores e Nelcy E. Dondoni Borella, publicada na Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, 19(1): 113-120, jan/jun 1994. Embora essa tradução tenha apoiado a leitura do texto original, a tradução do texto original em francês cabe às autoras deste artigo. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 44 Nice, França. O terceiro artigo, “Méthodologie des relations interdisciplinaires26”, foi publicado na revista Archives de Philosophie em 1971. O livro localizado intitula-se “Problemas gerais da investigação interdisciplinar e mecanismos comuns27” e foi publicado no ano de 1973 em português de Portugal pela Livraria Bertrand. Além destes textos mencionados, serão utilizadas nesta revisão bibliográfica algumas passagens do livro “Où va l’education?28”, escrito em 1971, nas quais Piaget menciona o tema da interdisciplinaridade. Considera-se que neste livro o autor aproxima as temáticas da interdisciplinaridade e da educação, por isso optou-se por incluí-lo na análise. No próximo item, serão apresentadas de forma sintética as principais concepções do autor sobre o tema a fim de que seja possível fazer uma reflexão sobre elas. Posteriormente, serão tecidas algumas considerações sobre as contribuições dessa concepção de interdisciplinaridade para o âmbito educativo. As concpções de Piaget acerca da interdisciplinariedade De acordo com o que foi exposto no item anterior, pode-se perceber que os textos de Piaget que tratam sobre interdisciplinaridade foram produzidos na mesma época, ou seja, no período que compreende o final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Portanto, muitas ideias apresentadas em um texto aparecem em outros de formas semelhantes ou mais elaboradas. Desta forma, para expor as ideias do autor, será seguida a ordem das obras conforme apresentada no item anterior, sendo que as ideias recorrentes serão destacadas. No artigo “La psychologie, les relations interdisciplinaires et le systeme des sciences”, Piaget examina as colaborações possíveis entre a psicologia e diversas ciências exatas e naturais tais como a matemática, a física, a biologia, e com as ciências sociais e humanas, quais sejam, a sociologia, a lingüística, a economia política. Aborda também as relações que podem ser estabelecidas entre a psicologia e a lógica. Finaliza o artigo apresentando algumas considerações sobre a psicologia no sistema das ciências. O texto inicia com a afirmação de que a psicologia poderá, futuramente, enriquecer e ser enriquecida por outras ciências a partir do estabelecimento de relações interdisciplinares. Piaget refere que as ciências exatas e naturais tendem a estabelecer mais elos entre si do que as ciências sociais e 26 27 28 Esse texto foi publicado em português de Portugal no ano de 2006 em uma coletânea organizada por Olga Pombo e colaboradores, intitulada Interdisciplinaridade: antologia. Tal como apontamos nas referências anteriores, embora essa tradução tenha apoiado a leitura do texto original, a tradução do texto em francês cabe às autoras deste artigo. Este livro é um capítulo da obra “Tendances principales de la recherce dans les sciences sociales et humaines – Partie I: Sciences sociales”, publicada pela UNESCO em 1970. Este livro foi escrito a pedido da Comissão Internacional para o Desenvolvimento da Educação, organismo vinculado à UNESCO. As passagens utilizadas foram traduzidas pelas próprias autoras do presente artigo. O texto foi traduzido para o português com o título “Para onde vai a educação?”. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 45 humanas, pois essas últimas não apresentam filiações hierárquicas nítidas entre as diversas disciplinas, ao contrário das primeiras. Porém, em ambos os casos existe pouca colaboração com a psicologia, embora sejam destacados, ao longo do texto, diversos pontos que podem apoiar tal colaboração. Quanto à organização das ciências, ainda que se fale de filiações hierárquicas, as relações entre as ciências não são concebidas como lineares, mas sim como relações em espiral. Para ele: “as conexões entre as ciências não consistem em uma redução do superior ao inferior, mas conduzem à descoberta de novos fenômenos, que compreendem os antigos ou anteriores, mas enriquecendo-os com relações mais complexas” (PIAGET, 1966, p. 245-246). Assim, as trocas interdisciplinares que são estabelecidas não podem se caracterizar como serviços de sentido único, nos quais uma disciplina seja reduzida a outras, mas sim que possam ser desenvolvidas assimilações recíprocas, através das quais as disciplinas possam ser beneficiadas e enriquecidas por essa relação. Além disso, o autor refere que uma primeira condição para que seja possível falar em relações interdisciplinares é poder estabelecer colaborações no interior da própria disciplina. Destaca ainda que para que se possa empreender trabalhos interdisciplinares entre diversas disciplinas é necessário que se estabeleça uma “compreensão mútua, pois as ideias préconcebidas e o vocabulário podem ser obstáculos graves” (PIAGET, 1966, p. 247). O estabelecimento de relações interdisciplinares entre as ciências é compreendido como de suma importância, pois “uma ciência não se distribui somente em um plano, sobretudo se ela é avançada: ela irá necessariamente se colocar o problema de sua própria natureza e de seus fundamentos” (PIAGET, 1966, p. 243). Igualmente, uma teoria não pode demonstrar suas próprias não-contradições, necessitando, portanto, apoiar-se em outros meios fornecidos, muitas vezes, por teorias oriundas de outras disciplinas. É nesse sentido que o autor finaliza o artigo pontuando que “a psicologia ocupa uma posição central no sistema das ciências, não como produto de todas as outras ciências, mas como fonte possível de explicação de sua formação e de seu desenvolvimento” (PIAGET, 1966, p. 244). Dando sequência a exposição, o artigo “L’epistemologie des relations interdisciplinaires” parece ser o texto mais divulgado e comentado por outros autores em trabalhos dedicados ao tema, segundo apontam Flores e Borella (1994). Nele, o autor procura precisar as distinções entre o interdisciplinar em um sentido estrito e os conceitos vizinhos, quais sejam, o multidisciplinar e o transdisciplinar. Para tanto, parte da discussão acerca dos problemas científicos. Primeiramente, comenta sobre a distinção entre as ciências puramente dedutivas e as disciplinas experimentais de modo geral. As primeiras abrangem disciplinas tais como as matemáticas e a lógica e são consideradas disciplinas autônomas. As segundas são aquelas que estão submetidas aos fatos e são elas que levantam o problema do qual parece depender o significado mesmo da interdisciplinaridade. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 46 Tal como no artigo apresentado anteriormente, Piaget tece críticas a classificação das ciências proposta por Augusto Comte, na qual as disciplinas são concebidas segundo uma ordem linear e dupla, de complexidade crescente e generalidade decrescente. De acordo com o texto, “com o positivismo, se limitou o campo das ciências à análise dos observáveis, ou seja, a descrição e a medida”. O autor segue dizendo que “no que se refere às relações entre os fenômenos, se abordou a descoberta de um conjunto de leis funcionais, mais ou menos gerais ou específicas. Como nos recusamos à pesquisa das causas e mesmo dos modos de existência que poderiam caracterizar os diversos substratos dos quais os fenômenos seriam a expressão, fomos conduzidos a fragmentar o real em certo número de territórios mais ou menos separados ou em estágios superpostos que correspondem aos domínios bem delimitados das diversas disciplinas científicas” (PIAGET, 1972, p. 132). Contrapondo-se a Comte e ao positivismo, reafirma nesse artigo a sua concepção de ciência como sistema não linear, mas sim como organização que regressa sobre si mesma de forma espiral a partir da qual podem ser estabelecidas múltiplas conexões entre as diversas disciplinas que a compõe. Ou seja, a classificação das ciências deve prever situações nas quais seja possível estabelecer conexões entre disciplinas, denominadas assimilações recíprocas. Nesse sentido, podemos dizer que a existência ou a importância das diversas disciplinas não é negada, mas sim ressalta-se a necessidade delas estabelecerem colaborações e trocas que possam gerar enriquecimentos para todas as disciplinas que se interrelacionam. Por outro lado, como já foi referenciado na apresentação do artigo anterior, Piaget diferencia as relações interdisciplinares da simples interrelação por redução, na qual o complexo ou superior se reduz ao inferior ou este é projetado diretamente no superior. Nesse sentido, ressalta que as relações interdisciplinares autênticas conduzem a serviços recíprocos entre disciplinas. No que se refere especificamente à caracterização da interdisciplinaridade, o autor comenta que a pesquisa das explicações causais é indispensável para a atividade científica e fonte de conexões interdisciplinares. Sugere que “a necessidade de ensaios interdisciplinares se deve a uma evolução interna das ciências sobre a dupla influência das necessidades de explicação, a qual gera o esforço por completar, através de ‘modelos causais’ e do caráter mais e mais ‘estrutural’, a simples legalidade proposta pelas disciplinas” (PIAGET, 1972, p. 133). Ressalta ainda que a interdisciplinaridade torna-se condição para o progresso das pesquisas científicas. Piaget concebe os progressos do estruturalismo como fator principal que favorece a interdisciplinaridade. Conforme ele, “se a pesquisa de ‘estruturas’, no sentido de sistemas subjacentes de transformações, já se constitui um fator fundamental de interdisciplinaridade, é claro que toda epistemologia interna, visando caracterizar as relações existentes em uma ciência, entre os observáveis e os modelos utilizados, será solidária da epistemologia das ciências vizinhas, não somente porque os I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 47 mesmos problemas epistemológicos são reencontrados por toda parte, mas ainda porque as relações entre sujeito e objetos não poderia desprender-se de visões comparativas” (PIAGET, 1972, p. 133-134). Também aponta algumas propriedades das estruturas que possibilitam pensar as relações interdisciplinares: a) a estrutura introduz no real um conjunto de conexões necessárias e b) a estrutura ultrapassa a fronteira dos fenômenos, ou seja, suas manifestações são observáveis, mas o sistema só é acessado por dedução, por ligações não observáveis. Outro fator que favorece a interdisciplinaridade é a abordagem genética. Para Piaget, o desenvolvimento da gênese de um fenômeno exclui todo começo absoluto obrigando o pesquisador a religar os patamares dessa gênese com conexões entre diversas disciplinas. Da mesma forma, no interior de uma mesma ciência, o estudo desse desenvolvimento obriga ao estabelecimento de ligações entre partes inicialmente sem contato. Após essas considerações aqui apresentadas, são distinguidos três níveis de relações de acordo com o grau de interação entre disciplinas: a multidisciplinaridade é concebida como um patamar inferior que pode ser encontrado quando a solução de determinado problema requer informações provenientes de duas ou mais disciplinas ou áreas de conhecimento, mas sem que elas possam ser modificadas ou enriquecidas por essa interação. Esse nível pode ser considerado como “estado de partida que pode ser observado em grupos de pesquisadores reunidos com um objetivo interdisciplinar, mas que permanecem em um nível de informação mútua e cumulativa, sem interações propriamente ditas” (PIAGET, 1972, p. 141). No segundo nível, o interdisciplinar propriamente dito, as colaborações conduzem a interações, ou seja, a certa reciprocidade nas trocas que possibilita um enriquecimento mútuo. A interdisciplinaridade resultará de uma pesquisa de estruturas mais profundas que os fenômenos e que se destinam a explicar estes. Três são as formas de ligação interdisciplinar: o isomorfismo entre estruturas, as ligações entre estruturas e a combinação ou intersecções entre estruturas diferentes. Finalmente, o transdisciplinar é concebido como uma etapa superior que sucede o interdisciplinar. Conforme o autor, “esse nível não se restringe a interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situa essas ligações no interior de um sistema total, sem fronteira estáveis entre as disciplinas” (PIAGET, 1972, p. 144). Finalizando a análise dos artigos piagetianos, em “Méthodologie des relations interdisciplinaires” é destacado que as fronteiras de todas as ciências experimentais, fundadas sobre o observável, devem ser consideradas artificiais. Nesse texto, é apresentada novamente a questão dos observáveis. Destaca-se que o progresso do conhecimento científico consiste em ultrapassar o fenômeno, procurar, sob os observáveis, coordenações necessárias, determinações ou relações de causalidade, ou seja, relações explicativas e não somente fatos e leis. Quando os observáveis são ultrapassados, ultrapassa-se também as fronteiras da ciência considerada e penetramos no domínio das ciências vizinhas. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 48 No texto são destacadas três situações que tornam os problemas interdisciplinares complexos e variados: 1) as relações entre as ciências que se pode hierarquizar, ou seja, entre as ciências que dependem de outras, porém a recíproca não é verdadeira, 2) as relações entre as ciências não hierarquizáveis, ou seja, nas quais pode existir apoio mútuo, sendo que uma ciência não pode ser reduzida a outra e 3) relações entre as ciências dos fatos e as ciências dedutivas. Quanto às relações interdisciplinares possíveis entre as ciências hierarquizáveis dois métodos devem ser evitados: primeiramente, não se deve projetar diretamente um domínio considerado superior (mais complexo, aquele que é explicado a partir de dados de base) no inferior (aquele que serve de base para construções ulteriores). Por outro lado, não se deve reduzir o superior a formas demasiado simples por um reducionismo que suprimiria, dessa forma, os caracteres próprios das funções superiores para reduzi-las a mecanismos elementares insuficientes para explicá-las. Alternativamente, são sugeridos que sejam seguidos os seguintes métodos: nas relações entre ciências consideradas hierarquizáveis deve-se buscar uma assimilação recíproca e não uma redução de sentido único. As assimilações recíprocas permitem que uma escala inferior seja enriquecida por propriedades novas por meio das quais se pode explicar os fenômenos da escala superior. Já no caso das ciências não hierarquizáveis, como não existe hierarquia, não se pode falar, portanto, de superior e inferior, mas sim da existência da possibilidade de estabelecerem-se assimilações recíprocas. Piaget já havia mencionado o mecanismo das assimilações recíprocas nos artigos analisados anteriormente e esse mecanismo aparece, então, como método que deve ser seguido a fim de que relações interdisciplinares entre as diversas ciências possam ser estabelecidas. Por fim, são tecidos alguns comentários sobre as relações entre as ciências ditas formais e as ciências dos fatos. Para Piaget, é possível que se estabeleçam relações entre essas ciências, no entanto é necessário que a autonomia das ciências formais seja assumida, pois o formal tem leis próprias nas quais não devem intervir considerações a partir dos fatos. No que se refere aos livros dedicados ao tema, o conceito também é abordado em “Problemas gerais da investigação interdisciplinar e mecanismos comuns”. Para o autor, duas espécies de preocupações podem gerar investigações interdisciplinares, a primeira relativa às estruturas ou mecanismos comuns entre as ciências e a segunda relativa aos métodos comuns. Destaca que a divisão do ensino em faculdades ou áreas distintas e impermeáveis dificulta a investigação interdisciplinar. Assim, “[...] cada disciplina emprega parâmetros que são variáveis estratégicas para outras disciplinas, o que abre um vasto campo de investigações às colaborações interdisciplinares, mas, como se não dispõe duma composição linear do sistema em subsistemas, as colaborações reduzem-se frequentemente a simples justaposições” (PIAGET, 1973, p. 17). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 49 O autor propõe que a reforma ou reorganização dos diversos domínios do saber é o objetivo da investigação interdisciplinar. Tal reforma e/ou reorganização pode ocorrer por recombinações construtivas proporcionadas por trocas entre os saberes. Nesse sentido, estabelece-se entre as diversas ciências um movimento de assimilação recíproca, já referida em artigos anteriores e explicitada nas análises, que promove o enriquecimento das ciências em interação, pois proporciona a percepção e compreensão de aspectos da realidade que uma ciência sozinha não consegue atingir. Quando à prática interdisciplinar, pode-se dizer que para tornar possível a viabilização das relações entre disciplinas é necessário que aqueles que as representam possam engajar-se em interações cooperativas. Outra proposição de Piaget é o agrupamento dos problemas interdisciplinares em torno de três realidades comuns compartilhadas entre diversas ciências, quais sejam, as estruturas ou regras, os valores e as significações. No livro “Où va l’education?”, não diretamente vinculado ao conceito de interdisciplinaridade, Piaget comenta que a existência de estruturas comuns ou solidárias nas diversas ciências tende a fazer com que as fronteiras entre as disciplinas desapareçam. Destaca que “a primeira das lições a tirar das tendências interdisciplinares atuais é a necessidade de rever de perto as relações futuras entre as ciências ditas humanas e as ciências ditas naturais e, consequentemente, a necessidade de procurar um remédio para as consequências catastróficas geradas pela repartição do ensino universitário em ‘faculdades’ e do ensino secundário em ‘matérias’, todos separados por compartimentos impermeáveis” (PIAGET, 1971, p. 33). Nesse sentido, é importante que as especialidades ou disciplinas possam generalizar “... as estruturas que empregam ou as recolocar em um sistema de conjunto englobando as outras disciplinas” (PIAGET, 1971, p. 32). No item seguinte, algumas contribuições das formulações de Piaget sobre interdisciplinaridade para o âmbito educativo serão discutidas. Embora as pesquisas piagetianas acerca do tema não tenham como foco prioritário a educação, acredita-se que suas concepções podem auxiliar a pensar sobre as possibilidades da interdisciplinaridade tanto no âmbito do currículo quanto da prática pedagógica. Contribuições do conceito de interdisciplinaridade, conforme proposto por Piaget, para o âmbito educativo. De acordo com Portela (1997), a questão da interdisciplinaridade faz-se presente cada vez mais nas discussões acerca da produção de conhecimentos e pela necessidade da ciência em superar a fragmentação dos saberes. Nesse sentido, a educação, enquanto instituição reconhecida socialmente como espaço de produção e socialização de conhecimentos, pode tornar-se palco privilegiado para debater e acolher a proposta interdisciplinar. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 50 Porém, é necessário que se tenham claras as bases epistemológicas que sustentam um projeto educativo interdisciplinar, pois, muitas vezes, encontra-se o conceito mencionado na própria legislação sobre a educação brasileira sem que sua definição seja explicitada de forma clara (BRASIL, 1996). É nesse sentido que a proposta teórica de Piaget pode contribuir com as discussões acerca da interdisciplinaridade na educação. Piaget (1971, 1973) destaca a organização do ensino em faculdades e dos conteúdos em matérias como aspectos que dificultam o estabelecimento de relações interdisciplinares na educação. Nos artigos e livros analisados, o autor aponta a necessidade de estabelecerem-se colaborações entre as disciplinas e que tais colaborações possam gerar enriquecimentos mútuos e não serviços de sentido único, ou seja, possam se caracterizar como assimilações recíprocas (PIAGET, 1966, 1971, 1972, 1973). A partir dessas observações, pode-se pensar na importância de criarmos currículos mais integrados, nos quais os conteúdos disciplinares não sejam o foco prioritário da educação, mas sim que temas possam ser trabalhados por diversas disciplinas sendo que os pontos de vista de cada uma delas possam se complementar a fim de enriquecer a compreensão da realidade. Uma proposta pedagógica que contempla uma abordagem curricular interdisciplinar é o trabalho com projetos de aprendizagem (FAGUNDES; SATO; MAÇADA, 1999). De acordo com os autores, este trabalho pode ser caracterizado como uma metodologia que privilegia a aprendizagem do aluno em detrimento das metodologias de ensino. Como a elaboração do projeto requer a explicação de um dado fenômeno, escolhido pelo aluno ou grupo de alunos, e não somente sua descrição, os estudantes são desafiados a construir a resposta para o que desejam saber e não somente buscar informações prontas, fornecidas por disciplinas estanques. No que se refere ao trabalho colaborativo envolvendo diversos professores, ou seja, a equipe de docentes, pode-se levar em consideração a necessidade de se estabelecer a compreensão mútua e a elaboração de um vocabulário compartilhado, conforme apontado por Piaget (1966). Quando dois ou mais professores se propõe a realizar um trabalho conjunto, é necessário que o diálogo seja uma constante a fim de que as diretrizes deste trabalho possam ser estabelecidas de comum acordo e para que haja uma verdadeira integração de propostas e objetivos. Finalmente, acredita-se ser necessário proporcionar interlocuções entre a educação e outras áreas de conhecimento, tais como a psicologia, a filosofia e a sociologia, a fim de que, a partir do olhar dessas áreas, ela possa pensar suas próprias limitações e dificuldades, pois, conforme Piaget (1966), uma teoria ou área de saber pode encontrar em outras alguns elementos que a ajudem a refletir sobre sua própria nãocontradição, seus limites e os desafios a serem enfrentados. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 51 Considerações finais Neste artigo apresentamos uma análise do conceito de interdisciplinaridade conforme proposto por Piaget em diversas obras suas dedicadas ao tema. Com essa apresentação, objetivamos trazer à tona e analisar algumas produções do autor nas quais ele explicita o conceito a fim de pensarmos as contribuições que ele pode trazer para o âmbito educativo. Embora as pesquisas de Piaget acerca da interdisciplinaridade não tenham como foco prioritário a educação, este campo de saber e prática foi objeto de reflexão deste autor, além do que, estas pesquisas foram e ainda são utilizadas por uma ampla gama de pesquisadores desta área. Neste sentido, acreditamos que a concepção de interdisciplinaridade proposta por ele permite pensarmos a prática e pesquisa educacional como um espaço possível para o estabelecimento de assimilações recíprocas entre as diversas disciplinas que o compõe contribuindo assim para uma abordagem mais integrada e menos fragmentária, tanto no que se refere à proposta curricular quanto à prática pedagógica. Referências BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 9394/96. http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/lei9394.pdf. Acesso em: 10 junho 2009. Disponível em: FAGUNDES, L.C.; SATO, L.S.; MAÇADA, D.L. Projeto? O que é? Como se faz? Aprendizes do futuro: as inovações começaram! 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A interdisciplinaridade como um movimento articulador no processo ensinoaprendizagem. Revista Brasileira de Educação, v. 13 n. 39, set./dez. 2008, p. 545-554. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 52 A inteligência como Adaptação: relação entre Acomodação e Assimilação SILVA, Tathiane Ananias da Graduanda em Pedagogia Instituto de Ensino Superior de São Manoel ANGÉLICO, Raphaele Afonso Graduanda em Pedagogia Instituto de Ensino Superior de São Manoel MARÇAL, Vicente Eduardo Ribeiro Professor Assistente da Universidade Federal de Rondônia – UNIR Membro do GEPEGE [email protected] Resumo Este artigo tem a finalidade de informar como a inteligência se constrói na criança segundo Jean Piaget, tendo em vista que sua preocupação central foi responder à questão de como se constrói o conhecimento. Piaget defende que a inteligência é um processo adaptativo e que a sua função é estruturar o universo, da mesma forma que o organismo estrutura o meio ambiente. Portanto o presente artigo descreverá o processo de adaptação e organização, assim como a assimilação, acomodação e equilibração tendo em vista chegar á conclusão de como o conhecimento é construído pela criança, para que com essa resposta possa auxiliar na compreensão do como a criança aprende. Jean Piaget, para explicar o desenvolvimento intelectual, partiu da ideia que os atos biológicos são atos de adaptação ao meio e organizações do meio ambiente, sempre procurando manter um equilíbrio, ou seja, a organização é inseparável da adaptação, essa que por sua vez é a essência do funcionamento intelectual. A organização é a habilidade do individuo de integrar as suas estruturas prévias em sistemas coerentes. Entenderemos também que a assimilação é o processo cognitivo pelo qual uma pessoa integra um novo dado perceptual, motor ou conceitual às estruturas cognitivas prévias, e que a chamada acomodação é toda modificação dos esquemas de assimilação sob a influência de situações exteriores ao quais se aplicam. E que equilibração trata de um ponto de equilíbrio entre a assimilação e a acomodação. Este artigo tem o intuito de esclarecer sobre a questão de como o conhecimento é adquirido com base na teoria de Piaget, visando ajudar a entender a respeito de como a criança aprende, portanto os presentes escritos dirigem-se à atuais e futuros professores e a todos que se interessarem em saber sobre como se dá o desenvolvimento intelectual na criança. Palavras-chaves: Inteligência. Construção do conhecimento. Desenvolvimento intelectual. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 53 Abstract This article has the purpose of informing how the intelligence if it builds in the child according to Jean Piaget, having in mind what his central preoccupation answered to the question of as if it builds the knowledge. Piaget defends that the intelligence is an adaptive process and that his function is to structure the universe, like the organism structures the environment. So the present article will describe the process of adaptation and organization, as well as the assimilation, accommodation and equilibration having in mind to bring a conclusion near of as the knowledge is built by the child, so that with this answer it can help to a understanding all how the child learns. Jean Piaget, to explain the intellectual development, broke of the idea that the biological acts are acts of adaptation to the physical way and organizations of the environment, always trying to maintain a balance, in other words the organization is inseparable of the adaptation, that one that for his time is the extract of the intellectual functioning. And the organization to skill of an individual of coherent systems. We will understand also that the assimilation is the cognitive process for which a person integrates a new fact perceptual, driving or conceptual to the prior cognitive structures, and that the called accommodation is any modification of the schemes of assimilation under the influence of exterior situations to which devote themselves. And which equilibration is treated as a break-even point between the assimilation and the accommodation. This article has the intention of explaining on the question of as the knowledge is acquired on basis of the theory Piaget, aiming to help to understand as to as the child learns, so the written presents direct to current and future teachers to themselves and to all who will be interested in knowing be left as the intellectual development happens in the child. Keywords: Intelligence. Construction of the knowledge. Intellectual development. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 54 Introdução Para se entender o desenvolvimento da inteligência na criança, partiremos de alguns princípios elaborados por Jean Piaget, que afirma ser a inteligência uma forma de adaptação do organismo ao meio para sua própria sobrevivência, tendo essas adaptações graus diferenciados indo do menor para o maior em complexidade. Falaremos também em linhas gerais sobre as invariantes intelectuais como assimilação, acomodação e organização e como o processo de equilibração entre essas invariantes dá condições ao organismo de constituir suas estruturas, o que lhe permite elaborar o próprio o Real. A análise dessas invariantes permite “[...] conciliar os aspectos epistemológicos, psicológicos e biológicos [ao entender a adaptação] como a transformação ativa desse sistema de esquemas de ação que possibilitam maior interação entre o sujeito-organismo e o próprio meio que o cerca [...]” (MARÇAL, 2009, p. 32, grifo do autor), além de se compreender a organização como a habilidade do organismo de integrar suas estruturas prévias em sistemas coerentes. Assim, para Piaget o conhecimento é a ação sobre o objeto, e através da inteligência, o homem pode progredir e construir o conhecimento cada vez maior e melhor. A Formação da Inteligência Enquanto Adaptação A formação da inteligência e da atividade natural dos conhecimentos, para Piaget, é parte da própria adaptação do organismo por seu modo de formação e de seu desenvolvimento. Ele divide a inteligência em duas metades que se mantém iguais em todos os seres humanos: a inteligência como função e a inteligência como estrutura. A inteligência como função é essencial para os seres humanos e consiste em compreender, inventar e construir estruturas que possibilitam ao sujeito elaborar o Real. É o processo da adaptação do organismo ao meio, visando a transformação que amplia a probabilidade de sua sobrevivência. Isso implica que para se compreender uma situação, fenômeno ou acontecimento é preciso que o individuo seja capaz de reconstruir re-elaborar as transformações que levam ao resultado, ainda que para acontecer essa reconstrução, seja preciso, primeiramente, organizar as estruturas dessas transformações, isto é, inventar e reinventar. Mas a invenção aqui, não supõe a descoberta de realidades já existentes, pelo contrário, a compreensão subordina-se à invenção, considerando a última a expressão de um organismo com estruturas de conjunto. A formação da inteligência não obedece às leis da “aprendizagem”, mas sim, consiste na ação derivada do conhecimento, não no sentido da profunda associação do real com as necessárias coordenações da ação. Para Piaget, conhecer o objeto é agir sobre ele e transformá-lo, aprendendo os mecanismos dessa transformação vinculados com as ações transformadoras. Conhecer é assimilar o real I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 55 às estruturas de transformação. A inteligência deriva da ação, e ainda consiste em executar e coordenar as ações, que, nas fases posteriores ao Sensório Motor, se dará de forma interiorizada e reflexiva. A inteligência como estrutura é uma organização, ou seja, um conjunto de processos, podendo ser superior ou inferior dependendo do seu grau de complexidade. Para Piaget, crescer é reorganizar a inteligência para ter mais possibilidades de interpretação do meio e do objeto de conhecimento. Tornar seu algo que é do mundo. Piaget ainda diz que a inteligência é condicionada pela hereditariedade, e divide esta em dois grupos. Biologicamente o desenvolvimento intelectual está diretamente afetado através da hereditariedade, mesmo que em seus dois sentidos diferentes. No primeiro grupo, os fatores hereditários estão vinculados à constituição do sistema nervoso e dos órgãos sensoriais, influenciam na construção das noções mais fundamentais, por exemplo nossa visão intuitiva do espaço está ligada à essas noções mesmo que consigamos elaborar espaços puramente dedutivos. Esses fatores do primeiro grupo, embora úteis, são extremamente limitados, enquanto que no segundo grupo encontramos a atividade dedutiva e organizada da razão que é ilimitada e que conduz ao domínio do espaço e que ultrapassa toda a intuição. Esse segundo tipo de realidades hereditárias é de suma importância para o desenvolvimento da inteligência, porque se existe um centro funcional do intelecto que é programado biologicamente, é evidente que esse centro se orientará para sucessivas estruturas elaboradas pela razão em contato com o real. Para Piaget, o homem é um ser inacabado, que traz hereditariamente uma estrutura que necessita da interação com o meio para que se forme e desenvolva. Invariantes funcionais da inteligência Para Piaget, as invariantes funcionais da inteligência são o mecanismo funcional do pensamento, destacando em termos biológicos, o que é comum a todas as estruturações de que a vida é capaz. A primeira invariante é a adaptação. Sobre ela, ele diz: É a relação fundamental própria do conhecimento, que é a relação entre o pensamento e as coisas. O organismo adapta-se construindo materialmente novas formas para inseri-las do universo, ao passo que a inteligência prolonga tal criação construindo, mentalmente, as estruturas suscetíveis de aplicarem-se às do meio. Num sentido e no começo da evolução mental, a adaptação intelectual é portanto, mais restrita do que a adaptação biológica, mas prolongando-se esta, aquela supera-a infinitamente; embora do ponto de vista biológico, a inteligência seja um caso particular da atividade orgânica e as coisas percebidas ou conhecidas sejam uma parcela limitada do meio a que o organismo tende a adaptar-se, opera-se em seguida uma inversão dessas relações.(PIAGET, 1987, p. 15-16) As invariantes mais genéricas conhecidas são: a organização e a adaptação. É comum entre os biólogos a definição de adaptação como simples conservação e sobrevivência, isto é, um equilíbrio entre o individuo e o meio, mas não seria essa a definição de vida? Para Piaget, existem graus de sobrevivência, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 56 e a adaptação implica justamente em mostrar o maior e o menor deles. Por isso “[...] há adaptação quando o organismo se transforma em uma função do meio, e essa variação tem por efeito um incremento do intercambio entre o meio e aquele, favorável à sua conservação, isto é, à conservação do organismo.” (PIAGET, 1987, p. 16). Em suma podemos dizer que “adaptação é um equilíbrio entre a assimilação e a acomodação” Sendo essas outras as invariantes de que falaremos. A adaptação do ser humano ao meio, segundo Piaget, se realiza através da ação portanto, é um processo continuo de organização biológica que evolui ou se desenvolve em interação com o meio. Para ele a adaptação significa, literalmente, que o meio efetivo de um organismo está tão relacionado ao organismo quanto o organismo ao seu meio. Assimilação: integrar novas informações em esquemas existentes. O próprio Piaget define a assimilação como (PIAGET, 1996, p. 13) : [...] uma integração às estruturas prévias, que podem permanecer invariáveis ou são mais ou menos modificadas por esta própria integração, mas sem descontinuidade com o estado precedente, isto é, sem serem destruídas, mas simplesmente acomodando-se à nova situação. Assim, a assimilação é comparada à compreensão de determinado fato em termos de um esquema ou conceito generalizado, o conhecimento de um fato particular exige uma assimilação à esquemas. A assimilação está totalmente ligada à invariante da inteligência acomodação dita por Piaget como ponto genérico referente as noções mais difíceis da acomodação, do conteúdo ou do objeto de conhecimento. Já no estágio sensório-motor o estimulo sensorial não leva ao conhecimento, a menos que haja um esquema estruturado, pronto para a assimilação e a acomodação. O bebê, num primeiro momento não está aberto ao aspecto “figurativo”, como por exemplo o ruído dos aviões, porque os esquemas mínimos exigidos como pré-requisitos da assimilação/acomodação não estavam disponíveis, ou ainda não estavam construídos. Poderíamos expor essa criança inúmeras vezes a esse ruído e mesmo assim não alteraria a situação, a menos que com o passar do tempo a criança desenvolvesse esquemas adequados para assimilar tal fato. Piaget emprega o paradigma assimilação/acomodação em todas as manifestações das atividades cognitivas. O processo cognitivo tem dois rumos, um voltado para dentro que assimila o objeto do conhecimento às estruturas internas conhecidas; e outro voltado para fora, que acomoda um esquema interno em instâncias particulares. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 57 Uma das outras invariantes da inteligência é a acomodação: mudança nos esquemas existentes pela alteração de antigas formas de pensar ou agir. Vejamos a definição dada por PIAGET (1996, p. 18): Chamaremos acomodação (por analogia com os “acomodatos” biológicos) toda modificação dos esquemas de assimilação sob a influência de situações exteriores (meio) ao quais se aplicam. Wadsworth (1996, p. 7) diz que “A acomodação explica o desenvolvimento (uma mudança qualitativa), e a assimilação explica o crescimento (uma mudança quantitativa); juntos eles explicam a adaptação intelectual e o desenvolvimento das estruturas cognitivas”. Acomodação no sentido formulado por Jean Piaget pode ser entendida como um dos mecanismos da adaptação que estruturam e impulsionam o desenvolvimento cognitivo. É o processo pelo qual os esquemas mentais existentes se modificam em função das experiências e relações com o meio. É o movimento que o organismo realiza para se submeter às exigências exteriores, adequando-se ao meio. O outro mecanismo da adaptação é a assimilação, que consiste no processo pelo qual os dados das experiências são incorporados aos esquemas de ação e aos esquemas operatórios existentes, num movimento de integração do meio pelo organismo. O processo de regulação entre a assimilação e a acomodação é a equilibração. Em algumas atividades mentais predomina a assimilação (jogo simbólico) e em outras predomina a acomodação (reprodução). Para Piaget, o desenvolvimento cognitivo do indivíduo está sempre passando por equilíbrios e desequilíbrios. Isso se dá com a mínima interferência, seja ela orgânica ou ambiental. Para que passe do desequilíbrio para o equilíbrio são acionados dois mecanismos: assimilação e acomodação, como nos diz Marçal (2009, p. 106): Caso a perturbação – o surgimento de um objeto desconhecido, por exemplo – seja análoga às situações anteriores, o sujeito-organismo a assimilará aos esquemas conhecidos, dando significação à nova situação, adaptando-se, sem mais, à perturbação e restaurando o equilíbrio. Caso a perturbação não seja análoga às situações anteriores, o sujeito-organismo modificará sua forma de ação, ou seja, acomodará seu sistema de esquemas de ação para que a nova situação possa ser assimilada e, assim, ser significativa ao sujeito-organismo Assim, podemos entender a inteligência como acomodação, pois há assimilação, devido justamente, à incorporação dos dados da experiência pelo indivíduo. Uma vez que assimilou uma nova experiência, vai formar um novo esquema ou modificar, por acomodação, o esquema antes vigente, pois “[...] esse processo de re-equilibração do sujeito-organismo não é caracterizado por um automatismo mecânico, mas por condutas, no sentido de uma reação total do próprio organismo [...]” (MARÇAL, 2009, p. 106). Então, na medida que ele compreende aquele novo conhecimento ele se apropria dele e se I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 58 acomoda, aquilo passa a ser normal, há portanto equilibração entre assimilação e acomodação. Esse processo de equilibração no qual o organismo assimila e se acomoda ao novo é chamado de adaptação. Pode-se dizer, que é dessa forma que se dá o processo de desenvolvimento cognitivo humano, o qual está representado no diagrama a seguir (cf. MARÇAL, 2009, p. 107): I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 59 Conclusões Sabemos que Piaget (cf. WADSWORTH, 1996), quando expõe os conceitos de assimilação e de acomodação, deixa claro que da mesma forma como não há assimilação sem acomodações (anteriores ou atuais), também não existem acomodações sem assimilações, mas há uma equilibração entre esses dois pólos. A teoria da equilibração (cf. WADSWORTH, 1996), de uma maneira geral, trata de um ponto de equilíbrio entre a assimilação e a acomodação e, assim, é considerada como um mecanismo autoregulador necessário para assegurar à criança uma interação eficiente dela com o meio-ambiente. A equilibração é um meio auto-regulador pelo qual se dá o processo de desenvolvimento mental da criança. A importância da teoria da equilibração, é notada principalmente quando se entende que todo esquema de assimilação tende a alimentar-se, i. e., a incorporar os elementos do meio, portanto que lhes são exteriores, e para os quais já está pronto, contudo, pode, também, ser obrigado a se acomodar diante dos elementos que assimila sem, contudo, perder a continuidade, ou seja, seu fechamento enquanto ciclo, nem suas capacidade assimiladora já adquirida. Podemos entender, em outras palavras, que o equilíbrio cognitivo é o processo natural existente entre assimilação e acomodação. É pela equilibração que as estruturas modificadas se constroem e se conservam em caso de acomodações bem sucedidas. Portanto a equilibração é fundamental, pois se uma pessoa só assimilasse acabaria com alguns esquemas existentes. Por fim, sobre esse processo de equilibração entre a assimilação e a acomodação, podemos dizer que essa relação se dá por três formas básicas, a primeira é a que se dá devido à interação entre sujeito e objeto, entre a assimilação dos objetos aos esquemas e a acomodação dos esquemas aos objetos. A segunda forma é a que assegura as interações entre os esquemas, ou seja, intervém nas interações entre as partes, e a terceira é a que assegura as interações entre os esquemas e a totalidade. Dessa forma podemos entender a inteligência como adaptação na Epistemologia Genética de Jean Piaget. Referências CHIAROTTINO, Z. R. Psicologia e epistemologia genética de Jean Piaget. São Paulo: EPU, 1988. 79p. FURTH, H. G. Piaget e o conhecimento: fundamentos teóricos. Rio de Janeiro: Forense universitária Ltda, 1974. 300p. MARÇAL, V. E. R. O esquema de ação e a constituição do sujeito epistêmico: contribuições da epistemologia genética à teoria do conhecimento. 2009. 115f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2009. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 60 PIAGET, J. Os pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1978. 294 p. PIAGET, J. Psicologia e Pedagogia. Rio de Janeiro: Forense universitária Ltda, 1998. 184 p. PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. 4. Ed. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. 389p. PIAGET, J. Construção do Real na Criança. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. 360p. PIAGET, J. A Epistemologia Genética e a Pesquisa Psicológica. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974. PIAGET, J. A Formação do Símbolo na Criança. Imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Trad. Alvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. PIAGET, J. A Linguagem e o Pensamento da Criança. Trad. Manuel Campos. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959. 307p. PIAGET, J. Aprendizagem e Conhecimento. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979. WADSWORTH, B. J. Inteligência e afetividade da criança na teoria de Piaget. 5. ed. São Paulo: Thomson Pioneira, 1996. 204p. WIKIPEDIA. Acomodação Jean Piaget, 24 jun. 2009. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Acomoda%C3%A7%C3%A3o_(Piaget). Acesso em: 24 jun. 2009. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 61 2. Conhecimento Matemático Sobre a Função Proposicional no Sujeito Epistêmico em Jean Piaget FERREIRA, Rafael dos Reis Universidade Estadual Paulista (UNESP) Dr. TASSINARI, Ricardo Pereira Universidade Estadual Paulista (UNESP) e-mail: [email protected] Resumo Um dos elementos mais fundamentais da Lógica Operatória de Jean Piaget é a Função Proposicional, sua gênese e utilização, e sua relação com a Epistemologia Genética e a Psicologia Genética. Nesse sentido, apresentaremos, nessa comunicação, os resultados parciais de nossa pesquisa que tem como ponto central o seguinte problema: como o Sujeito Epistêmico usa ou se torna capaz de usar Funções Proposicionais? Trataremos aqui, em particular, da relação entre Epistemologia Genética e Psicologia Genética, do Psicologismo em Filosofia, da relação entre Epistemologia Genética e Filosofia e do papel que a Função Proposicional e a Lógica Operatória desempenham na Epistemologia Genética. Palavras-chave: Sujeito Epistêmico. Função Proposicional. Epistemologia Genética. Lógica Operatória. Abstract One of most fundamental elementaries of Jean Piaget’s Operative Logic is Propositional Function, its genesis and use, and its relation with the Genetic Epistemology and Psychology. In this way, we will present in this communication the partial results of our research, which the central part is the following problem: how the Epistemic Subject use or is able to use Propositional Function? We will treat here, in particular, the relation between Genetical Epistemology and Genetical Psychology, the psychologism in the Philosophy, the relation between Genetical Epistemology and Philosophy, and the role that the Propositional Function and the Operative Logic have in the Genetical Epistemology. Keywords: Epistemic Subject. Propositional Function. Genetical. Epistemology. Operative Logic. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 62 Introdução Segundo Piaget (1976, p. 1), “[...] a lógica conquistou a posição de ciência propriamente dita, graças aos métodos precisos que substituíram os procedimentos simplesmente reflexivos e verbais da lógica clássica”. No entanto, como observou “[...] o consenso deixa de ser geral quando se trata da significação a ser atribuída aos princípios, ou mesmo do objetivo a ser atingido e dos métodos a serem seguidos”. (PIAGET, 1976, p. 1). Dentre os problemas dessa significação dos princípios, objetivos e métodos, principalmente no que tange à relação sujeito-objeto do conhecimento, surge a questão da relação entre Psicologia e Lógica. De especial importância para nós, aqui, é a relação entre Psicologia Genética e Epistemologia Genética. Psicologia e Epistemologia Genética Piaget (1973, p. 32), em sua obra Psicologia e Epistemologia, disse que: “A psicologia genética é a ciência cujos métodos são cada vez mais semelhantes aos da biologia”, enquanto que “A epistemologia, em compensação, passa, em geral, por parte da filosofia, necessariamente solidária a todas as outras disciplinas filosóficas e que comportam, em consequência, uma tomada de posição metafísica”. (PIAGET, 1973, p. 32). Sendo ainda que, “O primeiro objetivo que a epistemologia genética persegue é, pois, por assim dizer, de levar a psicologia a sério e fornecer verificações em todas as questões de fato que cada epistemologia suscita necessariamente”. (Piaget, 1973, p. 13). Desse modo, escreve Piaget, na mesma obra, que: Em lugar de se indagar o que é o conhecimento em geral ou como o conhecimento científico (tomado também em bloco) é possível, o que produz, naturalmente, a constituição de toda uma filosofia, podemos limitar-nos, pelo método, ao problema ‘positivo’ seguinte: como aumentam os (e não o) conhecimentos? [...] É desta epistemologia genética ou científica que falaremos aqui para mostrar quanto a psicologia da criança é capaz de trazer-lhe concurso talvez não negligenciável. (p. 32). Piaget, então, com base em seu método, limita-se ao problema de como aumentam os (e não o) conhecimentos, realizando uma investigação que remonte às origens e desenvolvimentos das estruturas necessárias ao nosso conhecimento. Nesse sentido, o autor procurará mostrar que a psicologia da criança é essencial para compreender o processo de formação dessas estruturas, pois, como escreve o autor, ainda em Psicologia e Epistemologia: Realmente, se todo conhecimento é sempre vir a ser e consiste em passar de um conhecimento menor para um estado mais completo e mais eficaz, é claro que se trata de conhecer esse vir a ser e de analisá-lo da maneira mais exata possível. Entretanto, esse vir a ser não decorre do acaso, mas constitui um desenvolvimento e como não existe, em nenhum domínio cognitivo, começo absoluto até o I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 63 desenvolvimento, este mesmo deve ser examinado desde os estágios denominados de formação [...] (PIAGET, 1973, p. 12). Notemos ainda que a Epistemologia Genética comporta uma análise da História da Ciência, além de ser uma epistemologia da Psicologia Genética. Segundo Piaget (1973), além das estruturas psicológicas possibilitarem o conhecimento científico contemporâneo, é possível traçar uma analogia entre as operações mais gerais de formação das operações intelectuais (presente na História da Ciência) com a experiência no terreno da psicogenética. Nesse sentido, as etapas da causalidade no pensamento individual, por exemplo, é análoga às etapas do desenvolvimento da causalidade na história do pensamento científico. Assim, diz-nos o autor, na Introdução à Epistemologia Genética, que “[...] o método completo da epistemologia genética está constituído por uma elaboração íntima dos métodos histórico-crítico e psicogenético”. (PIAGET, 1950, p. 17, tradução nossa). Ou seja, como salienta Piaget (1978, p. 4) “[...] se esse gênero de análise [a Epistemologia Genética] comporta uma parte essencial de experimentação psicológica, de modo algum significa, por essa razão, um esforço de pura psicologia.” Retornaremos mais adiante, na Seção a Epistemologia Genética à questão da classificação de Piaget, como “Psicologista”. Antes, analisaremos a questão da relação entre Psicologia e Filosofia. Sobre o Psicologismo em Filosofia Voltamo-nos, então, para o tema mais amplo da relação entre Lógica e Psicologia. Existe uma corrente filosófica, conhecida como Psicologismo, que tende a considerar a Psicologia como o conhecimento que explicaria todos os outros conhecimentos. Por via desta corrente, argumenta-se que, se todo conhecimento é um conhecimento elaborado pelo homem e se este homem é objeto de uma psicologia, então esta psicologia seria a pedra base que fundamentaria a árvore do conhecimento, pois seria o conhecimento do conhecimento. Nesse sentido, se quisermos investigar a essência das coisas, torna-se necessário elaborar um conhecimento de psicologia suficientemente sólido para servir à explicação dos outros conhecimentos. De acordo com tais necessidades, surge na História da Filosofia, segundo Mora (2001, p. 2414), “[...] a tendência a ‘reduzir’ a lógica e a teoria do conhecimento à psicologia, ou então a tratar as noções lógicas e epistemológicas principalmente por meio de conceitos de caráter psicológico”. O Psicologismo compreende um conjunto de autores que, segundo Mora (2001, p. 2414), tendem a estudar a Lógica, por exemplo, como a ciência do pensar ou dos pensamentos. Segundo esta tendência, se as leis da Lógica são igualmente leis do pensamento e se um dos objetos da Psicologia são as leis do I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 64 pensamento, então a Lógica é um dos objetos da Psicologia. Observa Mora (2001, p. 2414) que, para os pensadores do psicologismo, caberia à Psicologia, então, investigar os fatos do pensamento, como, por exemplo, descrevendo os juízos, os raciocínios, os conceitos etc., isto é, como se pensa; ou, em uma análise prescritiva e normativa, caberia tal ciência examinar a Lógica como leis do pensamento, ou seja, investigar como se deve pensar. Locke (1999, p. 57), por exemplo, um psicologista empirista, procura argumentar, no Ensaio Sobre o Entendimento Humano, que “Todas as ideias derivam da sensação ou reflexão [...] pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma ideia”. Para Locke (1999, p. 38) até mesmo o princípio da identidade não prova a existência de ideias inatas. Considera o autor que tal princípio não é universal, pois segundo ele “Não são conhecidas por grande parte da humanidade”, isto é, “Não se encontra naturalmente impressas na mente porque não são conhecidas [por exemplo] pelas crianças, idiotas etc.”. No entanto, muitos autores, entre eles Frege e Husserl, colocaram-se contrários ao psicologismo. Frege, por exemplo, nos Fundamentos da Aritmética, nos diz que o psicologismo suprime o nosso conhecimento verdadeiro das coisas. Quanto a isso, escreve o autor: Imagina-se, pelo que parece, que os conceitos nascem na alma individual como as folhas nas árvores, e pretende-se ser possível conhecer sua essência por meio da investigação de sua gênese, que se procura explicar psicologicamente a partir da natureza humana. Mas esta concepção lança tudo no subjetivo e, levada às últimas consequências, suprime a verdade. (HURSSEL, 1980, p. 202). Ora, delegar, pois, à Psicologia os fundamentos do conhecimento é, segundo o autor, negar o conhecimento objetivo e impossibilitar a ciência, pois migraríamos para as incertezas do relativismo e supriríamos, com efeito, a verdade. Nesse sentido, o pensador argumenta, na mesma obra, que: “Se nor fluxo constante de todas as coisas nada se mantivesse firme e eterno, o conhecimento do mundo deixaria de ser possível e tudo mergulharia em confusão.” (HUSSERL, 1980, p. 2002). Frege usa o termo alemão “Gedanke” para expressar o conhecimento firme e eterno supracitado. Traduz-se “Gedanke” por pensamento ou ideia. O que Frege quer dizer por “Gedanke” não é algo subjetivo, uma atividade mental, assim como as palavras “pensamento” ou “ideia” poderiam comumente entrever. O autor quer expressar por “Gedanke” algo que existe independente de nós, que pode ser expresso por sentenças e é compreendido por muitos, portanto, objetivo. Escreve em sua O Pensamento, que “O pensamento não pertence nem a meu mundo interior, como uma ideia, nem tampouco ao mundo exterior, ao mundo das coisas sensorialmente perceptíveis”. (FREGE, 2002, p. 35). O pensamento é, para o autor, algo objetivo. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 65 Vemos, assim, que se assumirmos os pressupostos da existência das leis da lógica como o fio de prumo para a correção do raciocínio, a Lógica poderia ser a base mais elementar do conhecimento, pois existe a noção metodológica de que para se pensar corretamente é preciso, primeiramente, explicitar as leis do pensar correto. Por outro lado, se aceitarmos os pressupostos de um sujeito psicológico como o centro do conhecimento, a Psicologia seria, então, o fundamento do conhecimento humano. Transitamos, assim, de um extremo a outro de concepções aparentemente opostas. A Epistemologia Genética e sua relação com a Filosofia Para enriquecer o debate filosófico contemporâneo acerca da relação entre o sujeito epistêmico e o objeto do conhecimento, bem como da possibilidade de fundamentação do conhecimento humano, Piaget propôs, no século passado, uma concepção distinta das anteriores, um sujeito epistêmico que conhece. Esse sujeito epistêmico constrói seu conhecimento, e as estruturas necessárias a esse, a partir de suas ações com o meio. A originalidade do pensamento de Piaget consiste, sobretudo em escrever uma teoria do conhecimento com base na noção de gênese das estruturas da razão e na ideia kantiana, de que as estruturas ou, nos termos piagetianos, os esquemas da razão, condicionam nosso conhecimento das coisas (LOURENÇO, 2008). O termo “gênese” é usado no sentido de origem e de desenvolvimento da razão e não está relacionado à ciência Genética. Podemos com isso fazer relações de Piaget com um kantismo evolutivo. Em especial, Ramozzi-Chiarottino (1984, p. 29) defende “[...] a obra de Piaget como uma retomada da problemática kantiana que se resolverá à luz da Biologia e da concepção do ser humano como um animal simbólico”. Segundo Lourenço (2008, p. 249-250), devemos observar, porém, que o kantismo evolutivo de Piaget não se restringe à filosofia de Kant. Para Kant “[...] embora o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência” e: [...] há um tal conhecimento independente da experiência e mesmo de todas as impressões dos sentidos. Tais conhecimentos denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes a posteriori, ou seja, na experiência. (KANT, 1983, p. 22). Para Kant existem, assim, estruturas ou esquemas, ou melhor, “as formas a priori”, que parecem ser fixas e imutáveis, previamente contidos nas capacidades racionais. Biólogo de formação, influenciado pelas discussões da biologia evolutiva e pelos trabalhos de Spencer e Bergson, que dão um tratamento I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 66 biológico à teoria do conhecimento, Piaget não poderia aceitar as considerações kantianas sobre as estruturas prévias da razão sem entender seus mecanismos formadores. Escreve Lourenço (2005, p. 250) que “A inteligência e o conhecimento são, segundo eles [Spencer e Bergson], o resultado de todo o processo evolutivo e, como a vida, formas de ajustamento e adaptação ao meio [...] O conhecimento não é apenas contemplação; é também execução e ação”. Bergson escreveu em A Evolução Criadora que: [...] a inteligência é a faculdade de fabricar instrumentos inorganizados, isto é, artificiais. Se, através dela, a natureza nega-se a dotar o ser vivo do instrumento que lhe servirá, é para que o ser vivo possa, de acordo com as circunstâncias, diversificar sua fabricação. A função essencial da inteligência será, pois, de deslindar, em quaisquer circunstâncias, o meio de sair de dificuldades. Ela irá procurar o que melhor lhe possa atender, isto é, inserir no quadro proposto. Ela recairá essencialmente sobre as relações entre a situação dada e os meios de a utilizar. (1979, p. 185). Sobre a influência de Bergson em seu pensamento, no seu tempo de adolescente, Piaget (1978a, p. 72) diz: “Em resumo, eu descobriria uma filosofia [a de Bergson] respondendo exatamente à minha estrutura intelectual de então”. Segundo Ramozzi-Chiarottino (1984, p. 33) “A ação, na concepção de Piaget, só pode ser entendida como parte do funcionamento de toda organização viva [...]”. Podemos dizer, com isso, que temos em Piaget algo como uma filosofia da ação, pois, para o pensador, as ações são condição necessária para a estruturação do mundo pelo sujeito dotado de cognição. Piaget se propõe, então, a resolver o clássico problema da fixidez ou da plasticidade da razão, sustentado pelas descobertas científicas da Biologia e também da Psicologia de seu tempo. Em particular é influenciado pelo ramo da Psicologia que, também, ajudaria a fundar, que é a Psicologia Genética. Segundo Lourenço (2005), em Piaget, com análise de casos da psicologia do sujeito, no que concerne às questões de fato sobre a forma do conhecimento humano, as epistemologias deixam o isolamento das ideias e ganham uma perspectiva de controle. No comprimento desta tarefa, Piaget analisa o comportamento infantil para compreender como nasce a inteligência e como se constituem os fundamentos da Razão. Piaget, ao realizar uma investigação sobre o comportamento infantil, na Psicologia Genética, procura elaborar uma epistemologia, conhecida como Epistemologia Genética, que vincula-se, metodologicamente, com os dados dessa psicologia. A teoria de Piaget ganha, com isso, não apenas análise de caráter psicológico, mas filosófico e, também, de dependência dos dados científicos. Tal atitude metodológica faz com que, muitas vezes, Piaget seja mal compreendido e receba o título de “positivista” e, principalmente, de “psicologista”. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 67 Quanto ao título de “positivista”, escreve Piaget (1978a, p. 5), na introdução de A Epistemologia Genética, que “Em poucas palavras se encontrará nestas páginas a exposição de uma epistemologia que é naturalista sem ser positivista [...]”. Nesse sentido, comenta Ramozzi-Chiarottino (1984, p. 29), que: [...] como ele [Piaget] disse repetidas vezes, nada há em seu sistema de ‘positivo’ a não ser o ocupar-se de fatos positivos que, não obstante, refutam o Positivismo enquanto forma de epistemologia que ignora ou substitui a atividade do sujeito em benefício apenas da constatação ou da generalização de leis constatadas. Piaget manifesta-se nestes termos em uma das passagens de sua obra Sabedoria e Ilusões da Filosofia, onde ele descreve um diálogo seu com o filósofo I. Benrubi, o qual classificara o próprio Piaget de “positivista”. O autor, na ocasião de sua conversa com o referido filósofo, argumentara que, se o positivismo é uma certa forma de epistemologia que ignora ou subestima a atividade do sujeito, a favor apenas da constatação ou da generalização das leis constatadas, então ele não pode ser compreendido como “positivista”, pois, como ele escreve: [...] tudo o que encontro mostra-me o papel das atividades do sujeito e a necessidade racional da explicação causal. Sinto-me bem mais próximo de Kant ou de Brunschvicg que de Comte, e próximo de Meyerson que opôs ao positivismo argumentos que verifico sem cessar (posta à parte a identificação). (PIAGET, 1978, p. 80). Piaget é, também, mal intitulado de “psicologista” pelo fato de ele, no exercício da Epistemologia Genética, recorrer à análise da psicologia do sujeito. Nesse sentido, escreve Lourenço (2008, p. 247-248) que: Piaget vira-se para a psicologia, porque era a disciplina que melhor poderia estabelecer a ligação entre a biologia e a epistemologia, as suas preocupações fundamentais – é uma ciência que, tendo suas raízes na biologia, desemboca na inteligência e nas formas cognitivas em que assenta toda a construção do conhecimento possível. No entanto, como vimos, no início desta Justificativa, o autor escreve que o fato de o gênero de análise da Epistemologia Genética comportar uma parte essencial de experimentação psicológica, de modo algum significa uma pura psicologia. Vale ressaltar que a Epistemologia Genética, além de estar inserida nos debates metafísicos da epistemologia, enriquece-se, também, de áreas afins do conhecimento, pois contou com: [...] a colaboração de especialistas em epistemologia da ciência considerada, psicólogos, historiadores das ciências, lógicos, matemáticos, cultores da cibernética, linguística, etc. Este tem sido sempre o método de nosso Centro Internacional de Epistemologia Genética, cuja atividade integral tem sido sempre de um trabalho de equipe. (PIAGET, 1978b, p. 5). Portanto, o autor procura argumentar que seu método, apesar de recorrer, também, a uma I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 68 psicologia, não é um fazer puramente de psicólogo, mas interdisciplinar. Além disso, escreve Furth (1974, p. 33) que: [...] Piaget estudou aquilo que é geral ou generalizável na estrutura cognitiva de um indivíduo; o objeto de sua investigação, como ele afirma, é o homem como conhecedor em geral, ao invés de um conhecedor singular, com uma individualidade singular. Nesse sentido, observa Lourenço (2008, p. 247) que o pano de fundo de sua teoria são questões e métodos de epistemologia, centradas em uma tentativa de naturalizar a epistemologia, cujo resultado é a Epistemologia Genética. Assim, as questões centrais de sua obra são fundamentalmente epistemológicas e não psicológicas, por isso, escreve Lourenço que ela deve merecer uma atenção especial dos filósofos. A Lógica Operatória e a Epistemologia Genética: a gênese Façamos, agora, uma breve análise de como se constitui a Lógica Operatória na Epistemologia Genética. Escreve Ramozzi-Chiarottino (1984, p. 32 - 33): Desde o início de suas observações do comportamento infantil, sua hipótese era a de que, assim como existem estruturas específicas para cada função no organismo, da mesma forma existiriam estruturas específicas para o ato de conhecer que produziriam o conhecimento necessário e universal sempre buscado pelos filósofos. Essas estruturas, ainda por hipótese, teriam uma gênese, isto é, não apareceriam prontas no organismo. Podemos notar, neste sentido, que a tese epistemológica central de Piaget, em consonância com os dados da experiência, conforme foi apresentada na introdução do Nascimento da Inteligência é de que há uma continuidade, muito mais fundamental do que se possa imaginar, entre a organização biológica do sujeito e suas estruturas mais abstratas. Desse modo, escreve o autor na obra: A inteligência verbal ou refletida baseia-se numa inteligência prática ou sensório-motora, a qual se apoia, por seu turno, nos hábitos e associações adquiridos para recombiná-los. Por outra parte, esses mesmos hábitos e associações pressupõem a existência do sistema de reflexos, cuja conexão com a estrutura anatômica e morfológica do organismo é evidente. Existe, portanto, certa continuidade entre a inteligência e os processos puramente biológicos de morfogênese e adaptação ao meio. (PIAGET, 1977, p. 13) Essa continuidade entre a organização biológica e as estruturas superiores da cognição é expressa pela complexificação gradual dos esquemas de ação que o sujeito constrói na sua interação com o meio. Relacionado às ações, temos, então, uma das noções centrais da Epistemologia Genética que é o esquema de ação. Para Piaget (1990, p. 15) “Um esquema é a estrutura ou a organização das ações, as quais se I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 69 transferem ou generalizam no momento da repetição da ação, em circunstâncias semelhantes ou análogas”. O esquema é, pois, uma estrutura da atividade do sujeito que, enquanto geral, isto é, comum às diversas ações de mesmo tipo, torna-se condição para a ação, sendo, portanto, a forma da ação, pois é uma estrutura que organiza a ação do sujeito sobre o mundo. Em outras palavras, o esquema de ação é, segundo Ramozzi-Chiarottino (1984, p. 34), o seguinte: [...] condição primeira da ação, ou seja, da troca do organismo com o meio. Ele é engendrado pelo funcionamento geral de toda organização viva, a adaptação. O organismo com sua bagagem hereditária, em contato com o meio, perturba-se, desequilibra-se e, para superar esse desequilíbrio, ou seja, para adaptar-se, constrói os esquemas. O esquema de ação guarda tanto uma relação com o aspecto biológico quanto com o aspecto intelectual. Citemos um exemplo retirado de O Nascimento da Inteligência (PIAGET, 1975b, p. 124): os esquemas de “sucção, preensão e visão” assinalam o início de um comportamento complexo, sendo um traço de união indispensável entre a adaptação biológica e intelectual. Em específico, objetos que são agarrados pela criança, nos primeiros meses, tendem a ser chupados ou olhados, e objetos que são olhados tendem a ser agarrados e chupados. Nesse sentido, através da coordenação sucessiva entre as ações de sucção e visão, o objeto é assimilado, adquirindo um conjunto de significações para o sujeito. A partir de experiências particulares de preensão, sucção e visão com o objeto, o sujeito as generalizam de forma a ter esquemas prévios, condição de sua ação, para aplicá-los às situações análogas. Vale observar, ademais, que um esquema se relaciona com outro, de modo a haver inter-relações entre esquemas, as quais se complexificam e são também condição para o nascimento da inteligência. Mais futuramente, nessa relação com o meio, temos, segundo Piaget (1973, p. 35-36), dois tipos de experiências: a “experiência física” e a “experiência lógico-matemática”. Segundo Ramozzi-Chiarottino (1984), a experiência física corresponde à concepção clássica de experiência, consistindo na ação do sujeito sobre os objetos de seu meio. As mais simples atividades do cotidiano são desta categoria, por exemplo: considerar as diferenças de peso, tamanho e volume entre outros dados do objeto. A experiência lógico-matemática constitui, no entanto, uma experiência mais elaborada, devido a uma abstração a partir das coordenações das ações e não apenas das propriedades físicas do objeto. Exemplifica Ramozzi-Chiarottino (1984, p. 38): No caso das relações entre a soma e a ordem de pedrinhas enumeradas por uma criança, é evidente que a ordem é introduzida nas pedrinhas pela ação (colocadas em fila ou em I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 70 círculo) do mesmo modo que a soma (devido a um ato de ligação ou reunião) [...] Notemos, na citação acima, um exemplo das operações mais simples da Lógica e da Matemática, a saber, a reunião e a constituição de uma série. As noções da lógica das classes e das relações se refletem, então, nas ações que criança realiza sobre o mundo. Assim, as ações lógico-matemáticas nascem, segundo Piaget, no berço da experiência e se constituirão com a ajuda de abstrações a partir das coordenações de esquemas de ação, até se tornarem noções abstratas. Segundo Ramozzi-Chiarottino (1984, p. 39): A Lógica e a Matemática expressariam a forma pura do funcionamento da Razão (ou seja, do conjunto das estruturas mentais). Esse funcionamento “organizante”, que implica a capacidade de estabelecer ligações de encaixe (inclusão), de ordem, de correspondência termo a termo, etc. (condição necessária de qualquer tipo de funcionamento), permite ao ser humano identificar conjuntos de elementos dotados de significado, inicialmente, no plano concreto, depois, no plano abstrato. Assim, a necessidade lógico-matemática não está contida no funcionamento orgânico das estruturas mentais, mas resulta deste funcionamento que é, aliás, condição de todo funcionamento possível. E, logo abaixo, conclui a autora que “A Lógica (independente que é da linguagem natural), então, estaria vinculada ou se originaria na ação, na medida em que é esta que possibilita as trocas do organismo com o meio, graças às quais há a construção (endógena) das estruturas mentais” (RAMOZZICHIAROTTINO, 1984, p. 39). A essa lógica, Piaget denomina de “Lógica Operatória”, propriamente tratada em sua obra intitulada Ensaio de Lógica Operatória29. A Lógica Operatória e a Epistemologia Genética: a caracterização da Lógica Operatória Segundo Piaget (1984, p. 39), o problema que deu origem ao Ensaio de Lógica é o seguinte: [...] compreender como se constituem as estruturas elementares de classe, de relações, de números, de proposições, etc., [...] e de procurar quais são suas relações com as ‘operações’ do pensamento ‘natural’, muito mais pobre e não formalizado. Nesse sentido, podemos notar que em Piaget, as operações lógico-formais são vinculadas também a uma psicologia do sujeito, isto é, a um conjunto de operações do pensamento “natural”, que retomam como, se propõe, a epistemologia proposta pelo autor às origem das estruturas do pensamento, a fim de compreender como se formam as estruturas elementares do sujeito epistêmico. 29 Denominaremos, a partir daqui, esta obra apenas por Ensaio de Lógica. Esta obra foi escrita em colaboração com o lógico J. B. Grize, sendo, pois, a segunda edição de uma obra denominada Tratado de Lógica: Ensaio de Logística Operatória, escrita apenas por Piaget, em 1949. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 71 Segundo o Piaget (1976, p. XVII) “A ideia central é a de que a formalização não é um estado, mas um processo, e que ela se apoia, consequentemente, em estruturas que se elaboram segundo níveis”. Notemos, desse modo, que o autor procura compreender as formas lógicas como resultante de um processo de construção, vinculadas tanto a uma psicologia como a uma sociologia das operações intelectuais do sujeito epistêmico. Sob tal ponto de vista, temos que Piaget compreende a Lógica como “[...] a axiomática das estruturas lógicas operatórias, da qual a psicologia e a sociologia do pensamento estudam o funcionamento real”. (1976, p. 14) A fim de justificar esta definição, Piaget (1976, p. 14) argumenta que existe de um lado a teoria formal e de outro a análise real, entre as quais temos uma relação muito semelhante àquela que há, por exemplo, entre a geometria axiomática e a geometria dos objetos físicos. Nesse sentido, escreve Piaget que a técnica de formalização exigida por uma axiomática da Lógica garante sua autonomia em relação à Psicologia e à Sociologia. A axiomatização, segundo autor (1976, p. 15), “[...] [por um lado] pode liberar uma ciência dedutiva de suas amarras intuitivas e [por outro] liberar um estudo concreto e causal de suas pressuposições normativas”. Piaget argumenta que a questão de como formalizamos nosso pensamento é uma questão que ultrapassa os limites do formalismo e pode ser tema de intersecção entre uma lógica e uma psicossociologia. Nesse sentido, escreve o autor que à “[...] cada estrutura formalizada corresponde a uma estrutura real, no pensamento comum ou, na ausência deste, no espírito do próprio lógico, etc.”; e, por outro lado, “[...] toda estrutura atingida pelas operações mentais do indivíduo, ou por uma cooperação interindividual, suscita o problema lógico de sua formalização possível [..]”. (PIAGET, 1976, p. 15). Próximos Passos... Nosso objetivo de continuidade da pesquisa é, então, procurar explicitar ainda o significado da definição de Lógica Operatória dada pelo autor e responder à questão de como é possível a Lógica Operatória. No interior dessa pesquisa, propomo-nos, em especial, a fazer uma análise mais profunda sobre a Função Proposicional, sua gênese e utilização. A Lógica Operatória e a Epistemologia Genética: a Função Proposicional Piaget (1976, p. 45), no Ensaio de Lógica, apresenta a Função Proposicional como um dos objetos mais elementares da Lógica Operatória. Na Definição 7 (§ 4 do primeiro capítulo), escreve: “Uma função proposicional ax é um anunciado nem verdadeiro nem falso, mas suscetível de adquirir um valor de verdade ou de falsidade segundo a determinação dos argumentos que substituem o argumento I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 72 indeterminado x.” Na definição, a exerce o papel de predicado e x o de sujeito. Desse modo, a partir da proposição, “este cravo é vermelho” temos o predicado “x é vermelho” que, indicado por a, nos conduz a e expressão formal ax. Mais adiante, Piaget trata da noção de quantificação em lógica. O autor denota o fato de pelo menos um x ter a propriedade a por (x )ax e o fato de todo x ter a propriedade a por (x)ax. O autor nos faz observar, então, com isso, que, ao exprimirmos essas noções de quantificação lógica, relacionamos as estruturas de encaixe de classes com as Funções Proposicionais. Neste sentido, vemos uma relação muito próxima entre Função Proposicional e classe lógica. Escreve Piaget (1976, p. 46), que “Reciprocamente, cada classe pode ser definida por qualquer função proposicional que será verdadeira para os membros da classe e falsa para os membros da classe complementar”. É dessa correlação que surge a definição de classe, elaborada por Piaget (1976, p. 49), a saber: “Definição 8. – Uma classe é o conjunto dos termos que podem ser substituídos uns pelos outros a título de argumentos conferindo um valor de verdade a uma função proposicional.” Depois de definir “classe”, o autor define “relação”. Encontramos uma relação quando, por exemplo, admitimos dois argumentos para as funções proposicionais, tal que temos a expressão axy. Neste caso, axy expressa uma relação a entre dois termos quaisquer x e y. Nesse sentido, a relação é assim definida: “Definição 9. – Uma relação é o que caracteriza um termo por intermédio de outro.” (PIAGET, 1976, p. 52). Vemos, assim, que o conceito de Função Proposicional contribui para a lógica das classes de das relações no que se refere a construção que o sujeito faz do Real. A questão que guiará a investigação mais específica neste trabalho é, então, a de saber como o sujeito epistêmico torna-se capaz de usar Funções Proposicionais, principalmente para a estruturação lógico-matemática que ele faz do Real. A nossa hipótese inicial é a de que a Função Proposicional é um esquema de operações que tem início no sensório-motor. Ora, visto que a Função Proposicional está imbricada com a lógica das classes e das relações, então investigá-la implica em investigar as classes e as relações. Dentre as Teorias do Conhecimento mais estruturadas e atuais, que buscam responder a questão da relação entre a lógica e o pensamento não formalizado, temos a Epistemologia Genética de Jean Piaget. Conforme escreveu Piaget (1978, p. XVI): I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 73 [...] o problema geral formulado pela epistemologia genética sendo o de procurar descobrir qual a relação entre a natureza do conhecimento em função de seus mecanismos formadores, é evidente que deveríamos incluir neste programa a análise da constituição das estruturas lógicas. Nessa perspectiva, sob o amparo de uma postura filosófica e crítica, no contexto dos debates epistemológicos e científicos atuais, verificaremos o quanto a teoria de Piaget pode fazer-nos compreender a natureza da função proposicional aliada às estruturas de um sujeito epistêmico. Nesse sentido, explicitaremos, no contexto da Epistemologia Genética, como é possível a Lógica Operatória e, em particular, como o sujeito epistêmico usa, ou se torna capaz de usar, funções proposicionais. Vale observar que a problemática central de nosso trabalho não é formulada literalmente por Piaget. Com base na teoria de Piaget, formulamos a questão que, nos termos em que foi formulada, faz sentido dentro da teoria, pois pode ser tratada e verificada a partir dos elementos teóricos fornecidos pela Epistemologia Genética. Para este fim, além das obras já citadas, usaremos também a Gênese das Estruturas Lógicas Elementares (1975c), que Piaget escreve em colaboração com Inhelder, bem como as obras O Nascimento da Inteligência na Criança (1975b), A Construção do Real na Criança (1970) e A Formação do Símbolo na Criança (1975a), as quais, segundo Piaget (1975b, p. 9), “[...] formam, pois, um todo consagrado aos primórdios da inteligência, isto é, às diversas manifestações da inteligência sensóriomotora e às formas mais elementares da representação.” Referências BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Abril Cultural, 1979. FREGE, F. L. G. Os fundamentos da aritmética: uma investigação lógico matemática sobre o conceito de número. São Paulo: Abril Cultural, 1980. ______. 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Para a análise das estruturas e dos processos mentais os pesquisadores da Epistemologia Genética têm por referência o Método Clínico-Crítico ou, simplesmente, Método Clínico. Todavia, os estudos de Piaget e da Escola de Genebra se ocupam, principalmente, do desenvolvimento em termos psicogenéticos, isto é, da evolução intelectual a partir da criança. No caso dos adultos, o Método Clínico precisa sofrer algumas adaptações, pois estes apresentam estruturas e processos de pensamento singulares. Em geral, o raciocínio mais apurado e rápido dos adultos pode levar à abertura de múltiplos possíveis e de incontáveis patamares de hipóteses que se reúnem em quadros dedutíveis simultâneos. É particularmente difícil averiguar um pensamento que pode seguir, ao mesmo tempo, mais do que um percurso, bem como descartar ligeiramente algumas hipóteses em favor de outras. O objetivo deste artigo é apresentar possibilidades metodológicas de pesquisa que atendam as especificidades do adulto. Em particular, abordaremos a prática do Método Clínico e suas nuances na aplicação com sujeitos maiores de 20 anos. Dada a variedade de operações lógico-matemáticas possíveis, destacaremos a investigação na perspectiva do sujeito psicológico e da construção da significação. Palavras-chave: Epistemologia Genética. Sujeito Psicológico. Processos Cognitivos Abstract The study of the adults’s thought has some methodological features that hinder the investigation. For the analysis of structures and mental processes of the researchers are reference Epistemology Genetics Clinical-Critical Method, or simply Clinical Method. However, the studies of Piaget and the Geneva School of dealing, mainly in terms of development psychogenetic ie the intellectual development from the child. For adults, the clinical method needs some adjustments suffer because they have structures and processes of thinking individuals. In general, the more accurate and quick thinking of adults can lead to the opening of multiple possible levels and countless chances to meet that deductible in tables simultaneously. It is particularly difficult to find a thought that may follow the same time more than one route, and slightly out some hypotheses in favor of others. This article aims to provide opportunities for methodological research that address the specifics of the adult. In particular, we discuss the clinical practice of the method and its nuances in the application subject to greater of 20 years. Given the variety of logical- mathematical operations possible, we highlight the research in view of the psychological subject and the construction of meaning. Keywords: Genetic Epistemology. Psychological Subject. Cognitives Process I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 76 Introdução No arcabouço teórico da Epistemologia Genética o estudo do desenvolvimento cognitivo pode se dar em duas dimensões: uma geral (o sujeito epistêmico) e outra particular (o sujeito psicológico). Piaget dedicou-se, na maioria das vezes, à primeira dessas possibilidades. O sujeito epistêmico refere-se às características mais gerais de estruturação mental. O foco está na investigação das grandes categorias do pensamento: espaço, tempo, causalidade, etc. Nesse sentido, as pesquisas piagetianas desdobraram-se na procura pelas operações lógico-matemáticas universais de cada estádio do desenvolvimento, tais como a presença da reversibilidade, da negação ou da reciprocidade. Para a investigação dessas operações, foi preciso que se abstraísse, dos problemas propostos, as peculiaridades dos conteúdos, ocupando-se do modo pelo qual o sujeito age sobre a tarefa. Por outro lado, além das estruturas gerais de pensamento, pode-se investigar os procedimentos de resolução de problemas, isto é, os aspectos funcionais do raciocínio. Neste caso, estaremos nos dirigindo para o sujeito psicológico, que se caracteriza por sua subjetividade, vontade, particularidade e complementação conceitual ao sujeito epistêmico; ou ainda, aquele em que suas características pessoais e exclusivas: formas de pensamento e ações particulares, adquirem relevância. Piaget estudou ao longo de toda a sua obra, em maior parte, as características de estruturação de maneira psicogenética, isto é, a partir da gênese dos conhecimentos originados na criança. Todavia, ele mesmo identificou dificuldades em compreender o pensamento do adulto. Dada às diversidades de experiências particulares anteriores e à organização mais sofisticada do pensamento do adulto, torna-se muito complicado identificar as características mais gerais de estruturação. De fato, se pensarmos em um sujeito que se encontra no estádio das operações formais, suas possibilidades de organização mental podem reunir quadros simultâneos de pensamento que dificultam em demasia o acompanhamento do raciocínio. Em função das particularidades de cada sujeito, as experiências individuais frente aos objetos são as mais distintas, ocasionando na vida adulta, diversas maneiras de compreender e assimilar os conteúdos. Assim, é possível encontrar nos adultos uma variedade bastante grande de comportamentos a respeito de problemas que são apresentados, visto que é possível encontrar distintos estados de significação e explicação das situações. Nesse sentido, acreditamos que é interessante investigar os procedimentos dos adultos frente aos problemas, isto é, à organização dos comportamentos em suas características processuais na dimensão do sujeito psicológico. Na Escola de Genebra, encontramos alguns autores que se dedicaram ao estudo dos aspectos funcionais (INHELDER e col., 1976; INHELDER & KARMILOFF-SMITH, 1981; INHELDER & CÉLLÉRIER, 1992). Todavia, o enfoque se manteve na ideia de gênese, isto é, sempre a partir da criança. Acreditamos que esses estudos podem ser continuados e adaptados à investigação dos adultos, tornandoI Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 77 se simultaneamente uma perspectiva de abordagem metodológica inovadora e de construção teórica sobre um momento ainda pouco explorado no que tange à inteligência. As pesquisas de Inhelder e colaboradores encontraram características comuns dos comportamentos que permitiram a construção de categorias em níveis análogos aos estudos epistemológicos, mas com foco nos processos empregados. Acreditamos ser possível investigar de maneira semelhante o pensamento do adulto a fim de se construir níveis de organização do funcionamento da inteligência, mesmo havendo a possibilidade de operações lógico-matemáticas mais elaboradas (KEBACH, 2008; SILVA, 2009). Para falar nestes diferentes níveis de condutas dos adultos é importante esclarecer que isto se tange na dimensão do sujeito psicológico. Os estudos na ótica do sujeito epistêmico permitem compreender a possibilidade de interação entre sujeito e objeto, todavia, os conteúdos influenciam fortemente as condutas. Os graus de novidade e complexidade das tarefas propostas perturbam as operações lógicomatemáticas que existem apenas no plano teórico do sujeito epistêmico. Levando em conta as características dos procedimentos, poderíamos investigar os conjuntos de comportamento que permitem diversos níveis de resolução dos problemas e de organização da inteligência. Se por um lado, o estudo da estruturação mental do adulto é muito difícil, torna-se interessante a consideração dos conteúdos e a dimensão do sujeito psicológico. Ainda que façamos uma divisão didática entre sujeito epistêmico e psicológico, é evidente que ela não se manifesta na realidade. Cada pessoa possui características comuns de seu desenvolvimento, que abrangem a dimensão do sujeito epistêmico; bem como comportamentos exclusivos que remontam ao estudo do sujeito psicológico. De fato, pode parecer, superficialmente, que estamos determinando que todos os adultos são sujeitos formais. Longe disso, pois temos claro que o desenvolvimento das estruturas lógico-matemáticas não depende apenas da maturação e da idade (Piaget, 1936, 1957). O que propomos é um outro escopo de análise. Acreditamos que o viés metodológico da pesquisa com adultos pode se ocupar das características processuais que os conteúdos específicos demandam, ainda que sofrendo influência da mobilidade lógico-matemática de sua estrutura mental. Antes de apresentarmos a abordagem metodológica que desenvolvemos para atender essas especificidades do adulto, apresentaremos uma construção teórica necessária para compreender o sujeito psicológico nesta perspectiva. A constituição do pensamento do adulto Quando se pensa o conhecimento a partir da Epistemologia Genética, o ser humano pode ser entendido na interação entre o sujeito e os objetos de conhecimento. O desenvolvimento ocorre na medida em que se passa por diversos níveis de construção. Os estádios dessa evolução encontram-se amplamente I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 78 analisados por Piaget (1955; 1970 et al.) e demonstram as características de desenvolvimento do recémnascido ao adulto. Todavia, quando o sujeito atinge a adolescência e o que se chama de estádio das operações formais, isto não implica a garantia de que doravante operará formalmente sobre todos os objetos. Há um detalhe imprescindível a ser considerado: as especificidades dos conteúdos. No que se refere à significação, diante de um conteúdo novo, mesmo um sujeito adulto tem a necessidade de se (re) organizar frente às novidades. No entanto, diferente da criança, o adulto consegue (re) elaborar suas ideias muito mais rapidamente (PIAGET, 1970; BOVET, 1975, 2002). Enquanto a criança leva, por exemplo, aproximadamente dez anos de sua vida para construir a conservação do volume, um adulto frente a um novo problema poderá assimilar as particularidades em um tempo significativamente menor. O pensamento do adulto apresenta características de mobilidade e organização bastante diferentes em relação às das crianças. No que tange ao desenvolvimento, a estrutura lógico-matemática que sustenta as condutas está presente desde as primeiras ações, mas sob diferentes configurações. Os comportamentos do bebê se distinguem pelas primeiras coordenações das ações em função do seu corpo e de sua motricidade. A noção de objeto permanente e o grupo de deslocamento (incluindo-se aí o espaço, o tempo e a causalidade) são as marcas mais importantes dessa composição (PIAGET, 1936, 1937). O primeiro dará ao bebê a possibilidade de identificar que as coisas não desaparecem quando retiradas do seu campo de visão. O segundo deixará a criança organizar seus próprios movimentos e os dos objetos no espaço. Em seguida, com o advento da função semiótica, a estrutura lógico-matemática ascende a um novo patamar. Aquilo que, inicialmente, no período sensório-motor caracterizava-se por uma organização prática, desdobra-se agora numa construção simbólica (PIAGET, 1945). Mais adiante, no estádio operatório-concreto, as ações interiorizadas do período pré-operatório passam a ser organizadas sob a forma de operações lógico-matemáticas que indicam maiores mudanças estruturais. A nova organização é o agrupamento (PIAGET, 1955), o qual dá origem às operações concretas e apresenta uma sofisticação: permite construir estruturas de classe, chegando até a modelos semelhantes às árvores genealógicas, e de elaborar séries indefinidas de objetos, em função de critérios estabelecidos à seriação. Em seguida, no estádio operatório-formal, o aperfeiçoamento do agrupamento desdobra-se em uma estrutura lógica de grupo, com diferentes formas de reversibilidade e organização das operações. As novas propriedades do chamado Grupo INRC reúnem as operações de identidade (I), negação (N), reciprocidade (R) e correlação (C) em uma mesma estrutura de conjunto, cuja construção permite ao pensamento chegar ao plano hipotético-dedutivo (PIAGET, 1955). Como se vê, as operações lógico-matemáticas possuem características muito gerais e representam o que há de mais universal no sujeito epistêmico. O conceito de uma estrutura que organiza as operações I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 79 remete à idéia de que elas atuam em um “vazio”, visto que uma vez constituídas podem ser aplicadas a quaisquer conteúdos. Diferentemente, na ação do sujeito sobre a realidade, os problemas e as situações resistem à assimilação. O objeto também é ativo. Assim, baseados em Piaget e Inhelder, nossa hipótese é de que, quando o sujeito se ocupa de um problema, as operações e a estrutura proporcionam uma dimensão lógico-matemática para abordar a situação. Todavia, além disso, é necessário que haja novas organizações em função dos conteúdos e de suas especificidades. Nossa hipótese é de que os conteúdos interferem diretamente na organização das condutas na medida em que demandam a construção de significações. Toda significação é a atribuição de um esquema de ação a um objeto ou situação (PIAGET e INHELDER, 1979; INHELDER e col., 1980), de maneira que um esquema é “a estrutura comum que caracteriza uma classe de ações equivalentes, do ponto de vista do sujeito” (PIAGET, 1957, p. 46). Assim sendo, para significar uma situação é preciso construir esquemas a respeito dos problemas envolvidos, mas estes apresentam características particulares e dependem de construções específicas. Além disso, a construção da significação depende de dois fatores ligados aos conteúdos: o grau de novidade que eles representam para o sujeito e a complexidade da problemática envolvida. Por exemplo, ao compararmos dois sujeitos formais, um físico e um médico, vemos duas reações semelhantes e, ao mesmo tempo, distintas. Diante de um problema a propósito da fusão nuclear ambos podem apresentar equivalência de condutas quanto à dimensão estrutural. Podem levantar hipóteses, valer-se da dupla reversibilidade de operações e da estrutura do Grupo INRC. Contudo, o conteúdo abordado é mais familiar ao físico, devido à especificidade de sua formação. Muito provavelmente, ele será capaz de significar a situação de uma maneira mais eficaz que o médico. Este, ao organizar suas condutas, encontra dificuldade na novidade do conteúdo e na ausência de esquemas para lidar com a situação. Além disso, o problema apresenta certo grau de complexidade, o que representa mais uma dificuldade para a significação. A disponibilidade de uma estrutura formal, tal como o INRC, não basta por si só, pois é preciso ter esquemas construídos para significar os problemas. Dessa maneira, aparentemente, as condutas voltariam a apresentar características mais simples, ainda que não haja uma regressão da estrutura lógico-matemática. O adulto não perde a capacidade (o poder) de agir de modo hipotéticodedutivo e é justamente isto que garante uma quantidade maior de possíveis a serem acionados na hora de agir sobre um objeto resistente e complexo. Antes de nos envolvermos em uma situação, acreditamos que o sujeito organiza um conjunto de inferências que antecipa suas condutas e juízos, no sentido de um modelo. Nessa perspectiva, entende-se que um modelo é o quadro assimilador formado pelos esquemas construídos, o qual permite atribuir significação aos problemas, controlar, organizar e dirigir a atividade cognitiva do sujeito. Assim, na I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 80 análise do pensamento do adulto pela ótica do sujeito psicológico, ao invés de nos referirmos a níveis de conduta ou de estádios do desenvolvimento, optamos por falar de modelos de significação (SILVA, 2009), os quais indicariam a importância das propriedades dos conteúdos na organização das condutas e da atividade mental em si mesma. Se estruturalmente os modelos de significação estão relacionados aos esquemas, do ponto de vista de sua ligação funcional, eles conectam-se pelas implicações que se constroem entre os significados. Piaget (1974, p. 178) diz que a característica mais geral dos estados conscientes é “exprimir significações e reuni-las em uma forma de conexão que chamaremos, na falta de um termo melhor, de ‘implicação significante’”. Entende-se que a implicação significante demonstra a importância dos conteúdos nos processos de pensamento, pois evidencia uma lógica das significações que influencia diretamente as condutas. Sobre a natureza da implicação significante, Piaget diz que elas se apoiam nos instrumentos semióticos disponíveis e as operações mentais possuem sempre um viés de significação, pois “a operação não é uma representação de uma ação: ela é, falando francamente, ainda uma ação, visto que é construtora de novidades, mas é uma ação “significante” e não mais física, porque os meios que utiliza são de natureza implicativa e não mais causal”. (1974, p. 178). Se as conexões entre as significações apresentam um caráter implicativo, pressupomos que se pode falar, então, de um modelo fundado nas implicações que unem os esquemas atribuídos a uma determinada situação, isto é, um modelo de significação que antevê as condutas e organiza a atividade cognitiva do sujeito. De acordo com Wermus (1982, p. 264): “O termo modelo indica seu status mediador entre o pensamento formal e o pensamento natural”, isto é, os modelos originam-se dessa relação entre a estrutura lógico-matemática e os conteúdos a fim de fornecerem instrumentos pelos quais o sujeito pode interpretar a realidade e elaborar uma significação. É possível encontrar duas pessoas que possuem um mesmo modelo, mas que apresentam significações, aparentemente, com conteúdos diferenciados sobre o mesmo problema. No caso das pesquisas com adultos que Bovet (2002) realizou a respeito da flutuação, foi possível identificar sujeitos que apresentavam explicações bastante distintas, mas com características em comum. Alguns diziam que um objeto flutuava por ser redondo, outros diziam que flutuava por parecer um barco. As explicações parecem ser diferentes, mas podem derivar de um mesmo modelo de significação, que é o de se centrar sobre características externas do objeto. Diferente de uma ideia behaviorista, uma organização em função dos conteúdos não significa que há um comportamento a ser construído para cada situação. Faz-se o uso da palavra modelo para exprimir que essa organização das significações apresenta certo grau de generalidade, pois os próprios esquemas são organizações das características mais gerais das ações. As operações, oriundas da estrutura lógicomatemática, apresentam um caráter ainda mais universal, podendo sustentar diversos modelos de I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 81 significação. Por exemplo, a reversibilidade é uma construção estrutural de cunho lógico-matemático. O pensamento pode se valer da reversibilidade nas mais diversas situações, mas acreditamos que frente aos conteúdos é preciso que essa reversibilidade se adapte às especificidades e aos significados atribuídos aos objetos, isto é, uma operação lógico-matemática pode ser utilizada em diversos modelos de significação, mas dentro de cada modelo ela precisa se organizar em função dos conteúdos e dos esquemas disponíveis. Figura 1 – Modelos de Significação A figura anterior ilustra a dinâmica que propomos. Encontra-se no sujeito uma estrutura mais ou menos geral que é responsável por organizar as operações lógico-matemáticas. Além dela, existiriam modelos de significação que se originaram da atividade operatória particular do sujeito frente aos conteúdos. Os comportamentos continuariam, como já afirmou Piaget (1972), equivalentes, sob o ponto de vista lógico-matemático, mas podem ser considerados hierarquicamente diferenciados se levarmos em conta os conteúdos e a significação construída sobre estes. Assim, no caso do adulto, o interesse de pesquisa recairia sobre os inúmeros modelos de significação que podem ser elaborados em função de uma variedade maior de esquemas e implicações construídos ao longo da vida. Nesse sentido, o estudo do pensamento do adulto carece de inovações metodológicas que atendam às suas especificidades e singularidades. A perspectiva metodológica Acreditamos que as pesquisas a respeito do pensamento do adulto adquirem os seguintes status I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 82 metodológicos: - exploratório: haja vista que não existem grandes marcos teóricos a propósito da cognição em adultos, os estudos exploratórios configuram-se como uma opção razoável para investigar um objeto ainda pouco investigado; - descritivo: os estudos descritivos permitem que se examinem os métodos e os dados de forma mais direta, proporcionando ao leitor formular suas próprias hipóteses sobre as técnicas empregadas e a análise efetuada; - qualitativo: os dados quantitativos podem fornecer quadros interessantes, mas no que tange ao raciocínio, os processos tornam-se mais relevantes do que os resultados em si. A pesquisa qualitativa parece exprimir melhor as nuances de um objeto de estudo que não possui fronteiras muito bem definidas. A orientação metodológica que propomos é inspirada nos procedimentos normalmente utilizados nas pesquisas em Epistemologia e Psicologia Genéticas. Em especial, o Método Clínico e suas variações ao longo da obra de Piaget (VINH-BANG, 1966) são o referencial que se adota como base para a coleta e a análise dos dados. Para investigar a significação e a mobilidade do pensamento do adulto elaboramos um procedimento metodológico em três etapas. Em um primeiro momento acreditamos que é importante verificar a significação imediata que o sujeito pode fornecer, isto é, os esquemas de partida disponíveis em função do grau de novidade do conteúdo. Todavia, isto se torna muito difícil, pois a própria realização da entrevista ou prova clínica já mobiliza alguns esquemas, que vão se ajustando de acordo com o raciocínio empregado no próprio momento. Nesse sentido, acreditamos que um instrumento válido para a exploração dos esquemas já disponíveis é a entrevista semi-estruturada (LAVILLE e DIONE, 1994; LUDKE e ANDRE, 1986). O pesquisador tem um roteiro previsto e pode se desviar dele na medida em que precisa esclarecer alguma questão. Porém, não se trata ainda de uma entrevista clínica, pois as situações de conflito e contrasugestão podem desencadear processos cognitivos e o momento é de verificar os esquemas que são mobilizados de imediato. É verdade que procurar por um quadro estático do pensamento é mera ilusão, mas estes detalhes podem nos aproximar de uma imagem sem muito movimento e que expressa os esquemas disponíveis de construções anteriores. De fato, o objetivo é fazer uma “primeira foto” do modelo de significação do adulto a fim de investigar o grau de novidade que o conteúdo representa para o sujeito. O segundo momento consistiria na aplicação do Método Clínico propriamente dito, através do qual o experimentador procura explorar o pensamento do sujeito de modo a mobilizar seus esquemas na I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 83 construção de uma significação mais elaborada do problema. O Método Clínico ou Método de Exploração Crítica é um procedimento de coleta e análise de dados que fornece ao pesquisador uma possibilidade de compreensão do pensamento e dos comportamentos dos sujeitos. Ele é flexível para suprir as inúmeras possibilidades que podem surgir ao longo de uma experiência ou entrevista, ao mesmo tempo em que exige uma organização muito rápida das hipóteses e do pensamento do pesquisador para que seja aplicado da maneira mais adequada. Se a entrevista semi-estruturada permite a confecção de uma foto quase estática do pensamento, o Método Clínico permite captar o movimento e fazer um “filme” que, além de registrar a significação atribuída, é capaz de evidenciar o grau de complexidade que conteúdo representa para o sujeito. Nesse caso, o interesse da análise dos dados cai diretamente sobre os procedimentos empregados em função dos esquemas mobilizados. O pesquisador pode analisar tanto o conjunto de novos esquemas ativados em comparação aos da primeira etapa, bem como eles foram se organizando em função das demandas do problema. Além disso, deve-se observar o quadro implicativo que sustenta os juízos formulados, isto é, investigando-se as implicações significantes construídas. A investigação do sistema de implicações permite verificar a sofisticação das ligações dedutivas que o sujeito realiza entre diferentes esquemas em razão do grau de complexidade que o conteúdo representa. Por último, em uma terceira etapa, volta-se à entrevista, com uma pequena variação do problema em relação à situação inicial, e registra-se uma “última foto”, entendida como a significação que o sujeito produz sozinho ao final da sessão. Não se torna interessante realizar os mesmos questionamentos da primeira etapa, pois o sujeito já vivenciou aquela situação e já passou pela experimentação com o Método Clínico. O que propomos é uma variação de mesmo conteúdo, mas com diferente formulação. Esta alteração é importante por que, como Piaget (1931) já alertou, a inteligência possui dois aspectos: a invenção e a verificação. O pensamento do adulto possui, em geral, ferramentas de verificação muito mais poderosas do que as das crianças. Ao longo da segunda etapa, o sujeito pode verificar a coerência dos procedimentos e das perguntas realizadas pelo próprio experimentador. Retomar a problemática sem a intervenção feita na etapa anterior permite, de fato, averiguar a coerência e a autenticidade dos procedimentos e significações elaborados. Além disso, muitos adultos podem apresentar múltiplos processos de pensamento ao longo da aplicação da atividade e que vão sendo descartados um a um. O poder de verificação do pensamento do adulto faz com que ele descarte hipóteses que não lhe parecem coerentes. A cada descarte ele pode formular outra hipótese e outra estratégia para interpretar a situação, ficando difícil identificar aquela que realmente o satisfaz. Neste caso, esta última etapa serve para evidenciar qual das estratégias, propriamente, o sujeito considera como a mais adequada. O segundo momento, em especial, representa um desafio para o experimentador, pois é preciso I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 84 estar atento às respostas e condutas do entrevistado. Dada a possibilidade de múltiplos processos de pensamento, é interessante o uso de perguntas tais como “E se poderia pensar diferente?” ou “Há outra maneira de fazer?”. Estas indagações podem dar margem para que o entrevistado possa exprimir os raciocínios que elaborou, mas que foram descartados em função de uma solução que lhe pareceu mais coerente. Um recurso que propomos para este segundo momento é o uso de materiais concretos. Muitas vezes, só a fala durante a entrevista não é capaz de evidenciar os processos de pensamento que o adulto elabora. O próprio Piaget se deu conta, em determinado período de seus estudos, que somente as verbalizações sobre os fatos poderiam não revelar tudo o que o sujeito saberia sobre ele, pois as ações precedem as compreensões. Se a especificidade do conteúdo comporta, é sempre melhor o uso de materiais. Eles permitem que o sujeito atue de forma mais livre, que identifique de maneira mais clara o problema proposto, bem como proporcionam maior possibilidade de análise das ações. Neste sentido, consideramos que os materiais propostos para uma tarefa serão mais adequados quando: • Há um problema claro a ser desenvolvido. • O material permite a ocorrência de feedbacks, isto é, o sujeito pode testar hipóteses e o próprio material permite verificar a validade das proposições. • Existem situações no uso dos materiais que podem se manifestar como conflitos ou resistências às ideias mais imediatas e simples. • O material não permite uma solução imediata. É necessário passar por diversas etapas que explicitam os procedimentos de resolução e demandam a justificativa e a significação das ações empregadas. • Podem-se propor variações usando o mesmo material, a fim de verificar a coerência dos procedimentos utilizados em diferentes situações. Em termos práticos, durante a etapa em que se utiliza o Método Clínico, procura-se propor situações de contra-sugestão, ou de conflito, que permitam ao sujeito operar sobre os conteúdos de modo a evitar respostas prontas ou automáticas. O uso de tarefas que envolvem problemas com materiais concretos facilita toda essa conjectura em função dos motivos anteriormente expostos. No que tange à análise dos dados coletados, produzida estas três instâncias da sessão e da coleta, pode-se organizar um protocolo que contemple os seguintes índices de categorização: - Primeira foto: O interesse está em identificar os esquemas de partida. Pode-se elencar os principais esquemas envolvidos e verificar quais os sujeitos que os apresentam. De fato, a primeira foto proporciona a identificação do grau de novidade que a tarefa representa para o sujeito. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 85 - Método Clínico: Procura-se identificar quais os procedimentos realizados e as implicações construídas. Investiga-se como os esquemas mobilizados vão sendo descartados ou substituídos por outros. A mobilidade do pensamento durante esta etapa permite evidenciar a complexidade que a problemática representa para o sujeito. - Última foto: Verificar a coerência dos procedimentos da segunda etapa, identificando os esquemas que o sujeito mobiliza por si mesmo durante a solução do problema. A partir do protocolo de análise, as condutas podem ser agrupadas e categorizadas em função dos esquemas e das implicações envolvidos. De acordo com a tarefa, o pesquisador poderá perceber desde os esquemas mais simples e as implicações mais frágeis até as organizações mais sofisticadas e coerentes. Como se trata de um estudo funcional, não há número fixo de níveis. As diferentes condutas surgem da variedade dos procedimentos empregados e da complexidade de coordenações demandadas pelos problemas. O número de níveis e modelos de significação a serem encontrados depende do grau de precisão da coleta de dados. De fato, pode-se chegar a infinitos níveis, caso analisemos as minúcias das condutas. A variabilidade do comportamento humano não permite o estabelecimento de fronteiras muito precisas que indiquem pontos de partida e chegada. Estudos exploratórios tendem a se prender nos esquemas e procedimentos mais gerais, limitando-se a identificar quatro ou cinco modelos de significação. Investigações mais rigorosas podem se apoiar nestas pesquisas exploratórias para elaborar protocolos mais refinados e que conduzam a níveis mais diferenciados e específicos, sem que se possa definir um número possível de modelos a serem construídos. Detalhes práticos Um aspecto importante é o de, antes de iniciar a sessão, tranquilizar o sujeito quanto ao sigilo dos dados e às intenções da pesquisa. O fato de explicar a intencionalidade da sessão é um elemento importante, pois o sujeito – tanto a criança quanto o adulto - tende a querer adivinhar as respostas que o experimentador gostaria de ouvir. Os adultos tendem a se preocupar mais com a avaliação que se faz de seu desempenho, além disso, o raciocínio mais veloz e coerente permite que se elaborem muitas conjecturas sobre qual seria a real intenção do entrevistador. Em experiências anteriores percebemos que muitos sujeitos acreditavam que as provas clínicas eram meros disfarces para outros tipos de análise e, por diversas vezes, nos perguntavam se as respostas eram boas o suficiente ou se gostaríamos que eles agissem de outra maneira. Quando o pesquisador explicita suas intenções, referindo-se diretamente ao conteúdo que procura investigar, pode-se evitar que o sujeito se concentre em outros fatores e que desvie seu raciocínio na construção de hipóteses sobre o que o experimentador de fato quer saber. Outro detalhe prático a ser observado refere-se às conversas que atravessam os diferentes I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 86 momentos da sessão. Piaget (1926) identificou que as crianças pequenas podem executar fabulações ou entregarem-se ao devaneio durante a entrevista clínica. Isso não é muito diferente nos adultos. Eles começam, muitas vezes, a rememorarem momentos de sua vida ou ocasiões que consideram análogas. Nestes casos, pode ser interessante explorar as comparações que o sujeito executa, pois elas podem revelar os esquemas que estão mobilizados e as diferentes significações que o sujeito relaciona entre as situações. Igualmente, ainda que, para o pesquisador, a sessão se constitua de três momentos, com as entrevistas e o Método Clínico, tal organização não é transparente ao sujeito. Para ele, trata-se de uma atividade contínua na qual o experimentador apresentou um tema e o retoma de diferentes maneiras. Considerações finais O pensamento do adulto apresenta particularidades que o distinguem da investigação com crianças. O objetivo deste artigo foi apresentar as peculiaridades metodológicas na pesquisa da inteligência destes sujeitos. A dificuldade, oriunda das inúmeras possibilidades de estruturação lógicomatemática, favorece a investigação através de um viés diferenciado, isto é, do sujeito psicológico. Nesse sentido, a influência dos conteúdos e do papel ativo dos objetos permite analisar aspectos processuais do pensamento do adulto até então não muito explorados. Essas características exigem adaptações metodológicas em função das construções teóricas que temos investigado. Acreditamos que a proposta apresentada pode contribuir no avanço do conhecimento a respeito dos processos cognitivos, o que ocasiona a abertura de um possível programa de pesquisas em Psicologia Genética. Referências BOVET, M. Explicações e mudanças em adultos. In: MORENO, M. e col. Conhecimento e mudança: os modelos organizadores na construção do conhecimento. São Paulo: Moderna, 2002. ______. Etude interculturelle de processus de raisonnement: notion de quantité et relations spatiotemporelles. Tese de Doutorado. Université de de Genève, 1975. INHELDER, B.; ACKERMANN-VALLADÃO, E.; BLANCHET, A.; KARMILOFF-SMITH, A.; KILCHER-HAGEDORN, H.; MONTANGERO, J.; ROBERT, M. Des structures cognitives aux procédures de découverte. Archives de Psychologie, n.44, 1976. p. 57-72 INHELDER, B.; KARMILOFF-SMITH, A. Si quieres avanzar, hazte com uma teoria, In: Infancia u apredizaje, n. 13, 1981. p. 69-88. INHELDER, B. e CELLÉRIER, G. 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 88 Conhecimentos Matemáticos em Meios Populares: A Relação entre Letramento Matemático e a Construção do Saber SILVA, Ruana Priscila31 SOUZA, Neusa Maria Marques32 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Campus de Três Lagoas CNPq / PIBIC333. [email protected] Resumo Várias são as discussões realizadas no campo da Educação Matemática que apontam a necessidade de refletir sobre o ensino da mesma, a fim de garantir uma formação crítico-social do indivíduo, habilitando o mesmo a conviver em sociedade exercendo sua autonomia. Assim, o presente trabalho é resultado dos encaminhamentos de uma pesquisa que vem sendo realizada por alunos de iniciação científica e docentes da UFMS, desde o ano de 2006 em uma escola de ensino fundamental no município de Três Lagoas MS. Através da parceria entre universidade e escola, temos desenvolvido várias ações de extensão que envolve diretores, coordenadores pedagógicos, professores, docentes da universidade, acadêmicos do curso de Pedagogia, alunos da 1ª e 2ª etapa da educação básica e, em especial, as mães de alguns desses alunos. A pesquisa tem como objetivo investigar os conhecimentos que as mães dos alunos possuem em relação à matemática, de acordo com o conceito do Letramento Matemático, ou seja, a utilização da matemática no cotidiano como ferramenta de sobrevivência e, com o conceito da Construção do Conhecimento Matemático segundo Piaget, que diz – o conhecimento não é uma cópia da realidade, mas sim o agir, modificar, transformar e compreender todo o processo de aprendizagem. Como opção metodológica adotarse-á a abordagem de pesquisa qualitativa baseando em autores com Flick (2004) e Ludke (1986) e como instrumento para tratamento dos dados a análise de conteúdo segundo a ótica de Bardin enfocada por Franco (2003) Para coleta de dados serão utilizadas entrevistas semi-estruturadas e registro de vivências com grupos de mães em que entrarão em contato com materiais de conteúdo matemático presentes em textos escolares e não-escolares. Esta pesquisa certamente contribuirá para que as mães tomem ciência de seus saberes sobre a matemática num contexto não habitual, resultando em uma melhor interpretação dos problemas matemáticos. Palavras-chave: Educação Matemática. Letramento de Mães. Construção do Conhecimento Matemático. 31 32 33 Acadêmica do curso de Pedagogia – 4º ano da UFMS, bolsista de Iniciação Científica UFMS – PIBIC 2007/09. Doutora em Educação, docente do Departamento de Educação da UFMS, Campus Três Lagoas – e dos Programas de Pós Graduação – CCHS/UFMS e de Educação Matemática EDUMAT/UFMS. Agência de Fomento. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 89 Abstract There are diverse discussions in the field of mathematics education pointing for the necessity of thinking about its teaching with the finality of guarantying the social and critical formation of the individuals, enabling them to live in society and maintaining their own autonomy. Thus, the present work is the result of a research that has been done by scientific initiation students and professors of UFMS since 2006 in a fundamental level school of the city of Tres Lagoas MS. By the partnership between University and School, we have been developing many extension actions involving directors, pedagogic coordinators, teachers, university professors, academics from the pedagogy course, students from the first and second levels of basic education, and especially some students’ mothers. The aim of this research is to investigate the knowledge that students’ mothers have about mathematics, in accordance with the concept of mathematical literacy, in other words, using mathematics as a tool in the everyday life, and the concept of the construction of the mathematical knowledge accordingly with Piaget, which propose that “the knowledge is not a copy of reality, but it is acting, modifying, transforming, and comprehending all the learning process”. The qualitative research based on the authors Flick (2004) and Ludke (1986) was adopted as the methodological tool. The content analysis accordingly with Bardin and later focused by Franco (2003) was adopted as the instrumentation for treating the data. We will collect the data utilizing semi-structured interviews and everyday recordings from a group of mothers that will be in touch with mathematical content materials present in scholar and non-scholar texts. This research certainly will contribute to let mothers know their own mathematical knowledge in a non-usual context, which will result in a better interpretation of these mathematical problems. Keywords: Mathematics Education. Mother’s Literacy. Construction of Mathematical. Knowledge. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 90 Introdução Várias são as discussões realizadas no campo da Educação Matemática que apontam a necessidade de refletir sobre o ensino da mesma, a fim de garantir uma formação crítico-social do indivíduo, habilitando o mesmo a conviver em sociedade exercendo sua autonomia. Nos eventos que abordam temáticas educacionais, o ensino da matemática é sempre muito debatido, principalmente nos enfoques sobre a formação docente, o processo ensino-aprendizagem, a didática do ensino e, a construção do saber. Durante muito tempo pensou-se que o conhecimento matemático era privilégio de alguns portadores de mentes especiais, ou seja, poucos entre os muitos que não nasceram para a Matemática. Com isso, a escola por muito tempo supervalorizou a matemática científica e/ou escolar como a única representante do saber e, a única capaz de elevar o sujeito na sociedade. Com isso, uma das questões que nos impulsionou neste estudo foi o fato da matemática na maioria das vezes, ser reproduzida nas escolas com um padrão científico, quase sempre imposto e não construído. De acordo com Grando & Mendes (2007), vista neste enfoque a matemática acadêmica trabalhada nas escolas seria a única responsável pela promoção de capacidades, portanto, a única matemática possível de desenvolver no sujeito capacidades de abstração. Entretanto, sabemos que além da escola, existem vários outros espaços educativos que permitem ao sujeito construir seu conhecimento, pois de acordo com Piaget, a Construção do Conhecimento Matemático não se dá como uma cópia da realidade, mas sim com o agir, modificar, transformar e compreender todo o processo de aprendizagem. E isto, o sujeito realiza a partir da reflexão sobre sua prática cotidiana, podendo fazê-lo não somente no espaço escolar. Dentro dessa compreensão, o presente trabalho resulta dos encaminhamentos de uma pesquisa que vem sendo realizada por alunos de iniciação científica e docentes da UFMS, desde o ano de 2006 em uma escola de ensino fundamental no município de Três Lagoas MS. Tem como sujeitos de investigação algumas mães de alunos das séries iniciais desta escola municipal, que mantém parceria de trabalho de ensino e extensão com a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, desde 2006. Sendo assim, a pesquisa tem por objetivo investigar os conhecimentos que as mães dos alunos possuem em relação à matemática, na perspectiva do conceito de Letramento Matemático, ou seja, da utilização da matemática no cotidiano como ferramenta de sobrevivência. Sabemos que o número está presente em toda parte, que desde os primeiros anos de vida estabelecemos contato direto com sistema de numeração decimal ao construirmos a idéia de idade, a noção de tempo, espaço e quantidade, quando somos capazes de realizar atividades de classificação e seriação a partir dos esquemas cognitivos já I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 91 construídos. Pelo fato de possuir posição relevante: O conceito de número ocupa um lugar de destaque na matemática escolar. Desenvolver o sentido do número, ou seja, adquirir uma concepção global dos números e das operações e usá-la de modo flexível para analisar situações e desenvolver estratégias úteis para lidar com os números e as operações é um objetivo central da aprendizagem da Matemática. (PONTE, 2006, p. 55) Através das análises, da criação de estratégias, das conjecturas, da troca de experiências, dos conhecimentos anteriormente construídos, acreditamos que o aprendizado da matemática se torna mais significativo, ou seja, o sujeito consegue construir mecanismos que possibilitarão o domínio e a abstração dos conceitos. Sendo a matemática uma ciência abstrata, deve-se partir do contato com o real, como possibilidade para as abstrações. Tanto no ensino das crianças como também dos adultos, valorizar os conhecimentos prévios do sujeito é de grande valor, pois permite articulações entre o conhecimento já construído e esquematizado, com os novos conhecimentos que serão construídos através da reflexão sobre a prática cotidiana. Assim, essa pesquisa pretende contribuir para que as mães compreendam que os saberes que desenvolvem num contexto não habitual sobre a matemática, resultam em uma melhor interpretação dos problemas matemáticos e podem desenvolver as competências numéricas tão indispensáveis em nossos dias. “[...] Saber identificar, compreender e saber usar os números, as operações com números e as relações numéricas. [...] saber interpretar criticamente o modo como os números são usados na vida de todos”. (PONTE, 2006, p. 70). Referencial teórico Muitas são as discussões e pesquisas realizadas sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática, que buscam desmistificar mitos e tabus já estabelecidos pela sociedade como: a matemática é difícil, matemática é só pra alguns, eu não gosto de matemática, etc., argumentos que poderiam ser evitados no uso diário se o ensino da matemática tivesse acontecido de forma diferente, significativa. O fato de a escola supervalorizar a matemática acadêmica é um dos principais motivos que levam as pessoas menos ou sem nenhuma escolarização a se afastarem da matemática, e por vezes são gerados sentimentos de repulsa e até mesmo de incapacidade diante dessa ciência tão presente em nossas vidas. Segundo Knijnik (1995, com essa data não há referência), ao considerar que o saber legitimado e o não-legitimado se relacionam de forma complexa, é estabelecido uma relação de poder do legitimado sobre o não-legitimado. A autora sublinha que o ensino da matemática deve, entre outros fatores, considerar o conhecimento produzido tanto no cotidiano quanto no universo acadêmico, fornecendo I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 92 comparação entre os dois saberes afim de que se analisem essas relações de poder contido em seu uso. Diante disso, surgem alguns conceitos voltados para a matemática significativa, ou seja, para a valorização e o reconhecimento dos conhecimentos construídos no dia a dia. São eles: Letramento Matemático, Alfabetização Matemática, Numeramento, Linguagem Matemática entre outros. Utilizaremos conceitos sob a ótica do letramento matemático a fim de melhor fundamentar nosso trabalho. A tudo quanto foi dito, é preciso acrescentar que a discussão teórica deste trabalho tem como fundamento o conceito da construção do conhecimento matemático, segundo a Epistemologia Genética de Piaget, o qual busca [...] “por à descoberta as raízes das diversas variedades de conhecimento, desde as suas formas mais elementares e seguir sua evolução até os níveis seguintes , até, inclusive, o pensamento científico”. (PIAGET, 1971, p.8) Interfaces entre Letramento e Alfabetização Matemática. O termo Letramento Matemático vem do conceito inglês conhecido como Numeracy, que procura enfocar os aspectos sociais que envolvem a escrita matemática incluindo as diversas possibilidades de representação, seguindo os mesmos caminhos do Letramento, que se resume nas práticas e eventos sociais permeados pela escrita. (GRANDO; MENDES, 2007, p. 13) Segundo as referidas autoras, o letramento matemático por vezes faz referência ao termo Numeramento, por estarem intrinsecamente ligados, não sendo possível haver dicotomia entre eles. O que muda é apenas por uma questão de tradução conceitual. Pois o numeramento pode ser pensando no sentido das diversas práticas em que são produzidas diferentes matemáticas, entre as quais existem aquelas diferentes das práticas escolares. Concordando com essa idéia, Barton (1994) afirma que: É necessário visualizar o numeramento a partir de suas bases culturais observando como ele é alocado em práticas particulares. Dessa forma, o numeramento não pode ser visto como algo singular: podemos nos referir os diversos numeramentos, da mesma forma que se tem atribuído a ideia de pluralidade ao letramento. Portanto, a pluralidade do numeramento se manifesta pela diversidade de práticas sociais existentes em torno das noções de quantificação, medição, ordenação e classificação em contextos específicos, em que os diversos usos dessas noções estão estritamente ligados aos valores socioculturais que permeiam essas práticas. (apud: GRANDO; MENDES, 2007, p. 23). Os estudos realizados na perspectiva do letramento matemático até o presente momento nos permitem chegar à constatação que pessoas pouco escolarizadas podem, frente às experiências e necessidades do dia a dia, executar práticas de letramento. Em contraposição com a visão geral que se pode encontrar sobre o ensino da matemática na escola, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 93 o Letramento Matemático deve ser entendido como o uso da matemática no contexto social, práticas estas que além de exercidas no âmbito social, muita das vezes diferentes do modelo escolar, precisam ser escolarizadas. Também pode ser entendido como denominação das habilidades básicas para utilização de registros matemáticos diante do trabalho ou da vida diária. Preparar listas de compras, verificar o vencimento dos produtos que serão comprados, comparar preços antes de comprar, conferir o consumo de água, luz ou telefone, procurar as ofertas da semana em folhetos e jornais, comprar a prazo, anotar dívidas e despesas, conferir troco, conferir notas e recibos, fazer ou conferir acertos de contas ou orçamento de serviços, pagar contas em bancos ou casas lotéricas, anotar números de telefones, ver as horas em relógio de ponteiros ou digital, ler bula de um remédio que comprou e ler manuais para instalar aparelhos domésticos são tarefas que fazem parte do cotidiano [...]. (TOLEDO, 2004, p. 97). Esta é uma habilidade que faz parte da competência do sujeito do ponto de vista da autonomia sócio-educativa. Compreender a matemática como um fator constante no dia-a-dia implica em entender o porquê dela, haja vista que durante o processo de escolarização seu ensino basicamente persiste na ideia de conceber os objetos de ensino como cópias dos objetos da ciência, desconsiderando que no cotidiano, o sujeito é capaz de desenvolver mecanismos e atividades matemáticas a fim de sanar seus conflitos. O letramento matemático nos permite compreender como os sujeitos pouco escolarizados enxergam a matemática em seu dia a dia e, ainda, nos permite fazer articulações e reflexões sobre como seus conhecimentos práticos são construídos. A partir do letramento matemático pode possível aproximar o saber legitimado, ou seja, o escolar, das práticas sociais, ou ainda, a partir delas, reconstruir nosso modelo educacional. A Alfabetização é o processo pelo qual se adquire o código da escrita, e Alfabetização Matemática o processo em que se adquirem os códigos matemáticos. Pelo fato da Matemática ser uma ciência viva ela é capaz de criar seus próprios símbolos e signos. Também por possuir uma linguagem própria, a Linguagem Matemática pode ser permeada pela escrita, leitura e oralidade. Apesar de ser muito forte a ideia de que o sujeito para aprender a matemática precisa ser alfabetizado, esta já vem sendo desmistificada. Através de estudos e pesquisas fica evidenciado que a aprendizagem da matemática com a alfabetização na língua materna não ocorrem linearmente. O sujeito não precisa aprender primeiro as letras para depois aprender os números. Já que está inserida no universo numérico desde muito cedo, podemos perceber a matemática em uma criança pequena desde que questiona a sua idade e outros entes matemáticos que a rodeia, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 94 observamos que rapidamente ela articula os dedinhos tentando mostrar o número referente à sua idade. Mas o que ocorre com crianças que crescem em comunidades alfabetizadas? O notacional aparece em diferentes contextos – em paredes, objetos, embalagens, jogos, papel ou papelão – e também como parte de diversas atividades. Para muitas crianças, ver um cartaz, fazer um desenho, copiar letras ou “fazer números” é uma experiência tão direta quanto brincar com areia ou ir a um supermercado. (TEBEROSKY & TOLCHINSKY, 2003, p. 198) Teberosky e Tolchinsky (2003) demonstram em uma pesquisa que realizaram em que eram apresentados para as crianças vários cartões com letras ou números marcados, que ao agrupá-los segundo suas semelhanças, as crianças mesmo sendo pequenas fizeram agrupavam, número com número e letra com letra. Quando questionadas quanto aos agrupamentos, as crianças responderam que os cartões com letras serviam para “escrever”, já os cartões com números para “contar”. E que os cartões que apresentavam letras e números juntos, não serviam para nada. Diante desse dado, reafirmamos que o ensino da matemática não deve ser postergado ao da escrita, visto que a criança esta em contato com o número todo o tempo, fazendo do mesmo uso e reconhecendo sua função no contexto social. Com respeito a esta questão, cumpre salientar que em nossa pesquisa, partimos do principio que o significado da matemática resulta da vinculação entre seu aprendizado social e escolar, considerando seu conhecimento prévio baseado em uma inteligência prática adquirida no âmbito social. Assim, acreditamos na necessidade de criar mecanismos que estabeleçam aproximações entre as práticas de letramento das mães de meios populares às práticas escolares para concretização destes conhecimentos sobre os saberes matemáticos. Para que além de letradas, as mães também possam ser sujeitos alfabetizados em matemática. Alfabetização matemática diz respeito aos atos de aprender a ler e escrever a linguagem matemática, usadas nas séries iniciais da escolarização. [...] a alfabetização matemática, portanto, como fenômeno que trata da compreensão, da interpretação e da comunicação dos conteúdos matemáticos ensinados na escola, tidos como iniciais para a construção do conhecimento matemático. Ser alfabetizado em matemática, então, é compreender o que se lê e escreve o que se compreende a respeito das primeiras noções de lógica, de aritmética e de geometria. Assim, a escrita e a leitura das primeiras ideias matemáticas podem fazer parte do contexto de alfabetização. (DANYLUK, 2002, p. 20-21) A Construção do Conhecimento Matemático e a Teoria da Epistemologia Genética. Os estudos realizados dentro da Educação Matemática buscam entender como acontece o I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 95 desenvolvimento do pensamento matemático no sujeito e tem sido uma das principais preocupações da investigação melhorar o ensino e a aprendizagem da matemática. Segundo Piaget (1971), o conhecimento não pode ser visto como algo predeterminado nas estruturas internas do sujeito, pois resultam de uma construção efetiva e continua, ou seja, são as interações e as vivências com o meio que levarão sujeito a construir seu conhecimento. O conhecimento resultaria de interações que se produzem a meio caminho entre os dois, dependendo, portanto, dos dois ao mesmo tempo ( um sujeito consciente de si mesmo – objetos construídos) mas em decorrência de uma indiferenciação completa e não de intercâmbio entre formas distintas. (PIAGET, 1971, p. 14) Assim, todo conhecimento a ser interiorizado pelo sujeito é fruto de sua relação com o meio social desde o nível de sua estrutura cognitiva. Desse modo, todo conhecimento prévio, ou seja, todo conhecimento já construído anteriormente através dos esquemas cognitivos, são de importante valor para a aprendizagem, pois são a partir deles que os sujeitos construirão novos conhecimentos. Façamos um parêntese para ressaltar que os conhecimentos adquiridos na prática, no dia a dia, não só podem como devem ser considerados, pois são a partir deles que o sujeito poderá refletir sobre suas ações, modificando, transformando e, por conseguinte, compreendendo todo o processo de sua aprendizagem. O conhecimento é algo que está sempre em movimento, ninguém permanece estagnado em um conhecimento determinado, pela própria dinâmica do universo em que os estudos avançam, a ciência evolui e a humanidade caminha, rumo a novos conhecimentos. As tecnologias se transformam a cada dia, a medicina inova seus medicamentos e procedimentos, enfim, estamos em uma sociedade em constante mudança. E no meio educacional não pode ser diferente, e o conhecimento matemático, pertencendo ao meio educacional, também está em movimento. O que é Matemática e a forma de ensiná-la são elementos que irão compor o conhecimento em movimento chamado Educação Matemática, bom exemplo do que é um conceito em movimento. Esta denominação para o conjunto de leis que compõe o processo de ensino de Matemática, os seus objetivos e conteúdos tem avançado juntamente com os conhecimentos das leis gerais que regem o convívio social e o mundo físico. Isto é, a Educação Matemática tem respondido às questões: "O que ensinar?", "Por que ensinar?”, "Como ensinar?", na medida em que têm ficado mais claros processos de aprendizagem, as razões sociais do que se aprende e o quanto o aprendido pode gerar novos conhecimentos. (MOURA, Série Ideias n. 10, São Paulo: FDE, 1992). O conhecimento matemático, desde seus primórdios vem se modificando. No principio, o homem utilizava a matemática como uma forma de sobrevivência, com o objetivo de contar dos dias, os animais, estabelecendo de sistemas de trocas e construindo domínios sobre o signo numérico. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 96 Em nossos dias, o homem continua utilizando à matemática, porém não apenas com essas finalidades. A preocupação em controlar quantidades continua, mas, hoje é possível utilizar vários outros recursos logísticos e tecnológicos. Entendemos a matemática hoje, como uma ciência que permite construir no sujeito certas habilidades para a resolução dos problemas diários, que permite a ação e reflexão sobre a prática cotidiana. Objetivos Essa pesquisa tem como objetivo investigar os conhecimentos que as mães dos alunos de meios populares possuem em relação à matemática. A investigação tem como base o conceito do Letramento Matemático, ou seja, busca desvelar a utilização que essas mães fazem da matemática no cotidiano, como ferramenta de sobrevivência, em consonância com o conceito da Construção do Conhecimento Matemático não como cópia da realidade, mas sim como o agir, modificar, transformar e compreender todo o processo de aprendizagem. Partimos do pressuposto que saber matemática não é sinônimo apenas de fazer e repetir contas. [...] é mais do que simplesmente conhecer o número e saber fazer contas “secas”, sem vida: a alfabetização matemática busca dar condições para que os jovens e adultos possam entender, criticar e propor modificações para situações de sua vida pessoal, da vida coletiva do assentamento e do mundo mais adiante. (MST, 1996 p. 2 apud LOPES, 2005). Quando se fala da escrita matemática é impossível não fazer correlação com a Linguagem Matemática, pois não existe dicotomia entre ambas. A escrita compõe a linguagem e a linguagem compõe a escrita dentro do processo de ensino-aprendizagem. A matemática, enquanto linguagem é capaz de criar seus próprios símbolos e elaborar suas próprias ordens, pois se trata de ciência viva. Porém, existem diferenças gritantes entre a linguagem matemática vivenciada na escola com a linguagem matemática vivenciada em casa, pois “a linguagem matemática não é só um fator do desenvolvimento intelectual do aluno, mas também um instrumento fundamental na sua formação social”. (VERGANI, 1993). Sendo assim, se torna fundamental aproximar a linguagem matemática da escola com a linguagem matemática materna. Acreditamos que ao realizar tal aproximação, estaremos contribuindo para o acesso do indivíduo ao conhecimento científico, possibilitando o exercício de sua autonomia e facilitando sua convivência em sociedade. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 97 Metodologia Nossa opção metodológica consiste na abordagem qualitativa, visto que essa modalidade de pesquisa fundamenta-se em dados coligados e nas integrações interpessoais, na co-participação das situações em que os dados não são encarados como totais e absolutos. A abordagem qualitativa permite ao pesquisador manter contato direto com seu objeto de estudo, preservando a complexidade do comportamento humano, observando a realidade através da participação em ações do grupo, por meio de entrevistas, conversas, permitindo ao mesmo tempo comparar e interpretar as respostas encontradas em situações adversas. (LÜDKE e ANDRÉ,1986). As investigações vêm sendo até então realizadas em observações quinzenais com um grupo de mães por um período determinado; pelo contato com leituras de produções e relatos orais das mães em situações formais e não-formais de suas vivências matemáticas do dia a dia. Pretendemos ainda trabalhar tanto a interpretação como a elaboração de textos matemáticos a serem produzidos pelas mães. Para a análise dos dados estamos considerando os aspectos referentes ao domínio dos mecanismos práticos da matemática, ou seja, a utilização da “matemática do cotidiano”, partindo do pressuposto da existência de uma diversidade de práticas de letramento desenvolvidas pelas mães no seu dia a dia. A opção por atividades que propiciem o contato das mães e filhos/alunos em situações próprias à utilização do letramento matemático, também foram ainda utilizadas, com o intuito de explorar, além dos conhecimentos específicos da matemática, a capacidade destas de interpretar e utilizar o sistema notacional específico da matemática. Desenvolvimento A nossa pesquisa está vinculada a uma pesquisa maior, intitulada: “Mães, Crianças e Livros: Investigando Práticas de Letramento em Meios Populares”, que já vem acontecendo desde 2007. Já foi possível reunir com algumas mães em alguns encontros. No primeiro encontro foi lido para as mães o livro Mania de Explicação da Adriana Falcão, e em seguida foi pedido que elas interagissem de acordo com o que era proposto durante a leitura. No segundo encontro foi lida a estória criada por um participante da pesquisa, com o título “O lenço que queria ser...”. A participação tanto de mães como dos filhos foi intensa, a estória foi muito bem aceita e em seguida foi pedido a elas que fizessem as dobraduras propostas na estória com o lenço. E no terceiro encontro foi apresentado o livro Olha o Olho da Menina da Marisa Prado, em seguida foi solicitado para as mães que criassem um texto relatando qual a maior mentira que já haviam contado, já que o livro I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 98 falava sobre mentiras. Nesse último encontro foi possível recolher as atividades escritas para serem analisadas juntamente com as próximas atividades que serão aplicadas, já que um dos instrumentos de coleta de dados foi à elaboração de textos escritos pelas mães. Também realizamos observações nas residências dessas mães a fim de verificarmos a presença de materiais escritos em suas casas. Foram feitas também algumas entrevistas com as mães a fim de entendermos como é o dia a dia delas, o que elas fazem que envolva a matemática e como é a relação delas com os filhos na hora de orientar as tarefas. Pelo fato da pesquisa dessa narrativa derivar de outra pesquisa já em andamento, foi possível utilizar alguns dados já comprovados como o fato que as mães mesmo não sendo escolarizadas conseguem desenvolver mecanismos provenientes do letramento matemático. Nesses encontros realizados com as mães e filhos foram geradas discussões revelando tanto significados presumidos pelas mães sobre os entes matemáticos, como a maneira pela qual elas negociavam esses significados. Foi observado grande esforço por parte das mães em auxiliar seus filhos durante o desenvolvimento das atividades. Houve situações em que se desenvolveram relatos e discussões sobre a utilização do conhecimento matemático informal e outras de produções escritas entre mães e filhos. Algumas considerações A tabela a seguir apresenta as ocorrências seguidas das analises das observações nas residências e de entrevistas semi-estruturadas realizadas com as mães sujeitos da pesquisa. Das observações feitas nas residências a fim de constatar quais os tipos de materiais escritos presentes e, como os mesmos influenciam no processo de letramento utilizado pelas mães com seus filhos, foram encontrados os seguintes resultados: I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 99 TABELA1: TIPOS DE MATERIAIS ESCRITOS ENCONTRADOS. SUJEITO 1- 23- 45- MATERIAIS -Alguns livros didáticos, livros de romance, suspense, livros de receitas, cadernos de receitas (escritos à mão e com muitos recortes), calendários, Bíblia, revistas, revistas religiosas, lista telefônica, contas de banco, água, luz e outros, folhetos de supermercado e propagandas, dicionários, enciclopédias, bulas de remédio, recados na geladeira, livros de literatura infantil, manual de eletrodomésticos. -Calendário, Bíblias, revistas, livro religioso, bulas, folhetos de propagandas, livro didático, folhetos religiosos, manual de eletrodoméstico. -Livros infantis, livros didáticos, literatura para vestibular, enciclopédia de livros: Biologia, Química, Matemática, Física, História e Geografia, Bíblias, livro de histórias bíblicas, livro de literatura infantil, calendário, lista telefônica, dicionário, agenda telefônica, revistas e jornais antigos, embalagens de produtos alimentícios e cartas de correspondência. -Livros de literatura infantil (12), livros didáticos, revistas, folhetos de propagandas, Bíblias, livro de oração, dicionário e calendário. -Livros de literatura infantil, dicionário, apostilas escolares, revista, enciclopédias, listas telefônicas, agenda telefônica, calendários, manuais de eletrodomésticos, Bíblia, recados na geladeira, revistas de receitas, livro de receitas, recorte de embalagens e bulas de remédios. Nas entrevistas, quando foram questionadas a respeito das atividades que realizam diariamente e que utilizam a matemática, algumas mães responderam que utilizam a matemática com frequência ao irem ao supermercado e comparar preços, na hora que estão fazendo o almoço, e também de pagar as despesas mensais. Quanto ao acompanhamento escolar, elas afirmam ajudar nas tarefas de matemática, uma mãe, em especial, nos disse que ensinava a filha com grãos de soja. Quando questionada o porquê da soja, ela respondeu: [...] ah... é porque é o que tem em casa...tem muita soja em casa. E quando a tarefa dela é di mais eu pego cinco soja e mais duas soja e pergunto pra ela quanta soja tem?...E se é de menos também...daí ela pega a soja e eu faço junto com ela...daí ela consegue fazer... [sic] (Entrevista Ros) Conclusões prévias Para por fim em nossas observações, lembramos que se trata de uma pesquisa em andamento sujeita a alteração, porém com dados suficientes para firmarmos algumas questões sobre o conhecimento matemático que as mães de meios populares possuem e a relação com a construção do saber. Nossos dados convergem com os pressupostos de Zunino (1995), quando mostram que as mães pouco ou não escolarizadas demonstram preocupação com a escolarização de seus filhos e, mesmo que desconheçam possuírem conhecimentos da matemática formal, participam do processo ensino/aprendizagem, pelo fato de assumirem a obrigação de preparar seus filhos para as aulas. Em seu dia a dia colocam em prática esses conceitos mesmo desconhecendo-os enquanto tais frente ao conhecimento formal. Conseguem realizar atividades práticas em que utilizam matemática, como I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 100 analisar em qual supermercado a despesa será menor – as quantidades necessárias de alimento para o almoço – os juros das prestações mais extensas, entre outras coisas que puderam ser observadas. Mas não se dão conta que estão trabalhando conceitos matemáticos, que, para elas, consistem naqueles modelos e formas que a escola difunde a partir dos livros que seguem formatos pré - estabelecidos. Ficou claro para nós que essas mães de camadas populares são capazes de criar mecanismos de utilização dos conceitos matemáticos diante da necessidade de sanar os problemas que surgem no cotidiano, mas por vezes, encontram dificuldade para auxiliar os deveres escolares de seus filhos quando apresentados no formato da matemática escolar. Elas exercem práticas do letramento e letramento matemático, sem que estas sejam valorizadas até por elas mesmas. A pesquisa certamente contribuirá para que as mães tomem ciência de seus saberes sobre a matemática e sobre a língua materna, num contexto não habitual, podendo resultar em uma melhor interpretação dos problemas matemáticos. Conclui-se que para que seja desmistificada a visão preconceituosa sobre o conhecimento das famílias de meios populares e que se possa contribuir para a superação das discriminações e preconceitos em torno deste assunto, cabe à escola valorizar essas práticas de letramento dos meios populares, estabelecendo vias de interação entre escola/comunidade. E a partir dessas vivências, contribuir para sedimentar as relações apontadas como meio eficaz de consolidação da interação escola/ família/práticas de letramento e letramento matemático. [...] acreditamos ser papel da Educação Matemática fornecer ferramentas que permitam a construção do conhecimento futuro. E isto é feito a partir do domínio do conhecimento presente, que, segundo PIAGET& GARCIA (1984), nunca é um estado, mas sim um processo, influenciado por etapas precedentes de desenvolvimento, cuja transformação contínua dá-se por meio da reorganização e reequilíbrio das necessidades intrínsecas das estruturas, constituindo o produto de conquistas sucessivas. E, sendo assim, "as normas científicas se situam no prolongamento das normas de pensamento e de práticas anteriores...". (MOURA, Série Ideias n. 10, São Paulo: FDE, 1992). Em última análise, podemos afirmar que os conhecimentos matemáticos que as mães de meios populares possuem, foram construídos mediante os conflitos diários, e o fato de não possuírem elevados graus de escolarização não as impediu de construir o saber matemático, pois o mesmo não se restringe aos espaços escolares. Referências BARTON, D. Literacy: An introduction to the ecology of written language. Oxford: Blackwell, 1994. In: GRANDO, R. C.; MENDES, J. R. (Org). 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O instrumento apresentado aqui, utilizado para coleta de dados, é uma história envolvendo uma situação de não-aprendizagem. Os participantes eram convidados a pensar sobre as questões inerentes à história, bem como o papel da escola e do professor na situação proposta. Os dados indicaram não haver diferença entre os dois ambientes no que se refere à construção desse conhecimento social. No entanto, houve diferença muito significativa na maneira utilizada pelos alunos para resolverem os problemas da história: no ambiente tradicional a coerção e a expiação foram mais mencionadas e no ambiente sócio-moral construtivista, o diálogo e a cooperação. Os dados apontam ainda para a necessidade do trabalho com esse tipo de conhecimento em sala de aula, visto que as respostas dos sujeitos caracterizaram-se por uma compreensão parcial da realidade, centrada em aspectos mais visíveis e aparentes dos fatos e na não-consideração de processos ocultos. Palavras-chave: Conhecimento social. Teoria piagetiana. Ideias infantis. Abstract This paper presents partial data of a research on the construction of social knowledge under the Piagetian perspective, more specifically on children’s ideas about the school and the teacher. The participants of the study were 52 children aged between 7 and 8 years, who were immersed into different educational environments: one of them considered a traditional teaching environment and the other one considered a socio-moral constructivist environment. The instrument that we present here, used for data collection, is a story involving a non-learning situation. The participants were asked to think about issues related to the story, as well as the role of the school and the teacher in the proposed situation. Data indicated no difference between the two environments concerning the construction of social knowledge. However, there was significant difference in the way the students solved the problems of the story: in the traditional environment, coercion and atonement were more mentioned while in the socio-moral constructivist environment, dialogue and cooperation were mentioned instead. Data also indicate the need to work with this type of knowledge in the classroom since the answers of the subjects were characterized by a partial comprehension of reality, focusing on more visible and apparent aspects of the facts and on the nonconsideration of hidden processes. Keywords: Social knowledge. Piagetian theory. Children's ideas. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 103 Introdução Neste artigo, buscamos apresentar parte dos resultados de uma pesquisa que investigou a construção do conhecimento social, em crianças de 7 e 8 anos, especificamente, as ideias dessas crianças sobre a escola e sobre o professor. O instrumento que apresentaremos aqui teve a finalidade de analisar como as crianças viam as possibilidades de ação docente e o papel da escola em uma situação de não aprendizagem. Trata-se da interpretação de uma história envolvendo a problemática da não aprendizagem, sobre a qual crianças de dois tipos de ambientes educativos, um considerado tradicional e outro sócio-moral construtivista, foram solicitadas a apresentarem suas concepções acerca do assunto, as possíveis resoluções e ainda as possíveis consequências para os envolvidos, sobretudo aluno e professor. Referencial Teórico O legado da obra Piaget nos mostra, em pesquisas criteriosas realizadas em diferentes sociedades e com um grande número de sujeitos, que o conhecimento é construído a partir da interação que estabelecemos com o meio físico e social. Para Piaget, o desenvolvimento psicológico, que conduz a criança ao pensamento adulto, não depende unicamente de fatores hereditários, ou da pressão do meio físico, mas, sobretudo, da influência da vida social sobre o indivíduo. O escopo de seu trabalho foi comprovar esse longo processo de construção e equilibração que percorremos no aperfeiçoamento de nossas capacidades adaptativas. Os estudos de Piaget, como também de seus seguidores, demonstraram que nem todos os conhecimentos são da mesma natureza. Portanto, de acordo com o referencial piagetiano, há três tipos de conhecimento: o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático e o conhecimento social. Simplificadamente, podemos dizer que o conhecimento físico é aquele adquirido a partir da experiência direta sobre os objetos, pelo processo de descoberta e estruturado a partir da “abstração empírica”, isto é, a “abstração das propriedades observáveis que são inerentes aos objetos” (ASSIS, 2003, p.78). Cor, forma, textura, gosto, odor, entre outros, são alguns exemplos de propriedades que encontramos nos objetos. O conhecimento lógico-matemático é aquele estruturado a partir da “abstração reflexionante” que tem origem na coordenação das ações que os indivíduos exercem sobre os objetos (PIAGET et al, 1995). Por meio dessa abstração são criadas e introduzidas relações entre os objetos, como, por exemplo, comparar, quantificar, entre outros. O conhecimento social é o conhecimento proveniente das transmissões sociais, fruto das determinações e interações sociais. Tal conhecimento é adquirido a partir de informações fornecidas pelas pessoas e pelo ambiente social em que estão inseridas. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 104 No entanto, ainda que proveniente do ambiente social, os resultados de pesquisas sobre o conhecimento social, corroboram aquilo que a teoria piagetiana acreditava ser o papel ativo do sujeito que conhece. Nessa perspectiva, a construção desse conhecimento vai assumir uma interpretação diferente, a de que os dados não se impõem, mas são reorganizados, interpretados, o que condiz com os processos de assimilação e acomodação34. Portanto, as crianças transformam os fenômenos sociais em objetos de conhecimento, dando-lhes conceitualizações e ideias bastante singulares. Durante o desenvolvimento infantil, a criança vai formando representações dos diferentes aspectos da sociedade em que vive, sendo esta representação produto da influência dos adultos e “resultado de uma atividade construtiva a partir de elementos fragmentados que recebe e seleciona” (DELVAL, 1989, p. 245). Dessa forma, podemos concluir que a criança realiza uma tarefa individual que nada tem a ver com uma assimilação passiva e que as representações que elabora não são simples cópias das dos adultos (DELVAL, 2007). Enesco et al (1995) esclarecem que ao se tratar do conhecimento social como objeto de conhecimento, estuda-se aquilo que é produzido em um contexto social e que adquire o seu significado no seio das relações com os outros. Esse objeto de conhecimento pode se caracterizar por diferentes dimensões, tais como: o conhecimento do eu e dos outros (conhecimento psicológico ou pessoal), as relações interpessoais, os papéis sociais, as normas que regulam as condutas dentro do grupo social, o funcionamento e a organização da sociedade (economia, política, etc). Ao considerarmos essas diferentes dimensões que compõem o conhecimento social, observamos, evidentemente, que as crianças sofrem múltiplas influências sociais por meio de suas interações e trocas com tudo e todos que fazem parte do ambiente em que estão inseridas, como por exemplo: a linguagem, os valores, as regras e normas sociais do grupo, o exercício dos papéis etc. É a partir dessas trocas e, sobretudo, da qualidade dessas trocas, que as crianças iniciam a construção de suas representações da realidade social. Enesco e Navarro completam essa ideia: Esto no significa que los niños inventen la realidad a espaldas de ella, pero si que construyen representaciones que no son copias de ella, sino inferencias realizadas a partir de aquellas interacciones u observaciones que, utilizando la terminologia piagetiana, pueden asimilar (ENESCO; NAVARRO, 1994, p. 72). 34 A título de complementação: dois conceitos-chave da obra piagetiana são os conceitos de assimilação e de acomodação. Segundo Piaget, a assimilação é entendida “como a acepção ampla de uma integração de elementos novos em estruturas ou esquemas já existentes”, ou seja, por um lado implicaria a noção da significação e, por outro, expressaria a ideia de que todo conhecimento está ligado a ação e de que o conhecimento de um objeto ou acontecimento seria o mesmo que assimilá-lo a esquemas de ação (PIAGET, 1978, p.11). Já o processo de acomodação é definido por este autor como “toda modificação dos esquemas de assimilação, por influência de situações exteriores”, como, por exemplo, quando um esquema não é suficiente para responder a uma situação, surge a necessidade de o esquema modificar-se em função da situação (PIAGET, 1978, p.11). Estes processos internos são mecanismos inseparáveis e complementares que, ao atingirem um equilíbrio entre si, resultam na adaptação. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 105 Uma prova de que o conhecimento social é construído é a de que as crianças desenvolvem ideias ou explicações que não foram “transmitidas” ou “ensinadas” diretamente pelos adultos (DELVAL, 2007). Delval (1990) conta que se surpreendeu a primeira vez que uma criança de 9 anos lhe disse que as pessoas eram pobres porque "não tinham dinheiro para comprar trabalho", e continuou a surpreender-se quando percebeu que as crianças da mesma idade de diferentes países e níveis sociais davam respostas semelhantes, dando-lhes um caráter universal. Tais respostas não revelavam uma prática comum na sociedade, tampouco algo que era ensinado às crianças. Nesse sentido, Denegri explica que: [...] a criança constrói uma representação da organização social a partir dos elementos que são proporcionados pelos adultos, os meios de comunicação de massa, as conversas, as informações que recebe na escola e suas próprias observações. No entanto, ainda que esteja imersa no mundo social desde que nasce, sua experiência é peculiar e distinta do adulto. Em primeiro lugar, trata-se de uma experiência muito mais reduzida que a do adulto, e, além disso, fragmentada. Há muitas coisas e lugares aos quais não têm acesso, não participa da vida política e – ainda que esteja submetida a múltiplas restrições por parte dos adultos – ignora os deveres e direitos e como é exercida a coação e a participação social. Por outro lado, a insuficiência de seus instrumentos intelectuais, ainda em desenvolvimento, a impedem de organizar as informações que recebe e articulá-las em um sistema coerente. Assim, chega a conformar conceitualizações próprias ou teorias implícitas que são divergentes das adultas e que, curiosamente, mostram grande semelhança entre crianças de diferentes países e meios sociais (DENEGRI, 1998, p.45). Essas conceitualizações próprias que revelam as crenças espontâneas que as crianças vão elaborando acerca da realidade social foram encontradas em diversas pesquisas. Nestes diferentes trabalhos de investigação, é possível encontrar concepções de crianças e jovens referentes a várias noções do conhecimento social, entre eles podemos destacar: as pesquisas de Sierra e Enesco (1993) que realizaram um estudo evolutivo a respeito da compreensão sobre o acesso a distintas profissões; os estudos de Delval e Echeita (1991) e Delval (2002) que buscaram conhecer a compreensão que crianças e adolescentes tinham em relação ao mecanismo de intercâmbio econômico (compra e venda) e ao lucro e o trabalho de Enesco et al (1995) que investigou as mudanças evolutivas na representação do funcionamento da sociedade, assim como na compreensão dos elementos que compõem a organização social (riqueza e pobreza, estratificação e mobilidade social, as explicações sobre desigualdade em grupos sociais diferentes etc.). A respeito desse último trabalho citado, vale dizer que Denegri (1998) e Navarro e Peñaranda (1998) encontraram resultados semelhantes aos de Enesco et al (1995) ao trabalharem com crianças chilenas e mexicanas. Temos também: os estudos de Amar, Abello e Denegri (2001) sobre o desenvolvimento de conceitos econômicos em crianças e adolescentes colombianos; o trabalho de Delval et al (2006) sobre as concepções de trabalho de crianças mexicanas que trabalham nas ruas; a pesquisa de Denegri e Delval (2002a, 2002b) sobre o dinheiro; o estudo de Amar et al (2006) a respeito das I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 106 representações referentes a pobreza, desigualdade social e mobilidade socioeconômica de estudantes universitários e de pobreza e desigualdade social em crianças colombianas (Amar et al, 2001), o trabalho de Delval e Vila (2008) sobre a divindade, as origens da vida e a morte. No contexto brasileiro, destacamos os trabalhos de Tortella (1996, 2001) que observou a evolução das representações das crianças sobre a amizade; a pesquisa de Godoy (1996) que investigou as idéias infantis sobre a etnia; o trabalho de Saravali (1999) a respeito da evolução do conceito de direito; o estudo de Borges (2001) sobre o conceito de família; os trabalhos de Cantelli (2000, 2009) sobre as representações de escola e sobre a educação econômica; a pesquisa de Baptistella (2001) sobre a compreensão de um comercial televisivo; o trabalho de Braga (2003) sobre as representações acerca do meio ambiente; o estudo de Pires e Assis (2005) sobre a noção de lucro; a pesquisa de Araújo (2007) sobre o desenvolvimento do pensamento econômico e o trabalho de Guimarães (2007) sobre as representações de escola e de professor. Os resultados dessas pesquisas nos auxiliam a compreender a construção do conhecimento social, mostrando, em relação a diferentes conceitos e noções, como as crianças dão sentido à realidade. Os estudos referentes à construção desse tipo de conhecimento mostram o que as crianças fazem com as informações provenientes do ambiente social, com os conteúdos que lhe são transmitidos, bem como explicam processos e concepções peculiares que os sujeitos têm e vão construindo sobre a realidade ao longo do seu desenvolvimento. Tais resultados são bastante significativos não somente para aqueles que se dedicam ao estudo da epistemologia ou da psicologia, mas também para os que lidam com a pedagogia. Objetivos O objetivo geral da pesquisa apresentada aqui foi comparar as representações de escola e de professor de crianças inseridas num ambiente educacional sócio-moral construtivista com as de crianças inseridas num ambiente educacional tradicional. O objetivo específico do instrumento metodológico que será apresentado neste artigo foi o de analisar como crianças de idades entre 7 e 8 anos viam as possibilidades de ação docente e o papel da escola quando pensadas em uma situação de não aprendizagem e ainda verificar se as respostas seriam diferenciadas dependendo do ambiente educacional que a criança estaria inserida. Metodologia Trabalhamos com 52 sujeitos entre 7 e 8 anos: 30 alunos regularmente matriculados numa I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 107 primeira série considerada um ambiente tradicional e 22 alunos regularmente matriculados numa primeira série considerada um ambiente sócio-moral construtivista. O ambiente tradicional escolhido apresentou relações coercitivas, autoritarismo da professora, expiação, rigidez e, muitas vezes, agressão à autoestima dos alunos. Já o ambiente sócio-moral construtivista apresentou uma postura docente diferenciada, com a presença de discussão prévia das atividades a serem desenvolvidas, rodas de conversas, sistema de votação para tomada de decisões, momentos de construções coletivas de textos, trabalho em duplas e resolução de conflitos sempre por meio de conversas. Os instrumentos metodológicos utilizados durante a pesquisa são compostos por uma entrevista semi-estruturada, uma história envolvendo uma situação problema de não aprendizagem em sala de aula e uma proposta de desenho. Os dados foram coletados a partir de entrevistas semi-estruturadas baseadas no método clínico-crítico piagetiano (PIAGET, 1979). A história utilizada no instrumento que será apresentado a seguir foi: O aluno Marcelo (de idade igual a da criança a ser questionada), não consegue aprender as lições que a professora ensina. Todos os dias ele não consegue copiar a matéria da lousa, não entrega as lições de casa e não resolve os problemas propostos pela professora. O que você acha dessa situação? O que você acha que está acontecendo com essa criança? Quem poderia ajudá-lo? E a escola? E a professora? Por que será que ele não aprende? O que você acha que a professora poderia fazer? E se ele não aprender o que vai ocorrer? A análise do material coletado foi feita a partir de categorias de respostas agrupadas em níveis de compreensão da realidade social, apresentados e definidos por Delval (2002). Para a quantificação inicial das respostas foi feita análise de frequência e frequência relativa (porcentagem) em cada uma das categorias, de modo a se ter uma visão inicial dos dados e das possíveis diferenças encontradas entre os dois ambientes de ensino. A partir destes primeiros dados, foi aplicado o teste de Qui-quadrado (X²) especificamente em cada uma das categorias de respostas com a finalidade de verificar a relação de dependência entre as variáveis: categoria e ambiente. Desenvolvimento Após a coleta de dados, as respostas das crianças foram transcritas na íntegra e analisadas quantitativamente e qualitativamente. A análise qualitativa foi dividida em três partes: a problematização, a resolução e o desfecho da história. Posteriormente, em cada uma das partes, foram ainda realizadas subdivisões por categorias de respostas. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 108 A problematização Para esse aspecto da história, foram analisadas as respostas em função de como os sujeitos problematizam a situação proposta, considerando-se os seguintes questionamentos: O que você acha dessa situação? O que você acha que está acontecendo com essa criança? Por que será que ele não aprende? Temos três categorias de respostas: Categoria 1 – Indisciplina Nesta categoria se enquadram os sujeitos que acreditam que o problema existente com a situação fictícia da história está na indisciplina. Esses sujeitos apresentaram explicações como “só fica conversando”, “só fica bagunçando” entre outras. Por exemplo: LUI (7,4 AT35) (...) O que você acha que está acontecendo com essa criança? Ele não tá prestando atenção na aula, só fica bagunçando, conversando com a pessoa de trás.(...) Por que será que ele não aprende? Porque ele não quer aprender, ele quer bagunçar. Categoria 2 – Desejo pessoal As respostas inseridas nesta categoria dizem respeito ao desejo pessoal como principal problema existente na situação proposta. Como “ele não aprende porque não quer” “tem preguiça de fazer”. É o caso de: DAN (8,1 AT) O que você acha dessa situação? Eu acho que esse menino não tá querendo fazer as coisas. O que você acha que está acontecendo com essa criança? Ela é muito preguiçosa.(...) Por que será que ele não aprende? Porque ele tem preguiça. Categoria 3 – Problemas biológicos, físicos e cognitivos Estas explicações caracterizam-se por apontamentos de problemas de fundo biológico, físico ou ainda cognitivo presentes no sujeito fictício da história e que estariam causando a situação de não aprendizagem. Estes sujeitos apresentaram respostas como “tá com sono”, “precisa de óculos”, “não sabe”, “não consegue fazer as coisas” entre outras. Exemplos: GAH (7,5 AT) O que você acha dessa situação? Eu acho que ele tem que escrever. O que você acha que está acontecendo com essa criança? Ele pode tá doente, com dor de barriga. (...) Por que será que ele não aprende? Porque não consegue fazer nada... A quantificação das respostas por categorias é apresentada na tabela a seguir considerando o ambiente escolar pesquisado. 35 AT: ambiente tradicional. ASMC: ambiente sócio-moral construtivista. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 109 TABELA 01 - Distribuição de frequência e frequência relativa da problematização da história segundo o ambiente escolar pesquisado. AMBIENTES Tradicional A problematização da Sócio-Moral Construtivista F % f % 1-Indisciplina 10 33% 14 64% 2-Desejo pessoal 11 37% 6 27% 3-Problemas biológicos, físicos e cognitivos 5 17% 4 18% 4-Não sabe / outros 4 13,00% 2 9,00% história A resolução A partir dos questionamentos Quem poderia ajudá-lo? E a escola? E a professora? O que você acha que a professora poderia fazer? Buscou-se compreender como os sujeitos resolveriam o conflito proposto na história, surgiram três categorias de respostas para as concepções das crianças: Categoria 1 – Ajuda subjetiva Essas respostas fundamentam-se em aspectos subjetivos para a resolução da história proposta, como mostram os exemplos a seguir: ALA (8,2 AT) Quem poderia ajudá-lo? A professora dele, os pais e Deus. Mas como? O pais iriam ajudando ele em casa e Deus ia ajudando a colocar no cérebro dele, pra aprender tudo isso. E a escola? Eu acho... só Deus pode fazer alguma coisa. Categoria 2 – Por expiação e coação PAB (7,10 AT) Quem poderia ajudá-lo? A mãe dele ou o pai podiam brigar com ele porque ele não quer aprender e a mãe dele tem que trabalhar. E a escola? O prefeito tem quem tomar uma providência... expulsar ele ou dar suspensão de uns quatro ou três dias. E a professora? Os pais ou a diretora. O que você acha que essa professora poderia fazer? Deixar ele num canto, lá em frente da parede. Categoria 3 – Por cooperação Ao contrário da categoria anterior, as respostas dos sujeitos inseridas aqui apresentam resoluções baseadas em atitudes cooperativas, como ilustra o exemplo a seguir: I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 110 FAL (8,2 AT) Quem poderia ajudá-lo? A professora poderia contar uma história pra ele e depois dá uma folha pra ele escrever. E a escola? O diretor que podia ajudar, chamando a professora de reforço e pedindo pra ela contar uma história pro menininho. E a professora? A professora do reforço dando reforço pra história que ela contou. O que você acha que essa professora poderia fazer? Ela podia ir falando as letras pra ele, podia dar um lápis. A quantificação das respostas por categorias é apresentada na tabela a seguir considerando o ambiente escolar pesquisado. TABELA 02 - Distribuição de frequência e frequência relativa da resolução da história segundo o ambiente escolar pesquisado. AMBIENTES A resolução da história Tradicional Sócio-Moral Construtivista F % f % 1-Ajuda subjetiva 1 3% 1 5% 2-Por expiação e coação 18 60% 4 18% 3-Por cooperação 11 37% 18 82% 4-Não sabe/ outros 2 7% 1 5,00% O desfecho A partir do último questionamento: E se ele não aprender o que vai ocorrer? buscamos compreender qual a sugestão de desfecho para a história que os sujeitos apresentam. Foram observadas as seguintes categorias: Categoria 1 – Morte ou doença Esta primeira categoria apresenta respostas que suscitam a morte ou doenças para se referir ao desfecho da história. Exemplo: GAH (7,5 AT) E se ele não aprender o que vai acontecer Vai virar adulto e ficar doente de novo. VIK (7,10 ASMC) E se ele não aprende o que vai ocorrer? Vai morrer porque não sabe fazer as coisas. Categoria 2 – Aspectos ligados a aprendizagem de conteúdos escolares/ atraso ou fim da vida escolar As respostas desta categoria baseiam-se na ideia de que a não aprendizagem resultará em I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 111 problemas e déficits em relação aos conteúdos escolares acarretando em atraso ou mesmo no fim da vida escolar. Por exemplo: TIF (7,11 AT) E se ele não aprender o que vai ocorrer? Ele vai ficar burro e aí ele vai repetir de série, todo mundo vai ir pra frente e ele vai ficando pra trás.. Categoria 3 – Aspectos ligados a emprego, vida social e econômica Os sujeitos desta categoria apresentam desfechos relacionados a dificuldades em arrumar emprego e na vida social e econômica, como ficar sem dinheiro. Vejamos: GAB (7,3 AT) E se ele não aprender o que vai ocorrer? Ele vai ficar burro e quando ele quiser ser bombeiro não vai poder. Mas porque não vai poder? Porque pra ser bombeiro tem que estudar muito porque tem que aprender muita coisa de ser bombeiro. YME (7,8 ASMC) E se ele não aprender o que vai ocorrer? Cada vez mais vai ficar mais burro, aí quando crescer não vai poder trabalhar, aí não vai ter comida, vai ter que pedir esmola e ninguém vai dar pra ele. A quantificação das respostas por categorias é apresentada na tabela a seguir considerando o ambiente escolar pesquisado. TABELA 03 - Distribuição de frequência e frequência relativa do desfecho da história segundo o ambiente escolar pesquisado. AMBIENTES O desfecho da história Tradicional Sócio-Moral Construtivista F % f % 1-Morte ou doença 1 3% 2 9% 2-Aspectos ligados a aprendizagem de conteúdos escolares/ atraso ou fim da vida escolar 13 43% 15 68% 3-Aspectos ligados a emprego, vida social e econômica 15 50% 3 14% 4-Não sabe/ outros. 4 13% 2 9% A análise quantitativa realizada para a problematização, a resolução e o desfecho da história evidenciou o seguinte: O teste Qui-quadrado efetuado na categoria “Por expiação e coação”, do item resolução, apontou uma associação muito significativa entre os dois ambientes. Os alunos inseridos no ambiente tradicional foram os que mais indicaram a expiação e a coação como meios de resolução para a história proposta. Dessa forma, X² = 7.461; gl = 1; P = 0.0063. O teste Qui-quadrado efetuado na categoria “Por cooperação” apontou uma associação muito I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 112 significativa entre os dois ambientes. Os alunos inseridos no ambiente sócio-moral construtivista foram os que mais indicaram a cooperação como meio de resolução para a história proposta. Dessa forma, X² = 8.739; gl = 1; P = 0.0031. O teste Qui-quadrado efetuado na categoria “Aspectos ligados a emprego, vida social e econômica”, do item desfecho, apontou uma associação significativa entre os dois ambientes. Os alunos inseridos no ambiente tradicional foram os que mais indicaram os aspectos ligados ao emprego, vida social e econômica na explicação para o desfecho da história proposta. Dessa forma, X² = 5.896; gl = 1; P = 0.0152. Conclusão Nossos dados mostraram, em concordância com as pesquisas referentes ao conhecimento social, que as crianças percorrem caminhos bastante singulares na construção de suas representações sobre a escola e sobre o professor. Justamente temas que lhes são tão familiares e rotineiros. Isso significa que, mesmo em se tratando de um conhecimento que para muitos assume um caráter de transmissão cultural ou pedagógica, os sujeitos não o assimilam de forma passiva, mas o reelaboram e o interpretam. Assim, vão organizando as informações que recebem provenientes, por exemplo, das verbalizações dos docentes e unindo-as e inserindo-as em seus próprios processos e sistemas, transformando-as em concepções bastante singulares. Afinal, ninguém ensina para uma criança que se alguém não aprender na escola vai morrer, ou que só Deus pode ajudar uma criança que não consegue aprender, mas, essas foram idéias apresentadas aqui. As ideias apresentadas por nossos sujeitos concentraram-se em explicações baseadas nos aspectos mais visíveis da situação, sem a existência de processos ocultos que necessitam ser inferidos. Essa forma de pensar o mundo social caracteriza-se por aquilo que Delval (2002) denominou de primeiro nível de compreensão da realidade social. Acreditávamos, como hipótese de nossa pesquisa, que uma criança inserida em um ambiente permeado por relações horizontais de cooperação entre professor e aluno, bem como entre aluno e aluno, apresentaria ideias diferenciadas acerca do tema que pesquisávamos, como também uma tendência maior à reflexão. Como no ambiente tradicional essas relações não são valorizadas da mesma forma e a passividade do educando gera a reprodução, acreditávamos que as respostas e reflexões seriam diferentes, indicando uma construção diferente do conhecimento social, conforme o ambiente escolar. A análise apresentada aqui indicou que em relação à problematização da história não encontramos diferenças significativas entre as respostas dos sujeitos dos diferentes ambientes, sendo que todas elas I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 113 foram pautadas nos aspectos mais aparentes da situação. Tal fato nos mostra que, mesmo que o ambiente seja favorável em relação a vários aspectos do desenvolvimento infantil, no caso do conhecimento social, se esse conteúdo não estiver sendo explorado e trabalhado em sala, as crianças não o assimilam, nem o transformam passivamente. Todavia, pudemos observar uma diferença muito significativa na maneira como os sujeitos dos diferentes ambientes pesquisados analisavam a formas de resolução do problema colocado pela história. A maioria dos alunos inseridos no ambiente tradicional teve as suas respostas centradas na categoria dois, cuja resolução estava pautada em atitudes de expiação e coação. Já as respostas dos sujeitos inseridos no ambiente de ensino considerado sócio-moral construtivista centraram-se na categoria três em que a resolução da situação da história estaria pautada em atitudes cooperativas e no respeito mútuo entre os envolvidos. Estas considerações nos trazem indícios significativos de que existe realmente influência do tipo de ambiente nas concepções das crianças, mesmo que apenas na forma de conceber atitudes em uma situação problema. As crianças inseridas em um ambiente diferenciado apresentaram, de certa forma, ideias mais evoluídas do que as outras do ambiente tradicional. Em relação ao desfecho da história observamos diferença significativa na categoria três “Aspectos ligados a emprego, vida social e econômica”. A maioria das respostas pertencente a essa categoria era proveniente de crianças do ambiente tradicional. É importante ressaltar que essas respostas das crianças do ambiente tradicional retratavam o discurso utilizado pela professora em sala de aula. Durante as observações realizadas nas aulas, foi possível presenciar a professora dizer aos alunos que era necessário aprender caso contrário não conseguiriam trabalhar, obter dinheiro, passariam fome, entre outras consequências, inclusive “ninguém vai gostar de vocês.” Isso nos remete novamente à importância do trabalho com o conhecimento social em sala de aula. É preciso considerar e caminhar em prol dos processos que os alunos percorrem e compreender que a partir do que lhes é transmitido, os sujeitos fazem reorganizações individuais e isso não pode ser perdido de vista na organização das atividades, no planejamento dos projetos, enfim, nas ações didáticas. Portanto, o trabalho com o conhecimento social necessita ser levado para a sala de aula de tal forma que as crianças possam pensar, compreender, debater, formular e reformular suas próprias ideias. A qualidade dessa interação, possibilitada pelo docente e estabelecida pela criança, tem influência na forma como se processam o desenvolvimento físico, social, afetivo, moral e intelectual dos alunos. No caso do tema tratado no presente trabalho, essa influência ocorre na abertura de possibilidades para que os alunos tenham a compreensão da real função da escola e do professor. Dessa forma, cabe aos docentes I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 114 conhecerem as concepções que as crianças elaboram sobre as noções sociais e, a partir daí, dirigir as futuras ações e o trabalho pedagógico. As ações em sala de aula podem favorecer ou não a consolidação e o sucesso da construção desse tipo de conhecimento. Assim, especificamente no caso da presente pesquisa, compreender o que uma criança pensa sobre a instituição escolar e sobre o professor é importante para um trabalho que envolva esse conteúdo. Nosso estudo e os dados obtidos trazem contribuições para as reflexões e demais investigações sobre a construção do conhecimento social e sobre as implicações dessa construção para o trabalho docente. A partir de nossa pesquisa acreditamos poder contribuir para uma maior compreensão do assunto. Referências AMAR, J.; ABELLO, R.; DENEGRI, M. El desarrollo de conceptos econômicos en niños y adolescentes colombianos y su interacción con los sectores educativo y calidad de vida. Informe final Proyecto Colciencias 1215-11-369-97, 2001. AMAR, J. et al. La construcción de representaciones sociales acerca de la pobreza y desigualdad social em los niños de la región Caribe Colombiana. Investigación y Desarrollo. v.09, n.2. 2001, p. 592-613. AMAR et al. Representaciones acerca de la pobreza, desigualdad social y movilidad socieconómica em Estudiantes universitários de la ciudad de Barranquilla, Colombia. Investigación y Desarrollo. v.14, n.2,2006, p. 312-329. ARAÚJO, R. M. B. 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 117 Estudos Psicogenéticos sobre a Compreensão do Mundo Social pela Criança CANTELLI, Valéria C. B. FERMIANO, Maria A. B. L.P.G./ Faculdade de Educação/ UNICAMP/ Campinas/ Brasil [email protected] [email protected] Resumo Recentemente, vem emergindo, entre os pesquisadores e docentes brasileiros, um crescente interesse em conhecer como a criança compreende o mundo social e o papel que a educação pode assumir nessa tarefa. O conhecimento social implica um laborioso processo de construção por parte do sujeito. O presente trabalho apresenta os resultados de pesquisas realizadas pelos integrantes do Laboratório de Psicologia Genética da Faculdade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientação da Profa. Dra. Orly Zucatto Mantovani de Assis. Algumas pesquisas direcionaram-se para noções sociais as mais diversas, como: família, escola, direitos, etnia, amizade, meio ambiente. E outras, tomaram um rumo mais específico, isto é, analisaram a economia no cotidiano das mais variadas redes de conhecimento: riqueza e pobreza, influências da propaganda e marketing, necessidade e consumo, lucro, entre outros. Todos esses trabalhos têm por objetivo buscar novos elementos para explicar como ocorre a assimilação dos fenômenos sociais e como os educadores podem intervir de forma a favorecer a construção dessas ideias pelas crianças de diferentes idades, de modo a contribuir para a construção de uma sociedade democrática. Tais estudos se fundamentam na psicologia e na epistemologia genéticas de Jean Piaget e têm como instrumento de investigação o método clínico crítico, que vem se mostrando bastante adequado para os estudos de natureza social. Os resultados demonstraram a existência de uma evolução na compreensão do mundo social, que pode ser interpretada como um processo de mudança conceitual, podendo ser explicado de acordo com a perspectiva construtivista como resultante de progressivas abstrações e coordenações entre ações reais ou possíveis, a partir das experiências vivenciadas pelos sujeitos. As conclusões apontam para a necessidade de um trabalho pedagógico sistemático para auxiliar a construção de juízo crítico sobre as questões sociais, a compreender as representações e a utilizar estratégias coerentes e inovadoras nas mais diferentes situações. Palavras-Chave: Conhecimento social. Educação construtivista. Educação econômica. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 118 Abstract The present inserted inquiry in the area of the Social Knowledge, in the field of the Economic Education, is characterized as a basic research, following a exploratory and descriptive model. It has for objective to know the procedures used for parents and mothers of different familiar structures (monoparental, biparental and recomposta) and levels socioeconômicos for the economic education of its children. The collection of data had as base a structuralized questionnaire, created exclusively for this study. Given the qualitative-quantitative nature of the inquiry, analyses of content, confirmatory exploratória and for the comparison between the 0 variable had been carried through (test Qui-Square, Kruskall-Wallis and MannWhitney). The gotten data had indicated that the economic behavior of the families, as well as the procedures used for the economic education of the children intuitivos and are not planned, envidenciando the lack of information of the parents on the process of construction of the related social slight knowledge to the understanding of the economic events. The families believe that the economic education must be part of the formation of the children, even so do not carry through no systematic effort to foment habits and behaviors adjusted for the consumption. In the general analysis of the described process of economic socialization for this sample, the changeable familiar structure did not represent significance statistics, being that the socioeconômico level appeared as a differentiation factor for the most part enters the groups of the investigated aspects. The influence of the way in the process of economic socialization was observed that the participants tend to transmit the knowledge and values brought of its families of origin, evidencing. The analysis of the results to the light of the piagetiana theory and the contributions of the Education and Economic Psychology legitimizes the necessity of new systematic educative proposals that result in such a way in true economic alfabetização for the children how much for the parents. Keywords: Economic education. Alphabetization economic. Economic socialization. Social knowledge. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 119 Introdução O contexto social atual mostra-se turbulento. Particularmente para as famílias, os tempos são difíceis, os valores se relativizam, e, em muitos lares, ter parece ser mais relevante do que ser. Por isso é importante refletir sobre o enfrentamento das pressões impostas pela sociedade de consumo. Como fazer frente aos seus apelos se a sociedade moderna está organizada em torno dele? Como enfrentar a difícil tarefa de construir uma relação mais equilibrada com o dinheiro? Diante dessas questões a presente pesquisa, inserida no campo da Educação Econômica, que constitui uma das áreas do conhecimento social, buscou investigar o que as famílias estão ensinando aos filhos sobre o mundo econômico e, mais ainda, provocar a reflexão sobre o papel socializador da família, particularmente no que se refere à educação econômica de seus filhos, trazendo subsídio para a compreensão de como se desenvolve esse processo entre as famílias brasileiras. Referencial teórico O aparecimento de novas pesquisas sobre os aspectos sociais do desenvolvimento psicológico fundamentadas na epistemologia genética de Jean Piaget tem conduzido a uma renovação nas investigações sobre a compreensão da sociedade, provocando um crescente interesse pelo estudo da formação das representações ou modelos do mundo utilizados pelos indivíduos para dar sentido à realidade social. A aquisição do conhecimento social, como demonstram os trabalhos de Delval (1989, 1992, 1994); Enesco (1995); Enesco, Delval e Linaza (1989); Denegri (1995, 1998, 2003, 2004) depende dos recursos simbólicos e das ideias elaboradas pelo sujeito a partir dos seus instrumentos cognitivos. Trata-se de um processo de construção de representações que, partindo de informações fragmentadas e não relacionadas entre si, são, gradativamente, reelaboradas, até serem substituídas por noções mais avançadas que integram as primeiras. Essa constatação, aliada à reflexão sobre os efeitos da globalização nas diferentes culturas, que por sua abrangência impõe um ritmo acelerado e consumista ao comportamento do cidadão, tem despertado o interesse dos pesquisadores para questões ligadas à compreensão do mundo econômico. Dentre os quais destacam-se os nomes de Berti e Bombi, Delval, Denegri e colaboradores e dos pesquisadores do Laboratório de Psicologia Genética da Faculdade de Educação da UNICAMP, sob a coordenação de Mantovai de Assis. Os resultados das investigações desenvolvidas por esses pesquisadores evidenciam que a I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 120 compreensão do sistema econômico, um dos pilares que sustentam o mundo social, apresenta-se como um dos temas de maior complexidade para o entendimento tanto dos adolescentes quanto dos adultos. A maioria das pessoas apresentam sérias dificuldades para compreender questões relacionadas à origem e circulação do dinheiro, às inter-relações e fatores que determinam os eventos econômicos, ao papel do Estado na regulação da economia e emissão monetária, ao alcance e uso dos instrumentos econômicos vinculados à poupança, crédito e endividamento, o que interfere no modo como elas lidam com a economia cotidiana, impossibilitando-as de uma atuação mais consciente e adequada sobre as relações financeiras. Os estudos de Denegri (2003) e de outros pesquisadores associados, realizadas na América Latina, mostram que a compreensão do mundo econômico requer que o indivíduo construa uma visão sistêmica do modelo financeiro-social no qual está inserido, o que implica em manejar série de informações específicas, desenvolvendo competências e atitudes que lhe permitam o uso adequado de seus recursos econômicos, a assimilação de hábitos e condutas de consumo e a administração racional e eficiente do dinheiro. Nessa perspectiva, a educação sobre os temas econômicos facilitaria o acesso às ferramentas disponíveis para o entendimento desse universo, possibilitando as condições para a interpretação dos eventos que afetam as pessoas direta ou indiretamente e para uma maior coerência nas decisões a serem tomadas sobre a multiplicidade de problemas econômicos cotidianos. Sabe-se que a conquista da maturidade econômica é um processo complexo, envolvendo várias transições diferentes. A idade em que isso ocorre, o período de tempo em que se estende e a sequência em que se dá mostram uma ampla variação entre sociedades, períodos históricos; entre classes e grupos dentro de uma sociedade e também entre indivíduos. Contudo, parece evidente que níveis mais altos de alfabetização econômica36 devem ser alcançados por um maior número de cidadãos, possibilitando-lhes melhores meios para conhecer e enfrentar esse modelo que os impele ao consumo. Mas, como o ser humano começa a se relacionar com o mundo econômico? Como ele chega a construir e criar significados sobre esse universo tão complexo? Quais as experiências cotidianas que ele realiza no esforço de explicar os fenômenos econômicos que o afetam? São respostas para questões como estas que os novos estudos estão buscando, como forma de possibilitar uma melhor compreensão das relações econômicas, além de explicar como ocorre o processo de socialização econômica 37 dos 36 37 Para Yamane (1997) o processo de alfabetização econômica se refere à aprendizagem e ao desenvolvimento de conceitos, habilidades e destrezas que permitam ao indivíduo compreender o sistema econômico e que o ajudem a tomar decisões que venham de alguma maneira melhorar a sua qualidade de vida. O termo socialização econômica é tomado neste trabalho, no sentido de educação econômica, como o processo de aprendizagem das pautas de interação com o mundo econômico, mediante a assimilação de conhecimentos, destrezas, estratégias, padrões de comportamento e atitudes sobre o uso do dinheiro e seu valor na sociedade (DENEGRI; I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 121 indivíduos. A socialização, como linha de investigação da área de Educação Econômica, encarregada de estudar como os indivíduos constroem os conceitos econômicos, em quais estágios do desenvolvimento ocorrem essas construções e como o fator interação social com o meio circundante afeta esse processo de aprendizagem, encontra na família um espaço privilegiado, na medida em que as primeiras interações que se constroem entre a criança e mundo ocorrem no círculo familiar, desempenhando papel preponderante na forma como a criança concebe o mundo social e, consequentemente, na formação de seus valores, crenças e comportamentos. Nessa perspectiva, a socialização é um processo que acontece durante toda a infância e se estende pela adolescência e vida adulta por meio das práticas e das experiências vividas, assimiladas de acordo com seu sistema de significação e suas estruturas cognitivas. Não se limita de modo algum a um simples treinamento realizado pela família ou outras instituições especializadas, e varia de acordo com o universo de socialização, forçosamente diferente segundo a origem social da pessoa, sociedade onde ela vive e grupo a que pertence. Nas sociedades contemporâneas, caracterizadas pela globalização econômica e cultural e, sobretudo, pela presença crescente de poderosas mídias, esse processo está fortemente submetido à influência de outras instituições, o que o torna extremamente complexo e dinâmico, pois ele deve integrar todos os elementos presentes no meio ambiente e, ao mesmo tempo, contar com a participação ativa do próprio sujeito. De qualquer modo, um dos principais fatores para a socialização da criança é a educação, portanto, o modelo de conduta de pais e educadores exerce forte poder na formação dos hábitos infantis.. Apesar de seu impacto na vida futura dos indivíduos, existe escassa literatura sobre como e quando os meninos e meninas são apresentados ao mundo econômico e, ainda mais restritos, são os registros de estudos sobre como ocorre o processo de socialização econômica no âmbito familiar. Pouco se sabe sobre qual tem sido o papel das famílias nesse processo e são praticamente desconhecidas quais os procedimentos utilizadas pelas famílias latinas para alfabetizar economicamente seus filhos e se esses procedimentos diferem conforme a classe social e tipo de estrutura familiar. Observa-se também a ausência de estudos dessa natureza envolvendo brasileiros. Essas reflexões são importantes porque o comportamento cotidiano, os valores e comentários da família exercem influência sobre as atitudes dos filhos e é por isso que se acredita ser na família que se inicia o aprendizado de hábitos sadios de consumo ou os malefícios do consumismo desenfreado. PALAVECINOS; GEMPP, 2003). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 122 Famílias, as quais comentam com os filhos suas possibilidades econômicas, em que há planejamento conjunto de gastos sem que se oculte a existência de dificuldades monetárias e que estimula o uso racional dos recursos é aquela que educa para o consumo. Ao contrário, se demonstram constante preocupação com aquilo que os outros têm, se valorizam os ditames da moda ou da propaganda, estarão levando seus filhos pelo caminho do consumismo, inserindo-os na cultura dos descartáveis, do usar e jogar fora, que os leva a comprar impulsivamente objetos que logo irão descartar para, em seguida, comprá-los novamente, numa cadeia sem fim, para não se sintam inferiores aos outros. Piaget (1945/1998) esclarece que não pode ser livre aquele que não consegue controlar a própria vida, tanto no que se refere aos seus relacionamentos, como no que diz respeito a seus bens. Nesse sentido, estar numa situação de constante endividamento não permite o exercício de uma vida plena. Por isso, educar para o consumo é também preparar o indivíduo para a liberdade e autonomia moral, contribuindo para formar pessoas capazes de controlar a própria vida e, consequentemente, pessoas mais livres. A pesquisa Esta pesquisa, dada sua natureza exploratória e descritiva, está inserida na área do Conhecimento Social e teve como objetivo geral conhecer os procedimentos utilizados pelas famílias para a educação econômica de seus filhos. Para alcançar esse objetivo foi organizada, intencionalmente, uma amostragem composta por 270 participantes, com pelo menos um filho, em idades entre três e dezesseis anos, em cidade da Região Metropolitana de Campinas, Estado de São Paulo, pertencentes aos estratos socioeconômicos baixo, médio e alto, constituindo famílias monoparentais, biparentais e recompostas. O critério adotado para a composição da amostra buscou atender à demanda por estudos na área da socialização econômica, considerando o papel importante da família para o desenvolvimento do pensamento econômico de crianças e jovens, bem como para a formação de seus hábitos de consumo e de suas atitudes frente ao endividamento. Assim, a amostra teve distribuição equitativa nos níveis socioeconômicos baixo, médio e alto e nas três estruturas familiares: monoparental, biparental e recomposta, combinando-se nível socioeconômico e estrutura familiar para cada grupo de 30 participantes. A coleta de dados foi realizada com base em um questionário estruturado, com questões abertas e fechadas, criado especificamente para este estudo, permitindo a caracterização sociodemográfica dos participantes, a identificação das práticas de socialização implícitas no comportamento econômico da I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 123 família e a identificação das estratégias de educação econômica utilizadas com os filhos. As informações fornecidas pelos participantes foram tabuladas e posteriormente submetidas às análises de conteúdo, exploratória e confirmatória por meio de medidas resumo (média, desvio padrão, mínimo, mediana, máximo, frequência e porcentagem de análise de frequência). As variáveis categóricas foram comparadas usando-se o teste Qui-Quadrado e as variáveis contínuas foram comparadas por intermédio dos testes Kruskall-Wallis ou Mann-Whitney. Vale destacar que, nesse estudo, entende-se por procedimentos de socialização o conjunto de ações utilizadas pelas famílias para educar seus filhos sobre o mundo econômico. Essas ações englobam tanto as estratégias de educação econômica, concebidas como o conjunto organizado e coerente de regras, valores e ações que os pais e mães utilizam para alfabetizar economicamente seus filhos, como as práticas de educação econômica, entendidas como as ações implícitas realizadas pelos pais no processo de educação econômica de seus filhos a partir de sua conduta cotidiana. (DENEGRI; PALAVECINO; GEMP, 2003). Resultados A interpretação dos resultados da pesquisa evidenciou que as famílias preocupam-se quanto à educação econômica de seus filhos. A maioria dos participantes acredita que as crianças devam ser educadas para essa área, não apenas pela família, mas também pela sociedade. No entanto, ao justificarem a necessidade dessa educação demonstram desconhecimento sobre a construção dos conceitos econômicos e seus benefícios para a formação cidadã das novas gerações. Dentre as principais estratégias que pais e mães informam utilizar para a educação econômica de seus filhos, estão: incentivo às práticas de economia e poupança, conversa sobre dinheiro, administração dos próprios recursos por meio da disponibilização de dinheiro e situações de consumo. Com menor frequência foram mencionadas as estratégias de: restrição ao dinheiro, orientação sobre trâmites bancários, introdução às práticas comerciais, envolvimento no planejamento do orçamento familiar, pagamento por realização de tarefas ou bom comportamento e oferecer jogos que envolvem temas econômicos. Todos os participantes consideram importante que os filhos aprendam a economizar e poupar e que essa aprendizagem deva começar na infância, entretanto, relatam que utilizam esse procedimento esporadicamente. As formas comumente adotadas pelos filhos são: o cofrinho, a economia de dinheiro para comprar algo que desejam, a colaboração na redução do consumo de energia, água, entre outros e, ainda uma pequena porcentagem, adota a caderneta de poupança. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 124 As famílias justificam de forma semelhante a necessidade do aprendizado de economia e poupança por parte dos filhos, concordando que essa seja uma conduta de preparação para o futuro. Esses argumentos refletem a preocupação dos pais em garantir o acesso dos filhos a bens materiais, mas não chegam a conceder esse aprendizado como uma ferramenta de planejamento econômico e de distribuição de recursos a longo prazo. As conversas sobre o mundo econômico giram em torno do tema dinheiro e acontecem, esporadicamente, nos diálogos cotidianos, particularmente, diante das situações de consumo e dos pedidos dos filhos para lhes comprarem coisas. Um número expressivo de famílias disponibiliza dinheiro para os filhos sempre que pedem ou precisam. Chama a atenção o baixo percentual daqueles que utilizam a oferta regular de dinheiro na forma de mesada ou semanada para que os filhos tenham o compromisso de administrá-lo. Essas informações revelam o caráter utilitarista da oferta, para atender às demandas do filho naquele momento, não tendo o aspecto pedagógico que os leve a aprender de forma concreta como tomar decisões sobre seus gastos e poupança e de como planejar para atingir seus objetivos futuros. (DENEGRI,1998; FURHAM e THOMAS, 1984). Vale destacar que a maior incidência da prática de dar dinheiro a título de prêmio aparece nas famílias biparentais. Por outro lado, a família monoparental destaca-se como o grupo que mais utiliza a oferta de dinheiro de forma regular. As experiências envolvendo o consumo são bastante comuns nas famílias e fazem parte da convivência familiar. A maioria dos pais e mães levam seus filhos quando vão às compras em diferentes locais de comércio. Nessas ocasiões, é comum os filhos pedirem coisas, sendo atendidos pelos pais que tendem a comprar sempre que podem ou quando for necessário. Essa conduta indica prática pouco coerente com uma educação voltada para o consumo racional e equilibrado. Tal comportamento reflete ausência de planejamento e controle dos gastos, além de dificultar a aprendizagem da escolha, diferenciando o essencial do supérfluo. As razões que levam os pais a atender aos pedidos dos filhos apoiam-se em uma mistura de argumentos racionais e emocionais. Esse conjunto de práticas constituem importante experiências de socialização econômica, refletindo a preocupação das famílias em ensinar aos filhos o valor do dinheiro e a necessidade de poupança. No entanto, observa-se, pelas respostas dos participantes, que nem sempre os objetivos dos I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 125 pais estão claros para eles mesmos. Na prática, as estratégias de educação econômica são implementadas de forma espontânea, como respostas às demandas dos filhos ou às situações de consumo, sem um planejamento por parte dos pais e mães. Essas atuações esporádicas e não sistemáticas caracterizam-se pelo que se pode chamar de comportamento intuitivo, ou seja, pela busca de boas alternativas baseadas na própria experiência dos pais e em hipóteses de senso comum, o que permite considerar que não se apresentam com estratégias de alfabetização econômica no sentido concebido por Denegri, Palavecinos e Gempp (2003). De modo geral as famílias avaliam a experiência de educação econômica dos filhos como satisfatória. No entanto, ao relacionar essa avaliação com a ausência de sistematização dos procedimentos utilizados por elas, percebe-se sua superficialidade. Daí a necessidade de se investir na formação dos que vão educar as crianças. Quanto às dificuldades mencionadas pelos participantes em relacionar criança e consumo, as famílias destacam sua impotência diante da influência da mídia, despreparo frente às solicitações dos filhos e submissão à pressão social. Essas dificuldades parecem traduzir o modelo de sociedade globalizada ao qual o indivíduo se vê submetido, tendo que consumir para poder fazer parte dela. Em síntese, os procedimentos utilizados pelas famílias não assumem um caráter de alfabetização econômica, pois não geram o desequilíbrio no sentido piagetiano, impossibilitando a ocorrência da auto regulação na conduta dos filhos. As ações dos pais oscilam entre tendências do laissez faire, na qual tudo pode, e autoritária, com a imposição de comandos e regras, mas em qualquer desses extremos, são comportamentos que impedem que as crianças/filhos compreendam e interiorizem as consequências de seus atos e se auto organizem em direção à condutas mais evoluídas e conscientes. Esses resultados assemelham-se aos encontrados por Denegri, Palavecinos e Gemmp (2003), Amar et al. (2006) e Denegri et al.(2003), mostrando que os pais são importantes educadores econômicos, por serem os principais provedores do dinheiro. Entretanto, nessa área, suas ações têm se mostrado limitadas e até contraditórias, assumido uma caráter informal e não sistemático . Ao analisar comparativamente os procedimentos que os participantes utilizam para a educação econômica dos seus filhos, buscando verificar se há diferenças quanto à estrutura familiar, observou-se que as famílias não se diferenciam quanto à maioria dos procedimentos de educação econômica dos filhos. Geralmente, os participantes apesar das diferentes configurações familiares demonstram semelhanças, tanto em relação ao seu comportamento econômico, resultando em práticas implícitas de educação para os filhos quanto no que se refere às estratégias que afirmam utilizar para educá-los I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 126 economicamente. Vale esclarecer que em alguns aspectos foi observada a interferência da variável estrutura familiar. Dentre os aspectos relacionados ao comportamento das famílias destaca-se o fato de encontrar-se na família monoparental a maior frequência de planejamento sistemático, análise sistemática da situação financeira antes das compras, bem como menor frequência de utilização de cheque pré-datado ou cartão. Quanto aos aspectos relacionados às estratégias utilizadas pelas famílias para a educação econômica dos filhos, os que se mostraram mais sensíveis à variável estrutura familiar foram: os temas das conversas entre pais e filhos, sendo assuntos relacionados ao dinheiro predominantes na família monoparental, já nas famílias biparental e recomposta, além de assuntos relacionados ao dinheiro, são também discutidos temas econômicos variados. Destaca-se, ainda, que as respostas para a categoria envolvimento dos filhos no orçamento familiar foram apresentadas predominantemente pelo grupo monoparental. As famílias apresentam comportamentos diferentes com relação à frequência de disponibilização de dinheiro para os filhos. As famílias monoparental e recomposta se destacam por dar dinheiro aos filhos sempre que pedem e regularmente, já para a família biparental, se sobressai a resposta “não dou dinheiro”. Observou-se que tanto o comportamento econômico dos participantes quanto os procedimentos usados para a educação dos filhos mostram-se menos assistemáticos nos níveis mais altos, podendo, portanto, confirmar a hipótese de que os procedimentos para educação econômica utilizados pelos progenitores diferenciam-se conforme o nível socioeconômico na maior parte dos aspectos investigados por este estudo. Esse resultado coincide com o encontrado por Denegri (2003), Denegri, Palavecinos e Gempp (2003) e Denegri et al. (1999), mostrando que os fatores de experiências socais, como a escolarização, o domicílio, o nível socioeconômico das pessoas interferem no seu entendimento dos fenômenos econômicos e hábitos de consumo. Buscando a relação entre comportamento e estratégia de educação econômica, procurou-se comparar o processo de socialização vivenciado pelos pais quando criança e o modo como praticam a educação econômica de seus filhos. Essa comparação mostrou que os participantes tendem a transmitir os conhecimentos e valores provenientes de suas famílias de origem, evidenciando a influência do meio no processo de socialização I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 127 econômica. Observou-se que pais que receberam orientação econômica ao longo do seu desenvolvimento têm maior preocupação em manter conversas sistemáticas sobre assuntos econômicos com seus filhos, enquanto aqueles que não receberam qualquer orientação não mantêm essas conversas. Também percebe-se uma associação entre o que os pais e mães aprenderam na infância e o que eles transmitem a seus filhos Esses dados indicam, em seu conjunto, por um lado, que vários aspectos do comportamento das famílias estão refletidos nas estratégias que utilizam para a educação de seus filhos, por outro, evidencia a distância existente entre os valores das famílias, traduzidos em seu discurso e os procedimentos concretos que utilizam cotidianamente para a alfabetização econômica deles. Corroborando com esses resultados, as pesquisas no âmbito da socialização econômica na família têm mostrado que os pais são importantes educadores, entretanto, as práticas educativas utilizadas por eles nessa matéria são limitadas e até contraditórias. (DENEGRI et al. 2002). Considerações finais e implicações educacionais A questão da Educação Econômica é ao mesmo tempo complexa e desafiadora. Com relação ao cotidiano vivenciado por pais e filhos, as dificuldades se ampliam pela informalidade existente no processo educativo. Não cabem dúvidas de que a participação da família no processo de socialização da criança é importante, especialmente para ajudá-la a se inserir no mundo das regras e valores. Ser pai e mãe é exatamente ser o adulto da relação. Espera-se que tais pessoas sejam referências para os filhos. Sabe-se que a criança imita o comportamento dos adultos com os quais convive, por isso, espera-se que eles ofereçam bons modelos. Pais e educadores, que desejam oferecer uma boa educação nessa área, devem primeiro considerar seus próprios comportamentos e valores com relação aos temas econômicos. A sua relação equilibrada e consciente será modelo para os filhos, a ausência dela também. Assim, os resultados confirmam a necessidade de uma adequada socialização econômica para que os indivíduos atinjam melhor atuação nesse universo cada vez mais complexo, permitindo-lhes não apenas a administração mais eficiente de seus recursos, mas a verdadeira cidadania. Dentre as implicações resultantes deste estudo, observa-se alguns pontos considerados fundamentais para uma proposta de reorientação econômica para as famílias. As descobertas da teoria piagetina sobre o processo de desenvolvimento do ser humano mostram que a construção do conhecimento sobre o mundo social depende do mesmo processo interno de I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 128 autorregulação do sujeito. Portanto, para que ocorra o desenvolvimento de ideias econômicas é preciso que as crianças encontrem condições para o seu desenvolvimento intelectual, além da garantia de uma variedade de experiências ligadas aos fenômenos econômicos. Uma educação que conduza ao autogoverno, o que implica vivência da reciprocidade, da escolha, da tomada de decisão. Os estudos na área da socialização econômica coincidem sobre a necessidade de se estabelecer mecanismos de apoio que permitam enriquecer e complementar o processo de educação realizado pelas famílias. Assim, a escola é chamada a desempenhar um papel mais ativo em relação à criação de propostas concretas, dirigidas tanto aos pais e mães quanto a seus filhos, não apenas com o propósito de contribuir para a elevação de seus níveis de alfabetização econômica, mas de modo a ajudá-los a assumir seu papel de agentes sociais ao serem capazes de participar de forma mais eficaz nas decisões políticas e econômicas da sociedade nas quais estão inseridas. Acredita-se portanto, que a educação econômica deve acontecer também na escola. Nas sociedades contemporâneas, caracterizadas pela globalização econômica e cultural e, sobretudo, pela presença crescente de poderosas mídias, como as de hoje, as pessoas estão cada vez mais expostas a uma infinidade de fatores que procuram condicionar seu comportamento ao consumo. Observa-se que a grande maioria das pessoas encontra-se despreparada para enfrentar os apelos do consumismo, assumindo uma atitude passiva e até indiferente diante dos problemas sociais ligados ao consumo desenfreado como: degradação do ambiente, esgotamento de recursos, aumento da pobreza, hiperendividamento, aumento do consumo de drogas, para citar alguns. A fragilidade do comportamento dos indivíduos diante desses problemas tem atingido principalmente as crianças, que crescem num meio dominado pelo assédio da publicidade. Daí a necessidade de se refletir sobre as consequências nefastas da comunicação mercadológica voltada às crianças, impedindo seu desenvolvimento saudável. Para Henriques (2008), as crianças não têm mecanismos psicológicos suficientes para entender a complexidade das relações de consumo e os artifícios da publicidade, como um adulto, portanto, toda e qualquer publicidade dirigida ao público infantil é intrinsecamente abusiva na medida em que para seu sucesso se vale da imaturidade dos julgamentos infantis. Ao pensar a intervenção educativa na construção do comportamento econômico há que se considerar a complexidade desse tema. Também deve se observar que ela não se torne estritamente racional, desconsiderando seu aspecto sociomoral e afetivo, tendo em vista o papel dos valores nas escolhas que o sujeito realiza. Nesse sentido, não basta a informação correta para o desenvolvimento de condutas econômicas éticas e mais equilibradas, é preciso querer agir bem. Esse aspecto remete ao campo da motivação, dos interesses que desencadeiam a ação. O termo valor é central para se compreender a fonte de valorizações do indivíduo, seja de objetos ou pessoas. (PIAGET,1954/1981). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 129 Voltando à questão da construção das noções econômicas e pensando particularmente nas relações de consumo, acredita-se que esse possa vir a ser um instigante campo de a investigação, portanto, pesquisar o conceito de força de vontade, como apresentado na teoria piagetiana, pode ajudar a compreender os outros elementos que estão em jogo nos processos de educação econômica. Ao descrever como as famílias estão educando os filhos sobre o mundo econômico espera-se contribuir com elementos que possibilitem um olhar crítico para o fenômeno do consumo, de modo a enriquecer o processo de socialização realizado pela família e apoiá-la na construção de valores estáveis e sólidos, resultando em melhoria não apenas para a vida do cidadão, mas principalmente em garantia de vida para o planeta. 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O quadro teórico foi fundamentado na Epistemologia Genética de Jean Piaget e a investigação se delineou como um estudo qualitativo, de caráter descritivo das análises realizadas a partir de observações sistemáticas e entrevistas realizadas com professores de acordo com os princípios da abordagem clínica piagetiana. Os dados coletados indicam a importância das intervenções do professor no trabalho com o conhecimento físico e apontam ao pressuposto que os professores que utilizam de meios empiristas, não conhecem a forma de como se dá a aquisição do conhecimento físico e pouco valorizam o papel das interações sociais nas situações envolvidas nesse processo. No entanto, é possível evidenciar as diferenças que marcam os professores que além do conhecimento teórico sobre o tema e assumem uma postura construtivista buscam a constante promoção de investigações, experimentações e encorajam as interações sociais entre as crianças. Palavras-chave: Conhecimento. Ciência. Interação social. Professores. Construtivismo (Educação) Abstract The objective of this work was to investigate the position of four professors of the initial series of basic education, in activities of the physical knowledge, lessons of Sciences. Detaching the actions facilitate pedagogical of the social interactions in this process of construction of the knowledge. The theoretical picture was based on the Genetic Epistemology of Jean Piaget and the inquiry if it delineated as a qualitative study, of descriptive character of the analyses carried through from systematic comments and interviews carried through with professors in accordance with the principles of the piagetian clinical boarding. The collected data indicate the importance of the interventions of the professor in the work with the physical knowledge and point to the estimated one that the professors whom they use of half empiristes, they do not know the form as if of the a acquisition of the physical knowledge and little they value the paper of the social interactions in the involved situations in this process. However, it is possible to evidence the differences that mark the professors who beyond the theoretical knowledge on the subject, assume a constructiviste position search the constant promotion of inquiries, experimentations and encourage the social interactions between the children. Keywords: Knowledge. Science. Social interaction. Teachers. Constructivism (Education) I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 132 Introdução Em sala de aula... Quando a professora anunciou que iam estudar ciências, uma criança muito atenta questionou: - Professora, por que estudamos tão pouquinho ciências? A professora embaraçada tentava responder no momento em que outra criança interrompeu-a, dizendo bem alto: - Ora, Giovani! Ciência é difícil, precisa pensar! A transcrição foi extraída das observações realizadas para esta pesquisa e ilustra a necessidade de se questionar as consequências do processo de ensino e aprendizagem dos conteúdos que fazem parte das Ciências Naturais e a enorme lacuna deixada na formação dos estudantes. É perceptível que os estudantes não compreendendo as explicações científicas abordadas nas escolas, não as incorporem ao seu saber, resistindo à substituição dos fragmentos resultantes do senso comum, pelo saber científico e sistematizado. Os alunos "iniciam", na grande maioria das escolas, seus estudos de física no Ensino Médio, porém, na realidade, desde cedo eles buscam explorar o mundo físico que os rodeia, chegando às concepções prévias. É importante destacar as afirmações de Piaget (1998, p. 154), referindo-se à educação para o desenvolvimento intelectual e social: (...) não é livre, o indivíduo que está submetido à coerção da tradição ou da opinião dominante, que se submete de antemão a qualquer decreto da autoridade social e permanece incapaz de pensar por si mesmo. Tampouco é livre o indivíduo cuja anarquia interior impede-o de pensar e que, dominado por sua imaginação ou por sua fantasia subjetiva, por seus instintos e por sua afetividade, é jogado de um lado para outro entre todas as tendências contraditórias de seu eu e de seu inconsciente. É livre, em contrapartida, o indivíduo que sabe julgar, e cujo espírito crítico, o sentido da experiência e a necessidade de coerência lógica colocam-se a serviço de uma razão autônoma, comum a todos os indivíduos e independente de toda autoridade exterior. Assim, as atividades e intervenções do professor no ensino de Ciências, nas atividades referentes à aquisição do conhecimento físico constituem momentos importantes e privilegiados, em que as crianças podem entrar em contato com fenômenos da natureza buscando explicações para as diferentes propriedades e transformações da matéria, como também para as diversas transformações produzidas pelo homem, para compreender e representar o mundo em que vivem, numa visão contextualizada. Sendo assim, visando conhecer a conduta de quatro professoras das séries iniciais do ensino fundamental, esta pesquisa, teve como objetivo principal conhecer o contexto do ensino de ciências nas séries iniciais do Ensino Fundamental e obter informações do modo como tratam o conhecimento físico e I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 133 se as interações sociais são valorizadas por elas. A pesquisa teve como suporte teórico a Epistemologia Genética de Jean Piaget e seus precursores que se aprofundaram no campo do conhecimento físico e das interações sociais. O conhecimento físico, as interações sociais e o papel do professor Os trabalhos de epistemologia genética de Piaget (1990) evidenciam como as crianças elaboram explicações causais para os fenômenos físicos da natureza que as cerca e a partir dessas explicações constroem seu conhecimento físico. Considera-se que no contexto das séries iniciais do Ensino Fundamental, o ensino direcionado ao conhecimento do mundo físico não é proposto pelo método científico, conforme explica Delval (1998, p.161): Muitos educadores acreditam que o método científico pode ser ensinado diretamente transformando-o num conjunto de regras, da mesma forma como são ensinadas muitas outras coisas na escola, reduzindo-o a uma série de instruções verbais que são transmitidas. Assim, é comum indicar que o método científico consta de uma série de passos e descrever quais são seus passos. E isto aparece não somente nos livros para professores, mas também nos textos para as crianças, que começam descrevendo quais são os passos do método científico, como se fossem normas fixas e rígidas que é preciso respeitar sempre. Vale lembrar que Piaget interessou-se sobremaneira pelo pensamento científico. Piaget e Garcia (1987) destacam alguns elementos comuns entre o desenvolvimento do conhecimento científico ao longo da história e o desenvolvimento das noções elementares na criança. Tais elementos não se referem à estrutura dos saberes construídos, mas ao processo de aquisição do conhecimento. O trabalho com a aquisição do conhecimento físico é uma condição necessária para que os estudantes possam apreciar características centrais do pensamento científico, pois o objetivo dessas atividades não é ensinar conceitos, princípios ou explicações científicas (Kamii, 1991), mas “propor situações nas quais os estudantes reflitam sobre seus próprios conhecimentos, podendo inclusive compará-los com explicações diferentes e perceber que não pode existir plena compatibilidade entre elas”. (Bizzo, 1998, p.52) Piaget (1949 apud OLIVEIRA, 1998, p. 187), ressalta: Todo conhecimento físico supõe a existência de certas invariantes, que se conservam ao longo das transformações observáveis. Da reflexão dos primeiros físicos gregos aos modernos “princípios de conservação”, encontramos em todas as etapas essa exigência do pensamento racional, que só concebe a mudança em função da identidade e vice-versa. Contudo, é muito surpreendente constatar que, em toda situação em que a criança se encontra às voltas com objetos reais possíveis de manipular e transformar – e não apenas com ideias ou com palavras -, é igualmente por essa constituição de invariantes racionais I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 134 que ela principia, na medida em que se trata de realmente compreender, ou seja, pela ação e pela operação. De acordo com essa citação, para que a criança aprenda, não bastam claras explicações, é necessário que ela viva intensamente o objeto de conhecimento, reconhecendo-o, identificando-o ou perceba acontecimentos novos, aplicando-lhes os esquemas preexistentes. O caminho da ação e das coordenações auxilia a criança a desempenhar um papel ativo no processo de seu próprio desenvolvimento, sem o qual não haverá sustentação para os avanços rumo ao entendimento (Furth, 1974). Devemos ajustar os ensinamentos pretendidos aos diferentes níveis da sua compreensão. Nessa dimensão é que será garantido o direito da criança construir sua inteligência, pela própria atividade e empenho, o que não seria possível se os professores não conhecessem o desenvolvimento do raciocínio infantil. Considera-se que a postura do professor deva adequar-se para oferecer à criança oportunidades para explorar fatos e fenômenos por meio de experiências significativas, buscando descobrir aquilo que ela já sabe e relacionando-o com as novas apreensões. É esse, sem dúvida, um importante princípio a terse em conta, uma vez que a aprendizagem deve ser encarada como a busca de sentido para as situações do mundo ao redor. Conforme Freire (1996), o aprender passa pela evolução de ideias do senso comum sobre a realidade, geradas por uma curiosidade ingênua, para o conhecimento científico, levando os indivíduos a atuarem com curiosidade epistemológica, de maior potencial crítico e transformador. Piaget deixa claro, em sua obra “Representação do mundo na criança”, de 1926, a crítica à introdução do conhecimento científico na escola sem a adequada preparação, ou seja, sem contextualização, distanciada da realidade, sem ênfase na construção de conceitos. Dessa forma, espera que os alunos depositem conceitos abstratos em suas mentes, que são repetidos e decorados, como algo pronto e acabado, sem o devido entendimento que só é possível quando resulta da investigação, que busca a compreensão e a transformação da realidade. O conhecimento científico poderá vir a ser significativo a partir do momento em que o aluno perceba sua utilidade para resolver seus problemas e responder os questionamentos que fazem parte de sua vida. Isso significa que uma das explicações apontadas por Piaget sobre a incompreensão do conhecimento científico transmitido pela escola, diz respeito à inadequação dos métodos escolares. A ciência aparece como uma verdade absoluta, apresentando-se apenas os resultados e não o seu processo. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 135 Outro aspecto considerado é o mecanismo contraditório da escola. Sendo uma instituição destinada a transmitir o conhecimento, que prega a formação para a cidadania de forma autônoma e democrática e, no entanto, promove a submissão e a passividade. Isso é evidente nos trabalhos de repetição e reprodução, quando o aluno decora, sendo impedido da descoberta, da investigação e da busca do conhecimento. A impressão que se tem é a de que existem forças sociais que impossibilitam que os indivíduos sejam capazes de pensamento crítico e criativo, de descobertas, de compreensão dos conhecimentos científicos, reduzindo o fazer da escola a simples depósito de informações. Vivemos uma época de grande influência do impacto das Ciências sobre os assuntos de interesse diário. Aprender ciências envolve a introdução das crianças a uma forma diferente de pensar sobre o mundo natural e de explicá-lo; é tornar-se socializado. A escola, por outro lado, ainda apresenta limitações quanto a essa necessidade, ignorando o interesse natural das crianças, que mesmo bem pequenas, demonstram claramente o desejo de aprender e compreender o mundo físico ao seu redor. Ao ouvirmos suas perguntas, percebemos sua imensa sede de conhecimento. São perguntas de diversas naturezas, querem conhecer a diversidade do ambiente, manusear, experimentar objetos simples, até entender por que a chuva cai aos pingos e não de uma vez só. A visão empirista e inatista de ciência, impregnada nas escolas, embora fortemente criticada, permanece implícita nas crenças populares e é correntemente transmitida pela escola e meios de comunicação. Ensinar ciências implica em conduzir as crianças a uma forma diferente de pensar sobre o mundo natural e de explicá-lo; é um processo contínuo de transformação do objeto pesquisado e do próprio pesquisador. Para ensinar ciências é necessário confessarmos nossa ignorância, entrarmos em um processo de descentralização e voltar a ser criança, começar a estudar a ciência desde sua base, sua gênese. Nesse sentido, Piaget e Garcia (1987, p. 64) ilustram: (...) (um cientista) começou sendo criança, pois a infância é anterior à idade adulta em todos os homens, incluindo aquele das cavernas. Quanto a saber o que o cientista retira de seus primeiros anos, não é uma coleção de ideias inatas, uma vez que há ensaios e erros nos dois casos, mas um poder construtivo, e entre nós alguém veio a dizer que um físico de gênio é um homem que soube conservar a criatividade própria a sua infância ao invés de perdê-la na escola. Embora Piaget não tenha abordado diretamente o problema da escola quanto à prática pedagógica, seu vasto e rico trabalho traz ideias que tiveram bastante repercussão no campo educacional, principalmente por focalizarem noções básicas que constituem nos currículos escolares. Piaget (1982b) chegou a pronunciar-se, algumas vezes, no campo pedagógico, defendendo, por exemplo, os métodos I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 136 ativos propostos pelo movimento da Escola Ativa dos anos 20 e 30 do século XX. Desse modo, segundo Macedo (1994), a maneira de aproximar a teoria piagetiana da educação escolar estaria em relacionar intervenção com espontaneidade e em recorrer à teoria sem desvirtuá-la. Aliás, o desvirtuamento parece ser a tônica em nossas escolas, atualmente, com professores definindo o Construtivismo como um método de ensino ou de alfabetização ou um conjunto de regras e técnicas a serem aplicadas em sala de aula, segundo constatações de Chackur (2005 p. 296) em estudos e recentes pesquisas coordenadas ou orientadas por ela: Todas essas pesquisas apontaram o risco de que o aligeiramento na divulgação de dados e ideias do Construtivismo pode fomentar, entre professores, a disseminação de fórmulas verbais destituídas de fundamentos e/ou de raízes na prática educativa (tal como o aluno constrói sozinho os conhecimentos ou o conteúdo não interessa, o que importa é o raciocínio), além de receitas e prescrições desligadas da teoria e/ou de justificativas práticas que lhes dão sentido, por exemplo, deve-se dar trabalho em grupo em sala de aula ou não se deve corrigir o aluno. Piaget deixa um quadro teórico consistente, a partir do qual o pesquisador e o professor podem estudar e compreender questões educacionais e repensar a prática pedagógica, como sugerem os estudos de Mantovani de Assis (1976), que constatou em sua pesquisa, que a educação escolar deve propiciar à criança contatos e trocas sociais que são indispensáveis à socialização e um ambiente educativo que estimule o desenvolvimento de sua inteligência, iniciativa, autonomia e criatividade; Banks Leite (1994) fez um exame crítico das propostas pedagógicas fundamentadas na teoria psicogenética; Coll (1987), fez uma revisão e traz as primeiras publicações e a fundação de institutos de pesquisa, que invocavam uma área específica de conhecimento psicológico para o tratamento e solução de problemas educacionais e Macedo (1994) defende em suas pesquisas os processos de desenvolvimento da criança e sua aprendizagem escolar segundo a proposta construtivista de Piaget. As pesquisas psicogenéticas citadas acima, mostram que a melhor forma das instituições educacionais contribuírem para a formação de indivíduos morais e intelectualmente ativos é tornar cada sujeito em agente do seu próprio processo de desenvolvimento e o educador em facilitador dessa mudança, o qual também deve propiciar condições para a criança interagir com o mundo. Se Piaget concebe o desenvolvimento dos conhecimentos como um processo espontâneo, valorizando as trocas entre sujeito e objeto, essa concepção educacional supõe intervenção planejada e sistematizada em situação de ensino. As trocas, nesta última, incluem também a figura do professor, e os objetivos e meios utilizados são intencionais, selecionados deliberadamente para resultarem em aprendizagem (Piaget, 1982a). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 137 O construtivismo piagetiano não oferece fórmulas para ensinar, mas permite a compreensão de como as crianças e os adolescentes aprendem, fornecendo um referencial para se identificar as possibilidades e limitações do educando. Exige, por isso, do professor uma atitude de respeito às condições intelectuais do aluno e uma maneira segura de interpretar suas condutas verbais e não verbais para melhor lidar com elas (Chakur e Cols, 2004). Diante dessa realidade, Delval (1998, p.110), afirma sobre a formação do homem: O importante é que sejam capazes de refletir com rigor sobre os problemas físicos ou sobre a história, que sejam capazes de refletir sobre o universo físico sobre o universo social. O que precisam aprender é essa atitude diante das coisas e essa atitude somente será alcançada com a prática, exercitando em sala de aula o pensamento rigoroso e criativo diante de problemas novos. À luz dessas reflexões, vale ressaltar que as atividades de Conhecimento Físico constituem uma ótima oportunidade para que os professores proporcionem um ambiente interativo, no qual as trocas entre pares aparecem naturalmente. É preciso que o estudante consiga ver algum sentido no conjunto de questões propostas pelo professor e principalmente que compreenda o Conhecimento Físico como uma forma diferente de pensar e falar sobre o mundo, que ele passe a entender essa outra língua – a língua das ciências. (Carvalho, 2004). Na discussão apresentada por Kamii e DeVries e (1988), a aquisição do conhecimento por parte do aluno se dá por meio dos princípios construtivistas de aprendizagem. O aluno, enquanto sujeito ativo no seu processo de aprendizagem estabelece relações entre seus conhecimentos prévios e os novos conhecimentos. De acordo com essa visão construtivista, as autoras Kamii e DeVries (1988, p. 55), propõem os seguintes objetivos educacionais: Objetivos socioemocionais: a. torne-se cada vez mais autônoma dentro de um contexto de relações geralmente não coercitivas, com os adultos; b. respeite os sentimentos dos outros e comece a cooperar (através da descentralização e coordenação de diferentes pontos de vista); c. seja alerta, curiosa e use a iniciativa na perseguição de curiosidades, tenha confiança em sua capacidade de classificar as coisas, por si mesma e diga o que pensa com convicção. Objetivos cognitivos para que a criança: a. proponha uma variedade de ideias, problemas e questões; b. coloque objetos e acontecimentos em relação e notem similaridades e diferenças. A definição da autonomia como primeiro objetivo por Kamii e Devries deve-se à existência do I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 138 paralelismo entre autonomia moral e autonomia intelectual discutido por Piaget, cuja implicação pedagógica é apontada pelas autoras. Para Piaget (1973, p. 18), o trabalho em equipe deve ser conduzido por meio do denominado método ativo, que é aquele que confere grande importância ao trabalho de pesquisa “(...) exigindo-se que toda verdade a ser adquirida seja reinventada pelo aluno, ou pelo menos, reconstruída e não simplesmente transmitida”. Partindo do pressuposto que parte do programa de Ciências para as primeiras séries do Ensino Fundamental, relaciona-se ao conteúdo do Conhecimento Físico e para tanto os alunos precisam ser instigados a resolver problemas do mundo físico, buscando de maneira sistemática, solução e explicações para os mesmos. Solucionar problemas, por meio da experimentação, envolve manipulação e, principalmente, reflexão, trocas, relatos, discussões, ponderações e explicações. A Pesquisa Com o intuito de conhecer as condutas de professores das séries iniciais do ensino fundamental, a pesquisa aqui apresentada, buscou avaliar o contexto do ensino de ciências e por meio deste obter informações de como o conhecimento físico é abordado e de como a importância das interações sociais é reconhecida. A estratégia de pesquisa valeu-se de entrevistas semi-estruturadas inspiradas na abordagem clínica de Piaget (1926), e por observações sistemáticas em salas de aula de séries iniciais do ensino fundamental. Os dados foram analisados a partir dos princípios teóricos de Jean Piaget e seus seguidores. Constam os conceitos e estudos já realizados sobre o trabalho com o conhecimento físico, com ênfase aos estudos de Constance Kamii e Rheta Devries (1991) e Ana Maria Pessoa Carvalho (1998) e quanto às interações sociais corroboraram os trabalhos de Rheta Devries (1980), Anne Nelly Perret-Clermont (1987), La Taille, (1992), Zaia (1985) e Maria Lucia Faria Moro (1987). Para o estudo dos dados coletados na investigação, foram organizadas três categorias de análises: A/B - Intervencionista, Democrático e Caloroso, C/D - Não- Intervencionista, às vezes Autoritário e E/F - Professor Controlador / Professor Autoritário. Essas três categorias emergiram da teoria piagetiana, que constituiu o suporte desta pesquisa e a relação entre as classificações elaboradas por Zaia (1985), que focalizam a categorização das interações entre pares, com as discussões a respeito das concepções epistemológicas sugeridas por Becker (1994). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 139 As informações coletadas nos permitiram que fosse salientada a importância das intervenções do professor das séries iniciais do ensino fundamental no trabalho com o conhecimento físico e apontaram para o resultado dessas intervenções, que às vezes facilitam, em outras dificultam as interações entre pares. Sendo assim, acredita-se que seja tarefa importante para o professor realizar intervenções que provoquem conflitos cognitivos. De modo geral, os resultados apresentados dão suporte ao pressuposto que a postura tradicional de professores, que não conheçam a forma como se dá a aquisição do conhecimento físico, pouco valorizam o papel das interações sociais nas situações envolvidas nesse processo. No entanto, é possível identificarse as diferenças que marcam os professores que assumiram a postura construtivista. As práticas educativas observadas no construtivismo fundamentam-se predominantemente na teoria psicológica do desenvolvimento e da aprendizagem de Jean Piaget. O aluno constrói seu conhecimento mediante a ação, isto é, a aprendizagem acontece mediante a satisfação de duas condições, a ação significativa da criança sobre o material (assimilação) e as respostas às perturbações provocadas pela assimilação (acomodação). As professoras investigadas que se aproximaram da categoria elaborada pela autora dessa pesquisa, como A/B: Intervencionista, democrático e caloroso aponta para um professor que favorece a reflexão aos alunos reflitam, sobre seu próprio trabalho. Ele assume o papel de provocador e facilitador do pensar e além de tudo, encoraja a cooperação entre as crianças. O papel do professor é fundamental, nesse processo, pois cabe a ele encorajar os alunos para que formulem suas indagações, utilizando-se de perguntas abertas que possibilitem o desenvolvimento de sua capacidade analítica, bem como deve sempre procurar estabelecer interações entre os alunos, para que passem a questionar suas próprias soluções, descobrindo suas contradições. Têm-se indícios, a partir da análise dos dados fornecidos pelas entrevistas e pelas observações realizadas em salas de aula, que outras duas professoras, revelaram o modelo tradicional de ensino, em que o professor é um mero transmissor e os alunos receptores de conteúdos. Identificá-las em uma única categoria, C/D ou a E/F, foi difícil devido a forma que elas transitam entre o empirismo e o apriorismo. Na perspectiva da categoria C/D - Não-Intervencionista, às vezes pouco autoritário, evidencia-se uma prática pedagógica na qual o professor age como um guia e orientador de atividades, um mero facilitador, que pouco se preocupa em provocar desequilíbrios cognitivos, apenas apresenta os conteúdos em algumas situações, de forma lúdica e em outras, de maneira rígida. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 140 As práticas pedagógicas encontradas frente a categoria E/F – Professor Controlador / Professor Autoritário, assenta-se na postura do professor que estimula os alunos que trabalham de acordo com suas ordens e acredita que o exercício da repetição favorece a aprendizagem, havendo pouca comunicação entre eles. Nota-se que, quando a explicação apriorista (Categoria C/D) não convence, o professor lança mão de argumentos empiristas (Categoria E/F). Dessa forma, é explícita a urgência e a necessidade de se repensar o ensino de Ciências desde as séries iniciais, para favorecer a ocorrência de questionamentos que proporcionem situações problemáticas interessantes e possibilitem a construção de conhecimentos adequados, ou seja, de buscar conteúdos dentro do mundo da criança, do mundo físico em que ela vive, que possam ser trabalhados de modo a permitir que novos conhecimentos possam ser adquiridos (Carvalho,1998). As concepções dos professores da categoria A/B confirmam os estudos de Piaget (1936), que defende um ensino que propicie trabalhos em equipe, como oportunidade para a troca de opiniões e conceitos entre os alunos e destes com o professor si e entre estes e o professor, pois segundo este pesquisador a cooperação é um elemento indispensável à elaboração da razão, sendo a vida em grupo o meio natural para essa atividade intelectual. Outro aspecto relevante deste estudo é citado por Macedo (1994), sobre a importância do papel desempenhado pelo professor dentro do contexto construtivista e sua extrema importância. O professor deve ser um profundo conhecedor da matéria que se propõe ensinar, para que possa formular hipóteses, sistematizar e fazer perguntas inteligentes aos alunos, possibilitando a problematização. Com isso, o que efetivamente importa é a pergunta ou situação problema, pois a prática de ensino não pode limitar-se à mera transmissão de informações. O que deve ocorrer é a transformação do ensino em um ato constante de investigação e experimentação, que possibilite a progressiva construção do conhecimento. Considerações Finais De toda a análise, entende-se que o professor deva estar comprometido com a construção do conhecimento físico, que para isso exige preocupação com a atividade da criança, especificamente no que diz respeito à cooperação. Esta palavra traz consigo a ideia do fazer junto, de construção coletiva, isto é, cooperar não é fazer pelo outro, nem torná-lo dependente, mas oferecer condições para que o outro possa chegar a soluções próprias para as situações problema, por meio de trocas, de sugestões e novos saberes discutidos no grupo. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 141 Não há pretensão de generalizar os resultados encontrados, mas, sobretudo, há a esperança de contribuir para possíveis reflexões de professores preocupados com a realização de um trabalho pedagógico coerente com o desenvolvimento global dos alunos e interessados nos pressupostos construtivistas. Estudar a relação de ações pedagógicas no trabalho realizado nas aulas de Ciências que exploram a aquisição do conhecimento físico, deixou para a pesquisadora muitos motivos de reflexão e muitos saberes e significados, com vista para novos estudos que possam corroborar no processo de formação e de práticas pedagógicas das séries iniciais do ensino fundamental, visando a construção do conhecimento físico, coerente com uma educação construtivista em que o método ativo no ensino de ciências confere ao aluno o papel fundamental, permitindo que toda verdade adquirida seja reinventada ou pelo menos reconstruída e não simplesmente transmitida, assim como defendeu Jean Piaget (1998, p.190 grifo nosso) "... a beleza, como a verdade, só vale quando recriada pelo sujeito que a conquista". Referências BANKS LEITE, Luci. As interações sociais na perspectiva piagetiana. Série Ideias n. 20, São Paulo: FDE, 1994. p.p. 41-47. BECKER, Fernando. 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 144 A Noção de Pensamento Infantil: um Estudo Comparativo entre as Respostas Encontradas por Jean Piaget em Pesquisa Realizada em 1926 e as Respostas de Crianças do Século XXI38 CESAR, Janete Schmidt de Camargo MANTOVANI DE ASSIS, Orly Zucatto Laboratório de Psicologia Genética-FE/UNICAMP- CAPES [email protected] [email protected] Resumo A presente pesquisa teve por objetivo investigar, de forma qualitativa, as concepções infantis sobre o pensamento infantil, a fim de verificar se as respostas dadas pelas crianças participantes do atual trabalho correspondiam às encontradas por Piaget em estudo realizado em 1926 e, também, se estas tinham relação com o desenvolvimento cognitivo dos sujeitos avaliados através das Provas Piagetianas para Diagnóstico do Comportamento Operatório. Seu referencial teórico se encontra alicerçado na Epistemologia Genética com ênfase no Método Clínico-Crítico, elaborado por Piaget, na data supracitada. Participaram do estudo, 19 crianças entre 7 e 14 anos, selecionadas dentre 173 alunos de uma cidade do interior do Estado de São Paulo. Para análise dos dados obtidos, foram elaboradas duas tabelas nas quais se estabeleceram categorias de respostas com o objetivo de obter uma melhor compreensão dos resultados e, ao mesmo tempo, propiciar uma análise pormenorizada, em que foi possível empregar a correlação linear. A justificativa para esta classificação se encontra na percepção de que a construção da noção de pensamento, assim como as demais noções estudadas pelo autor, não se dá por insight, mas através de um processo gradativo de construções. Os resultados obtidos apontam para uma correlação linear positiva média (0,5595403) entre a noção de pensamento infantil e o estágio de operatoriedade dos sujeitos. No que concerne à comparação entre as respostas encontradas, em 1926 e as de 2008, percebemos que os estágios estabelecidos por Piaget continuam válidos, porque apesar da evolução tecnológica ter propiciado um vocabulário rico sobre o funcionamento cerebral, este não é acompanhado pela referida compreensão, já que as crianças estudadas apenas repetem o que ouvem dos adultos ou da televisão, confirmando que o aprendizado é um processo construtivo, ou seja, não se dá pela simples transmissão de informações. Palavras-chave: Concepção Infantil. Desenvolvimento Cognitivo. Epistemologia Genética. 38 O presente trabalho é parte da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, intitulada As ideias das crianças a respeito de suas dificuldades de aprendizagem no sistema escrito, defendida em fevereiro de 2009. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 145 Abstract The present research has as a goal to investigate, in a qualitative way, childish conceptions about his own thoughts, to verify if the answers given by children in the current study correspond to those found by Piaget in a study made in 1926, and also if those are related to the cognitive development of the subject evaluated by Piagetian Operational Behavior Diagnoses Proofs. The theoretical framework of this research is based on genetic epistemology with emphasis on clinical-Critical Method developed by Piaget in the date said above. 19 children with ages between 7 and 13 were selected among 173 that study in a school from the West of São Paulo State. The data were analyzed by the construction of two tables which have categories of responses with the goal of obtaining a better understanding of the results, and, at the same time, to develop a detailed analysis in which was possible to apply linear correlation. This classification can be justified by the perception that the construction of the concept of thought, as well as other concepts studied by the author, is not by insight but through a gradual process of construction. The results obtained pointed to a medium positive linear correlation average (index of dispersion = 0.5595403) between the notion of childish though and the subjects’ operational stages. Regarding the comparison between the responses found in 1926 and 2008, it’s possible to realize that the stages set out by Piaget remain valid, because despite technological evolution have provided a rich vocabulary on the functioning brain, this is not accompanied by the understanding, since children studied only repeated what they hear from adults or television shows, confirming that learning is a constructive process, which can’t happen with simple transmission of information. Keywords: Childish Conception. Cognitive Development. Genetic Epistemology. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 146 Introdução O crescimento populacional aliado aos avanços tecnológicos do século XXI requer, em conjunto, uma nova gama de aprendizagens que supõe um “novo” ser humano capaz de assimilar conteúdos cada vez maiores e mais complexos. Seres aptos a adaptarem-se ao novo com uma inacreditável velocidade: o “novo” sem esquecer o “velho” que, nas palavras de Morin (2000, p. 15), consistiria a “condição humana ... objeto essencial de todo ensino”. As descobertas realizadas pela “Década do Cérebro” (1990) trouxeram inegáveis contribuições às áreas interessadas no desenvolvimento do ser humano, principalmente com as possibilidades oferecidas por exames cada vez mais sofisticados, como a PET (tomografia por emissão de pósitrons) que permite o exame do cérebro em funcionamento. Mas será que essas descobertas invalidam os métodos utilizados por Piaget para a construção de sua teoria do desenvolvimento humano? Estaria seu método de entrevista (Clínico-Crítico) ultrapassado? Acreditamos que não. A teoria do desenvolvimento de Piaget se fundamenta nas ações, ou concepções, espontâneas das crianças que ele se propôs a observar e a investigar para compreender como o conhecimento se forma e qual é a sua gênese, a fim de mostrar o aspecto evolutivo do desenvolvimento. Os trabalhos realizados por seguidores de Piaget, a respeito das concepções infantis, como os de Delval (1998) a respeito do conhecimento social e os de Denegri (1998) sobre as ideias das crianças a propósito de aspectos relacionados à economia (como consumo, lucro, entre outros), vêm oferecendo subsídios não só para a atuação docente, mas para todos aqueles profissionais cuja área envolve o desenvolvimento e a aprendizagem da criança. Confiamos que mesmo com as contribuições da neurologia, considerar o que o indivíduo pensa e crê na sua interação com o mundo nas diversas fases de seu desenvolvimento físico, social e emocional é o melhor, senão o único caminho para compreender e se fazer conhecer os mecanismos inerentes à construção do conhecimento pelo indivíduo. Portanto, é objetivo primordial desse trabalho verificar os processos subjacentes ao pensamento infantil, e se estes sofrem influência do meio sócio-cultural e histórico em que vivem. Estaremos utilizando os mesmos instrumentos propostos por Piaget, pois acreditamos que possibilitar à criança a reflexão sobre o pensar pode facilitar seu processo de desenvolvimento e, consequentemente, sua aprendizagem escolar. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 147 Referencial Teórico O referencial orientador dessa pesquisa se encontra apoiado na Epistemologia Genética de Jean Piaget. Para Piaget, a inteligência se constitui na capacidade de adaptação do indivíduo ao seu meio físico, social e emocional, sendo essa adaptação um processo ativo, dotado de uma atividade organizadora implícita em processos biológicos e cognitivos denominados assimilação39 e acomodação40. Esses processos são denominados funcionais, pois se referem ao funcionamento da inteligência, e invariantes, porque estão presentes em todas as fases do desenvolvimento do indivíduo. As investigações de Piaget apontaram um desenvolvimento humano que obedece a uma ordem evolutiva com caráter universal, não regida pela idade, mas por estágios de desenvolvimento atingidos por meio da ação do sujeito com o meio em que vive, e que apresenta, como necessárias para que esse desenvolvimento ocorra, condições que estão implicadas em quatro fatores: os considerados biológicos ou maturacionais; as interações com o meio físico e social; as experiências físicas e lógico-matemáticas e a equilibração. Piaget (1975/1976, p. 11) considera o fator equilibração como o “problema central do desenvolvimento” já que este é impulsionado por necessidades internas de equilíbrio. Os dois processos fundamentais de todo equilíbrio cognitivo são a assimilação e a acomodação, que se constituem em dois pólos inseparáveis, os quais seriam suficientes para explicar os ciclos epistêmicos e seu funcionamento, na medida em que o desenvolvimento provoca a necessidade de um equilíbrio entre eles. Quanto aos estágios, Piaget (1964/1986, p. 13) denominou quatro grandes períodos caracterizados “... pela aparição de estruturas originais, cuja construção o distingue dos estágios anteriores. O essencial dessas construções sucessivas permanece no decorrer dos estágios ulteriores, como subestruturas, sobre as quais se edificam as novas características”. O primeiro estágio da inteligência sensório–motora ou prática (do nascimento até 1 ½ a 2 anos), constitui o período da lactância. Tem como principal característica o domínio pelo indivíduo das atividades sensoriais e motoras. O segundo se caracteriza como o da inteligência intuitiva ou pré– operatória (2 a 7/8 anos). Durante todo esse período o pensamento permanece dominado pela representação dos objetos sob a forma de imagens, o que revela uma estrutura própria do pré-conceito, portanto, intuitiva. Piaget distingue dois tipos de intuições: as primárias na qual predomina uma ação global e as secundárias onde já ocorre antecipação dos próximos passos de uma ação e reconstituição dos 39 40 Assimilação, para Piaget, consiste na incorporação da realidade aos esquemas de ação do indivíduo, a qual implica a existência de estruturas anteriores capazes de incorporar o dado a ser aprendido. Por acomodação, Piaget compreende qualquer modificação de um esquema ou estrutura de assimilação pelos elementos assimilativos. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 148 estados anteriores que podemos chamar de operações, que para Piaget (1993, p.44-45), são ações interiorizadas, reversíveis e coordenadas em estruturas totais. Uma ação reversível é aquela que admite a possibilidade de uma inversa. O terceiro estágio, o das operações intelectuais concretas (7/8 a 10/11 anos), sinaliza o início da lógica, manifestada pelo término da construção das estruturas lógicas elementares: o individuo é capaz de considerar as situações como um todo. No entanto, uma série de desequilíbrios conduzirá à complementação das operações concretas, elevando-as à segunda potência, operações que constituirão aquelas chamadas formais que caracterizam o último estágio (11/12 a 15/16 anos). Esse novo período é caracterizado pelo aparecimento das operações proposicionais que possibilitam ao sujeito o pensamento hipotético dedutivo, implícito na resolução de problemas complexos e característicos do raciocínio científico. Cabe ressaltar que, para a Epistemologia Genética, os processos de desenvolvimento e aprendizagem são, ao mesmo tempo, distintos e interdependentes. A aprendizagem, para Piaget, interfere no desenvolvimento modificando as estruturas existentes, porém sem dar origem a novas, ou seja, a aprendizagem é condição necessária, porém não suficiente, visto que o desenvolvimento pressupõe construção de novas estruturas de pensamento, pois, o conhecimento “... resulta em construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas graças a um processo de equilibrações majorantes41, que corrigem e completam as formas precedentes de equilíbrio” (PIAGET, 1975/1976, p. 7). Piaget ainda destaca que a estrutura cognitiva não se reduz ao pensamento consciente do sujeito, pois abrange conteúdos inconscientes que vão se tornando gradativamente conscientes na medida em que o desenvolvimento do indivíduo alcança patamares mais evoluídos. Esse processo de conceituação, que envolve a interiorização e a reconstrução das ações no plano do pensamento, o qual acaba por ser superior à própria ação, é denominado de tomada de consciência. A tomada de consciência é desencadeada quando as regulações42 automáticas não são mais suficientes, o que acarreta a busca pelo indivíduo de novos meios através de uma regulação mais ativa para as quais ele tem uma “fonte de escolhas deliberadas, o que supõe a tomada de consciência” (PIAGET, 1974/1978, p. 198). Contudo, Piaget reitera que, embora o saber-fazer com êxito ações complexas se apresente precocemente, a tomada de consciência da própria ação – a conceituação que se 41 42 Equilibração majorante é o processo por meio do qual Piaget explica a construção do conhecimento pelo sujeito, graças às suas interações com os objetos, implicando sempre melhoramentos. (Piaget, 1975/1977). Para Piaget (1976, p. 24 a 27), as regulações explicam como funciona o processo da equilibração e das reequilibrações. Podemos dizer que as regulações se constituem em reações a perturbações, mas convém ressaltar que nem toda perturbação resulta numa regulação, ou seja, numa equilibração. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 149 traduz por uma transformação dos esquemas de ação em noções e em operações – só acontece após alguns anos do sucesso prático, fato que provoca deformações na tomada de consciência devido a recalques43 que levam o indivíduo a não observar, em suas próprias ações, algumas características visíveis que assegurariam seu êxito, mas cujo inconsciente cognitivo o impede de ter uma compreensão conceitualizada (PIAGET, 1974/1978, p.10). A Noção de Pensamento: a criação do Método Clínico-Crítico Piaget, em seus primeiros estudos sobre o desenvolvimento infantil44, percebeu que, para conhecer os processos de raciocínio inerentes às ações das crianças era preciso mais do que simplesmente as observar, o estudo do conhecimento exigia a utilização de um método experimental específico, o qual permitisse a compreensão de sua gênese, porque as pesquisas desenvolvidas até o momento não lhe davam subsídios para resolver o problema epistemológico que pretendia investigar. Então, a partir de indagações que o levaram a buscar a razão dos fracassos das crianças francesas nos Testes de Raciocínio de Cyril Burt45 (1919-1921), Piaget (1926, p.5) desenvolve seu próprio método de entrevistas, constituído por conversas abertas com as crianças, a fim de acompanhar o curso de seus pensamentos, ou seja, os processos de raciocínio contidos em suas respostas, e o faz através da adaptação do método clínico clássico, usado na medicina psiquiátrica, e da investigação experimental, criando uma nova sistemática de estudo do desenvolvimento do conhecimento, que possibilita reunir os recursos dos testes e da observação; e ainda, evitar seus respectivos inconvenientes. Os primeiros trabalhos em que esse método foi empregado buscavam descobrir as crenças espontâneas das crianças acerca dos fenômenos da realidade, nas palavras de Piaget, “... quais as representações do mundo que surgem espontaneamente nas crianças ao longo dos diferentes estágios de seu desenvolvimento intelectual” (PIAGET, 1926, p.5). No presente trabalho estaremos nos reportando aos estudos sobre o Realismo Infantil. O estudo se realizou com base no método clínico crítico. Foi colocada uma série de perguntas, a crianças de diferentes idades, a fim de contemplar as crenças sobre o “pensar”, sempre acompanhando o desenrolar de seus pensamentos. Com essas questões e muitas outras que foram surgindo, Piaget identificou três estágios: 43 44 45 Termo, emprestado por Piaget da Psicanálise, que significa em sua teoria uma tomada de consciência incompleta. A Linguagem e o Pensamento da Criança (1923) e O Julgamento e o Raciocínio da Criança (1924). Burt, Cyril Lodowic (1883-1971), psicólogo britânico, idealizador dos testes de QI em medidas fixas de Inteligência. Um especialista em desenvolvimento mental e infantil defende em The Young Delinquent (1925) a importância dos fatores ambientais e sociais sobre a delinquência. Após a sua morte, foi acusado de ter falsificado resultados experimentais, na tentativa de provar a sua teoria de que a inteligência é sobretudo herdada. Fonte: http://www.cpsimoes.net/artigos/art_testes.html#Burt. Acesso em 24/01/2009. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 150 O primeiro estágio, cuja idade média é de 6 anos, é o mais fácil de distinguir, pois é caracterizado principalmente por conter um elemento puramente espontâneo. Durante este estágio, as crianças acreditam que se pensa “com a boca”. O pensamento é idêntico à voz. Não ocorre nada na cabeça nem no corpo, e o pensamento é confundido com as próprias coisas no sentido de que as palavras fazem parte das coisas. Não há nada de subjetivo no ato de pensar. O que caracteriza o segundo estágio, em oposição ao terceiro, é que o pensamento, ainda que situado na cabeça, permanece material. Na realidade, ou a criança prolonga o primeiro estágio, identificando o pensamento e a voz, ou cai em um verbalismo mais ou menos completo. Nos dois casos, o pensamento não é diferenciado das coisas em que se pensa, nem as palavras das coisas nomeadas. O que ocorre é um conflito entre as crenças anteriores da criança e a pressão do ensino adulto, e é apenas esta crise que marca um progresso, sem que o segundo estágio traga à criança nenhuma solução nova. O terceiro estágio, cuja idade média é de 11-12 anos, é marcado pela desmaterialização do pensamento, de forma que, a criança deve ser capaz de separar a noção de pensamento da noção de matéria física, o que significa que o indivíduo toma consciência de pensamentos ou de palavras distintas das coisas nas quais se pensa. Piaget propõe três critérios para caracterizar este estágio: 1º) a criança deve ser capaz de localizar o pensamento na cabeça e de declará-lo invisível, impalpável etc.; 2º) a criança precisa distinguir entre a palavra e o nome das próprias coisas; 3º) o sujeito necessita localizar os sonhos na cabeça e admitir que, se abríssemos a cabeça, os sonhos não seriam vistos. Procedimentos O objetivo dessa pesquisa foi investigar, de forma qualitativa, as concepções infantis sobre seus pensamentos, a fim de verificar se as respostas dadas pelas crianças, participantes do atual trabalho, correspondiam às encontradas por Piaget, em estudo realizado em 1926 e, também, se estas tinham relação com o desenvolvimento cognitivo dos sujeitos avaliados, através das Provas Piagetianas para Diagnóstico do Comportamento Operatório. Utilizamos como suporte metodológico o Método Clínico Crítico, elaborado por Jean Piaget, que permite diagnosticar o estágio de evolução de determinados conceitos em que as crianças se encontram. Participaram do estudo 24 crianças, entre 7 e 14 anos, selecionadas dentre 173 alunos de uma cidade do interior do Estado de São Paulo. Dos 24 sujeitos, 1 mudou de escola no decorrer do processo de investigação e 4 fizeram parte do Estudo Piloto. Após a realização de reunião com pais e/ou responsáveis para assinatura do Termo de I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 151 Consentimento Livre e Esclarecido , se deu início a coleta de dados, que foi realizada na própria escola em local exclusivamente destinado para este fim. As crianças foram entrevistadas, individualmente, garantindo o critério de sigilo proposto pela pesquisa. Primeiramente se realizou o Estudo Piloto, a fim de verificar a validade do instrumento “Entrevista semi-estruturada sobre a noção de pensamento infantil”, elaborada a partir dos extratos de protocolo, encontrados no livro A representação do mundo na criança (PIAGET, 1926), a fim de corrigir possíveis falhas. Os resultados do Estudo Piloto apontaram a adequação da entrevista. Procedeu-se, então, ao início do trabalho, obedecendo à seguinte ordem: No primeiro encontro, a pesquisadora informava à criança sobre a natureza do projeto e do por que da sua participação, bem como da importância e sigilo garantidos pela pesquisa, e, ainda, que todas as entrevistas, jogos46 ou atividades seriam filmados. Em seguida, se realizava a “Entrevista semi-estruturada sobre a noção de pensamento infantil”. Num segundo encontro, se aplicavam as “Provas Piagetianas para Diagnóstico do Comportamento Operatório”. Para o “Diagnóstico do Comportamento Operatório” foram selecionadas as seguintes provas: Conservação das quantidades descontínuas ou discretas: Fichas; Conservação das quantidades contínuas: líquido e massa; Inclusão de classes: frutas e flores e Seriação operatória: bastonetes. A aplicação das provas ocorreu na ordem acima mencionada e em datas diferentes da aplicação das entrevistas a fim de não cansar a criança. A análise dos dados coletados foi realizada da seguinte forma: buscamos estabelecer o nível cognitivo dos sujeitos através dos dados coletados na “Entrevista semi-estruturada sobre a noção do pensamento infantil” e dos resultados apresentados nas “Provas Piagetianas”; em seguida, a fim de verificar possíveis correlações entre o desenvolvimento cognitivo e as respostas das crianças, os dados obtidos foram analisados por meio da “Correlação Linear”, de Pearson. Apresentação e Análise dos Resultados Para a entrevista sobre a noção de pensamento, usamos os critérios de Piaget (1926) a partir dos quais se propôs uma série de perguntas que contemplavam basicamente o significado do “pensar” para a criança. A elaboração do roteiro para a entrevista se deu a partir dos extratos de protocolo apresentados pelo autor. A análise dos resultados obedeceu aos critérios apontados por Piaget para caracterização dos estágios, mas, a fim de obter uma melhor compreensão dos resultados, classificamos as respostas passíveis de serem encontradas em cada estágio, em categorias para as quais atribuímos uma pontuação, a 46 A palavra jogos foi utilizada para se referir às “Provas Piagetianas” a fim de evitar que o termo provas atrapalhasse o desempenho dos sujeitos. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 152 saber: Tabela1: Classificação da entrevista sobre a Noção de pensamento infantil Categorias Pontuação Pensamos com a boca 1 O pensamento é idêntico à voz 1 Nada se passa na cabeça ou no corpo quando se pensa 1 O pensamento é localizado na cabeça 2 Pensar é pensar nas coisas 2 O pensamento é diferente da voz 2 Confunde as palavras e as coisas, ou seja, as palavras têm força 2 A criança atribui materialidade ao pensamento: sangue, veias, etc. 2 A criança invoca palavras aprendidas, como cérebro, alma, etc., mas não as compreende O pensamento pode ser visto ou ouvido 2 A criança procura compreender as palavras como cérebro, inteligência, memória, etc. A criança distingue entre as palavras e as coisas, ou seja, não acredita que as palavras têm força O pensamento não pode ser visto nem tocado (é imaterial) 4 A criança localiza os sonhos na cabeça e acredita que estes não podem ser vistos nem tocados 4 2 4 4 A somatória dos pontos foi realizada de maneira cumulativa, de forma a definir não apenas o estágio em que a criança se encontra, mas também o seu nível dentro dos três estágios encontrados por Piaget (1926). O critério utilizado na atribuição dos pontos foi o seguinte: um sujeito com até 14 pontos se encontra no segundo estágio, mas se entre suas respostas houver persistência de alguma(s) resposta(s) correspondente(s) ao primeiro estágio (categorias de 1 a 3) esses pontos serão subtraídos; a criança com pontos entre 15 e 26 está a caminho do terceiro estágio que só estará construído quando o indivíduo atingir 30 pontos, ou seja, for capaz de localizar o pensamento na cabeça e de declará-lo invisível, impalpável, etc.; distinguir entre a palavra e o nome das próprias coisas; localizar os sonhos na cabeça e de dizer que, se abríssemos a cabeça, os sonhos não seriam vistos. A justificativa para esta classificação se encontra na percepção de que a construção da noção de pensamento, assim como a das demais noções estudadas pelo autor, não se dá por insight, mas através de um processo gradativo de construções. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 153 Tabela 2 - Respostas das crianças na Entrevista sobre a Noção do pensamento infantil Categorias Respostas Crianças idade Nat 7;3 Gle 7;4 Juli 7;8 Adri 7;9 Nata 8;0 Luca 8;0 Ema 8;3 Ind 8;3 Tac 8;7 Chri 8;9 Jul 8;11 Dou 9;0 Lui 9;4 Let 9;6 Kes 9;7 Gio 10;1 Luc 10;1 Thi 10;7 Jes 13;8 Total Categorias Percentagem (%) 1º Estágio Pensamos com a boca 1 2 3 X X X X X X X X X X X X X 6 31 3 16 4 21 2º Estágio Intervenção do adulto 4 5 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 19 100 X X X X X X X X X X X X X X X X X X 18 95 6 X X X X X X X X X X X X 7 8 9 10 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 14 74 9 47 X X X X X X X X X X 17 89 X X X X 6 31 3 16 X X X 5 26 X X X X X 12 63 11 3º Estágio Desmaterialização do pensamento 12 13 14 X X X X X 5 26 8 42 Observando a tabela 2, podemos perceber que todas as crianças localizam o pensamento na cabeça (categoria 4), e que 90% delas invocam palavras aprendidas como cérebro, alma, etc. (categoria 9), mas que apenas três delas (16 %) procuram compreender o que palavras como cérebro, alma, mente, etc., significam (categoria 11). Este fato talvez possa ser explicado pelo alto índice de crianças (dez = 53 %) que ainda apresentam respostas concernentes ao estágio 1, que se caracteriza, segundo Piaget, (1926) pelas concepções espontâneas apresentadas pelos sujeitos. Esses dados nos levam acreditar que os avanços tecnológicos, ocorridos desde as primeiras entrevistas realizadas por Piaget (1926), exerceram uma influência bastante significativa sobre as crenças das crianças, o que pode ser comprovado pelo vocabulário rico no que concerne ao funcionamento cerebral, mas que , numa primeira análise, não contribui para a sua verdadeira compreensão, como podemos observar em alguns trechos das entrevistas abaixo, nos quais as crianças respondem à seguinte pergunta: - O que você acha que tem dentro da sua cabeça? Jul (7;8 anos) O cérebro...os osso...o olho...J- Mais alguma coisa? Jul: Garganta...J - Como que você sabe essas coisas? Jul: Porque quando é sábado minha mãe liga a televisão e fica assistindo as coisa [sic] que mostra o quê que a gente tem dentro do corpo. Luca (8;0 anos) – na cabeça? O cérebro, a boca, o nariz, os olhos, a orelha, o cabelo, a cabeça. J – e dentro da cabeça? Luca – o célebro! J – quem que te falou que dentro da cabeça existe o cérebro? Luca – eu vi na televisão. Com o intuito de verificar se as respostas dadas pelas crianças apresentavam algum índice de I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 154 correlação com os estágios de desenvolvimento cognitivo, estabelecemos uma pontuação para as suas respostas. O resultado pode ser visto na Tabela 3. Tabela 3 – Resultados da aplicação das provas para o diagnóstico do comportamento operatório por idade das crianças. Nº Crianças Nome Sexo 1 Nat F Idade (anos) 7;3 2 Gle F 7;4 3 Juli F 7;8 (1) CQD(2) Fichas Provas CQC(3) CQC(3) Líquido Massa IC(4) Frutas IC(4) Flores Estágio de desenvolvimento Cognitivo Ser.(5) PréOp. Bastões Oper.(6) Tran(7) Concr.(8) 1 1 1 0 0 0 2 2 2 0 0 1 0 1 1 0 0 0 1 0 0 2 0 0 1 1 1 0 0 0 1 2 2 0 0 2 2 2 2 2 2 1 3 7 2 4 5 Adri Nata M F 7;9 7;0 6 Luca M 8;0 7 Ema M 8;3 3 3 7 11 8 Ind F 8;3 0 0 0 1 0 0 1 Tac F 8;7 1 0 0 0 0 0 1 Chri M 8;9 2 2 2 2 2 2 Jul Dou F M 8;11 9;0 1 0 1 0 0 0 2 2 2 2 2 2 Lui Let M F 9;4 9;6 2 2 1 0 0 2 14 0 0 0 0 0 1 15 Kes M 9;7 2 2 2 0 2 2 16 Gio F 10;1 2 2 2 0 0 1 17 Luc M 10;1 2 2 2 2 2 2 12 18 Thi M 10;7 2 2 2 2 2 2 12 19 Jes F 13;8 1 2 2 0 0 2 9 10 12 11 12 2 12 13 7 1 10 7 7 (1) Nome; Sexo: F=Feminino, M=Masculino Conservação das Quantidades Discretas; (3) Conservação das Quantidades Contínuas; Classes, (5) Seriação. (6) Pré-Operatório; (7) Transição; (8) Operatório Concreto. (2) (4) Inclusão de Critérios para quantificação das provas: - 0 (zero) pontos: quando a criança não classifica; não conserva; não efetua a seriação - 1 (um) ponto: quando a criança se encontra na fase de Transição - 2 (dois) pontos: quando a criança conserva, classifica e efetua a seriação. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 155 Gráfico 1 - Aplicação das Provas para o diagnóstico do comportamento operatório por idade das crianças. O gráfico acima nos possibilita observar que das 19 crianças avaliadas pelas Provas Piagetianas, apenas 4 (21%) das crianças se encontram no estágio operatório concreto, sete (37%) estão num estágio de transição mais avançado e oito (42%) estão muito longe de concluir este estágio. Gráfico 2 - Correlação47 entre a Noção de Pensamento Infantil e o Estágio de Desenvolvimento Cognitivo Índice de dispersão: 0,5595403 Os dados apresentados acima apontam para uma correlação linear positiva média entre a noção de pensamento infantil e o estágio de operatoriedade dos sujeitos. Em outras palavras, o desenvolvimento cognitivo exerce influência na noção de pensamento, sendo o seu inverso também verdadeiro. Convém reiterar que esses dados se referem aos sujeitos da pesquisa e, portanto, não devem ser generalizados para outras situações. 47 Foi utilizado o “coeficiente de correlação linear”, de Pearson (in: LAPPONI, 2005), que consiste numa medida que avalia o quanto a “nuvem de pontos” no diagrama de dispersão aproxima-se de uma reta. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 156 Considerações Finais A replicação da pesquisa sobre a Noção de Pensamento Infantil que foi realizada por Piaget (1926) mostrou que apesar dos avanços tecnológicos e das mudanças sociais, seus estágios continuam válidos, confirmando que o aprendizado é um processo construtivo, ou seja, não se dá pela simples transmissão de informações. Foi possível constatar também que as ideias das crianças são muito influenciadas pelo pensamento adulto, e pelos meios de comunicação, mas que proporcionar-lhes espaço para pensar foi eficaz para provocar níveis elementares de tomada de consciência que nos parecem mais elaborados na medida em que elas se desenvolvem. Todos esses elementos reforçam a importância de dar voz e vez às crianças, proposta deste trabalho, a fim de se fazer conhecer, pelos educadores e demais profissionais envolvidos no ensino, seus processos de pensamento os quais acreditamos, se constituem na matéria-prima da educação. Afinal, qual seria a função social da escola e o papel do educador se não existissem alunos? Referências DELVAL, Juan. Crescer e pensar: a construção do conhecimento na escola. Tradução Beatriz Affonso Neves. 2 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. DENEGRI. Marianela. A construção do conhecimento social na infância e a representação da pobreza e desigualdade social: desafios para a ação educativa. In: Encontro Nacional de professores do PROEPRE: A criança e a escola. 15., Águas de Lindóia, São Paulo. Anais, 1998. p. 43-54. LAPPONI, Juan Carlos. Estatística usando o Excel. 5ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. (Cap. 6.) MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. 3. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF:UNESCO, 2001. PIAGET, Jean. A representação do mundo na criança: com o concurso de onze colaboradores. Rio de Janeiro: Record, 1926. ______. Seis estudos de psicologia. Tradução Maria Alice Magalhães D’Amorin e Paulo Sérgio Lima Silva. 14ª impressão. Forense Universitária, 1964/1986. ______. Problemas de Psicologia Genética. Tradução Celia E. A. Di Piero. Rio de Janeiro: Forense, 1973. ______. Equilibração das Estruturas Cognitivas: Problema Central do Desenvolvimento. Tradução Prof. Dra. Marion Merlone dos S. Penna. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975/1976. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 157 PIAGET , Jean. BLAMCHET . A. et al. A Tomada de Consciência. Tradução Edson Braga de Souza. São Paulo: Melhoramentos, 1974/1978. PIAGET, Jean. INHELDER, Bärbel. A Psicologia da Criança. Tradução Octavio Mendes Cajado. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil. 1993. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 158 Procedimentos utilizados pelas famílias na educação econômica de seus filhos CANTELLI, Valéria C. B. MANTOVANI DE ASSIS, Orly Z. Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP/FE [email protected] Resumo A presente investigação inserida na área do Conhecimento Social, no campo da Educação Econômica, caracteriza-se como uma pesquisa básica, seguindo um modelo exploratório e descritivo. Teve por objetivo conhecer os procedimentos utilizados por pais e mães de diferentes estruturas familiares (monoparental, biparental e recomposta) e níveis socioeconômicos para a educação econômica de seus filhos. A coleta de dados ocorreu com base em um questionário estruturado, criado exclusivamente para este estudo. Dada a natureza qualitativa-quantitativa da investigação, foram realizadas análises de conteúdo, exploratória e confirmatória para a comparação entre as variáveis (teste Qui-Quadrado, Kruskall-Wallis e Mann-Whitney). Os dados obtidos indicaram que o comportamento econômico das famílias, bem como os procedimentos utilizados para a educação econômica dos filhos são, predominantemente, intuitivos e não planejados, evidenciando a falta de informação dos pais sobre o processo de construção das noções sociais relacionadas à compreensão dos eventos econômicos. As famílias acreditam que a educação econômica deva fazer parte da formação das crianças, embora não realizem nenhum esforço sistemático para fomentar hábitos e condutas adequadas para o consumo. Na análise geral do processo de socialização econômica, descrito por essa amostra, a variável estrutura familiar não representou significância estatística, sendo que o nível socioeconômico apareceu como um fator de diferenciação entre os grupos na maior parte dos aspectos investigados. Observou-se que os participantes tendem a transmitir os conhecimentos e valores trazidos de suas famílias de origem, evidenciando a influência do meio no processo de socialização econômica. A análise dos resultados à luz da teoria piagetiana e das contribuições da Educação e da Psicologia Econômica legitimam a necessidade de novas propostas educativas sistemáticas que resultem em verdadeira alfabetização econômica tanto para os filhos quanto para os pais. Palavras-chave: Educação econômica. Conhecimento Social. Alfabetização I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas econômica. Socialização econômica. 159 Abstract The present inserted inquiry in the area of the Social Knowledge, in the field of the Economic Education, is characterized as a basic research, following a exploratory and descriptive model. It has for objective to know the procedures used for parents and mothers of different familiar structures (monoparental, biparental and recomposta) and levels socioeconômicos for the economic education of its children. The collection of data had as base a structuralized questionnaire, created exclusively for this study. Given the qualitative-quantitative nature of the inquiry, analyses of content, confirmatory exploratória and for the comparison between the 0 variable had been carried through (test Qui-Square, Kruskall-Wallis and MannWhitney). The gotten data had indicated that the economic behavior of the families, as well as the procedures used for the economic education of the children intuitivos and are not planned, envidenciando the lack of information of the parents on the process of construction of the related social slight knowledge to the understanding of the economic events. The families believe that the economic education must be part of the formation of the children, even so do not carry through no systematic effort to foment habits and behaviors adjusted for the consumption. In the general analysis of the described process of economic socialization for this sample, the changeable familiar structure did not represent significance statistics, being that the socioeconômico level appeared as a differentiation factor for the most part enters the groups of the investigated aspects. The influence of the way in the process of economic socialization was observed that the participants tend to transmit the knowledge and values brought of its families of origin, evidencing. The analysis of the results to the light of the piagetiana theory and the contributions of the Education and Economic Psychology legitimizes the necessity of new systematic educative proposals that result in such a way in true economic alfabetização for the children how much for the parents. Keywords: Economic education. Alphabetization economic. Economic socialization. Social knowledge. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 160 Introdução O contexto social atual mostra-se turbulento. Particularmente para as famílias, os tempos são difíceis, os valores se relativizam, e, em muitos lares, ter parece ser mais relevante do que ser. Por isso é importante refletir sobre o enfrentamento das pressões impostas pela sociedade de consumo. Como fazer frente aos seus apelos se a sociedade moderna está organizada em torno dele? Como enfrentar a difícil tarefa de construir uma relação mais equilibrada com o dinheiro? Diante dessas questões a presente pesquisa, inserida no campo da Educação Econômica, que constitui uma das áreas do conhecimento social, buscou investigar o que as famílias estão ensinando aos filhos sobre o mundo econômico e, mais ainda, provocar a reflexão sobre o papel socializador da família, particularmente no que se refere à educação econômica de seus filhos, trazendo subsídio para a compreensão de como se desenvolve esse processo entre as famílias brasileiras. Referencial teórico O aparecimento de novas pesquisas sobre os aspectos sociais do desenvolvimento psicológico fundamentadas na epistemologia genética de Jean Piaget tem conduzido a uma renovação nas investigações sobre a compreensão da sociedade, provocando um crescente interesse pelo estudo da formação das representações ou modelos do mundo utilizados pelos indivíduos para dar sentido à realidade social. A aquisição do conhecimento social, como demonstram os trabalhos de Delval (1989, 1992, 1994); Enesco (1995); Enesco, Delval e Linaza (1989); Denegri (1995, 1998, 2003, 2004) depende dos recursos simbólicos e das ideias elaboradas pelo sujeito a partir dos seus instrumentos cognitivos. Trata-se de um processo de construção de representações que, partindo de informações fragmentadas e não relacionadas entre si, são, gradativamente, reelaboradas, até serem substituídas por noções mais avançadas que integram as primeiras. Essa constatação, aliada à reflexão sobre os efeitos da globalização nas diferentes culturas, que por sua abrangência impõe um ritmo acelerado e consumista ao comportamento do cidadão, tem despertado o interesse dos pesquisadores para questões ligadas à compreensão do mundo econômico. Dentre os quais destacam-se os nomes de Berti e Bombi, Delval, Denegri e colaboradores e dos pesquisadores do Laboratório de Psicologia Genética da Faculdade de Educação da UNICAMP, sob a coordenação de Mantovani de Assis. Os resultados das investigações desenvolvidas por esses pesquisadores evidenciam que a I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 161 compreensão do sistema econômico, um dos pilares que sustentam o mundo social, apresenta-se como um dos temas de maior complexidade para o entendimento tanto dos adolescentes quanto dos adultos. A maioria das pessoas apresentam sérias dificuldades para compreender questões relacionadas à origem e circulação do dinheiro, às inter-relações e fatores que determinam os eventos econômicos, ao papel do Estado na regulação da economia e emissão monetária, ao alcance e uso dos instrumentos econômicos vinculados à poupança, crédito e endividamento, o que interfere no modo como elas lidam com a economia cotidiana, impossibilitando-as de uma atuação mais consciente e adequada sobre as relações financeiras. Os estudos de Denegri (2003) e de outros pesquisadores associados, realizadas na América Latina, mostram que a compreensão do mundo econômico requer que o indivíduo construa uma visão sistêmica do modelo financeiro-social no qual está inserido, o que implica em manejar série de informações específicas, desenvolvendo competências e atitudes que lhe permitam o uso adequado de seus recursos econômicos, a assimilação de hábitos e condutas de consumo e a administração racional e eficiente do dinheiro. Nessa perspectiva, a educação sobre os temas econômicos facilitaria o acesso às ferramentas disponíveis para o entendimento desse universo, possibilitando as condições para a interpretação dos eventos que afetam as pessoas direta ou indiretamente e para uma maior coerência nas decisões a serem tomadas sobre a multiplicidade de problemas econômicos cotidianos. Sabe-se que a conquista da maturidade econômica é um processo complexo, envolvendo várias transições diferentes. A idade em que isso ocorre, o período de tempo em que se estende e a sequência em que se dá mostram uma ampla variação entre sociedades, períodos históricos; entre classes e grupos dentro de uma sociedade e também entre indivíduos. Contudo, parece evidente que níveis mais altos de alfabetização econômica48 devem ser alcançados por um maior número de cidadãos, possibilitando-lhes melhores meios para conhecer e enfrentar esse modelo que os impele ao consumo. Mas, como o ser humano começa a se relacionar com o mundo econômico? Como ele chega a construir e criar significados sobre esse universo tão complexo? Quais as experiências cotidianas que ele realiza no esforço de explicar os fenômenos econômicos que o afetam? São respostas para questões como estas que os novos estudos estão buscando, como forma de possibilitar uma melhor compreensão das relações econômicas, além de explicar como ocorre o processo de socialização econômica 49 dos 48 49 Para Yamane (1997) o processo de alfabetização econômica se refere à aprendizagem e ao desenvolvimento de conceitos, habilidades e destrezas que permitam ao indivíduo compreender o sistema econômico e que o ajudem a tomar decisões que venham de alguma maneira melhorar a sua qualidade de vida. O termo socialização econômica é tomado neste trabalho, no sentido de educação econômica, como o processo de aprendizagem das pautas de interação com o mundo econômico, mediante a assimilação de conhecimentos, destrezas, estratégias, padrões de comportamento e atitudes sobre o uso do dinheiro e seu valor na sociedade (DENEGRI; I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 162 indivíduos. A socialização, como linha de investigação da área de Educação Econômica, encarregada de estudar como os indivíduos constroem os conceitos econômicos, em quais estágios do desenvolvimento ocorrem essas construções e como o fator interação social com o meio circundante afeta esse processo de aprendizagem, encontra na família um espaço privilegiado, na medida em que as primeiras interações que se constroem entre a criança e mundo ocorrem no círculo familiar, desempenhando papel preponderante na forma como a criança concebe o mundo social e, consequentemente, na formação de seus valores, crenças e comportamentos. Nessa perspectiva, a socialização é um processo que acontece durante toda a infância e se estende pela adolescência e vida adulta por meio das práticas e das experiências vividas, assimiladas de acordo com seu sistema de significação e suas estruturas cognitivas. Não se limita de modo algum a um simples treinamento realizado pela família ou outras instituições especializadas, e varia de acordo com o universo de socialização, forçosamente diferente segundo a origem social da pessoa, sociedade onde ela vive e grupo a que pertence. Nas sociedades contemporâneas, caracterizadas pela globalização econômica e cultural e, sobretudo, pela presença crescente de poderosas mídias, esse processo está fortemente submetido à influência de outras instituições, o que o torna extremamente complexo e dinâmico, pois ele deve integrar todos os elementos presentes no meio ambiente e, ao mesmo tempo, contar com a participação ativa do próprio sujeito. De qualquer modo, um dos principais fatores para a socialização da criança é a educação, portanto, o modelo de conduta de pais e educadores exerce forte poder na formação dos hábitos infantis.. Apesar de seu impacto na vida futura dos indivíduos, existe escassa literatura sobre como e quando os meninos e meninas são apresentados ao mundo econômico e, ainda mais restritos, são os registros de estudos sobre como ocorre o processo de socialização econômica no âmbito familiar. Pouco se sabe sobre qual tem sido o papel das famílias nesse processo e são praticamente desconhecidas quais os procedimentos utilizadas pelas famílias latinas para alfabetizar economicamente seus filhos e se esses procedimentos diferem conforme a classe social e tipo de estrutura familiar. Observa-se também a ausência de estudos dessa natureza envolvendo brasileiros. Essas reflexões são importantes porque o comportamento cotidiano, os valores e comentários da família exercem influência sobre as atitudes dos filhos e é por isso que se acredita ser na família que se inicia o aprendizado de hábitos sadios de consumo ou os malefícios do consumismo desenfreado. PALAVECINOS; GEMPP, 2003). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 163 Famílias, as quais comentam com os filhos suas possibilidades econômicas, em que há planejamento conjunto de gastos sem que se oculte a existência de dificuldades monetárias e que estimula o uso racional dos recursos é aquela que educa para o consumo. Ao contrário, se demonstram constante preocupação com aquilo que os outros têm, se valorizam os ditames da moda ou da propaganda, estarão levando seus filhos pelo caminho do consumismo, inserindo-os na cultura dos descartáveis, do usar e jogar fora, que os leva a comprar impulsivamente objetos que logo irão descartar para, em seguida, comprá-los novamente, numa cadeia sem fim, para não se sintam inferiores aos outros. Piaget (1945/1998) esclarece que não pode ser livre aquele que não consegue controlar a própria vida, tanto no que se refere aos seus relacionamentos, como no que diz respeito a seus bens. Nesse sentido, estar numa situação de constante endividamento não permite o exercício de uma vida plena. Por isso, educar para o consumo é também preparar o indivíduo para a liberdade e autonomia moral, contribuindo para formar pessoas capazes de controlar a própria vida e, consequentemente, pessoas mais livres. A pesquisa Esta pesquisa, dada sua natureza exploratória e descritiva, está inserida na área do Conhecimento Social e teve como objetivo geral conhecer os procedimentos utilizados pelas famílias para a educação econômica de seus filhos. Para alcançar esse objetivo foi organizada, intencionalmente, uma amostragem composta por 270 participantes, com pelo menos um filho, em idades entre três e dezesseis anos, em cidade da Região Metropolitana de Campinas, Estado de São Paulo, pertencentes aos estratos socioeconômicos baixo, médio e alto, constituindo famílias monoparentais, biparentais e recompostas. O critério adotado para a composição da amostra buscou atender à demanda por estudos na área da socialização econômica, considerando o papel importante da família para o desenvolvimento do pensamento econômico de crianças e jovens, bem como para a formação de seus hábitos de consumo e de suas atitudes frente ao endividamento. Assim, a amostra teve distribuição equitativa nos níveis socioeconômicos baixo, médio e alto e nas três estruturas familiares: monoparental, biparental e recomposta, combinando-se nível socioeconômico e estrutura familiar para cada grupo de 30 participantes. A coleta de dados foi realizada com base em um questionário estruturado, com questões abertas e fechadas, criado especificamente para este estudo, permitindo a caracterização sociodemográfica dos participantes, a identificação das práticas de socialização implícitas no comportamento econômico da I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 164 família e a identificação das estratégias de educação econômica utilizadas com os filhos. As informações fornecidas pelos participantes foram tabuladas e posteriormente submetidas às análises de conteúdo, exploratória e confirmatória por meio de medidas resumo (média, desvio padrão, mínimo, mediana, máximo, frequência e porcentagem de análise de frequência). As variáveis categóricas foram comparadas usando-se o teste Qui-Quadrado e as variáveis contínuas foram comparadas por intermédio dos testes Kruskall-Wallis ou Mann-Whitney. Vale destacar que, nesse estudo, entende-se por procedimentos de socialização o conjunto de ações utilizadas pelas famílias para educar seus filhos sobre o mundo econômico. Essas ações englobam tanto as estratégias de educação econômica, concebidas como o conjunto organizado e coerente de regras, valores e ações que os pais e mães utilizam para alfabetizar economicamente seus filhos, como as práticas de educação econômica, entendidas como as ações implícitas realizadas pelos pais no processo de educação econômica de seus filhos a partir de sua conduta cotidiana. (DENEGRI; PALAVECINO; GEMP, 2003). Resultados A interpretação dos resultados da pesquisa evidenciou que as famílias preocupam-se quanto à educação econômica de seus filhos. A maioria dos participantes acredita que as crianças devam ser educadas para essa área, não apenas pela família, mas também pela sociedade. No entanto, ao justificarem a necessidade dessa educação demonstram desconhecimento sobre a construção dos conceitos econômicos e seus benefícios para a formação cidadã das novas gerações. Dentre as principais estratégias que pais e mães informam utilizar para a educação econômica de seus filhos, estão: incentivo às práticas de economia e poupança, conversa sobre dinheiro, administração dos próprios recursos por meio da disponibilização de dinheiro e situações de consumo. Com menor frequência foram mencionadas as estratégias de: restrição ao dinheiro, orientação sobre trâmites bancários, introdução às práticas comerciais, envolvimento no planejamento do orçamento familiar, pagamento por realização de tarefas ou bom comportamento e oferecer jogos que envolvem temas econômicos. Todos os participantes consideram importante que os filhos aprendam a economizar e poupar e que essa aprendizagem deva começar na infância, entretanto, relatam que utilizam esse procedimento esporadicamente. As formas comumente adotadas pelos filhos são: o cofrinho, a economia de dinheiro para comprar algo que desejam, a colaboração na redução do consumo de energia, água, entre outros e, ainda uma pequena porcentagem, adota a caderneta de poupança. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 165 As famílias justificam de forma semelhante a necessidade do aprendizado de economia e poupança por parte dos filhos, concordando que essa seja uma conduta de preparação para o futuro. Esses argumentos refletem a preocupação dos pais em garantir o acesso dos filhos a bens materiais, mas não chegam a conceder esse aprendizado como uma ferramenta de planejamento econômico e de distribuição de recursos a longo prazo. As conversas sobre o mundo econômico giram em torno do tema dinheiro e acontecem, esporadicamente, nos diálogos cotidianos, particularmente, diante das situações de consumo e dos pedidos dos filhos para lhes comprarem coisas. Um número expressivo de famílias disponibiliza dinheiro para os filhos sempre que pedem ou precisam. Chama a atenção o baixo percentual daqueles que utilizam a oferta regular de dinheiro na forma de mesada ou semanada para que os filhos tenham o compromisso de administrá-lo. Essas informações revelam o caráter utilitarista da oferta, para atender às demandas do filho naquele momento, não tendo o aspecto pedagógico que os leve a aprender de forma concreta como tomar decisões sobre seus gastos e poupança e de como planejar para atingir seus objetivos futuros. (DENEGRI,1998; FURHAM e THOMAS, 1984). Vale destacar que a maior incidência da prática de dar dinheiro a título de prêmio aparece nas famílias biparentais. Por outro lado, a família monoparental destaca-se como o grupo que mais utiliza a oferta de dinheiro de forma regular. As experiências envolvendo o consumo são bastante comuns nas famílias e fazem parte da convivência familiar. A maioria dos pais e mães levam seus filhos quando vão às compras em diferentes locais de comércio. Nessas ocasiões, é comum os filhos pedirem coisas, sendo atendidos pelos pais que tendem a comprar sempre que podem ou quando for necessário. Essa conduta indica prática pouco coerente com uma educação voltada para o consumo racional e equilibrado. Tal comportamento reflete ausência de planejamento e controle dos gastos, além de dificultar a aprendizagem da escolha, diferenciando o essencial do supérfluo. As razões que levam os pais a atender aos pedidos dos filhos apoiam-se em uma mistura de argumentos racionais e emocionais. Esse conjunto de práticas constituem importante experiências de socialização econômica, refletindo a preocupação das famílias em ensinar aos filhos o valor do dinheiro e a necessidade de poupança. No entanto, observa-se, pelas respostas dos participantes, que nem sempre os objetivos dos I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 166 pais estão claros para eles mesmos. Na prática, as estratégias de educação econômica são implementadas de forma espontânea, como respostas às demandas dos filhos ou às situações de consumo, sem um planejamento por parte dos pais e mães. Essas atuações esporádicas e não sistemáticas caracterizam-se pelo que se pode chamar de comportamento intuitivo, ou seja, pela busca de boas alternativas baseadas na própria experiência dos pais e em hipóteses de senso comum, o que permite considerar que não se apresentam com estratégias de alfabetização econômica no sentido concebido por Denegri, Palavecinos e Gempp (2003). De modo geral as famílias avaliam a experiência de educação econômica dos filhos como satisfatória. No entanto, ao relacionar essa avaliação com a ausência de sistematização dos procedimentos utilizados por elas, percebe-se sua superficialidade. Daí a necessidade de se investir na formação dos que vão educar as crianças. Quanto às dificuldades mencionadas pelos participantes em relacionar criança e consumo, as famílias destacam sua impotência diante da influência da mídia, despreparo frente às solicitações dos filhos e submissão à pressão social. Essas dificuldades parecem traduzir o modelo de sociedade globalizada ao qual o indivíduo se vê submetido, tendo que consumir para poder fazer parte dela. Em síntese, os procedimentos utilizados pelas famílias não assumem um caráter de alfabetização econômica, pois não geram o desequilíbrio no sentido piagetiano, impossibilitando a ocorrência da auto regulação na conduta dos filhos. As ações dos pais oscilam entre tendências do laissez faire, na qual tudo pode, e autoritária, com a imposição de comandos e regras, mas em qualquer desses extremos, são comportamentos que impedem que as crianças/filhos compreendam e interiorizem as consequências de seus atos e se auto organizem em direção à condutas mais evoluídas e conscientes. Esses resultados assemelham-se aos encontrados por Denegri, Palavecinos e Gemmp (2003), Amar et al. (2006) e Denegri et al.(2003), mostrando que os pais são importantes educadores econômicos, por serem os principais provedores do dinheiro. Entretanto, nessa área, suas ações têm se mostrado limitadas e até contraditórias, assumido um caráter informal e não sistemático . Ao analisar comparativamente os procedimentos que os participantes utilizam para a educação econômica dos seus filhos, buscando verificar se há diferenças quanto à estrutura familiar, observou-se que as famílias não se diferenciam quanto à maioria dos procedimentos de educação econômica dos filhos. Geralmente, os participantes apesar das diferentes configurações familiares demonstram semelhanças, tanto em relação ao seu comportamento econômico, resultando em práticas implícitas de educação para os filhos quanto no que se refere às estratégias que afirmam utilizar para educá-los I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 167 economicamente. Vale esclarecer que em alguns aspectos foi observada a interferência da variável estrutura familiar. Dentre os aspectos relacionados ao comportamento das famílias destaca-se o fato de encontrar-se na família monoparental a maior frequência de planejamento sistemático, análise sistemática da situação financeira antes das compras, bem como menor frequência de utilização de cheque pré-datado ou cartão. Quanto aos aspectos relacionados às estratégias utilizadas pelas famílias para a educação econômica dos filhos, os que se mostraram mais sensíveis à variável estrutura familiar foram: os temas das conversas entre pais e filhos, sendo assuntos relacionados ao dinheiro predominantes na família monoparental, já nas famílias biparental e recomposta, além de assuntos relacionados ao dinheiro, são também discutidos temas econômicos variados. Destaca-se, ainda, que as respostas para a categoria envolvimento dos filhos no orçamento familiar foram apresentadas predominantemente pelo grupo monoparental. As famílias apresentam comportamentos diferentes com relação à frequência de disponibilização de dinheiro para os filhos. As famílias monoparental e recomposta se destacam por dar dinheiro aos filhos sempre que pedem e regularmente, já para a família biparental, se sobressai a resposta “não dou dinheiro”. Observou-se que tanto o comportamento econômico dos participantes quanto os procedimentos usados para a educação dos filhos mostram-se menos assistemáticos nos níveis mais altos, podendo, portanto, confirmar a hipótese de que os procedimentos para educação econômica utilizados pelos progenitores diferenciam-se conforme o nível socioeconômico na maior parte dos aspectos investigados por este estudo. Esse resultado coincide com o encontrado por Denegri (2003), Denegri, Palavecinos e Gempp (2003) e Denegri et al. (1999), mostrando que os fatores de experiências socais, como a escolarização, o domicílio, o nível socioeconômico das pessoas interferem no seu entendimento dos fenômenos econômicos e hábitos de consumo. Buscando a relação entre comportamento e estratégia de educação econômica, procurou-se comparar o processo de socialização vivenciado pelos pais quando criança e o modo como praticam a educação econômica de seus filhos. Essa comparação mostrou que os participantes tendem a transmitir os conhecimentos e valores provenientes de suas famílias de origem, evidenciando a influência do meio no processo de socialização I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 168 econômica. Observou-se que pais que receberam orientação econômica ao longo do seu desenvolvimento têm maior preocupação em manter conversas sistemáticas sobre assuntos econômicos com seus filhos, enquanto aqueles que não receberam qualquer orientação não mantêm essas conversas. Também percebe-se uma associação entre o que os pais e mães aprenderam na infância e o que eles transmitem a seus filhos Esses dados indicam, em seu conjunto, por um lado, que vários aspectos do comportamento das famílias estão refletidos nas estratégias que utilizam para a educação de seus filhos, por outro, evidencia a distância existente entre os valores das famílias, traduzidos em seu discurso e os procedimentos concretos que utilizam cotidianamente para a alfabetização econômica deles. Corroborando com esses resultados, as pesquisas no âmbito da socialização econômica na família têm mostrado que os pais são importantes educadores, entretanto, as práticas educativas utilizadas por eles nessa matéria são limitadas e até contraditórias. (DENEGRI et al. 2002). Considerações finais e implicações educacionais A questão da Educação Econômica é ao mesmo tempo complexa e desafiadora. Com relação ao cotidiano vivenciado por pais e filhos, as dificuldades se ampliam pela informalidade existente no processo educativo. Não cabem dúvidas de que a participação da família no processo de socialização da criança é importante, especialmente para ajudá-la a se inserir no mundo das regras e valores. Ser pai e mãe é exatamente ser o adulto da relação. Espera-se que tais pessoas sejam referências para os filhos. Sabe-se que a criança imita o comportamento dos adultos com os quais convive, por isso, espera-se que eles ofereçam bons modelos. Pais e educadores, que desejam oferecer uma boa educação nessa área, devem primeiro considerar seus próprios comportamentos e valores com relação aos temas econômicos. A sua relação equilibrada e consciente será modelo para os filhos, a ausência dela também. Assim, os resultados confirmam a necessidade de uma adequada socialização econômica para que os indivíduos atinjam melhor atuação nesse universo cada vez mais complexo, permitindo-lhes não apenas a administração mais eficiente de seus recursos, mas a verdadeira cidadania. Dentre as implicações resultantes deste estudo, observa-se alguns pontos considerados fundamentais para uma proposta de reorientação econômica para as famílias. As descobertas da teoria piagetiana sobre o processo de desenvolvimento do ser humano mostram que a construção do conhecimento sobre o mundo social depende do mesmo processo interno de I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 169 autorregulação do sujeito. Portanto, para que ocorra o desenvolvimento de ideias econômicas é preciso que as crianças encontrem condições para o seu desenvolvimento intelectual, além da garantia de uma variedade de experiências ligadas aos fenômenos econômicos. Uma educação que conduza ao autogoverno, o que implica vivência da reciprocidade, da escolha, da tomada de decisão. Os estudos na área da socialização econômica coincidem sobre a necessidade de se estabelecer mecanismos de apoio que permitam enriquecer e complementar o processo de educação realizado pelas famílias. Assim, a escola é chamada a desempenhar um papel mais ativo em relação à criação de propostas concretas, dirigidas tanto aos pais e mães quanto a seus filhos, não apenas com o propósito de contribuir para a elevação de seus níveis de alfabetização econômica, mas de modo a ajudá-los a assumir seu papel de agentes sociais ao serem capazes de participar de forma mais eficaz nas decisões políticas e econômicas da sociedade nas quais estão inseridas. Acredita-se portanto, que a educação econômica deve acontecer também na escola. Nas sociedades contemporâneas, caracterizadas pela globalização econômica e cultural e, sobretudo, pela presença crescente de poderosas mídias, como as de hoje, as pessoas estão cada vez mais expostas a uma infinidade de fatores que procuram condicionar seu comportamento ao consumo. Observa-se que a grande maioria das pessoas encontra-se despreparada para enfrentar os apelos do consumismo, assumindo uma atitude passiva e até indiferente diante dos problemas sociais ligados ao consumo desenfreado como: degradação do ambiente, esgotamento de recursos, aumento da pobreza, hiperendividamento, aumento do consumo de drogas, para citar alguns. A fragilidade do comportamento dos indivíduos diante desses problemas tem atingido principalmente as crianças, que crescem num meio dominado pelo assédio da publicidade. Daí a necessidade de se refletir sobre as consequências nefastas da comunicação mercadológica voltada às crianças, impedindo seu desenvolvimento saudável. Para Henriques (2008), as crianças não têm mecanismos psicológicos suficientes para entender a complexidade das relações de consumo e os artifícios da publicidade, como um adulto, portanto, toda e qualquer publicidade dirigida ao público infantil é intrinsecamente abusiva na medida em que para seu sucesso se vale da imaturidade dos julgamentos infantis. Ao pensar a intervenção educativa na construção do comportamento econômico há que se considerar a complexidade desse tema. Também deve se observar que ela não se torne estritamente racional, desconsiderando seu aspecto sociomoral e afetivo, tendo em vista o papel dos valores nas escolhas que o sujeito realiza. Nesse sentido, não basta a informação correta para o desenvolvimento de condutas econômicas éticas e mais equilibradas, é preciso querer agir bem. Esse aspecto remete ao campo da motivação, dos interesses que desencadeiam a ação. O termo valor é central para se compreender a fonte de valorizações do indivíduo, seja de objetos ou pessoas. (PIAGET,1954/1981). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 170 Voltando à questão da construção das noções econômicas e pensando particularmente nas relações de consumo, acredita-se que esse possa vir a ser um instigante campo de a investigação, portanto, pesquisar o conceito de força de vontade, como apresentado na teoria piagetiana, pode ajudar a compreender os outros elementos que estão em jogo nos processos de educação econômica. Ao descrever como as famílias estão educando os filhos sobre o mundo econômico espera-se contribuir com elementos que possibilitem um olhar crítico para o fenômeno do consumo, de modo a enriquecer o processo de socialização realizado pela família e apoiá-la na construção de valores estáveis e sólidos, resultando em melhoria não apenas para a vida do cidadão, mas principalmente em garantia de vida para o planeta. 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O desenvolvimento dessa pesquisa ocorreu por meio de pesquisa bibliográfica e de campo. A pesquisa de campo foi realizada em duas escolas, uma Municipal e outra Particular, por meio da observação do cotidiano escolar e da aplicação de questionário às professoras, coordenadoras pedagógicas e diretoras. Observou-se que as professoras pesquisadas não proporcionam espaços para a resolução dos conflitos em sala de aula. Esses conflitos são, geralmente, resolvidos por meio de castigos, humilhações e até mesmo com agressões físicas, o que demonstra que é a sanção expiatória que se prepondera no ambiente escolar. Palavras-chave: Conflitos interpessoais. Direitos Humanos. Educação Infantil. Abstract For the constructivist theory of Piaget, conflicts promote both the moral as intellectual development of children. Therefore, the objective of this paper is to reflect on the interpersonal conflicts and how (the) teachers of Child Education dealing with them. To reflect on the theme, based on the theory of Piaget's to scientific initiation research in the year 2008 in the city of Marília/SP. The development of this research was through literature search and field. The fieldwork was conducted in two schools, a municipal and other particles through the observation of everyday school life and the application of questionnaires to teachers, education coordinators and directors. Noticed that the teachers surveyed do not provide space for the resolution of conflicts in the classroom. These conflicts are usually resolved through punishment, humiliation and even with physical attacks, which shows that the penalty expiatory that preponderate in the school environment. Keywords: Interpersonal conflicts. Human rights. Child Education. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 173 Introdução A arte de conviver demanda esforços. A sociedade é formada por indivíduos com concepções e valores próprios e, portanto divergências, o que faz com que as relações sejam permeadas por conflitos. Para Hobbes, segundo Bobbio (1991, p.34), os conflitos são gerados pelas paixões, já que são elas as responsáveis pelos que "[...] buscam precedência e superioridade sobre seus companheiros". No entanto, se permitirmos que nossas paixões falem mais alto, não haverá condições de convivência com o outro. Tais condições podem ser descritas por "[...] reciprocidade, solidariedade, respeito ao próximo e acima de tudo, generosidade [...]", já que "É um péssimo cidadão aquele que não consegue ser generoso ao ponto de limitar, minimamente que seja, seus próprios interesses diante de interesses coletivos". (FERREIRA, 1993, p.220). Se a reflexão parece complexa em relação ao social o que se dirá em relação ao ambiente escolar, principalmente, na Educação Infantil, em que as crianças ainda apresentam muitas dificuldades no que diz respeito ao contato com o outro e com as regras que essa convivência exige. Por outro lado, os professores também não sabem como lidar com os conflitos em sala de aula, visto que as relações se pautam na sua autoridade. Para melhor análise dessa temática utilizarei a pesquisa de iniciação científica que, intitulada Direitos humanos na Educação Infantil: primeiros passos para a cidadania (ORIANI, 2008), que realizei em duas escolas de Educação Infantil, na cidade de Marília/SP. Essa pesquisa teve como intuito analisar as práticas pedagógicas por meio dos conflitos interpessoais a respeito dos direitos humanos e da cidadania. Frente ao exposto, o objetivo do presente artigo é o de refletir sobre os conflitos interpessoais e sobre como os (as) professores (as) de Educação Infantil lidam com eles, com base na perspectiva construtivista de Piaget. Este artigo foi estruturado em três partes. Na primeira, apresento alguns conceitos da teoria de Piaget que subsidiaram a análise dos conflitos observados na pesquisa. Na segunda, relaciono educação, direitos humanos e cidadania, tendo em vista que, é por meio dessa relação que se desenvolve a autonomia e a cooperação, aspectos essências para uma sociedade democrática. Para tal, utilizo documentos que fundamentam a necessidade de uma educação baseada em direitos e deveres. Na terceira parte, analiso os conflitos interpessoais que ocorrem entre as crianças das duas instituições pesquisadas. Contemplo, nessa parte também, sobre quais perspectivas os conflitos I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 174 interpessoais são compreendidos pelos contextos. Por fim, realizamos as considerações finais relacionando a perspectiva construtivista piagetiana e os conflitos observados nos contextos. Principais conceitos de Piaget Os estudos de Jean Piaget sobre o julgamento moral das regras pelas crianças trouxeram importantes contribuições para a área educacional, pois propiciou o conhecimento da relevância das relações escolares se pautarem na solidariedade, no respeito, no diálogo, na cooperação para a formação de sujeitos autônomos. Para Piaget (1994, p. 23) “Toda moral consiste num sistema de regras, e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras.”. Para analisar e compreender a moral das crianças, Piaget (1994) averiguou a evolução da prática e da consciência que elas têm acerca das regras em situações de jogos. Os resultados obtidos no decorrer desses estudos evidenciaram a existência de duas morais distintas na criança, “[...] uma moral da coação ou da heteronomia e uma moral da cooperação ou da autonomia” (PIAGET, 1994, p. 156). A primeira, de acordo com Piaget, é caracterizada pela “[...] coação moral do adulto, coação que resulta na heteronomia e, consequentemente, no realismo moral” (1994, p. 154). A segunda é pautada na “[...] cooperação, que resulta na autonomia” (PIAGET, 1994, p. 154). O realismo moral é “[...] a tendência da criança em considerar os deveres e os valores a eles relacionados como subsistentes em si, independentemente da consciência e se impondo obrigatoriamente, quaisquer que sejam as circunstâncias [...]” (PIAGET, 1994, p. 93). Segundo Piaget (1994, p. 131), “[...] o realismo moral nasce do encontro da coação com o egocentrismo.”. O egocentrismo é a “[...] indiferenciação entre o eu e o meio social” (PIAGET, 1994, p. 81) da criança. As características do realismo moral que se destacam nos julgamentos realizados pelas crianças são: o dever é essencialmente heterônomo, pois todo ato bom é aquele que ocorre em obediência à autoridade e todo ato mau é aquele que não segue as regras; a regra deve ser observada ao ‘pé da letra’ e não no seu sentido; os atos são julgados conforme a concepção objetiva da responsabilidade, isto é, o julgamento se baseia no resultado e não na intenção do ato, a qual define a responsabilidade subjetiva (PIAGET, 1994). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 175 “A noção objetiva da responsabilidade aparece, sem dúvida alguma, como um produto da coação moral exercida pelo adulto” (PIAGET, 1994, p. 109). Dessa coação também resulta o respeito unilateral da criança pela autoridade. O respeito unilateral “[...] é a origem da obrigação moral e do sentimento do dever: toda ordem, partindo de uma pessoa respeitada, é o ponto de partida de uma regra obrigatória” (PIAGET, 1994, p. 154). Para Piaget (1994, p. 134), “[…] é a passagem do respeito unilateral ao respeito mútuo que vai liberar a criança de seu realismo moral”. Isso ocorrerá por meio da evolução mental da criança, com a idade e por meio das relações sociais, especialmente, entre iguais. Se os pequenos apresentam um realismo moral quase sistemático, conduzindo, em certos casos, a uma predominância da responsabilidade objetiva sobre a responsabilidade subjetiva, é por causa das relações sui generis da coação adulta com o egocentrismo infantil: o respeito unilateral da criança pelo adulto obriga o primeiro a aceitar as ordens do segundo, mesmo quando estas não são suscetíveis de uma colocação em prática imediata, donde a exterioridade atribuída à regra e o caráter literal do julgamento moral que daí decorre. Se, inversamente, a criança se desenvolve no sentido da interiorização das ordens e da responsabilidade subjetiva, é porque a cooperação e o respeito mútuo lhe dão uma compreensão sempre mais elevada da realidade psicológica e moral. A veracidade deixa assim, pouco a pouco, de ser um dever imposto pela heteronomia para tornar-se um bem encarado como tal pela consciência pessoal autônoma. (PIAGET, 1994, p. 138-139, grifo do autor). Segundo Menin (2007), são o respeito e egocentrismo, num extremo, e cooperação com reciprocidade, noutro, que explicam a evolução dos juízos morais e das concepções de justiça entre as crianças. As duas noções de justiça mais investigadas por Piaget foram a retributiva e a distributiva. A primeira “[...] se define pela proporcionalidade entre o ato e a sanção.” (PIAGET, 1994, p. 157) e se liga mais diretamente à coação adulta. A segunda noção se pauta na igualdade e na solidariedade infantil. Na justiça retributiva, Piaget salientou dois tipos de sanção: a sanção expiatória e a sanção de reciprocidade. A sanção expiatória se relaciona à coação e às regras de autoridade do adulto. Possui o caráter de ser ‘arbitrária’ por não haver nenhuma relação, entre o conteúdo da sanção com o ato sancionado. Em vista disso, Pouco importa que, para punir uma mentira, se inflija ao culpado um castigo corporal, ou que privemos de seus brinquedos ou que o condenemos a uma tarefa escolar: a única coisa necessária é que haja proporcionalidade entre o sofrimento imposto e a gravidade da falta. (PIAGET, 1994, p. 161). A sanção de reciprocidade se interliga à cooperação e às regras de igualdade. Possui a ideia de I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 176 reposição ou de reparação, bem como a intenção de renovar o elo de solidariedade rompido pelo ato culpável. Nessa sanção, “[...] há relação de conteúdo e de natureza entre a falta e a punição, sem falar da proporcionalidade entre gravidade daquela e rigor desta.” (PIAGET, 1994, p. 162). Piaget evidenciou, por meio de entrevistas, “[...] uma tendência maior entre crianças de sete anos ou menos em preferir sanções expiatórias [...]” (MENIN, 2007, p. 53). É o que nos mostra [...] a escolha das punições: enquanto os pequenos preferem as mais severas, de maneira a ressaltar a necessidade do castigo em si mesmo, os maiores optam mais pelas medidas de reciprocidade, que indicam simplesmente ao culpado a ruptura do elo de solidariedade e a obrigação de uma reposição em ordem. (PIAGET, 1994, p. 176). Trabalhar com crianças pequenas exige do professor atenção redobrada no momento da resolução dos conflitos para que não haja a escolha da sanção expiatória entre elas e a predominância de sua autoridade, a qual é vista como justa pelos pequenos. Por isso, é importante que o professor as estimule a falar e resolver os conflitos por si próprias. Para Piaget, o conflito pode promover o desenvolvimento tanto moral quanto intelectual da criança. “O conflito interpessoal pode oferecer o contexto no qual as crianças tornam-se conscientes de que outros têm sentimentos, ideias e desejos.” (DEVRIES, 1998, p. 90). O que ajuda a superar o egocentrismo infantil. O próprio autor, em escritos sobre procedimentos em educação moral (Piaget 1930 e 1968), aponta dois caminhos fundamentais para a construção da autonomia moral: não impor à criança aquilo que ela pode descobrir por si e criar situações para que as crianças descubram a necessidade e as razões das regras. (MENIN, 2007, p. 57). Para a teoria piagetiana, [...] primeiro é preciso fazer para depois compreender. Assim, na moral, como no campo intelectual, uma consciência só se torna autônoma, livre da influência cega de uma autoridade maior e capaz de fazer descobertas na realidade, se puder experimentar, na e com a prática das ações, esta realidade. (MENIN, 2007, p. 49). Desse modo, “[...] as relações entre coetâneos que constituem o meio mais propício ao desenvolvimento da noção de justiça distributiva e ao das formas evoluídas da justiça retributiva.” (PIAGET, 1994, p. 222). Numa palavra, podemos, desde já, supor que as crianças que colocam a justiça retributiva acima da justiça distributiva são aquelas que seguem o ponto de vista da coação adulta, enquanto as que preferem a igualdade à sanção são aquelas às quais as relações entre crianças (ou mais raramente as relações de respeito mútuo entre adultos e crianças) levaram à melhor compreensão das situações psicológicas e a julgar segundo um novo tipo de normas morais. (PIAGET, 1994, p. 204). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 177 As relações, no ambiente escolar, pautadas na cooperação e no respeito mútuo, podem propiciar a superação da coação e da autoridade do adulto, bem como o desenvolvimento autônomo das crianças. Educação, direitos humanos e cidadania Tendo em vista que a função da educação é a de “[...] garantir a toda a criança o pleno desenvolvimento de suas funções mentais e a aquisição dos conhecimentos, bem como dos valores morais, que correspondem ao exercício dessas funções, até a adaptação à vida social atual” (PIAGET, 1973, p. 40), podemos compreendê-la como um subsídio para uma sociedade mais democrática formada por cidadãos ativos na vida social, política e econômica do país, que busquem conhecer e lutar por seus direitos. A educação se configura, assim, como um direito e um meio pelos quais se conquistam outros direitos. Para a efetivação desse direito, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB nº. 9.394/96) (BRASIL, 1996) sanciona que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios são responsáveis pela Educação Básica. A Educação Infantil, os Ensinos Fundamental e Médio compõem a Educação Básica delimitado, no artigo 22, que afirma: Art.22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Nesse sentido, a educação, além de um direito garantido por lei, também tem como dever preparar o educando para ser um cidadão, ou seja, necessita ensinar-lhe quais são seus direitos e deveres para que os direitos dos outros e os seus não sejam desrespeitados, características essenciais para a vida em sociedade. Direitos esses que devem ser vivenciados em todos os níveis educacionais, sem qualquer justificativa contrária para ausência de seu cumprimento. O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), lançado em 2003 (BRASIL, 2003), demonstra a preocupação do Estado brasileiro em relação à educação em direitos humanos e cidadania, ao compreender que essa é fundamental para a construção de uma sociedade justa, equitativa e democrática, e, por isso considera que: A educação em direitos humanos deve ser um dos eixos fundamentais da educação básica e permear o currículo, a formação inicial e continuada dos profissionais da educação, o projeto político pedagógico da escola, os materiais didático-pedagógicos, o modelo de gestão e avaliação. O que significa dizer que: É preciso não esquecer que a educação é chamada a formar as crianças e os jovens para a I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 178 cidadania, a democracia e o respeito a todos os direitos. Para tanto será importante desenvolver práticas educacionais participativas e dialógicas em que se trabalhe práticateoria-prática e em que o cotidiano escolar esteja impregnado de direitos humanos. (CANDAU, 2000, p.129) Uma educação que contemple os direitos humanos e a cidadania iniciada a partir da Educação Infantil deve ter como metas principais: A cooperação e a autonomia, as crianças são encaradas como pequenos cidadãos, e o trabalho escolar é entendido como o que garantir o acesso aos conhecimentos produzidos historicamente pela humanidade e formar, simultaneamente, indivíduos críticos, criativos e autônomos, capazes de agir no seu meio para transformá-lo. (KRAMER, 1992, p.12). Para Piaget, essa cooperação e autonomia são construídas por meio de um ambiente que possibilite a compreensão da importância das regras morais e não simplesmente as introduza como uma pressão externa ao indivíduo, o que refletiria na heteronomia.(VINHA, 2003) A escola como um dos primeiros espaços de convivência entre as crianças e, portanto entre a infinidade de diferenças (culturais, étnicas, religiosas, sociais etc.), é o ambiente em que deve ser possibilitada a compreensão das regras de convivência. Regras, que no sentido atribuído por Piaget forem compreendidas como fundamentais, em um processo que resulte em autonomia e cooperação refletirão em indivíduos aptos a (con) viver em uma sociedade democrática. Uma sociedade democrática se dá a partir de uma cidadania ativa em que todos tenham os mesmos direitos, deveres e possibilidades de conquistar mais direitos. Para tal é necessário que haja o "[...] efetivo exercício da liberdade, a possibilidade concreta, não apenas teórica ou legal, de participação na vida social com poder de influência e de decisão" (DALLARI, 2004, p.41). Como indica Benevides (1998, p.158, grifos da autora) para a construção de uma sociedade democrática é necessária uma educação que atue: [...] desde a escola primária, no sentido de enraizar hábitos de tolerância diante do diferente ou divergente, assim como o aprendizado da cooperação ativa e da subordinação do interesse pessoal ou de grupo ao interesse geral, ao bem comum. No entanto, apesar dos discursos apregoarem uma educação ideal aos interesses da sociedade, as práticas muitas vezes não condizem com o esperado e questões tão fundamentais não são trabalhadas. Nesse sentido, como afirma Sesti (2004, p.333): Em se tratando de educação, de modo geral antes de discursos e informações, são as ações o que importa considerar. Com mais razão, portanto, o sentido de uma educação comprometida com os ideais e valores da cidadania, da democracia e dos direitos humanos se expressa menos nas informações e nos discursos transmitidos do que nos princípios de condutas que regem, no cotidiano escolar, as ações educativas de uma I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 179 instituição. Tal fato se comprova na pesquisa mencionada anteriormente. O desenvolvimento dessa pesquisa qualitativa ocorreu por meio de pesquisa bibliográfica e de campo. Nessa última foi realizada a observação do cotidiano e das rotinas escolares e, ao final, a aplicação de questionário às professoras, coordenadoras pedagógicas e diretoras. A opção por instituição pública e particular se deu devido ao fato de ambas se orientarem pelos mesmos documentos e leis em que necessitam cumprir as mesmas exigências. No entanto, vale ressaltar que ambas as instituições selecionadas estão localizadas na região central da cidade de Marília, e essa escolha se deu para que não houvesse disparidade no aspecto sócioeconômico em relação aos alunos das escolas. O enfoque da pesquisa se deu na resolução de conflitos interpessoais que são os que "[...] ocorrem entre as crianças e entre estas e a professora". (VINHA, 2003). Situação que representa um momento importante de convivência com o outro, pois "[...] sugere um equilíbrio entre a capacidade de persuasão do outro e a satisfação de si mesmo". Oportunidade específica para que o (a) professor (a) trate de questões que dizem respeito às temáticas direitos humanos e cidadania, dentre elas o respeito ao próximo e a cooperação. A partir das observações e aplicação dos questionários, verifiquei que em nenhum dos dois contextos escolares, público ou particular, as temáticas foram mencionadas, nem mesmo nas situações de conflitos. No entanto, foi possível tecer algumas considerações importantes a respeito dos conflitos interpessoais que ocorreram nos contextos. Os contextos e os conflitos Para as duas instituições os conflitos interpessoais são considerados indisciplina e, portanto os infratores recebem frequentemente punição. Os conflitos comumente observados foram de desavença entre as próprias crianças quase sempre durante as brincadeiras que resultavam em agressões físicas. Contudo, segundo Vinha (2003, p.232), os conflitos interpessoais são conceituados por Piaget como fundamentais para o desenvolvimento, visto que "Quando ocorre um conflito na interação com o outro, a criança é motivada por esse desequilíbrio a refletir sobre maneiras distintas de restabelecer a reciprocidade". Na Instituição pública pesquisada ainda se perpetua o caráter romântico vigente principalmente por pensadores como Froebel, que defendiam a atuação da professora como a de uma segunda mãe para I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 180 as crianças, no caso dessa escola a tia. Nesse sentido, segundo Carvalho (1999, p. 70), a escola é "uma extensão do lar" e a criança faz parte dessa família. Assim sendo, esses espaços tem que ser : [...] espaços sem conflitos, em que se realizam plenamente a afeição mútua, a empatia e a felicidade. As punições, especialmente as punições físicas, devem ser substituídas pela compreensão, a motivação e a persuasão moral. À escola não cabe apenas transmitir conteúdos institucionais, mas também zelar pelo desenvolvimento moral da criança, tal como se supõe que as mães façam nos lares. E a disciplina escolar - uma disciplina constante e orgânica - aparece como instrumento básico desse aprendizado moral. Na Instituição particular pesquisada, por vigorar as características mercadológicas em que a educação é considerada o produto negociável e as crianças, representadas por seus pais, são as consumidoras, os conflitos são compreendidos como negativo, já que não correspondem ao esperado. Como afirma Tratemberg (1980, p.78), o que ocorre é uma cultura particularizada em que “[...] não só o conteúdo do que é ensinado, mas a forma, sua própria estruturação interna, em nível de programas de ensino, avaliação de ensino, relação professor e aluno, definição de cursos, escalonamento de horários.”, ou seja, todas as decisões dizem respeito aos pais, que são os representantes diretos dos consumidores. Portanto, a existência de conflitos nesse contexto, segundo as observações realizadas, bem como as respostas dos questionários, representa aos consumidores que a ordem não está sendo mantida, fato que faz com que sejam evitados e não utilizados a favor do desenvolvimento cognitivo como defende Piaget. As concepções dos sujeitos sobre direitos humanos nesse contexto pesquisado refletem essa dimensão mercadológica, tanto nas atitudes a partir das observações, como nas respostas dos questionários em que as preocupações se limitam ao âmbito da proteção e conforto dos alunos, ao invés de privilegiar um ambiente de cooperação, que favoreça a autonomia das crianças. As turmas observadas e seus conflitos Um dos critérios utilizados para a pesquisa foi o da escolha da turma, na qual a construção das regras já tivesse sido trabalhada pelas professoras com as crianças para proporcionar uma análise mais pontual de como são tratados os conflitos dentro desse determinado contexto e no momento em que estivessem ocorrendo qual seria a reação dos sujeitos envolvidos. Esse critério foi utilizado devido ao tempo restrito para a realização das observações. Assim sendo as turmas selecionadas foram as que estivessem no último período da Educação Infantil, de cada instituição. Na escola de Educação Infantil Municipal, a última turma corresponde ao Pré III e é composta por vinte e duas crianças com de idades aproximadas entre cinco a seis anos. Já na escola particular a última turma é mista com crianças de Pré I e II, pois nessa instituição, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 181 depois do Pré II as crianças vão para a primeira série de Ensino Fundamental. A turma é composta por cinco alunos do Pré I e dez do Pré II e as idades eram de quatro a cinco anos. A ocorrência do conflito seria o momento adequado para ser tratada a temática direitos humanos, já que esse se configura como ponto crucial para que valores como o respeito ao próximo fossem apresentados para as crianças, já que determinadas regras já teriam sido contempladas. Na escola pública de Educação Infantil, os conflitos são constantes entre algumas crianças específicas, que disputavam para si a atenção da professora e dos demais colegas. As atitudes da professora variavam entre indiferença ou castigos, o que acabava apenas reforçando as agressões entre as crianças. Os castigos variavam entre não permitir que a criança brinque no parque, ou que fique sem o futebol, atividade esperada com ansiedade pelos meninos que ocorria na quinta-feira. Em relação às meninas a atividade esperada era o balé, porém em nenhuma ocasião presenciei a professora proibir alguma menina de ir ao balé, mas os conflitos entre elas ocorriam com menor frequência em relação aos meninos. Essa proporcionalidade de conflitos entre meninos e meninas se perpetua devido a ideologia predominante principalmente entre as professoras de que o comportamento feminino se difere do masculino. Fato que causa e reproduz a partir desse nível de ensino a diferenciação e consequentemente a perspectiva de comportamentos entre as crianças, pautando-se no gênero a que pertence. (CARVALHO, 1999). Em uma ocasião, um dos meninos que costumava bater nos colegas, levou um soco de uma garota, ele não contou à professora que tinha apanhado, pois sabia que precisaria confessar ter sido ele o primeiro a agredir a colega. A atuação da professora nesse caso foi de omissão em relação ao conflito, pois além de não proporcionar nenhum diálogo em relação ao ocorrido ainda afirmou que a atitude da garota estava correta, já que quem bate muito um dia apanha. Notei que a turma conhece as regras de convivência e que estas por sua vez foram impostas pela professora e aquele que não as segue é frequentemente delatado pelos amigos. Quando surge alguma denúncia da turma por parte deste colega em raras ocasiões procura se explicar, pois já está ciente de seu erro. Na escola particular de Educação Infantil, os conflitos representam um problema maior, devido ao I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 182 fato de que duas crianças são portadoras de deficiência mental. Uma delas é portadora da síndrome de Asperger e a outra da síndrome de Down. Essas duas crianças pertencem à turma de Pré I, a criança com Down não proporciona qualquer problema às atividades da turma. No entanto, a criança com Asperger apresenta muitas vezes um comportamento agressivo, principalmente em relação à professora e a estagiária que acompanha a turma. Já em relação às outras crianças, seu comportamento se modifica, pois procura ficar perto de determinadas crianças abraçando e beijando, o que representa um problema, já que as crianças não o querem por perto a todo instante. A atitude da professora, no que diz respeito ao tratamento dispensado à turma é de desrespeito. Um exemplo é o tom irônico que usa ao falar com as crianças, quando questionada por elas sobre as rotinas ou exercícios propostos. Outro exemplo de desrespeito, que pode até mesmo ser considerado de violência, ocorreu em uma situação em que um dos meninos do Pré I foi agredido com o estojo quando passava por outro que estava sentado. Ao presenciar este fato a professora afirmou que o agredido precisa revidar e como a criança demonstrou não desejar agir dessa forma a professora pegou a mão do agredido e bateu com o estojo na cabeça do agressor. Situação essa que se repetiu em outras ocasiões. Ao invés de utilizar os momentos de conflito como estes para falar sobre o respeito ao próximo e sobre a tolerância, ela ensinou a criança a nutrir o sentimento de vingança, o que proporcionou humilhação e raiva. Outra característica observada em relação ao tratamento da professora em relação à turma é a questão da preferência por determinadas crianças. A preferência pelas meninas demonstra, com clareza, a perspectiva de gênero, alguns meninos são inclusive sempre culpabilizados por tudo o que acontece. Considerações finais Nas duas escolas pesquisadas, o constante uso dos castigos ou das recompensas reforça a heteronomia e o egocentrismo das crianças, pois influenciadas pelo autoritarismo e imposição das regras pelos professores (as) não formam, nesse momento, a cooperação e solidariedade entre elas. As consequências dessas atitudes autoritárias do adulto negam “[...] à criança a oportunidade de desenvolver a autodisciplina e a responsabilidade” (VINHA, 2003, p. 234). Desse modo, o ambiente, que poderia propiciar a formação de crianças autônomas e solidárias, não contribui para isso, ao contrário, favorece a formação de crianças heterônomas e subservientes às I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 183 regras impostas pela sociedade. A postura das professoras que deveria ser a de proporcionar aos alunos o diálogo sobre os conflitos, para que as próprias crianças refletissem sobre seu comportamento e sobre a importância de seguir as regras de convivência para que um ambiente de cooperação se efetive. Contudo, não foi isso que observei, já que as professoras pesquisadas não proporcionam espaços para a resolução dos conflitos em sala de aula. Esses conflitos são resolvidos, geralmente, por meio de castigos, humilhações e até mesmo de agressões físicas, as quais ocorreram na escola particular. A justiça que prepondera nos contextos analisados é a retributiva, especificamente, a sanção expiatória, o que não contribui para a formação do respeito mútuo e, consequentemente, da autonomia nas crianças. Porém, quando a professora deixa de intervir no conflito entre os pequenos, ela permite que um "[...] clima de insegurança, raiva e ansiedade" se perpetue. Ao invés de promover "[...] sentimento de amizade, simpatia e auxílio mútuo entre as crianças, visto que a motivação para cooperar em resolução de conflito depende do fato de as crianças importarem-se com o relacionamento que está ameaçado" (VINHA, 2003, p.238). Tendo em vista que a escola é um dos importantes espaços de socialização, é necessário que esse ambiente proporcione às crianças, desde a mais tenra idade, a prática da cooperação, do respeito mútuo e da autonomia, já que é a partir dessa fase da vida que a criança aprende, de forma autônoma, a valorizar os seus direitos e deveres perante a sociedade, compreendendo que, mesmo existindo as diferenças entre valores e opiniões, é necessário haver o respeito. Referências AQUINO, Júlio Groppa. (Org.). Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas. 5. ed. São Paulo: Summus, 1998. BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Infância, educação e direitos humanos. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2006. BRASIL. 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MONTEIRO, Tamires Alves Universidade Estadual Paulista –UNESP/Marília/ FAPESP SARAVALI, Eliane Giachetto Universidade estadual Pailista – UNESP/Marília [email protected] Resumo O presente trabalho consiste num estudo evolutivo transversal que teve como objetivo investigar as representações sobre a violência urbana elaboradas por crianças e adolescentes entre 6 a 15 anos. Participaram dessa pesquisa 40 sujeitos, sendo 10 de seis anos, 10 de nove anos, 10 de doze anos e 10 de quinze anos matriculados em duas escolas públicas, uma de cidade do interior de São Paulo e outra de uma cidade da grande São Paulo, escolhidas aleatoriamente. Os resultados, até o momento, indicam que as crianças e adolescentes criam representações sobre questões sociais, em especial, a violência. Essas representações tendem a mudar e a evoluir conforme o avanço da idade. Palavra-Chave: Teoria piagetiana. Conhecimento social. Violência. Abstract This present work consists on a transversal evolutive study that had as aim explore the representations above the urban violence developed by children and adolescents among 6 to 15 years. Participated of this research 40 fellows, being 10 of six years, 10 of nine years, 10 of twelve years and 10 of fifteen years matriculated into two publics schools, one from a city of the interior of São Paulo and another from a city of the big São Paulo, chosen from interchangeably. The outcome, until this moment, indicates that the children and the adolescents create representations above social questions, in special, the violence. And that those representations tend to change and the evolutes as according to the age advance. Keywords: Piagetian theory. Social knowledge. Violence. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 187 Introdução A violência está por toda parte, em todos os setores da sociedade. Ela não tem nem sujeitos reconhecíveis, nem causas facilmente notáveis e simples de serem apontadas, perpassa as diferentes relações sociais e aparece de forma explícita nos meios de comunicação de massa, principalmente na mídia televisiva. Dentro dessa esfera notamos que o tema da violência tornou-se um dos assuntos mais preocupantes e discutidos nos últimos tempos, seja pela mídia, pelos pesquisadores ou mesmo no cotidiano de nossas casas. No entanto, apesar dessa explosão de informações que recebemos ou relatamos sobre os atos sofridos e/ou assistidos, vemos que as crianças e adolescentes não tem uma participação ativa nesse cenário, pois não temos a prática social de considerarmos suas opiniões, de ouvirmos o que esses têm a dizer. A esse respeito, Costa questiona: O que as crianças falam sobre violência? O que pensam sobre o assunto? Quais são seus sentimentos e opiniões sobre os atos violentos sofridos e/ou assistidos? [...] As crianças não são ouvidas, não temos a prática social e cultural que considere suas opiniões, o que acontece em suas vidas e o que pensam do que lhes rodeia, da mesma forma no mundo acadêmico, poucas são as pesquisas realizadas considerando-as sujeitos capazes de serem ouvidos. (COSTA, 2000, p. 1). Essas questões também se colocam no ambiente escolar. Ouvimos nossos alunos? Sabemos o que pensam sobre o mundo? Consideramos suas concepções quando vamos abordar um assunto? Diante dessa situação, observamos a necessidade de se pesquisar o que as crianças e adolescentes pensam sobre a violência. Abordando esta temática, o presente trabalho que aqui apresentaremos tem como finalidade mostrar alguns dados desse estudo. Apresentaremos apenas uma parte dessa pesquisa, que tem como objetivo analisar como as crianças e adolescentes vêem a violência, bem como as causas e soluções que propõem para esse problema. Referencial teórico A presente pesquisa fundamenta-se na teoria construtivista e interacionista de Jean Piaget (1896 – 1980) a respeito da aquisição do conhecimento, partindo do pressuposto que o sujeito constrói o conhecimento e sua inteligência a partir de relações que estabelece com o meio que o cerca. Jean Piaget desde muito cedo interessou-se pelas ciências e através de sua grande curiosidade em tentar entender as questões epistemológicas envolveu-se em intermináveis estudos nas mais diversas áreas do conhecimento. Seus estudos sempre nortearam-se em cima das seguintes questões: como se origina o conhecimento? Como um sujeito passa de um patamar de conhecimento elementar para um patamar mais I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 188 avançado? Ao explicar a gênese do conhecimento negou explicações empiristas e inatistas. Tendo isso em vista, Piaget traz uma nova contribuição para explicar a gênese do conhecimento. Para isto não adota nem o empirismo e nem o inatismo, mas faz uma síntese de ambas teorias que ele apresenta como interacionista. Nesse sentido, o conhecimento não estaria nem no sujeito e nem no objeto, mas na interação desses, ou seja, o conhecimento se daria através da ação do sujeito sobre o objeto de conhecimento, esta ação entendida não só como física, mas também como uma ação mental. Segundo Piaget (1979) “a inteligência não começa, pois, nem pelo conhecimento do eu nem pelo das coisas como tais, mas pelo conhecimento de sua interação, e é ao orientar-se simultaneamente para os dois pólos dessa interação que ela organiza o mundo, organizando a si mesma”. (p. 361). Sendo assim, a aquisição do conhecimento não ocorre de forma passiva e mecânica, pelo contrário, há uma participação ativa do sujeito na construção do conhecimento e sua inteligência, e na medida que ele interage como o meio físico e/ou social tanto pode modificar-se, como modificar o meio que o cerca. Os estudos de Piaget, como também de seus seguidores, demonstraram que nem todos os conhecimentos são da mesma natureza. Sendo assim, de acordo com o referencial teórico piagetiano há três tipos de conhecimento: o conhecimento físico, adquirido por meio da ação direta sobre os objetos, isto é, pelo processo de descoberta; o conhecimento lógico-matemático, adquirido a partir da abstração reflexiva que se origina na coordenação das ações que o sujeito exerce sobre os objetos e o conhecimento social, cuja fonte são as pessoas, as interações e as transmissões sociais e culturais. O campo de estudo sobre a construção do conhecimento social não foi tão desenvolvido por Piaget quanto as suas pesquisas sobre o conhecimento físico e o conhecimento lógico-matemático. Todavia, pesquisadores e seguidores de sua teoria deram continuidade e amplitude aos estudos sobre o conhecimento social. Dentre eles podemos destacar os trabalhos de Delval (2008, 2007, 2006, 1993, 1989, 1988), Enesco (1997,1996, 1995), Denegri (2005, 2003, 1998) dentre outros que tornaram-se referências mundiais paras as pesquisas sobre o conhecimento social. Em relação ao conhecimento social, esse tem como fonte as pessoas, as interações e transmissões sociais e culturais. Assim como os dois últimos conhecimentos citados, o conhecimento social também é construído a partir da ação do sujeito sobre o objeto de conhecimento, no entanto, este objeto seria o mundo que cerca a criança, com suas normas, valores etc. Em relação ao conhecimento social, Denegri afirma: É evidente que este tipo de conhecimento não é somente social no que se refere ao seu I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 189 objeto, mas também é social no que se refere à sua gênese e desenvolvimento. Todo conhecimento social origina-se e é sustentado na inserção em um meio social, desenvolve-se em contato com um “outro” e incorpora em seus conteúdos o discurso social do grupo de referência. Isso não significa negar o trabalho de construção pessoal que cada indivíduo realiza a partir de seus próprios instrumentos intelectuais e afetivos, mas também, vale destacar, a constante interação entre os processos pessoais e os processos sociais. (DENEGRI, 1998, p. 44). Nesse sentido, Delval afirma que todo conhecimento é social em sua origem, pois a construção do “conhecimento só é possível vivendo em sociedade e compartilhando o conhecimento com os outros” (DELVAL, 2007, p. 17). Pesquisadores como Delval e seus colaboradores trouxeram grandes avanços nos estudos a respeito do conhecimento social, mostrando que o sujeito não constrói suas representações de mundo de forma passiva através das transmissões sociais e pressões do meio, mas que é necessário um trabalho individual e ativo de reconstrução dessas informações que ele recebe do meio, além disso, a criança constrói suas crenças muitas antes de receber informações que os adultos lhe dão. Em relação a isso, Delval afirma: Pero el hecho de que el conocimiento sea social, de que otros lo posean e intenten transmitírnoslo, de que sea compartido, no quiere decir que se adquiera por copia o transmisión verbal de lo que los otros saben. El sujeto que adquiere un conocimiento no se limita a adquirir lo que otro sabe, sino que lo tiene que reconstruir. De otro modo no se podría explicar que las concepciones de la sociedad de sujetos de distintas edades difieran mucho entre ellas y difieran de las de los adultos, y en cambio se parezcan entre sujetos de parecida edad que viven en diferentes países o culturas. (DELVAL, 2007, p. 17) Sendo assim, esses pesquisadores afirmam que as crianças não assimilam passivamente as informações provenientes do meio que as cerca, mas realizam um trabalho árduo e gradual na construção de seu conhecimento e do seu conhecimento social. A esse respeito, Delval afirma que: Durante su período de desarrollo el niño va formando una representación de los distintos aspectos de la sociedad en la que vive y, aunque esa representación esta socialmente determinada, no es el producto de la influencia de los adultos sino el resultado de una actividad constructiva a partir de elementos fragmentarios que recibe y selecciona de tal manera que el niño realiza una tarea personal que no se parece en nada a una asimilación pasiva. (DELVAL, 1989, p. 245). Assis (2003) explica que o conhecimento social consiste num conjunto de ideias que permite aos sujeitos o conhecimento de si mesmo, das outras pessoas e do mundo que os cerca. De acordo com Enesco et al (1995) os temas estudados dentro do conhecimento social são: 1 – O conhecimento do eu e dos outros (conhecimento psicológico ou pessoal)- Refere-se ao conhecimento que se tem das outras pessoas e de nós mesmos (sujeitos com sentimentos, emoções, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 190 intenções, etc). 2 – As relações interpessoais - Refere-se as formas de relação que ocorrem entre as pessoas. 3 – Os papéis sociais - Trata-se daquilo que se espera socialmente de um indivíduo em determinadas situações. 4 – As normas que regulam a conduta das pessoas dentro de um grupo social - Estão diretamente relacionadas com os papéis e podem regular condutas referentes ao respeito pelo outro ou aspectos concretos do funcionamento de um grupo, como por exemplo, a pontualidade. Pode-se, portanto, distinguir tais normas entre as de natureza moral e as normas convencionais. 5 – O funcionamento e a organização da sociedade (econômico, social, etc.) - Engloba os quatros anteriores, uma vez que compreender como funciona e como está organizada nossa sociedade implica conhecer como estão relacionados os aspectos pessoais, morais, os papéis, as normas em nossa vida etc. Objetivos O objetivo geral desse trabalho é investigar quais são as ideias a respeito da violência encontradas em crianças e adolescentes entre 06 e 15 anos. Objetivos Específicos: Identificar como ocorre a construção do conhecimento social a respeito da violência em diferentes momentos do desenvolvimento. Verificar se as ideias sobre a violência se modificam conforme a idade dos sujeitos. Analisar as características específicas das ideias dos sujeitos sobre a violência ao longo do desenvolvimento. Contribuir para a compreensão dos processos percorridos pelas crianças e adolescentes para a construção do conhecimento social. Metodologia Para a coleta de dados da presente pesquisa, foram utilizadas entrevistas baseadas no método clínico-crítico piagetiano que tem por característica os desdobramentos de uma questão em outras não programadas. As entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas e tiveram como I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 191 roteiro questões ligadas à violência. Também foram utilizadas uma proposta de desenho e a apresentação de um curta-metragem em formato de desenho animado envolvendo o tema da violência. Participaram dessa pesquisa50 40 sujeitos entre 06 e 15 anos matriculadas em duas escolas públicas, sendo uma de cidade do interior de São Paulo e outra de uma cidade da grande São Paulo, escolhidas aleatoriamente. A primeira parte do trabalho, após a seleção dos sujeitos, consistiu na aplicação de entrevistas semiestruturadas aos participantes mediante questões que tiveram como temática a violência. O objetivo foi de analisar as ideias que os participantes têm sobre o assunto. Em um segundo momento, foi pedido aos participantes que elaborassem um desenho numa folha dividida ao meio: numa metade os sujeitos deveriam desenhar uma pessoa que sofre violência e na outra metade uma pessoa que não a sofre. Este instrumento teve como objetivo analisar como as crianças e os adolescentes representam, por meio de expressões gráficas, situações de violência e nãoviolência. A terceira parte do trabalho consistiu na apresentação do curta “Jones e Lisa” da coletânea “Direitos do Coração”. Este curta apresenta a história de duas crianças que vivem em um morro carioca e que passam por diversos tipos de violência, desde a pobreza até o trabalho infantil. O objetivo desse instrumento foi analisar como os sujeitos interpretam esse filme e se conseguiam percebem os vários tipos de violência que nele se apresenta. Até o momento os dados foram coletados e iniciamos a análise dos resultados. Tal análise pretende avaliar e identificar as interpretações das respostas dadas pelas crianças e adolescentes, buscando compreender os níveis de compreensão da realidade social dos sujeitos participantes. Desenvolvimento A seguir apresentaremos alguns dos dados obtidos nesse estudo, referentes somente ao primeiro instrumento da pesquisa: a entrevista. Entrevista – HUG (6;8) Em que cidade você mora? Marília. E o que você acha de Marília? Que ela é muito boa. E por que você acha isso? Porque ela é boa para morar. Por que é bom para morar? Porque essa cidade é muito calma. E tem alguma coisa aqui que você não gosta? Faz sinal de negativo com a cabeça. E o que 50 Projeto de iniciação científica aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FFC/UNESP – Marília/SP processo nº. 0163/2009. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 192 você acha de uma cidade grande? Não sei. Você conhece São Paulo? Faz sinal de positivo com a cabeça. Você já foi lá? Não, mas minha mãe já me falou de lá. E o que você acha de lá? Que é uma cidade também boa. Por que você acha isso? Também lá é muito calmo. Por que você acha que lá é calmo? Não sei. E você já ouviu falar de violência? Faz sinal de positivo com a cabeça. Onde você ouviu falar? Na televisão. E o que você ouviu na TV? Que o crime não pode mais ser feito. Por que o crime não pode ser mais feito? Porque é muita violência. E o que é violência? É brigar com a polícia. E o que mais? Eu não sei mais. Quando eu falo para você a palavra violência, qual é a primeira coisa que você pensa? Para parar de fazer crime. Por que você pensa isso? Porque aí a cidade nunca mais vai ser calma. Por quê? Porque vai ter muita violência. E você já viu alguma violência? Já, na casa da minha vó. O que você viu lá? Um ladrão tentando roubar o carro do meu vó. E o que você acha da violência? Que não pode mais ser feita. Por que você acha isso? Não sei. E por que será que a violência existe? Também não sei. E será que tem um jeito de acabar com a violência? Acho que dá. E como? Tendo mais polícia, um pouco de ladrão, porque tem muito ladrão e pouca polícia. E como a gente faz para acabar com a violência? Por mais polícia. Entrevista – DAN (9;8) DAN, em que cidade você mora? Marília. E o que você acha de Marília? Legal. Por que? Porque tem bastante amigo e é perto das coisas que a gente quer. Que coisas? Perto das lojas. E tem alguma coisa aqui que você não gosta. Faz sinal negativo com a cabeça. E o que você acha de uma cidade grande? É cidade grande tem as coisas que a gente quer, e a cidade pequena quase não tem, ai tem que ir para outras cidades. Assim como São Paulo, você conhece São Paulo? Sim, eu morei lá. E o que você acha? Legal também, mas não podia sair para rua. Por que? Porque eu morava em um bairro que tinha bastante ladrão, só que não na favela. E o que os ladrões faziam? Roubava, fumava maconha, essas coisas, nem podia sair para rua, ainda bem que meus amigos era tudo vizinho. E você já ouviu falar de violência? Já, estou fazendo até o PROERD51. E onde você ouviu falar de violência com exceção do PROERD? Quase nada. Quase não ouvi. E o que você ouviu falar? É que não pode ir com essas coisas de violência, senão a gente vai acabar caindo também. Como assim? Não sei muito bem explicar. O que você ouviu no PROERD? Da violência... A gente estava estudando mais o cigarro. E o cigarro é uma violência? É pode fazer como uma violência, mais ou menos, porque pode ficar doidão. E se ficar doidão o que acontece? Ah! Que você pode acabar indo preso ou morrer. E o que é violência? É ficar batendo no outro, batendo até na prisão. E quando eu falo para você a palavra violência, qual é a primeira coisa que vem na sua cabeça? Eu penso em morte, morte de bater, matar com arma. Isso. E o que você acha da violência? Muito ruim. Por que? Ruim por causa 51 O Programa Educacional de Resistências as Drogas (PROERD) é um projeto de caráter preventivo realizado pela polícia militar com alunos de 5ª e 7ª série de escolas públicas. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 193 que tem... Ainda bem que não tem muitas pessoas violentas. Por que? Por causa que... A gente tem que ensinar criança e adulto para não ser violento. Ah! Não sei explicar. Você falou que acha ruim, por que? Por causa que faz mal a ele e para os outros. Por que faz mal para ele, em que sentido você fala? Para ele porque se ele matar alguém vai prejudicar ele e a outra pessoa. Porque tira a vida de um e ele não ganha nada com isso. Você já viu alguma violência? Só na televisão. O que você viu? Vi muitas pessoas correndo de ladrões, explosões que os bandidos fazem. E por que será que a violência existe? Vixi eu não sei não. Será que tem um jeito de acabar com a violência? É muito difícil porque tem muitas gente, metade e metade. Como assim? É metade, porque tem bastante gente violenta, só que a maioria não gosta de violência, eu não sei como explicar. O que você imagina que pode ser feito para acabar com a violência? Não sei muito bem não. Ah! Incentivar eles aí não fazer mais violência, não prejudicar. Entrevista – BEA (11;9) Em que cidade você mora? Poá. E o que você acha daqui? Uma cidade boa. Por que você acha isso? Ali onde eu moro é bom, mas aqui para cima tem mais violência. Por quê? Por causa dos ‘nóias’. O que é isso? Ah! Tem gente que trabalha e usa droga, maconha, esses negócios. Mas tem gente que não trabalha e usa essas coisas também. Mas quem é o nóia? Quem fuma, mas não cigarro. Mas cigarro também é uma droga. Fumar que eu falo é maconha, esses negócios. O ‘nóia’ é quem fuma essas coisas. E tem alguma coisa aqui que você não gosta? As pessoas violentas. E o que são essas pessoas bastante violentas? As que zoam. Aqui eu sou bastante zoada. Por quê? Por causa das minhas pintinhas. Eles falam que eu sou ferrugem. E o que você acha de uma cidade maior, como o centro de São Paulo? Eu não gosto. Prefiro aqui. Por quê? Porque aqui é meu cantinho, estou aqui desde quando eu era criança. E você já ouviu falar de violência? Já, aqui na escola. O que você ouviu falar? Que nem hoje um menino estava me zoando e eu dei um soco nele. E isso é violência? É eu agredi ele. Você falou para mim que têm dois tipos de violência, quais são? A violência normal, a de matar e roubar. E a violência que a gente faz por besteira, ‘tipo’ roubar porque quer uma roupa. E o que é violência? Violência é quando alguém agride uma pessoa sem ela ter feito nada. Como é agredir? Bater, espancar, socar. E você já viu alguma violência? Já. E o que foi que você viu? Eu não quero falar não. Por que você não quer falar? Não quero falar sobre isso. Mas você pode falar onde foi que você viu? Posso, na rua. E por que você não quer falar? Porque foi com uma pessoa que eu gosto muito. E quando eu falo a palavra violência, qual é a primeira coisa que você pensa? Que tem que parar com isso. E o que você acha dela? Eu queria criar alguma coisa para parar com a violência, mas eu sei que também faço parte dela. Como assim? Que nem hoje eu bati no menino, isso é violência. Mas o que você acha dela? Que é uma besteira. Por quê? Sei lá. E por que será que a violência existe? Não sei. E será que tem um jeito de acabar com ela? A gente tem que comunicar as pessoas, falar para elas pararem. E como a gente faz isso? A gente pode falar para as I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 194 pessoas que vai ter uma festa e vai um cantor famoso. Aí todo mundo vai, mas o cantor não. Aí a gente fala que tem que parar com a violência. Só fazer isso e a violência acaba? Não, depende das pessoas, porque tem pessoas que não respeitam. E o que tem isso? Se elas não respeitam a violência não acaba, todo mundo tem que respeitar. Entrevista – ACM (15;1) Em que cidade você mora? Nova Poá, Poá. E que você acha daqui? Eu acho uma cidade bem tranqüila. Eu gosto de morar aqui. Quando eu vou para outros lugares eu acho muita correria, o povo tem muita pressa e não presta atenção no que fazem. Eu gosto de morar aqui. Que outros lugares seriam esses? Ah quando você vai para São Paulo, para São Miguel, na casa do meu tio, na Mooca. É muita correria, os carros não param. E tem alguma coisa aqui que você não gosta? Não, eu acho assim é legal a cidade mesmo, nunca teve nada aqui que eu não goste. Mesmo porque eu nunca precisei de muita coisa. E o que você acha de uma cidade maior, assim como o centro de São Paulo? Ah é que eu já acostumei com aqui. Então se eu fosse para lá eu ia demorar para me acostumar, mas é legal você tem bastantes referências. Que nem quando a gente quer comprar alguma coisa em grande quantidade, a gente tem que ir na vinte e cinco. No caso se a gente morasse lá já ia ficar bem mais perto e bem mais prático, mas é tudo questão de costume, porque se eu fosse para lá eu ia achar muito agitado, mas se a pessoa de lá vir para cá ela irá achar muito calmo. E por que você acha lá muito agitado? Ah porque lá é muita poluição sonora, muita buzina, carros andando, uma dor de cabeça. Você já ouviu falar de violência? Já. Onde? Ah a gente vê direito no jornal, na internet... E você lembra o que viu recentemente? Ontem eu vi um caso de pedofilia, um professor que foi baleado na escola, mas a maioria é assassinato. E o que é violência? Violência é tudo que... Aí essa pergunta é difícil. É assim eu não encaro violência como aquele negócio assim eu vou chegar em você e vou bater, é tudo que diz respeito a uma pessoa. Me explica melhor isso? Assim por exemplo, se eu fizer uma coisa para você e você não gostar eu não preciso te bater para ser considerado uma violência. Só o fato de eu fazer e você não gostar já é um desrespeito que está sendo encaminhado para a violência. Porque se eu for falar uma coisa para você e você não gostar, naturalmente você vai falar uma coisa para mim que eu também não vou gostar. E aí já começa desde o começo a violência, não necessariamente que esse debate seja uma violência, mas é o início. Existe mais um tipo de violência ou tem só uma? Eu acho que existem vários tipos. Você pode me citar algumas? Eu acho que assim violência de você conversar e xingar seria uma. Violência de você bater seria outra. E violência totalmente diferente seria outra de você chegar e matar outra pessoa e cometer um crime. E você já viu alguma violência? Ah nunca vi não. Eu só essas brigas que tem na porta da escola. Violência mesmo eu nunca vi não. Mas essas brigas são ou não violência? Não é violência, são só uns “puxãozinhos” de cabelo e depois separa, nada demais. E quando eu falo para I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 195 você a palavra violência, qual é a primeira coisa que você pensa? Briga. E por que você pensa nisso? Porque a gente costuma considerar muito a agressão como violência, eu acho que é por isso. E o que você acha da violência? Eu acho que em alguns casos é desnecessária, porque dá para se conversar e se resolver. E quando ela seria necessária? Em nenhuma situação seria necessária, mas tem alguns casos que os fins justificam os meios, mas na verdade não justificam, porque nada justifica você matar uma pessoa, só que se torna compreensiva, você fala não no lugar dele eu faria a mesma coisa, mas não justifica. E em quais situações seriam compreensivas? Na situação de uma pessoa matar uma filha sua ou filho e você ter ódio daquela pessoa e você querer se vingar. Eu acho que aí sim justificaria a raiva dela, mas não a forma que ela matou a outra pessoa que matou a filha dela, porque na verdade ela está gerando uma outra violência. E por que será que a violência existe? Por que a gente pensa diferente, a gente tem sentimentos diferentes, coisas diferentes. E também vai muito da pessoa, porque às vezes eu falo alguma coisa e você não entende... Eu acho que são pessoas despreparadas para lhe dar umas com as outras. E será que um jeito de acabar com ela? Eu acho que não, porque mais que você acabe sempre vai ter uma pessoa, pois nem todo mundo pensa igual. Sempre vai ter uma pessoa que vai ser do contra. Por isso que eu acho que nunca vai acabar. Conclusão O objetivo central do nosso estudo era de analisar o que as crianças e adolescentes pensavam sobre a violência, para isto apresentamos alguns dados dessa pesquisa que nos dá condições de fazermos alguns apontamentos iniciais. De acordo com os estudos referentes à construção do conhecimento social a criança não é um ser passivo que apenas absorve as coisas ao seu redor, pelo contrário, elas são os sujeitos construtores de seu conhecimento. Nesse sentido, notamos que desde o nascimento até sua vida adulta a criança está em constante contato e interação com o mundo que a cerca. Com isto recebe um amontoado de informações que ela recebe e seleciona de acordo com seu nível cognitivo criando assim suas próprias representações de mundo. Em relação a tal ideia, Denegri afirma: [...] a criança constrói uma representação da organização social a partir dos elementos que são proporcionados pelos adultos, os meios de comunicação de massa, as conversas, as informações que recebe na escola e nas próprias observações. No entanto, ainda que esteja imersa no mundo social desde que nasce, sua experiência é peculiar e distinta da do adulto. Em primeiro lugar, trata-se de uma experiência muito mais reduzida que à do adulto e, além disso, fragmentada. Há muitas coisas e lugares aos quais não têm acesso, não participa da vida política e – ainda que esteja submetida a múltiplas restrições por parte dos adultos – ignora os deveres e direitos e como é exercida a coação e a participação social. Por outro lado, a insuficiência de seus instrumentos intelectuais ainda em desenvolvimento, impede-na de organizar as informações que recebe e articulá-las em um sistema coerente. Assim, chega a conformar conceitualizações próprias ou teorias implícitas que são divergentes das adultas e que curiosamente, mostram grande I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 196 semelhança entre as de crianças de diferentes países e meios socais. (DENEGRI, 1998, p. 45). Tendo esta ideia em vista, podemos notar que tanto as crianças como os adolescentes criam representações sobre o mundo a sua volta, em especial sobre a violência. Além disso, com os dados apresentados podemos também perceber que esta noção com o decorrer do avanço das idades tende a mudar e evoluir, ou seja, como pode ser visto nos exemplos citados, as crianças menores vêem a violência sob aspectos mais perceptíveis e concretos. Para elas violência é brigar, bater, roubar, etc. Nesse sentido, a solução para violência se daria com o aumento do policiamento e pela vontade dos interessados em não se ter violência. Com o avanço da idade essas representações vão se tornando mais amplas e abstratas, a violência já é vista como algo não só físico, mas também psicológico. Suas causas são cada vez mais difíceis de serem apontadas, em geral são por causa do homem que não respeita seu próximo. Diante disso a solução estaria no respeito, ou seja, cada um respeitando seu próximo, no entanto, isto não garantiria o fim dela, somente sua diminuição, pois a extinção da violência é vista pelos adolescentes como algo difícil de acontecer. Sendo assim, acreditamos que conhecer o que as crianças e adolescentes pensam sobre a violência é bastante relevante pois suas ideias, a forma como interpretam situações envolvendo essa temática nos ajuda a conhecer como estão interpretando o mundo a sua volta. Ao conhecermos suas ideias sobre esse assunto e como elas evoluem estaremos em melhores condições de auxiliá-los na compreensão dessas questões e, inclusive, de abordar o tema em sala de aula, em atividades específicas, projetos etc. A esse respeito Saravali (1999) afirma que ao ouvirmos o que pensam as crianças, podemos obter informações preciosas sobre seus sentimentos, percepções, concepções que muito podem auxiliar no processo de interação entre educador e aluno. Referências ASSIS, O. Z. Conhecimento físico, conhecimento lógico-matemático e conhecimento social. In: ASSIS, O. Z. ; ASSIS, M. C. (org.). PROEPRE: Fundamentos teóricos da educação infantil II. 4.ed. Campinas: Graf. FE, 2003. p.78-104. COSTA, M. R. A representação da violência em crianças escolarizadas de periferia urbana. IN: ARRIETA, G. A.; GROLLI, D.; POLENZ, T. (org.). A violência na escola: a violência na contemporaneidade e seus reflexos na escola. Canoas: Editora ULBRA, 2000. DELVAL, J. 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Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação da UNICAMP, Campinas. 1999. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 198 A Construção do Conhecimento Social na Adolescência BRITO, Luiz Carlos Cerquinho de UFAM – Universidade Federal do Amazonas [email protected] Resumo Este estudo investiga a formação e a construção do conhecimento de adolescentes a partir de seus processos de socialização e desenvolvimento intelectual e psicológico. Busca mostrar que a formação e o conhecimento dos adolescentes se efetivam segundo condições históricas, sociais e epistemológicas determinadas, as quais engendram formas renovadas de ações e interações dos sujeitos entre si, com o conhecimento, com a sociedade. A pesquisa toma como horizonte teórico os pressupostos teóricos da Epistemologia e Psicologia Genética em estreita articulação com a compreensão das Ciências Sociais acerca do tema da adolescência e da juventude, focando os conceitos de conhecimento, cotidiano, sujeito epistemológico e sociológico, relação indivíduo sociedade, relações escola, sujeito, conhecimento e sociedade. Palavras-Chave: Socialização. Desenvolvimento. Conhecimento. Formação. Abstract This study investigates children and adolescents' formation and construction of knowledge starting from their psychological and intelectual development as well as their socialization processes. It attempts to demonstrate that adolescents formation and knowledge are effected according to specific historical social and epistemological conditions which engender renewed forms of the subjects' actions and interactions with knowledge and society. Having socialization and developlment as key categories, the theoretical horizons of Epistemological Genetics, Psichology and Social Sciencies are articulated starting from the concepts of knowledge, sociological and epistemological knowledge, the relation between individual and society and the relations between subject, school, knowledge and society. Keywords: Socialization. Development. Social knowledge. Formation. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 199 Introdução Nas últimas décadas verificam-se mudanças significativas nas interações, nas manifestações e no conhecimento dos adolescentes e jovens, pondo em evidência novas “redes de socialização”, paralelas, articuladas ou em oposição às regras e aos padrões sociais do universo adulto. Tanto para a família, como para os profissionais da educação escolar, psicólogos e sociólogos, esta realidade impõe desafios, especialmente de saber como ocorre a socialização e a construção do conhecimento dos sujeitos adolescentes. Compreender este processo exige a superação das “tradicionais” dualidades entre a socialização e o desenvolvimento humano, os quais têm sido compreendidos de modo dicotômico, separando as dimensões epistemológicas, psicológicas e sociais na formação dos sujeitos. Neste artigo, tratamos a formação dos adolescentes como processo imbricado a socialização que se efetiva na vida social e aos processos de desenvolvimento cognitivo. Em conjunto tais dimensões produzem estilos cognitivos, perceptivos e manifestações próprias desses sujeitos na vida social. Nossa proposta se dirigiu para compreender e explicitar os mecanismos de construção do conhecimento social, tomando como referência a dialética operada nos mecanismos de desenvolvimento do sujeito em face de suas interações sociais e com a cultura, das suas noções sociais, entendendo que a partir dessa compreensão poderemos refletir sobre as possibilidades de formação destes sujeitos através da educação. Para tanto foram estruturados dois itens, o primeiro tratando da visão abrangente da formação do sujeito e, o segundo, tratando dos mecanismos sociais, epistemológicos e psicológicos relativos ao desenvolvimento e a socialização dos adolescentes. No sentido de tratar a imbricação entre o desenvolvimento e a socialização do adolescente, trata-se de explicitar os sentidos específicos do conflito em relação à construção do conhecimento social. Referencial teórico Buscamos construir uma perspectiva de interpretação do processo de formação do adolescente a partir de seus mecanismos cognitivos e de suas interações na vida social, com seus pares etários, com a família, o contexto social imediato do bairro, com os conteúdos da cultura midiática. O estabelecimento das dimensões cognitivas e sociais de formação do sujeito não é nada simples, uma vez que exige tratamento cuidadoso de estruturas diferenciadas, as quais se colocam em nível endógeno e exógeno do sujeito; de desenvolvimento da inteligência e modos de pensar, das múltiplas intersubjetivas e com os objetos sociais, com a cultura, com os valores e o conhecimento. Todo o desenvolvimento e a socialização, vale dizer, ocorrem num “lugar” e num “momento” sociocultural e histórico em que os sujeitos vivem sua cotidianidade. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 200 Ao invés de buscar justificar o cruzamento dos campos da epistemologia e psicologia genética com o campo das ciências sociais, tornou-se premente trabalhar as formulações teóricas pari passu aos processos mesmos, das conexões entre o sujeito adolescente e seu meio físico e social, em nível da vida cotidiana e em nível dos processos de integração da adolescência ao plano da sociedade. Sob a perspectiva das ciências sociais, fundamentamos o estudo nas teorias psicossociais de Norbert Elias e Alberto Mellucci, caminhando no sentido de mostrar que as relações entre sujeito, sociedade e conhecimento estão assentadas sobre interações e processos sociais específicos e convergentes com o desenvolvimento psicossocial. Com a âncora piagetiana, tornou-se possível explicitar o processo constitutivo do pensamento enquanto estruturação endógena articulada com os significados do meio físico e social. Na perspectiva piagetiana, as correlações sujeito-objeto, sujeito-meio e sujeito-sujeito se efetivam segundo condições determinadas pelas estruturas intelectuais, afetivas e morais, pelas quais os indivíduos agem, interagem e se desenvolvem, na estreita relação com os significados partilhados em seu meio social. Nossa hipótese é de que existe em Piaget não existe apenas uma abertura para a compreensão do social na formação do sujeito, mas, sim, que ele oferece elementos para a conexão efetiva com as ciências humanas e sociais. Na trilha de Piaget, a reflexão sobre o sujeito adolescente surge como resultado das condições pretéritas do desenvolvimento da infância, buscando mostrar a sucessiva diferenciação do sujeito na sua capacidade de representar a realidade, de estabelecer relações tendentes à reciprocidade e à formação das estruturas formais e abstratas do pensamento reflexivo. Objetivos Compreender o processo de construção do conhecimento social a partir dos mecanismos da socialização e desenvolvimento; Articular os conceitos da epistemologia e psicologia genética com os conceitos das teorias psicosociais na interpretação do processo de formação de crianças e adolescentes. Metodologia O estudo é resultado de pesquisa de doutorado realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através de investigação teoria e empírica com crianças e adolescentes na cidade de Manaus/AM. A pesquisa teórica se constituiu pela articulação das dimensões do desenvolvimento psicológico e da formação psico-social, através da conexão dos campos da epistemologia e psicologia piagetiana com as I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 201 referencias de teorias psico-sociais de Mellucci e Elias. A investigação empírica foi realizada através de grupo focal com crianças, adolescentes, tendo realizado entrevistas e atividades orientadas de dramatização e produção textual. O estudo apresentado se constitui no cotejamento da articulação dos campos teóricos de investigação. O desenvolvimento e a socialização como bases da construção do conhecimento social Para Piaget, o desenvolvimento do indivíduo humano, desde o momento da natalidade, está ancorado num intercâmbio profundo entre as condições herdadas e as condições encontradas no meio físico e social no qual a criança e o adolescente se inserem. Conforme o cientista genebrino, é em termos de “ação” e “interação” que os indivíduos vão se distinguindo sucessivamente nos âmbitos do desenvolvimento da inteligência, da linguagem e da sociabilidade. Assim, na medida em que se desenvolvem, como ser biológico, simbólico, racional e social, os homens já estão, desde a natalidade, imersos na vida “mundana”, na partilha singularizada com outros homens, postos num mundo prenhe de significados. Ao tomar a ação e a interação como os pressupostos do desenvolvimento e formação do indivíduo, Piaget faz ver que o desenvolvimento cognitivo, a afetividade e a socialização se constituem como processos inteiramente imbricados; efetivados pela formação de estruturas que se desdobram dos mecanismos específicos do próprio sujeito, centrados num duplo movimento, da ação e da tomada de consciência das ações realizadas. Ao explicar esse processo, centrando no desenvolvimento da inteligência, Becker salienta que: Quer Piaget explique o desenvolvimento cognitivo pela assimilação (1936), pela equilibração (1967) ou pela abstração reflexionante (1977) a ação está, sempre, no cerne de sua explicação. Isso significa que, em termos de desenvolvimento cognitivo, nada acontece ao sujeito pela determinação exclusiva da hereditariedade ou pela determinação exclusiva do meio – físico ou social. Para começar, hereditariedade e meio interferem nesse processo de forma radicalmente complementar. O meio age apenas dentro do quadro de possibilidades do funcionamento herdado pelo sujeito. E a hereditariedade age apenas dentro das possibilidades dispostas pelo meio – físico ou social (BECKER, 2001, p. 115). Enquanto motor do desenvolvimento e da socialização do indivíduo humano, a ação é repleta de significações, referindo-se imediatamente ao impulso vital pelo qual o indivíduo estabelece trocas com o ambiente natural, social, histórico e linguístico. Ao agir, o sujeito estará sempre condicionado ao momento em que se encontra como ser particular e circunscrito no mundo da cultura e das relações humanas. É um “momento” sob duplo sentido, do sujeito e da realidade, que se imbricam e convergem no processo das interações. Na medida em que o I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 202 sujeito interage com as configurações da realidade, seus processos cognitivos, seus padrões de afetividade, de representação e interpretação são postos em movimento, numa dinâmica em que tanto o sujeito como a realidade saem renovados, e novos conhecimentos são postos no circulo de suas interações. Nesse sentido, ao invés de ambos serem estruturas compactas, tanto o conhecimento social como o sujeito são sínteses engendradoras de possibilidades de desenvolvimento e socialização. É em termos de uma sucessiva “adaptação criadora” que Piaget sinaliza o desenvolvimento e a socialização dos indivíduos, num processo que se efetiva pela sucessiva construção e reconstrução de esquemas endógenos que visam estabelecer o equilíbrio entre o indivíduo e o seu meio físico e social. Nesse caso, é uma adaptação que nada tem de mecânico e linear, não podendo ser entendida como adequação, nem do indivíduo à realidade e nem desta ao indivíduo. Como indica Delval: La adaptación no es un proceso pasivo, sino activo, lo cual quiere decir que el organismo, al adaptarse, se está modificando, pero, a su vez, modificando el medio. El organismo no sufre la adaptación, sino que es un actor de ella. La adaptación nunca es sólo una modificación del organismo o una sumisión de éste al medio, ya sea natural o social, sino que hay, a su vez, una modificación de ese medio en mayor o menor grado. En este aspecto se distingue el uso popular que se hace del término adaptación y el uso en la biología (DELVAL, 1997, p. 121). No quadro teórico de Piaget, esse processo de adaptação se coloca num movimento continuo do desenvolvimento cognitivo52 do indivíduo, na medida em que este busca enfrentar as tensões provocadas por necessidades endógenas ou por tensões geradas na interação com o meio físico e social. É precisamente por esse enfrentamento que a ação se define como pressuposto da construção dos mecanismos cognitivos, psicológicos e afetivos do sujeito e do conhecimento. Para resolver essas tensões causadoras de desequilíbrio, o indivíduo atua com os meios os quais estruturou em situações prévias; porém, na medida em que a situação se diferencia, ele é conduzido na busca de soluções novas, tendo que reconstruir progressivamente seus esquemas de ação, formando novos esquemas que vão dando lugar a novas adaptações, ou seja, vai buscando estabelecer o equilíbrio ao mesmo tempo em que constitui seu próprio desenvolvimento intelectual (Cf. DELVAL, 1997, p. 123). Com a entrada da criança no mundo da linguagem simbólica, com a formação do símbolo, o pensamento pré-operatório se qualifica e potencializa a passagem da ação à representação, à tomada de consciência e, sucessivamente, à operação, numa dinâmica em que o sujeito vai estruturando sua 52 Segundo a teoria piagetiana, o desenvolvimento se define como equilibração progressiva das estruturas endógenas do sujeito, como passagem de um estado de menor equilíbrio para um estagio de maior equilíbrio. Em nível cognitivo, esse desenvolvimento cognitivo pode ser caracterizado em quatro níveis ou estágios: sensório-motor, pré-operatório ou simbólico, operatório concreto e operatório formal. Todavia, estes níveis/estágios não resultam de uma teleologia ou de uma exclusiva demarcação cronológica da ação e idade do sujeito. Eles estão postos como possíveis, definidos por um atributo dominante, ordem e sequência das aquisições, podendo variar em idade; caracterizados por uma estrutura de conjunto, definidora dos comportamentos novos de cada nível e, fundamentalmente, pela integração das estruturas inferiores em estruturas superiores. (Cf. LIMA FILHO; REBOUÇAS, 1988, p. 23). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 203 inteligência, formando seu quadro afetivo e moral, adquirindo a linguagem e interagindo com as marcas desta. A socialização53 propriamente dita se inicia neste período, após formação do pensamento simbólico, quando a criança inicia um processo de trocas com os objetos, com as pessoas, pautado em representações. Essas representações surgem articuladas pela capacidade de realizar uma dupla tarefa, antes impossível no período sensório-motor: distinguir significante de significado e evocar situações objetos e situações ausentes. Piaget salienta que neste processo o pensamento propriamente dito se prolonga sob a dupla influência da linguagem e da socialização. Sob o aspecto do pensamento se evidenciam os momentos iniciais da reversibilidade54, acompanhada pela capacidade de reconstituição do passado através das narrativas, substituindo as ações pretéritas pela palavra. Neste caso, a linguagem é entendida como “veículo de conceitos e noções que pertence a todos e reforça o pensamento individual com um vasto sistema de pensamento coletivo. Neste, a criança mergulha logo que maneja a palavra” (PIAGET, 1997, p. 28). O essencial de todo este processo, engendrado pelo desenvolvimento intelectual, pela aquisição da linguagem e pela socialização, é que a criança vai organizando o mundo e diferenciando sucessivamente seus modos de ação, interação, construindo a si mesmo e, em parte, a própria realidade na qual está inserida. Como sinaliza Delval: (...) el niño va aprendiendo a constituir categorías con los objetos, a clasificarnos de acuerdo con sus semejanzas y a ordenarlos en función de sus diferencias. Al actuar de esta manera está descubriendo los principios de los que llamamos ‘lógica’ y utilizando sus principales operaciones, las referentes a las clases y las relaciones. Lo esencial del desarrollo intelectual es la organización del mundo, construyendo una imagen suya, y al mismo tiempo la construcción paralela de los procedimientos para organizarlo, que constituyen lo que entendemos por la inteligencia. El mundo va cobrando un sentido cada vez mas preciso y paralelamente aumenta las posibilidades de actuar sobre él (DELVAL, 1997, p. 311). 53 54 O conceito de socialização é bastante diversificado e complexo, e envolve diferentes abordagens, biológicas, sociológicas, culturais e antropológicas. Na sociologia, Durkheim é o primeiro a utilizar o termo, se referindo ao processo de transmissões culturais, de normas e valores de uma geração adulta para as gerações mais novas, aproximando o conceito de socialização do significado de educação. No entendimento aqui adotado, tomamos socialização com dois sentidos. Primeiro, como processo pelo qual o indivíduo interage socialmente, internaliza e constrói as noções sociais, relativas ao convívio, interações, padrões morais e modos de interpretação da realidade. Segundo, como processo de formação do indivíduo humano, como aprendizagem social efetivada no curso da infância e da adolescência, quando se cruza com a noção de sociabilidade, como forma característica das interações adultas. Para a formulação deste entendimento tomamos as ideias de Piaget (1997), Martins (2000), Zaluar (1985), e Berger e Luckmann (1985). Na epistemologia genética piagetiana, a noção de reversibilidade está relacionada à capacidade cognitiva de encontrar ou fazer referências a estados, situações e esquemas prévios, de voltar ao passado sem perder as amarras com o presente, colocando-se como mecanismo lógico recursivo, implicando a noção de temporalidade. Estruturalmente, apresenta-se sob duas formas básicas: a) inversão (negação) – anulação de uma operação: o produto da operação direta; e o seu inverso é uma operação nula idêntica; e b) reciprocidade (compensação) – é a anulação de uma diferença: o produto de duas operações recíprocas é uma equivalência e não uma operação nula (Cf. LIMA FILHO E REBOUÇAS, 1988, p. 23). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 204 Isso significa afirmar que, desde as fases iniciais da infância, a socialização estará imbricada ao desenvolvimento da inteligência, e, ainda, aos processos da formação moral e da afetividade. As transformações das ações provenientes do início da socialização não tem importância apenas para a inteligência e para o pensamento, mas repercutem também profundamente na vida afetiva (PIAGET, 1997, p. 36). É especialmente nas trocas afetivas com os outros, com os sentimentos e os significados nos quais essas trocas estão imersas, que a criança vai se inserindo no mundo da cultura e das relações humanas, modelando suas estruturas psíquicas, seus modos de interpretação e ações sociais. Com sua perspectiva sociológica interacionalista, Norbert Elias salienta que é justamente através destas relações que a criança adentra no mundo adulto. Ao nascer, cada indivíduo poder ser muito diferente, conforme sua constituição natural. Mas é apenas na sociedade que a criança pequena, com suas funções mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se transforma num ser mais complexo. Somente na relação com outros seres humanos é que a criatura impulsiva e desamparada que vem ao mundo se transforma na pessoa psicologicamente desenvolvida que tem o caráter de um indivíduo e merece o nome de ser humano adulto. Isolada dessas relações, ela evolui, na melhor das hipóteses, para a condição de um animal humano semi-selvagem. Pode crescer fisicamente, mas, em sua composição psicológica, permanece semelhante a uma criança pequena. Somente ao crescer num grupo é que o pequeno ser humano aprende a fala articulada. Somente na companhia de outras pessoas mais velhas é que, pouco a pouco, desenvolve um tipo específico de sagacidade e controle dos instintos. E a língua que aprende, o padrão de controle instintivo e a composição adulta que nele se desenvolve, tudo isso depende da estrutura do grupo em que ele cresce e, por fim, de sua posição nesse grupo e do processo formador que ela acarreta (ELIAS, 1994, p. 27). Quando se deparam com as diversas marcas produzidas pela cultura, sejam marcas escritas, imagens ou audiovisuais, os adolescentes já produziram, e estão produzindo suas próprias marcas, através das atividades nas quais estruturam seus próprios esquemas de assimilação e interpretação dos objetos simbólicos e culturais. Para alcançar a compreensão analítica entre as marcas escritas e a língua oral, é necessária essa atividade estruturante do sujeito que Piaget descreveu em outros domínios do conhecimento [especialmente nos domínios do conhecimento físico e lógicomatemático]. É essencial também receber informação específica, só que essa informação será assimilada pelo sujeito em desenvolvimento em seus esquemas conceituais. E é necessária uma prolongada interação com o objeto a ser construído, um objeto que não existe no vazio. As superfícies que a cultura construiu para serem portadores de marcas escritas têm nome e função: chamam-se jornais, livros, calendários, documentos de identificação, dicionários, anúncios, embalagens de alimentos ou remédios, placas com nomes de ruas, indicações para veículos e pedestres, propaganda comercial... A lista é muito longa (FERREIRO, 2001, p. 11). Isso significa dizer que os próprios traços da personalidade e a formação das noções sociais do adolescente não aparecem num vazio de relações; eles são, em verdade, o produto de uma socialização I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 205 passada e, de igual modo, da forma das relações sociais através das quais estes traços são mobilizados e atualizados pelo próprio sujeito, através dos quais a criança aprende a dizer “nós” e a agir com relativa diferenciação e coordenação de pontos de vista seus e dos outros; através dos quais o adolescente se manifesta e produz cultura na sociedade contemporânea. As relações sociais etárias adquirem, assim, uma importância ímpar no processo de socialização, desenvolvimento e humanização do próprio sujeito, o qual vai construindo suas marcas próprias, formando sua individualidade, a partir da história dessas relações e da interdependências que estabelece com os mais velhos. Quando se tornar adolescente e adulto, a história dessas relações estará presente nele e serão representadas por ele, como sinaliza Elias, “quer ele esteja de fato em relação com outras pessoas ou sozinho, quer trabalhe ativamente numa grande cidade ou seja um náufrago numa ilha a mil milhas da sociedade. Também Robison Crusoé traz a marca de uma sociedade específica, de uma nação e uma classe específicas” (ELIAS, 1994, p. 31). Desse modo, o próprio processo de individuação, de formação do eu, vai sendo construído através das/nas interações, abrangendo tanto os recursos da criança como os recursos externos, postos pelos meios físico, cultural e social, os quais são engendrados na teia de significações que se configuram em suas relações interindividuais. Assim, tanto a humanização da criança e do adolescente como o seu tornar-se adulto são definidos socialmente pela sua imersão permanente em um mundo simbólico e em um processo sociocultural contínuo de dar e criar sentidos, de construir suas marcas próprias, seja na configuração de sua psique, do seu quadro afetivo, dos modos de estabelecer relações, seja na formação de estilos cognitivos próprios. Neste sentido, no que diz respeito às condutas e ao conhecimento e esquemas nelas implícitos, destaca-se a profunda imbricação dos processos cognitivos e afetivos com o âmbito da cultura e das relações sociais. Como evidencia ainda Damásio, (...) muito embora a cultura e a civilização surjam do comportamento de indivíduos biológicos, esse comportamento teve origem em comunidades de indivíduos que interagiam em meios ambientes específicos. A cultura e a civilização não poderiam ter surgido a partir de indivíduos isolados e, portanto, não podem ser reduzidas a mecanismos biológicos e ainda menos a um subconjunto de especificações genéticas. A compreensão desses fenômenos requer não só a biologia e a neurobiologia, mas também as ciências sociais (1996, p.153). Na análise piagetiana, os processos de transmissão cultural, de normas, regras e valores, estão assentados justamente na imbricação entre estas distintas dimensões, fazendo ver que as noções sociais e o conhecimento disponível ao sujeito não podem ser redutíveis nem a lógica nem a sentidos exclusivamente externos ao indivíduo; assim também não podem ser reduzidas a uma única dimensão do I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 206 desenvolvimento. Para explicitar essa posição, o cientista genebrino sinaliza as insuficiências das explicações sociológicas – especialmente configuradas na sociologia clássica – quando estas visam explicar a consciência e o comportamento social às expensas dos elementos constituintes da ação e do pensamento. Para Piaget, tal como para as formulações sociológicas de Melucci e Elias, o comportamento, a consciência social (e as noções sociais) resultante da relação indivíduo e sociedade, tem como condição as “interações elementares”, ou seja, indivíduos condicionados interagindo em situações determinadas. É neste sentido que podemos argumentar que, na perspectiva psicológica e epistemológica genética piagetiana, a formação do indivíduo humano é vista como resultado de “n” dimensões, as quais consistem em desenvolvimentos específicos e articulados, não sendo possível depreender as ações e as ideias dos sujeitos apenas de mecanismos parciais, sejam eles internos ou externos ao indivíduo. Assim, “as ações dos indivíduos uns sobre os outros em que consistem as relações sociais, tendem, igualmente, no campo das trocas do pensamento, para uma forma de reciprocidade que implica a mobilidade reversível própria ao agrupamento: a cooperação só é um sistema de operações efetuadas em comum, ou de cooperação” (1973, p. 194). Neste caso, é nítida a aproximação da compreensão piagetiana da compreensão da relação indivíduo e sociedade tal qual formulada por Elias, quando este afirma que a clara compreensão da relação indivíduo e sociedade só pode se realizar pela inclusão do próprio crescimento e individuação dos indivíduos no interior da sociedade, quer dizer, quando as próprias formas de pensamento, ação e interação dos sujeitos em trânsito para a vida adulta são postas em relevo, fazendo ver o singular trabalho de assimilação e reconstrução dos conteúdos e valores sócio-culturais, evidenciando também que essa assimilação e reconstrução implicam construção própria, ou seja, que as imagens, ideias e representações que evoluem na criança nunca constituem uma simples cópia do que lhe é feito pelos outros, mas lhe são inteiramente próprias (Cf. ELIAS, 1994, p. 30). Assim também, do mesmo modo que a socialização e o desenvolvimento estão imersos no processo sociocultural da vida cotidiana do sujeito, os próprios conceitos, noções e conhecimentos que daí resulta, estão imbricados às condições históricas de seu aparecimento. Significa dizer que, assim como se modificam historicamente as concepções, as ideias e o conhecimento social, também as ideias e noções das crianças (e dos adolescentes) se modificam na estreita dependência das concepções históricas que mediatizam o trabalho de organização simbólica e intelectual do mundo. Neste caso, tanto Piaget (1973, p. 27) quanto Elias (1994, p. 28) sinalizam para o fato de que uma criança de séculos passados terá uma compreensão diferenciada em conteúdos dos modos como uma I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 207 criança do tempo presente compreende os mesmos fatos da realidade física e/ou social. Isso não significa que as ações do sujeito, em suas bases epistemológicas, tenham se alterado, ou mesmo que os conteúdos da vida social determinem estruturalmente a formação do pensamento. Significa sim, que a construção do conhecimento social pelos sujeitos (e aqui não apenas a criança e o adolescente, mas também o adulto) encontra suas malhas de significação em contextos sociais datados, fazendo com que os objetos sociais sejam convertidos em objetos propriamente históricos. O sentido do conflito em face do desenvolvimento cognitivo e das interações sociais Com base nos estudos de Piaget e nas âncoras das ciências sociais aqui adotadas, devemos dizer que o entendimento dos conflitos sociocognitivos da adolescência se distingue das ideias segundo as quais esses conflitos são motivados pelas dificuldades na recepção dos valores, normas e regras do mundo adulto, resultando, portanto, em comportamentos perigosos para os próprios sujeitos e para a sociedade em geral. Abramo (1994) salienta que, ao longo do século XX, em consequência de diversas manifestações conflituosas de adolescentes e jovens, tornou-se comum à sociologia – especialmente em sua perspectiva funcionalista - fundamentar suas análises sobre os conflitos entre adolescentes e jovens a partir de suas ações de contraposição à recepção das transmissões culturais, enfatizando três chaves de problematização, da delinquência, da rebeldia e da revolta, ao mesmo tempo em que se foi buscando caracterizar uma juventude ‘normal’. Não obstante, na medida dos interesses sociológicos, essas chaves estão mais próximas da classificação e da descrição do que da compreensão dos processos que subjazem à natureza dos conflitos que se estabelecem entre os indivíduos e sociedade nesta fase etária. Na verdade, os conflitos dos adolescentes são produzidos tanto em nível social como em nível das estruturas cognitivas, afetivas e de socialização do sujeito, não tendo, portanto, nada de natural. Na adolescência, mais do que em qualquer outra fase do desenvolvimento humano, a relação entre indivíduo e sociedade se define como um processo móvel e complexo, na estreita dependência das capacidades recém desenvolvidas do pensamento, da busca de constituição de identidade e da formação de padrões de afetividade. Imbricado ao desenvolvimento social e psicológico do indivíduo adolescente, articula-se o desenvolvimento da inteligência, configurado nas capacidades recém desenvolvidas do pensamento hipotético e dedutivo, pela tendência geral dos adolescentes para construir teorias, utilizar e refletir sobre as ideologias de seu ambiente social, conforme ensina Piaget e Inhelder. Para nossos autores, esse I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 208 processo se refere ao desenvolvimento da capacidade de formular reflexões mais elaboradas acerca de conteúdos das transmissões socioculturais, e do maior poder de coordenação de esquemas lógicos e operatórios para a compreensão da realidade. Desse modo, indicam que os fatos psicológicos e epistemológicos da adolescência permitem compreender que: a sociedade não atua por simples pressão exterior sobre os indivíduos em formação, e que estes não são, com relação ao ambiente social e nem com relação ao ambiente físico, simples tábulas rasas nas quais as coerções imprimiriam conhecimentos já inteiramente estruturados. Para que o meio social atue realmente sobre os cérebros individuais, é preciso que estes estejam em condições de assimilar as contribuições desse meio, e voltamos à necessidade de uma maturação suficiente dos instrumentos cerebrais individuais (PIAGET; INHELDER, 1976, p. 251). A partir da perspectiva construtivista, da profunda interação entre sujeito- objeto, sujeito-sujeito, sujeito-realidade, Piaget e Inhelder depreendem a imbricação entre os processos cerebrais e cognitivos do sujeito e os processos da sociedade, salientando que nem o pensamento nem os conhecimentos sociais são estruturas inatas ou a priori, como formas previamente inscritas no sujeito ou nas representações coletivas e inteiramente elaboradas fora e acima dos indivíduos, “mas formas de equilíbrio que se impõem pouco a pouco ao sistema de intercâmbios entre os indivíduos e o meio físico, e aos intercâmbios [sociais] entre os indivíduos” (Ibidem, p. 252), considerando estes dois sistemas – pensamento e representações sociais como perspectivas diferentes para distintas análises. A consequência do entendimento construtivista, e que explicita os mecanismos de interação entre os adolescentes e a sociedade, é que o processo de integração do sujeito ao mundo adulto implica uma atividade genuinamente criadora por parte do indivíduo, não sendo, neste caso, mero fato episódico, mas atingindo as interações sociais e etárias no conjunto da sociedade. De modo diferente da criança, que se sente subordinada ao adulto e com o qual não consegue estabelecer relação de reciprocidade e autonomia, “o adolescente é o indivíduo que começa a considerarse igual ao adulto e julgá-los num plano de igualdade e de total reciprocidade”. Assim, mesmo ainda estando num processo de formação socialmente delimitado, o indivíduo adolescente começa a pensar no futuro utilizando-se da reflexão sobre o presente, ou seja, das possibilidades da vida adulta atual, com vistas a sua ulterior vida adulta. Neste sentido, como enfatiza Piaget e Inhelder, o indivíduo adolescente procura introduzir-se e introduzir seus esforços atuais com vistas a sua inserção futura no mundo adulto, e se propõe também, por ele mesmo e com ideais próprios, reformar a sociedade em seus domínios parciais ou totais. Aqui se destaca o sentido do conflito no processo de integração do indivíduo à sociedade. a integração de um indivíduo na sociedade adulta não poderia, realmente, realizar-se sem conflito, e enquanto a criança procura a solução de seus conflitos nas suas compensações atuais (lúdicas ou reais), o adolescente acrescenta a essas compensações limitadas a compreensão mais geral que é uma vontade de reformas, ou até um plano para executá-las I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 209 (PIAGET; INHELDER, 1976, p. 252). É um conflito que nada tem de natural, mas está imerso nos parâmetros socioculturais e históricos (e até ontológicos) de nossa sociedade, apresentando-se nos diversos aspectos do desenvolvimento do indivíduo em sua transição para a vida adulta: afetivo, psicológico, intelectual e sociocultural. Como enfatizam os estudos psicológicos, antropológicos e históricos aqui adotados, em formações sociais mais estáveis como as sociedades primitivas, indígenas e mesmo feudais, a passagem da infância para a vida adulta se realizava sem grandes sobressaltos, uma vez que nestas sociedades, tanto os “papéis sociais” como os processos de sociabilidade da vida adulta são mais definidos e estáveis. Do mesmo modo, nestas sociedades, os próprios processos de educação dos indivíduos não são definidos pela segregação etária, uma vez que seus processos de socialização – jogos, festas, convívio, etc. - já incorporam os elementos constituintes da vida social adulta, como o trabalho e a diferenciação sexual. Não obstante, há dois motivos possíveis de explicação do “sentido do conflito” para os adolescentes modernos e contemporâneos que fogem aos horizontes da maioria das análises psicológicas e sociais, e que podem ser mais bem explicitados com o auxílio do entendimento piagetiano. O primeiro se refere às duas características fundamentais da vida social e da mentalidade moderno-contemporânea, quais sejam, os princípios da contradição e da sucessiva mudança na constituição de nosso processo societário, os quais se encontravam ausentes como princípios explícitos nas formações sociais pretéritas. O segundo se refere à contrapartida do sujeito criado e formado neste contexto, tendente ao desequilíbrio social e cognitivo quando de sua “tomada de consciência” da realidade social contraditória e em permanente mudança, na qual vive e deve se adaptar como indivíduo adulto. É a partir da interação entre os processos sociais e os processos endógenos individuais, que podemos falar de “conflito de sentidos”, fazendo ver que, a integração do indivíduo adolescente à sociedade dos adultos, implica a sua integração nestes conflitos socialmente produzidos. Na medida das condições de reflexividade, característica do pensamento adolescente, na medida da tomada de consciência de uma realidade contraditória e sem a possibilidade de ser “logicamente” compreendida, o próprio processo de integração do indivíduo a esta sociedade se complexifica. Aqui, o pensamento lógico formal não consegue dar conta de encaixar tais contradições numa totalidade, do mesmo modo que os “desejos”, as “inclinações” e as “perspectivas” individuais não conseguem vislumbrar sua inserção e enquadramento nestas contradições. Neste caso, as contradições sociais, tanto em nível da sociedade abrangente como das vivências cotidianas convergem e se imiscuem nos processos de formação social, emocional e cognitiva dos indivíduos. Nesse sentido, como sinaliza Elias (1994; p. 33-4), a pressão exercida nos indivíduos pelas estruturas sociais lhes impõe tensões, cisões e crises, efetivadas objetivamente nos processos de sua vida I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 210 cotidiana, produzindo um emaranhado de inclinações irrealizáveis e não resolvidas, as quais se acumulam no indivíduo e raramente se revelam aos olhos de outrem, ou sequer à consciência do próprio indivíduo. De modo geral, para nossos adolescentes, a realidade do mundo adulto aparece como contraditória e sem sentido, sendo uma das primeiras manifestações dessa interpretação os conflitos com os pais, que são tomados como ambíguos, contraditórios e até mentirosos. Assim, a consciência de que terá que se adaptar e viver num mundo de contradições faz com que o adolescente se sinta incompreendido, situado num mundo à parte e, conscientemente, busque construir novos significados e modos de ação que se contraponham à realidade que questiona. Neste caso, apesar de não poder desligar-se dos próprios sentidos da realidade, suas construções lhes serão próprias, até formular, ou não, chaves de inserção no mundo dos adultos. Na perspectiva de Piaget, a superação de tais conflitos supõe a conquista de uma situação de equilíbrio do sujeito epistêmico em relação aos processos de suas interações com o meio físico e social. No caso do adolescente, essa superação supõe a conquista da reversibilidade, do raciocínio combinatório e também da reciprocidade nas trocas simbólicas e intersubjetivas. Isso não significa dizer que em nível social os conflitos deixem de existir, mas, sim, que tanto a interpretação deles quanto às ações dos sujeitos em superá-los sinalizam novas formas de convívio e integração dos indivíduos ao plano da sociedade, com seus ritmos, suas ambiguidades e contradições. Deste modo, num entendimento sociológico e epistemológico, para o indivíduo em formação, principalmente adolescente, a realidade surgirá sempre como construção, tendo que realizar, por ele mesmo, uma série de ajustes mais ou menos complexos segundo as características da sociedade e do meio específico em que vive, segundo as condições de seu próprio desenvolvimento, socialização e integração ao mundo adulto (Cf. DELVAL, 1997). Conclusão Na medida em que se complexificam os processos e os modos das interações sociais, a formação da criança e do adolescente toma uma dimensão nunca vista antes na história da humanidade. Já não é mais possível apreender as estruturas da sociedade, do conhecimento e da cultura à revelia dos processos pelos quais o indivíduo humano se constitui, se insere, interage e faz face às mudanças que se processam na vida social e no cotidiano. Em verdade, como buscamos mostrar, tanto o processo de constituição do sujeito como os do conhecimento supõem descontinuidade e instabilidade, sejam relativas às múltiplas realidades de interação, sejam relativas às próprias performances cognitivas, afetivas e sociais do sujeito individual. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 211 A ação e o conhecimento das crianças e dos adolescentes são resultados dos progressos do desenvolvimento do pensamento, da afetividade e das formas de relações sociais. São também resultado das próprias mudanças que se efetivam na vida cotidiana e na sociedade como um todo, alterando os costumes, os relacionamentos intersubjetivos e a visibilidade social dos sujeitos. Nesse sentido, seguindo a orientação dos estudos piagetianos e das abordagens sociológicas, históricas e antropológicas adotadas, fizemos ver que existe “covariância e paralelismo entre a sociedade e o indivíduo”, entre o pensamento e a socialização, e que, mesmo tendo “chaves” especializadas e específicas de compreensão, os processos endógenos do “sujeito em formação” e os condicionantes da vida sociocultural concorrem para a construção do conhecimento, quer seja em plano individual, quer seja em plano das práticas sociais. A relação significativa do sujeito com o conhecimento e com o saber nada tem de mecânico e linear, não sendo nem o sujeito nem o conhecimento entidades estáveis e atemporais. O conhecimento, assim como os códigos morais e os valores, só terão significados para o sujeito quando este consegue converte-los em fatores de sua própria humanização e das trocas com o mundo e com os outros. É uma conversão, diga-se, que ultrapassa a mera interiorização de modelos e regras a priori, e se define como construção progressiva, engendrada pelos processos endógenos e exógenos que adentram na interação do sujeito com os objetos físicos, naturais, socioculturais, com os outros e consigo mesmo. Para o sujeito em formação, conhecer é adentrar num mundo de significados e, com eles, organizar esquemas de compreensão, interpretação e ação; mas é também busca de autoconhecimento de suas possibilidades e limites. Referências ABRAMO, Helena Wendel. Cenas juvenis. Punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Página Aberta, 1994. BECKER, Fernando.; MARQUES, Tania B. Iwaszko. O desenvolvimento cognitivo na adolescência. Revista Pátio, v. 2, n. 8, p. 57-59, fev/abr. 1999. BERGER, Peter L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985. BOGDAN, Rober; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação. 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 213 Desenvolvimento do Pensamento Econômico nas Crianças: Para Iniciar o Debate ARAÚJO, Regina Magna Bonifácio Centro Universitário Metodista – Porto Alegre – RS [email protected] Resumo O objetivo deste trabalho foi investigar o pensamento econômico de crianças brasileiras, entre 9 e 11 anos, antes e após o desenvolvimento de um Programa de Educação Econômica. Sua relevância está em introduzir o estudo da formação do pensamento econômico em crianças, no contexto da pesquisa educacional no Brasil, trabalhando o tema a partir de um modelo de desenvolvimento das ideias econômicas, vinculado à perspectiva cognitivista. A pesquisa foi desenvolvida em três etapas. A primeira consistiu na tradução, adaptação e preparação do instrumento de medida, Escala TAE-N, desenvolvida e validada no Chile e replicada através deste trabalho no Brasil, em uma amostra de 132 alunos e alunas da 3ª e 4ª séries do Ensino Fundamental, na cidade de São Bernardo do Campo, São Paulo. Ainda nesta fase, foi realizada, numa amostra de 30 crianças, uma entrevista clínica sobre o tema, com o propósito de caracterizar os sujeitos envolvidos. Os resultados mostraram, tendo como parâmetro os Níveis de Desenvolvimento do Pensamento Econômico proposto por Denegri, que as crianças apresentavam um pensamento econômico primitivo, orientado para uma compreensão específica dos fenômenos econômicos e com uma capacidade de estabelecer relações e explicar a realidade econômica a partir de suas vivências e das informações que recebem do meio familiar, escolar e da mídia. Na segunda etapa, foi desenvolvido um Programa de Educação Econômica, intitulado “Educando para o Consumo Consciente”, utilizando a metodologia de trabalho com projetos, numa perspectiva interdisciplinar e transversal. Na terceira e última etapa desta pesquisa, a Escala TAE-N foi novamente aplicada nos alunos. Verificou-se que todas as turmas apresentaram um aumento na média das pontuações, o que sinaliza um desenvolvimento na compreensão dos fenômenos econômicos. Os resultados indicaram o crescimento igual nas diferentes idades e um melhor desempenho dos meninos em relação às meninas no espaço entre os tempos de aplicação da Escala. Todas as turmas apresentaram crescimento na segunda aplicação do TAE-N, em percentuais diferentes. As análises permitiram tanto uma compreensão mais específica de como as crianças brasileiras compreendem o mundo econômico, quanto uma visão mais abrangente da importância de se trabalhar esse tema no âmbito das escolas de Educação Básica. Palavra-chave: Educação econômica. Pensamento econômico. Consumismo. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 214 Abstract The objective of this paper was to investigate the economic thought of Brazilian children, between nine and eleven years old, before and after the development of an Economic Education Program. Its mainly relevance was to introduce the economic thought formation study in children in the context of educational research in Brazil, working on the theme in a development model of economic ideas connected to the cognitivist perspective and with influence of the social and educative enviroments. This research was developed in three stages. The first consisted on the translation, adaptation and preparation of the measure tool, TAE-N scale, developed and checked in Chile and pealed through this research in Brazil, with a sample of 132 children, students of 3rd and 4th grades of the Elementary School, in São Bernardo do Campo, São Paulo. Still at this stage, a clinical interview in a sample of 30 children was made with the purpose of characterizing them. The results of this first stage showed, by the parameters of the Development Levels of the Economic Thought, prepositioned by Denegri, that the children have presented a primitive economic thought, directed to a specific comprehention of the economic phenomena and with the capacity of creating relations and explain the economic reality from their own daily experiences and from the information they received from their familiar, schoolar and media enviroments. The second stage was developed with the classes of an Economic Education Program entitled “Educando para o Consumo Consciente”, using the methodology of projects work, in a transversal and interdisciplinar perspective. Finally, at the third and last stage of this research, the TAE-N scale has been applied again on the students. It was verified that al the classes presented an increase in their medium scores, what signalyzes a development in the economic phenomena comprehention. The results indicated an equal growth in the different ages analyzed and a better performance of the boys than the one of the girls, during the application of the Scale. In concern to the classes, all of them presented knowledge growth in the second application of TAE-N, although in different percentuals. The analysis enabled a more specific comprehention of how the Brazilian children understand the economic world as well as more open view on the importance of working on this theme in the Elementary School enviroment. Keywords: Economic Education, Economic Thought, Consumerism. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 215 Introdução A situação social e cultural na qual se inscreve o desenvolvimento do nosso país é infinitamente complexa. O capitalismo industrial de produção foi substituído pelo capitalismo financeiro, que privilegia o mercado consumidor. A lógica do consumo, em um mundo globalizado, se instalou através das novas tecnologias de comunicação e informação e alcançou todos os setores sociais, atingindo especialmente crianças e adolescentes. Observamos uma importante transformação: o ser humano, antes um sujeito produtivo, se transformou num indivíduo consumidor, produto da expansão capitalista neoliberal, participante de uma Sociedade / Estado que estende as leis de mercado a toda atividade humana, leis que não contemplam o indivíduo, mas o acompanha com fortes processos de exclusão. Para entender o mundo contemporâneo, ou como quer alguns teóricos o mundo pós-moderno, precisamos explicar o mundo governado pelo capital financeiro e pela sociedade de consumo. Sociedade em que a economia se transformou numa questão cultural e que tem as diferentes formas de comunicação, em especial a propaganda, como mediadoras entre a cultura e a economia. Neste universo, a mídia encontrou no público infantil seu maior consumidor, as crianças hoje estão expostas de forma intensa a comerciais que criam desejos, fantasias e incentivam o consumo. Como afirma Jameson (2001), “a cultura do consumo é de fato parte integrante do tecido social e dificilmente pode ser destrinçado dela” (p.27). Estas relações estabelecidas entre o cultural e o econômico são indicadoras da chamada “pósmodernidade”, hoje tão discutida quanto a globalização, e que marca o nosso presente histórico. Vivemos um tempo de profundas desigualdades sociais, retratadas hoje em várias imagens e números. Segundo as Nações Unidas, no seu Relatório sobre o Desenvolvimento Humano: O 1% mais rico do mundo aufere tanta renda quanto os 57% mais pobres. A proporção, no que se refere aos rendimentos, entre os 20% mais pobres no mundo aumentou de 30 para 1 em 1986, para 60 por 1 em 1990 e para 74 para 1 em 1999, e estima-se que atinja os 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 bilhões de pessoas viviam com menos de dois dólares por dia, 840 milhões estavam subnutridos, 2,4 bilhões não tinham acesso a nenhuma forma aprimorada de serviço de saneamento, e uma em cada seis crianças em idade de frequentar a escola primária não estava na escola. Estima-se que cerca de 50% da força de trabalho não agrícola esteja desempregada ou subempregada.55 No Brasil a situação não é diferente. Em recente pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – sobre Orçamentos Familiares (Maio, 2004), os resultados mostraram que, em 30 anos, importantes mudanças ocorreram nos hábitos de consumo dos brasileiros. Alguns dados desta pesquisa nos levam a pensar sobre a importância de um programa de alfabetização econômica para as escolas de Educação Básica. 55 Citado por Minqi Li, “After Neoliberalism: Empire, social Democracy, or Socialism?”, Monthly Review, January 2004, p.21; I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 216 Mesmo compreendendo que estes dados não podem ser analisados fora de um contexto social e político, que define as distorções sociais encontradas em nosso país, eles podem nos alertar para a necessidade de termos indivíduos mais críticos e conscientes da sua realidade e capazes de agirem no sentido de buscar melhores condições de vida. Na abertura do Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre, em julho de 2004, István Mészáros apresentou suas idéias sobre o papel da escola na construção de um outro mundo, cuja referência seja o ser humano e que realize as transformações políticas, sociais, econômicas e culturais necessárias, com vistas a uma ordem social qualitativamente diferente. Sua proposta de educar para além do capital, significa pensar uma sociedade que alcance este sentido, libertando o ser humano das amarras do determinismo neoliberal, num processo contínuo e emancipador. Para ele, “apenas a mais ampla das concepções de educação nos pode ajudar a perseguir o objetivo de uma mudança verdadeiramente radical, proporcionando instrumentos de pressão que rompam a lógica mistificadora do capital” (MÉSZÁROS, 2005, p.48). É para a formação desses novos atores econômicos que este trabalho se volta, na compreensão de que a melhoria de vida das pessoas acontece através da inclusão social, da consciência política e financeira e de uma ação reflexiva que leve a uma maior participação social. No entanto, é necessário que as ações formativas iniciem-se desde cedo através da construção de espaços diferenciados que fortaleçam a cooperação e a construção de relações econômicas mais conscientes, lembrando que as crianças são sujeitos sociais e históricos, portanto, marcadas pela complexidade e pelas contradições da sociedade em que estão inseridas. Ações que levem à solução de questões que inquietam os que atuam na área: como a criança percebe os fenômenos financeiros? A partir de que idade ela é capaz de compreendê-los? Que fatores estão relacionados a esta compreensão? Qual o papel da família e da escola nesta aquisição? Como trabalhar com as crianças de maneira que sejam considerados em seus contextos de origem, seu desenvolvimento e o acesso aos conhecimentos, direito social de todos, em direção a uma possível alfabetização econômica? Enfim, como ajudar as crianças a serem cidadãos m0,00cmais conscientes do seu papel no mercado e do seu poder na constituição de uma sociedade mais solidária e justa? Referencial Teórico De acordo com Denegri (2003b), o estudo da compreensão que a criança e o adolescente têm acerca da realidade econômica e dos conceitos sobre o uso, a origem e a circulação do dinheiro são importantes porque auxiliam na compreensão dos processos mais gerais por meio dos quais os sujeitos constroem um modelo coerente e organizado do mundo social em que vivem. Também é importante destacar que compreender como as crianças e os adolescentes concebem a realidade econômica ajuda na I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 217 construção de estratégias educativas para o desenvolvimento de programas de socialização ou alfabetização econômica, aspecto altamente relevante nos dias de hoje. Um dos problemas propostos por Jean Piaget em suas investigações e, também, considerado por ele como um dos temas mais difíceis na psicologia infantil é traduzido pela questão: “quais as representações do mundo que surgem espontaneamente nas crianças ao longo dos diferentes estágios de seu desenvolvimento intelectual?” (PIAGET, 1977, p.5). Na busca de respostas que pudessem contemplar essa e outras questões afins sobre a forma como a criança apreende as informações do seu entorno, Piaget e seus colaboradores desenvolveram alguns estudos que revelaram que muito antes de se explicar às crianças sobre os fenômenos sociais, elas já possuem várias informações sobre eles e que essas construções vão ocorrendo a partir da interação entre o sujeito e o meio social, desde o seu nascimento. De acordo com Piaget, as trocas que a criança mantém com o meio social são de natureza diversa e modificam a estrutura mental do indivíduo conforme o estágio de desenvolvimento em que se encontra. Sabemos que as crianças são seres ativos que constroem seus próprios conhecimentos e organizam-nos a partir das suas experiências e estruturas cognitivas. Desde o seu nascimento, elas estão em interação permanente com o outro e com o meio em que estão inseridas e, a partir dessas interações, elas constroem modelos explicativos do mundo. Entretanto, sua experiência com a realidade é distinta da dos adultos. Através das informações recebidas dos adultos, dos meios de comunicação de massa e das próprias observações, as crianças vão construindo as suas explicações para os diversos eventos sociais, políticos e econômicos. Esta é uma forma delas desenvolverem processos de socialização, que vão pouco a pouco inserindo-as no mundo. Nos últimos anos, vários pesquisadores têm se interessado em estudar como evoluem as ideias e explicações da criança acerca do mundo social e financeiro. Alguns desses estudos tiveram como ponto de partida os trabalhos de Jean Piaget. Como as crianças representam as realidades que as cercam, o que elas pensam sobre esta mesma realidade e como elas resolvem os problemas que enfrentam têm sido objeto de estudo de diversos autores como Furth (1980), Leahy (1983), Jahoda (1983), Berti y Bombi (1988), Delval (1989), Denegri (1993), entre outros. Neste quadro, um tema tem despertado atenção de muitos pesquisadores: o conhecimento que as crianças e adolescentes têm sobre conceitos econômicos. As expressões “socialização econômica” e “educação para o consumo”, embora não sejam amplamente divulgadas e discutidas no Brasil, são hoje necessárias frente ao quadro econômico-financeiro e social que se apresenta em nosso país e no contexto mundial. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 218 Conhecer, então, o que as crianças brasileiras pensam sobre os fenômenos econômicos, compreender como este pensamento evolui e como elas assimilam as informações e influências do meio, bem como discutir o papel da escola nos domínios da socialização e alfabetização econômica são os desafios que para si se coloca a autora na busca de inaugurar a discussão deste tema nos meios acadêmicos e despertar a atenção de educadores, psicólogos, economistas e pais para o fenômeno da formação do pensamento econômico em crianças e adolescentes. A Compreensão do mundo econômico O ser humano, desde o seu nascimento, vai construindo, pouco a pouco, a sua identidade pessoal e social através de um processo de aprendizagem dos significados sociais. Ele procura construir modelos para explicar o mundo à sua volta e, através disto, compreender a realidade em que vive. Na composição desses modelos, o sujeito se utiliza de representações que faz a partir das relações que ele estabelece com as pessoas e com a sociedade, as interações e expectativas que ocorrem, e seus sistemas de crenças e valores. Esta aprendizagem de acordo com Denegri(1997) não somente implica a apreensão de símbolos, signos, usos e costumes da cultura, mas além disso, possui uma dimensão cognitiva-afetiva que se expressa em uma espécie de matriz cognitiva através da qual o indivíduo vai interpretando o seu ambiente. Afirma, ainda, que, embora a criança esteja inserida num meio social e em constante relação com ele desde o seu nascimento, suas experiências e construções são diferentes das de um adulto. Essas diferenças se devem tanto ao fato de que as suas relações com o meio são mais reduzidas e fragmentadas por não ter acesso e nem participar de todas as situações da vida social e política, quanto ao fato de que a criança ainda não possui todos os instrumentos intelectuais desenvolvidos, não podendo assim organizar e articular as informações que recebe do meio. Delval (1989) e Denegri (1997) afirmam que no processo de desenvolvimento da compreensão do mundo social existem dois âmbitos centrais que organizam todo o esquema global de representação social: a compreensão de ordem política e a compreensão de ordem econômica. Em torno desses eixos centrais, circulam outros, mais periféricos e que dependem uns dos outros na compreensão da organização social. As investigações sobre socialização econômica desenvolvidas por Denegri, Furth, Jahoda, Delval e outros, têm focado seus esforços na compreensão que crianças e adolescentes têm dos conceitos econômicos. As pesquisas procuram mostrar que crianças e adolescentes não são sujeitos passivos diante das informações sobre economia. Pelo contrário, elas constroem ativamente conceitos e explicações sobre o mundo econômico à sua volta. Durante todo o tempo elas estão interagindo com as informações que I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 219 recebem, sejam dos adultos com os quais convivem, sejam dos meios de comunicação. O fato é que essas informações formam as bases das condutas econômicas dessas crianças e adolescentes. A compreensão do mundo econômico e do uso do dinheiro como um instrumento de acesso aos bens e serviços é básica nas relações que são estabelecidas hoje na sociedade moderna (FURTH, 1980). A vida social do homem acontece imersa num sistema de instituições que são estruturadas basicamente em termos econômicos, sendo o uso do dinheiro e as relações que se estabelecem a partir dele, determinantes nas definições das relações pessoais e institucionais. Desta forma, o estudo da compreensão que as crianças e adolescentes constroem sobre a realidade econômica e os conceitos que desenvolvem a partir desses temas têm um significado grande nos dias de hoje, pois podem servir para compreender os processos mais gerais por meio dos quais os indivíduos desenvolvem um modelo coerente e organizado do mundo social em que vivem e de suas relações. A partir dos resultados destes trabalhos, Denegri construiu o Modelo de Psicogêneses do Pensamento Econômico, inspirado no enfoque cognitivo-evolutivo piagetiano, em que identifica as tendências evolutivas do pensamento de crianças e adolescentes sobre os eventos econômicos. Ela identificou, também, a existência de padrões de mudanças conceituais que caracterizavam uma construção progressiva. Nesse processo, diante dos fenômenos econômicos, apareciam novas explicações para uma mesma situação e desapareciam aquelas que não se relacionavam mais com esta nova maneira de pensar. Nas investigações feitas com crianças de diferentes lugares, inclusive de diferentes países, foi observada a repetição destes padrões. A autora e sua equipe terminaram por levar os sujeitos à aquisição de um pensamento mais sistêmico em relação aos conhecimentos do mundo econômico e que incorporam as várias relações que estão presentes numa situação econômica. Denegri concluiu, portanto, que existem três níveis diferenciados de concepções econômicas globais nos sujeitos e estabeleceu sua organização em sistemas conceituais. O primeiro nível está subdividido e foi nomeado por Denegri de sub-nível 1A: “Pensamento Extra Econômico” e sub-nível 1B: “Pensamento Econômico Primitivo. De uma maneira geral, este nível apresenta como aspectos principais o predomínio de características extra econômicas: a incapacidade de considerar vários aspectos da realidade social, a dificuldade para estabelecer relações e para compreender processos e relações no mundo social e econômico, e a concepção de que o dinheiro é um instrumento ritual para o intercâmbio, livremente disponível para todos. Neste nível é possível verificar nas crianças o total desconhecimento da existência de restrições tanto na vida social quanto na vida econômica; para elas o desejo é o único requisito para se alcançar qualquer objetivo. A realidade social e econômica é representada de maneira fragmentada e sem conexão; I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 220 não há uma compreensão muito clara das mudanças, pois o mundo social se apresenta numa perspectiva estática ou com mudanças súbitas. Para Denegri, Amar, Llanos e Martinez (2002), as crianças neste nível têm dificuldades para separar o mundo das relações pessoais do âmbito social e institucional, que é próprio do mundo econômico. Há também uma tendência em aplicar as mesmas regras de reciprocidade nas explicações dos problemas econômicos e não há uma compreensão muito clara da noção de lucro, excluindo a ideia econômica de busca de benefícios. Enfim, as crianças no nível do Pensamento Extra-econômico têm um conceito pessoal de Estado, representado como uma figura concreta, que atua como pai e protetor de toda a sociedade. O esforço que a criança faz para superar as contradições que surgem no dia-a-dia e, também, refletir sobre a realidade social marca o 2° nível, denominado de “Pensamento Econômico Subordinado”. Neste nível, a criança faz sua primeira conceitualização econômica da sociedade com a compreensão do conceito de lucro como ideia central do fazer econômico, reelaborando conceitos numa estrutura mais integrada. Ocorre também a primeira separação entre as relações pessoais e as relações institucionais econômicas. Outros aspectos que marcam este nível é a compreensão da existência de restrições na realidade social, a incorporação de preceitos morais numa conceitualização global da sociedade como um espaço regido por leis necessárias para o seu funcionamento e o entendimento do Estado como um espaço institucional encarregado da organização, regulação, distribuição de recursos e controle de todo o funcionamento social e econômico. Algumas dificuldades também marcam este nível. Dentre elas a pouca clareza que as crianças têm dos mecanismos de financiamento do Estado e as dificuldades para compreender as interrelações entre os processos econômicos complexos e para realizar inferências sobre processo que não são visíveis para elas. Denegri denominou o 3º nível de “Pensamento Econômico Inferencial”. Neste nível há uma mudança na forma global dos adolescentes conceituarem os processos sociais, pois eles já desenvolveram uma capacidade de hipotetizar sobre o mundo econômico e, a partir daí, conseguem estabelecer relações entre os processos, sistemas e ciclos numa visão mais sistêmica. Os sujeitos, neste nível, são capazes de compreender as diferentes determinações dos processos econômicos e sociais e possuem uma reflexão mais avançada acerca da realidade social e das variáveis que operam nas mudanças sociais e econômicas. Há uma valorização ideológica das mudanças, dos ciclos e das políticas econômicas, e um maior entendimento do papel do Estado e de suas formas de funcionamento. Os níveis apresentados por Denegri precisam ser compreendidos dentro de uma perspectiva heurística e devem ser usados como uma I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 221 ferramenta para a análise e compreensão do desenvolvimento do pensamento econômico e para a organização das informações que possam auxiliar a escola na educação econômica de seus alunos. A pesquisa e seus resultados A pesquisa desenvolvida neste projeto foi realizada com crianças entre 9 e 11 anos, alunos e alunas das turmas de 3ª e 4ª séries do Ensino Fundamental de um colégio de grande porte, da rede particular de ensino, de um município da grande São Paulo e 05 professoras desta mesma escola. Ao todo foram 137 sujeitos que participaram da pesquisa e da aplicação do teste TAE-N e destes, 30 compuseram uma sub mostra, selecionada para as entrevistas clínicas. Os sujeitos estavam distribuídos em 06 turmas, sendo 03 classes de 3ª série e 03 classes de 4ª série do Ensino Fundamental, sendo 03 no turno matutino e 03 no turno vespertino (com 69 crianças do sexo feminino e 63 do sexo masculino). Dentro da abordagem quantitativa, optou-se por trabalhar com as Escalas de Avaliação do Nível de Alfabetização Econômica, TAE-N, proposta e desenvolvida por Denegri e colaboradores. Da mesma autora, a Escala TAE-A, para adultos, foi utilizada na caracterização das professoras que participaram no desenvolvimento do Programa. As duas escalas, a de adultos e a das crianças, avaliam o nível de compreensão dos conceitos e de práticas econômicas necessárias para um bom desempenho econômico. De acordo com a idealizadora das Escalas, “se trata de uma avaliação de rendimento máximo, operacionalizada através de uma série de perguntas ordenadas segundo uma dificuldade progressiva. Cada pergunta propõe quatro alternativas de respostas, dentre as quais uma é a correta e as restantes apresentam diferentes graus de incorreção”(DENEGRI, 2003). A pesquisa apontou um desempenho inferior dos meninos em relação às meninas na primeira aplicação da Escala (Tempo Pré) mas, identificou um crescimento maior nos meninos entre as duas aplicações, o que sugere uma maior assimilação dos conceitos econômicos trabalhados no Programa de Intervenção, por parte dos meninos. Nesta investigação, tanto as crianças do grupo de 8-9 anos, quanto as de 10-11 anos mostraram uma boa assimilação dos conceitos econômicos trabalhados no Programa de Intervenção. O crescimento apresentou valores próximos nos dois grupos, sendo que o grupo de crianças com idades menores apresentou um desenvolvimento um pouco melhor do que as crianças mais velhas. No primeiro grupo (89 anos) as crianças saíram de uma média de 23,13 no tempo Pré para uma média de 26,65 no tempo Pós, representando um crescimento de 15,2%. No segundo grupo (10-11 anos) o crescimento foi de 13,3%, pois de uma média de 24,75 as crianças foram para uma média de 28,05. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 222 Este fato nos leva a considerar dois aspectos: o primeiro aponta para uma adequação da Escala, confirmando os resultados apresentados pelo teste de coeficiente ά de Cronbach e por investigações com a mesma Escala já realizadas no Chile e na Bolívia; o segundo aspecto refere-se ao Programa de Intervenção, considerado adequado para os dois blocos de idade, pois mostrou um crescimento igual nas duas faixas etárias, o que pode também ser confirmado na avaliação do desempenho das turmas, feito pelas professoras. Assim, podemos afirmar em relação ao Programa de Intervenção que sua estrutura participativa e interdisciplinar facilitou a assimilação e a interação de todas as crianças que dele participaram, e que foi confirmado nas falas das professoras descritas nos relatórios apresentados no capítulo anterior. Um dos objetivos da pesquisa propõe uma compreensão do desempenho de cada turma, analisando-o e comparando-o antes e após a aplicação do Programa. É importante observar que ao analisarmos o desempenho das turmas como um todo, verificamos que todas apresentaram melhores resultados na resolução das questões da Escala no tempo Pós, o que constitui um aspecto de destaque ao considerarmos a importância de um programa de Educação Econômica para a Educação Básica. Entretanto, existem diferenças no desempenho de cada turma que precisam ser discutidas tomando como referência o próprio projeto e o desenvolvimento dos alunos em relação a ele. Na primeira aplicação da Escala as turmas apresentaram uma média de desempenho que variou entre 21,61 e 26, 87 respectivamente para as turma D e F. Na segunda aplicação esses números mudaram para 24,56 o resultado menor, para a turma D e 29,08, o resultado maior para a turma A, o que mostrou crescimento no que se refere à assimilação dos conceitos econômicos, entre os alunos, com o desenvolvimento do Programa de Intervenção. Se tomarmos cada turma para uma análise mais detalhada perceberemos que a turma que iniciou com a melhor média não foi a que obteve o maior crescimento e a turma que iniciou com a menor média, manteve-se no tempo Pós, ainda com a menor média, embora apresentasse crescimento. Com a diversidade dos projetos e a variedade de fatores que influíram em cada um, e esta era a proposta do Programa de Intervenção, ou seja, vivenciar na perspectiva do trabalho com projetos, nas dimensões interdisciplinares e transversal, os conteúdos econômicos; não é possível precisar com exatidão o que determinou o crescimento mais acentuado de uma turma em relação a outra. Entretanto, algumas considerações precisam ser destacadas: É preciso reconhecer que o conhecimento é intransferível e que, por ser construído a partir das ações do sujeito sobre o mundo em que ele vive, ele (o conhecimento) torna-se constitutivo do próprio sujeito. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 223 Essa construção pressupõe uma participação intensa e reflexiva dos sujeitos nas atividades desenvolvidas em sala de aula, espaço em que ele pode dialogar com seus pares, questionar o cotidiano e os conhecimentos científicos. Atividades sugeridas e propostas pelos alunos demonstram seu protagonismo, condição necessária dos processos de construção do conhecimento. Projetos, como estratégias para a construção dos conhecimentos, pressupõe decisões, escolhas e vivências que incorporam a abertura para o novo, para o possível, além de articular os diferentes tipos de conhecimentos. Ações simples como a implantação de Programas de Educação Econômica nas escolas de Educação Básica, buscando alcançar a todos, independente de classe social, na discussão do mundo econômico no qual somos inseridos desde de nascemos, mas para o qual não somos preparados, precisam se traduzir em ações nacionais. Por que devemos nos preocupar com a Educação Econômica nas escolas? Das respostas possíveis a esta pergunta, a primeira coloca-se a partir dos resultados da pesquisa de que trata este texto. Os efeitos de um Programa de Educação Econômica sobre o desenvolvimento do pensamento econômico em crianças são reais e corroboram com o processo de alfabetização nesta que é uma área tão importante quanto desconsiderada nos meios educacionais. É preciso lembrar, também, que uma das funções do processo de socialização da escola é a formação cidadã de cada aluno e aluna para a sua intervenção na vida pública. Assim, a escola deve promover nas crianças e jovens o desenvolvimento de conhecimentos, atitudes e comportamentos que permitam sua incorporação eficaz na sociedade, com liberdade de consumo e de participação na vida pública. É preciso considerar a educação econômica, tanto quanto a política, como pilares de uma formação cidadã. A educação econômica deve iniciar ainda na Educação Infantil e a construção de um programa que eduque o consumidor deve se dar no sentido de fazer conhecer, compreender e adquirir habilidades que o ajude a avaliar as alternativas de forma eficiente; facilitar a compreensão e utilização de informações sobre temas inerentes ao consumo e direitos do consumidor; orientar e prevenir acerca dos perigos que podem derivar do consumo de produtos e da utilização de serviços e motivá-lo para que desempenhe um papel mais ativo que regule, oriente e transforme o mercado, através de suas decisões. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 224 Referências BERTI, A. E. & BOMBI, A. S. The child’s constructuion of economics. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. DELVAL, J. La construcción de la representación del mundo social en la infancia. In TURIEL,E.; ENESCO, I. & LINAZA, J. (Orgs) El mundo social en la mente infantil. Madri: Alianza Univ., 1989. DENEGRI, M. Estudio piloto para el desarrollo de una entrevista acerca del desarrollo de las ideas en torno al origen y circulación del dinero. Manuscrito no publicado. Universidad Autónoma de Madri. Departamento de Psicología Evolutiva y de la Educación. España, 1993 DENEGRI, M. El desarrollo de les ideas acerca de la emisión monetaria en niños y adolescentes: Estudio exploratorio. Revista del Instituto de Ciencias de la Educación, n° 9, Enero-Abril, 47-62, 1995. DENEGRI, M. Psicogénesis de las ideas en torno a la relación Estado – Economía. In: GUZMÁN, L. (Ed.). Exploraciones en Psicología Política I. 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CAMPAÑA, Thelma Cardinal Duarte CUML- Centro Universitário Moura Lacerda Agência de fomento: SEESP SCRIPTORI, Carmen Campoy CUML- Centro Universitário Moura Lacerda LPG/FE/UNICAMP [email protected] [email protected] Resumo O presente trabalho é parte de uma dissertação de mestrado que foi embasada em uma pesquisa sobre conhecimentos da geometria escolar. A fundamentação teórica está alicerçada nos estudos e pesquisas realizados por Piaget, acrescida dos estudos de Delval, Becker, Chiarottino, Fainguelernt, Scriptori, e Souza. Este texto enfatiza a necessidade da noção de medida como conhecimento prévio à aquisição de noções de geometria em ambiente escolar. O estudo foi realizado com 9 sujeitos de 06 a 15 anos de uma escola pública do interior do estado de São Paulo e deu origem a posteriores intervenções pedagógicas com 20 sujeitos de 8ª série. A coleta de dados foi realizada por meio da aplicação da prova da torre adaptada de Piaget. Os resultados evidenciam que a compreensão das noções escolares sobre geometria, previstas no currículo escolar para 7ª e 8ª séries, dependem da construção prévia das estruturas mentais que permitem o conhecimento operatório de medida. Palavras chave: Noção de medida. Conhecimento escolar. Pesquisa psicogenética. Abstract The present work results from a master´s degree original thesis which iwas based in a research based on school geometric knowledge. The teory is based on Piaget studies as well as the ones of Delval, Becker, Chiarottino, Fainguelernt, Scriptori and Souza. This piece emphasizes the necessity of measure notion as a previous knowledge to geometric perception in school environment. The research was carried out in 9 subjects with ages between 6 and 15 years old from a public school in the country area of São Paulo State and resulted in posterior pedagogic interventions in 20 8th graders. The data was source through a questionary about Piaget´s adapted tower. Results show that the comprehension of geometric school notions, expected in 7th and 8th grades, is conditioned to a previous construction of mental structures that allows measure understanding. Keywords: Measure notion. School knowledge. Psycho-genetics reaserach. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 226 Introdução Tendo a geometria como tema de pesquisa para a dissertação de mestrado que pretendíamos, foi necessário realizar um estudo histórico da geometria primitiva. A história revela que, para todos os povos, a geometria primitiva é decorrente da necessidade de mensuração, assim, pode-se dizer que o conceito de medida está ligado ao desenvolvimento de toda a geometria. Decorre daí a necessidade de se investigar a conduta dos sujeitos no processo de construção desse conhecimento. Referencial teórico Sabe-se que pesquisas realizadas por Piaget evidenciaram que a compreensão da Matemática elementar decorre da construção de estruturas inicialmente qualitativas (inclusão de classes e seriação). Dessa forma, quanto mais a escola propiciar a construção prévia das operações lógicas antes de tratar de conteúdos formais, mais favorecido será o ensino da Matemática em todos os níveis. Para o presente estudo faz-se necessário esclarecer como Piaget conceitua conhecimento, como pode ser classificado e como é construído. Segundo Chiarottino (1988), para Piaget o termo “conhecer” tem sentido claro: organizar, estruturar e explicar, porém a partir do vivido, do experienciado. E, segundo Becker (2001), o conhecimento se dá por um processo de interação radical entre sujeito e objeto, entre indivíduo e sociedade, organismo e meio. Dentre os conhecimentos que os indivíduos constroem existem os conhecimentos científicos, aqueles que são produzidos na escola e os conhecimentos espontâneos, aqueles que são produzidos fora da escola. Delval (2001) discursa longamente sobre esse assunto. O conhecimento científico, em contrapartida, é visto como totalmente distanciado da vida de cada dia e não consegue vincular-se aos problemas cotidianos. Busca generalidade e a validade universal, motivo pelo qual tenta ser o mais independente possível do contexto. No entanto, em suas vidas cotidianas, as pessoas atuam em contextos determinados e para resolver problemas determinados. (DELVAL, 2001, p.95) Os estudos de Piaget nos mostram que o conhecimento tem diferentes aspectos: o físico, adquirido a partir da experiência direta com os objetos; o lógico-matemático, estruturado a partir da abstração reflexionante e o social, proveniente da interação com as pessoas. Por exemplo: uma criança reconhece uma bola por sua superfície arredondada e que pode fazê-la rolar. Esse conhecimento é físico. O fato desse objeto ser reconhecido pelo conjunto de letras B-O-L-A, grafados nessa sequência, e cujo significado está vinculado ao nome “bola” se refere ao conhecimento social, uma vez que é transmitido culturalmente. As relações que o sujeito faz quando inclui esse objeto na classe dos brinquedos, por exemplo, e não na classe de instrumentos musicais, é da ordem do aspecto lógico-matemático. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 227 Enquanto o conhecimento físico se estrutura por abstração empírica, o lógico-matemático se estrutura por abstração reflexiva. Mas da mesma maneira que o conhecimento físico e o social não ocorrem fora de um quadro lógico-matemático, o conhecimento lógicomatemático também não se estrutura fora de um contexto físico e social.(SCRIPTORI, 2005, p. 130). De acordo com Piaget, todo conhecimento supõe a formação de conceitos, que implica nesses três aspectos. Como o conhecimento é construído pela ação da pessoa sobre o meio físico e social em que vive, este não ocorre sem uma estruturação mental do vivido. Coisas e fatos adquirem significação para o ser humano quando inseridos em uma estrutura. Segundo Chiarottino (1988), isto é o que Piaget denomina assimilação. Os conhecimentos matemáticos produzidos na escola são muito valorizados, tanto pela sociedade como pelos estudantes, uma vez que servem para classificar populações de escolares (por exemplo: Prova Brasil). No entanto, percebe-se que para muitos ele é considerado inatingível, apesar de acessível. O que se observa é a falta de compreensão de conceitos dificultando essa aquisição. Assim, frequentemente, os alunos demonstram a apreensão de conteúdos de maneira memorística. Pode-se supor que os professores reproduzem o modelo de aprendizado ao qual foram submetidos e o que se costuma verificar é o aprendizado por repetição, treino, e não pela compreensão. Piaget (1998a, p. 55) alerta: Ora, a Matemática nada mais é que uma lógica, que prolonga da forma mais natural a lógica habitual e constitui a lógica de todas as formas um pouco evoluídas do pensamento científico. Um revés na Matemática significaria assim uma deficiência nos próprios mecanismos do desenvolvimento do raciocínio. É, pois da maior necessidade que se procure verificar se a responsabilidade não recai, no caso, sobre os métodos. De acordo com Chiarottino (1988), a experiência lógico-matemática está relacionada às ações que exercemos diretamente sobre objetos. No curso do desenvolvimento humano, se, inicialmente, o sujeito depende da ação direta sobre os objetos, em outro momento, o sujeito dispensa essa manipulação física quando os interioriza em operações simbolicamente manipuláveis, por meio de imagens mentais (representações), resultantes de abstração de dados proporcionada pela atividade do sujeito. Ao tomarmos o ponto de vista de Becker (2001, p. 47), temos que: “O processo do conhecimento está restrito ao que o sujeito pode retirar, isto é, assimilar, dos observáveis ou dos não-observáveis, num determinado momento”. Piaget chama de “observáveis” tudo aquilo que o sujeito constata ou crê constatar nos objetos e nas ações. (SOUZA, 2004, p. 41). A teoria psicogenética mostra que os esquemas, inicialmente motores e posteriormente mentais, não permanecem estáticos; modificam-se ao longo da vida. À medida que o sujeito se I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 228 desenvolve, ele vai elaborando esquemas cada vez mais abstratos, ou seja, organizados e formalizados. Durante o desenvolvimento humano, a teoria de Piaget identifica estádios evolutivos, descrevendo-o em três grandes períodos integrados: o período sensório-motor (0 até 18 meses); período do pensamento concreto (18 meses a 11 anos) e período do pensamento formal (11 a 15 anos). O período do pensamento concreto inclui dois subestádios: o estádio pré-operatório (18 meses a 7anos) e o estádio das operações concretas (7 a 11 anos). Cada estádio tem características próprias que são integradas ao estádio imediatamente posterior. No período pré-operatório, as representações e as relações estabelecidas se apoiam diretamente sobre resultados empíricos observáveis, por meio da abstração empírica e pseudo-empírica. Na medida em que a atividade do sujeito sobre os objetos propicia a abstração reflexiva das noções matemáticas de natureza geométrica, permite que, pela experimentação, o sujeito possa chegar à generalização. Assim, o estudo das medidas, na escola, deveria ser iniciado no período pré-operatório com propostas de ações do sujeito sobre objetos para que possa vir a ser refinado no período seguinte, passando do nível empírico ao reflexivo. De acordo com os estudos piagetianos, inicialmente, na ação sobre o objeto a criança utiliza o que Piaget denominou de inteligência prática. Essa inteligência se refere à manipulação dos objetos organizados apenas pelos esquemas de ações motoras. Um bebê, por exemplo, que pretende alcançar um objeto distante que se encontra sobre uma almofada fará alguns movimentos para atingir diretamente o objeto. Não é capaz de pensar em puxar a almofada para aproximar o objeto e alcançá-lo mais facilmente. Piaget (1973), na obra A geometria espontânea das crianças, declara que, para iniciar o estudo das medidas, é preciso, primeiramente, examiná-las dentro de contextos das atividades mais espontâneas possíveis, tanto para assistir a formação global das medidas nas ações, quanto para discernir o papel natural das operações fundamentais que essa medida supõe. A análise feita por Piaget considerou os deslocamentos próprios das crianças em função do campo espacial mais ou menos coordenado, pois a maneira como eles medem (ou preparam as medidas) exige mais cedo ou mais tarde certa precisão métrica. A tomada de consciência das propriedades geométricas é de natureza complexa. Num primeiro momento, apoia-se sobre as propriedades que o objeto possui, antes mesmo de o sujeito descobri-las, tais como: formas, dimensões, posições, deslocamentos etc, assim como massas, forças ou velocidades etc. O conhecimento físico difere do conhecimento geométrico, pois as características geométricas dos objetos são transparentes à razão, as quais podem ser reconstruídas dedutivamente, enquanto que os caracteres I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 229 dinâmicos do conhecimento físico não podem ser dedutíveis diretamente do real; são reconhecidos apenas por suas aproximações com o real. É nesse ponto que a abstração espacial difere, ao mesmo tempo, das abstrações físicas e lógico-aritméticas. Daí se deduz a necessidade de uma didática operatória 56 que favoreça a construção do conhecimento e permita o reinventar por si mesmo. Uma coisa, porém, é inventar na ação e assim aplicar praticamente certas operações; outra é tomar consciência das mesmas para delas extrair um conhecimento reflexivo e, sobretudo teórico, de tal forma que nem os alunos nem os professores cheguem a suspeitar de que o conteúdo do ensino ministrado se pudesse apoiar em qualquer tipo de estruturas naturais. (PIAGET, 1998, p. 16). A invenção na ação pode acarretar a aplicação de certas operações sem abstração (inteligência prática ou intuitiva) e, consequentemente, gerar a suspeita sobre a aquisição de determinado conhecimento. Na tomada de consciência, porém, o sujeito extrai das operações realizadas um conhecimento reflexivo, de modo que o utiliza com compreensão. No estádio das operações concretas, a estruturação cognitiva permite que a criança tenha o suporte necessário para conhecimentos mais abstratos. Piaget afirma que o empírico é necessário, mas não suficiente para desenvolver a inteligência cognoscitiva. Piaget observou que as primeiras descobertas geométricas da criança são topológicas e que ocorrem espontaneamente nas relações espaciais. Somente após ter o domínio dessas relações topológicas é que a criança desenvolve as noções da geometria euclidiana e projetiva. A geometria topológica se vale das relações de deslocamento, vizinhança, direção, sem a interferência de medidas; a geometria projetiva é aquela que estuda as transformações das figuras através de suas várias projeções, ou seja, os objetos no espaço e, a geometria euclidiana estuda os objetos no plano, valendo-se das relações métricas. De acordo com Fainguelernt (1999), a geometria, talvez seja a parte da Matemática mais intuitiva, concreta e ligada com a realidade. No entanto, no ambiente escolar, a matemática que se pratica se apoia em um processo exaustivo de formalização precoce. “Apropriar-se de um conceito é fazer a passagem de uma representação para outra, trabalhando com desenvoltura nas diferentes representações”. (FAINGUELERNT, 1999, p.216). Pode-se observar o processo de apropriação do conceito de medida, por exemplo, com a prova da torre, idealizada por Piaget. Nela, a criança inicialmente compara o tamanho de duas torres visualmente, afastando-se ou aproximando-se da mesma. Num estágio posterior, ela trata de fazer a comparação aproximando as torres ou utilizando um instrumento de medida apenas para verificar se elas estão no mesmo nível. E, apenas 56 Entende-se por didática operatória aquela que enfatiza as operações de pensamento. De acordo com Aebli (1958) a tarefa do professor consiste em criar situações psicológicas para que as crianças possam construir as operações que devem adquirir. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 230 quando utiliza o instrumento de medida corretamente, isto é, marcando o tamanho da torre nesse instrumento, transferindo essa medida para a outra torre e explicando o que realizou, é que podemos afirmar que se apropriou do conceito. Sabemos que nenhum conceito se estrutura no vazio, mas se apoia em conhecimentos anteriores, promovidos pela ação do sujeito. Um conceito espontâneo pode ser modificado pela experimentação do sujeito, à medida que essa ação altera suas estruturas mentais, o que ocorre pelos processos de assimilação e de acomodação, inserindo esse conceito num sistema mais amplo de relações. Essas ações provocam uma perturbação no sujeito, causando um desequilíbrio cognitivo. Ao reagir ao desequilíbrio, diz-se que ele está regulando suas ações físicas ou mentais, que, por sua vez, tornam-se operações. Ao processo que permite construir uma nova estrutura, em virtude da reorganização de estruturas anteriores, Piaget (1995, p.193) denomina abstração reflexionante, que pode funcionar de forma inconsciente ou sob intenções deliberadas. A tomada de consciência de resultados de uma abstração reflexionante é chamada de abstração refletida57. Segundo Scriptori (2005, p.163), A partir das contribuições da psicologia, tanto construtivista como socioconstrutivista, temos que os sujeitos aprendem e fazem avanços cognitivos ao se defrontarem com situações-problema, postas pelos objetos, pessoas e situações, geradoras de conflitos que, uma vez superados, produzem novos conhecimentos, e que por sua vez e a seu tempo gerarão novas situações-problema que também deverão ser superadas, e assim sucessivamente. Objetivos O objetivo deste estudo foi compreender a microgênese psicológica do conceito de medida. Para tal estudo foi utilizada a prova da torre, adaptada das pesquisas piagetianas. Metodologia Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo analítica descritiva. Consta de uma prova individual, gravada em áudio e vídeo e aplicada em 9 sujeitos de diferentes idades entre 6 e 15 anos de uma escola pública do interior paulista. Os sujeitos desse estudo piloto estão identificados por três letras e as respectivas idades entre parênteses (anos; meses), como utilizado por Piaget em suas pesquisas. 57 O termo “abstração reflexiva”, utilizado por Piaget foi traduzido por Becker como abstração reflexionante e abstração refletida. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 231 Desenvolvimento Com o presente estudo foi possível observar e analisar a conduta dos sujeitos em diferentes estágios de desenvolvimento numa atividade referente à noção de medida, o que possibilitou fornecer subsídios para compreender o pensamento dos sujeitos. Em um estudo desse tipo, o que se observa é a atividade operacional efetiva do sujeito (operação externa e motora) e, à medida que se faz o questionamento, infere-se a mobilização do seu pensamento. A prova da torre adaptada consiste em três etapas. Na primeira etapa, o sujeito deve construir uma torre do mesmo tamanho e no mesmo plano que a torre construída pela pesquisadora; para tanto deverá comparar o tamanho das torres e medi-las, utilizando as varetas de vários tamanhos que foram colocados à sua disposição. Na segunda etapa, a pesquisadora constrói a torre em um plano mais alto, em cima de uma caixa colocada sobre o plano inicial (a mesa), e pede ao sujeito que construa outra torre igual ao modelo, porém sem utilizar o suporte da caixa. Para certificar-se de que as torres sejam iguais o sujeito terá de comparar o tamanho de ambas, utilizando as varetas disponíveis. Na terceira etapa, o sujeito deverá fazer o mesmo procedimento da segunda etapa, utilizando, entretanto, blocos menores que os da torre modelo construída pela pesquisadora. As constatações observadas estão descritas a seguir: Para os sujeitos com 6 anos de idade, observou-se que, apesar de concordarem que os instrumentos de medida (varetas) possam ajudar a conferir (comprovar) o tamanho da torre, não integraram esse dado às suas ações. É o caso de Éri (6;11), que coloca a vareta no sentido horizontal sobre as torres, paralelamente à mesa, e diz que não está igual porque sobra um pedaço da vareta para além dos lados das torres. Na construção da torre sobre o suporte, percebe e identifica a presença do mesmo, mas o considera pertencente à torre. Nat (6;11) coloca a vareta no sentido vertical, paralelamente à altura da torre, mas não marca, nem transfere essa medida para a outra torre que construiu, ou seja, não descentrou o suficiente para formar uma sequência de comparações sistemáticas que possibilitam comprovar suas alturas. Na segunda etapa da construção, Nat não faz comentários sobre o suporte colocado e utiliza o mesmo procedimento para construir a sua torre, ignorando esse dado. Na terceira etapa, porque utiliza o mesmo número de peças, diz que não dá pra fazer uma torre do mesmo tamanho que a apresentada porque como as peças são menores o tamanho não pode ser o mesmo, e que a vareta não ajuda a conferir, conforme o diálogo a seguir: Pesq - Não dá para ficar do mesmo tamanho que a minha? Nat (6;11)- Não, porque essa aí é grande (mostra o bloco cúbico) e este aqui é pequeno I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 232 (mostra a peça menor usada por ela). Pesq - E a vareta não ajuda a resolver? Nat (6;11)- Não. Raf (8;3), ao comparar o tamanho das torres, apoia a vareta sobre elas paralelamente à mesa, porém não faz referência à medida da vareta, mas, sim, à quantidade de blocos utilizados. Na construção da torre sobre o suporte, percebe a presença do suporte, mas o considera como parte integrante da torre. Raf (8;3) - Só que aí eu vou precisar um pouco mais de peça por causa disso aqui. (Aponta para o suporte) Na construção da torre com peças menores que as do modelo, Raf (8;3) constroi, compara com a vareta apoiada nas torres paralelamente à mesa, mas não encontra uma explicação plausível para dar: Pesq - Está do mesmo tamanho que a minha? Raf (8;3) olhando atentamente responde: - Não. Pesq - Não dá pra ficar do mesmo tamanho que a minha? Raf (8;3) – Não, porque essa aí é grande (mostra o bloco cúbico) e este aqui é pequeno (mostra a peça pequena usada por ela). Pesq - E a vareta não resolve? Raf (8;3) - Não. Wil (8;4), em todas as construções, utiliza a vareta como medida colocando-a verticalmente ao lado da sua torre, transferindo essa medida para a torre modelo. Não faz nenhuma observação sobre o suporte. É como se não tivesse percebido o suporte. Bea (9;8) faz as construções, manuseia várias varetas até achar uma adequada para a sua necessidade, marca com o dedo e transfere essa medida para a torre modelo, mas tem dificuldade em explicar. Bea (9;8) - Ah, eu medi com a varetinha aí só. Pesq - E depois você não fez mais nada? Você mediu a sua torre com a varetinha e depois o que você fez? Bea (9;8) - Eu coloquei na sua para ver se dava. Pesq - E deu? Bea (9;8) afirma balançando a cabeça. Pat (13;5), na primeira construção, satisfaz-se comparando a quantidade de blocos das torres. Na construção da torre com peças menores, manipula várias varetas; no final, escolhe a maior e explica o que fez. Quanto ao suporte, considera-o parte da torre. Pesq -Como você prova que está igual? Pat(13;5)- Eu medi a sua e depois a minha. Deu igual.(mostra a vareta sentido vertical e a vareta menor marcando a altura no sentido horizontal). maior no Mur (12;10) utiliza o instrumento de medida para comparar as torres construídas, percebe I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 233 o suporte, porém não o distingue ao construir sua torre, conforme o diálogo a seguir: Pesq - Tem a mesma medida? Mur (12;10) - É para contar isso aqui? (batendo a varinha no suporte). Pesq - A torre tem tudo isso? Mur (12;10)- Tem. Raf (14;3), na primeira construção, apenas contabiliza a quantidade de blocos da torre modelo. Na segunda construção, tenta relacionar a medida dos blocos menores com o suporte e utiliza o instrumento de medida para comparar as torres. Rha (14;4), na primeira construção, faz uso do mesmo tipo de estratégia de sujeitos de 6 anos, ou seja , verifica o nível visual das torres. Na segunda construção, nega a possibilidade de medir a torre com as varetas, mesmo com o gesto indutivo da pesquisadora, conforme diálogo a seguir: Pesq - Como você provaria que tem ou não o mesmo tamanho? Rha (14;4)- Porque os quadrados são diferentes. Pesq - É? Tem essas varetinhas que estão aí. Daria para você aproveitar para conferir? Rha (14;4)- (olha por cima das duas torres).- Não. Pesq - Nenhuma delas? Rha (14;4)- Não. Pesq – (insistindo e mexendo nas varetas): Não dá para conferir? Rha (14;4)- Não. Conclusão De acordo com Piaget (1973) o conceito de medida é construído à medida que o sujeito se descentra do espaço egocêntrico e, gradualmente, agrupa deslocamentos realizados por ele, até organizar uma sequência de comparações sistemáticas que decorrem de suas operações lógicas. Este estudo mostrou que dentro de uma mesma faixa etária, em que os sujeitos frequentam a mesma série escolar, é possível encontrar indivíduos em estágios diferentes de desenvolvimento. Consequentemente, e escola precisa levar isto em consideração se deseja propiciar a aprendizagem, com compreensão, de conhecimentos científicos. É claro que a compreensão dos conceitos dos diferentes sujeitos estudados não pode ser generalizada para outros universos escolares. Contudo, permite corroborar o pressuposto piagetiano de que, para a complexidade de certos conceitos, estruturas precedentes necessitam ser construídas. Dentre os sujeitos pesquisados por este estudo, nenhum considerou a defasagem das bases entre o modelo e a cópia, assim como não fizeram a iteração de medidas. Essas constatações indicam a necessidade de se propor atividades referentes à medida para desenvolver as estruturas precedentes necessárias à aquisição de conceitos da geometria escolar. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 234 Referências AEBLI, Hans Una didáctica fundada en la psicologia de Jean Piaget. Buenos Aires: Editora Kapelusz, 1958. 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Hoje, aluna do quarto período de Pedagogia da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC – Campus Araguari - orientada pela professora Lara Arenghi Faria, me propus a fazer esta pesquisa. O presente estudo surgiu da inquietação em saber se o proposto no Projeto Político Pedagógico – PPP, é realmente implementado em sala de aula. A admiração e fascínio por Emília Ferreiro, fizeram com que começasse tal estudo em uma escola que afirma ser construtivista. A escola selecionada foi a Escola Machado de Assis, que fica situada na Avenida Minas Gerais, número 1600, Araguari – Minas Gerais. Semanalmente será analisado o documento PPP e observadas as atividades em uma sala de aula. A sala selecionada foi a do terceiro ano das séries inicias do Ensino Fundamental com duração de nove anos obrigatórios. Palavras-Chave: Educação. Construção. Conhecimento Abstract The interest in research came in the second half of the year two thousand and eight, when the professor of the discipline of History of Education, Otaviano Pereira, asked to choose an author for the preparation of an article. In the beginning there were many doubts, but after doing some reading on the author, there was the certainty that the article would be about Emilia Ferreiro, because its contribution to education is immense and its line of research is fascinating. Today, student of the fourth period of Pedagogy, Universidade Presidente Antonio Carlos - UNIPAC - Campus Araguari - directed by Professor Lara Arenghi Faria, I proposed to do this research. This study arose from the concern is whether the proposed Pedagogic Political Project - PPP, is really implemented in the classroom. The fascination and admiration by Emilia Ferreiro, have led to begin this study in a school that claims to be constructive. The school was selected the Escola Machado de Assis, which is located on Avenida Minas Gerais, number 1600, Araguari - Minas Gerais. Weekly PPP the document will be examined and observed the activities in a classroom. The room was selected for the third year the series starts from elementary school over a period of nine years compulsory. This study has as main objective to establish the relationship between theory and implementation of PPP. Keywords: Education. Construction. Know- how. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 236 Introdução O interesse por pesquisas surgiu no segundo semestre do ano de dois mil e oito, quando o professor da disciplina de História da Educação, Otaviano Pereira, solicitou a escolha de um autor para a confecção de um artigo. No início, surgiram muitas dúvidas, mas após fazer a leitura sobre alguns autores, houve a certeza de que o artigo seria sobre Emília Ferreiro, pois sua contribuição para a Educação é imensa e sua linha de pesquisa é fascinante. Hoje, aluna do quarto período de Pedagogia da Universidade Presidente Antônio Carlos UNIPAC – Campus Araguari - orientada pela professora Lara Arenghi Faria, me propus a fazer esta pesquisa. O presente estudo surgiu da inquietação em saber se o proposto no Projeto Político Pedagógico – PPP, é realmente implementado em sala de aula. A admiração e fascínio por Emília Ferreiro, fizeram com que começasse tal estudo em uma escola que afirma ser construtivista. A escola selecionada foi a Escola Machado de Assis, que fica situada na Avenida Minas Gerais, número 1600, Araguari – Minas Gerais. Semanalmente será analisado o documento PPP e observadas as atividades em uma sala de aula. A sala selecionada foi a do terceiro ano das séries inicias do Ensino Fundamental com duração de nove anos obrigatórios. Este estudo tem como objetivo principal estabelecer relação entre teoria e implementação do PPP. Referencial Teórico O pesquisador e estudioso suíço, Jean Piaget, nasceu em agosto de 1896, pertencente a uma família de classe alta, iniciou seus estudos científicos ainda muito jovem, formou-se em Biologia, porém sua maior preocupação era entender como o sujeito adquire seu conhecimento. Piaget vai mostrar como o homem, logo que nasce, apesar de trazer uma fascinante bagagem hereditária que remonta a milhões de anos de evolução, não consegue emitir a mais simples operação de pensamento ou o mais elementar ato simbólico. Vai mostrar ainda que o meio social, por mais que sintetize milhares de anos de civilização, não consegue ensinar a esse recém-nascido o mais elementar conhecimento objetivo. Isto é, o sujeito humano é um projeto a ser construído; o objeto é, também, um projeto a ser construído. Sujeito e objeto não têm existência prévia, a priori: eles se constituem mutuamente, na interação. (BECKER, 2001, p. 70) De acordo com Becker (2001), Piaget busca explicar o processo de construção do conhecimento propondo uma relação de interação entre sujeito e objeto, sendo assim, para o autor não é possível explicar a origem do conhecimento detendo-se apenas no sujeito ou no objeto. Somente a partir da interação com o meio físico, social e cultural torna-se possível a construção do conhecimento. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 237 Emília Ferreiro é uma importante estudiosa, argentina seguidora das ideias de Piaget, a autora traz relevantes contribuições para o entendimento do processo de aquisição da leitura e escrita construída pela criança, posto isto, Ferreiro afirma: O que a autora nos oferece são ideias a partir das quais torna-se possível o que já era necessário: repensar a prática escolar da alfabetização. São reflexões – às vezes apaixonadas – sobre os resultados de suas pesquisas científicas (...) Tradicionalmente a investigação sobre as questões da alfabetização tem girado em torno de uma pergunta: “como se deve ensinar a ler e escrever?” A crença implícita era a de que o processo de alfabetização começava e acabava entre as quatro paredes da sala de aula e que a aplicação correta do método adequado garantia ao professor o controle do processo de alfabetização dos alunos. (FERREIRO, E. 1985, p. 5) Construtivismo não é um método e não é também técnica de ensino. Segundo Becker: Construtivismo significa isto: a ideia de que nada, a rigor, está pronto, acabado, e de que, especificamente, o conhecimento não é dado, em nenhuma instância, como algo terminado – é sempre um leque de possibilidades que podem ou não ser realizadas. É constituído pela interação do indivíduo com o meio físico e social, com o simbolismo humano, com o mundo das relações sociais; e se constitui por força de sua ação, e não por qualquer dotação prévia, na bagagem hereditária ou no meio, de tal modo que podemos afirmar que antes da ação não há psiquismo nem consciência e, muito menos, pensamento. (BECKER, 2001, p. 72) Segundo Becker, o construtivismo é, portanto, a elaboração do conhecimento; é uma teoria que permite a nós enquanto sujeitos, a interpretação do mundo. Na educação, o construtivismo se dá a partir da realidade vivenciada tanto por alunos quanto por professores, onde o aluno constrói seu conhecimento através da vivência de seu dia-a-dia. Para a realização do presente estudo, o trabalho da autora Veiga oferece grandes contribuições para um melhor entendimento de como se dá a construção e a implementação do Projeto Político Pedagógico nas escolas. Ao construirmos os projetos de nossas escolas, planejamos o que temos intenção de fazer, de realizar. Lançamo-nos para diante, com base no que temos, buscando o possível. É antever um futuro diferente do presente. O Projeto Político Pedagógico vai além de um simples agrupamento de planos de ensino e de atividades diversas. O projeto não é algo que é construído e em seguida arquivado ou encaminhado às autoridades educacionais como prova do cumprimento de tarefas burocráticas. Ele é construído e vivenciado em todos os momentos, por todos os envolvidos com o processo educativo da escola. O projeto busca um rumo, uma direção. É uma ação intencional, com um sentido explícito, com um compromisso definido coletivamente. (VEIGA, 1995, p. 12 e 13) Segundo Veiga (1995), o PPP, deve ser construído por todos os envolvidos com a escola (pais, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 238 alunos, funcionários e direção da escola), deve-se executar o que está proposto no projeto de forma coerente; definir o tipo de escola que projetam e o tipo de cidadão que planejam educar. A formação continuada dos profissionais da escola tem que fazer parte integrante do Projeto Político Pedagógico. Para Gadotti e Romão (2001), “O projeto pedagógico da escola é, por isso mesmo, sempre um processo inconcluso, uma etapa em direção a uma finalidade que permanece como horizonte da escola” e apoia-se: a) no desenvolvimento de uma consciência crítica; b) no envolvimento das pessoas: comunidade interna e externa à escola; c) na participação e na cooperação das várias esferas de governo; d) na autonomia, responsabilidade e criatividade como processo e como produto do projeto. (GADOTTI; ROMÃO, 2001, p. 36) De acordo com os autores acima citados, o PPP ampara-se no comprometimento dos pais, e de todos os integrantes do processo educativo, na conscientização crítica dos alunos, no incentivo dos governantes. Se o Estado, a sociedade civil e a sociedade econômica entenderem melhor qual é o papel da educação na formação para a cidadania e para o desenvolvimento nacional, encontrarão com mais facilidade os recursos para a construção de uma escola de qualidade para todos. O Brasil passou por um primeiro momento em que a educação estava entregue unicamente nas mãos da iniciativa confessional e privada, que ofereceu uma escola perfeitamente adequada às necessidades dos poucos que tinham oportunidade de freqüentá-la. Em seguida, houve uma forte intervenção do Estado que, pressionado pela população, expandiu as oportunidades educacionais, mas não considerou a necessidade de preparar as escolas para as consequências resultantes desse processo. Estamos vivendo hoje um momento de busca de síntese entre qualidade e quantidade. É a vez da sociedade. ( GADOTTI; ROMÃO, 2001, p. 44). De acordo com os autores citados acima, a união entre o Estado, a sociedade civil e a sociedade econômica possibilita uma chance maior na busca da qualidade educacional. Ambos com os mesmos objetivos e aparando as diferenças tornarão possíveis grandes conquistas e maiores oportunidades educacionais. Objetivos • • • • • Compreender a definição de PPP; Propor uma reflexão ao educador para repensar o seu papel enquanto mediador de uma aprendizagem que priorize a bagagem de conhecimento trazida por seus alunos; Proceder a um estudo comparativo entre Projeto Político Pedagógico e procedimentos pedagógicos na sala de aula; Reunir bibliografia que contribua para a pesquisa; Ler e analisar a bibliografia levantada e outras que possam surgir durante o andamento da pesquisa; I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 239 • • • Compreender o que os autores colocam sobre o tema; Verificar os pontos e conceitos de maior importância; Estabelecer relação entre teoria e implementação do Projeto Político Pedagógico. Metodologia Coleta de dados • análise documental do Projeto Político Pedagógico do ano de 2007 e 2008; • análise do Regimento Escolar; • análise dos procedimentos em sala de aula; • coleta e análise do material de dois alunos pertencentes a sala selecionada, para análise. Desenvolvimento Dando início ao trabalho de pesquisa, aqui proposto, foi analisado o PPP do ano de 2007, documento este, que norteia a prática pedagógica da instituição. Cabe ressaltar que a leitura do PPP 2007 se deu pelo fato de a escola não disponibilizar no momento a atual Proposta Política Pedagógica referente ao ano de 2008, justificando que o documento encontrava-se na Superintendência Regional de Ensino. Após aproximadamente trinta dias de estudo e levantamento de dados, a escola forneceu o PPP de 2008 solicitado no início do trabalho. De posse de todos os documentos exigidos, dentre eles o Regimento Escolar da instituição, foi decidido que os estudos aconteceriam às terças e quintas-feiras no período da manhã, quando seriam analisados e registrados em forma de anotações as principais informações para a elaboração da pesquisa. Paralelamente à análise documental, porém no período da tarde, dos mesmos dias acima citados, também foram realizadas observações em sala de aula, lembrando que a sala selecionada foi o terceiro ano das séries do Ensino Fundamental. As observações propiciaram o levantamento de algumas informações que antecedem a pesquisa, ou seja, durante o período destinado a coleta de dados em sala de aula, foram realizadas anotações que subsidiaram o trabalho. Tendo como referência os dados obtidos foi possível perceber uma “relação” existente entre a prática pedagógica da professora e a Proposta Pedagógica da Escola. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 240 Conclusões Até o presente momento, não é possível afirmar que a prática educativa implementada na sala de aula do terceiro ano das séries iniciais do Ensino Fundamental, contempla a proposta pedagógica da instituição. Portanto, a pesquisa aqui proposta parte da necessidade de aprofundar os estudos e análises, buscando identificar nas entrelinhas da ação educativa subsidiada pela Proposta Pedagógica da Escola a verdadeira complementação existente entre ambas. Referências FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1985. ______; TEBEROSKY, A. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. ______. Cultura Escrita e Educação. Porto Alegre: ArtMed, 2001. BECKER, F. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: ArtMed, 2001. VEIGA, I. P. A. Projeto Político-Pedagógico da Escola: Uma Construção Possível. Campinas: Papirus, 1995. PIAGET, P. Trad. Álvaro Cabral. 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 241 5. Aprendizagem Geometria: A Identificação de Padrões como Metodologia de Ensino FRANCO, Valdeni Soliani SOUZA, Simone de Universidade Estadual de Maringá [email protected] [email protected] Resumo Neste artigo problematizamos o ensino de geometria e apontamos a identificação de padrões como metodologia para a sua aprendizagem. Com este propósito trazemos a teoria de Piaget para traçar alguns problemas sobre a noção de geometria por crianças em idade escolar, que aponta que a intuição geométrica da criança é mais topológica do que euclidiana ou projetiva e isso se prolonga aproximadamente até os sete anos. O pressuposto piagetiano de que conhecer é agir sobre os objetos também se aplica aos conceitos topológicos, projetivos ou euclidianos. Nesse sentido, é necessária a ação da criança sobre o objeto para que esta perceba propriedades que são conservadas ou não. Na tentativa do professor assumir sua condição de promovedor de situações experimentais para facilitar a construção de noções geométricas é que passamos a refletir sobre a ressignificação do ensino de geometria sob a ótica de padrões. Neste sentido, apontamos na sequência uma proposta de implementação. Palavras-chave: Concepção epistemológica. Educação infantil. Padrões geométricos. Abstract In this article we problematize the teaching of geometry and point out the identification of patterns as a methodology for learning. With this purpose we bring the theory of Piaget in order to set out some problems regarding the notion of geometry in school-aged children, theory which indicates that the geometric intuition of the child is more topological than Euclidean or projective and that this extends itself approximately to up to seven years old. The Piagetian assumption that knowing is acting upon objects also applies to the topological, projective or Euclidian concepts. Accordingly, the action of the child upon the object is necessary, so that the child notices the properties that are preserved or not. Through the teacher’s attempt to take on his/her condition as promoter of experimental situations in order to facilitate the construction of geometric notions, we come to reflect on the resignification of the teaching of geometry under the light of patterns. In this sense, we point out a proposal for implementation. Keywords: Epistemological conception. Child education. Patterns geometry. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 242 Introdução Definimos padrões como propriedades de objetos que apresentam uma regularidade e repetição. Nosso objetivo é enfatizar que o ensino de geometria para crianças da Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, deve ser iniciado pela topologia ou geometria das distorções, conforme discussão de Piaget na obra: A construção do Espaço pela criança. Focalizar o ensino de geometria nas instituições educacionais e refletir sobre a construção de noções geométricas pelas crianças abre espaço para inúmeros questionamentos: como se dá a construção de noções geométricas pela criança? Conhecimentos matemático-geométricos são desenvolvidos somente via escolarização? O referencial da identificação de padrões pode contribuir, e de que forma, para (re) significar a abordagem dos conhecimentos geométricos pelos professores? Para Piaget o processo de se tornar humano é se tornar matemático uma vez que nossa razão constrói-se pela lógica da ação. Essa lógica permite-nos desenvolver o raciocínio lógico-matemático. Segundo Becker (1998, p. 22): “Para Piaget, ser humano implica ser matemático; tornar-se humano é tornar-se matemático, ou melhor, lógico-matemático no sentido qualitativo e quantitativo, portanto, matemático no sentido amplo”. Para compreendermos como este processo ocorre, Jean Piaget pensou as fases de desenvolvimento cognitivo em períodos pelas quais as crianças passam durante a construção de conhecimentos. Um bebê ao preferir um alimento a outro, um ambiente a outro, uma música a outra, está seriando e classificando mediante suas estruturas lógico-matemáticas. Classificar e seriar exigem estabelecer relações entre objetos, o que é a chave do processo de conhecer. A construção das noções de objeto permanente e de espaço possibilita à criança desprender-se, gradualmente, do plano perceptivo e atuar no campo das representações graças à função simbólica, particularmente, da fala. A organização da fala por uma criança entre dois e três anos é, na verdade, uma síntese de suas construções ou coordenações de ações do período sensório-motor. Quando começa a se expressar com significado (por gestos ou por meio da fala) há um encadeamento lógico na busca de sentido, o que caracteriza a utilização de algumas formas de representação como brinquedo, imitação, desenho, jogo. Assim, falar é a expressão de um exercício lógico-matemático essencial no qual cada criança constrói para si, independente de escolarização, um sistema de encaixes numa certa ordem e classe provenientes da coordenação de suas ações. Entendemos que no movimento de construção de conhecimentos pela criança há padrões internos que lhe permitem (re) organizar significados em uma troca constante com o meio social. Desta maneira, o I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 243 raciocínio inicial da criança que está atrelado ao real, próprio do nível operatório concreto, dos 07 aos 11/12 anos, cria estruturas internas que dão o suporte necessário para que, na adolescência, esta construa a capacidade de utilização de preposições e criação de significações ideais, próprias do raciocínio hipotético-dedutivo. A principal característica do período operatório formal, a partir de 11/12 anos, é a reversibilidade. De acordo com Piaget, trata-se de uma capacidade de executar uma mesma ação nos dois sentidos de percurso tendo, agora, a consciência cognitiva de que se trata da mesma ação. Na linguagem matemática, a reversibilidade nada mais é do que uma função bijetora. Ou seja, é a ideia de que alterado um elemento de um conjunto por meio de uma ação (aplicação da função) este retorna ao mesmo conjunto mediante a ação inversa (aplicação da função inversa). Se pensarmos em termos de uma estrutura algébrica, teremos então a existência de elemento inverso. Utilizando-se dessa conquista lógico-matemática, a mente humana desenvolveu um sistema para formular, reconhecer e classificar, por meio de padrões (como tamanho, forma etc. dos objetos com os quais desde crianças tivemos contato). É importante lembrar, que os padrões podem ser explorados tanto na geometria euclidiana, como nas geometrias não-euclidianas, começando pela topologia. A partir daí, a criança é capaz de construir conhecimentos da “geometria da visão” (geometria projetiva) e geometria euclidiana. Referencial Teórico Até o início do século XIX, não teríamos grandes dificuldades em definir o termo geometria, pois a raiz da palavra auxilia o entendimento do próprio termo e a única geometria possível, na época, era a euclidiana por definição. Com o advento das geometrias não-euclidianas, essa definição não mais caracteriza esta área da Matemática. Como poderíamos, então, definir geometria? Recorrendo ao dicionário, encontramos: “geometria é a ciência que estuda as propriedades de um conjunto de elementos que são invariantes sob determinados grupos de transformações”. Ser invariante sob uma transformação significa que após a aplicação de uma ação em um conjunto, o novo conjunto mantém intacto algum determinado padrão. Podemos exemplificar esta afirmação, utilizando a Topologia, a Geometria Projetiva e a Geometria Euclidiana. Na Topologia, ao considerarmos um anel de borracha, temos que ele possui um buraco. Ao I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 244 esticarmos este anel, o buraco não desaparece. Neste caso, a transformação foi a de esticar o anel (que é uma das transformações topológicas), e o padrão que se manteve foi o buraco. Para a Geometria Projetiva, imaginemos três objetos dispostos em linha reta, não importa a posição em que olhamos estes objetos, eles estarão sempre alinhados, a transformação aqui seria a mudança de ponto de vista (projetividade) e o padrão mantido foi o alinhamento dos objetos. No caso da Geometria Euclidiana, ao girarmos um objeto qualquer, sua forma não se altera, neste caso a transformação utilizada foi a rotação (que é uma das transformações euclidianas) e o padrão mantido foi a forma do objeto. Para ensinar geometria, neste sentido mais amplo, é necessário saber quais são as propriedades (da geometria em estudo) que devem ser preservadas após uma determinada ação sobre um objeto. Além disso, devemos saber reconhecer como as crianças exploram as formas e suas propriedades em suas vidas. De acordo com Piaget e Inhelder (1993), a intuição geométrica da criança é mais topológica do que euclidiana e isso se prolonga aproximadamente até os sete anos. Em geral, por desconhecimento daqueles que atuam nessa faixa etária os conceitos topológicos que são trabalhados não são percebidos pelos educadores como tais, provavelmente por defasagem em suas formações. Souza (2007) aponta que na escola há predominância do ensino empírico de figuras da geometria euclidiana, a saber, triângulo, círculo, quadrado, retângulo etc. O problema é que o ensino das figuras da geometria euclidiana é, muitas vezes, traduzido em erros conceituais. Este ensino é realizado por uma conduta metodológica equivocada em que os professores conduzem as crianças a associarem as noções geométricas aos elementos postos na natureza ou em construções feitas pelo próprio homem, como se bastasse a elas identificá-los, no ambiente exterior, através da percepção sensorial, visão e tato especialmente. Por que esta metodologia traduz-se em erros conceituais? Porque a criança apenas realiza a tarefa de associar elementos reais à teoria de Euclides, sem elaborar os processos de ressignificação dos objetos e seus padrões. Se levarmos em conta a discussão de Piaget feita na obra A Construção do Espaço, o ensino infantil poderia ser iniciado pela exploração de padrões da “Topologia”, ou seja, da “Geometria das Deformações” como também é conhecida. Essa maneira de denominar a topologia nos indica o que devemos observar após uma deformação no objeto. O sentido de deformação topológico é o de esticar ou de encolher o objeto como se este fosse de borracha. Conceitos topológicos tais como, vizinhança (perto ou longe); interior, exterior ou fronteira I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 245 (dentro, fora ou divisa); conexo ou desconexo (ligados ou separados); aberto ou fechado etc. podem ser trabalhados como noções geométricas que após deformações, seus padrões (vizinhança, interior, conexidade etc.) permanecem inalterados. Isto pode ser feito, utilizando massa de modelar, bexigas, elásticos etc. O pressuposto piagetiano de que conhecer é agir sobre os objetos também se aplica aos conceitos topológicos, projetivos ou euclidianos. Nesse sentido, é necessária a ação da criança sobre o objeto para que esta perceba propriedades que são conservadas ou não. Um exemplo desta ação da criança para a aprendizagem da geometria projetiva, é oferecer a ela a oportunidade de observar um objeto, de variados ângulos, mantendo a posição da criança e mudando a posição do objeto e, mudando a posição da criança, mas deixando o objeto imóvel. A partir do momento em que as crianças reconhecem que as formas dos objetos dependem do ponto de vista do observador, inicia-se a estrutura projetiva. De acordo com o depoimento do professor de química Henrique Toma58, “na ciência, a repetição significa um padrão. Nós inferimos muitas conclusões justamente pelo comportamento repetitivo dos eventos. Toda a sequência de padrões na realidade pode ser descrita matematicamente” A geometria euclidiana requer que as crianças construam a ideia de que o espaço é constituído de objetos móveis e que a própria criança também é um destes objetos. Assim, a movimentação de um objeto sob esta perspectiva pressupõe que as formas, ângulos e distâncias se conservem. Objetivos Refletir teoricamente sobre a construção de noções geométricas pelas crianças pautados pelos referenciais de Jean Piaget; Propor uma implementação de ensino sob a ótica dos padrões. Metodologia A metodologia adotada foi a pesquisa exploratória, que se apoia em análises documentais e bibliográficas, buscando sistematizar o assunto desenvolvido por outros autores de forma a atingir os objetivos propostos. 58 A ORDEM e o Caos. São Paulo, n.2. Coleção Arte e Matemática. Cultura Marcas, Fundação Padre Anchieta, s.d (DVD). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 246 Desenvolvimento Apresentamos aqui uma proposta de metodologia de ensino de geometria, pela identificação de padrões, ligando-a à teoria de de Jean Piaget quanto ao desenvolvimento de espaço. Definiremos também a noção de padrão. Pode-se definir padrões de um objeto como as suas regularidades, as igualdades encontradas em objetos naturais ou criadas pelos homens, que estabelecem uma ordem, organizam fenômenos e ideias. Segundo a narração de Luiz Barco, no vídeo a ”Ordem e o Caos”, O psicólogo busca padrões de comportamento. O sociólogo, o antropólogo, olha a sociedade e vê padrões de cultura. E o matemático? Principalmente quando faz geometria, ele estabelece padrões. E a pintura, a escultura, a poesia? Nada mais são do que padrões sendo desenvolvidos ou observados para nos apresentar a natureza aos olhos do matemático e do artista. Todos analisando padrões. Nesse sentido, padrão, para nós, é o “padrão que liga”, que impõe uma ordem em um caos e estabelece relações entre vários objetos. Ou seja, são padrões comuns entre eles. Para o ensino de geometria é importante compreender que durante a construção das estruturas elementares de pensamento, as crianças, desde o nascimento, agem sobre as coisas que as rodeiam e classificam-nas, estabelecem relações. Estas relações de início apoiam-se em características físicas dos objetos – objetos duros, lisos, vermelhos etc – para gradualmente evoluírem para critérios abstratos (FÁVERO, 2005). Importante destacar que propor atividades de identificação de padrões pode parecer distante das práticas escolares e sugerir a exploração de conceitos abstratos além das possibilidades infantis, o que é um erro. O reconhecimento de regularidades pelas crianças pode apoiar-se na observação de obras de arte, em artesanatos, na construção de mosaicos, nas formas dos elementos da natureza – folhas, flores, casas de abelhas, teias de aranha, dentre outros – além de abrir espaço para as próprias construções das crianças que ao utilizarem modelos em papel, blocos de montar, peças de madeira, desenhos, criam cenários e objetos dentro de uma ordem que permite ao observador identificar o que foi representado nestas construções espontâneas. E essas construções trazem em si padrões. O propósito é a professora compreender que as atividades de observação das formas dos objetos e suas comparações podem abrir a possibilidade de identificação de propriedades geométricas que, relacionadas, colaboram para a organização de elementos em categorias/padrões, exercitando um tipo de pensamento matemático não encontrado no material. Ou seja, as ações infantis individuais e internas organizam os conhecimentos geométricos segundo padrões de desenvolvimento que devem ser I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 247 considerados pelas professoras. Ressignificar o ensino de geometria traz embutido questionamentos sobre os referenciais teóricos e práticos, utilizados pelos professores no decorrer dos trabalhos matemáticos em sala de aula. Primeiramente, não se pode dissociar ensino de aprendizagem. Na verdade, não existe ensino, sem aprendizagem, embora a recíproca não seja verdadeira. Para a teoria construtivista, a fonte da aprendizagem está na ação do sujeito, ou seja, “o indivíduo aprende por força das ações que ele mesmo pratica: ações que buscam êxito e ações que, a partir do êxito obtido, buscam a verdade ao apropriar-se das ações que obtiveram êxito” (BECKER, 2003, p.14). Entender que as crianças aprendem em função de suas próprias ações sobre o objeto do conhecimento supera a ideia de que as descobertas infantis são frutos de injeções de conhecimento aplicados pelo professor, como querem os empiristas. E combate o pressuposto de que o conhecimento é como uma semente interna que desabrocha durante a maturação infantil, herança inata em que ao docente cabe fornecer estímulos ao seu florescimento. O processo de construção do conhecimento construtivista é uma via de mão dupla em que não se despreza a influência genética e as contribuições do meio físico e social, mas vai além e os reconhece como coadjuvantes. A criança que aprende ao agir sobre os objetos transforma-os e também se transforma. Na relação professor e aluno isto é identificado quando as crianças e os docentes aprendem juntos em patamares diferenciados, porém ambos são modificados durante a relação que estabelecem. Desta forma não há processo estático de ensino e aprendizagem. Há o dinâmico, o inventivo, o novo. Outro ponto a considerar é que apesar de a importância da geometria ser reconhecida pelos guias curriculares oficiais e por discursos, sabe-se que os professores não abordam a geometria com a mesma relevância que os conhecimentos numéricos (GÁLVEZ, 1996; PAVANELLO, 2004; FONSECA et al., 2005; PANIZZA, 2006). A situação agrava-se ao considerarmos que, segundo Ochi et al. (1992, p.9), “há professores que julgam que alguma geometria é necessária, mas parece que ninguém determinou exatamente quais os conceitos e aptidões devem ser desenvolvidos”. Acrescenta-se à problemática de o quê ensinar, o fato de que “um professor que enquanto aluno não aprendeu geometria, certamente desenvolverá uma atitude negativa em relação a ela e se sentirá inseguro para abordá-la em sala de aula” (PAVANELLO, 2004, p.129). Diante de um panorama gerador de incertezas quanto aos conteúdos a serem trabalhados, aos I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 248 conhecimentos necessários ao professor que organiza o ensino, as noções que a exploração geométrica deveria proporcionar aos alunos e alunas, perguntamos: O professor recorre a quê ao abordar os conhecimentos geométricos? Como uma das possíveis respostas a este questionamento, Souza (2007) alude à utilização de referências pessoais dos professores na seleção dos conhecimentos que acreditam ser da área geométrica, à dependência prática do livro didático e de listas de exercícios e atividades recicladas em curso de capacitação docente. Estes fundamentos com respaldo de condutas empiristas, a nosso entender, sacrificam ou até destroem a geometria enquanto conhecimento privilegiado que abre espaço para desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático necessário a todas as áreas. Neste contexto propomos que inicialmente os educadores considerem a evolução espontânea das noções geométricas nas crianças, o que implica admitir que “o espaço infantil, cuja natureza essencial é ativa e operatória, começa por intuições topológicas elementares, bem antes de tornar-se simultaneamente projetivo e euclidiano” (PIAGET e INHELDER, 1993, p.12). O que requer adiar a exploração das figuras elementares da geometria euclidiana para dar lugar a exploração dos objetos enquanto formas tridimensionais. Cabe acrescentar que as crianças até os sete anos de idade evoluem do plano sensório-motor, com predomínio de ações práticas na intenção de satisfazer uma necessidade imediata, para o operatório concreto em que o papel da representação através da linguagem torna-se um marco importante para compreensão do processo de estruturação cognitiva que vai-se desenvolvendo no decorrer deste período. Significa compreender que as crianças possuem um pensamento intuitivo possível de representações deformadas, contrárias as conceitualizações universais e definições. Assim, considerar os padrões geométricos como fundamentos auxiliares a reorganização das práticas educativas, introduz docentes e discentes num universo de possibilidades exploratórias de formas geométricas que, inicialmente, propõe variadas experiências com os objetos em que as crianças agem através de classificações, comparações, seriações, sequenciações e estabelecem relações que podem ser verbalizadas, para futuramente serem conceitualizadas. Um exemplo do processo de ressignificação do ensino de noções geométricas através da identificação de padrões pode ser observado no discurso de uma professora participante das pesquisas de Souza (2007, p 54), ao relatar a construção de uma maquete de circo utilizando-se de três tamanhos diferentes de paralelepípedos. Então como nós podemos montar essa arquibancada? Qual a melhor forma? Então a I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 249 exploração desse material. Tem criança que colocou em pé... É irrelevante, não está errado. A forma como ele vê a arquibancada é diferente da minha. Aí eles chegam em um consenso porque eles já foram no circo, entendeu? Já viram, mas, enfim, a exploração permite que ele coloque uma assim, outra aqui, outra cá, é exploração livre. Este relato une o processo de construção infantil do conhecimento geométrico e a identificação de padrões, visto que, mesmo as crianças já tendo visto uma arquibancada de circo, para representá-la é necessário a reconstrução do conceito de arquibancada, tendo como suporte inicial a ação sobre o material. E este material possui determinadas características – tamanho, forma, espessura – que permitirão a organização, segundo a forma padrão da arquibancada. Em outras palavras, a partir do suporte concreto do material as crianças identificam as peculiaridades das peças e as organizam, segundo um padrão de relações, que permite dizer se tratar de uma arquibancada de circo. É nesta ação/reconstrução que a aprendizagem se ressignifica, deixa de ser algo que o professor imprime na criança para tornar-se algo que o professor auxiliou a criança a construir, individualmente e internamente. Cabe ressaltar a observação de Pavanello (2004, p.136), segundo a qual “as regularidades e padrões só são reconhecidos quando comparados com o irregular, com o que foge aos padrões, o que em geral não é feito na escola”. Desta forma, cabe aos professores selecionar objetos variados para que as comparações incidam sobre as igualdades e as diferenças entre eles, o que tornará verdadeiramente significativa a identificação das regularidades. É relevante exemplificar que uma outra professora, também participante das pesquisas de Souza (2007), ao relatar sua experiência explorando o material Geoplano com as crianças, propõe – não de forma consciente – que observem os padrões necessários para que obtenham a representação de um barco. “(...) todas as crianças tinham a mesma quantidade de elásticos, então o aluno X fazia um desenho no Geoplano e todos os outros amigos teriam que fazer o mesmo desenho. E eles iam buscar se estava idêntico ou se estava parecido”. Atividades desta natureza, que proporcionam a participação dos alunos na identificação das regularidades e observação do “parecido” ou irregular de acordo com o que foi proposto, são fundamentais ao conhecimento, não só geométrico, mas também de outras áreas. Sua importância pode ser verificada no reconhecimento dos padrões do desenvolvimento infantil, delineados pela epistemologia construtivista. De acordo com Fávero (2005, p.108) ao referir-se às estruturas elementares construídas pelas crianças, pesquisadas por Piaget, ressalta: Desde que nascemos, ao agirmos sobre as coisas ao nosso redor, classificamos essas coisas, relacionando-as, combinando-as segundo um critério qualquer, seja no início, dentro de um critério dado pelas suas características físicas (coisas quadradas, duras, lisas, vermelhas, etc), como depois, dentro de um critério abstrato (atitudes democráticas, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 250 comportamento ético, etc.). Conclusões Estimular a observação de regularidades pelas crianças, reveste suas posteriores representações – linguagem, desenho, maquetes, dentre outras – de uma qualidade singular, própria da geometria e que, por sua vez, prepara para um tipo de pensamento, o científico, que será explorado nos demais níveis de ensino. De acordo com o depoimento do professor de química Henrique Toma59, “na ciência, a repetição significa um padrão. Nós inferimos muitas conclusões justamente pelo comportamento repetitivo dos eventos. Toda a sequência de padrões na realidade pode ser descrita matematicamente”. Assim proporcionar a observação de regularidade desde a educação infantil contribuirá para o aperfeiçoamento do olhar para os objetos, o que, desenvolverá um mecanismo de pensamento que, inicialmente, é intuitivo, mas que, gradualmente, aproxima-se do matemático. Cristaliza-se por tudo isso, a relevância dos padrões para o conhecimento geométrico infantil como necessidade dos professores identificarem as regularidades que permeiam as atividades propostas, orientando conscientemente as crianças ao reconhecimento dos mesmos, logicamente dentro das possibilidades de desenvolvimento de cada faixa etária. Referências A ORDEM e o CAOS. Coleção Arte e Matemática. n.2. 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Ainda que não muito bem compreendido o significado deste conceito, o envolvimento poderia ser conseguido através de atividades onde o sujeito vivenciasse o conflito cognitivo proposto por Piaget ou a Insatisfação com suas idéias diante de uma experiência crucial, proposto por Posner, em seu Modelo de Mudança Conceitual. Entretanto, diversas pesquisas nas últimas décadas têm captado um “ruído de fundo” relativo a déficits motivacionais provocados por estas estratégias. Portanto, buscando entender estes resultados anômalos e contribuir para o debate em torno da construção do conceito acima, este trabalho apresenta a Teoria de Metas de Realização, oriunda do grande manancial teórico ligado à psicologia da educação, cujo objetivo é entender o comportamento, as metas e as crenças que os alunos apresentam no momento em que abordam as tarefas escolares. Palavras-chave: Ensino de Ciências, Mudança Conceitual, Conflito Cognitivo, Motivação. Abstract The teaching of science related to socio-constructivists has proposed as one of its basic premises the “active involvement of students” in the learning process. Although not very well understood the significance of this concept, the involvement could be achieved through activities where the subject perceptions the cognitive conflict proposed by Piaget or dissatisfaction with their ideas front a crucial experiment, proposed by Posner, in his Model of Change Conceptual. However, several search in recent decades has captured a "background noise" relation the motivational deficits produced by these strategies. Therefore, seeking understanding these anomalous results and contribute to the debate surrounding the construction of the concept above, this work presents Achievement Goal Theory, from of great theoretical source connected to the psychology of education, whose objective is to understand the behavior, the goals and beliefs that students have when they approach the school tasks. Keywords: Science Education. Conceptual Change. Cognitive Conflict. Motivation. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 253 A motivação intrínseca: o grande sonho das propostas sócio-construtivistas Antes de apresentarmos a Teoria de Metas de Realização e seus principais constructos, optaremos por percorrer as teorias sócio-construtivistas envolvidas no ensino de ciências, procurando a ideia de motivação nos escritos de dois de seus maiores expoentes - Piaget e Vygotski - e no modelo de mudança conceitual proposto por Posner e Strike, por acreditarmos que a motivação intrínseca é um dos grandes sonhos e um dos objetivos envolvidos nessas teorias. O modelo construtivista proposto para o desenvolvimento da inteligência - evolução dos estágios, até a lógica do adulto - baseia-se na relação que o organismo mantém com o ambiente e a constante necessidade de se adaptar. Este mecanismo adaptativo apresenta dois processos distintos e complementares: a assimilação e a acomodação. A assimilação estaria envolvida na incorporação de novas informações à estrutura mental e a acomodação seria o mecanismo necessário para promover mudanças nas estruturas cognitivas. Para Piaget, segundo Palangana (2001), o sujeito está adaptado, ou seja, em equilíbrio, quando os dois processos estão em harmonia, ocorrendo simultaneamente tanto a assimilação quanto a acomodação. Por outro lado, o desequilíbrio seria provocado quando o sujeito, passando por uma experiência em que sua lógica não pudesse dar conta da realidade, ele se veria obrigado a reformular suas estruturas cognitivas para a apreensão do novo. Este mecanismo, responsável por produzir uma mudança em direção a um estado superior e mais complexo de equilíbrio, foi denominado de “equilibração majorante”. Portanto, a mola propulsora do desenvolvimento, ou melhor, da equilibração majorante modificação das estruturas cognitivas sempre para melhor, em extensão e complexidade - está intrinsecamente ligada ao desequilíbrio: [...] numa perspectiva de equilibração, deve procurar-se nos desequilíbrios uma das fontes de progresso no desenvolvimento de conhecimentos, pois só os desequilíbrios obrigam um sujeito a ultrapassar o seu estado atual e procurar seja o que for em direções novas [...] (grifo nosso) (PIAGET, 1977, p. 23). Em razão do grifado acima, é o desequilíbrio que produz a motivação intrínseca necessária para o sujeito buscar o conhecimento capaz de promover o retorno à sua condição de equilíbrio anterior. É a urgência em restabelecer sua capacidade de organizar a experiência, de interpretá-la, que alimenta os esforços em direção a uma equilibração de melhor qualidade e alcance. Isto posto, apenas o sujeito pode atuar com a intenção de restabelecer sua compreensão. Por conseguinte, nesse modelo, o sujeito epistêmico piagetiano se desenvolve na atuação direta com o objeto ou com o meio em que está inserido. Em vista desta atuação, se porventura o sujeito se I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 254 desequilibra e este desequilíbrio é capaz de promover modificações nas estruturas cognitivas para dar conta do novo; logo, os desequilíbrios são fundamentais para o conhecimento, sobretudo o científico: “[...] estes desequilíbrios o que constitui o motor da investigação, porque, sem eles, o conhecimento manter-se-ia estático [...]” (PIAGET, 1977, p. 24). As diferentes fases da vida e a demanda social Em Vygotsky o pensamento também se desenvolve e este desenvolvimento está intrinsecamente ligado às interações sociais. Em sua concepção, o homem não tem acesso direto aos objetos, mas um acesso mediado pela cultura, mais especificamente, pela linguagem: um dos atributos básicos do sistema simbólico. Nessa perspectiva, no contato com a cultura, o indivíduo desenvolve os sistemas simbólicos de representação da realidade e é esse processo que possibilita ao indivíduo internalizar formas socialmente aceitas de comportamento. Por conseguinte, o que antes era externo, graças às relações interpessoais, transforma-se em atividades internas, ou seja, intrapsicológicas. Portanto, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores representadas pela operação com sistemas simbólicos, é construído de fora para dentro do indivíduo. Para Vygotsky existem dois níveis de desenvolvimento: nível real ou efetivo e o nível potencial. O primeiro refere-se ao que a criança sabe, ou seja, os problemas que esta pode resolver sozinha. O segundo diz respeito ao desenvolvimento potencial que a criança pode vir a adquirir. Este nível pode ser representado pelos problemas que a criança não consegue resolver. Entre estes dois níveis, existe um espaço chamado de zona de desenvolvimento proximal. Em suma, é neste lugar, onde é possível a atuação do outro, mas não um outro qualquer, um outro mais capaz podendo ser representado por uma criança mais experiente ou pelo adulto. Por conseguinte, o outro tem a tarefa fundamental de transformar o desenvolvimento potencial em real, através da internalização de uma forma mais elaborada de cognição. Conclui-se, então, que é na interação social que o indivíduo se modifica, ou seja, desenvolve suas capacidades cognitivas. No pensamento de Vygotsky, o motivo também está ligado às necessidades que devem ser satisfeitas pelo indivíduo, ou seja, cada fase da vida reserva-nos necessidades específicas, entendidas como tudo aquilo que nos motiva para a ação. A necessidade de víveres impulsiona o adulto ao trabalho. A vontade de participar da vida adulta exige do adolescente o estudo. O desejo de atender uma necessidade imediata que não pode ser satisfeita, como, por exemplo, dirigir um carro, encontra no brinquedo a possibilidade de satisfação desse desejo pela criança. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 255 Assim, o sujeito epistemológico vygotskyano também atua, mas sua atuação não está diretamente ligada ao objeto ou ao meio em que está inserido. O acesso ao objeto é um caminho mediado pelo sistema simbólico (linguagem), pois surge através do discurso de outros sujeitos sobre o objeto: logo, este discurso é datado historicamente. Portanto, é a interação social o mecanismo responsável pela internalização de formas cognitivas mais desenvolvidas por parte do indivíduo. O Modelo de Mudança Conceitual (M.M.C.): a insatisfação como motivador intrínseco No ano de 1982, Posner e colaboradores propuseram o Modelo de Mudança Conceitual (M. M. C). O modelo foi construído levando-se em consideração as ideias desenvolvidas por Kuhn, Lakatos e Toulmin, filósofos da ciência, preocupados em entender as mudanças na evolução do pensamento científico. Os idealizadores do modelo propuseram uma analogia entre as mudanças produzidas pela comunidade cientifica em seu pensamento e as mudanças que os alunos deveriam realizar no tocante às suas concepções espontâneas, quando em processo de aprendizagem nas aulas de ciência. Portanto, para que ocorra a acomodação é necessário atender a quatro conceitos básicos: 1. Insatisfação: o aluno deve experimentar um sentimento de insatisfação em relação aos seus conhecimentos espontâneos: portanto, deve vivenciar anomalias provocadas por suas crenças. 2. Inteligibilidade: o novo conceito deve fazer sentido para que o aluno possa aderir à nova concepção. 3. Plausibilidade: o novo conceito deve ser aceitável, ou seja, ligando-se a outras idéias do indivíduo. 4. Fertilidade: a nova concepção deve conduzir a novas descobertas, mostrando seu potencial de ser estendida a novas áreas; então, a concepção ganhará em estabilidade. Além desses quatro, adotou-se mais um, denominado de ecologia conceitual, por Toulmin. Este conceito se refere a conhecimentos, a compromissos epistemológicos e a crenças metafísicas que o indivíduo possui. Naturalmente, a ecologia conceitual se constitui uma extensa e profunda rede de significados e estes podem influenciar fortemente a inteligibilidade e a plausibilidade de um novo conceito. Todavia, acreditava-se que, satisfazendo as quatro condições lógicas, o conjunto de conhecimentos que o aluno possuía deveria mudar radicalmente, ocorrendo a acomodação de uma nova concepção ao universo conceitual do aluno. Crise motivacional e afetiva provocadas pelas propostas sócio-construtivistas O M. M. C., graças à sua racionalidade, gozou de um período de ampla aceitação, sendo alvo de intensa pesquisa. Não obstante, não tardou em perder seu caráter heurístico, recebendo diversas e pesadas críticas, principalmente no tocante à simplificação com que se referia ao intrincado processo de I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 256 aprendizagem escolar envolvido nas aulas de ciências (AGUIAR, 2006). Até mesmo seus idealizadores - Strike e Posner, em 1992 - propuseram diversas modificações e apontaram como falhas as poucas considerações sobre a ecologia conceitual do aluno. Principalmente, no tocante aos motivos e às metas que os aprendizes têm em mente querer alcançar e as questões afetivas presentes no cotidiano escolar (VILLANI e CABRAL, obra citada). Em vez de se envolverem, muitos alunos apresentam comportamentos, reclamações ou preocupações que escapam ao escopo estritamente cognitivo: Muitas vezes, o aluno ignora o fracasso (refere-se ao fato de que realiza a experiência e não percebe que o resultado está em desacordo com suas crenças); Fica perplexo e guarda a dúvida; “Arranja explicações ad-hoc” (CHINN e BREWER, apud VILLANI e CABRAL, 1997, p. 4); “Quer agradar o professor” (THORLEY e STOFELL apud VILLANI e CABRAL, 1997, p. 4, 1997); “Busca obter notas boas” (PINTRICH et al, 1993); “Identificar-se com uma figura famosa” (PINTRICH et al, Obra citada); “Pretende ser reconhecido pelos colegas” (PINTRICH et al, Obra citada); “-Lá vem esse professor com as experiências dele..., caramba!!!... Eu achava que sabia alguma coisa, agora não sei mais de nada” (relacionada à minha prática em sala de aula). “-Ah!! Professor, tem que pensar!!”(BAIRD et al apud VILLANI, p.7, 2001) “-Se o senhor já sabe, porque não dá logo a resposta!!!” (relacionada à minha prática em sala de aula). Gunstone (1992, p.133) afirma que não só as concepções espontâneas impactam o processo de aprender os novos conceitos. Sobretudo, as concepções sobre ensino-aprendizagem que os alunos carregam também podem se constituir verdadeiras barreiras ao processo, podendo vir a inviabilizá-lo, conforme trecho abaixo. [...] De Jong, um professor de física de uma escola secundária vitoriana, explorando o I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 257 impacto da reconstrução de seu método de ensino em torno de princípios construtivistas, encontrou um número considerável de estudantes que acreditam que, para aprender física, é necessário possuir dois atributos: ser muito inteligente e possuir boa memória. Estes atributos foram vistos como coisas que você tem ou não tem; nada poderia ser feito para adquiri-los (DE JONG e GUNSTONE, 1988). 60 Com tantas críticas, o conceito de insatisfação, ou seja, a sensação de fracasso que o aluno deve vivenciar como sendo algo que justifique sua motivação para a procura do novo, apontado como fundamental pelos seus autores, perdeu o caráter de condição prévia em relação às outras três (ROWEL apud VILLANI e CABRAL, obra citada). Não obstante, vários pesquisadores saíram em defesa do conflito cognitivo (GIL PEREZ, 1999). […] Não se trata, como se pode ver de eliminar os conflitos cognitivos, mas evitar que adquiram o caráter de uma confrontação entre as ideias próprias (incorretas) e os conhecimentos científicos (externos). A este respeito Solomon (1991) argumenta que «ao explicitar um conjunto de opiniões particulares, o professor não pode simplesmente rechaçá-las por não se ajustarem à teoria vigente. Desta maneira não é possível um diálogo aberto». 61 Em vista do escrito acima, imaginemos um aluno que acredite não possuir inteligência suficiente para aprender física. Seria natural supor que este aluno, ao vivenciar a insatisfação ou o conflito cognitivo proposto pelo modelo, reafirme sua condição de inferioridade e isto venha a impactar em sua motivação Devido a forte reação que os alunos apresentam no momento em que vivenciam a insatisfação ou o conflito cognitivo alguns dos cânones básicos do modelo começaram a ser questionados. Mortimer (1996), criticou a conclusão simplista de certas pesquisas ao apontarem o conflito como o principal responsável pelo baixo rendimento dos educandos: […] Outro tipo de problema nesses tipos de estratégia de ensino é a dificuldade que os alunos enfrentam em reconhecer e vivenciar conflitos. Isso poderia explicar a improdutividade de certas discussões em grupo na sala de aula, [...] […] A aplicação dessas estratégias em sala de aula tem resultado numa relação de custobenefício altamente desfavorável. Gasta-se muito tempo com poucos conceitos, e muitas vezes esse processo não resulta na construção de conceitos científicos, mas na reafirmação do pensamento de senso-comum. Estas constatações parecem depor contrariamente à existência do sujeito epistemológico piagetiano e, por conseguinte, do conceito de equilibração majorante como mecanismo de 60 61 Tradução do autor: Texto original: De Jong, a Victorian secondary school physics teacher, in a exploration of the impact reconstructing his teaching around constructivist principles, found a number of his students believing that successful learning of physics required two attributes: High intelligence and a good memory. These attributes were seen as things you either had or did not have; nothing could be done to acquire them (DE JONG e GUNSTONE, 1988). Tradução do autor: Texto original: “No se trata, como puede verse de eliminar los conflictos cognoscitivos, sino de evitar que adquieram el caráter de una confrontación entre las ideas proprias (incorrectas) y los conocimientos científicos (externos). A este respecto Solomon (1991) argumenta que «tras impulsar la expresión de un conjunto de opiniones particulares, el profesor no puede simplemente rechazar las que no se ajustan a la teoria vigente. De ese modo dejaría de ser posible um diálogo abierto».” I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 258 desenvolvimentos das estruturas cognitivas do indivíduo. Afinal, se é tão pouco natural que alguns alunos possam suportar o desequilíbrio cognitivo: como chegaram ao desenvolvimento cognitivo atual? Eles não viveram estes conflitos em seu cotidiano? Cabe aqui uma ressalva: não esperamos que todo desequilíbrio provoque mudança nas estruturas cognitivas, pois mesmo Piaget nos adverte sobre as equilibrações compensatórias que muitas vezes não levam os alunos a uma equilibração majorante. Nem, tampouco, acreditamos que toda discussão leve o aluno a re-significar seus conceitos espontâneos. Todavia, o que nos chama atenção é que estes mecanismos deveriam ocorrer naturalmente na vida do indivíduo; logo, não deveriam provocar tamanha estranheza por parte dos alunos. Portanto, parece que devemos procurar entender o que acontece dentro da sala de aula no tocante à interação social que tem tornado estes importantes instrumentos de ensino de ciências ineficazes para alguns alunos. Enfim, independente das especificidades teóricas dos constructos apresentados até aqui, todos nos levam à motivação intrínseca pressupondo um envolvimento ativo do aprendiz. Todavia, há um sem número de pesquisas que apontam as metodologias sócio-construtivistas responsáveis por produzir junto aos alunos déficits motivacionais ou reações afetivas indesejadas. Apresentaremos a seguir a psicologia educacional ligada às metas de realização dos estudantes. Em nosso entendimento, este referencial teórico permiti-nos entender a reação motivacional captada por diversas pesquisas da área. As Metas de Realização e o Sujeito Aprendente A psicologia da educação trabalha com uma teoria moderna denominada: Teoria de Metas de Realização. Esta teoria considera como premissa básica a ideia de que os mais poderosos motivadores humanos estão ligados às metas ou os propósitos que os sujeitos tenham em mente realizar. Ligados estritamente à sala de aula, estes podem ser: desenvolver competência, parecer inteligente ou evitar o fracasso. Naturalmente, um aluno que apresente sua meta orientada a evitar o fracasso pode ter seu comportamento de realização, no momento em que aborda uma tarefa, afetado de forma negativa. Portanto, segundo Boruchovitch e Bzuneck (obra citada, p. 59), “[...] o referencial teórico é considerado sócio-cognitivista, por acolher tanto elementos originários do cognitivismo como por considerar relevantes as influências de natureza sócio-ambiental em seu desenvolvimento, manutenção ou mudança”. Existem praticamente duas metas qualitativamente diferentes que orientam o comportamento das I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 259 pessoas quando pretendem realizar atividades escolares são: a meta aprender e a meta performance. No tocante à primeira, a pessoa age querendo obter conhecimentos para aumentar seu grau de competência. Já na segunda, o foco é o julgamento do outro. Dependendo da qualidade deste julgamento, esta meta se subdivide em duas: meta performance-aproximação, onde a preocupação é parecer inteligente para professores e colegas e meta performance-evitação, no qual o comportamento é orientado a não parecer incapaz para os demais membros da classe. A meta aprender está relacionada a modos típicos de pensar e as reações afetivas do comportamento de um aluno motivado intrinsecamente, entretanto não se trata do mesmo constructo. Afinal, o aluno assim motivado age pela escolha autodeterminada da ação, pois pretende responder a necessidades internas, podendo ser estas subjetivas ou não. Enquanto que na meta aprender o aluno pode se empenhar em realizar uma lista de exercícios de Cálculo - IV, não porque ache interessante, mas por saber o quanto é importante para sua formação. Segundo Boruchovitch e Bzuneck (AMES; ANDERMAN e MAEHR apud, obra citada, p. 61), os alunos assim orientados almejam os seguintes objetivos: a busca pelo sucesso na realização de tarefas escolares têm como objetivo principal obterem maior conhecimento e habilidades. Agem procurando dominar sempre mais conteúdos, com inovação e criatividade. Consequentemente, o grau de exigência presente nas tarefas escolares é entendido como capaz de fazê-los crescerem intelectualmente. Estes alunos têm a convicção ou crença de que o êxito conseguido em suas tarefas está intrinsecamente ligado ao seu esforço e empenho. Estes atributos são internos e ligados ao investimento pessoal e estritamente sob seu controle: logo, o sucesso após esforço e empenho produz um sentimento de orgulho e realização reforçando uma auto-imagem positiva. Não raro, muitos alunos se utilizar de estratégias cognitivas e metacognitivas de aprendizagem que conduzam a esse resultado. Os mesmos não se incomodam com erros ou fracassos, pois estes são encarados como inerentes ao processo de aprendizagem. Sua ocorrência é até benéfica, pois propicia a adoção de novas estratégias com as quais se possibilite dar conta dos desafios. Na meta performance-aproximação o comportamento do aluno está orientado a parecer inteligente para professores e colegas; portanto, age preocupado em tirar boas notas. Logo, sente-se bem quando realiza atividades em que possa enaltecer sua inteligência. Busca agradar o professor, procurando responder aquilo que acredita que outro gostaria de ouvir, muitas vezes, seleciona do discurso do professor as palavras que este utiliza, sem o compromisso de entendê-las, apenas para chamar atenção para si mesmo. Quando lhe é perguntado algo, procura responder mais rápido que os outros, mesmo que não tenha refletido sobre a pergunta. Por fim, sente-se inteligente e confiante. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 260 Uma característica presente em seu comportamento é o baixo esforço, pois crê que aprender é fácil, não necessitando de muito empenho. Esta ausência de esforço, muitas vezes, atrapalha seu aprendizado quando o conteúdo exige um maior aprofundamento. Como se acha muito inteligente para aprender, acredita que basta prestar atenção à fala do professor. Não obstante, o aluno assim orientado apresenta maior persistência e esforço em relação aos alunos orientados a meta performance-evitação, a qual apresentaremos a seguir. Com a meta performance-evitação, o aluno também esta preocupado com o julgamento do outro. Entretanto, em aspectos estritamente negativos, caracterizando-se pelo medo de parecer incapaz ao professor e aos colegas. Antes de começar, teme o fracasso, pois se acha incapaz de aprender, demonstrando baixa resistência e pouco esforço. Apresenta, ainda, tendência à ansiedade o que prejudica tanto a motivação quanto o desempenho por notas. Quando questionado, mesmo sabendo a resposta, prefere calar-se com medo de errar. Em atividades em grupo, muitas vezes, prefere não emitir opinião, esperando que os outros respondam por ele. Apresenta verdadeira ojeriza por provas, questionários e qualquer outro tipo de situação em que acredite que possam vir a saber sobre sua suposta incapacidade. Em algumas situações, apresenta-se alienado do processo de aprender, caso não entenda um conceito, também não pergunta. Em relação à responsabilidade por seu insucesso, o professor pode até ter alguma parcela de culpa, mas no final sentese como único responsável, o que acaba por fortalecer uma auto-imagem bastante depreciativa. Devemos deixar bem claro que as metas de realização não podem ser encaradas como leis que determinam o comportamento dos alunos de forma mecânica. As mesmas devem ser encaradas como pressuposições ou crenças que os alunos carregam sobre sua possibilidade de realizar uma tarefa escolar. Portanto, sempre que iniciam uma tarefa escolar estes alunos tendem a adotar estratégias de realização como as descritas aqui. Por conseguinte, podemos admitir que um aluno inicialmente orientado à meta performanceevitação ao realizar uma tarefa em que vá gradativamente obtendo sucesso. Pode-se conjecturar que o mesmo apresentará acréscimos em sua motivação, podendo até se sentir valorizado por ter concluído a tarefa. Entretanto, o mesmo aluno, caso vivencie estratégias que produzam sensações de fracasso, poderá apresentar déficits motivacionais. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 261 O Conflito Cognitivo Herói ou Vilão? Apesar de nossa pesquisa não ter produzido junto aos alunos a sensação de insatisfação ou o conflito cognitivo em relação aos conceitos espontâneos dos sujeitos. Ainda assim, acreditamos que podemos conjecturar sobre este tema amparados nos referenciais teóricos aqui abordados. Pois, no momento em que o indivíduo vivencia tais sensações este reage orientado de acordo com sua meta de realização. Isto posto, podemos esperar que o sujeito orientado à meta aprender sinta-se motivado e desejoso de atividades que contemplem esta metodologia, pois estas são vivenciadas como um desafio a ser superado. Portanto, é natural que o sujeito se sinta orgulhoso e realizado ao final da tarefa. Por outro lado, em se tratando de um sujeito orientado à meta performance-aproximação podemos admitir que este se motive em um primeiro momento. Todavia, caso a tarefa aumente gradativamente sua dificuldade exigindo-lhe maior empenho e esforço, talvez se sinta incomodado realizando-a superficialmente, ou abandonando-a. Ao final, pode muito bem avaliá-la como uma estratégia tediosa. Infelizmente, um sujeito orientado à meta performance-evitação temendo parecer incapaz para professores e colegas. Podemos, ponderar que inicie a atividade buscando a todo custo esconder sua suposta incapacidade, o que acabaria por produzir os déficits motivacionais descritos no referencial teórico e captados nas diferentes pesquisas da área. Imaginemos, ainda, os sentimentos de angustia que estes sujeitos estarão expostos ao se depararem com o conflito cognitivo tão bem orquestrado por um professor competente. Pois, com efeito, podemos avaliar o sucesso da atividade levando-se em consideração o quão bem ela possibilita aos sujeitos tomarem consciência de suas estruturas de pensamento. Sendo assim, podemos considerar que o conflito cognitivo não é o responsável direto em produzir tais déficits. A bem da verdade, o sujeito passou anos trabalhando em um ambiente com uma epistemologia própria de ensino. Com o tempo, esta epistemologia produziu no sujeito uma orientação de realização que é capaz de definir a forma de como se aprende e determinar seu possível relacionamento com o conhecimento. Portanto, o conflito cognitivo não é herói nem vilão, ele apenas possibilita ao sujeito entrar em contato de forma mais sensível com os objetivos que este pretende realizar e a autoimagem que este comportamento de realização carrega. Parece-nos que o conflito cognitivo além de levar o sujeito a tomada de consciência de suas ações e da essência do objeto. Destarte, também funciona como um catalisador que acelera o contado do sujeito com seu perfil motivacional de realização. Como todos sabemos, um catalisador não faz parte dos I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 262 reagentes, nem tão pouco compõe os produtos finais da reação saindo intacto. Isto também se verifica, pois em qualquer outra atividade em que o sujeito possa vivenciar o fracasso de suas concepções novamente o conflito estará presente, notadamente um conflito mais abstrato, caso o sujeito tenha acomodado um novo saber sobre o objeto. Portanto, a realidade se encarregará de oferecer vez ou outra um senão, cabendo ou não ao sujeito recorrer a sua auto-imagem, bem como a sua sensação de autoeficácia para solucionar o presente desafio representando talvez a tão sonhada equilibração majorante. Para nós este mecanismo complexo entre o interno e o externo representa o moto contínuo piagetiano capaz de fornecer um manancial energético infinito para o sujeito voltar a sua condição de equilíbrio, conforme citação. [...] Essa busca, que constitui o princípio da acomodação e assimilação, como a primeira manifestação de um dualismo entre o desejo e satisfação, portanto entre o valor (psique) e o real, entre a totalidade que se completa e a totalidade incompleta, dualismo que reaparecerá em todos os planos da atividade futura e cuja redução será tentada ao longo de toda a evolução mental, embora esteja destinado a acentuar-se incessantemente. (PIAGET, 1970, p. 48). Portanto, o conflito ou a sensação de fracasso apenas desvela, faz emergir, lança luz sobre aquilo que já está consumado no íntimo do sujeito, inclusive sendo conscientemente admitido por ele. Acreditamos, ser a metodologia tradicional de ensino a responsável por este processo, pois esta é a principal estratégia de ensino praticada em nossas escolas. Sendo assim, esta conseguiu, após anos de prática escolar, construir no íntimo de cada sujeito um objetivo de realização que aparece em sala de aula, em se tratando de alguns sujeitos, como déficit motivacional. Infelizmente, este déficit acaba por ser creditado indevidamente à conta das metodologias sócio-construtivistas baseadas nesta importante estratégia de ensino. Antes de encerrarmos, é interessante notar que a Teoria de Metas de Realização permiti-nos salvaguardar parte dos resultados das pesquisas ligadas à metodologia sócio-construtivistas que utilizam o conflito cognitivo como estratégia, principalmente aquelas relativas ao ensino de ciência. Destarte, é verdade no tocante ao comportamento de alguns alunos que o conflito os intriga e estes se evolvem ativamente na solução dos problemas conforme descrito pela meta aprender. Não obstante, outros sujeitos orientados à meta performance-aproximação estão muito mais preocupados em parecer inteligentes para professores e colegas. Portanto, conseguir uma boa nota talvez seja mais importante do que investigar as inconsistências de seu pensamento. Por fim, as pesquisas que prematuramente acusaram o conflito cognitivo como o responsável em produzir déficits motivacionais conforme bem apontou Mortimer (obra citada,1996), muito provavelmente, não tenham levado em consideração que os sujeitos entram em sala de aula com um objetivo de realização. Notadamente, é natural supor que alguém orientado à meta performance-evitação apresente déficits motivacionais quando vivencia uma situação de fracasso. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 263 Contudo, estes déficits estão ligados à história pregressa do sujeito e não propriamente ao conflito cognitivo. [...] Quanto às emoções, as crianças não nascem com sentimentos de orgulho ou de vergonha, visto que estas não são emoções inatas. Em vez disso, o orgulho surge a partir de uma história do desenvolvimento de episódios de sucesso culminado na proficiência; e a vergonha surge a partir de uma história no desenvolvimento com episódios de fracasso culminado no ridículo (STIPEK, 1983 apud REEVE, obra citada, p. 108) O autor deste trabalho está atualmente realizando uma pesquisa procurando responder as seguintes perguntas: O aluno orientado à meta aprender possui o espírito necessário para suportar o conflito cognitivo? Os alunos orientados à meta performance-evitação, após vivenciarem a sensação de fracasso, apresentam déficits motivacionais? Os resultados desta pesquisa serão publicados em breve. Referências AGUIAR JÚNIOR, O. G.: Mudanças conceituais (ou cognitivas) na educação em ciências: revisão crítica e novas direções para a pesquisa. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, MG, v. 3, n. 1, 2001, p. 1-20. BORUCHOVITCH, E. e BZUNECK, J. A. 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 265 Análise de Aspectos Cognitivos da Conduta por meio de um Jogo DELL’ AGLI, Betânia Alves Veiga – FE/Unicamp BRENELLI, Rosely Palermo – FE/Unicamp [email protected] [email protected] Resumo O presente trabalho teve por objetivo investigar, em um contexto psicogenético, os aspectos cognitivos da conduta por meio de um jogo de regras. Participaram dessa pesquisa 40 alunos de ambos os sexos, com idade entre 4 e 17 anos que cursavam a Educação Infantil (Jardim e 1º ano) e Ensino Fundamental (4º e 9º anos) de duas escolas públicas. Foram aplicadas as provas de classificação espontânea, inclusão hierárquica de classes e combinação de fichas de várias cores e, quatro partidas com o jogo “Descubra o Animal”. Os resultados obtidos evidenciaram que o jogo utilizado foi eficaz para auxiliar na análise das condutas cognitivas relativas à noção de classificação. Palavras-chave: Jogo. Diagnóstico. Psicopedagogia. Abstract This work has the aim of investigating, in a psychogenetic context, the knowledge aspects of the behavior through a game of rule. Forty students of both genders with ages between 4 and 17 years old attending primary (kindergarten and 1st grade) and elementary (4rd to 9th grade) public schools have participated on this research. Spontaneous classification tests were applied, along with hierarchical inclusion of classes, matching cards of various colors and four matches with the game “Find out the Animal”. The results point out that the game utilized was effective to help on analysis of the knowledge relative of the notion of classification. Keywords: Game. Diagnosis. Psycho pedagogy. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 266 Introdução O uso de jogos não é novo e ao longo da história passou por inúmeras modificações, graças aos estudos que levaram a esclarecimentos sobre a atividade lúdica infantil. Sua dimensão aos poucos foi sendo redefinida e aumentada. Brenelli e Dell’ Agli (2008) ao analisar a abrangência dos jogos ressaltam que eles foram investigados sob diferentes perspectivas: cultural, social, afetivo, moral, cognitivo, psicomotor, dentre outras e serviu para a compreensão sobre a cultura dos povos, sobre o desenvolvimento, sobre a aprendizagem e sobre as diferentes etapas do ciclo vital que definem as relações humanas. A partir disso, verifica-se a abrangência e importância dos jogos na vida do homem, tanto no seu aspecto individual, particular como no social. O presente trabalho se fundamenta na teoria de Piaget, sendo necessário dimensionar, mesmo que em linhas gerais, suas investigações com jogos. Piaget, em seus estudos com crianças, utilizou-se de jogos de regras com o intuito de analisar vários aspectos de sua teoria. O desenvolvimento moral (1994) foi analisado por meio dos jogos Bola de Gude, Amarelinha e Pique. Utilizou o jogo Torre de Hanói para investigar os processos de tomada de consciência (1978), caracterizados pela relação entre o fazer e o compreender; o Master Mind (Senha) na construção dos possíveis e do necessário (1986) e, utilizando-se de vários jogos do tipo Cara a Cara, Xadrez Simplificado, Reversi, Batalha Naval, investigou a formação do pensamento dialético (1996). A teoria de Piaget por sua riqueza e importância para a compreensão da criança tem influenciado há décadas profissionais ligados à infância e ao ensino. Os estudos sobre jogos não ficou alheio à educação. Neste contexto, o valor dos jogos de regras é indiscutível, principalmente devido à contribuição de vários autores e pesquisas de cunho científico. O seu caráter lúdico e ao mesmo tempo promotor de novas estruturas de conhecimento e de variadas formas de interações sociais e afetivas tem sido considerado como um instrumento capaz de contribuir de maneira positiva para minimizar os problemas educacionais. Na abordagem construtivista piagetiana, os jogos de regras vêm sendo investigados no que se refere à construção de novas estruturas de conhecimento (MAGALHÃES, 1999; PIANTAVINI, 1999; BOGASTSCHOV, 2001; OLIVEIRA 2005), às construções de noção aritméticas (BRENELLI, 1996; BARRICATTI, 2003; SILVA, 2003; SILVA, 2008), ao diagnóstico de crianças com e sem dificuldade escolar (DELL’ AGLI, 2002) e aos aspectos afetivos (QUEIROZ, 2000; RIBEIRO, 2001; DELL’ AGLI, 2008). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 267 No diagnóstico e no tratamento dos problemas emocionais e das dificuldades de aprendizagem, o jogo se insere como um recurso indispensável, porque permite conhecer a realidade da criança. No entanto, na psicoterapia, o jogo simbólico ocupa um espaço já bastante definido na chamada “hora de jogo diagnóstica” e, da mesma forma, deveria ser inserido como um recurso na “hora de diagnóstica psicopedagógica” pela análise das condutas (BRENELLI, 2001). Alguns autores, mesmo não tendo sistematizado o jogo como recurso no diagnóstico, considera-o importante nesta função. Segundo Macedo (1992), o jogo pode ser um bom instrumento de diagnóstico, visto que por meio dele tem-se acesso ao pensamento infantil, além de permitir definir quais as estratégias de intervenção a serem realizadas dentro de um processo psicopedagógico. Macedo (citado por Petty e Passos, 1996) considera o jogo não apenas um mero passatempo, mas como um momento sério na vida da criança porque ao jogar ela expressa como é o seu pensamento e utiliza os recursos disponíveis para tentar resolver o desafio. A observação de como a criança joga (ações) permite descobrir as soluções advindas de seu pensamento por meio dos caminhos percorridos, identificação de erros e tentativas para sua superação, levantamento de hipóteses, estratégias de ataque e defesa. É possível também observar no jogo a postura que a criança utiliza, a maneira pela qual se relaciona com os parceiros, as reações que adota e como lida com os materiais. Pode-se dizer que o jogo analisado dessa forma possibilita construir um retrato das estruturas que a criança dispõe, sendo estas cognitivas e afetivas, compondo um perfil individual de sua dinâmica interna. No mesmo sentido, Brenelli (1996) considera o jogo como uma atividade importante na educação de crianças, pois permite o desenvolvimento de vários aspectos como afetivo, motor, cognitivo, social e moral, bem como a aprendizagem de conceitos. Além disso, considera que os jogos permitem, mesmo que de forma indireta, uma aproximação ao mundo mental da criança, pela análise dos meios e pelos procedimentos utilizados ou construídos durante o mesmo. Nesta abordagem, a avaliação e diagnóstico não são processos estanques, mas sim, um constante observar. As hipóteses levantadas são passíveis de serem checadas e atualizadas durante as intervenções propostas às crianças (MACEDO, PETTY e PASSOS, 2000). O jogo, em nossa concepção, pode ser um recurso complementar na avaliação das condutas das crianças. No presente estudo, foi utilizado o jogo identificado como “Descubra o Animal”. Tal jogo foi estudado por Piaget (1996) no contexto da dialética e se assemelha em sua estrutura ao “Cara a Cara” (jogo comercializado). De uma maneira geral, a dialética, defendida por Piaget, não se resume à clássica I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 268 tríade hegeliana de teses, antíteses e sínteses, mas relaciona-se à criação de interdependências que se constitui num processo construtivo, podendo ser observado nas coordenações de pensamento e de ações estabelecidas pela criança no jogar. O objetivo de nosso estudo foi analisar aspectos cognitivos da conduta por meio de um jogo de regras. Método Participantes A amostra foi constituída por 40 alunos de ambos os sexos, com idade entre 4 e 17 anos que cursavam a Educação Infantil (Jardim e 1º ano) e Ensino Fundamental (4º e 9º anos), alunos de duas escolas públicas. Instrumentos Utilizaram-se as provas de classificação espontânea (figuras geométricas), quantificação da inclusão de classes (flores) e combinação de fichas de várias cores. Além das provas, utilizou-se o jogo de regra “Descubra o Animal” que consiste de dois conjuntos idênticos contendo, cada um, vinte figuras de animais, encaixáveis em classes e subclasses. Cada conjunto foi constituído por cinco mamíferos, sete aves, das quais um pinguim e uma galinha, sete artrópodes, dos quais cinco insetos e um réptil. Procedimento Após a devida autorização para a realização da pesquisa, as provas operatórias foram aplicadas individualmente aos participantes a fim de identificar o nível evolutivo dos participantes. O uso das provas escolhidas se justifica porque o jogo “Descubra o Animal” envolve o raciocínio de classificação. Os procedimentos de aplicação foram aqueles organizados por Inhelder, Bovet e Sinclair (1977) e por Mantovani de Assis (s.d). Propôs-se logo em seguida da aplicação das provas o jogo “Descubra o Animal”. A aplicação do jogo consistiu de duas etapas: conhecimento das regras do jogo e campeonato. A primeira etapa teve como objetivo verificar inicialmente o conhecimento que os participantes apresentavam a respeito dos animais e em seguida as regras eram apresentadas. A experimentadora ao apresentar as vinte figuras de animais, perguntava: Você conhece todos esses animais? Fale-me sobre o que você sabe deles.. Caso o participante não soubesse o nome de algum animal ou se fizesse qualquer pergunta, era esclarecida pela experimentadora. A regra era apresentada colocando-se o objetivo do jogo: descobrir o animal oculto. Para tanto, cada jogador fica de posse de um conjunto de animais (que são I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 269 idênticos). O jogador descobridor (que irá descobrir o animal) deve distribuir as figuras sobre mesa a sua maneira, enquanto que o outro jogador esconde (retira) um animal de seu conjunto. É permitido ao jogador descobridor propor no máximo até seis perguntas às quais só se responde por ‘sim’ ou ‘não’ e pensar bem para fazer boas perguntas. Na última pergunta o jogador descobridor deve indicar o nome do animal que está escondido. É permitido arrumar e manipular as figuras durante o jogo. A segunda etapa, que consistiu num campeonato, teve como objetivo analisar as jogadas dos participantes. Quatro partidas foram propostas e esse número foi estabelecido tendo em vista a preocupação de dar aos participantes a oportunidade de conhecer o jogo sem, contudo, “aprender” as especificidades do mesmo, já que o objetivo principal da presente pesquisa é a análise das condutas num processo de avaliação. Em todas as partidas jogava-se participante x experimentadora e experimentadora x participante. Este último procedimento foi denominado “troca de papéis” e teve como objetivo verificar se os participantes aproveitavam da lição recebida após verificar as jogadas da experimentadora que, ao jogar, arrumava as figuras na mesa segundo sistemas lógicos de agrupamento, realizando os descartes das figuras que deveriam ser excluídas do jogo. Em seguida, o participante jogava novamente a fim de verificar se os procedimentos eram modificados após a troca de papéis. Durante as jogadas dos participantes, a experimentadora propunha algumas questões a fim de analisar os procedimentos empregados por eles, como por exemplo: Como você pensou para arrumar as figuras do jogo?, Por que você perguntou se era a galinha?; Como você pensou para descobrir o leão?. Em alguns momentos os participantes eram advertidos com a seguinte frase: Pense bem para fazer boas perguntas., ou ainda Será que você poderia fazer outro tipo de pergunta?. Para a análise, foram criadas categorias de condutas a partir dos dados coletados, que serão descritas na seção a seguir. Resultados e Discussão De acordo com os procedimentos apresentados pelos participantes, pôde-se destacar três condutas: pré-operatórias, transição e operatória (concreta e formal), todas com relação ao arranjo das figuras, qualidade das perguntas, qualidade das respostas, descartes, justificativa da escolha final do animal oculto e troca de papéis. A análise pautou-se nas principais condutas dos participantes. Nas condutas pré-operatórias observou-se predominantemente arranjo aleatório, sem qualquer critério de semelhanças e diferenças. As justificativas quando apresentadas eram do tipo “Eu pensei que eu estava brincando disso”, “Eu fiz na minha casa”, “Eu pensei no baralho”. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 270 A qualidade de perguntas desse grupo foram as que se referiam a “objetos conceituais”, ou seja, se referiam aos animais como representantes de uma espécie como: É o pinguim?, É a abelha?, É o leão?. Quanto à qualidade das respostas deram respostas incorretas, aparecendo todas as que foram categorizadas: desconsideram os atributos que pertencem ao animal oculto (Exemplo: -“Ele tem quatro patas?” – “Não.” A experimentadora descarta todos os animais que têm quatro patas e a criança diz: – “Você tirou o gato? Não é para tirar!”); explicitam o nome do animal oculto (Exemplo: -“É uma ave?” – “Não. Eu escolhi este daqui.” – aponta para a borboleta); indicam um dos atributos que pertencem ao animal oculto (Exemplo: - “Ele tem quatro patas?” - “Cinco pernas. Ele não voa.” e indicam a exclusão dos animais que não estão ocultos (Exemplo: - “Ele é um inseto?” – “É.” – a experimentadora descarta os que não são insetos. –“Ele tem várias perninhas?” – “Tem. Esse não é” – apontando para a joaninha). A forma de descarte predominante das crianças com condutas pré-operatórias foi o descarte implícito apenas das figuras que representavam objetos conceituais, melhor dizendo, uma vez mencionado o nome de um animal, a criança não voltava a se referir a ele o que possibilita inferir que ela descartou a figura, pelo menos no que se refere aos objetos conceituais, ou seja, ao próprio animal e não a classe de pertença. Quanto às justificativas apresentadas pelos participantes sobre a escolha do animal houve predomínio de ausência de argumentos lógicos para esclarecer “o porquê” da escolha. As justificativas são locais, centradas em uma ou outra característica observável do animal, ou então “mágicas”, denotando as fabulações ou conveniências. Este dado é compatível com o que diz Piaget (citado por FLAVELL, 1975): a criança mais afirma sem propriamente justificar. Finalizando as condutas pré-operatórias, observou-se que as crianças não modificaram a maneira inicial de proceder no jogo, ou seja, a troca de papéis não foi suficiente para gerar desequilíbrios na estrutura dos participantes. No nível de transição, observou-se condutas intermediárias no jogo. Aparecem ainda os arranjos aleatórios, mas a prevalência recaiu sobre os arranjos com princípios de critérios classificatórios, que consistia em organizar os animais utilizando critérios intuitivos; os atributos comuns de uma classe foram considerados, mas de maneira justaposta; apresentaram dicotomias, sem esgotar todas as possibilidades de organizar outras classes. Exemplos de condutas deste nível: - “Sabe por que eu pus a aranha aqui?” “Por quê?” – “Porque aranha come mosca.”; “O que voa e o que não voa.” No que se refere à qualidade das perguntas uma sutil diferença foi notada entre as condutas. As crianças que apresentavam condutas intermediárias, após a troca de papéis modificaram o tipo de I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 271 pergunta para “conceitos genéricos”, mas as jogadas posteriores não validavam este tipo de pergunta por que não conseguiam incluir os animais pertencentes à classe explicitada. Dito de outra forma, o fato de perguntar se o animal escondido voa, não quer dizer que o participante estava se referindo a uma classe, mas sim a apenas um animal que voa, portanto objeto conceitual. Prevaleceram nos participantes de condutas intermediárias (transição) respostas corretas, mas com um número significativo de respostas incorretas. Estas foram apenas de dois tipos: respostas em que são desconsiderados os atributos que pertencem ao animal oculto (Exemplo: ... – “É um animal que dá leite? – “Não” – a experimentadora descarta a vaca – “Ele late?” – “Esse dali.” – “Qual?” – “Esse daqui.” – “A vaca?” – “É.” – “Mas, você falou que ele não dá leite!” – “Pra você não adivinhar.”) e respostas em que é indicado um dos atributos do animal oculto (Exemplo: ... – “Ele é um animal doméstico?” – “Não, vive no celeiro.”). As respostas incorretas são compatíveis com o nível desses participantes, porque apesar de apresentarem evoluções relativas às classificações, permanecem a meio caminho entre as coleções figurais e as futuras classificações hierárquicas. Quanto aos descartes, prevaleceu também o mesmo tipo de descarte do nível anterior. No entanto, teve criança que realizou descarte explícito após a troca de papéis, mas esses descartes foram apenas dos objetos conceituais e não de uma classe. O mesmo pode ser dito sobre as justificativas da escolha final do animal oculto que foram a ausência de argumentos lógicos. Condutas diferentes foram observadas no nível operatório. O arranjo predominante foi critérios classificatórios explícitos, que consiste em dispor os animais em classes lógicas. No entanto, apareceram arranjos com princípio de critérios classificatórios e arranjos aleatórios, sendo que este último com menor frequência. No nível do raciocínio combinatório se observou tanto arranjo com princípio de critérios classificatórios como arranjo com critérios classificatórios explícitos sem prevalência de um sobre o outro. Não se observou arranjo aleatório. Perguntas do tipo conceitos genéricos prevaleceram no nível operatório concreto e formal com diferenças na elaboração das mesmas. Os participantes de nível formal demonstraram conhecer bem mais os atributos dos animais, possibilitando perguntas mais elaboradas. Nos participantes de nível operatório concreto prevalecem as respostas corretas. As respostas incorretas detectadas nesses participantes giraram em torno dos animais de uma determinada classe que fugia em algum aspecto à regra mais geral (ex. pinguim é uma ave, mas não voa), ou quando havia dúvida se determinado animal pertencia à classe denominada. As respostas incorretas em nenhum momento se assemelharam àquelas evidenciadas nos níveis anteriores (pré-operatório e transição), demonstrando uma evolução significativa dos participantes desse nível. No nível formal houve apenas respostas corretas o I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 272 que sugere que os participantes conhecem com mais clareza uma gama maior dos atributos dos animais em questão, conseguindo interpretar e coordenar corretamente as perguntas propostas pela experimentadora. O descarte diferenciou os grupos. No nível operatório concreto apareceu tanto o descarte explícito como o implícito sem predomínio de um sobre o outro, ocorrendo, nesse aspecto, procedimentos mistos. Os descartes, embora efetuados por todos os participantes, foram parcialmente corretos, ou melhor, as crianças ou “esqueciam-se” de retirar algum animal ou retiravam animais que não pertenciam à classe em questão. Nos participantes do nível formal prevaleceu o descarte explícito e esses foram na sua maioria corretos, o que sugere que esses adolescentes conseguem lidar melhor com as exclusões. Nos participantes de nível operatório concreto e operatório formal prevaleceu a presença de argumentos lógicos para esclarecer “o porquê” da escolha. Inclusive, nos adolescentes do nível formal na noção de classificação, ia-se percebendo seu raciocínio durante o desenrolar da própria partida, já que fizeram uso com maior frequência dos descartes explícitos, restando na(s) última(s) pergunta(s) apenas o animal oculto. Ao analisar os dados, pode-se dizer que houve diferenças significativas nas condutas dos participantes. No que se refere ao arranjo de figuras uma análise mais minuciosa demonstrou diferença no proceder dos participantes. Os de nível operatório concreto e operatório formal classificavam mentalmente os animais. O arranjo no plano concreto, neste caso, funcionaria mais como um facilitador e organizador das jogadas. Condutas diferentes demonstraram os participantes pré-operatórios e transição, que mesmo realizando arranjos com princípio de critérios classificatórios, sequer usaram esta estratégia para auxiliá-los nas elaborações das perguntas o que revela a falta de inclusão das crianças deste nível. A qualidade das perguntas diferenciou as condutas dos três níveis, uma vez que permite verificar a presença ou ausência da inclusão hierárquica, presente somente a partir do nível operatório concreto. Percebemos, contudo que há diferenças sutis entre condutas pré-operatórias e transição e entre operatório concreto e operatório formal, o que nos leva a ficar atento numa análise mais minuciosa. A qualidade das respostas também mostrou ser um dos determinantes da diferença das condutas. Tal como na categoria qualidade de perguntas, na presente, igualmente é necessário prestar atenção às sutis diferenças que foram evidenciadas. O mesmo pode ser dito sobre o descarte. É bem verdade que o tipo de descarte (implícito e explícito) não é determinante, mas é importante observar durante as jogadas se o participante exclui do jogo um número significativo de figuras após a informação recebida, ou seja, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 273 se ele consegue incluir numa determinada classe vários animais. Nas condutas pré-operatórias e de transição apesar dos descartes, estes não sugeriam se referir a uma classe, mas sim aos objetos conceituais, o que não ocorreu nas condutas posteriores. Quanto ao nível operatório concreto e formal, podemos observar diferença de grau, ou seja, no operatório concreto ainda existem lacunas e no formal elas foram superadas. Esses dados coincidem com os encontrados por Piaget (1996). A justificativa da escolha do animal oculto também se mostrou um determinante para se verificar a diferença nas condutas dos participantes, já que os participantes de nível operatório concreto e formal conseguem estruturar seu pensamento em classes, lidar com exclusões e, portanto justificar suas condutas, ao passo que as crianças com condutas pré-operatórias e transição fixam-se apenas nos dados perceptíveis do objeto que as impossibilitam justificar suas escolham com argumentos lógicos. A troca de papéis foi fundamental para os participantes com condutas operatórias porque modificaram sua maneira de jogar após terem observado a experimentadora. Contudo, podemos concluir que apenas o arranjo das figuras não é uma categoria que prediz qual a conduta que está sendo utilizada pelo sujeito. Os resultados mostraram que existem diferenças nos níveis de conduta, encontrando-os subordinados à estruturação do raciocínio classificatório. Considerações Finais O estudo permitiu verificar o valor do jogo de regras para analisar as condutas de crianças e adolescentes nos diferentes níveis evolutivos. Além disso, pode ser um importante recurso na avaliação, bem como para nortear um trabalho de intervenção psicopedagógica. Nos dias atuais, em que se depara quase que cotidianamente com dados alarmantes sobre a ineficácia do sistema educacional brasileiro, cujas soluções estão longe de serem encontradas, os jogos, poderiam também ter papel mais efetivo no contexto escolar no sentido de proporcionar uma educação mais significativa às crianças e aos adolescentes. As queixas de desatenção, de desmotivação, de desinteresse tão comum entre os educadores nos levam a reflexão sobre o tipo de atividades que têm sido propostas aos alunos. Não queremos dizer com isto, que a escola deve abandonar os conteúdos porque são fundamentais, mas permanecer apenas com eles pode negligenciar aspectos cruciais do desenvolvimento infantil que certamente contribuiria de maneira positiva com a aprendizagem escolar. Em síntese, os estudos têm demonstrado o valor dos jogos e é desejável que a escola o adotasse como um recurso suplementar. Um argumento a mais poderia reforçar a sua importância: os jogos são atividades espontâneas da infância e como tal não podem ser desconsiderados. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 274 Referências BARRICATTI, H. G. A construção dialética das operações de adição e subtração no jogo de regras Fan Tan. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2003. BOGATSCHOV, D. N. Jogos computacionais heurísticos e de ação e a construção dos possíveis em crianças do ensino fundamental. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2001. BRENELLI, R. P. O jogo como espaço para pensar: a construção de noções lógicas aritméticas. Campinas, SP. Papirus, 1996. BRENELLI, R. P. Espaço lúdico e diagnóstico em dificuldades de aprendizagem: contribuições do jogo de regras. In: SISTO, F.F.; OLIVEIRA, G. C.; FINI, L. D. T.; SOUZA, M. T. C. C. e BRENELLI, R. P. (Org.). 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 276 Dificuldades de Aprendizagem e Sala de Apoio: Significações de Alunos e Professores OLIVEIRA, Francismara Neves de BIANCHINI, Luciane Guimarães Batistella CARNOT, Priscila de La Torre OLIVEIRA, Fernanda Aparecida de PIAI, Angelica Lima SILVA, Camila da Universidade Estadual de Londrina – PROPPG/ UEL Projeto de pesquisa: Laboratório de Jogos - espaço de interações lúdicas [email protected] Resumo O presente estudo objetivou analisar as significações de dificuldades de aprendizagem de 25 alunos e 4 professores que participam diretamente das salas de apoio à aprendizagem em duas escolas estaduais em Londrina-PR, comparando-as à concepção inferida nos documentos que regulamentam a sala de apoio. Como modalidade de pesquisa, elegemos: o estudo de casos múltiplos que permitiu a replicação das condições de pesquisa nas duas unidades que seguem o mesmo projeto de implantação das salas de apoio. Como questão norteadora, elegemos: quais as significações de alunos e professores sobre as dificuldades de aprendizagem e a sala de apoio? Além da observação das atividades nas salas de apoio, utilizamos roteiros de entrevista para professores e alunos e analisamos os documentos que normatizam o trabalho. O período de coleta de dados foi de 2 meses, com 8 horas semanais, 4 horas em cada escola. Nossos resultados indicaram que as significações de alunos e professores sobre dificuldades de aprendizagem são correspondentes à concepção encontrada nos documentos que oficializam as salas de apoio nas escolas da rede estadual. Persistem estereótipos que culpabilizam o aluno pelo não aprender. As dificuldades de aprendizagem são vistas como um problema do aluno e por decorrência de sua família. Esse também é o modo como os alunos percebem a si mesmos no processo de aprendizagem. Palavras-Chave: Salas de apoio à aprendizagem. Dificuldades de aprendizagem; Concepções de professores e alunos. Abstract This study aimed to examine the meanings of learning disabilities of 25 students and 5 teachers who participate directly in the support learning classrooms in two state schools in Londrina-PR, comparing them with the conception that is inferred in the documents which regulating the support classroom. As modality of research we choose the study of multiple cases which allowing the reapplication of the conditions of researches in the two units that follow the same project of support classrooms implementation. As guiding question we elect: which is the signification of students and teachers about the difficulties of learning and support classroom? Despite the observation of the activities in the support classroom, we use interview guides for teachers and students and we analyze the documents that standardize the job. The period of data collection was 2 months, with 8 hours per week, 4 hours in each school. Our results indicated that the significations of students and teachers about learning difficulties correspond the conception found in the documents that make official the support classrooms in the schools in ours state. Endure the stereotypes which blame the student for no to learn and undertake the delivery of work in support classrooms. The student’s difficulties of learning are viewed as a student problem and that they happen because of his family. This is also the way how students perceive themselves in the learning process. Keywords: Support learning classrooms. Learning disabilities. Conceptions of teachers and students. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 277 Introdução Ao pensarmos nas dificuldades de aprendizagem é preciso reconhecer em primeira instância que na complexidade da escola, os processos envolvidos são marcados por trajetórias diferenciadas, avaliadas como satisfatórias ou insatisfatórias. Nessa complexidade interatuam diferentes expectativas em relação ao domínio dos conteúdos escolares e apreensão do conhecimento. Como lócus de desejos tão complexos, é natural que a escola produza em seu bojo, relações de inadequação, descontinuidade, rotulação e fragmentação. Relações estas que coexistem com aquelas valorizadas como assertivas, pedagogicamente corretas, científicas, enfim, adequadas às exigências da demanda escolar. Representando a própria dificuldade do homem em lidar com a complexidade nos deparamos no cenário escolar com a dicotomização do aprender. Por um lado um contexto de demandas e expectativas em torno daquele que “aprende” e por outro, um cenário de ansiedade e angústia proporcionado pela ausência de compreensão sobre aquele que ocupa o lugar do não saber ou daquele que apresenta dificuldades para aprender, como se os dois lados da moeda não falassem do mesmo processo. O resultado da falta de compreensão sobre as dificuldades de aprendizagem tem gerado, na maioria dos casos, estigmas e estereótipos que atingem a família, o aluno, os professores e a escola, enfatizando e generalizando as condições incapacitantes ao aprender. Pautados na perspectiva teórica piagetiana, consideramos que aprender, não aprender ou ter dificuldades para aprender, constituem um mesmo processo. Assim, a aprendizagem (processo) engendra múltiplas possibilidades e seu sucesso ou insucesso depende de condições de construção ou (re) construção que não estão localizadas isoladamente no sujeito, ou no meio, ou nos objetos de apropriação, ou na “ensinagem”, como defendem algumas teorias. Esta construção e reconstrução são muito mais marcadas pelo “e” que pelo “ou”, o que denota a complexidade deste fenômeno. As dificuldades de aprendizagem evidenciam, não apenas um processo insatisfatório, mas também as teias que o teceram. A partir desta compreensão teórica entendemos ser possível declinar princípios norteadores que podem resgatar a dimensão pedagógica no trabalho com as dificuldades de aprendizagem, em especial na atuação de professores em salas de apoio à aprendizagem, objeto da presente análise. No presente estudo, nossa discussão não recaiu sobre definições, nomenclaturas, classificações ou avaliações das dificuldades de aprendizagem. Consideramos a significação das dificuldades de aprendizagem para os alunos e professores envolvidos diretamente com as salas de apoio, espaço oficial de trabalho com dificuldades de aprendizagem nas escolas estaduais no município de Londrina, onde o estudo se desenvolveu. Interessou-nos analisar “o olhar” do professor que recebe na sala de apoio esses alunos e “o olhar” dos alunos que frequentam a sala de apoio porque são considerados alunos com I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 278 dificuldades de aprendizagem. Referencial Teórico Dificuldades de Aprendizagem – um olhar a partir da perspectiva teórica piagetiana. Diferentes teorias reconhecem a existência de elementos contextualmente articulados na aprendizagem do aluno e oferecem uma compreensão que supera a configuração de uma listagem de sintomas aparentes e impedidores das interações destes alunos com o conhecimento, como sinônimos de dificuldades de aprendizagem. Na perspectiva teórica de Jean Piaget, as dificuldades de aprendizagem não são explicadas pelo prisma do que falta à criança, seus limites e impossibilidades, mas por suas ações e significações, sua riqueza de construções e suas superações. Partindo desse pressuposto, as dificuldades de aprendizagem, não podem ser analisadas como pertencentes ao aluno e a sua família somente, mas sugerem um amplo contexto a produzi-las. Macedo (2002, p. 44). A compreensão de fatores interatuantes nos processos de aprendizagem deve nortear o professor no que concerne a sua atuação frente às dificuldades de aprendizagem dos alunos. As concepções do professor, as representações desde sua formação, o tipo de vínculos afetivos que estabelece com o ensinar, com o seu próprio modo de aprender, não estariam diretamente relacionados ao enfrentamento da questão com seus alunos? Partindo do princípio da complexidade o conceito de Piaget (1980) é esclarecedor quanto ao que vem a ser uma relação de interdependência presente na constituição de um fenômeno amplo, múltiplo e complexo como a aprendizagem e as dificuldades decorrentes. Nessa abordagem, sistemas interdependentes constituem a dialética construtiva. Tal compreensão nos auxilia no entendimento da condição inegável à complexidade e dinamismo próprios à mudança do indivíduo que se desenvolve, na condição de sujeito-autor do seu próprio desenvolvimento - teia no seio da qual o aprender é tecido. Assim, o conhecimento é concebido como um processo e não como um estado (resultado ou produto) e a escola, como um importante espaço (não apenas físico) para a construção desse conhecimento (Oliveira, 2005). Essa complexidade é inerente à aprendizagem e pode auxiliar na compreensão das dificuldades de aprendizagem. Macedo (2008, p. 2) argumenta que: [...] dificuldades de aprendizagem devem ser vistas como problema de ordem complexa não importa se envolvam o sistema como um todo (isto é, as estruturas e relações que o I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 279 constituem), uma classe ou grupo de alunos ou um caso individual (singular). O autor, em oposição ao que comumente é entendido pelo termo dificuldade de aprendizagem (os aspectos negativos e a ênfase ao que falta), faz alusão ao fato de que as dificuldades de aprendizagem, na perspectiva de Piaget, são entendidas como algo positivo, pois nessa concepção teórica, o problema, o desafio, a dificuldade são considerados extremamente importantes à construção do conhecimento. Prossegue o autor (MACEDO, 2008, p.3): Quem não aceita enfrentar dificuldades para realizar tarefas ou compreender problemas difíceis, porque novos, porque o conhecimento disponível sobre eles é insuficiente, não se desenvolve além dos limites atuais, fica refém de algo que não combina com a missão da escola (aprender). Apropriarmo-nos dessa compreensão pode desencadear um novo olhar para o não aprender. As possibilidades e o desejo de aprender podem ser incentivados, dificultados ou interrompidos, nas (inter e intra) interações do sujeito no meio em que vive. Nessa ótica, o não aprender passa a atribuir significação à complexidade do processo na medida em que se apresenta como uma resposta insuficiente do aluno a uma exigência que não é apenas dele, mas também externa a ele. As dificuldades de aprendizagem evidenciam, não apenas um processo insatisfatório do aluno, mas de um contexto. A perspectiva piagetiana para o desenvolvimento do indivíduo supõe um sujeito ativo que constrói não apenas o saber, mas os mecanismos e processos com os quais pode conhecer, em uma relação autônoma, espontânea e de autoria própria. Essa teoria aponta processos interacionais construtivos, na exata medida em que desloca o olhar das condições ideais de aluno, de professor, de programas instrucionais, para o processo de construção de adaptação, de equilibração. O conceito de adaptação em Piaget vai para além da ideia de ajustamento ao meio, ou de superação de condições adversas do ambiente. Implica em relações interdependentes, possíveis pelo processo de equilibração e de autoria do sujeito que aprende e que se desenvolve. Partindo da compreensão de Piaget (1974, p. 40), segundo a qual “a aprendizagem é um processo adaptativo que se desenvolve no tempo, em função de respostas dadas pelo sujeito a um conjunto de estímulos anteriores e atuais”, é possível reconhecer uma peculiaridade na compreensão das dificuldades de aprendizagem: são passíveis a um processo de construção, uma vez que o processo de aprendizagem é adaptativo, ou seja não está pronto e depende da equilibração. Ao conceber adaptação, o autor distingue adaptação-estado, da adaptação-processo. Para Piaget (1936, p.13) a adaptação-estado refere-se ao equilíbrio entre assimilações e acomodações, entretanto, a principal forma de adaptação, a adaptaçãoprocesso, é aquela que permite descrever progressos do conhecimento, justamente porque vai além da “plasticidade” adaptativa do sujeito às demandas e pressões do meio. Extingue-se a necessidade de deformar o real (assimilação) em função do próprio ponto de vista. Não há mais necessidade de a I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 280 acomodação se moldar aos dados exteriores, passando a se constituir uma experiência inteligente de fato. (Montangero e Maurice-Naville, 1998). Por essa razão entendemos que a tese da equilibração, da atividade construtiva do sujeito, das regulações ativas que o processo de sucessivas tomadas de consciência engendra, atendendo necessidades internas de equilíbrio, pode apontar indicadores na compreensão das dificuldades de aprendizagem. Estariam elas relacionadas à adaptação como estruturante das atividades internas do sujeito em relação de interdependência com o meio no qual está inserido. (Piaget 1975; 1977; 1978). Retomemos a reflexão de Macedo (2008, p. 3): “Aprender, neste sentido, é enfrentar e resolver problemas; dominar procedimentos, isto é, ações orientadas para um objetivo ou propósito.” As manifestações de aprendizagens e de dificuldades durante esse processo são consideradas como conquistas do sujeito, como elementos estruturantes das relações entre os observáveis, como regulações do sujeito durante o processo de construção do conhecimento. Não podem ser (as dificuldades de aprendizagem) desconsideradas, desvalorizadas, transformadas em rótulo imposto ao sujeito, justamente porque não são externas a ele quanto às suas significações. Ao invés de pertencerem ao sujeito como uma marca que o desqualifica, que “explica” de forma reducionista o não aprender, as dificuldades de aprendizagem pertencem ao processo de construção do sujeito, no sentido proativo que um processo construtivo representa. Posto isto, passamos a analisar o espaço oficializado para o trabalho com as dificuldades de aprendizagem nas escolas: as salas de apoio. Salas de Apoio à Aprendizagem – espaço em reflexão A Secretaria do Estado do Paraná (SEED) implantou no ano de 2004 o programa denominado “Sala de Apoio à Aprendizagem”. De acordo com a resolução 371/2008, art. 1º, a Secretaria da Educação do Estado do Paraná está investindo na implantação da Sala de Apoio à Aprendizagem para atender aos alunos do 6º ano (5ª série) do Ensino Fundamental que frequentam as escolas estaduais e apresentam dificuldades de aprendizagem com o objetivo de diminuir os índices de reprovação e evasão nesta série. Os documentos que instruíram e regulamentaram a criação das Salas de Apoio à Aprendizagem foram a LDBEN nº9394/96, com o princípio de flexibilidade, referente à função do sistema de ensino de criar condições favoráveis para que o direito do aluno à aprendizagem seja garantido, o parecer CNE nº 04/98, a deliberação nº 007/99-CEE e a Resolução Secretarial nº 371/2008. Segundo a instrução nº 022/2008 existem alguns critérios para a abertura e organização das Salas de Apoio: destinam-se às disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, são oferecidas na proporção de uma sala de apoio para cada três turmas de 5ª série, quatro horas semanais por disciplina, uma hora atividade para o professor e sua oferta deverá ser para no máximo 15 alunos, no turno contrário ao qual os alunos estão matriculados. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 281 O programa tem a finalidade de atender quinze mil alunos em todo o estado com aproximadamente oitocentas turmas funcionando no sistema de contra turno. O objetivo principal das salas de apoio é o enfrentamento das dificuldades apresentadas pelos alunos, com relação à aprendizagem de Língua Portuguesa (oralidade, leitura, escrita) e Matemática (formas espaciais e quantidades nas suas operações básicas e elementares). A instrução nº 022/2008- SUED/SEED aborda a função de cada profissional responsável pelo funcionamento das Salas de Apoio. Ressaltamos a atribuição dos professores regentes aos quais compete o trabalho de diagnosticar as dificuldades dos alunos e encaminhar, enquanto aos professores da sala de apoio compete elaborar e desenvolver o plano de trabalho, além de registrar os documentos relativos aos alunos, participar de conselho de classe e ajudar a decidir sobre a permanência ou não do aluno na sala de apoio.Posto isto que analisa a normatização das salas de apoio, passamos a apresentar a organização metodológica e os dados empíricos de nosso estudo. Objetivo Refletir sobre as significações das dificuldades de aprendizagem de professores e alunos envolvidos com as salas de apoio à aprendizagem do 6º ano do Ensino Fundamental de duas escolas estaduais em Londrina-PR. Metodologia O presente estudo se orientou pelos parâmetros da pesquisa qualitativa, na modalidade de estudo de casos múltiplos. (Yin 2005, Martins 2006). Contextualização do Estudo Ressaltamos a existência de um contexto favorável ao desenvolvimento de um estudo de casos múltiplos, tal como o descreve Yin (2005). Para o autor, o estudo de casos múltiplos oferece a possibilidade de replicação dos dados e de articulação entre os diferentes casos, o que configura um constructo de validação de resultado mais fidedigno. Para atender ao critério da Lógica da Replicação, selecionamos 2 unidades (escolas) da rede estadual de ensino que adotam um projeto único de sala de apoio, como contextos individuais para a realização dos estudos. Em cada unidade de ensino, professores da sala de apoio de Português e de Matemática e alunos que frequentam esse espaço, participaram da pesquisa. O tempo de coleta de dados foi de 2 meses nas duas escolas, durante 8 horas semanais em cada uma das unidades. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 282 Problema Quais as significações das dificuldades de aprendizagem para professores e alunos que participam da sala de apoio à aprendizagem? Participantes 25 alunos que frequentam o 6º ano do Ensino Fundamental de duas escolas da rede estadual de Londrina-PR (14 alunos da escola 1 e 11 alunos da escola 2) e 4 professores das salas de apoio (2 de cada escola), sendo 2 de Língua Portuguesa e 2 de Matemática. Procedimento de Coleta de Dados Aplicado de modo semelhante em cada unidade de ensino: observação das aulas nas salas de apoio, entrevistas com os professores e alunos e análise de documentos normativos das salas de apoio à aprendizagem. Instrumentos de Coleta e de Registro dos Dados Diário de campo, videogravações, fotos, roteiro de observação, roteiro de entrevista aos professores e aos alunos e documentos da legislação. Desenvolvimento Organizamos os resultados de nosso estudo em três eixos de análise: concepção de dificuldades de aprendizagem inferida dos documentos normativos; procedimentos adotados pelas escolas para o encaminhamento e desenvolvimento do trabalho na sala de apoio e significação atribuída por professores e alunos para as dificuldades de aprendizagem e para a sala de apoio. Eixo 1- Concepção de dificuldades de aprendizagem inferida dos documentos normativos da sala de apoio. A legislação que normatiza o trabalho na sala de apoio apresenta alguns aspectos que sugerem reflexão: o modo como os professores são selecionados para atuarem na sala de apoio, a ausência de preocupação com teorias sustentadoras do trabalho com dificuldades de aprendizagem, ênfase aos aspectos administrativos em detrimento do âmbito pedagógico, a estrutura física das escolas como definidora da condição ou não de oferta das salas de apoio, as atribuições do professor da sala de apoio e a avaliação dos alunos pelos professores das salas regulares e da sala de apoio, tanto para o encaminhamento como para a saída do programa. Entendemos que pela legislação, os elementos definidores do trabalho na sala de apoio estão I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 283 pautados em uma concepção de dificuldades de aprendizagem particularizadora do não aprender. Esse modo de olhar para o não aprender reforça a idéia de que as dificuldades de aprendizagem são do aluno e de sua família. A partir da instituição de salas de apoio e sua implantação como um projeto único em toda a rede estadual, o estado se exime da responsabilidade para com o não aprender oficializado nas estatísticas de reprovação e de evasão no sexto ano do Ensino Fundamental. Passa a ser um “cobrador” de responsabilidades das escolas e dos professores quanto ao programa por ele implantado e requerer minimização dessa estatística desfavorável politicamente. Os números da repetência e evasão são substituídos pelo número de “atendimentos” realizados aos alunos ditos com dificuldades de aprendizagem. Nos documentos oficiais não há, por exemplo, preocupação em delimitar um prazo mínimo de permanência do aluno na sala de apoio. Na realidade, o que observamos é uma rotatividade de alunos que não chegam a participar do programa, nem mesmo durante um bimestre inteiro. Este procedimento, em nosso entender apenas reforça estereótipos, solidifica a segregação e serve para comprovar que o problema é do aluno. Ao enfatizar, nas atribuições da equipe envolvida, muito mais os aspectos administrativos que pedagógicos do programa, a legislação exime e ao mesmo tempo culpabiliza o professor, pelo não aprender. Afinal, o Estado oportuniza a condição de superação por meio das salas de apoio. Não há preocupação com a formação continuada, concursos específicos para selecionar quem atuará na sala de apoio, nem mesmo encontros frequentes que busquem promover reflexão dos envolvidos. Assim, torna-se oportuno atribuir por vezes ao professor e a metodologia empregada e em outros momentos ao aluno e sua família (que não se interessam), o insucesso pelo aprender. Eixo 2 – Procedimentos de encaminhamento e desenvolvimento do trabalho na sala de apoio. As duas unidades escolares investigadas revelaram semelhanças quanto ao modo como são encaminhados os alunos para a sala de apoio. Nas primeiras semanas do ano letivo as salas de apoio à aprendizagem foram constituídas, partindo dos encaminhamentos dos professores das salas regulares de 5ª série (6º ano). O número máximo de vagas determinado na legislação (15 alunos), dividido pelo número de salas de 5ª série na escola, deu a quantidade de alunos de cada turma a serem encaminhados pelos professores das salas regulares à sala de apoio. É interessante observar que nem mesmo o critério de notas baixas que geralmente é adotado do segundo bimestre em diante, pôde ser o definidor da escolha do grupo que passou a frequentar a sala de apoio no primeiro bimestre, pois na terceira semana de aula do ano letivo, os alunos foram encaminhados, portanto, antes das avaliações do bimestre. Os critérios dos professores, evidenciado para o encaminhamento dos alunos são subjetivos: empatia ou não com o aluno, felling do professor, a I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 284 observação do comportamento do aluno nos primeiros dias de aula (indisciplina), aquilo que “conhecem” sobre sua família e ocorrências de anos anteriores. O aluno passa a frequentar a sala de apoio como uma “punição” à sua inadequação frente ao modelo ideal de aluno que a escola e os professores apresentam. É indicado porque não atende às exigências de “aluno normal” necessárias às situações de aprendizagem. É encaminhado porque é um aluno-problema, porque reúne em si as impossibilidades de aprender. Assim que o aluno cumpre sua “punição” na sala de apoio, pode retornar à “normalidade” da sala regular. Alguns alunos frequentaram apenas por duas semanas a sala de apoio e “foram autorizados” a sair do programa. Perguntamos-nos: que poder é este, dado à sala de apoio para a recuperação das dificuldades de aprendizagem, ao ponto de serem suficientes duas semanas de trabalho? Em uma das unidades escolares, um aluno foi incluído na penúltima semana do 1º semestre letivo, porque vinha apresentando indisciplina em sala. O tipo de trabalho desenvolvido nas salas de apoio observadas confirma a concepção de que cabe ao aluno aproveitar a oportunidade de rever aquilo que não conseguiu aprender. Partindo do que assegura a legislação de que a sala de apoio deve trabalhar com conteúdos iniciais (de 1ª à 4ª séries) das duas disciplinas (Português e Matemática), em não poucas situações observamos uma repetição do conteúdo e da metodologia empregados na sala regular. Com exceção de uma sala de apoio de matemática, na qual se evidenciou preocupação por parte do professor com a construção do conhecimento e metodologia diferenciada, as demais repetiram diariamente a leitura de textos em que cada aluno lia um trecho em voz alta (geralmente de forma sofrível, o que impedia a compreensão de todos), cópia das questões interpretativas e problemas matemáticos ditados aos alunos para que os respondessem em seus cadernos. Os procedimentos acima descritos indicam que a significação dada à sala de apoio atribui ao aluno a responsabilidade pelo não aprender. Ao ter a chance de rever aquilo que não aprendeu e “desperdiçála”, o estereótipo de mau aluno é reafirmado e desse modo a sala de apoio à aprendizagem ratifica a segregação. Além disso, a ênfase está no conteúdo e não no processo de aprendizagem do aluno. Significação Atribuída por Professores e Alunos para as Dificuldades de Aprendizagem e para a Sala de Apoio. Na entrevista que fizemos aos professores (numerados aqui de 1 - 4) buscamos investigar suas concepções sobre dificuldades de aprendizagem por meios de questões que enfatizaram: definições de aprendizagem e de dificuldade de aprendizagem; principais características dos alunos com dificuldades de aprendizagem; as dificuldades mais frequentes apresentadas; causas que atribuem ao não aprender e os principais problemas que enfrentam no trabalho com as dificuldades de aprendizagem. As respostas apresentadas por 3 dos 4 professores entrevistados indicaram que o aprender é tomado como acerto da I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 285 escola, enquanto o não aprender é definido como incapacidade do aluno. Part.1. Aprender é uma reação de interesse, reação de tudo que desperta interesse de qualquer cidadão e até de uma criança. Ele aprende desde que esteja interessado. (grifo nosso). Part.1. Dificuldades de aprendizagem eu vejo assim... podem ser problemas extraclasse que afetam muito a capacidade de aprendizagem: o estilo de vida que ele tem, os problemas familiares, dificuldades financeiras, enfim, diversas situações que afetam no aprendizado. O aprendizado em si é uma absorção de conhecimentos daquilo que é importante para ele. O aprendizado vai muito em cima daquilo que ele vive. Nas falas acima, se percebe a concepção de que as dificuldades de aprendizagem são produzidas fora da escola, estão localizadas no sujeito e em sua família e a escola é vitimizada e desconsiderada como co-produtora deste fenômeno. A ênfase na expressão “até uma criança” sugere menor valor e atribui ao interesse da criança a condição de aprender. Sobre as características do aluno com dificuldades de aprendizagem afirmou: Part.1. É sempre aquele aluno que tem dificuldades extra-sala: problema familiar, falta de acompanhamento dos pais, desinteresse dos pais deles de acompanhar a vida escolar dos filhos. Então acho que isso dificulta bastante. E quanto às causas das dificuldades de aprendizagem, afirmou: Part.1. A causa principal é isso, eu sempre relaciono muito a família com o aluno. Então se ele tem uma família que o acompanha, que está sempre atenta, participa da vida dele escolar, ajuda ele a eliminar essas dificuldades. Percebemos que na significação dada por este professor às dificuldades de aprendizagem sequer a escola é considerada elemento participante. É como se a escola apenas recebesse o problema (originado e desenvolvido em dimensões externas) e não fosse, em nada responsável a não ser em extingui-lo. O participante 2 assim define aprendizagem: “Aprender não é decorar e, sim, entender o que está fazendo, não seria a quantidade e sim a qualidade.” Para dificuldades de aprendizagem, a definição dada foi: Part.2. São alunos que têm dificuldades pra se concentrar, são muito agitados e o principal é a interpretação, pois muitos vão bem nas regras da gramática conseguem decorar e, quando chega na interpretação não conseguem abstrair.(grifo nosso). Essa contradição quanto à memorização nas definições de aprendizagem e de dificuldades de aprendizagem (“aprender não é decorar”, mas... “para ir bem na escola o aluno deve ser capaz de memorizar os conteúdos”) apareceu nas observações de situações de aula e nos demais questionamentos realizados ao professor, confirmando que o aluno “está sem as devidas condições para aprender” e, por I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 286 isso, é um problema. Como causas das dificuldades de aprendizagem o participante aponta: Part.2. É o aluno conseguir se concentrar, ele querer, porque atualmente o que compete com a escola são coisas que não conseguimos alcançar, por exemplo, o vídeo, a internet, televisão é tudo, então a competição está muito desleal. Eles têm acesso a muitas coisas que dão mais prazer que a escola que ele tem que parar para se concentrar e, é tudo muito rápido, a internet dá respostas rápidas e prontas ele não precisa raciocinar muito não. Agora na escola ele tem que parar, se concentrar e pensar e aí a preguiça mental impera. Embora haja um reconhecimento de variados elementos no processo de aprendizagem, ainda predomina o conceito estereotipado de que o não aprender é responsabilidade do aluno. O participante 3 assim definiu aprendizagem: “fixar conteúdos, modificar o comportamento, amadurecer.” Sobre as dificuldades de aprendizagem, a definição foi: “Dificuldade em aprender, em assimilar e modificar”. Quando solicitamos as características dos alunos com dificuldades de aprendizagem, ouvimos do participante: “Ou ele é muito tímido ou impulsivo ou agressivo ou disperso”. Trata-se de um conjunto de atributos reunidos nessas definições, tidos como negativos que são localizados no aluno e parecem assumir um caráter permanente... “ele é” e isto o impede de agir, de pensar, de aprender. O participante 4 foi o único no grupo de professores participantes a apresentar uma definição não polarizada entre escola e aluno/família: Part.4. a aprendizagem é um processo. De nada adianta eu acelerar os conteúdos se o raciocínio não acompanha. Não dá pra ignorar na aprendizagem, outras dimensões relativas à história de vida deles. Veja aqui, (mostra os alunos) são diferentes histórias, marcas que interferem. O processo de cada um vai ser diferente. A gente pergunta mais o que eles não sabem e pouco o que a gente pode fazer por eles como escola. Se não aprendem, não é só porque têm uma vida difícil. A escola também não atinge a necessidade de aprendizagem deles... é tudo junto, escola, aluno, família. Quanto à concepção sobre a sala de apoio, os professores participantes foram unânimes em ressaltar seu valor positivo, mas destacamos a fala de um de nossos sujeitos, por ser ela contundente: Digo aos alunos e aos seus familiares que o estado está pagando professor particular para eles e que se não valorizarem, nada mais poderá ser feito. Depende deles (dos alunos e família) superarem ou não as dificuldades que têm. Essa oportunidade que o governo está dando é algo muito importante porque I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 287 as famílias deles nunca conseguiriam pagar por esse serviço. Essa concepção de que o aluno está em falta e traz consigo o problema, é percebida nos documentos normativos, no modo como são articulados os elementos que instituem as salas de apoio e podem ser percebidos também na concepção dos professores sobre as dificuldades de aprendizagem. O ponto de partida é o de que o projeto é um sucesso inquestionável e, portanto, é responsabilidade do aluno passar por esse programa e apresentar resultados absolutamente diferentes que possam ser interpretados como “normais” e que indiquem que houve superação das dificuldades de aprendizagem. E como veem tais questões os alunos? Investigamos se gostam da sala de apoio; as semelhanças e diferenças entre a sala regular e a sala de apoio; por que acham que foram escolhidos para a sala de apoio; que tipo de aluno ele pensa que é; o que a professora, a família e os amigos acham dele participar da sala de apoio. Foi interessante percebermos que o discurso que os culpabiliza, já foi por eles incorporado. Dos 25 alunos entrevistados, a maioria indica em suas respostas que se consideram indisciplinados (mau comportamento) e por essa razão “merecem” estar na sala de apoio. Embora afirmem que a sala de apoio é um lugar privilegiado para aprender, quando perguntamos o que é igual e o que é diferente entre os dois espaços, evidenciam muitas semelhanças e poucas diferenças entre a sala de apoio e a sala regular, o que confirma as repetições nos dois espaços. Algumas respostas são eloquentes: ...“o que ensinam é igual”; “as carteiras, o ensino, usam o livro, a bagunça”; “copiar do quadro, o jeito do ensino”; “as bagunças, as matérias”; “as atividades, a leitura”. Quando perguntamos por que foram escolhidos para a sala de apoio, enfatizaram o quanto são “maus alunos”, o quanto são “burros”, “fracos”, incompetentes para aprender. Eis algumas respostas: “Eu sou muito fraco e aqui eles ajudam a recuperar”; “moro com minhas tias, avós e mãe, acho que eles não incentivam”; “na hora (refere-se ao momento em que foi comunicada que iria para a sala de apoio) eu não senti nada, eu sabia que precisava vir e, mesmo que eu fosse bem, seria escolhida pra cá. A professora pegava no meu pé e eu era ruim mesmo.” Estas falas são reveladoras de quanto o processo de culpabilização já atingiu esses alunos fazendo com que incorporem o discurso de que têm um problema em si, ou em suas famílias. Investigando o que pensam seus amigos, a professora e sua família sobre o fato de terem dificuldades para aprender, o conceito não difere do que analisamos até agora: “minha professora acha que sou bagunceira, namoradeira”; “meus amigos tiram sarro, me chamam de burra”; “meus amigos acham que sou trouxa”; “minha mãe acha que eu tenho que vir mesmo pra ficar mais inteligente”; “minha família acha que eu sou ruim”; “eles [família] não gostam. Acham ruim eu estar no reforço já no começo do ano”; “ela I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 288 [professora] não acha nada porque só grita e não conversa com os alunos”. Finalizando a breve apresentação de nossos dados, gostaríamos de salientar a força dos estereótipos e lembrar como permeiam todos os espaços, desde as políticas de implantação até o modo como crianças e familiares se veem participantes deste processo, o que em nosso entender inviabiliza os objetivos para os quais um espaço de apoio à aprendizagem é instituído. Considerações Finais No presente artigo, analisamos a relação existente entre os documentos normativos, o desenvolvimento do trabalho e as concepções de alunos e professores, sobre as dificuldades de aprendizagem, nas salas de apoio. Pudemos discorrer sobre a sutil, mas eficiente inviabilização de um processo de restabelecimento das condições de aprendizagem, a partir do momento em que a rotulação e a segregação encontram lugar, em detrimento da valorização de um processo de construção. Nossos dados neste estudo apontaram para desencontros entre os caminhos trilhados pelo aluno na construção do conhecimento e o que significa a aprendizagem nas propostas governamentais, para a escola e para o professor. Indicaram um percurso de trabalho a ser adotado nas salas de apoio à aprendizagem que favoreçam a ação auto-estruturante do sujeito. Partindo do pressuposto teórico piagetiano adotado nesta pesquisa, a escola e em especial no que concerne ao trabalho com as dificuldades de aprendizagem, não pode prescindir de um ambiente problematizador que coloque o sujeito da aprendizagem em atividade construtiva. Situações problematizadoras provocadoras de reflexão, análise dos próprios meios empregados e tomada de consciência das próprias ações deve constituir a tônica de um projeto que visa oportunizar um ambiente específico de trabalho com as dificuldades escolares. Referências MACEDO, L. de. Ensaios Construtivistas. 5ª ed., São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. ______. Ensaios pedagógicos: como construir uma escola para todos. Porto Alegre: ArtMed, 2005. ______. Dificuldades de Aprendizagem e Gestão Escolar. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, 2008. (p. 1-12) MARTINS, G.A. Estudo de Caso: Uma estratégia de pesquisa. São Paulo: Ed. Atlas, 2006. MONTANGERO, J., MAURICE-NAVILLE, D. Piaget ou a inteligência em evolução: cronológica e vocabulário. Porto Alegre: ArtMed, 1998. Sinopse OLIVEIRA, F. N. de . Um estudo das interdependências cognitivas e sociais em escolares de diferentes idades por meio do jogo Xadrez Simplificado. Tese de doutorado, Faculdade de Educação. Unicamp, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 289 Campinas SP, 2005. PIAGET, J. A equilibração das estruturas cognitivas: problema central do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. ______. A tomada de consciência. São Paulo, Melhoramentos / EDUSP, 1977. ______. Fazer e compreender. São Paulo, Melhoramentos /EDUSP, 1978. ______. As formas elementares da dialética. Macedo. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1980. Trad. Fernanda Mendes Luiz. Coordenação Lino de YIN, R. K. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Trad. Daniel Grassi. Bookman, 2005. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 3 ed. Porto Alegre: 290 A Concepção de Aprendizagem na Formação de Professores num Contexto de EAD PEIXOTO, Analissa Scherer UFRGS – Faculdade de Educação [email protected] Resumo Esse artigo se propõe a uma análise teórica sobre a aprendizagem, tendo por base o referencial piagetiano. Esta temática é apresentada contextualizada na Educação a Distância, em específico no curso de Graduação em Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (modalidade a distância), considerando sua implicação nas práticas pedagógicas do curso, bem como no próprio currículo, voltado para a formação de professores. Palavras-Chave: Aprendizagem. Formação de professores. Educação a distância Abstract This article aims at a theoretical analysis on learning, based on the Piagetian reference. This subject is presented in context, Distance Education, in particular in the course of graduate education at Federal University of Rio Grande do Sul (distance mode), considering their involvement in teaching the course and in the curriculum, focused on teacher training. Keywords: Learning. Teacher training. Distance education I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 291 Introdução Refletir sobre a concepção de aprendizagem na Educação e, em especial, na Formação de professores é extremamente necessário, principalmente com as demandas oriundas do contexto atual. Estamos inseridos num período que estudiosos como Manuel Castells (apud HARGREAVES, 2004, p.32) denominam sociedade informacional ou 'era da informação', que impõe uma nova ordem social e econômica. Esse cenário caracteriza-se pelo grande valor dado ao domínio da informação e do conhecimento. Esse paradigma reflete inegavelmente na escola e na própria Educação, na medida em que demanda uma outra formação, distinta da praticada na Educação Tradicional. Para Gimeno Sacristán (2007, p.42) a sociedade da informação coloca educadores, administradores e pais num mundo onde aparecem outras formas de se encontrar com o conhecimento: Criam-se novos ambientes em que se pode aprender e se aprende ou em que se utilizam com mais profusão os códigos visuais. Tudo isso proporciona novas possibilidades e meios de aprender que nos desafiam de fora para poder transformar a experiência educativa de acordo com os fins básicos que orientam a educação moderna: universalização, igualdade de oportunidades, solidariedade por meio de um serviço público de qualidade, formação de indivíduos racionais e independentes, gosto pelo saber, práticas não-autoritárias... De certa forma essa demanda oriunda da sociedade também reflete-se na formação de professores na medida em que os cursos precisam formar profissionais preparados para lidar com essas demandas contemporâneas e também dos alunos que estão inseridos nesse contexto. Por isso, à formação não cabem modelos baseados no paradigma racional-técnico (LAROCCA, 2000), especialmente por este não dar conta da complexidade presente nas questões educacionais. No paradigma crítico-reflexivo, embora a questão técnica seja considerada necessária, ela jamais deve ser compreendida como a totalidade das questões educativas. De acordo com a autora supracitada: A complexidade da dinâmica educativa e a própria realidade social em que esta se insere colocam resistências muito concretas ao enquadramento em esquemas fixos de causa e efeito, à previsibilidade de certos fenômenos, às taxionomias existentes e às generalizações que se arrogam universalmente válidas. O paradigma crítico-reflexivo se alicerça na concepção de que a atuação do professor é complexa e envolve uma interação simultânea de múltiplos fatores. Nessa perspectiva, a complexidade das situações interpõe-se entre o pensar e o agir do professor. É importante que a formação seja permeada por práticas flexíveis, que possibilitem a vivência por parte das pessoas conscientes da velocidade das mudanças e preparadas para elas. Nesse contexto, a Educação a Distância, mediada por recursos tecnológicos e calcada num I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 292 modelo pedagógico coerente poderá se configurar numa opção para atender as demandas atuais. A EaD pode ajudar a superar o conteudismo, principalmente ao desenvolver propostas que privilegiem a autonomia, a criatividade e a consciência crítica. A EaD dentro dessas características, que enfatize atividades individuais e grupais, favorecendo a constituição de comunidades virtuais de aprendizagem, promovendo a escrita colaborativa, exige também um novo tipo de aluno, desafiado a construir e reconstruir sua aprendizagem. Aprendizagem A aprendizagem é fundamental para a vida, pois é através da aprendizagem que o ser humano adquire habilidades que lhe possibilitam viver, conviver, evoluir.(Zanella, 2001) A aprendizagem é um processo vital, pois em qualquer etapa ou momento da vida a pessoa está aprendendo. Para ela, a aprendizagem opera mudanças no comportamento, no desempenho, na ética e nos enfoques da pessoa. A posição da referida autora, no entanto, carece de complementação se for analisada a partir da epistemologia genética. Piaget explica que mesmo todo o resultado adquirido em função da experiência não constitui uma aprendizagem: “[...] é necessário, pois, reservar o termo de aprendizagem a uma aquisição em função da experiência, mas se desenvolvendo no tempo, quer dizer mediata e não imediata como a percepção ou a compreensão instantânea” (PIAGET, 1974, p.53). Para Ramos (2001) aprender é se deparar com o desconhecido, com o desafio de crescer e amadurecer frente à realidade. É um processo em que paixão e cognição estão inter-relacionadas. O desejo transfere sentido para o aprender, provocando com isso um investimento pessoal e a geração de conhecimentos. Piaget, em suas obras também reconhece a importância do afeto, embora não tenha sido esse o seu foco de interesse e estudo. Ele afirma que entre o afeto e as estruturas cognitivas configura-se uma relação de correspondência, nunca de causalidade: o afeto explica a aceleração ou o retardamento da formação das estruturas, mas não é a causa da formação das estruturas. Não há atos de inteligência, inclusive de inteligência prática, sem que haja interesse do ponto de partida e regulação afetiva durante todo o curso de uma ação; sem alegria no sucesso ou tristeza no insucesso. Igualmente, no nível da percepção temos motivações afetivas. O que nós percebemos é uma função da regulação da atenção, que é maravilhosamente motivada por necessidades e interesses. (PIAGET, 1962) Como o referido autor desenvolveu sua teoria centrando-se nos aspectos cognitivos, embora haja o reconhecimento do afeto como descrito anteriormente, sua definição de aprendizagem é focada nos esquemas mentais. Aprender significa assimilar o objeto a esquemas mentais. Logo, o sujeito aprende quando a estrutura cognitiva é reajustada pela incorporação de um elemento novo, alterando o ato de I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 293 conhecer no sentido do sujeito e adquirir uma nova resposta (mais adaptativa) às exigências do meio como resultado da interação desse sujeito com o meio. Nesse sentido, as exigências do meio geram uma necessidade no indivíduo e essa necessidade tende a gerar um desequilíbrio. Para Zanella (2001, p.28) esse desequilíbrio faz surgir motivos (que se entende como o que impulsiona/tensiona) o indivíduo para ir 'em busca de algo', ou seja, ele mobiliza o sujeito na busca de algo que faça o organismo restabelecer o equilíbrio. Para Piaget, a necessidade é sempre a manifestação de um desequilíbrio. “Ela existe quando qualquer coisa, fora de nós ou em nós (no nosso organismo físico ou mental) se modificou, tratando-se então de um reajustamento da conduta, em função dessa mudança”. Como forma de buscar o restabelecimento do equilíbrio, o indivíduo parte para a ação. As ações, nesse sentido, são desequilibradas pelas transformações que aparecem no mundo, exterior ou interior, e “cada nova conduta vai funcionar não só para restabelecer o equilíbrio, como também para tender a um equilíbrio mais estável que o do estágio anterior a essa perturbação.” A ação “se finda desde que haja satisfação das necessidades, isto é, logo que o equilíbrio – entre o fato novo, que desencadeou a necessidade e a nossa organização mental, tal como se apresentava anteriormente – é restabelecido”. (PIAGET, 1982, p.14) Esse processo da busca constante pelo equilíbrio aparece na teoria piagetiana de forma mais detalhada como o cerne do desenvolvimento. Rappaport (1981, p.62) explica que, para Piaget, “o desenvolvimento é um processo que busca atingir formas de equilíbrio cada vez melhores”. No entanto, o que diferencia Piaget dos demais autores que abordam a questão do equilíbrio é que ele não enfoca o equilíbrio de maneira estática. Para ele esse conceito é dinâmico, é um processo: processo de equilibração. De acordo com Dolle (1983, p.56) a noção de equilíbrio na teoria piagetiana implica a de reversibilidade e o desenvolvimento intelectual. Quanto mais estável o equilíbrio, mais móvel será a reversibilidade. Porém, cabe destacar que o equilíbrio proposto por Piaget é essencialmente móvel e aberto. “Uma estrutura em equilíbrio é uma estrutura capaz de compensações (...) mas é também uma estrutura aberta, vale dizer, capaz de adaptar-se às condições variáveis do meio”. Quanto ao processo de equilibração, ela se constitui inclusive como ponto de distinção entre os tipos de aprendizagem na teoria piagetiana. Ele propõe a distinção da aprendizagem num sentido amplo (lato sensu) e a aprendizagem num sentido restrito (stricto sensu). Para o autor, a distinção entre essas formas de aprendizagem é importante e necessária para evitar ambiguidades e contradições. * Aprendizagem no sentido restrito: aprendizagem definida a partir de um resultado (conhecimento ou atuação). É adquirida em função da experiência (podendo ser do tipo físico, do tipo I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 294 lógico-matemático ou dos dois) (PIAGET, 1974, p.52). * Aprendizagem no sentido amplo: é a união das aprendizagens stricto sensu com os processos de equilibração (coerência pré-operatória). De acordo com Inhelder, Bovet e Sinclair (1977) a aprendizagem stricto sensu está sempre subordinada a aprendizagem lato sensu. Esta segunda corresponderia as leis do próprio desenvolvimento. A aprendizagem, no sentido amplo, seria obtida pela síntese das aprendizagens no sentido estrito com o processo de equilibração dessas aprendizagens com as aprendizagens no sentido amplo construídas anteriormente. Esse processo de equilibração também pode ser chamado de abstração reflexionante e, de acordo com Becker e Marques (2002, p.95) “se realiza na medida em que o sujeito apropria-se dos mecanismos íntimos das próprias ações ou das coordenações de suas ações”. A aprendizagem, para Piaget (1972), é um processo distinto do desenvolvimento. Enquanto o desenvolvimento do conhecimento é espontâneo, a aprendizagem é provocada por situações (por um experimentador psicológico ou por um professor em relação a algum ponto didático) ou por uma situação externa. Outro ponto que Piaget considera fundamental é a relação envolvida em todo desenvolvimento e toda aprendizagem. Para ele a relação essencial é a de assimilação, definida em linhas gerais como “a integração de qualquer espécie de realidade em uma estrutura”. Para Piaget, o fundamental na aprendizagem é a assimilação. E isso precisa ser considerado especialmente do ponto de vista das aplicações pedagógicas e didáticas. Piaget (1972) compreende, pois, a criança e o sujeito da aprendizagem como ativos, tendo maior ênfase é justamente a ideia de auto-regulação presente na assimilação, a partir atividade do próprio sujeito. A auto-regulação é a equilibração, sendo o que capacita o sujeito a eliminar contradições, incompatibilidades e conflitos. Os conflitos, portanto, são necessários para o desenvolvimento. De acordo com Piaget (1972) “todo desenvolvimento é composto de conflitos e incompatibilidades momentâneas que devem ser ultrapassadas para alcançar um nível mais alto de equilíbrio”. Para o referido autor, sem essa atividade não existe didática ou pedagogia que transforme significativamente o sujeito. Nesse sentido, um modelo pedagógico calcado numa concepção epistemológica construtivista, que acredita que todas as aprendizagens que o aluno constrói e construiu ao longo de sua vida servem como um patamar para a construção de novos conhecimentos. A aprendizagem é compreendida como I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 295 construção, ação e tomada de consciência da coordenação das ações. Esse modelo também é denominado de construtivista por conceber que o sujeito constrói seu conhecimento em duas dimensões complementares: “como conteúdo e como forma (ou estrutura); como conteúdo ou como condição prévia de assimilação de qualquer conteúdo” (BECKER, 2001, p. 26). Esse processo constitutivo não tem começo nem fim absolutos. O processo de aprendizagem, por ser dialético, exige dupla atenção do professor. Freire (apud BECKER, 2001) diz que o professor, além de ensinar, passa a aprender e o aluno, além de aprender, também ensina. Nessa perspectiva, só se aprende (re) criando para si e, sobretudo, criando conhecimentos novos: criar novas respostas para antigas perguntas e novas perguntas para antigas respostas. Sintetizando essa proposta pedagógica e a sua defesa como proposta válida para repensar a educação e o seu sentido: Uma proposta pedagógica relacional visa a sugar o mundo do educando para dentro do mundo conceitual do educador. Esse mundo conceitual do educador sofre perturbações, mais ou menos profundas, com a assimilação do conteúdo novo. A alternativa é responder ou sucumbir. A resposta abre um mundo novo de criações. A não-resposta condena o professor às velhas fórmulas que descrevemos anteriormente e, consequentemente, à perda do significado de sua existência. A condição para que o professor responda está, como vimos, numa crítica radical não só do seu modelo pedagógico, mas de sua concepção epistemológica. (BECKER, 2001, p.32) Essa questão dos modelos pedagógicos e dos modelos epistemológicos configura-se como um movimento vital para a educação. É preciso que o professor tome consciência de quais concepções permeiam suas ações gerando com isso reflexões sobre qual aluno imagina ter e qual cidadão deseja que seu aluno se torne. Como vimos, cada proposta pedagógica e epistemológica privilegia um tipo de ação e de relação que se estabelece entre o aluno e o conhecimento. Em relação à Educação a Distância, Becker (2002, p. 93) compreende e reforça que os mesmo cuidados que sem tem em relação ao ensino presencial deve ser aplicado na EaD. “O grande desafio é utilizar a tecnologia como aliada e não como substituta da riqueza do processo de construção do conhecimento que se dá na ação do sujeito, mesmo quando mediada por máquinas”. Moran (1997) também aborda essa relação da tecnologia com a educação, ao falar da internet. Para ele: Ensinar na e com a Internet atinge resultados significativos quando se está integrado em um contexto estrutural de mudança do processo de ensino-aprendizagem, no qual professores e alunos vivenciam formas de comunicação abertas, de participação interpessoal e grupal efetivas. Caso contrário, a Internet será uma tecnologia a mais, que I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 296 reforçará as formas tradicionais de ensino. A Internet não modifica, sozinha, o processo de ensinar e aprender, mas a atitude básica pessoal e institucional diante da vida, do mundo, de si mesmo e do outro. A tecnologia, se analisada isoladamente, não opera mudanças. O que irá realmente significar a ação, e no caso da educação, a possibilidade de aprendizagem serão os paradigmas e concepções epistemológicas que sustentarão a ação do indivíduo, mediada pela tecnologia. Sobre isso, Moraes (2002) afirma que, embora as novas tecnologias possam se constituir como ferramentas importantes para processos construtivos de aprendizagem calcadas na cooperação, na reflexão na autonomia, o que se tem visto na grande maioria dos cursos desenvolvidos no Brasil e no Exterior é a prioridade às concepções tradicionais e empiristas da educação. Como motivo para tal fato, a autora pontua a questão como decorrente da ausência de um modelo adequado de formação do professor para o uso competente dessas novas tecnologias nos ambientes escolares. Ela coloca que faltam metodologias mais adequadas e que estejam epistemologicamente mais atualizadas, inspiradas em paradigmas voltados para pressupostos construtivos e criativos. Com ou sem tecnologia, a educação a distância carece de metodologias que compreendam desenvolvimento e aprendizagem como processos integrados e abrangendo as várias dimensões humanas (MORAES, 2002). Embora ainda com o predomínio de cursos calcados em modelos teóricos tradicionais, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, se destaca no cenário nacional, pela proposta diferenciada do seu Curso de Graduação em Pedagogia, na modalidade a Distância. Esse curso tem como um dos seus fundamentos teóricos a concepção piagetiana de construção do conhecimento. Com sua proposta teórica e suas práticas fundamentadas na perspectiva construtivista, interativa e problematizadora, esse curso se coloca como um modelo inovador em relação aos demais que são praticados no nosso país. O Curso de Graduação em Pedagogia (Modalidade a Distância) da UFRGS O Curso de Graduação em Pedagogia, na modalidade a distância (PEAD) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é um curso que teve seu início em 2006 e encontra-se atualmente no seu 6° semestre. É direcionado exclusivamente para profissionais que já atuam nas séries iniciais do ensino fundamental, educação infantil e gestão escolar e que não possuem habilitação específica, em nível superior, para a função que exercem. Foram ofertadas 400 vagas, distribuídas em cinco polos: Alvorada, Gravataí, Sapiranga, São Leopoldo e Três Cachoeiras. Além da administração geral e coordenação pedagógica, o curso conta com uma equipe de apoio docente permanente, constituída por professores coordenadores e tutores, estes divididos em tutores de polo (que prestam atendimento diretamente no polo) e tutores de sede (que realizam o atendimento a distância). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 297 Dentre os diferenciais desse curso, destaca-se, sua proposta pedagógica e metodológica, que trabalha com arquiteturas pedagógicas abertas, onde a aprendizagem é pensada como um trabalho artesanal, construído na vivência de experiências e na demanda de ação, interação e meta-reflexão do sujeito sobre os fatos, os objetos e o meio ambiente socioecológico (KERKHOVE, 2003, apud NEVADO, 2008). O Projeto Político Pedagógico do Curso PEAD (Bordas, Nevado e Carvalho, 2005) se organiza em função de três pressupostos básicos: - Autonomia relativa da organização curricular, considerando as características e experiências específicas dos sujeitos aprendizes; - Articulação dos componentes curriculares entre si, nas distintas etapas e ao longo do curso; - Relação entre Práticas Pedagógicas e Pesquisa como elemento articulador dos demais componentes curriculares, constituída como estratégia básica do processo de formação de professores. Na organização curricular do curso, a estrutura adotada é interdisciplinar, onde cada semestre é organizado em torno de um Eixo Articulador, das quais cada área congrega suas contribuições. As temáticas propostas procuram o estabelecimento de entrelaçamento entre as diferentes áreas, buscando pontos de convergência e que visam um entendimento global, rompendo com os limites disciplinares das áreas de conhecimento. O curso, de acordo com Nevado (2008) parte do pressuposto que o conhecimento nasce do movimento da dúvida, da incerteza, da necessidade da busca de novas alternativas, do debate, da troca. Nesse sentido, o posicionamento principalmente do professor e do tutor são fundamentais para desencadear esse movimento de busca e de troca. E essa concepção construtivista do conhecimento faz-se presente não apenas no modo como professores e tutores interagem com os alunos nos ambientes virtuais, mas também no processo de escolha dos materiais e elaboração das aulas e atividades. Encontramos em Piaget (2000, p.16) uma referência a este lugar que o professor deve ocupar ao entabular relação entre o objeto de aprendizagem e o sujeito aprendente: O que se deseja é que o professor deixe de ser apenas um conferencista e que estimule a pesquisa e o esforço, ao invés de se contentar com a transmissão de soluções já prontas. Acrescenta ainda é preciso que o mestre-animador não se limite ao conhecimento da sua ciência, mas esteja muito bem informado a respeito das peculiaridades do desenvolvimento psicológico da inteligência da criança ou do adolescente: a colaboração do experimentador psicogenético é, por conseguinte indispensável para a prática eficaz dos métodos ativos. Deve-se estar preparado para uma colaboração, muito mais estreita que a de até então, entre a pesquisa psicológica fundamental e a experimentação I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 298 pedagógica metódica. O curso em si possui esse caráter de estar em constante movimento de análise e reflexão. São feitas análises constantes do andamento e funcionamento do(s) grupo(s) buscando identificar e aprimorar cada vez mais o curso. Outro ponto importante a ser destacado no processo de construção do conhecimento, no qual a perspectiva de Piaget contribui indubitavelmente, refere-se ao seu posicionamento em relação ao erro no processo de aprendizagem. Diferentemente das concepções tradicionais, Piaget (2000, p.18) apresenta uma concepção positiva do erro, como parte necessária do processo de aprendizagem. “Para chegar – através da combinação entre raciocínio dedutivo e os dados da experiência – à compreensão de certos fenômenos elementares, a criança necessita passar por certo número de fases caracterizadas por ideias que adiante irá considerar erradas, mas que parecem ser necessárias para o encaminhamento às soluções finais corretas”. Portanto, quando tutores e professores provocam questionamentos que mobilizam os alunos a refletir sobre suas aprendizagens, busca-se contemplar essa combinação do raciocínio dedutivo com os dados da experiência. Um dos objetivos do PEAD é a “formação profissional orientada para o desenvolvimento da autonomia intelectual e a postura crítico – reflexiva, num contexto de participação democrática.” (BORDAS, NEVADO e CARVALHO, 2005). Tal postura também se assenta nos pressupostos epistemológicos de Piaget (2000, p. 17) expressos no princípio fundamental dos métodos ativos: “compreender é inventar, ou reconstruir através da reinvenção, e será preciso curvar-se ante tais necessidades se o que se pretende, para o futuro, é moldar indivíduos capazes de produzir ou de criar, e não apenas de repetir.” No curso, sentimos claramente esse propósito, pois as proposições são direcionadas para o desenvolvimento de autonomia, autoria, além da busca constante por reflexões da prática docente dos alunos. No curso de Pedagogia à Distância, temos uma estrutura que propõe a aprendizagem no intercurso de problematizações e interações entre professores, alunos, tutores e coordenadores. Na perspectiva adotada, todos os sujeitos envolvidos no processo ocupam um papel fundamental para a aprendizagem efetivar. E essas interações são fundamentais para desencadear reflexões, principalmente a cerca da realidade e da sua prática pedagógica (considerando a característica do curso de propiciar formação para professores já em exercício docente). Analisando a partir da leitura dos fatores do desenvolvimento, as interações objetivam promover 'desequilíbrios' para que, nesse processo, o aluno reflita, tome consciência dos pontos de incoerência, repense criticamente, formulando novas hipóteses, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 299 novos conhecimentos. A partir dessa análise é possível complementar com o posicionamento de Delval (2007, p. 127) em relação ao processo de aprendizagem. Ele destaca que, muitas vezes os sujeitos não tomam consciência imediatamente das contradições em seu pensamento, sendo, pois, uma das tarefas do professor (e no caso do curso do PEAD, também função dos tutores) é situar o aluno diante dessas contradições e ajudá-lo a resolvê-las. E esse processo de reequilibração interna tem a ver com o que Piaget denominou equilibração. A aprendizagem, nessa perspectiva “baseia-se nas reorganizações internas dos conhecimentos que os sujeitos têm que realizar. Em sua busca de explicação, tomam consciência de que existem incoerências ou contradições e tratam de resolvê-las mediante modificações desses conhecimentos” (DELVAL, 2007, p. 126). O curso, tal como foi proposto e como está sendo desenvolvido desde seu início em 2006, corresponde no contexto atual ao que Piaget (2000, p. 25-26) pontuou como ações importantes para promover mudanças na Educação. Para o referido autor, um dos aspectos importantes é a questão da preparação dos professores. Na referida obra, ele considera esse ponto primordial para todas as reformas pedagógicas em perspectiva. Essa questão é analisada por ele sob dois aspectos: sob o ângulo social, o problema da valorização ou da revalorização do corpo docente primário e secundário, “a cujos serviços não é atribuído o devido valor pela opinião pública” e a questão da formação intelectual e moral do corpo docente, “pois quanto melhores são os métodos preconizados para o ensino mais penoso se torna o ofício do professor, que pressupõe não só o nível de uma elite do ponto de vista dos conhecimentos do aluno e das matérias, como também uma verdadeira vocação para o exercício da profissão”. Esse último ponto destacado pode ser cotejado na própria Educação a Distância. No senso comum é corrente a ideia de, nesta modalidade, o processo ser mais 'fácil' que no ensino presencial; ou seja, um ensino menos qualificado. No entanto, na vivência como tutora acompanhando o curso do PEAD, com a proposta pedagógica sob o qual se alicerça, sinto realmente o quão árdua é a tarefa dos professores e tutores. Durante a realização de cada atividade é fundamental analisar o posicionamento do aluno, buscando captar suas concepções em relação ao tema estudado para, buscar pontos passíveis de reflexão e que possam vir a gerar uma desacomodação. Ou seja, nessa perspectiva é impossível uma proposta de educação massiva e indiferenciada. Cada aluno precisa ser compreendido na sua singularidade. Por ser um curso cujo propósito é a formação de professores, especialmente voltado para as séries iniciais, educação infantil e gestão escolar, a temática da aprendizagem não se interpõe apenas como base para o currículo e as práticas pedagógicas do curso. Ela aparece também como conteúdo a ser estudado e I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 300 aprofundado teoricamente com as alunas. Ao longo do curso houve duas interdisciplinas cujo foco era a discussão sobre as teorias de aprendizagem, sendo a primeira de caráter introdutório e a segunda interdisciplina (“Desenvolvimento e Aprendizagem sob o Enfoque da Psicologia II”, que está sendo desenvolvida ao longo desse semestre) possui seu foco mais específico e direcionado para o estudo do processo de aprendizagem humana a partir do referencial teórico piagetiano; além de buscar a implicação da teoria de Piaget nas pesquisas e práticas educacionais. Em consonância com a proposta do curso e afinada com os pressupostos piagetianos, essa interdisciplina tem suas atividades direcionadas para a articulação da teoria com as práticas docentes das suas alunas, considerando o próprio espaço da sala de aula como espaço para o movimento de ação – reflexão – ação. Ou seja, a proposição das atividades já é elaborada de modo a propiciar a articulação da teoria com a prática. Posteriormente nas intervenções dos professores e tutores são feitas indagações de modo a questionar pontos inconsistentes, de modo a ampliar a reflexão, provocando desequilíbrios. As atividades também são articuladas de modo a ter um encadeamento que possa favorecer e apoiar as reconstruções. Como exemplo, eis uma situação em que a aluna, ao discutir a questão do juízo moral na teoria de Piaget, relacionada com suas ações na resolução dos conflitos na sala de aula, a aluna evidenciou uma compreensão equivocada da leitura feita, recebendo da tutora o seguinte comentário: Oi Iara*! No teu relato percebo que não identificaste uma situação específica, optando por descrever situações genéricas. No entanto, na compreensão das situações observadas na escola não entendi tua afirmação "Acredito dessa forma na concepção de Piaget que o ambiente imprime na pessoa o modo de ser e de se comportar, isto é, uma concepção empirista e considerando a experiência como algo que se impõe por si mesmo, não havendo necessidade da atividade do sujeito". Te sugiro que releia principalmente o material da professora Tania**. Será que o Piaget é empirista? E mais: para ele a atividade do sujeito é desnecessária? Por isso, é necessário rever tua análise, considerando especialmente a relação com os pressupostos teóricos. Pode contar conosco para te ajudar diante das dúvidas e dificuldades, ok? Abraços, Ane*. A aluna, após a realização da atividade subsequente, retomou essa atividade e postou a seguinte mensagem: Oi Ane*, Depois, de realizar o trabalho sobre o construtivismo e refletir percebi que "Acredito dessa forma na concepção de Piaget que esta afirmação que coloquei realmente está equivocada: "o ambiente imprime na pessoa o modo de ser e de se comportar, isto é, uma concepção empirista e considerando a experiência como algo que se impõe por si mesmo, não havendo necessidade da atividade do sujeito". Pois, ao contrário, Piaget, na sua teoria construtivista nos mostra a importância da ação e interação no processo de construção do conhecimento. Pois o conhecimento não se dá pelo meio, nem é passada, mas é construída, sendo que neste processo a atividade do sujeito é fundamental. * ** Nomes fictícios Texto da professora Tania Marques “Epistemologia Genética e Construção do Conhecimento” I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 301 Além dessas questões conceituais mais específicas, a ideia da interdisciplina no seu intercurso é o de propiciar análises e reflexões mais profundas em relação às práticas docentes dessas alunas, especialmente a partir dos pressupostos piagetianos, onde elas possam tomar consciência das suas ações e dos pressupostos que as permeiam, refletindo assim sobre a possibilidade de um fazer coerente com seus discursos. Esse processo perpassa inicialmente a compreensão dos pressupostos teóricos, conjunturalmente atrelada às práticas docentes. O propósito para uma análise mais profunda e de que forma essas alunas foram construindo suas concepções de aprendizagem, é o que pretendo desenvolver em estudo posterior, cujo foco será direcionado para: * Identificar as atividades propostas que promoveram desequilíbrios (provocaram mais perturbação) nas (os) alunas(os); * Identificar o processo de reconstrução no decorrer das atividades, focando nas interações ocorridas (que intervenções apoiaram a reconstrução das concepções), analisando o tipo de reconstrução feita; * Identificar as relações que as alunas estabelecem entre o estudo proposto pela interdisciplina e seu fazer pedagógico. Conclusões Preliminares Embora ainda cedo para tecer qualquer conclusão, tendo em vista que, até o momento, o estudo realizado foi de caráter eminentemente teórico, já é possível, a partir dos indicadores propostos, identificar que os movimentos de desequilíbrio e de apoio à reconstrução ocorreram (conforme evidenciado no excerto). Embora como resultado de pesquisa isso não possua relevância, tendo em vista a riqueza e complexidade do processo de aprendizagem dessa aluna ou mesmo se considerarmos o contingente de alunos do curso, no entanto, já se constitui como o indício de que a concepção de aprendizagem proposta pela teoria piagetiana está vivenciada nesse curso. Para além desses dois aspectos, acrescento ainda o relato de outra aluna que evidencia o terceiro item que constará na análise que se pretende realizar: o estabelecimento da relação teoria e prática e da interdisciplina como um aporte para repensar essa relação. Observe o que escreveu a aluna R. numa atividade em que lhe foi solicitada uma reflexão de como ela estaria pensando sua sala de aula a partir dos estudos realizados: Em muitos momentos fico insatisfeita com minha atuação, mas também penso que isto I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 302 pode ser bom porque cada vez que me sinto assim, inovo, busco novas estratégias para tornar a aula mais atraente. E com tudo que li e refleti, aprendi que um professor consciente precisa oferecer aos seus alunos, atividades de caráter construtivo, atividades em que a criança tenha participação efetiva, desafios que a levem a pensar, ou seja, a construir suas estruturas mentais. (a aluna R) Nesse breve relato, em que a aluna faz uma análise das suas aprendizagens, ela considera a sua insatisfação como um motivador para a sua própria aprendizagem (o que pode ser um indício de que houve uma perturbação) e da consciência necessária ao professor para propor atividades que estimulem a participação e o pensamento dos seus alunos. Outra aluna, relata a tomada de consciência que teve a partir de uma leitura proposta: Após as atividades realizadas neste eixo, penso que muitas das nossas ações em sala de aula precisam ser refletidas e repensadas. Sempre me considerei uma profissional não tradicional, mas lendo e aprofundando-me sobre assunto acredito que tenho muito da pedagogia diretiva que como diz o texto de Becker***: “ O professor fala e o aluno escuta. O professor dita e o aluno copia. O professor decide o que fazer e o aluno executa. O professor ensina e o aluno aprende”. Na verdade essa é uma postura que vem da própria escola onde são cobradas quantidades em vez de qualidade, índice de aprovação em vez de aprendizagens significativas para os alunos. (Aluna E.) Nesse relato, a aluna evidencia o quanto o estudo proposto pela interdisciplina subsidiou sua análise sobre sua prática e a ajudou a ressignificá-la. Embora os relatos sejam breves e não englobem a totalidade do material produzido pelas duas alunas citadas e tampouco sirvam como amostra significativa do contingente de alunos envolvidos no curso, o propósito com esses excertos é evidenciar que as reflexões propostas foram realizadas e que o entrelaçamento dos estudos teóricos com as práticas docentes também ocorreu. Com isso, embora ainda com exemplos iniciais, é possível perceber que a interdisciplina está cumprindo seu papel de subsidiar de algum modo a reflexão sobre as práticas docentes dessas professoras-alunas. Além disso, as concepções de aprendizagem estão sendo pensadas a partir dos estudos sobre aprendizagem no referencial construtivista piagetiano. E, de certa forma, por essas concepções estarem sendo não apenas estudadas teoricamente, mas propostas também na prática dessas alunasprofessoras que estão cursando a interdisciplina e o próprio curso de modo geral, a compreensão da teoria toma proporções de maior significação. E se for considerada sua importância na formação de professores, e na Educação a Distância, estamos avançando em direção a uma formação de professores mais conscientes do seu fazer docente e dos processos cognitivos dos seus alunos, podendo assim, ser pensada uma Educação que efetivamente cumpra seu papel. *** Aluna refere-se ao seguinte material: BECKER, Fernando. Modelos pedagógicos e modelos epistemológicos. In:_____. Educação e construção do conhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2001. 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 305 Intervenções Psicopedagógicas em Instituições Escolares SEGATELLI, Nathália Batistuti Faculdade da Alta Paulista – FADAP/FAP POLLI, Anieli Simões Faculdade da Alta Paulista – FADAP/FAP MARQUEZINI, Cristiane Pereira Universidade Estadual Paulista – UNESP [email protected] [email protected] [email protected] Resumo A psicopedagogia é uma área de estudos e conhecimentos sobre a aprendizagem e os problemas a ela inerentes. Tal área enfoca o aprender sob uma perspectiva multifatorial, que compreende os aspectos cognitivos, sociais, afetivos e biológicos. Partindo dessa perspectiva, realizamos intervenções psicopedagógicas em escolas de uma cidade do interior do estado de São Paulo (Brasil). Objetivamos com estas atuações contribuir para o desenvolvimento dos infantes em todos os aspectos e construir junto a eles outra relação com o conhecimento. O trabalho justifica-se pela alta demanda escolar de atendimento a crianças julgadas indisciplinadas e incapazes de aprender. Ele foi realizado em pequenos grupos de alunos do ensino fundamental e desenvolvido por duas estagiárias do curso de graduação em Psicologia. A citada forma de trabalho tem como objetivo promover a socialização e o desenvolvimento de condutas de cooperação entre as crianças atendidas. Primeiramente, realizamos um diagnóstico psicopedagógico com crianças a nós encaminhadas para avaliarmos a problemática. Posteriormente, iniciamos a intervenção, tendo como instrumentos jogos regrados e oficinas lúdicas, pois, entendemos que tais procedimentos contribuem para o desenvolvimento integral das crianças. Alguns resultados, de nossa intervenção são: uma significativa mudança em algumas condutas sócio-morais e afetivoemocionais dos alunos atendidos, no que tange ao respeito às regras (que passam a ser internalizadas) e ao respeito mútuo. Acreditamos que, tais intervenções são importantes por contribuir com o processo de escolarização formal e com o desenvolvimento global de crianças estigmatizadas nas escolas. Palavras-chave: Intervenção psicopedagógica. Jogos de regras. Desenvolvimento, aprendizagem. Abstract Psychology it’s an area of studies and knowledge about the learning aspects and the problem that is within. This area focuses on learning in a multifactorial perspective, which includes the social, the affective, and the biological aspects. Coming from this perspective, we made psychological interventions in the schools in an interior city of São Paulo state (Brazil). We aimed with this performance to contribute for the development of the infants in every aspect and to construct with them another relationship with knowledge. The work is justified by the high school demands of care with children judged undisciplined and incapable of learning. This work was made by little group of students in high school and developed by two interns of the graduation course of Psychology. The aim of the work is to promote socialization and the development of conduct with the cooperation of the cared children. First of all we did a psychological diagnosis with the children given to us to judge the problem. Subsequently, we started the intervention having as an instrument, ruled games and workshop, we understand that this procedure contributes for the full development of the children. Some results of our intervention is some significant changes in some conduct social moral and the emotional affection of the cared students, ( this terms of the rules becomes internalized). And about the mutual respect, we believe that these interventions are really important to contribute to the process of the formal education and the global development of stigmatized children in the schools. Keywords: Intervention psychology. Ruled games. Development. Learning. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 306 Introdução O trabalho de Intervenções Psicopedagógicas em instituições escolares foi desenvolvido em uma cidade do interior do estado de São Paulo (Brasil), com crianças de terceiras e quartas séries, do ensino fundamental, de escolas públicas e municipais, nos anos letivos de 2006, 2007 e 2008. Tal trabalho foi executado por grupos de estagiárias do sétimo e do oitavo semestre de um curso de graduação em psicologia e supervisionado por profissional especialista na temática. As intervenções foram efetuadas por uma dupla de estagiárias, atendendo crianças, subdivididas em grupos de quatro estudantes. Nossas intervenções tiveram como objetivo central o desenvolvimento integral da criança. Desta maneira, agimos para que o desenvolvimento social e também o de condutas cooperativas fossem trabalhados conjuntamente com o desenvolvimento cognitivo e afetivo emocional dos pequenos. A justificativa para realização da citada intervenção, está assentada na alta demanda escolar por atendimento a crianças julgadas fracassantes no seu processo de escolarização formal. Ainda justificamos o nosso trabalho de intervenção no fato do tratamento dado pela instituição escolar a essa problemática ser muitas vezes estigmatizante e patologizante. Expliquemos: as escolas ávidas em auxiliar as crianças com dificuldades em seu processo de escolarização acabam por produzir (sem tal intenção), ainda mais fracassados já que recorrem à medicalização e/ou a separação das “crianças-problema” em salas especiais, em busca de classes homogêneas. Gostaríamos de informar que respaldados na literatura psicológica (MACEDO, 2005) e psicopedagógica (BOSSA, 2007; PAIN, 1986 e FERNANDEZ, 1990) sobre a temática, compreendemos as dificuldades de escolarização das crianças, tendo origens multifatoriais (internas e externas ao infante). Não deixamos de acreditar, no entanto, que em raras exceções o “não aprender” possa ser originado por alguma patologia. Dessa maneira, entendemos que para equacionar o problema são necessárias intervenções que contemplem todas as questões contribuintes para o fracasso. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 307 Referencial Teórico Como já supra citamos, nosso trabalho de intervenção psicopedagógica é amparado em teorias psicológicas como a do mestre genebrino Jean Piaget (1896-1980), sobre a lógica de funcionamento mental daquele que se desenvolve, teorias psicopedagógicas como as de Macedo (2005), sobre a utilização de jogos regrados na aprendizagem e nas dificuldades que dela emanam, e, por fim, em estudos de psicopedagogos argentinos como Ferreiro (1990), Pain (1986) e Fernandes (1990), que inserem a dimensão do desejo em todas as aprendizagens a serem realizadas na instituição escolar. Objetivos O objetivo da intervenção psicopedagógica é oferecer um espaço de atenção, escuta e intervenção às crianças que frequentam a escola de ensino fundamental e que são diagnosticadas, por profissionais da educação ou da saúde, como “portadoras de problemas de aprendizagem”. Por intermédio das atividades lúdicas e dos jogos regrados, visamos auxiliar aos pequenos. Objetivamos também oferecer-lhes novas possibilidades de construir e de se apropriar do conhecimento. Contribuindo, dessa forma, para que os infantes elaborem outra relação com os processos de escolarização formal, sendo esta mais prazerosa e significativa. Metodologia Utilizamo-nos, como aporte teórico para nossas intervenções, a psicologia genética de Jean Piaget (1896-1980). Tal fato se deve a que nosso entendimento dos processos de aprendizagem seja partidário da concepção de que a criança constrói o seu conhecimento, em ativa interação com o meio ambiente físico e social. Essa maneira de entendermos a aprendizagem nos faz compreender as dificuldades escolares da criança também como questões inerentes ao seu desenvolvimento. Entendimento este que distingue o “não aprender” de patologia. Assim, recorremos aos jogos regrados e as oficinas lúdicas, como instrumentos de intervenção. Agimos dessa maneira, amparados em Macedo (2005), porque pensamos que tais procedimentos contribuem para o desenvolvimento integral das crianças auxiliando-as, consequentemente, em suas dificuldades escolares. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 308 Acreditamos, ainda, que as condutas desenvolvidas pelas crianças nas situações de intervenção serão internalizadas por elas e repassadas para a sala de aula e para a sua vida. (...) nossa experiência no LaPp, tem mostrado que as atitudes e as competências desenvolvidas ao jogar vão se tornando “propriedade” das crianças, caracterizando um conjunto de ações adequadas à atividade proposta. Como consequência, podem ser transferidas para outros meios, e é isso que tem acontecido com nossos alunos. Eles passam a ter outro posicionamento diante de desafios, sejam de natureza lúdica (situação de jogo), sejam de natureza escolar (aprendizagem de conteúdos). (MACEDO, PETTY e PASSOS, 2005, p. 25). Desenvolvimento Inicialmente realizamos um diagnóstico psicopedagógico, cujas etapas consistiram em: observação das crianças em sala de aula e fora dela, contrato, desenho livre, ditado lúdico, prova de realismo nominal, provas piagetianas, teste projetivo (Fábula de Duss) e, por último, confecção e partida de jogo de regras (pega-varetas). As observações foram realizadas com intuito de identificar se a queixa apresentada pela escola era verídica ou não. Utilizamos esse procedimento, pois em nossos trabalhos, notamos que muitas vezes a instituição escolar encaminha crianças que não necessitam de atendimento. Por exemplo, notamos a presença de encaminhamentos cujo motivo da queixa era o fato de a criança ser oriunda de família julgada pela escola como “desestruturada”. Dessa forma, eram encaminhadas para um tratamento preventivo, com o intuito de que no futuro não viessem a apresentar problemas comportamentais. A observação também foi utilizada porque se mostra um excelente momento para já estabelecermos o vínculo com as crianças. Sabemos que tal processo é essencial para que se estabeleça a confiança e a credibilidade das crianças no processo psicodiagnóstico. Nos primeiros contatos realizados com as crianças (já fora de suas salas de aula e divididas em grupos de quatro) pedimos que elas elaborassem regras julgadas por elas pertinentes e que regulariam os nossos encontros. Agimos, dessa maneira, pois, como nos ressalta Piaget (1977) em sua obra O juízo moral da criança, para construirmos relações democráticas, é necessário o estabelecimento do respeito mútuo. Caso as regras fossem burladas, as crianças receberiam sanções por reciprocidade (em que a qualidade do castigo é semelhante ao delito). Tais sanções também foram propostas pelos pequenos, com o auxílio das estagiárias. O desenho livre foi proposto como primeira atividade, por possuir caráter menos ansiógeno I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 309 permitindo-nos um contato com a criança e sua realidade. Assim procedemos, pois como nos revelam estudos psicanalíticos, ocorre projeção no ato de desenhar, assim como no de contar histórias. O desenho livre também auxiliou-nos na avaliação e no entendimento do teste projetivo, pois este tem se mostrado (em nossas experiências de intervenção) como excelente complemento. Quanto à aplicação do ditado lúdico e da prova de realismo nominal, eles objetivaram um entendimento da fase de construção da escrita em que a criança se encontra e como a mesma a representa. A prova piagetiana de conservação foi aplicada para definirmos se as crianças possuem ou não noção de conservação, invariância e reversibilidade. Já o teste projetivo teve por objetivo averiguarmos se a problemática da criança decorria de uma sintomatologia, ou seja, se havia algum problema de ordem afetivo- emocional que estivesse impossibilitando o aprendizado do infante. Caso identificássemos que o não aprender estivesse ligado a um sintoma o encaminhávamos para atendimento psicoterápico. Contudo, observamos em nossas práticas, quando estes casos se fizeram presentes, que na maioria das vezes a criança necessitava, além da psicoterapia, também de atendimento psicopedagógico, pois o problema de ordem afetivo-emocional já havia afetado os processos de aprendizagem, originando, assim, um considerável atraso nas atividades escolares. A confecção dos jogos de regras era realizada pelas próprias crianças. Em um primeiro momento, em que foi realizado o psicodiagnóstico, o jogo de regra teve fins avaliativos, ou seja, foi utilizado para verificar como as crianças lidavam com as regras, com a vitória ou com a derrota, com as frustrações e quais eram os recursos cognitivos de que os pequenos utilizavam-se para a realização das jogadas. Em um segundo momento, que o jogo de regras, conjuntamente com as oficinas lúdicas tornam-se instrumentos de intervenção já que podem auxiliar no desenvolvimento e nas aprendizagens das crianças por nós atendidas. Após o diagnóstico psicopedagógico, quando foi necessário, iniciamos as intervenções propriamente ditas. Passaremos agora a descrever e analisar algumas atividades (jogos de regras) utilizadas em nossos atendimentos com a finalidade de auxiliar as crianças em seu desenvolvimento, além de, com eles, fazêlos experienciar uma nova relação com a construção de conhecimento (aprendizagem). Processos estes I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 310 que podem ser construídos prazerosamente em uma atividade de jogo, em detrimento daqueles que são “depositados” nas crianças pela instituição escolar. Dissertaremos aqui sobre o uso do jogo de pega-varetas, pois utilizamo-nos dele no decorrer de todo o processo de intervenção. Observamos que, além da facilidade de confecção (baixo custo), eles eram jogos pelos quais as crianças atendidas por nós apresentavam grande interesse, uma vez que percebiam a sua evolução no jogar durante os nossos encontros. Também, escolhemos expor tais jogos, já que existe sobre eles importante estudo feito por Macedo (2005), cujo trabalho no Laboratório de Psicopedagogia do Instituto de Psicologia da USP, permitiu a construção de um ensaio sobre o uso de tais jogos, cujas possibilidades e finalidades são por nós reconstruídas em nossas intervenções. O supracitado jogo possui inúmeras possibilidades de intervenção já que, além de possuir regras que regulam as partidas, também estimula o raciocínio, a coordenação motora, a atenção, a concentração, a criatividade, dentre outras competências julgadas essenciais para o bom desempenho no jogo, e como já dissemos anteriormente, de igual valor para o “bom” aluno em processo de aprendizagem. Assim, num primeiro momento, a sua utilização é bem vinda já que estimula as crianças a internalizarem as suas regras, pois, se quiserem jogar com seus pares esta é condição sine qua non. Observamos que as crianças, que de início apresentam enorme dificuldade em se enquadrar nas delimitações do jogo, passam posteriormente a realizar tal ação de forma espontânea, valorizando e vigiando o cumprimento de cada uma das regras necessárias para o bom andamento da partida. Exemplo disso são as crianças que observam minuciosamente a jogada de seu parceiro e, ao menor sinal de movimento das varetas dispostas ao chão, gritam para que o colega pare imediatamente a jogada. A própria criança que executa a jogada também para rapidamente após ter percebido que não obteve êxito ao tentar resgatar sua vareta. Faz isso sem tentar negociar ou argumentar não ter mexido a pequena varinha. Acreditamos que tal fato é importante para a internalização de regras pelo grupo e pela criança que joga. Pensamos que a falta delas seja mais um fator para a ocorrência da tão discutida “indisciplina na escola”, fenômeno este que também impede as aprendizagens. Depois de se adaptarem a jogar com regras, as crianças devem operacionalizar as suas jogadas em função delas. Pois, na medida em que têm que respeitá-las não podem realizar qualquer ação para ganhar I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 311 a partida. Devem, dessa forma, adequar a sua jogada aos limites que o jogo regrado impõe e, ainda, a jogada de seus companheiros. Tal fato os obriga a se descentrar e a cooperar. Essas duas condutas também auxiliam os pequenos em sala de aula, já que por meio delas ações coletivas são priorizadas em detrimento das individuais. Pois bem, se os pequenos querem vencer a partida, outra questão que devem superar são os seus adversários. Dessa maneira, precisam construir estratégias melhores de que as de seus companheiros para obterem a vitória. Isso os obriga constantemente a construir novas formas de jogar. Como exemplo, temos uma criança que, após analisar milimetricamente a disposição das varetas, experimentou posições de seu corpo (deitada, sentada, em pé ou agachada) que lhe permitiram pegar uma vareta sem tocar nas outras. Além disso, são interessantes as variadas formas que as crianças encontram de resgatar as varetinhas. Acreditamos que essas ações são excelentes recursos para possibilitar que a criança reflita, utilize a criatividade e coordene ações (mentais e motoras). O que, como sabemos, é imprescindível para o seu desenvolvimento. Outros jogos que contenham regras, tais como: o da memória, o dominó, o jogo da vida, a trilha do saber, dentre outros por nós trabalhados, também apresentam iguais possibilidades de auxiliar a criança em seu desenvolvimento. Também utilizamo-nos de outras atividades como: oficinas, passeios, festas, dentre outras, que possam colocar a crianças frente a situações que rompam com o seu equilíbrio, levando-as a agir. Conclusão Os resultados obtidos foram julgados por nós significativos. Podemos salientar mudanças quanto a algumas condutas de caráter sócio-moral e afetivo dos alunos atendidos. Essa afirmativa é feita com base na observação de que as crianças passam a respeitar consideravelmente todas as regras, além de respeitarem também os seus pares e solidarizarem-se com os mesmos. Acreditamos no acima exposto, pois, foi notório que no decorrer de nossos encontros as crianças passaram a cobrar as regras de si próprias e também dos estagiários, quando elas eram descumpridas. Foi fato também que, com o passar do tempo, as crianças auxiliavam os seus pares na confecção das atividades e nas próprias jogadas a serem realizadas. Questões estas que, no início do atendimento, não eram percebidas por nós, já que os pequenos burlavam regras e não se mostravam solidários com as outras crianças quando estas estavam por realizar uma jogada desastrosa. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 312 Quanto a condutas que demonstram evoluções de ordem cognitiva, pudemos notar que houve mudanças em algumas crianças. Já que essas passaram a realizar as operações matemáticas sem tantas dificuldades, como era verificado no início de nossos encontros. Esse fato pode também ser observado na reaplicação da prova de conservação de quantidade ao final do atendimento. Pois, se outrora esta prova nos havia informado a não conservação, indicou-nos numa aplicação posterior a construção dessa noção. Além disso, vimos também que os pequenos durante as partidas de jogos despendiam de recursos mais eficazes e evoluídos para realizarem melhores jogadas e assim obterem êxito no jogo. Por último, gostaríamos de salientar que em algumas escolas (justamente as que mais nos auxiliavam em nosso trabalho) recebíamos frequentemente avaliações positivas dos professores, sobre os alunos que estavam em atendimento. Com base nestas constatações, acreditamos que tais intervenções são importantes por contribuírem com o processo de escolarização formal e com o desenvolvimento global dos escolares. Referências AZENHA, M. da G. 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 314 Significações do Erro em Alunos do 6º Ano do Ensino Fundamental Frequentadores da Sala de apoio à Aprendizagem BIANCHINI, Luciane Guimarães Batistella OLIVEIRA, Francismara Neves de BARIZON, Ana Luiza Andrade FECCHIO, Mariana SILVA, Josiele Cardoso da Universidade Estadual de Londrina – PROPPG/ UEL Projeto de pesquisa: Laboratório de Jogos - espaço de interações lúdicas [email protected] Resumo O presente estudo objetivou analisar as significações do erro em 17 alunos que frequentam salas de apoio à aprendizagem em Londrina-PR. Como modalidade de pesquisa elegemos o estudo de caso, na abordagem qualitativa. Como problema de pesquisa nos baseamos na seguinte questão: qual a significação do erro de alunos do 6º ano do Ensino Fundamental que frequentam a sala de apoio à aprendizagem? Além da observação das atividades nas salas de apoio, utilizamos um roteiro de entrevista e um instrumento que é constituído por uma escala de diferencial semântico na qual são apontados indicadores afetivos nas condutas dos alunos em situação específica de aprendizagem. O período de coleta de dados foi de 2 meses. Nossos resultados indicaram que as significações dos alunos sobre o erro apresentam-se carregadas de conteúdo social e julgamento moral sobre o erro e que em sua totalidade, os participantes do estudo significam o erro como algo negativo e que os impede de aprender. O erro não é considerado parte do processo de aprendizagem e está associado a sentimentos desagradáveis de culpa e de menos valia além de estereótipos que culpabilizam o aluno pelo não aprender. O estudo enfatizou como implicação pedagógica, a importância de considerar o erro como revelador de construções internas de ordem intelectual e afetiva, em relação de interdependência, nas condutas do sujeito ativo na aprendizagem. Palavras-Chave: Erro. Teoria piagetiana. Dificuldade de aprendizagem. Concepções. Abstract This study aimed to analyze the meanings of the error in 17 students who frequent the support learning classrooms in Londrina - PR. As modality of research we choose the study of case, in the qualitative approach. As problem of research we base in the following question: which is the error meaning for 6º year’s students of secondary school who frequent the support learning classrooms? Beyond the activities observations in the support rooms, we use an interview guide and an instrument that is constituted by a scale of semantic differential in which are pointed affective indicators in the student’s conduct in specific situation of learning. The period of data collection was 2 months. Our results had indicated that the student’s meanings about error present loaded of social content and moral judgment on the error and in their totality the participants think the error as something negative that hinders their learning. The error is not considered party of learning process and it is associated with the awkward feelings of guilt and little values beyond the stereotypes that make the students guilty for not learning. The study emphasized as pedagogical implication, the importance to consider the error as revealing of internal constructions of intellectual and affective order, in relation of interdependence, the conducts of the active person in the learning. Keywords: Error. Piaget’s theory. Difficulty of learning. Conceptions. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 315 Introdução A teoria piagetiana sobre a construção do conhecimento possibilita olhar o contexto em que o erro é produzido em sala de aula e não apenas o erro em si, ou o aluno que o apresenta. O sujeito em constante desenvolvimento ensaia para a vida, criando, experimentando e descobrindo sobre si e o mundo, num processo comum e natural, no qual erro e acerto são constituintes de seu aprendizado. Esta concepção permite-nos interpretar o erro como algo inerente ao processo de conhecer e a partir disto analisarmos o que o erro pode nos revelar sobre a construção do conhecimento. Além do dinamismo expresso nas ações daquele que se coloca a conhecer, diante do erro, os aspectos de ordem afetiva também são postos em evidência. Afinal, quem gosta de errar na sociedade do acerto, do sucesso, da busca constante pela perfeição da forma, da padronização e do ideal? O ser humano busca hoje apresentar-se como aquele que sabe, aquele que prevê, aquele que controla. Neste contexto receitas e métodos são enfatizados a todo o momento. Mas, no campo do conhecer somos convidados a lidar com as lacunas, com o imprevisível, com as irregularidades e o intangível, pois é exatamente ali onde algo lhe falta, onde algo se impõe como obstáculo ou conflito que nasce a riqueza do sujeito expresso em sua capacidade de perguntar: por quê? Como? Medo, ansiedade, interesse, culpa e outros tantos sentimentos articular-se-ão à inteligência colocando em risco o próprio sujeito que inicialmente situado como aquele que não sabe, poderá errar ou acertar e com isto prosseguir ou desistir. Dependendo da sua resposta e de como refletirá junto àqueles que interagem com o sujeito, novos sentimentos serão evocados como sucesso ou fracasso, desempenho ou incompetência, enfim sentimentos e significados que marcarão sua relação com o saber e com a escola. Assim, é do campo do não saber, que partimos para escutar alunos e compreender, sobre como os erros são percebidos pelos sujeitos incluídos em propostas educacionais, que objetivam intervir em seus processos de aprendizagem. Os alunos que nos propusemos escutar no presente estudo, estão nas salas de apoio e em comum apresentam a expressão constante do erro em suas produções. Conhecer, do ponto de vista piagetiano, diz respeito aos caminhos de criação e descoberta trilhados pelo sujeito cognoscente. Neste percurso o erro tem a conotação de atividade e revelação de um sujeito que se colocou a responder formulações de seu pensamento. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 316 Referencial Teórico Uma visão piagetiana sobre o erro e a afetividade na construção do conhecimento O Erro O erro na perspectiva teórica de Piaget revela um processo dinâmico que dirige o ato de conhecer. Taille (1997, p.26) ao se referir à construção do conhecimento na perspectiva piagetiana aponta que a realidade é filtrada pela consciência do sujeito, “retendo e interpretando aquilo que é capaz de incorporar a si. Em uma palavra, conhecer é conferir sentido, e esse sentido não está todo pronto e evidente nos objetos de conhecimento: ele é fruto de um trabalho ativo de assimilação” realizado pelo sujeito. No curso de seu desenvolvimento o sujeito fará diferentes interpretações sobre o mundo e a qualidade desta compreensão dependerá do nível de estruturação de sua inteligência. Neste caso, muitas interpretações das crianças apresentar-se-ão como erradas sob o ponto de vista do adulto, mas Piaget (1936, p.13) as compreende enquanto parte integrante do processo investigativo rumo ao conhecer, uma vez que atesta uma verdade do sujeito e por isso considerou o erro como construtivo62. Macedo (1997, p.29), analisa o papel construtivo dos erros destacando que ignorar o erro dentro do processo de construção do conhecimento “é supor que se pode acertar sempre ‘na primeira vez’, é eliminá-lo como parte, às vezes inevitável, da construção de um conhecimento, seja de crianças, seja de adultos”. O importante no ato de conhecer é que ao assimilar a realidade, o sujeito a está recriando, conferindo sentido e ao mesmo tempo colocando-se em atividade. Piaget (1967/1973) considera fundamental a atividade do sujeito sobre o objeto enquanto um processo auto-estruturante da atividade humana. É através desta atividade que o sujeito constrói a si (ampliando e flexibilizando seus esquemas), o outro e o objeto de conhecimento. Neste contexto, o erro é considerado como um comportamento inteligente, possível, e necessário para o desenvolvimento e a aprendizagem, na medida em que revela a ação de conhecer. As ações infantis apresentam-se primeiro de uma maneira menos elaborada ou errada, inconscientes à criança e gradativamente poderão ser ajustadas por regulações do próprio sujeito até atingir um grau satisfatório cada vez mais consciente. (MACEDO, 1994, p. 72) O processo de tomada de consciência para Piaget (1977) é considerado como um sistema dinâmico em permanente atividade que caminha rumo às operações formais, possibilitando ao sujeito passar de um nível inconsciente à consciência. Na prática, podemos observar um sujeito primeiro realizando ações resultantes de tentativas ocasionais, para num outro momento atuar num plano de 62 Os erros construtivos para Piaget são erros sistemáticos que de forma geral são repetidos por várias crianças. São esses erros que permitem à criança o acesso a resposta certa.(Ferreiro e Teberosky, 1999) I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 317 revisão, planejamento e ajustes na própria ação. Ou seja, estamos diante de dois planos de atuação do sujeito: o do fazer e do compreender, tal como discutiu Piaget (1977 e 1978). Macedo (1994) pontua que a questão do erro, por exemplo, “no plano do fazer está comprometido com o resultado em função de um objetivo, bem como com a construção de meios e estratégias adequados à solução do problema que se está enfrentando”, e isto só é possível de ser elaborado pelo sujeito que está em atividade. Este tipo de experiência é muito importante para o aluno no processo de aprendizagem, uma vez que “disso decorre a necessidade de construção de estratégias, de alteração dos procedimentos, tendo em vista os arranjos específicos que as diferentes situações colocam.” (MACEDO, 1994, p. 74). No plano do fazer, quando um objetivo estabelecido é frustrado e a criança tem a clareza que errou, o erro torna-se um problema, levando a criança a buscar novas soluções para alterá-lo e a construir novas possibilidades. A descoberta de que para conhecer, o sujeito precisa “fazer” então nos leva a concluir que não é o meio quem modela o sujeito, “mas é ele próprio que se constrói por sua atividade, no meio que é seu” evoluindo em condições cada vez melhores de compreensão sobre a realidade. (DOLLE; BELLANO, 1999, p. 19). Piaget divide em três níveis as respostas apresentadas pelas crianças (PAULI et al, 1981), na construção do conhecimento e da própria consciência sobre o erro. No nível I não há erro para a criança, pois suas ideias constroem-se por justaposição e sincretismo, deformando a realidade percebida por ela. O nível II é o momento da dúvida ou flutuação, ou seja, a criança oscila nas respostas dadas, devido à evolução na inteligência que permite ao sujeito fazer antecipações e conservar as deformações do objeto anteriormente impossíveis. No nível III o adolescente compreende as situações tais como são. Dentre as conquistas do desenvolvimento da inteligência temos a evolução na lógica permitindo ao sujeito fazer relações mais complexas como a de pensar sobre a sua própria ação. Isto não quer dizer que ao atingir o nível III os erros acabaram, mas sim que agora o sujeito pode refletir sobre eles e percebê-los de forma consciente. Poderíamos dizer então que esta evolução nos permite perceber diferenças na forma do sujeito conceber e lidar com o erro no curso de seu desenvolvimento. A crítica de Piaget sobre a educação formal, é que esta se limita a preocupar-se com os resultados e não com o modo como o sujeito chegou a eles, deixando de considerar riquíssimas construções realizadas pelo aluno, mesmo aquelas apresentadas numa situação de erro. Assim, se o erro é considerado como constituinte do processo de construção do conhecimento, como os educadores devem intervir diante desta situação? I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 318 Para Macedo (1994, p.70) o mais importante não é considerar o resultado final e sim que o sujeito reflita sobre as suas ações, levante hipóteses mesmo que estas estejam “erradas”. O desafio do professor está em transformar o erro em uma situação de aprendizagem. Para isto o professor precisa estabelecer o que é consciente à criança e o que não é. Em observação a este cotidiano, Fogaça (2005) escreve sobre sua experiência enquanto professor de Educação Física e aponta a importância dos conhecimentos piagetianos pelo educador, destacando a tomada de consciência enquanto um processo gradativo na elaboração do conhecimento e um caminho de intervenção do professor, necessário para a aproximação consciente do aluno sobre as próprias ações equivocadas. Como estratégia de ação, o professor diante de uma ação equivocada do aluno poderá apresentar questionamentos que os levem a rever sua ação no plano verbal. Para explicar as diferenças nas interpretações dos sujeitos, Piaget utiliza-se de dois conceitos: observável e coordenação: “os observáveis são fatos percebidos, e as coordenações são justamente as interpretações que o sujeito faz sobre aquilo que observa e, consequentemente, determina a qualidade das próprias observações (PIAGET apud TAILLE, 1997, p.29). Assim, independentemente de estar certa ou errada, as interpretações do sujeito, revelam os níveis de estruturação de sua inteligência. Como já destacamos no início, para Piaget o sujeito é auto-estruturante e ao meio cabe o papel de problematizar as situações, provocando no aluno a construção de estratégias e procedimentos de superação de seus erros, na medida em que realiza ajustamentos em suas ações. No entanto, o labor desta atividade pertence ao aluno e não ao professor. A questão é que de um jeito ou de outro o erro estará sempre presente em todo o processo que move o aluno a conhecer e dependendo da forma como o adulto concebe o erro, poderá resultar em práticas que ajudem o aluno a superá-lo, aprender a partir do erro ou não. A Afetividade Outro ponto a considerar na construção do conhecimento é que além da condição estrutural da inteligência há uma condição essencial para o sujeito agir sobre o objeto: ele precisa interessar-se pelo mesmo, “sem vontade e sem iniciativa para desvendar e descobrir, não há conhecimento” (PIAGET apud CUNHA, 2000, p. 75). Nesse sentido, são os afetos que preparam as ações do sujeito, participando ativamente da percepção que ele tem das situações vividas e do planejamento de suas reações ao meio. Dolle (1993, p.120), considera que a afetividade está implicada com o campo das significações e nestas as relações interindividuais tem um papel importante: I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 319 A afetividade, nas relações interindividuais, se alimenta unicamente do sentido e que é este quem a estrutura, desequilibra, equilibra e reequilibra. O gesto, até mesmo discreto, o brilho no olhar, etc., são tão expressivos quanto às palavras. Dito de outro modo, a afetividade em ato fala àquele que a recebe porque ela tem um sentido e informa sobre o estado daquele que o leva a falar, sobre suas intenções, seus julgamentos, sua disposição de espírito com relação ao destinatário, etc. No ambiente escolar o aluno experimenta vários tipos de afetos: sentimentos como o prazer da descoberta e da criação diante do objeto do conhecimento, a tristeza ao constatar que errou na resolução das atividades e foi apontado pelo professor ou pelos próprios colegas como alguém incompetente, culpa quando não estuda o suficiente ou erra, etc. Além dos sentimentos, a afetividade contempla elementos energéticos (interesse, esforços, afetos das relações interindividuais, simpatias mútuas e sentimentos morais) que também estarão presentes na sala de aula. Dito de outro modo, constantemente embates e contradições do cotidiano escolar, colocam o aluno a rever suas ações e estas situações estão permeadas de afetos bons ou maus, dependendo de como interagem os sujeitos neste contexto. Assim, cabe questionar qual será a decorrência de sentimentos, se desmotivadores ou não, evocados por situações de erro do aluno na sala de aula. O ajustamento realizado pelo sujeito à medida que toma consciência de um engano, poderá percorrer caminhos totalmente racionais, com julgamentos adequados, mesmo numa situação desmotivadora? Ou ainda, no que a afetividade pode influenciar as interpretações da razão? Piaget (1962;1986) ao tratar da aprendizagem humana considerou importante olharmos para os afetos, pois não se pode separar a atividade intelectual do funcionamento total do organismo e em sua teoria aponta que o desenvolvimento intelectual possui dois componentes, o cognitivo e o afetivo, que se articulam e se desenvolvem paralelamente. A afetividade é a “mola propulsora” da aprendizagem, pois sem afeto não haveria interesse, nem necessidade, nem motivação e, consequentemente, perguntas ou problemas nunca seriam colocados e não haveria inteligência. O afeto é a energização da atividade intelectual, uma condição necessária para aquele que se coloca a conhecer. Para analisar a relação entre afetividade e inteligência, Piaget (1994) discute as concepções sobre o juízo moral, em sua teoria. Normalmente vemos a moral tornando-se o cenário propício para o confronto existente entre a razão e a afetividade. Vários exemplos na literatura destacam personagens lidando com situações conflituosas, nas quais há ou um predomínio pela razão ou pela emoção/afetividade. Piaget, por sua vez vai além da ideia de confronto nesta relação e aponta considerações relevantes sobre como interagem estes dois aspectos no ser humano (cognição e afetividade). Para o autor, os afetos movem a ação do sujeito e a razão tem o papel de “identificar desejos, sentimentos variados e obter êxito nas ações. Neste caso, não há conflito entre as duas partes. Porém, pensar a razão contra a afetividade é problemático porque então dever-se-ia, de alguma forma, dotar a I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 320 razão de algum poder semelhante ao da afetividade”, o que significaria considerar características móvel de energia também na razão.(TAILLE, 1992, p.73) A afetividade para Piaget (1962) inicia-se através de afetos perceptivos, que no primeiro momento está indiferenciada ao sujeito. Gradativamente os afetos passarão a se relacionar com as pessoas, objetos. A estrutura básica organizadora de nossa vida afetiva é formada por sentimentos como amor, raiva, medo, necessidades(básicas),etc., resultantes de situações de fracasso ou sucesso, agradável ou desagradável. Macedo (2008, p.48) aponta que o medo, assim como a raiva ajudam o sujeito a “fugir, afastar do que considera ameaçador ou doloroso. Em sua dimensão positiva ele pode indicar cuidado e respeito”, mas por outro lado poderá diminuir ou até eliminar relações que proporcionaram este sentimento. O amor pode produzir sentimentos bons como alegria, confiança, interesse, mas em excesso pode gerar dependência. No período pré-operatório, há a inclusão da criança ao mudo socializado e estes sentimentos poderão ser vivenciados de forma intencional e intuitiva. No período operatório-concreto (idade dos sujeitos pesquisados em nosso estudo) os afetos anteriores poderão ser transformados em normativos, que se trata da construção de esquemas afetivos ligados às regras. Uma questão importante é a constituição da vontade, valorizando para criança o que é superior e fraco, no lugar do inferior e forte. As regras, em seu aspecto moral, se apresentam de forma heterônoma e a criança entende-as como parte da tradição e por isso inquestionáveis e sagradas (TAILLE,1992). Somente no período operatório formal é que o sujeito poderá regular melhor seus afetos,definido assim vontades e expressando ideais de forma autônoma. As representações sobre o que significa errar no contexto escolar estão relacionadas ao nível de desenvolvimento do sujeito como também às concepções sobre “errar” em nossa sociedade. Estas, por sua vez, são dotadas de valores, crenças, regras e costumes relacionados a um padrão estabelecido de normalidade. Por isso, o sujeito enquanto um ser social caminhará na tentativa de cumprir o que está estabelecido como padrão, quem não cumpre é excluído, é anormal (MACEDO, 1996). Para Lalande (1993) ao erro é atribuído o sentido de algo falso em oposição aquilo que é verdadeiro. No entanto, hoje sabemos o quanto a verdade é arbitrária e relativa, e em se tratando de crianças pequenas verdade “é aquilo que as pessoas que ela conhece e de quem gosta fazem ou dizem. “Verdade” é aquilo que ela consegue fazer ou pensar, é o que obedece a sua intenção” (MACEDO, 1996, p.194). Assim, foi pensando nas situações relativas ao erro em sala de aula, que partimos para a observação deste espaço e elegemos como lócus da pesquisa a sala de apoio, um projeto de trabalho interventivo atual nas escolas estaduais no município de Londrina-PR com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental. Esta proposta de trabalho é realizada dentro da própria escola onde é oferecido ao aluno, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 321 considerado pelos professores com dificuldades de aprendizagem, um horário alternativo, para que tenha uma intervenção específica em suas dificuldades, nas disciplinas de Língua Portuguesa e de Matemática. (LDBEN nº9394/96; Parecer CNE nº 04/98, Deliberação nº 007/99-CEE, Resolução Secretarial nº 371/2008 e Instrução nº 022/2008- SUED/SEED). O que há em comum entre os alunos encaminhados é a manifestação repetitiva do erro. Objetivo Objetivamos analisar a significação do erro de alunos do 6º ano do Ensino Fundamental, frequentadores da sala de apoio à aprendizagem. Metodologia O presente estudo se orientou pelos parâmetros da pesquisa qualitativa, na modalidade de estudo de caso. (Yin 2005, Martins 2006). Interessou-nos observar um espaço oficial de trabalho com as dificuldades de aprendizagem. Procuramos no município de Londrina-PR salas de apoio à aprendizagem que seguem o programa oficial da Secretaria da Educação e obtivemos uma amostra de 17 alunos do 6º ano do Ensino Fundamental, frequentadores desse espaço. Elegemos essa amostra por considerarmos que estes alunos são encaminhados ao contra turno porque são classificados como portadores de dificuldades de aprendizagem e muitos deles apresentam histórias recorrentes de fracasso escolar. Consideramos interessante investigar neles a noção de erro. O tempo de coleta de dados foi de 2 meses incluindo observações das aulas de contra turno, entrevista e aplicação de um instrumento construído pela segunda autora deste artigo, para sua pesquisa de pós-doutorado. O referido instrumento é uma escala de diferencial semântico contendo indicadores afetivos a serem observados nas condutas dos alunos diante de uma situação específica (OLIVEIRA e MACEDO, 2009). As observações realizadas foram registradas em diário de campo e as entrevistas com os alunos foram gravadas. Desenvolvimento Na apresentação de nossos dados quanto às significações dos alunos sobre os próprios erros, utilizamos duas tabelas que sintetizam os dados. A primeira indica as significações dos alunos e os sentimentos despertados quando estão diante de uma situação de erro, pautadas nas respostas deles à entrevista. A segunda tabela apresenta uma síntese das condutas predominantes e também os sentimentos envolvidos diante de uma situação específica de aprendizagem escolar, por meio dos indicadores afetivos da escala utilizada. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 322 Tabela 1: Indicadores afetivos na resposta dos alunos entrevistados Aluno O que é erro? Quando uma pessoa erra? 1 Fazer alguma coisa que...desobedecer Quando ela pega alguma coisa do amigo 2 Muitas coisas...quando uma pessoa faz coisa errada e põe a culpa nos outros. Vai prejudicar ela mesma 3 É quando não faz as coisas certas. 4 Fazer alguma coisa ruim. Não sei, quando ela não aprende Quando magoa uma pessoa ou faz algo de mau 5 Não prestar atenção Quando a pessoa fica prestando atenção. Opa!Não!É quando ela não presta atenção, igual eu agora. 6 Ser desobediente Não cumpriu as regras. 7 Ser idiota. Deu bobeira e pisou na bola. 8 É quando não faz nada certo. Quando não vai bem em nada. 9 É quando escolhe o mal. É quando pisa na bola. 10 Quando é mal amigo. Quando entrega um amigo. 11 Quando desrespeita as regras. Quando não estuda pra prova. 12 Descumprir o combinado. Fazer o ruim pra alguém. 13 Não acertar. 14 Desobedecer. Esquecer um compromisso. Não fazer o que os pais ou professores pedem. 15 Não ser organizado Dar desculpas esfarrapadas. 16 Não estudar direito. Não entregar tarefas. 17 Ser mal educado Desrespeitar os mais velhos. O que faz uma pessoa errar? Desobediência Como você se sente quando percebe que errou? Me sinto mal, peço desculpas pelo erro. Várias coisas Fico bem triste O lápis Mal Xingar, bater Mal Tudo é errar. Se a pessoa errar, parece que a pessoa não quer estudar. Ela ser ruim e maldosa. È tirar nota ruim na escola. É ficar de recuperação Quando ela é ruim. Quando é chata pra caramba. È tirar notas ruins. Não ser bom amigo Magoar alguém. Ser ruim. Não ser bom amigo. Não ajudar os outros. Ser maldoso. Triste Fico com raiva de mim. Péssimo. Daí tem que ficar de recuperação. Mal. Malzão. Triste. Mal. Chateado. Triste. Triste. Super chateado Triste. Mal. As respostas dos alunos revelaram sentimentos e significações que vão sendo incluídas ao contexto do erro na sala de apoio. Pudemos verificar que, ao significarem o erro, prevalecem nas respostas dos alunos a inclusão dos aspectos morais, relacionando o erro cognitivo ao erro no campo de significações morais, como: “desobedecer, culpa, não fazer as coisas certas, fazer algo ruim”. Os aspectos afetivos aparecem com maior intensidade, enfatizando a compreensão que os alunos têm sobre a sua ação (errar) indissociada da consequência de julgamento moral que a acompanha. Ou seja, a criança não relaciona sua ação a possíveis enganos decorrentes de sua relação com o objeto, mas sim, àquilo que pode provocar em termos afetivos como é o caso do erro relacionado a “desobediência”, ou “algo ruim”. Para estes alunos errar é “magoar” o outro ou acontece quando alguém “pega algo do amigo”. A indissociação própria do sujeito heterônomo, como apontou Piaget (1994), não possibilita que compreendam além do aparente e neste caso das significações que o social lhe impõe como verdade e sagrado. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 323 A alusão do erro às questões relativas ao processo de aprendizagem revelam a necessidade de reflexão por parte da escola quanto ao tema: “erra quando não presta atenção”, ou ainda “Tudo é errar. Se a pessoa errar, parece que a pessoa não quer estudar.” A moral enquanto aspecto relacionado ao desenvolvimento dos julgamentos do aluno sobre o erro, interfere nas significações construídas neste contexto, pois não é construída de forma isolada, mas compartilhada com os demais atores da escola. Quanto aos sentimentos predominantes nas respostas a uma situação em que o aluno errou encontramos “a tristeza, o mal estar e a culpa”. A indissociação novamente aparece no julgamento dos alunos. Neste momento de seu desenvolvimento, há uma evolução da consciência do sujeito sobre o erro, mas articulada ao desenvolvimento do juízo moral sobre as suas ações que vão sendo construídas nas relações interindividuais. O aspecto afetivo relacionado ao erro tem no outro com o qual nos relacionamos, um espaço compartilhado de significados. Por isso, Dolle (1993), considera a afetividade implicada com o campo das significações interindividuais. O sentido se constrói neste encontro entre o sujeito e o mundo social. Assim, dependendo de como se estabelecem estas relações, no qual o erro se faz presente, o sujeito poderá chegar a julgamentos autônomos ou permanecer aceitando verdades sem questioná-las. É inegável a influência dos discursos sociais sobre o erro, junto aos sentimentos despertados nos alunos. Pois, antes de mais nada são discursos morais, carregados de afetos, que vem da própria sociedade formando o universo moral humano e designando aos sujeitos lugares distintos. Diante disto podemos refletir sobre a necessidade da escola possibilitar aos alunos situações de reflexão sobre suas ações, ajudando-as a entenderem suas ações consideradas “erradas” sob outro ponto de vista, compreendendo como Piaget, aspectos positivos expressos nesta atividade. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 324 No enfrentamento da tarefa Na realização da tarefa Diante de uma situação de conflito Na finalização da tarefa Coragem. Atitude. Interesse Rapidez em iniciar a tarefa. Impulsividade. Medo, receio, desinteresse Demora em iniciar. Passivo Impulsividade. Autonomia. Desinteresse. Fuga ou dispersão. Insegurança. Dependência. Desinteresse. Insegurança. Fuga ou dispersão. Desistência. Descomprometimento. Auto-controle.Conduta Evitativa. Estratégia (cópia). Desistência, Descomprometimento Raiva, desconforto. Conduta evitativa. Repetição de estratégias. Coragem, atitude, interesse. Rapidez em iniciar a tarefa. Impulsividade. Autonomia, Desinteresse Segurança. Fuga ou dispersão Persistência. Compromisso.Autocontrole.Enfreta desafios.Diferentes estratégias. Coragem, atitude, interesse Rapidez Impulsividade Medo, receio. Demora em iniciar a tarefa. Passividade. Desinteresse, impulsividade. Autonomia, Interesse Segurança Envolvimento Dependência, Desinteresse Insegurança. Estratégia (copia). Fuga ou dispersão Insatisfação “Errei muito” Senso de incompetência. Dependente. Erros recorrentes. Insatisfação diante do resultado Incompetência (Errei tudo!). Dependente. Erros recorrentes. Satisfação/ resultado Se sente competente (“Acertei tudo!”), confiante. Corrige procedimentos Insatisfação com o resultado. Se sentem incompetentes. Dependente e recorrência nos erros. F Coragem, atitude, interesse Rapidez em iniciar. Autonomia, interesse Insegurança. Envolvimento F Coragem, atitude, interessse Rapidez em iniciar. Planejamento Autonomia, Interesse Segurança . Envolvimento Persistência, Compromisso Auto controle. Enfrenta desafios, Diferentes estratégias Satisfação com o resultado Sente-se competente,confiante Corrige procedimentos G Coragem, Atitude, Interesse Rapidez em iniciar Planejamento H| Medo, receio. Inicia devagar, desinteresse. Impulsividade Autonomia, Interesse Segurança Envolvimento Autonomia, Interesse Segurança Envolvimento Persistência, Compromisso Auto controle Enfrenta desafios, Repete estratégias Persistência, Compromisso Auto controle. Demora frente ao desafio. Repete estratégias Satisfação/ resultado Sente-se competente,confiante, Corrige procedimentos Satisfação/ resultado Sente-se competente, confiante Corrige procedimentos I Medo, receio.Demora em iniciar. Passividade. Desinteresse, Impulsividade Dependência. Desinteresse Insegurança . Fuga ou dispersão Desistência, Descomprometimento Auto controle. Conduta evitativa. Estratégia (cópia). Não terminou a atividade. Revelou muita insegurança. Medo, receio. Demora em iniciar, passivo.Desinteresse Impulsividade. Coragem, atitude, interesse Rapidez em iniciar Planejamento de ações Dependência, desinteresse Insegurança. Fuga ou dispersão Descompromisso. Raiva, desconforto Conduta evitativa, Estratégia (cópia) Insatisfação. Vê-se Incompetente, Dependente. Repete os erros. Autonomia. Interesse. Segurança. Envolvimento. Persistência , Compromisso Auto controle. Enfrenta desafio, Repete estratégias. Satisfação/resultado Sente-se competente, confiante Corrige procedimentos A B C D E J K Desistência, Decomprometimento Raiva, desconforto Conduta evitativa, Estratégia(cópia) Persistência, Descomprometimento Raiva, desconforto Estratégia: foge da tarefa. Cria desculpa e sai. Desistência. Descomprometimento Auto controle. Conduta evitativa, Estratégia(cópia). Insatisfação.Se sente incompetente Dependente. Repete os erros. Satisfação diante do resultado Sente-se competente,confiança Corrige procedimentos. L Coragem, atitude, interesse. Rapidez em iniciar. Planejamento de ações Dependência ,Interesse Insegurança. Envolvimento Persistência, Compromisso. descontrole. Não enfrenta desafio, Diferentes estratégias Satisfação/ resultado Se sentir competente Corrige procedimentos M Coragem, atitude, interesse Rapidez em iniciar Planejamento Dependência. Interesse Insegurança. Envolvimento Persistência , Compromisso Auto controle, Enfrenta desafios, Diferentes estratégias Satisfação/resultado Sente-se competente, confiante Corrige procedimentos N Coragem, atitude, interesse Rapidez em iniciar Planejamento Dependência, Interesse Insegurança. Envolvimento. Desistência, Descompromisso Raiva, desconforto. Conduta evitativa, Diferentes estratégias. Insatisfação com o resultado Sente-se incompetente, Dependente Mesmos erros. O Medo, receio, passividade, desinteresse. Impulsividade Dependência,Desinteresse , Insegurança ,estratégia (cópia) Fuga/dispersão P Coragem, atitude, interesse Rapidez em iniciar Planejamento Dependência Interesse Insegurança Envolvimento Desistencia , Descomprometimento Raiva, desconforto, evitação Diferentes estratégias Desistência, Falta de Compromisso Auto controle, Conduta evitativa, Estratégia (cópia) Não terminou a atividade. Fabulação. Satisfação/ resultado Sente-se competente,confiança Repetir os mesmo erros Tabela 2: Indicadores afetivos na observação dos alunos em atividades propostas pelo professor da sala de apoio. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 325 Os dados que apresentamos nos permitiram tecer considerações sobre o enfrentamento, o conflito próprio à realização e a finalização da tarefa proposta pelo professor. Gostaríamos de destacar um dado significativo. Ao dirigirmos nosso olhar para o que indicam os dados sobre o momento final das atividades, podemos perceber que os alunos que chegaram até ao final, seja com ajuda do colega, ou do professor, seja copiando em alguns momentos, diversificando estratégias ou repetindo-as, apresentaram uma relação significativa entre sucesso na atividade e a atitude de enfrentamento dos conflitos, pois todos eles conseguiram acertar na medida em que tomavam consciência do erro e passavam a realizar ajustes nos procedimentos de sua ação. A coragem foi o sentimento que mais evidenciaram diante do desafio proposto e os sujeitos que assim se posicionaram esforçando-se e colocando-se em atividade, foram aqueles que até o final da tarefa se permitiram rever a própria ação. Podemos inferir que a ação foi ressignificada no plano do compreender, pois questionavam suas ações frente ao resultado apresentado pelo professor e se colocavam na busca de outras possibilidades. Com isto vimos um sujeito ativo, que embora contasse com a presença mediadora do professor, foi sempre ele quem por si mesmo tinha a possibilidade de realizar novas construções. (DOLLE; BELLANO, 1999). Já os alunos que apresentaram medo no início da tarefa foram incluindo, em todo o tempo de sua execução da tarefa, atitudes como dependência, desinteresse, insegurança, raiva, conduta evitativa (várias desculpas para sair da sala) até chegar ao resultado de fracasso na atividade ou até desistência da mesma como aconteceu com dois alunos. O sujeito em si parecia sair aos poucos de cena, para aceitar de modo passivo o resultado apresentado pelo professor. A “morte do sujeito do conhecimento” apresentou como último fôlego de atividade, a criação mobilizada para o campo afetivo, quando os alunos passam a criar estratégias para lidar com o medo e não para resolver a tarefa, numa ação de fuga àquilo que temiam (MACEDO, 2008). Com isto podemos refletir sobre o papel da coragem na construção do conhecimento. A coragem parece funcionar como um elemento sustentador do sujeito cognoscente, uma vez que estaremos sempre lindando com riscos neste caminho de muitas trajetórias que implica descobrir o objeto e a si mesmo. Erros e acertos farão parte deste percurso e apresentar uma situação considerada errada para o adulto, ou grupo social é antes de mais nada revelar-se enquanto um sujeito que constrói dentro de uma lógica própria, caminhos para conhecer. Além de descobrir sobre o objeto, o sujeito quando posto em atividade, está constantemente descobrindo sobre si, “o que sei” o que não sei, sou competente, não sou competente”, relacionando assim cognição a aspectos afetivos do próprio eu, como muito bem destacou Piaget (1994). Para o autor a I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 326 construção do conhecimento se dá de forma relacional com o conhecimento sobre o objeto, sobre si e sobre o outro. Neste caso fracassar diante do olhar do outro significa conhecer o que pensam de mim e isto exige coragem e enfrentamento. Por isso, não podemos deixar de considerar todo este campo de significações que vão sendo construídos à medida que o sujeito se arrisca a conhecer, pois estamos tratando de campos interdependentes que se articulam e influenciam um ao outro. Conclusões No presente estudo, pudemos refletir sobre a interdependência intelectual e emocional nas condutas dos indivíduos diante do erro, compreendendo serem elas partes constitutivas do próprio sujeito. Pudemos analisar que na evolução do desenvolvimento o sujeito caminhará cada vez mais para elaborações complexas que o aproximem do objeto de conhecimento – evolução do pensamento - como também se apropria das próprias emoções de forma menos egocêntrica, adotando mais reciprocamente outras perspectivas e não apenas a própria, como pensaria um sujeito que evoluiu ao nível de autonomia dos aspectos cognitivos e morais. Nessa inter-relação o erro desempenha importante papel revelador das construções internas de um sujeito que se lançou à atividade de conhecer, de construir. Nessa linha de abordagem, o erro é positivo e deve ser considerado indicador das necessárias reorganizações próprias ao processo de aprendizagem. Nossos dados sobre a sala de apoio à aprendizagem indicam que ao contrário desta compreensão, o erro é considerado incompetência do aluno em suas produções. Não é percebido como parte do processo, mas como oposto ao aprender. É associado às dificuldades de aprendizagem que, também equivocadamente são compreendidas como problemas do aluno e são classificadas como negativas e impeditivas do aprender. Resgatar as concepções e significações do erro no contexto escolar por meio da reflexão, pareceunos urgente, afim de oportunizarmos em processos interventores, o resgate das condições de construção de diferentes possibilidades de interpretação da realidade sem que elas tenham que atender ao julgamento externo em detrimento do erro de quem atua diante do objeto de conhecimento. Os professores podem escolher como atuar diante do erro de seus alunos. Podem considerar o erro como indicador da estrutura cognitiva do aluno e a partir disto planejar uma intervenção ativa, a fim de que o erro se torne observável e indique os caminhos para a mediação da construção do sujeito cognoscente. De outro modo o professor poderá tomar o erro como indicador do fracasso do aluno fechando assim os olhos para aquilo que está em processo de construção, rotular, segregar e culpabilizar o I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 327 aluno pelo não aprender. Referências FERREIRO, Emília & TEBEROSKY, Ana. A psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: ArtMed, 1999. CUNHA, M. Psicologia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. DOLLE, Jean-Marie e BELLANO, Denis. Essas crianças que não aprendem: diagnósticos e terapias cognitivas. 4. ed. Petrópolis:Vozes, 1999. DOLLE, Jean-Marie. Para além de Freud e Piaget :referenciais para novas perspectivas em Psicologia Genética Piagetiana. Petrópolis :Vozes, 1993. FOGAÇA, Orlando. O erro nas aulas de Educação Física possibilita a aprendizagem? In: Anais do “IICNPEF”, Londrina-UEL. julho/2005. p.58-64. TAILLE, Ives, de La. O erro na perspectiva piagetiana. In: AQUINO, Júlio G. Erro e Fracasso na Escola. 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Linguagem e Pensamento A Abordagem Bilíngue e o Desenvolvimento Cognitivo dos Surdos: Uma Análise Psicogenética NOGUEIRA, Clélia Maria Ignatius UEM – Universidade Estadual de Maringá ZANQUETTA, Maria Emília Melo Tamanini Colégio Modelo de Maringá – ANPACIN [email protected] [email protected] Resumo Com base na teoria piagetiana, este trabalho objetivou investigar o desenvolvimento cognitivo dos adolescentes surdos educados numa abordagem bilíngue e comparar os resultados com os de uma outra pesquisa realizada em 1996 com surdos educados numa abordagem oralista, cujos resultados apontaram uma defasagem cognitiva de cerca de 2 anos em relação aos ouvintes de mesma faixa etária (12 a 14 anos). Para a consecução da pesquisa, foram realizadas seis provas, que identificaram o pensamento operatório concreto (a prova de inclusão de classe, as provas de conservação: de objetos descontínua, de líquido, de peso, de volume, de área), e duas provas para o pensamento formal (flutuação de corpos e quantificação de probabilidades), junto a um grupo de 11 adolescentes surdos, com idade entre 12 e 14 anos e que há pelo menos sete anos eram educados numa abordagem bilíngue. Os resultados mostraram que os surdos da pesquisa atual possuem um vocabulário melhor em relação aos sujeitos da pesquisa anterior e também um conhecimento escolar (grau de escolaridade) superior, porém esses avanços não se traduziram num desenvolvimento cognitivo maior. Isso nos levou a investigar como se processam as trocas simbólicas destes adolescentes, com a intenção de fornecer indicativos para uma atuação pedagógica mais eficaz. Palavras-chave: Psicologia Genética. Surdez. Bilinguismo. Abstract Based on Piaget's theory, this work aimed to investigate the cognitive development of deaf teenagers educated in a bilingual approach and to compare the results with 1996 research where they were educated in an oral approach, which showed a cognitive devaluation about two years compared to sound students with the same age (12 to 14 years). For this research were made six tests that identify the concrete concerning (the inclusion class test, the conservation tests: discontinue objects, liquid, weigh, volume, area) and two tests for formal concerning ( bodies flotation and probabilities quantification) with a group of 11 deaf teenagers, aged among 12 and 14 years old and that for up seven years were educated in a bilingual approach. The results showed that deaf of the present research have a better vocabulary than ones of last research and also a higher academic understanding (school degree), in spite of no translation in a bigger cognitive advance. This fact, take us to investigate how is the process of symbolic changes of this students, with the intention to provide indicatives for a pedagogical performance more efficient. Keywords: Genetic Psychology. Deafness. Bilingualism. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 330 Introdução A pesquisa aqui relatada e denominada de pesquisa 3 é consequência de outras duas (pesquisa 1 e pesquisa 2) que foram compartilhadas em ideias e preocupações por três professoras-pesquisadoras. A primeira pesquisa (pesquisa 1) foi realizada no final da década de 80, pela idealizadora do trabalho, professora universitária, matemática de formação e mãe de duas filhas surdas, em conjunto com uma professora universitária, psicóloga. Da segunda pesquisa (pesquisa 2), realizada em meados dos anos 90, além das duas pesquisadoras já mencionadas, participou também uma professora da Educação Básica, matemática de formação e especialista em educação de surdos. Finalmente, a terceira pesquisa (pesquisa 3), foi realizada entre 2004 a 2006 pelas duas professoras de Matemática. Talvez em função da formação em Matemática, nossa preocupação maior em relação à educação de surdos nunca foi, como seria esperado, com a comunicação em si, mas com o pensamento, afinal: Se quando pensamos, conversamos interiormente, como pensa o surdo? Essa indagação se revestia de maior importância quando uma de nós iniciou suas pesquisas na área, durante a década de 1980 e isso porque, naquele período, a educação de surdos no Paraná, era radicalmente oralista e o que comumente ocorria era nos depararmos com surdos adultos que não possuíam nenhum tipo de linguagem formal. Isso acontecia porque não era permitida a utilização de linguagem gestual e por ser a língua oral de difícil e complexa aquisição. Dito de outra forma, a indagação se resumia em: Existe pensamento sem linguagem? Assim, nossas investigações sempre focaram o desenvolvimento cognitivo do surdo. As pesquisas que são aqui relatadas aconteceram em contextos educacionais diferentes, em função da abordagem adotada. As pesquisas 1 e 2 foram realizadas com crianças educadas segundo a abordagem oralista e na pesquisa 3, a educação seguia o modelo bilíngue. A abordagem bilíngue parte do fato de que os surdos, mesmo sem ouvir, podem desenvolver uma língua que lhes possibilite uma comunicação eficiente. Apoiada na visão e utilizando as mãos, essa língua, a Língua de Sinais, é, para os adeptos do Bilinguismo, a primeira língua dos surdos, pois estes a aprendem com naturalidade e rapidez. Assim, de acordo com essa abordagem, o surdo deve adquirir primeiramente, como língua materna, a língua de sinais e a língua oficial do país, preponderantemente na sua forma escrita, deve ser ensinada como segunda língua. O Bilinguismo percebe a surdez como diferença linguística, e não como deficiência a ser normalizada através da reabilitação como no caso do oralismo. Como os contextos educacionais eram diferentes, a pesquisa 3, teve como objetivo principal, investigar o desenvolvimento cognitivo dos adolescentes surdos educados segundo a abordagem bilíngue, cotejando-os com os resultados encontrados na pesquisa 2, realizada com surdos educados segundo a I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 331 abordagem oralista. A pesquisa 3 tencionou também identificar as trocas simbólicas que existem entre os adolescentes e o meio, em geral, e com seus pais e familiares, em particular. A fundamentação teórica das três pesquisas realizadas foi a Psicologia Genética de Jean Piaget. A educação de surdos No Brasil, mais especificamente no Paraná, nas décadas de 1950 e 1960, os surdos eram vistos como “doentes” e, praticamente, inexistiam pesquisas científicas desenvolvidas na área educacional. A forma de atendimento estava voltada à filantropia e ao assistencialismo; os surdos não eram vistos como cidadãos produtivos ou úteis à sociedade e não havia a preocupação com a formação acadêmica ou profissional deles (STROBEL, 2000). Nas décadas de 1970 e 1980, a surdez é vista como “deficiência”. O surdo neste contexto histórico é conhecido como deficiente auditivo. A educação de surdos se caracterizou, nesse período, pelo predomínio de modelos clínicos, nos quais, em detrimento dos objetivos educacionais, imperavam os objetivos de reabilitação – o aluno como paciente e o professor como terapeuta. Com a predominância dos métodos oralistas, os surdos eram vistos como deficientes e proibidos de utilizar sinais para se comunicar. Na escola, eram poupados dos conteúdos escolares mais complexos e, quando matriculados no ensino regular, eram empurrados de uma série para outra. Da década de 1990 até hoje, a surdez é vista muito mais como “diferença” do que como “deficiência”. E como autodenominação dada pelos próprios surdos a expressão utilizada neste contexto é surdo (STROBEL, 2000). O estágio em que nos encontramos hoje é consequência de muita luta dos surdos, seus familiares, professores e profissionais da área, que resultaram em conquistas fundamentais, tais como: o reconhecimento da diferença linguística do surdo; a oficialização da Libras, a potencialização do pedagógico em detrimento do clínico na educação; a possibilidade da educação bilíngue numa dimensão política; o apoio ao fortalecimento e qualificação da comunidade surda; a formação e capacitação do professor e instrutor surdo; a formação de intérpretes de Libras e Língua Portuguesa e, particularmente, um crescente número de pesquisas na área da surdez . O referencial teórico A fundamentação teórica das pesquisas realizadas foi a Psicologia Genética de Jean Piaget, pois: [...] o argumento decisivo contra a posição de que as estruturas lógico-matemáticas originam-se unicamente das formas linguísticas é o de que, no decorrer do desenvolvimento intelectual de cada indivíduo, as estruturas lógico-matemáticas estão sendo construídas antes do aparecimento da linguagem. A linguagem aparece por volta da metade do segundo ano, mas antes disso, por volta do primeiro ano ou começo do I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 332 segundo, há uma inteligência prática com sua própria lógica de ação (PIAGET e INHELDER, apud NOGUEIRA, 1999, p. 83). Além disso, para a teoria piagetiana o pensamento é produto da ação interiorizada e a sua origem não é diretamente atribuível à aquisição da linguagem, embora ela seja fundamental para o seu desenvolvimento qualitativo posterior. A partir de um rigoroso conjunto de experiências, Piaget infere que o pensamento é o produto da ação interiorizada. Segundo ele, a gênese da inteligência na criança não é diretamente atribuível à aquisição da linguagem, embora ela forneça ao pensamento os quadros categoriais que lhe permitem organizar melhor a experiência, coordenar as ações interiorizadas em sistemas de conjuntos e disto abstrair princípios da ação independente do eu (FERENCZI, 1974, apud FERNANDES, 1990, p. 41). Assim, por esta teoria demonstrar que a linguagem é necessária, porém não suficiente para o desenvolvimento cognitivo, entendemos ser o referencial teórico mais adequado para uma pesquisa em que os sujeitos investigados são surdos. Apesar do número “limitado” de pesquisas, o desenvolvimento cognitivo e da linguagem dos surdos tem sido objeto de estudos há algum tempo. [...] embora se observe um certo atraso, mais ou menos sistemático, da lógica do surdo, não se pode falar da carência propriamente dita, pois se encontram os mesmos estágios de evolução com um atraso de 1 a 2 anos (PIAGET, 1985, p. 77). No Brasil, a partir da década de 1980, podemos destacar alguns trabalhos desenvolvidos com surdos e a teoria piagetiana, como as pesquisas de Zamorano (1981 e 1988); Poker (1995) e Machado (2000), que foram parte fundamental de nossos estudos e fundamentação teórica, além das pesquisas que originaram a presente, que denominamos de pesquisa 1 e pesquisa 2. A pesquisa 1 e a pesquisa 2 O objetivo geral da pesquisa 1 foi analisar se a surdez constituía um fator que comprometesse significativamente o desenvolvimento lógico-operatório infantil. Para isso, foi investigado, mediante a aplicação das provas piagetianas de correspondência, termo a termo, seriação e classificação, o desenvolvimento das estruturas lógicas elementares em 12 crianças com idade entre quatro e seis anos. Os resultados encontrados apontaram para a inexistência de defasagens significativas das crianças surdas em relação às crianças ouvintes, considerando-se os estádios de desenvolvimento descritos pela Psicologia Genética. Na pesquisa 2 (realizada sete anos após a pesquisa 1) o objetivo principal foi investigar como se processam as estruturas lógico-matemáticas em surdos, com idades entre 12 e 14 anos, e as pesquisadoras I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 333 esperavam encontrar resultados semelhantes aos anteriores. Foram examinadas cinco crianças surdas, que frequentavam a 4ª série, sendo que, destas, três haviam sido examinadas na pesquisa 1 e nove crianças ouvintes, também estudantes da 4ª série. A avaliação cognitiva foi realizada em dois níveis: com provas que envolvem estruturas operatórias concretas (provas de conservação: do líquido, do volume, de peso, da superfície (área) e inclusão de classes) e que envolvem o raciocínio operatório-formal (flutuação de corpos e quantificação de probabilidade). Os resultados encontrados na pesquisa 2 apontaram a compatibilidade entre os desenvolvimentos de surdos e ouvintes, entretanto, estes últimos tinham idade de 10 a 12 anos, indicando atraso dos dois anos no desenvolvimento cognitivo das crianças surdas. Ao analisar o atraso de dois anos no desenvolvimento cognitivo dos surdos em relação ao dos ouvintes, que não foi detectado na pesquisa 1, as pesquisadoras indagaram se a abordagem oralista não teria sido determinante nos resultados encontrados e se ressentiam da falta de condições para responder a essa indagação, por não existirem, naquele momento, surdos educados em abordagem diferente da oralista. A pesquisa 3 Passados quase dez anos da realização da pesquisa 2, a educação de surdos no Brasil e mais especificamente Paraná, vivia nova realidade em 2004, tanto no que se refere à concepção que se tem do indivíduo quanto ao seu contexto escolar, em consequência do reconhecimento da libras como primeira língua dos surdos. Desta forma, existiam, na época em que a presente pesquisa foi realizada, sujeitos que, há pelo menos sete anos, eram educados numa abordagem bilíngue, o que possibilitou verificar a questão levantada na pesquisa 2. Dito de outra forma, o objetivo principal da pesquisa 3 foi investigar o desenvolvimento cognitivo do adolescente surdo-bilíngue (educado segundo a abordagem bilíngue), considerando como referência os dados obtidos pela pesquisa 2, com adolescentes surdos-oralistas (educados segundo o oralismo). Procedimentos metodológicos A avaliação cognitiva foi realizada em dois níveis: as condições dos adolescentes no que se refere às provas que envolvem estruturas operatórias concretas (provas de conservação: de quantidades contínuas (líquido e massa); de quantidade descontínua, de volume, de peso, de superfície (área) e de inclusão de classes; e as condições dos adolescentes no que se refere às provas que envolvem o raciocínio operatório-formal (flutuação de corpos e probabilidade). Orientamo-nos pelo método clínico piagetiano, método de observação, que consiste em propor uma atividade ao sujeito e discutir com ele suas soluções, sem que o sujeito interprete a ação do I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 334 observador como aprovação ou desaprovação das suas soluções. A essência do método clínico está em separar, nas respostas dos adolescentes, o que há de realmente refletido e o que é resultado de fabulações ou de fadiga. É basicamente um método de interrogação que coleta material para análise e interpretação à luz de uma teoria definida, no caso, a psicologia genética. Os protocolos utilizados foram elaborados após estudos teóricos e foram realizadas diversas correções de percurso em consequência da aplicação “piloto” com adolescentes ouvintes e adultos surdos. Esclarecemos que, pela própria natureza do método clínico, os protocolos não foram rígidos; houve alterações sempre que o sujeito indicou caminhos não previstos inicialmente. Há, contudo, o direcionamento contínuo do desenvolvimento das entrevistas, de maneira a ser possível investigar o que se pretende. Para a transcrição das fitas, consideramos todas as manifestações da linguagem dos adolescentes surdos – (Língua Portuguesa, Língua de Sinais, explicações e descrições de ações não linguísticas). O Sistema de Transcrição adotado para a Libras, na pesquisa, está baseado no desenvolvido por Felipe (apud Fernandes, 1998): convenções utilizadas para poder representar, linearmente, uma língua espacialvisual, que é tridimensional. Foram também entrevistados o pai, a mãe ou o responsável dos adolescentes surdos. Entrevistamos 7 (sete) dos 11 pais, sendo que foram cinco mães e dois pais, para identificar as trocas simbólicas que existem entre os adolescentes e o meio, em geral, e com os seus pais e familiares, em particular. As entrevistas foram gravadas e transcritas e foi feita a categorização das respostas. Os dados coletados foram utilizados, particularmente, para poder interpretar as informações reveladas pela aplicação das provas e seu cotejamento com os resultados da pesquisa 2. As provas realizadas foram: as de conservação física, como a de quantidade contínua (líquido e massa), a de quantidade descontínua, a do peso e do volume; a conservação espacial: de área; as da operações lógicas: a de inclusão de classes; de flutuação de corpos e a de probabilidade. Algumas destas provas não foram realizadas na pesquisa 2, como a de quantidades descontínuas, pois as pesquisadoras consideraram que não se fazia necessário pelo desenvolvimento apresentado pelos sujeitos, e a de massa, porque é uma prova de quantidade contínua como a do líquido. Optamos por realizá-las, a título de contra-prova. A prova de probabilidade, realizada na pesquisa 3, segundo os dados apresentados na pesquisa 2, estava prevista e houve tentativas de aplicação, porém não foi possível, pela falta de comunicação entre pesquisadora e sujeitos. O meio de comunicação utilizado para a aplicação das provas foi a libras, porém acrescentado de mímica usual, de português sinalizado, de escrita, sempre que se sentiu que a comunicação não tinha sido I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 335 suficiente para a compreensão pelo sujeito das indagações feitas. Os encontros foram filmados, para possibilitar a transcrição e o esclarecimento de qualquer dúvida durante a análise. No que se refere aos sujeitos, na pesquisa 2, participaram 5 (cinco) adolescentes surdos, com idade entre 12 a 16 anos, que cursavam a 4º ano do ensino fundamental, e 9 (nove) ouvintes também cursando o 4º ano, com idade entre 10 e 12 anos. Na pesquisa 3, foram 11 adolescentes surdos, com idade entre 12 e 14 anos, que cursam do 5º ao 8º ano do ensino fundamental. Os ouvintes foram considerados na pesquisa 2 porque o que se buscava era compreender o desenvolvimento cognitivo dos adolescentes surdos, tendo como parâmetro o desempenho de crianças ouvintes com a mesma escolaridade. Na pesquisa 3 não foram considerados sujeitos ouvintes, pois o parâmetro adotado para comparação foi o “desempenho” de sujeitos surdos educados segundo a abordagem oralista. No que se refere à surdez propriamente dita, os sujeitos das duas pesquisas possuem surdez neurossensorial, bilateral, entre severa a profunda. Os adolescentes surdos participantes da pesquisa 3 foram selecionados de acordo com os seguintes critérios: 1. Ter idade entre 12 e 14 anos (mesma idade dos sujeitos da pesquisa anterior), pois, de acordo com a teoria de Piaget, espera-se que estes adolescentes estejam no estágio das operações formais. 2. Ter proficiência em Libras. 3. Ter sido educado numa proposta de abordagem bilíngüe por pelo menos sete anos. 4. Não apresentar comprometimento mental. Como, em função da melhoria dos serviços educacionais oferecidos, os sujeitos surdos de mesma idade dos que participaram da pesquisa 2 encontravam-se mais adiantados em seu percurso escolar, ficamos com duas opções: manter o mesmo nível de escolarização e considerar sujeitos mais novos ou respeitar o critério da idade, em detrimento do quesito escolaridade. Optamos pela última possibilidade, uma vez que, embora o meio e as informações recebidas influenciam o desenvolvimento cognitivo, procuramos respeitar os estágios descritos pela Psicologia Genética. Outro fator determinante para a opção pelos adolescentes com idade entre 12 e 14 anos foi o tempo de educação segundo a abordagem bilíngue, de no mínimo sete anos. A fixação deste período pode ser usada para eventuais contestações dos resultados desta pesquisa, no sentido de que sete anos podem não ser suficientes para considerar que um sujeito seja “educado segundo a abordagem bilíngue”. Todavia, como o foco aqui é o desenvolvimento cognitivo do sujeito surdo, a premissa adotada levou em I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 336 consideração o seguinte: • Que os resultados da pesquisa 1 não indicaram defasagens significativas entre crianças ouvintes e surdas com idade entre 4 e 6 anos; • Que os resultados da pesquisa 2, realizada sete anos depois da pesquisa 1, com adolescentes surdos educados na abordagem oralista, dos quais três haviam participado da pesquisa 1, apresentaram dois anos de defasagem no desenvolvimento cognitivo quando comparados com crianças ouvintes. • A indagação das pesquisadoras, ao final da pesquisa 2, se estes resultados seriam diferentes caso a educação das crianças, no período de 7 anos transcorridos entre as duas pesquisas, tivesse seguido uma abordagem bilíngue. Cotejando os resultados Na prova de conservação de líquido, oito surdos da pesquisa 3 (isto é, 72,2%) conservam em oposição aos 3 (60%) sujeitos da pesquisa 2 que conservam. Na prova de conservação de volume, o percentual dos níveis de respostas dos surdos-oralistas e dos surdos-bilíngues é praticamente o mesmo, com 60% de sujeitos oralistas e 63% de bilíngues conservadores. Nas provas de área e peso, existe uma diferença significativa de desempenho, com apenas dois (36,3%) sujeitos oralistas conservadores enquanto que os conservadores bilíngues são seis (63,6%). Todavia, os resultados encontrados na pesquisa 2 contrariam a psicogenética, pois há uma gradação nas conservações, iniciando pelas grandezas contínuas (líquido e substância) depois peso e área e, finalmente volume, evidenciando que os mesmos foram comprometidos pela dificuldade de comunicação entre sujeitos e pesquisadoras. Esta dificuldade é destacada pelas mesmas, explicando que os sujeitos oralistas apresentavam tanto a leitura labial quanto o repertório bastante limitados, comprometendo a análise de algumas respostas, principalmente porque nessas provas, ao contrário das que se referem ao líquido e ao volume, as indagações das pesquisadoras acerca das quantidades a serem avaliadas estarem associadas a recipientes outros que não o próprio objeto a ser avaliado. Os surdos da pesquisa 3 apresentaram uma ordem de sucessão da construção das noções de conservação do peso e do volume que confirmam as pesquisas de Piaget e Inhelder, o que não aconteceu com os da pesquisa 2. Se insistimos sobre a ordem de sucessão da construção das noções de conservação de substância, do peso e do volume físico, não é pelo vão prazer de constatar que nossos resultados são também encontrados alhures, mas sim porque essa ordem sucessão apresenta uma significação ao mesmo tempo lógica e psicológica [...] (Piaget e Inhelder, 1975, p.19). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 337 No que se refere ao vocabulário dos adolescentes, os participantes da pesquisa 3 empregam mais termos e termos mais apropriados. A prova realizada para investigar as operações lógicas elementares, foi a de inclusão de classes, observamos que os surdos participantes de ambas as pesquisas (2 e 3) apresentam desempenho compatível com a faixa etária. Isso indica que os sujeitos compreendem as relações entre um conjunto de objetos e seus subconjuntos e entre os vários subconjuntos, referindo-se ao estágio III. Na investigação do desenvolvimento cognitivo dos sujeitos no que se refere às operações formais, a prova aplicada foi a de flutuação de corpos, com os seguintes resultados percentuais: nenhum dos sujeitos surdos examinados pelas duas pesquisas se encontrava no estágio III (utilização de raciocínio operatório formal); na pesquisa 2, dois sujeitos encontravam-se no estágio I e dois no estágio II (50% dos sujeitos63 em cada estágio). Dos sujeitos da pesquisa 3, 36,3% estavam no estágio I e 63,6% no estágio II. De maneira geral, tanto os sujeitos da pesquisa 2 quanto os da pesquisa 3 encontram-se no estágio operatório concreto. Quanto à consideração da dificuldade da efetivação do exame da flutuação de corpos quando da realização da pesquisa 2, na pesquisa 3 a conversa fluiu normalmente. O cotejamento dos resultados das pesquisas 2 e 3 no que se refere às provas piagetianas aplicadas não nos permitem afirmar que a educação de surdos segundo a abordagem bilíngue tenha proporcionado um avanço significativo no desenvolvimento cognitivo dos surdos examinados. Os relatos das entrevistas com os pais nos apontam que o adolescente surdo teve ganhos emocionalmente e no desempenho escolar a partir do reconhecimento e da adoção da Libras. Quanto à questão da Libras, mas que, conforme os resultados das provas piagetianas, não se refletiu no desenvolvimento cognitivo. Considerações finais De maneira ampla, podemos afirmar que o diálogo entre as pesquisadoras e os adolescentes participantes da pesquisa 3, realizada através da Libras, realmente foi possível e de qualidade foi bem melhor que entre pesquisadoras e sujeitos da pesquisa 2, em que a leitura labial, gestos e mímica foram os canais de comunicação. Além disso, comparando os desempenhos dos surdos-bilíngues e dos surdosoralistas, constatamos que em razão de os primeiros possuírem vocabulário melhor tanto qualitativa quanto quantitativamente, eles compreenderam melhor cada situação proposta fornecendo, também, 63 Foram considerados os dados referentes a quatro sujeitos surdos oralistas pois os referentes a um deles não puderem ser analisados devido à precariedade da comunicação. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 338 respostas mais completas aos questionamentos realizados. nas provas e os questionamentos durante entrevistas, promovendo que os surdos-oralistas da pesquisa 2, além de relação aos surdos educados numa abordagem bilíngue. Outro aspecto em que os surdos-bilíngues demonstraram avanço, foi em relação ao conhecimento escolar, aqui entendido como conteúdos acadêmicos. Como a vivência educacional dos surdos-oralistas era basicamente voltada para a reabilitação, com a escolaridade relegada a um segundo plano e os professores assumindo o papel de terapeutas, esses surdos, embora tivessem a mesma faixa etária (entre 12 e 14 anos) que os examinados na pesquisa 3, estavam cursando a 4ª série enquanto que os surdosbilíngues, estão cursando entre 5ª a 8ª série, pois vivenciam um momento em que a escolaridade é evidenciada. É natural, portanto, a indagação: Se os surdos da pesquisa atual possuem um melhor vocabulário e conhecimento escolar com a Libras, por que isto não se traduziu em avanço cognitivo, ao contrário, em relação a algumas provas, como o percentual de não conservação aumentou? A resposta a esta questão demandaria outras pesquisas, entretanto, a teoria piagetiana, os resultados dos estudos de Poker (1995) e as entrevistas realizadas com os pais nos permitiram elaborar algumas conjecturas. Se não podemos afirmar que a Libras, por si só, proporcionou ganhos qualitativos no desenvolvimento cognitivo do indivíduo surdo, isso nos remete ao pressuposto piagetiano de que o pensamento é produto da ação interiorizada e que sua origem não é diretamente atribuível à aquisição da linguagem, embora ela seja fundamental para o seu desenvolvimento qualitativo superior. Ficou evidente em nosso estudo que, embora os surdos tenham a possibilidade de uma efetiva comunicação em libras, as pessoas fluentes em libras que os cercam, ainda constituem um grupo restrito, que não favorece as trocas simbólicas necessárias ao desenvolvimento cognitivo. Conhecendo de perto a realidade histórica em que se encontra a educação dos surdos sujeitos da nossa investigação podemos considerar que, embora a escola em questão tenha investido muito e os professores que trabalham com a educação de surdos reconheçam a importância da Libras e procurem utilizá-la dentro e fora da sala de aula, mostrando a intenção de cumprimento dos preceitos do Bilinguismo, isto não se concretizou inteiramente na prática. Uma causa possível talvez seja o pouco tempo de implantação da proposta, de tal modo que esta ainda não se revestiu numa “segunda pele” dos docentes. Por outro lado, os professores se encontram em diferentes níveis de aquisição da Libras, quer seja pelo tempo de trabalho na escola, pela aptidão de aprendizagem de uma segunda língua, ou mesmo pelo interesse nessa língua. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 339 Uma outra hipótese é de que na abordagem oralista, tinha-se uma “cartilha” (passos) a seguir, as atividades eram claras, voltadas à reabilitação. Agora com abordagem bilíngue, temos os surdos usuários da Libras; assim existem algumas diferenciações na prática pedagógica, como a ênfase na utilização de recursos visuais, mas o “modelo de educação” a seguir é o do ensino comum, no qual, como sabemos, não existe uma preocupação com o desenvolvimento cognitivo. As interações dos surdos com seus professores foram objeto de investigações de outros pesquisadores, e a bibliografia da área indica que, de maneira geral, os professores que trabalham com crianças surdas têm o hábito de controlar os diálogos com as mesmas, dificultando as suas expressões espontâneas e iniciativas próprias. Em vista do exposto, podemos ver que as trocas simbólicas ocorridas na escola estão aquém do necessário ao desenvolvimento cognitivo, o que é confirmado por Poker (1995). Entretanto, parece que da forma com vem sendo praticado, o método combinado não está promovendo situações que favoreçam o desenvolvimento pleno dos sujeitos a ele submetidos, proporcionando a eles reais condições de troca simbólica. É claro que esta troca acontece, de uma maneira ou outra e, neste caso específico, é facilitada pelo uso dos gestos, mas isso não acontece por conta de uma intenção explícita do professor (POKER, 1995, p. 239). Poker (1995) e Nogueira e Machado (2007), também chamam a atenção para o fato de que a aquisição de uma língua, no caso a Libras, não é suficiente para o desenvolvimento cognitivo dos surdos e atribuem à escola maior responsabilidade. Para tanto, faz-se necessário oferecer aos surdos condições adequadas para que possam se desenvolver cognitivamente, independentemente do tipo de linguagem empregada neste processo. É preciso entender, principalmente, que não é somente pela superação do déficit linguístico que eliminar-se-ia o déficit cognitivo (POKER, 1995, p. 240). O desenvolvimento cognitivo da criança surda não é objeto de ações intencionais, como se apenas uma comunicação mais eficiente, a aquisição de uma linguagem fosse suficiente para elevar o pensamento, sem nenhuma preocupação com os processos envolvidos neste movimento (NOGUEIRA e MACHADO, 2007, p. 587). Para investigarmos como acontecem as trocas simbólicas fora do ambiente escolar, entrevistamos os pais e a partir das suas respostas concluímos que as interações extra-escola são restritas, mesmo os surdos sendo considerados bilíngues e com todo o avanço tecnológico (celular, internet). Com as trocas simbólicas nos ambientes escolar e familiar restritas, resta aos indivíduos surdos uma comunicação mais efetiva com seus pares, colegas da escola, e com os adultos surdos, estes últimos frutos de uma educação oralista radical, com vocabulário em Libras bastante inferior aos dos jovens surdos. A interação entre seus pares não favorece a evolução do pensamento, em consequência da I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 340 delimitação simbólica existente. Essa situação não é, evidentemente, natural e imutável. Ao contrário. Foi por acreditarmos numa educação que favoreça o desenvolvimento cognitivo dos surdos (e ouvintes) que enveredamos pelos caminhos desta pesquisa. E, dos estudos realizados e dos resultados encontrados, podem emergir indicativos de muitas ações que contribuam efetivamente para a evolução do pensamento do indivíduo surdo. Não descartando o compromisso dos pais, temos que considerar que mais de 90% dos surdos são filhos de pais ouvintes (Goldfeld, 1997); assim, amplia-se, consideravelmente a responsabilidade do ambiente escolar. Cabe à escola pensar numa educação de surdos, numa perspectiva mais ampla e que leve em consideração que o conhecimento é construído pelo aluno a partir de suas ações e interações no e com o meio ambiente, sempre mediado pelo professor; que seja dada a importância ao processo de desenvolvimento cognitivo e o grau evolutivo de cada criança e adolescente sob seus cuidados; que a origem da lógica se encontra na ação e não na linguagem; que a função semiótica é composta por diferentes formas de representação como a imitação diferida, o desenho, a linguagem, o jogo simbólico e as imagens mentais − e todas elas devem ser privilegiadas;que o raciocínio do surdo não se fundamenta apenas no visual, apesar deste sentido ser extremamente desenvolvido;que a Libras desempenha papel fundamental para que o surdo ultrapasse o período das operações concretas rumo ao lógico-formal, dando-se isso pelas trocas simbólicas possibilitadas; que a família não deve ter sua responsabilidade e sua participação diminuída pelo fato de a Libras ter proporcionado uma comunicação mais efetiva entre a escola e os alunos. Por fim, a escola de surdos, mais do que uma escola de ensino comum que adota uma língua diferente, continua necessitando de cuidados especiais para que seus educandos, apesar da diferença linguística, conquistem o pleno desenvolvimento de seu pensamento. Como alertam Nogueira e Machado (2007), a escola não pode se limitar a traduzir para a Libras, metodologias, estratégias e procedimentos da escola comum, mas deve continuar a organizar atividades que proporcionem o salto qualitativo no pensamento dos surdos.”O que não se pode deixar de considerar é que o surdo não ficará livre das restrições impostas pela surdez apenas com a aceitação da sua peculiaridade linguística e cultural”. (NOGUEIRA e MACHADO, 2007, p.589). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 341 Referências FERNANDES, E. Problemas linguísticos e cognitivos do surdo. Rio de Janeiro: AGIR, 1990. FERNANDES. S. F. Surdez e linguagens: é possível o diálogo entre as diferenças? 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Especial, UNESP / Marília MELO, Simone Gomes de Universidade Estadual Paulista - UNESP / Marília [email protected] [email protected] Resumo Conforme aponta a proposta da Educação Inclusiva a escola deve adequar-se às necessidades educacionais especiais dos alunos e, no caso do aluno com surdez, deve oferecer recursos e estratégias que utilizam essencialmente o meio visual. Isso se justifica porque a surdez compromete o desenvolvimento linguístico do sujeito. Já a cognição da pessoa com surdez está preservada, tendo ela plenas condições de desenvolver seu pensamento como os ouvintes, desde que sejam oferecidos instrumentos simbólicos diferentes da língua oral como a Língua Brasileira de Sinais, língua natural dos surdos. Seguindo os princípios da educação inclusiva e com base na teoria piagetiana, o estudo centralizou-se na análise da ação pedagógica do professor por considerar sua importância enquanto elemento privilegiado, favorecedor do desenvolvimento cognitivo. Teve como base o Estudo de Caso de um aluno surdo, de 8 anos, com perda auditiva profunda, bilateral, congênita, inserida em sala de aula comum no segundo ano do ensino fundamental, de uma escola da rede estadual de São Paulo. O método de coleta de dados utilizado foi a observação aleatória na sala de aula (20 horas), distribuídas em quatro meses. Os registros foram feitos de forma descritiva apontando-se as situações de interação entre a professora e o aluno com surdez. Os resultados preliminares apontaram que o ambiente em sala de aula não tem possibilitado trocas simbólicas, entre o aluno e a professora. Em geral a professora usou a linguagem oral com o aluno, não adaptou o material, virava-se de costas ao explicar, enfim, suas ações não permitiram que o aluno acessasse os conteúdos trabalhados e nem compreendesse as atividades propostas. Parece não haver na sala de aula, de fato, a preocupação por parte do professor, em utilizar estratégias ou instrumentos de ensino diferenciados que garantam a participação e, consequentemente, o desenvolvimento cognitivo do aluno surdo. Palavras–chave: Linguagem e pensamento. Aluno com surdez. Troca simbólica. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 343 Abstract As the proposal of Inclusive Education points, the school should adapt to the special educational needs of students and, in the case of deaf students, it should provide resources and strategies which use essentially the visual means. This is justified because the deafness affects the language development of the subject. In other hand, the cognition of the deaf person is kept, having him/her full conditions to develop his/her thinking as the listeners, if they are offered different symbolic instruments of oral language as the LIBRAS (Brazilian Sign Language), natural language of deaf people. According to the principles of inclusive education and basing on Piaget’s theory, the study focused on the analysis of teacher's pedagogical action, considering its importance as a prime element, supporter of the cognitive development. The study was based on the Case Study of an 8 years old deaf student - with deep hearing loss, bilateral, congenital - inserted in an ordinary classroom in the second year of an Elementary School of São Paulo State network. The method of data collection used was the random observation in the classroom (20 hours), distributed along four months. The records were made in a descriptive way pointing out the situations of interaction between teacher and deaf student. Preliminary results showed the environment in the classroom hasn’t enabled possible symbolic exchanges between the student and teacher. In general the teacher used the oral language in regard to the student, she did not adapted the material, turn herself back during the explanations, therefore, her actions neither allowed the student to access the content presented nor allowed to understand the proposed activities. It does not seem to exist in the classroom, indeed, the concern by the teacher regarding to the use of teaching differentiated strategies or tools to ensure the participation of the student in the proposed activities. Keywords: Language and thinking. Deaf student. Symbolic exchange. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 344 Introdução Pretendendo explicar como se forma o conhecimento humano, Piaget refere-se em sua teoria ao que acontece com o sujeito epistêmico, tratando do sujeito ideal que constrói o seu conhecimento interagindo de forma contínua e progressiva com o meio. Segundo Piaget: Os conhecimentos não partem, com efeito, nem do sujeito (conhecimento somático ou introspecção) nem do objeto (porque a própria percepção contém uma parte considerável de organização), mas de interações entre sujeito e objeto, e de interações inicialmente espontâneas do organismo, tanto quanto pelos estímulos externos (PIAGET, 1973, p.39). Para se entender o desenvolvimento do pensamento na perspectiva piagetiana, é necessário partir do conceito de inteligência dentro desse referencial. Inteligência aqui é o processo de adaptação do organismo ao meio, através da assimilação e acomodação. Pela assimilação, o sujeito incorpora o meio aos seus esquemas já constituídos, e pela acomodação, o sujeito, sofrendo perturbações do meio, se modifica, acomodando-se á nova situação. Obedecendo às leis de funcionamento da organização biológica, o sujeito, por meio da inteligência, vai incorporando e reconstruindo estruturas, ou seja, passa de um conhecimento menor para um conhecimento maior, em um sistema dinâmico, vivo e contínuo. A teoria piagetiana aponta que a lógica do conhecimento, apesar de vincular-se ao funcionamento genético da espécie humana, é construída pelo sujeito, uma vez que as noções e conceitos são alcançados através de um progressivo processo de interação entre ele, o sujeito, e o meio. O desenvolvimento das estruturas cognitivas constitui-se assim em um desenvolvimento endógeno, que vai evoluindo no momento em que novos elementos externos são assimilados ao sujeito e engendram novas combinações, que irão dar elementos para combinações posteriores cada vez mais complexas. No período sensório-motor as ações se coordenam logicamente, formando esquemas. A partir da generalização de tais ações, os esquemas se desenvolvem o que indica o início do comportamento inteligente. Formam-se então esquemas de ações, ou melhor, esquemas de assimilações que resultam na verdade em conceitos práticos. A passagem da lógica da ação presente no período sensório –motor para a lógica conceitual, reside na transformação da assimilação que se amplia, possibilitando ao sujeito a assimilação entre objetos, e com isso a extensão dos conceitos. Neste estágio, a criança adquire conforme Piaget, a função simbólica, isto é, a capacidade de distinguir o significante do significado. Para tal processo ocorrer, porém, é fundamental que exista condição para o sujeito evocar, representar por meio de um instrumento simbólico aquilo que não está presente. Neste sentido, a linguagem é importante pois constitui-se em instrumento simbólico privilegiado para representar as ações, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 345 acontecimentos e situações vividas pelo sujeito. Com ela o sujeito pode reorganizar suas ações mentalmente, pode referir-se ao passado e ao futuro, pode antecipar, prever, em síntese, pode pensar. De acordo com Piaget: De fato, a permuta constante de ideias com os outros é precisamente o que permite descentrar-nos, assegurando-nos a possibilidade de coordenar interiormente as relações provindas de pontos de vista distintos (PIAGET, 1956, p.211). O exercício da atividade representativa possibilitado pelo uso de diferentes instrumentos simbólicos e, dentre eles, pelo uso da linguagem, provoca, no plano mental, a transformação dos objetos do pensamento viabilizando-se as coordenações do estágio operatórias. As imagens mentais fundem-se numa totalidade. A inteligência conceitual propicia assim a tomada de consciência, pois possibilita a ultrapassagem das ações exteriores para ações mentais móveis e reversíveis, permite a construção de conceitos necessários às classificações e seriações, insere o pensamento individual em uma realidade social objetiva e comum, assegurando a reciprocidade dos pontos de vista. Conquista-se aí níveis mais elaborados de organização interna. Desse modo, percebe-se o quanto é importante que, nos processos de ensino formal, como o que é proposto pela escola, o aluno possa efetivamente comunicar-se, interagir com o professor e com os colegas, expressar suas ações ao nível representativo, conhecer o ponto de vista do outro e manifestar seu ponto de vista, reconstituir experiências vividas e fatos observados. São tais atividades que lhe permite superar o nível da inteligência prática, levando-o a desenvolver a inteligência operatória. No caso específico do sujeito com surdez, verifica-se que a falta de domínio do instrumento simbólico majoritariamente utilizado pela sociedade, ou seja, a linguagem oral, limita sensivelmente sua interação com o meio. Como não consegue compreender a fala do outro e não consegue expressar-se com uma língua que o outro compreende, fica impedido de estabelecer trocas simbólicas, não exercitando devidamente sua capacidade representativa. A surdez pode, se não forem oferecidas ao sujeito condições de troca simbólica, comprometer o seu desenvolvimento cognitivo. Por isso mesmo, é imprescindível que o professor que atua com o aluno com surdez assegure a participação efetiva da criança nas atividades propostas na sala de aula. Para tanto, o professor deveria utilizar uma pedagogia visual, ou seja, usar recursos visuais, figuras, desenhos, gráficos, legendas, mapas, etc, além de falar olhando para o aluno, usar expressão corporal, usar gestos e/ou Língua de Sinais, ou mesmo ter um intérprete de Língua de Sinais na sala de aula. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 346 A garantia da participação efetiva do aluno com surdez na sala de aula comum, se vincula diretamente ao uso adequado dessas estratégias e recursos pedagógicos. Na falta de tais elementos, o processo de ensino e o processo de aprendizagem ficam prejudicados, inviabilizando a implementação da política de educação inclusiva para o surdo. Isso porque a educação inclusiva pressupõe que os sistemas educacionais organizem-se para atender às necessidades educacionais especiais de todos os alunos. Significa oferecer aos alunos com deficiência condições adequadas para a sua aprendizagem, considerando-se as suas especificidades, de forma a garantir uma educação de qualidade, ou seja, uma educação capaz de desenvolver plenamente as suas competências. No caso do aluno com surdez, sua necessidade educacional especial para ter acesso ao currículo relaciona-se com o uso de instrumentos simbólicos diferenciados, que se apóiem em elementos visuais. Sem isso, o aluno com surdez não tem como participar das aulas, não tem como interagir com o meio, enfim, não tem como se desenvolver. Por isso mesmo é que os alunos com surdez inseridos nas classes comuns de ensino, não estão conseguindo acompanhar o currículo previsto para a série em que se encontram. Em geral, terminam o ensino fundamental sem terem domínio da escrita bem como não conseguem compreender e interpretar textos mais complexos. Segundo Poker (2001) a partir da teoria piagetiana, é possível explicar esse fracasso dos surdos na escola. Aponta que o desenvolvimento cognitivo do surdo é compatível com o do ouvinte mas, se o aluno surdo não tem acesso aos recursos adequados que permitem a interação, fica em situação de desvantagem. A surdez prejudica a comunicação, a interação do sujeito com o meio, especificamente no âmbito da atividade representativa. Sem uma língua em comum com o grupo-classe o surdo não consegue comunicar-se com os colegas e nem com o professor e, o professor também não consegue se fazer entender pelo aluno surdo. Como resultado, o surdo não sendo solicitado pelo meio apresentará comprometimento em seu processo de escolarização e, consequentemente, em seu desenvolvimento cognitivo. Remetendo-se a análise dentro da perspectiva da educação inclusiva, onde todos têm direito de frequentar e aprender nas salas de aula de ensino comum, questiona-se como um aluno com surdez, poderia ter acesso ao conhecimento. Isto num ambiente escolar ouvinte, falante, em que a língua majoritariamente utilizada é a língua oral. Diante desse quadro, surgem as seguintes dúvidas: A prática pedagógica utilizada pelos professores é, de fato, inclusiva? Propicia condições de aprendizagem para os alunos com surdez? O professor considera as especificidades desse alunado para ter acesso ao conhecimento? I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 347 De acordo com os princípios da educação inclusiva apontados pelos Ministério da Educação, a escola deve garantir o direito à igualdade de oportunidades de aprendizagem para todos os alunos, independentemente de suas diferenças. Carvalho (2004), quando discute esse tema, afirma: O direito à igualdade de oportunidades e que defendemos enfaticamente, não significa um modo igual de educar a todos e, sim, dar a cada um o que necessita em função de seus interesses e características individuais. A palavra de ordem é equidade, o que significa educar de acordo com as diferenças individuais, sem que qualquer manifestação de dificuldades se traduza em impedimento à aprendizagem (CARVALHO, 2004, p.35). O atual movimento da educação inclusiva resulta de um processo histórico que se iniciou com a Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada em 1948. A Declaração já apontava que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. A partir daí, muitos outros documentos internacionais foram promulgados no sentido de se garantir a educação como meio de desenvolvimento da igualdade de direitos para todos, indistintamente: a Declaração de Joitiem (1990); a Declaração de Salamanca (1994), a Declaração da Guatemala (1999), entre outros. Acatando este movimento internacional, no Brasil, foram formuladas leis que garantem à todos os cidadãos o direito de acesso ao conhecimento, o direito à educação. Por conta disso, foram propostos diferentes meios para efetivação deste direito também para os alunos com necessidades educacionais especiais, especificamente para os alunos com deficiência, que até então não tinham o direito de frequentar as salas de aula comum. O Ministério da Educação elaborou então materiais que apontam para a adequação dos sistemas educacionais, das escolas e das salas de aula para atender as especificidades do alunado com deficiência. Neste sentido, vem orientando os gestores para tornar o espaço físico da escola acessível a todos e, os professores, para o uso de metodologias, instrumentos e recursos adaptados ás especificidades do alunado. Para o aluno com surdez, sugere-se dentre outras coisas, que o professor fale olhando para o aluno, que se apoie em materiais e recursos visuais, que a sala de aula tenha a presença do Intérprete de Libras e que o ensino da Libras seja proposto na escola, para os ouvintes, por meio de um instrutor surdo. Diante desse movimento de escola inclusiva e considerando a especificidade do aluno com surdez sob a perspectiva piagetiana, o estudo pretendeu avaliar como o professor da classe comum interage com o seu aluno surdo, identificando se a ação pedagógica utilizada oferece condições que garantam a sua participação nas atividades propostas. É muito importante compreender como o professor interage com o aluno com surdez pois, conforme já foi discutido, são as trocas simbólicas que propiciam o desenvolvimento cognitivo do sujeito. Para a realização da pesquisa foi feito um estudo de caso etnográfico com base em observações I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 348 das ações de uma professora na sala de aula comum e sua relação com um aluno com surdez. Acredita-se na importância do estudo de caso, pois segundo André (1986) um caso não está isolado, ele está em meio a um contexto, onde os problemas, as ações, comportamentos relacionam-se e se tornam parte do sujeito. O estudo de caso apesar de avaliar uma situação específica, tem um papel generalizador. Para André (1986), o pesquisador tendo um conhecimento básico da área pesquisada, tem a possibilidade de generalizá-lo e compreendê-lo relacionando os dados coletados com outros casos similares. Em relação à metodologia de pesquisa utilizada, conforme mencionado, baseou-se no estudo da situação de uma aluna com surdez inserida em classe comum de ensino e da sua professora. A aluna estava matriculada na primeira série do ensino fundamental da rede regular do ensino estadual de São Paulo, tinha 8 anos de idade, nível sócio-econômico baixo, com surdez profunda bilateral, congênita, ou seja, perda auditiva de 80 dB na zona da fala em ambos os ouvidos. Optou-se pela pesquisadora atuar na sala de aula como “participante” por que segundo Junker (1971), é importante que a presença de um estranho não influencie a investigação, mostrando a situação real tal como é. A observação constituiu-se em um instrumento eficaz de coleta de dados pois tornou possível o contato direto do pesquisador com o contexto da sala de aula, identificando os procedimentos pedagógicos utilizados pela professora, uso de recursos didáticos, estratégias de ensino e as situações de troca simbólica entre a aluna com surdez e a professora. Além desses aspectos também foram observadas as tentativas de comunicação entre professora e aluna. Houve muito cuidado com relação à coleta, pois como diz André (1986) dos dados em nossa volta, selecionamos aqueles que condizem com nossa bagagem cultural, o que poderia ser prejudicial, pois a atenção poderia ser voltada para a história pessoal da pesquisadora, suas expectativas, se atendo a determinados aspectos e desviando-se de outros. Os dados coletados foram controlados e sistematizados a partir do cumprimento de um planejamento de trabalho. As observações realizadas na sala de aula regular ocorreram uma vez por semana, durante o segundo semestre de 2008. Tais observações foram feitas durante as aulas de Língua Portuguesa em dias aleatórios, para não ocorrer uma programação prévia por parte da professora. Baseado no roteiro proposto por André (1986) os conteúdos das observações trataram sobre os seguintes aspectos: I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 349 Descrição dos sujeitos. Reconstrução de diálogos (gestos, depoimentos entre os sujeitos e a pesquisadora). Descrições de locais. Descrição de eventos especiais. Descrição das atividades (atividades e o comportamento do sujeito em relação a elas) Os comportamentos da observadora (ações e conversas com o sujeito) Ainda segundo André (1986), na pesquisa foi enfatizada às reflexões das observações, ponderadas por: Reflexão analítica (temas que emergem associações, relações entre as partes, novas idéias). Reflexão metodológica (procedimentos metodológicos utilizados, problemas). Dilemas éticos e conflitos. Mudanças na perspectivas do observador. Esclarecimentos necessários (o que ficou obscuro e precisa de esclarecimentos) Assim retomando, primeiramente as observações foram coletadas, organizadamente em cada dia, depois os dados organizados por categorias por seus conteúdos e reflexões. A cada dia de observação foi registrado também a hora, local e o período de duração. No estudo de caso, pretendeu-se observar as situações de interação propostas pela professora com a aluna surda, obtendo-se dados a respeito da participação do aluno com surdez e, se as estratégias e recursos pedagógicos utilizados pelo professor possibilitam o desenvolvimento cognitivo do aluno. A análise preliminar dos resultados aponta que a interação entre a professora e o aluna surda era muito precária devido à inexistência de uma língua comum entre elas. Nem o professor sabia utilizar a língua de sinais com a aluna surda e nem a aluna conseguia oralizar para se comunicar com o professor. Em síntese, constatou-se que só foi possível uma comunicação muito rudimentar. Nos muitos momentos observados, não havia preocupação, por parte da professora, de qualquer tipo de adequação na forma de explicar as atividades ou desenvolver os conteúdos. Nas observações realizadas, a professora não usou metodologia diferenciada, nem material ou recurso visual para apoiar a explanação dos conteúdos. Não tinha intérprete de Libras na sala de aula e nem instrutor surdo na escola. Além disso, a professora por muitas vezes se virava de costas ao explicar como deveria ser feita a atividade. Em função dessa atitude I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 350 da professora, a aluna com surdez na maior parte do tempo não fazia o que havia sido solicitado aos alunos da sala. Como não compreendia a atividade proposta pela professora, passava seu tempo na sala olhando para os lados, para a janela ou virava-se para trás, para ver o que sua amiga estava fazendo. Em síntese, constatou-se que a aluna não teve acesso às solicitações propostas para a classe. Nas observações também foi constatado que nas poucas ocasiões em que a professora tentava se comunicar com a aluna com surdez fez uso de alguns gestos espontâneos, sem muito sucesso, porque a aluna só compreendia parcialmente o que estava sendo comunicado. Em alguns momentos a professora recorria a amiga da aluna surda, que atuava na sala como “intérprete”, para se comunicar com ela. Tal amiga conhecia apenas alguns sinais da Libras que permitiam uma forma de comunicação muito limitada. Na sala, essa criança era a única pessoa que tinha paciência e tentava interagir com a aluna surda. A extrema dificuldade de interação e de troca simbólica entre a aluna surda e a professora proporcionou um distanciamento entre ambas. A aluna acostumou-se a não desempenhar as atividades que os demais colegas de sala faziam. Foram raros os momentos, duas observações apenas, em que a professora tentou explicar individualmente a atividade para a aluna. A professora encaminhou-se para a carteira da aluna levando a folha com a atividade proposta e explicou oralmente para a aluna como tal atividade deveria ser realizada. Em seguida, a professora se afastou e não acompanhou mais as atitudes da aluna. Logo que a professora saiu de perto da aluna, ela pegou a folha, colocou o nome e realizou as atividades sem sucesso pois não entendeu como realiza-las. Por meio dos dados preliminares até então analisados constatou-se que o professor da sala de aula comum não está preparado para atuar com o aluno com surdez. Não sabe como se comunicar com o aluno, não utiliza recursos visuais para favorecer a compreensão do aluno, não conhece a Língua Brasileira de Sinais, enfim não propõe condições que garantam a efetiva participação do aluno surdo nas atividades. Além disso, não há intérprete de Libras na sala de aula e nem instrutor surdo. Consequentemente, o desenvolvimento cognitivo do sujeito com surdez fica prejudicado. Conclui-se assim que os princípios da Educação Inclusiva não estão sendo contemplados na prática. A igualdade de oportunidades para o aluno aprender, para ter acesso aos conteúdos curriculares, para comunicar-se e interagir no meio em que está inserido não está sendo respeitada em determinados casos. Em relação ao aluno com surdez é fundamental que a escola e os professores considerem a importância do conhecimento e uso de um instrumento simbólico comum, capaz de garantir o exercício da atividade representativa, de se garantir a interação entre professor e aluno, seja ele oral ou gestual. Os alunos com surdez precisam ser reconhecidos pela escola e pelos professores como seres pensantes, capazes de aprender. Para tanto, os conteúdos curriculares devem ser tratados dentro de um I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 351 universo de troca; de aprendizagem significativa tendo como base instrumentos simbólicos acessíveis ao aluno surdo, como a Língua Brasileira de Sinais. Referências ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia na prática escolar. 2.ed. Braga: Tilgráfica, 1986. BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, Secretaria de Educação Especial. Parâmetros curriculares nacionais: adaptações curriculares/ Secretaria de Educação Fundamental. 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 353 Aprendizagem de Língua Inglesa: A Construção do Léxico pelo Aluno de Ensino Médio OLIVEIRA, Helena Kruse de Castro Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected] Resumo Este artigo sintetiza projeto de dissertação de mestrado que tem como tema o problema de como se organizam os patamares de construção do conhecimento na aprendizagem de segunda língua (L2) em ambiente escolar. A teoria escolhida para apoiar esses estudos é a epistemologia genética. Para quem aprende uma segunda língua, a construção de novos esquemas cognitivos, assim como as transformações que se produzem em estruturas linguísticas herdadas da língua materna, colocam dificuldades centradas, em primeiro lugar, na constituição do léxico. O desafio pedagógico está no problema da passagem de um léxico ainda "atomizado", para um segundo momento em que se produzem inter-relações entre elementos lexicais formadores da frase e para um terceiro momento, nos patamares mais avançados da aprendizagem, para a composição dessas unidades mais amplas no discurso comunicativo (cf. PIAGET; GARCIA, 1982). Em relação ao problema da construção da segunda língua como objeto de conhecimento, é possível situar o desenvolvimento cognitivo implicado na formação do léxico de modo similar aos desdobramentos propostos por Piaget e seus colaboradores: é possível falar, então, da passagem do intra-lexical ao interlexical e daí ao trans-lexical. A partir desses pressupostos, pode-se esboçar a seguinte relação operativa: intra-lexical → vocábulo; inter-lexical → frase; trans-lexical → discurso. Por sua vez, o discurso rebatese novamente sobre o vocabulário, enriquecendo-o, transformando-o e reorganizando-o, por reflexionamento, em um novo patamar de abstração (refletida). Palavras-chave: Epistemologia genética. Aprendizagem. Segunda língua. Abstract This paper summarizes a Master’s thesis proposal that focuses on the construction of knowledge in levels and how they are organized in the learning of a second language in a classroom context. The theory chosen for supporting this study is the genetic epistemology. For those who learn a second language, the construction of new cognitive schemas, and transformations that occur in linguistic structures inherited from the mother tongue, bring difficulties that, at first, focus on the constitution of the lexicon. The pedagogical challenge lies on the problem of the passage of a lexicon still "fragmented", to a second moment when inter-relationships between sentence-forming lexical elements occur, and to a third moment, in more advanced levels of learning, for the composition of these broader units in communicative discourse (see PIAGET; GARCIA, 1982). Regarding the problem of the construction of the second language as object of knowledge, it is possible to place the cognitive development implied in the formation of the lexicon in a similar way as proposed by Piaget and his collaborators: Therefore, it is possible to talk about the passage from intra-lexical to interlexical and hence to trans-lexical. From these assumptions, we can draw the following operative relationship: intra-lexical → vocabulary, inter-lexical → sentence; trans-lexical → discourse. In turn, discourse goes back to vocabulary, enriching it, converting it and reorganizing it, by thinking in a new level of (reflected) abstraction. Keywords: Genetic epistemology. Learning. Second language. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 354 Introdução Este artigo descreve pesquisa realizada como fundamento de dissertação de mestrado (PPGEduUFRGS) em andamento, realizada sob orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Becker. Tem como tema o problema de como se organizam os patamares de construção do conhecimento na aprendizagem de segunda língua (L2) em ambiente escolar. Partindo da experiência pedagógica cotidiana, busca a compreensão da aprendizagem na perspectiva do aluno. Configura-se igualmente como estudo de caso, capaz de oferecer bases empíricas para a investigação das implicações epistemológicas do problema estudado, explorando o processo de construção da segunda língua como objeto de conhecimento. A partir do enfoque construtivista proposto, o estudo se volta para a epistemologia genética de Jean Piaget e seus colaboradores. Apesar dessa teoria ser muito pouco explorada na área de aprendizagem de L2, a concepção piagetiana de construção do conhecimento abre possibilidades de compreensão do processo de aprendizagem do léxico, pela transposição de conceitos a partir de estudos realizados para outras áreas. O propósito não é simplesmente aplicar a teoria piagetiana ao estudo de aquisição de L2, e sim, como nota Emilia Ferreiro (1996), utilizar esta teoria “como marco de liberdade para gerar hipóteses e permitir a construção de novos observáveis” (FERREIRO, 1996, p. 183). Referencial teórico Na perspectiva do construtivismo, o aprendizado da segunda língua estrutura-se sobre esquemas linguísticos previamente construídos pelo sujeito. Além disso, aprender, na escola, uma segunda língua, é sempre uma possibilidade, nunca uma necessidade, e pressupõe a construção de interações sociais em sala de aula entre falantes de um idioma materno diverso daquele que, circunstancialmente, está sendo estudado. Para o professor, surge a questão de como se organiza este conhecimento a partir de patamares linguísticos já previamente constituídos, implicando não a gênese (no sentido psicogenético) da linguagem, mas a construção de um novo objeto de conhecimento sobre esses patamares. Trata-se de um problema de reorganização e transformação de estruturas em patamares de maior complexidade: a linguagem desdobra-se agora em uma "primeira língua", a língua materna, e em uma "segunda língua", que com ela interage, mas que precisa ser compreendida como uma construção que se apoia e "encaixa" na primeira. Para quem aprende uma segunda língua, a construção de novos esquemas cognitivos, assim como as transformações que se produzem em estruturas linguísticas herdadas da língua materna, colocam dificuldades centradas, em primeiro lugar, na constituição do léxico. O sujeito defronta-se com vocábulos I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 355 desconhecidos, que designam coisas conhecidas com as quais ele os vai relacionando, no plano da ação. No plano da construção lexical, inicia-se um procedimento de comparação deste novo léxico com o que ele já conhece. Em um primeiro momento, palavras e coisas são, portanto, diretamente ligadas, definindo significados atribuídos apenas ao objeto identificado, sem transpor esses significados a outros objetos. A "tradução" para a língua materna permanece literal, reduzindo as possibilidades de uso dos elementos lexicais em um discurso que os relacione: eles são tomados como elementos isolados, ainda não integrados a unidades mais amplas (sentenças, conjuntos de sentenças, enunciados, etc.) (cf. PIAGET, 1987). O desafio pedagógico está centrado no problema da passagem de um léxico ainda "atomizado", para um segundo momento em que se produzem inter-relações entre elementos lexicais formadores da frase e para um terceiro momento, nos patamares mais avançados da aprendizagem, para a composição dessas unidades mais amplas no discurso comunicativo (cf. PIAGET; GARCIA, 1982). Apesar de Piaget ter presente o tema da linguagem em toda a sua trajetória de pesquisa, muitas vezes há uma concepção de que, ao longo de sua obra, o autor não tenha abordado centralmente questões linguísticas. Outra concepção corrente é de que sua teoria possua lacunas em relação à abordagem de questões linguísticas, necessitando apoio de outras áreas, como a linguística, por exemplo (BANKSLEITE, 1997). Talvez essas interpretações reducionistas da epistemologia genética e de sua abordagem sobre pensamento e linguagem sejam a causa da carência de estudos que tratem especificamente do problema do desenvolvimento cognitivo no âmbito do ensino da segunda língua. Montoya (2006) questiona essas concepções e argumenta que, para o atual debate sobre pensamento e linguagem na obra de Piaget, é necessário situar o trabalho do autor e analisar sua evolução e reconstrução em sua prolífica trajetória. Montoya faz um histórico do percurso piagetiano de investigação e aponta os aspectos mais importantes sobre pensamento e linguagem em cada período da teoria de Jean Piaget. As primeiras pesquisas sobre pensamento e linguagem, no início da década de 1920, estavam centradas no processo de socialização da linguagem e, consequentemente, do pensamento. Nesse período, sua pesquisa levava a crer que a passagem do pensamento e linguagem egocêntricos para o pensamento e linguagem lógicos se dá através das trocas ou interações sociais. Mas, em sua teoria, escapa-lhe a explicação psicológica endógena da evolução do pensamento, pois recorre à interação social como elemento explicativo. [...] Nesse período, então, é clara a tese de Piaget sobre a importância decisiva e explicativa da linguagem na formação do pensamento lógico, ao passo que processos e mecanismos internos e mais profundos [...], que explicariam a construção de esquemas conceptuais, ainda não estavam formulados. Nesse sentido, pode-se dizer que a tese de Piaget, nesse período, representa um reducionismo social (MONTOYA, op. cit, p. 121). Durante as décadas de 1930 e 1940, Piaget se volta para o estudo da gênese da inteligência I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 356 humana, através das coordenações das ações, linguagem e representação. O conhecimento tem suas próprias raízes na ação, e este não pode ser construído sem representação. Em sua obra A Construção do Real na Criança, Piaget afirma que [...] para reconhecer uma coisa é preciso ter conservado a imagem dessa coisa (uma imagem suscetível de evocação e não somente o esquema motor que se readapte a cada novo contato) e se a recognição resulta de uma associação entre essa imagem e as sensações atuais, então, naturalmente, a imagem conservada poderá agir no espírito, na ausência da coisa, e sugerir dessa maneira a ideia de sua conservação. O reconhecimento prolongar-se-ia, assim, em crença na permanência do próprio objeto (PIAGET, 1975, p.13). A aquisição da segunda língua, especialmente do léxico, se constrói dessa mesma forma. Ela implica a interiorização e a permanência de novos significados. Isto está estreitamente ligado ao pensamento representativo. Quando um aluno entra em contato com uma nova língua, encontra-se numa situação completamente nova para ele. Apesar de já ter passado pelo processo de aquisição da sua língua materna, é necessário que ele construa novos esquemas para a aprendizagem dos símbolos nessa nova língua. Vê-se pelo conjunto da obra de Jean Piaget que os mesmos mecanismos e processos cognitivos que se aplicam à construção de um objeto de conhecimento, concreto ou formal, descrevem a epistemogênese64 desse objeto, assim como os esquemas psicogenéticos de cada sujeito em particular podem ser descritos no plano de um sujeito epistêmico genérico. São essas categorias (PIAGET, 1987; PIAGET; GARCIA, 1982; PIAGET, 1995) que permitem abordar o problema da segunda língua como objeto de conhecimento, enunciando de maneira particular princípios epistemológicos gerais. A epistemologia genética enuncia essa concepção dinâmica da construção do conhecimento, tendo como ponto de referência a teoria da abstração reflexionante (PIAGET et al., 1985). Na abstração reflexionante o problema dos estádios do desenvolvimento psicogenético é generalizado para a construção do conhecimento em todas as suas manifestações, da constituição dos esquemas cognitivos no plano da coordenação das ações à formalização das teorias científicas (PIAGET, 1987, p. 398). Assim, a transposição do conhecimento entre os estádios de desenvolvimento pode ser entendida como a reconstrução em novos patamares de complexidade daquilo que foi tirado de um patamar de menor complexidade (ou de menor grau de organização do conhecimento). Essa definição epistemológica geral, aplicada como um todo à "espiral de abstrações", permite compreender tanto o problema da passagem entre os grandes momentos do desenvolvimento cognitivo do sujeito psicológico, como, nas chamadas microgêneses, com a organização progressiva do conhecimento em objetos cada vez mais formalizados. 64 DUCRET, J.-J. En collaboration avec G. Cellérier. L'équilibration: concept central de la conception piagétienne de l'épistémogenèse. Fondation Jean Piaget, Genève, 2007. http://www.fondationjeanpiaget.ch/fjp/site/textes/index_litt_sec2_alpha.php, 08/03/2009. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 357 Piaget enfatiza, em seus estudos psicogenéticos, o desenrolar do desenvolvimento cognitivo em estádios, caracterizado como a passagem do pré-operatório ao operatório-concreto, e daí ao operatórioformal. Essa formulação teórica deu origem ao extenso conjunto de experimentações documentado na longa série dos Études d'Épistémologie et de Psychologie Génétiques65. Nos seus estudos sobre a abstração reflexionante, Piaget encadeia os estádios do desenvolvimento cognitivo em um movimento recursivo, porém com superações constantes. A este movimento corresponde uma equilibração majorante (PIAGET, 1976, p. 59-60): a abstração reflexionante é o mecanismo que explica a reorganização em um patamar de maior equilíbrio o conhecimento antes organizado em patamar de menor organização que, pela instauração de conflitos cognitivos surgidos na interação sujeito-objeto, é levado a desorganizar-se e reorganizar-se, sendo, por reflexionamento, simultaneamente subsumido e transformado no patamar de maior organização. Assim como Piaget distingue, no desenvolvimento cognitivo, os estádios pré-operatório, operatório-concreto e operatórioformal, desde o ponto de vista da equilibração também são reconhecidos três patamares, ou "formas": A mais simples e, por consequência, a mais precoce, é a da assimilação e da acomodação. [...] Uma segunda forma de equilíbrio impõe-se entre os sub-sistemas [...] A sua equilibração supõe, neste caso, uma distinção entre as suas partes comuns e as suas propriedades diferentes e, por consequência, uma regulamentação compensatória entre as afirmações e as negações parciais[...]. A terceira forma de equilibração apoia-se na precedente, mas distingue-se dela pela construção de um novo sistema total: é aquela que necessita do próprio processo de diferenciação de novos sub-sistemas, a qual exige então uma diligência compensatória de integração numa nova totalidade. [...] (PIAGET, 1987)66. Esta configuração triádica do desenvolvimento cognitivo, vai dar lugar a variações em seu enunciado que, sem alterar o conteúdo da proposição, se aplicam a novos pontos de vista e a novas possibilidades de adoção da epistemologia genética em diferentes ramos do saber. No que diz respeito, especificamente, à construção de objetos de conhecimento, surge no final da obra piagetiana a ideia generalizadora de "momentos" designados pelos prefixos intra-, inter- e trans-, em correspondência com as "três formas da equilibração" descritas acima. Referindo-se à construção do objeto, Piaget e García, chamam a atenção de que essa tríade ocorre "em todos os domínios e em todos os níveis": o intra-objetal ("análise dos objetos"), o inter-objetal ("estudo das relações e transformações") e o trans-objetal ("construção das estruturas") (cf. PIAGET; GARCIA, 1982, p. 33). Na abordagem de novas situações de construção do conhecimento, as "passagens de nível" 65 66 Fonte: Fondation Jean Piaget http://www.fondationjeanpiaget.ch/fjp/site/biographie/index.php - acesso em 15 de março de 2009. In: PIATELLI-PALMARINI, M. (Org.). Teorias da Linguagem Teorias da Aprendizagem. Lisboa: Edições 70, 1987. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 358 indicadas pela sequência acima podem provocar decréscimos momentâneos no desempenho imediato do sujeito (decalagens cognitivas). Essas aparentes "regressões" se dão porque, como salientam Piaget e García (op. cit., p. 128), "cada vez que o sujeito aborda um domínio novo, se encontra primeiramente diante da obrigação de assimilar os dados a seus próprios esquemas" (de ação ou conceituais). Considerando a equivalência, sublinhada por Piaget, dos estádios pré-operatório, operatório-concreto e operatório-formal da psicogênese, aos momentos intra-, inter-, e trans- da epistemogênese dos objetos do conhecimento, isso significa que, diante de cada nova construção, o sujeito se depara com a contingência de relacionar-se com o novo objeto, funcionalmente, em um plano epistemológico pré-operatório, mesmo que as estruturas cognitivas do sujeito psicológico atinjam uma organização formal. Esta organização formal, porém, existe no sujeito epistêmico como possibilidade de atualização, nunca como dado absoluto67. A tríade intra-inter-trans aplica-se "a qualquer dado" (PIAGET; GARCIA, 1982, p. 128). Piaget, assim, vai fazer referência, em vários lugares, aos domínios do intra-operatório, inter-operatório e transoperatório, ou do intra-objetal, inter-objetal e trans-objetal, ou intra-figural, intra-figural, inter-figural e trans-figural, ou ainda do intra-mórfico, inter-mórfico e trans-mórfico, e assim por diante. Voltando ao problema da construção da segunda língua como objeto de conhecimento, é possível situar o desenvolvimento cognitivo implicado na formação do léxico de modo similar aos desdobramentos propostos por Piaget e seus colaboradores: é possível falar, então, da passagem do intra-lexical ao interlexical e daí ao trans-lexical. Nesta perspectiva, ao intra-lexical corresponde a constituição inicial do léxico, entendido como simples elenco de palavras isoladas, guardando, desde o ponto de vista dos significados, uma relação biunívoca com objetos concretos situados na realidade imediata do sujeito. No momento inter-lexical, esse elenco atomizado vai admitir a superposição dos muitos significados que se inter-relacionam no mesmo vocábulo. Surgindo inicialmente como fonte de desequilíbrio cognitivo diante dos significados 67 "Que estos datos consistan en objetos, en figuras, en relaciones, etc., implica en su análisis una equilibración de forma elemental, entre su asimilación y los esquemas del sujeto, y la acomodación de estos a las propiedades objetivamente dadas. De aquí surge el carácter intra- de estos comienzos de conocimiento. Pero los nuevos esquemas así construidos no podrían permanecer aislados: tarde o temprano el proceso asimilador conducirá a ciertas asimilaciones recíprocas, y las exigéncias de equilibración impondrán a los esquemas o subsistemas así vinculados formas más o menos estables de coordinaciones y de transformaciones. De aquí surge el carácter inter- de esta segunda etapa. Pero una tercera forma de equilibrio tendrá lugar necesariamente, a su vez, puesto que la multiplicación de subsistemas amenazará la unidad del todo, mientras que las diferenciaciones obligadas serán contrarrestadas por las tendencias integradoras. El equilibrio que se impone entonces entre las diferenciaciones y la integración no podría lograrse sin alcanzar sistemas de interacciones tales que las diferenciaciones puedan ser engendradas, en lugar de estar sometidas a ellas, única manera de armonizarlas sin perturbaciones internas y sin que entren en conflictos entre sí. De aqui surgen las estructuras de conjunto, de carácter formador, que caracterizan el nivel trans-. Va de suyo, sin embargo, que tales triadas (mucho más flexibles en su principio que las tesis, antítesis y síntesis de la dialéctica clásica, aunque se basen también en el papel de los desequilibrios y de reequilibraciones con rebasamientos) no son sino fases recortadas de un proceso continuo: las estructuras a las que se ha llegado en el nivel trans- dan lugar a su vez a análisis intra- que conducen a nuevos inter-, luego a la producción de superestructuras trans-, y así sucesivamente." (Ibidem, p. 128.) I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 359 nominais antes adquiridos, e, em um segundo momento, como fonte de maior organização do conhecimento da segunda língua, a polissemia da palavra exige, para ser compreendida, sua inserção em uma unidade mais extensa e complexa: a frase. Da mesma forma, o conjunto de sentenças possíveis (construíveis a partir e sobre o vocabulário) encontra uma sistematização e uma transformação de seus enunciados no discurso comunicativo (formalizável na expressão literária), configurando o momento trans-lexical. De modo sintético, é possível esboçar a seguinte relação operativa: intra-lexical → vocábulo; inter-lexical → frase; trans-lexical → discurso. Por sua vez, o discurso rebate-se novamente sobre o vocabulário, enriquecendo-o, transformando-o e reorganizando-o, por reflexionamento, em um novo patamar de abstração (refletida). Objetivos O objetivo da pesquisa é compreender como se dá a passagem do momento intra-lexical ao interlexical, considerando ser esta a questão central do ensino escolar da segunda língua, nos níveis fundamental e médio68. Tendo isso em mente, foi concebida uma situação clínica em que o entrevistador propõe ao aluno problemas de compreensão lexical por meio de sequências controladas de ação, visando: • delinear possíveis relações entre as contribuições da epistemologia genética, de Jean Piaget, e a aprendizagem de língua estrangeira, em especial a língua inglesa; • investigar como os sujeitos constroem o léxico em língua inglesa como objeto de conhecimento e como esse conhecimento se organiza em níveis de maior complexidade; • distinguir diferentes patamares de desenvolvimento cognitivo na construção de significados em L2, em diferentes contextos de enunciação. Metodologia Para a pesquisa de campo que pretende investigar como o aluno de Ensino Médio falante nativo de língua portuguesa constrói o léxico em língua inglesa, em concordância com a fundamentação teórica, foi adotado o método clínico piagetiano. Apesar de inicialmente ser um método aplicado em crianças, vê-se, pela sua definição, que este pode ser facilmente adaptado para a pesquisa com jovens e adultos, pois, independente da faixa etária do sujeito, a essência do método clínico piagetiano “consiste em uma 68 Este recorte não implica excluir desse âmbito de aprendizado o desenvolvimento do discurso em seus aspectos translexicais, mas coloca-o em um plano de realização menos exigente do que o primeiro, ditado pelas próprios limites pedagógicos que o circunscrevem. Além disso, e ainda mais importante, o desenvolvimento de estudo de caso, amparado em pesquisa empírica cujo contexto metodológico, coerentemente com a fundamentação teórica adequada, situa-se dentro das possibilidades de aplicação do método clínico piagetiano: a eficácia do instrumento exige, portanto, uma delimitação que viabilize o desenvolvimento da pesquisa. Cf. Vinh-Bang, La méthode clinique et la recherche en psychologie de l'enfant. In: Psychologie et épistémologie génétiques, Paris: Dunod, 1966. p. 67-81. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 360 intervenção sistemática do pesquisador em função do que sujeito vai fazendo ou dizendo” (DELVAL, 2002, p. 12). Delval também sugere que é possível fazer ajustes no método, pois mesmo Piaget o foi adaptando para utilizá-lo em novos temas ou problemas que estudava. É importante destacar que nesta pesquisa não serão reproduzidos experimentos feitos anteriormente por Piaget, e sim será explorado um campo pouco estudado na área da Epistemologia Genética. Delval (2002) aponta que o método clínico piagetiano é propício e vantajoso de ser utilizado em situações pouco conhecidas, como primeira aproximação de um campo novo. Nesses casos, é aconselhável que as hipóteses e objetivos sejam necessariamente muito pouco específicos: “teremos que realizar uma entrevista muito aberta para que as explicações do sujeito possam emergir sem restrições” (p. 84). Desenvolvimento Nesse estudo, escolhi como sujeitos de pesquisa alunos do 1º ano do ensino médio da rede pública de ensino, estadual ou municipal. O estudo terá a participação de 25 a 30 sujeitos, de aproximadamente quatro escolas diferentes. Na fase preliminar, em estudo-piloto já completado, foram entrevistados seis alunos. Para investigar essa compreensão por parte dos sujeitos, são usados pares de homônimos homógrafos que, em seu significado literal, são substantivos e que, quando se transformam em verbos, mudam completamente de sentido. Cada par de homônimos homógrafos aparece num conjunto de três sentenças: uma em seu sentido literal e outras com sentido diferente do inicialmente atribuído. Juntamente com as sentenças, há figuras e palavras para contextualizar as sentenças, incluindo os homônimos homógrafos. Os conjuntos de sentenças e figuras constam nos anexos deste projeto de dissertação. A entrevista se dá em duas etapas, numa mesma data. 1ª Etapa: apresentação do material ao sujeito. Primeiramente, apresento ao sujeito o conjunto de figuras e palavras impressas. Em seguida, solicito a ele que relacione figuras e palavras de acordo com o significado atribuído aos vocábulos. São feitas perguntas como “conheces os significados das palavras?” e “com que figuras elas se relacionam?”. Logo após isso, recompõe-se a grade de significados resultante, explicando ao aluno eventuais lacunas, caso o aluno desconheça o significado imediato de algum vocábulo apresentado. 2ª Etapa: inserção dos vocábulos no contexto da sentença. Em um primeiro momento, é apresentada a sentença em que os vocábulos anteriormente apresentados estão em seu sentido literal figura-palavra. São feitas as seguintes perguntas: O que tu entendes que esta frase significa? / Quais I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 361 figuras podes relacionar com esta frase? / Podes me explicar essas relações que tu encontraste? Em um segundo momento, são apresentadas as sentenças em que os vocábulos possuem significado diferente da sentença anterior. As mesmas perguntas são feitas ao sujeito. Essa etapa tem o propósito de verificar: a) a compreensão do sujeito em situação de relação literal figura-palavra; b) a compreensão do aluno em situação de relação contextualizada entre figura-palavra; c) a atribuição, pelo sujeito, de novos significados para palavras conhecidas transpostas para frases em que o vocábulo trabalhado anteriormente possui um sentido diverso do anterior. Cabe, neste momento, ressaltar que, por ser utilizado neste estudo o método clínico piagetiano, as perguntas acima mencionadas são apenas uma referência para o entrevistador; a entrevista clínica segue o curso do pensamento do sujeito que está sendo entrevistado, sendo adicionadas perguntas para esclarecer o que o sujeito está pensando, quando necessário. Foi realizada aplicação preliminar do instrumento acima descrito, com seis sujeitos, alunos de 1º ano do ensino médio de uma escola pública estadual da Grande Porto Alegre. Para cada sujeito foi utilizado um dos conjuntos de sentenças. Fazendo uma análise inicial nas respostas desses sujeitos, notase em cada entrevista diferentes níveis que podem estar relacionados a patamares de desenvolvimento cognitivo, como vemos nos trechos abaixo: Suj. 1 (18 anos) H: OK. Muito bem. E esse aqui... Park the car. Quais são as palavras... figuras que tu relacionarias? S1: Park the car? (gesto de negação) H: O que tu entendes por essa frase? S1: Parque o carro? H: O que que tu achas... tu achas que faz sentido? S1: Não. Parque o carro... H: Então? S1: Não. Pra mim não faz muito sentido. H: E tu achas que poderia haver outro sentido, ou é... S1: Sim. H: E... e qual seria? S1: Car in the park. H: Car in the park. Uhum... Mas se essa frase continuar assim? S1: Hum... Park the car... (pausa) Park the car... Parque o carro... Não consigo, assim... H: Por que tu não consegues? S1: Porque “Parque o carro”... não tem sentido pra mim... H: Mas, qual a parte que não tem sentido? S1: Parque... o carro... carro... no parque... se fosse o carro no parque... aí tudo bem. H: Mas se for pensar: parque o carro... como é o sentido dessa frase? S1: Quer dizer que... tem um carro no parque? Vê-se aqui que, ao apresentar a sentença em que o vocábulo possui um sentido diferente do literal apresentado anteriormente, há um estranhamento por parte do sujeito, mas este ainda não se dá conta de que o mesmo vocábulo pode ter outro significado no contexto dessa sentença. As respostas demonstram estar ainda num patamar intra-lexical, pois ainda há ausência de reconstrução dos significados em contextos não literais. A passagem do intra-lexical para o patamar inter-lexical exigiria do aluno uma compreensão de uma nova forma de organização do léxico que permite atribuir a um mesmo vocábulo I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 362 diferentes significados dependendo das inter-relações que se estabelecem entre as palavras no contexto da frase. Os significados seriam atribuídos, então, à frase como um todo, e não, de modo fixo a cada palavra isoladamente. Contudo, o "estranhamento" que se nota pode ser visto como fonte de desequilíbrios iniciais que poderão conduzir a uma reorganização posterior. O mesmo conjunto de sentenças foi apresentado ao Suj. 6, também com 18 anos de idade: H: E o que tu entendes por essas frases? S6: (sussurra) park the car... Essa eu não entendi, sora. H: Hum... por quê? S6: Park the car... H: Por que tu não entendeste? S6: Parque, o carro? [...] Não tem sentido... não tem sentido, parece... H: Não tem sentido? S6: Carro no parque... H: [...] Por que tu achas que não tem sentido? S6: Porque parque... o car... o carro... ou a carro... o carro. Não tem sentido. H: E qual seria um sentido interessante para esse park the car? S6: O carro no parque, né? H: A, o carro no parque. Sim, e esse park poderia ter outro sentido? S6: Sim, de estacionamento, alguma coisa assim... Nota-se aqui o mesmo estranhamento do sujeito anterior, porém este último, mesmo que de forma muito inicial, consegue fazer relações que vão além do sentido literal do vocábulo, ligando park ao sentido de estacionamento. Este sujeito, ainda que em suas respostas esteja ligado ao patamar intralexical, já está caminhando para um patamar inter-lexical, pois aceita a possibilidade de atribuir diferentes significados a um mesmo vocábulo. Neste exemplo, o estranhamento dá lugar a um conflito cognitivo, motivado pela perturbação do aluno, que se dá conta de que o significado convencional anteriormente atribuído não é mais capaz de explicar o significado da nova sentença. Diferentemente destes sujeitos, o Suj 3 (15 anos), ao comentar sobre a sentença “Ducks fly”, já reconhece a possibilidade de um vocábulo assumir sentidos diferentes, dependendo de seu emprego na sentença, sendo um exemplo de patamar inter-lexical: H: OK. E no próximo ali, Ducks fly. S3: Patos voam. H: Mas fly não é mosca? S3: É... H: E agora? S3: É mais ou menos assim, um duplo sentido da palavra... H: Uhum. S3: Fly também é voo. H: Ah tá. Assim como os sujeitos acima mencionados, os demais demonstraram diferentes tipos de respostas às sentenças apresentadas, às vezes mostrando mais estranhamento ou mais possibilidades de reconstrução da relação figura-palavra em uma sentença ou em outra. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 363 Conclusões preliminares O interessante nessa amostra do estudo preliminar é que cada sujeito apresentou um nível diferente de compreensão das sentenças, o que exige que, no desenvolvimento da pesquisa, seja entrevistado um número maior de sujeitos. Neste estudo preliminar, também se percebe a necessidade de indagar mais aos sujeitos o que os levou a responder de uma certa forma, e como eles chegaram a uma determinada atribuição de significados aos vocábulos. Interessaria saber se o sujeito já vivenciou situações em que se deparou com um problema semelhante ao apresentado na entrevista clínica. Em relação ao instrumento proposto, em análise posterior, será importante utilizar o mesmo conjunto de frases (ou pelo menos reduzir a dois conjuntos, unindo mais de um jogo de sentenças), para poder reconhecer e delimitar melhor as categorias de análise deste estudo. Referências BANKS-LEITE, Luci. Questões linguísticas na obra de Piaget: apontamentos para uma reflexão crítica. In: Percursos piagetianos. São Paulo: Cortez, 1997. DELVAL, Juan. Introdução à Prática do Método Clínico: descobrindo o pensamento das crianças. Porto Alegre: ArtMed, 2002 FERREIRO, Emilia. Aplicar, replicar, recrear. Acerca de las dificultades inherentes a la incorporación de nuevos objetos al cuerpo de la teoría de Piaget. Substratum, v. III, n. 8-9, p. 175-185, 1996. MONTOYA, Adrián Oscar Dongo. Pensamento e linguagem: percurso piagetiano de investigação. 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La méthode clinique et la recherche en psychologie de l'enfant. In: Psychologie et épistémologie génétiques. Paris: Dunod, 1966. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 365 7. Moralidade A Ética e a Antropologia como Fundamentos para a Construção da Moral OLIVEIRA, Fernando Henrique C. de. Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP [email protected] Resumo Analisaremos o conceito antropológico em Geertz, objetivando os símbolos religiosos para sintetizar o ethos de um povo, o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticas. Faremos uma análise sociológica, utilizando o instrumental weberiano (Max Weber) para ferramentas de análises desse ethos cristão, procurando inferir, nas questões políticas, econômicas e sociais, seus desdobramentos éticos e morais em plena modernidade. Finalmente, faremos uma abordagem mais filosófica e propositalmente pedagógica, tomando como ponto de reflexão o destino do homem e do mundo e a razão de nossa existência, com seus significados, origem e perspectiva escatológica. Palavras-chave: Ética. Moral e educação. Abstract Review the concept of Geertz in anthropology, focusing the religious symbols to the ethos of a people, the tone, the character and quality of your life, your style and aesthetic and moral rules. We will do a sociological analysis using Weberian instrumental (Max Weber) for tools of analysis that ethos Christian, looking inferred in the political, economic and social, their ethical and moral ramifications in full modernity. Finally, we will make a more philosophical and religious purposely taking as point of discussion the fate of man and the world and the reason for our existence, with their meanings, origin and eschatological perspective. Keywords: Ethics, Morality and education. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 366 Introdução A Ética é a arte que torna bom aquilo que é feito (operatum) e quem o faz (operantem). É a arte do Bom. Ciência do Bom. A Ética é uma arte, hábito (ethos), esforço repetido até alcançar a excelência no agir. O artista torna-se virtuoso após muito exercício (MARCHIONNI, 1999, p. 56). Há uma grande disparidade no que concerne ao conceito dos termos ética e moral, no campo acadêmico e social, no mundo contemporâneo. Entendemos que definir conceitos acerca de nosso objeto de pesquisa na presente disciplina é fundamental nessa breve Introdução. Para garantirmos o espírito crítico nesse campo de pesquisa, entendemos a anterioridade da ética em relação à moral, conforme o pensamento de Almeida (2002, p. 11-19): Alguns motivos por que a distinção é realmente fundamental: Antes da moral, a ética Em primeiro lugar, pode-se afirmar a anterioridade da ética em relação à moral, como propõe o Filósofo Paul Ricoeur. Com isso, a ética fica ligada à esfera do desejo (desejo de ser e o esforço para existir), reservando à moral o espaço da lei, das normas. O grego tem duas maneiras de grafar a palavra ethos. O ethos refere-se ao comportamento que resulta de uma repetição constante dos mesmos atos. O ethos designa, por sua vez, a morada, a casa do homem; há um sentido de lugar, de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor. A referência física da palavra indica justamente que, a partir do ethos, o espaço do mundo torna-se habitável para o homem. O que são os hábitos? São aqueles traços repetitivos de nossas ações ou de nosso modo de estar num certo lugar? Deste modo, tiremos a conclusão: moral são os hábitos ou costumes que alcançaram unanimidade, aceitação coletiva, que identificam determinados grupos e suas ações. Dentre os hábitos produzidos, instituídos há aqueles que serão objeto de um consenso, de uma aceitação geral – por meio de convencimento, da força, da violência, da tradição. Os hábitos que venceram passaram a dominar. Os princípios da ética nos remetem à Filosofia, que tem o seu marco histórico por volta do século 6º a.C. na Grécia. A ética apareceu quando os filósofos começaram a pensar sobre as atitudes dos seres humanos frente a determinadas situações. No campo filosófico, a ética busca compreender o que é considerado adequado e moralmente correto. Etimologicamente, a palavra ética vem do grego ethos, e tem seu correlato no latim moralis ou mores, que representa a conduta ou o que é relativo aos costumes. Na obra de Aristóteles, Ética a Nicômaco, é apresentada a questão ética como significado de virtude. Esta palavra vem de vir/vírus = varão, homem, masculinidade, potência, no latim. De forma generalizada, criou-se a idéia de virtude como acúmulo de forças que o sujeito moral deve somar para sempre querer o melhor. Assim, uma moral bem realizada não é coisa para fracos e inconstantes (PEREIRA, 1991). A ética remete-nos a um universo de bilateralidade entre duas forças presentes na história e na antropologia social: o bem e o mal, o absoluto e o relativo, a liberdade e o autoritarismo etc. Ética, portanto, seria a análise teórica em torno da moral e da moralidade. O verbo no condicional indica I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 367 incerteza. Por sinal até aqui o autor não definiu objetivamente Ética. Por ser uma disciplina antiga e que se estende a outros campos do saber e das vivências humanas, podemos distinguir áreas específicas no campo ético construídas histórica e antropologicamente como mostram os exemplos a seguir: • ética cristã; • ética marxista; • ética kantiana; • ética protestante; • ética profissional (para todas as áreas de trabalho); • ética da atividade pedagógica, intelectual, política etc.; • ética pessoal – demonstrando a forma deselegante como alguém procedeu etc. se a indicação do autor sobre a etimologia grega de ethos estiver correta, no caso de ética pessoal é muito pouco indicar que se trata de deselegância. Pode ser desonestidade, falso etc. O uso do termo ethos implica, portanto, na discussão da moralidade inerente à determinada atividade humana em seu lastro mais fundo, mais abrangente. Qual? É preciso ser explicito! Uma palavra bastante utilizada na sociedade contemporânea é o substantivo cidadania. A cidadania tem sua origem no termo grego polis (cidade). Assim, a cidadania denota a condição habitacional dos cidadãos, os seus costumes, a maneira de se posicionar na cidade. A polis é o lugar em que os hábitos entram em conflito. Portanto, discutir sobre cidadania é falar do lugar dos hábitos, lugar esse, onde os hábitos vencedores se impõem como os únicos possíveis e tentam massacrar e eliminar a insurgência de outros hábitos. É também falar do espaço onde novos hábitos querem se impor, porque novas decisões éticas são tomadas a todo momento (ALMEIDA, 2002). Nessa linha de pensamento, falar em cidadania em uma sociedade pluralista e fragmentada em suas instituições e vivenciando uma crise de valores éticos e morais, é pensarmos em cidadania como uma ação de tolerância; e esquecemo-nos de que no bojo da cidadania estão presentes situações de conflitos desses hábitos aqui tratados e assimilados como dominantes. Assim, por si só a cidadania não promove transformação, mas irá depender das decisões éticas e políticas da polis (ALMEIDA, 2002). Originariamente a palavra moral vem do latim mos/mores, que significa costume. E, em geral, essas três palavras – costume, norma e lei, se entrecruzam. A moral deve ser entendida sob a necessária interação dialética: 1) seu caráter social, como algo adquirido, como herança preservada pela comunidade; I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 368 2) sua convicção pessoal de que o que vale para todos pode ou não valer para mim e vice-versa. Exemplo: O fato de comer peixe na semana santa teria efeito moral (e religioso) algum para um ateu? Esta pessoa até pode cumpri-lo por uma força cultural ou por respeito (PEREIRA, 1991). E para um cristão, este ato produz efeito moral? Dessa forma, há uma certa contradição embutida na interação entre o caráter social e o pessoal. As normas estão aí; se estão aí é para serem cumpridas porque se espera que tenham surgido do consenso. Todavia, só adquirem sentido se passam pelo crivo da crítica, pessoal e social e, por conseguinte, da aceitação pessoal e social (PEREIRA, 1991). O prisioneiro da caverna de Platão, uma vez liberto da escuridão, atingindo com muito esforço, chega a fixar o sol, a contemplar o bom, que o impulsiona a ações boas, a voltar à caverna para libertar os outros. Pensamos em ética como um conjunto de regras para o campo coletivo, e esquecemos do valor pessoal e da ação ética na singularidade de cada indivíduo para desdobramentos maiores na comunidade. Para Marchionni (1999, p. 33), nos últimos anos, a Ética virou uma Fênix árabe, ave lendária renascida de suas cinzas: dela todos falam, todos a desejam, mas ninguém sabe onde está e como é. O pluralismo cultural, o crescimento científico com suas inferências sistemáticas e o estridente materialismo, regados pelo individualismo e consumismo desenfreados na sociedade contemporânea, possibilitaram a ausência de referenciais éticos, que historicamente foram referendados pelas religiões e a metafísica filosófica. Nessa ausência, trava-se uma busca desenfreada por referenciais, referenciais esses, em sua maioria, destituídos de base histórica e contextual, mas apenas como tentativas de acerto num naufrágio fadado à morte da própria ética. Para o mesmo autor citado anteriormente, os medievais tinham como metodologia indagar acerca de três bases: 1) an sit = se existe. 2) depois, quis it = o que é; 3) por fim, quomodo sit = como é. Mediante essas perguntas, as ciências nascem e surgem como forma de elaborar seu objeto de pesquisa. Isso ocorre também no campo de pesquisa acerca da ética – existe?; o que é? ; como é? . Até meados do século 20, a humanidade era dirigida por grandes sistemas religiosos e filosóficos, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 369 no Oriente e no Ocidente. Os próprios pensadores céticos, segundo Marchionni (1999), eram influenciados no fundo pela ética milenária das religiões. Dessa tradição religiosa, valores eram transmitidos aos filhos pelos pais, sacerdotes, professores, autoridades civis etc. Na sociedade moderna, com o advento do rádio, televisão, internet e toda sorte de aparato midiático, sujeitos se levantam como portadores de discursos éticos e morais, conquistando atenção e carisma de seus ouvintes e expectadores que assimilam seus conceitos e posturas assumidas diante das narrativas expostas e/ou transmitidas. Posturas éticas as mais diversas nos são apresentadas, somadas às narrativas éticas de correntes acadêmicas e religiosas, gerando uma cadeia de discursos que nos inserem em dúvidas, crises e questionamentos. Vejamos alguns exemplos, conforme nos apresenta Marchionni, em Ética na virada do milênio. 1) Na visão de mundo de um indivíduo religioso, o elemento basilar é Deus; portanto toda a conduta gira em torno de um Deus santo, sagrado, que requererá dele um viver à altura desse padrão apresentado por seu grupo religioso. 2) Na visão de um estoico grego ou um idealista alemão do século 19, o elemento basilar é o logos, ou seja, uma inteligência ou ideia, que se desdobra na razão humana, influenciada por essa relação com o logos. 3) Na perspectiva marxista, o trabalho constitui esse elemento principal na dimensão humana, de onde são analisados e apontadas soluções para os problemas da sociedade contemporânea. 4) Na perspectiva da psicanálise, a sexualidade é vista como agente impulsivo e de auto-esforço para adequação ao ambiente. 5) Os positivistas entendem da importância de uma análise empírica dos fatos para conclusões futuras com sua ordem natural e permanente. Nessa linha de pensamento, o autor da presente obra entende o quanto essa classificação poderia prolongar-se, mas, com essas premissas, pode-se estabelecer que mediante uma análise ética sob os ângulos da psicanálise, do marxismo, da religião, do positivismo etc., é possível enquadrar modelos e princípios como normais e naturais (legítimos), a partir do qual todo o resto é julgado. Nesse universo pluralista de ideias e caminhos propostos, ficamos perplexos e nos colocamos na busca de um norte a ser trilhado mediante análises sensatas pela nossa razão e/ou pelos nossos sentidos. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 370 Então vejamos: A ação humana é também sujeita à historicidade, numa história que é individual e coletiva, progressiva, movimento mutável, imprevistamente revolucionária, espantosamente obediente ao ditador ou ao líder carismático, instigantemente utópica ou monotonamente conservadora, onde o bom de hoje pode parecer não ser o bom de amanhã. E ainda: até cem anos atrás o homem adaptava-se à natureza todo-poderosa. Hoje o homem domina a natureza, transforma-a, criando fatos físicos totalmente novos, como os embriões, com os quais deve construir uma convivência mediante ações éticas, uma bioética. Onde buscar inspiração? É aí que reside todo o problema: o homem é livre (MARCHIONNI, 1999, p. 39). É nessa liberdade que permite sermos cônscios de nosso poder volitivo, que precisamos nos ocupar dos fundamentos da ética tratados a priori em três questões: 1) O que é bom? 2) É o homem quem decide o bem e o mal? 3) Ou existem fora do homem instâncias que decidem o bem e o mal? Historicamente, segundo Marchionni (1999), são apontados três fundamentos para o campo da ética na busca de respostas para as perguntas acima: 1) Fundamento cósmico da ética. 2) Fundamento religioso da ética. 3) Fundamento antropológico da ética. Fundamento cósmico da ética O bom é a natureza: viva segundo a natureza Os praticantes de cultos com elementos da natureza, de ontem e de hoje, afirmam que o homem se torna bom se suas ações são boas, quando se estuda a ordem cósmica e nela se insere sem destoar. A agricultura ensina que o homem deve harmonizar-se com o curso das estações, das chuvas, da semeadura e da colheita. Homem e natureza devem viver em sintonia recíproca. Nesta perspectiva cosmológica, a natureza é a mestra da ética. Ela indica ao homem o que é bom e mau. Segundo a tradição oriental, a harmonia dinâmica do yin e do yan pervade o universo físico e humano mantendo-o em seu perfeito estado de equilíbrio. Para os cristãos, Deus contemplou a obra de suas mãos e viu que tudo que criara era muito bom. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 371 Alguns negam a existência de um fundamento cosmológico naturalístico da ética, separando ser e valor. Nessa corrente, a natureza processa-se mecanicamente como uma sucessão causal de engrenagens mecânicas. Portanto, ela pode permitir encantamento ou desencantamento; nesse pensamento, Max Weber apresenta o desencantamento do mundo. Fundamento religioso da ética Nesse universo, a pessoa procura entrar em contato com a divindade (Deus), onde o ser religioso se assemelha a ele, revestindo-se dos atributos e das virtudes da divindade. Assim, no Monte Sinai, quando Moisés entra em contato com Iahweh, a divindade sagrada dos judeus, sente a necessidade de colocar um véu sobre seu rosto, para guardar seu rosto resplandecente e sua fronte marcada pela glória do Deus de Israel (Ex 19,1ss). Ao mesmo tempo, na visão religiosa de mundo, Deus é a verdade, e por ser a Verdade, os sujeitos religiosos que o seguem assimilarão as virtudes divinas. Este parentesco entre verdade e ética sempre encheu as páginas dos pensadores. Já Aristóteles afirmava que o Verdadeiro, o Belo e o Bom se interpenetram reciprocamente. Para Platão, o ponto máximo do homem liberto da caverna é o Conhecimento do Bom, representado metaforicamente pelo sol, cujo esplendor ilumina todo o resto: Verdade e Bondade, Bom e Conhecimento, se confundem. Há uma frase evangélica que estabelece uma relação imediata entre Verdade e Liberdade: “A Verdade vos libertará”, pois a verdade liberta das ideias falsas que produzem ações erradas (MARCHIONNI, 1999, p. 45). Em contrapartida, o fundamento religioso da ética para alguns é o poder e o interesse. Para Nietzsche, a ética do aperfeiçoamento e da hominização, isto é, a ética das Religiões, de Sócrates e de Platão, é um engano; é uma decadência, é uma doença, pois nega os instintos e a vida. O Bom da religião é um retrocesso, um perigo, uma sedução, um veneno. Fundamento antropológico da ética A única divindade para o homem é o próprio homem. Segundo essa linha de pensamento, os humanistas, os iluministas e os sociólogos tentam buscar instrumental metodológico para explicitar que o homem é dotado de uma vontade não sujeita às leis físicas da natureza e portador de uma liberdade. Liberdade essa que para Kant, Lutero e Marx será fundamental para cada processo histórico desse sujeito em interação do humano com o social. Portanto, nessa relação, ações e posturas éticas são tomadas mediante relações estabelecidas entre as partes envolvidas. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 372 Ética e Religião A religião trouxe grande avanço para o progresso moral da humanidade. Ela foi a grande ponte para os filósofos indagarem sobre seus atos e levantarem não apenas questões filosóficas, mas também questões teológicas. Nos dias de hoje, mais do que nunca, o fanatismo tem sido analisado como uma forma de a religião criar seus abusos no campo ético e moral, apagando muitas vezes da história assuntos que levaram séculos para serem dirimidos e esclarecidos, tais como, liberdade, amor e fraternidade universais. A Revolução Francesa foi um exemplo disso. Com efeito, sabemos que na Idade Média a religião esteve arraigada a fanatismos e intolerâncias. Entretanto, na modernidade, a religião busca expressar-se como uma busca transcendental subjetiva que é comum a todos os homens. Com o advento da modernidade, cogitou-se o desaparecimento da religião, sendo confinada a grupos pequenos e aos poucos perderia seu poder de ação e domínio como ocorrera no período do medievo. Contudo, ela permanece com vigor exibindo uma vitalidade que se julgava extinta (cf. ALVES, 1986, p. 9). O tema das origens e causas das religiões foi analisado por diferentes estudiosos e pensadores: Strauss, Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud, Weber e Durkhein. Esses pensadores consolidaram questões importantes para estudos no campo religioso no que diz respeito às abordagens distintas sobre culturas distintas, em particular de Max Weber. Para essa análise citamos um pensamento de uma pesquisadora da Unicamp, direcionando de fato o conteúdo de um tema tão importante como esse, para o âmbito cultural e a antropologia como campo científico. Para estudar a história dos fenômenos religiosos, portanto, é preciso ficar atento aos usos e sentidos dos termos que, em determinada situação, geram crenças, ações, instituições, condutas, mitos, ritos, etc. Além disso, o pensar religioso também pode ser colocado no domínio da História Cultural que tem, na definição básica do historiador Roger Chartier, o objetivo central de identificar a maneira através da qual, em diferentes tempos e lugares, uma determinada realidade social é construída, pensada e lida... Dessa forma, uma abordagem teórica preliminar para o estudo das religiões, do pensamento religioso, das formas de religiosidade em geral, é aquela que leva em conta a historicidade dos fenômenos religiosos construídos em variados aspectos e matizados na sua complexidade histórico-cultural. A definição mais aceita pelos estudiosos, para efeitos de organização e análise, tem sido a seguinte: religião é um sistema comum de crenças e práticas relativas a seres sobre-humanos dentro de universos históricos e culturais específicos... Assim sendo, o problema fundamental a ser colocado no I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 373 estudo dos fenômenos religiosos deve ser o seguinte: Como determinada cultura constrói, historicamente, seus sistemas religiosos, já que para estudar os fenômenos religiosos deve-se estar atento aos usos e sentidos dos termos que, em determinada situação histórica, geram crenças, ações, instituições, livros, condutas, ritos, teologias, etc.(SILVA, 2004, p. 3-5). Não existe uma tradição religiosa dominante, nem tão pouco um status religioso de favoritismo de religiões em uma análise antropológica. Nenhuma tradição religiosa é “total”, nem existe um status de favoritismo de religiões. É fundamental conhecer nossas trajetórias pessoais e coletivas no campo cultural religioso para não adentrarmos em questões de preconceito, opções por gênero, privações e verdadeiras castrações de ações e posturas éticas, assimiladas como positivas por uns e negativas para outros. É necessário conhecer também nosso chão histórico, o lugar de onde emergimos e estamos com os outros. A religião é também uma expressão cultural, mas essa expressão não é universal e totalizante. Ela é fragmentada e pluralista por abarcar processos históricos e condições políticas, econômicas e sociais distintas para cada momento. Além disso, para cada grupo religioso, oficial e emergente, mediante essas conjunturas citadas anteriormente, surgem novos padrões comportamentais éticos que são exigidos para essa fase e para outros não. Alguns permanecem fadados ao fracasso e a institucionalização de suas paredes com seus dogmas estabelecidos em um código de ética e moral, e outros se consolidam com suas tendências extremistas e radicais sem abertura para o diálogo. Nessa análise, a visão de mundo e os ângulos submetidos historicamente para cada cultura será um mosaico de posturas e padrões comportamentais distintos que precisam aqui ser analisados com critério e rigor científico para o cientista da religião. Conclusão Vivemos hoje uma grave crise de valores. Até certo ponto, fica difícil, para a grande maioria da humanidade, saber o que é correto e o que não é. Eric Hobsbawn, em Era dos Extremos, constatou que houve mais mudanças na humanidade nos últimos cinquenta anos do que desde a Idade da Pedra (BOFF, 2003, p. 27). A ética é parte da filosofia, considera concepções de fundo acerca a vida, do universo, o ser humano e de seu destino. Uma pessoa é ética quando se orienta por princípios e convicções. Dizemos, então que tem caráter e boa índole. A moral é parte da vida concreta. Trata da prática real das pessoas que se expressam por costumes, hábitos e valores culturalmente estabelecidos (BOFF, 2003, p. 37). Uma pessoa é moral quando age em conformidade com os costumes e valores consagrados. Estes I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 374 podem, eventualmente, ser questionados pela ética. Uma pessoa pode ser moral (segue os costumes até por conveniência), mas não necessariamente ética (obedece a convicções e princípios). (BOFF, 2003 p. 37) Questões como império globalizado, paz política, políticas unilaterais, terrorismo e o fundamentalismo religioso levantam questões primárias acerca da ética social que nos remete a uma indagação sobre certos discursos políticos que se utilizam de elementos religiosos ou do manto do sagrado para legitimarem suas falas nas mentes de homens e mulheres cauterizadas a fim de se autoafirmarem mediante suas ações intencionais. 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Uma droga bastante comum em nossa sociedade é a maconha (cannabis sativa) e o consumo desta substância, assim como o de outras drogas, pode ter consequências legais, sociais e físicas. O entendimento desta conduta passa pelo conhecimento de dois pontos. O primeiro ponto diz respeito à autonomia moral; descrevemos o conceito de autonomia para a Filosofia e para a Psicologia. O segundo ponto se concentra na maconha; sua história; a conduta do usuário; e dados epidemiológicos do mundo, do Brasil, de São Paulo e do Ensino Superior; e, por fim, a investigação do uso em um campus universitário. Dentro da Psicologia, estudamos o desenvolvimento da autonomia baseados no trabalho de Piaget e planejamos uma avaliação da mesma, baseados na moral judgment interview – MJI, desenvolvida por Kohlberg. A pesquisa foi realizada em duas etapas. Primeiro foi feito um levantamento do uso de diversas drogas entre 155 formandos; em seguida, selecionamos usuários e não-usuários e aplicamos a MJI para avaliar seu julgamento sóciomoral. Essa segunda etapa também contava com questões sobre uso abusivo de maconha que só foram respondidas por usuários. Os dados demonstraram que 23,3 % dos participantes fazem ou já fizeram uso de maconha. A entrevista demonstrou que a maioria dos alunos se encontra no Nível Convencional, mais especificamente no estágio 4 e que, dos usuários de maconha, a maior parte não faz uso abusivo. O objetivo deste artigo é apresentar e discutir os resultados dessa pesquisa à luz das teorias de Piaget e Kohlberg. Palavras-chave: Autonomia. Maconha. Desenvolvimento moral. Abstract The use of licit or illicit psychoactive substances, among young people, is a subject which has been discussed by society. A very common drug in our society is marijuana (cannabis sativa), and the consumption of this substance, as well as the use of other legal or illegal drugs, may have legal, social and physical consequences. To understand this behavior it is necessary to consider two points. The first point is about the moral autonomy; we describe the concept of autonomy to Philosophy and Psychology. The second point is centered in marijuana; its history; the user behavior; and epidemiological data from the world, from Brazil, from São Paulo and from College; and at last the research about the use in a college campus. In Psychology, we studied the development of autonomy using the work of Jean Piaget and we planned an evaluation on the same subject based on the Moral judgment interview – MJI, developed by Kohlberg. The research was organized in two stages. In the first stage we did a survey of several drugs with 155 under graduation students; then, we selected users and non-users and applied the MJI to evaluate their socio-moral judgment. This second stage also had questions about the abusive use of marijuana, which were answered only by users. Data showed that 23, 3% of the participants do or at least once did use marijuana. The interview showed that students are at the Conventional level, most of them in the stage four, in which most of the marijuana users don’t make abusive use. The aim of this article is to present and discuss the results of this research based on the theories by Piaget and Kohlberg. Keywords: Sutonomy. Marijuana. Moral development. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 376 Introdução O uso de drogas é uma questão que preocupa educadores, pais e sociedade. O envolvimento de jovens com substâncias psicoativas – SPA pode prejudicá-los física e socialmente, incluindo o rendimento acadêmico. A maconha, cannabis sativa, é a droga ilícita mais usada no Brasil (CARLINI et al., 2005). A lei, nº 11.343, de 2006, acaba de descriminalizar o uso da droga. Os estudos sobre esta droga são, na maioria, de cunho quantitativo, mostrando apenas a porcentagem de pessoas usando a droga, e não como elas vêem esta conduta. Este fato fez com que começássemos a nos interessar em saber como as pessoas que não usam drogas vêem os usuários, se existe preconceito e discriminação em relação a isso, principalmente na universidade, ambiente de vulnerabilidade e em que também levantam questões relacionadas à autonomia moral. É importante saber a influência da autonomia sobre a decisão de usar, ou não, as drogas, o modo como os estudantes lidam com os fatores de risco e as concepções que eles têm dessa conduta. Fundamentação Teórica Elaboramos nossa pesquisa da seguinte forma: o primeiro ponto diz respeito à autonomia moral. Para se chegar a um conceito completo de autonomia, começamos pela definição de Ética e Moral para a Filosofia, usamos o conceito de responsabilidade moral de Vazquez (1994); e ressaltamos a importância da teoria de Kant (1997), que serve também de ponte da conceituação para formação da autonomia, ou seja, partimos da Filosofia para a Psicologia. Dentro da Psicologia, estudamos o desenvolvimento da autonomia no trabalho de Piaget (1994) e a influência do sociólogo Durkheim (2001); abordamos a teoria de Turiel (1984) e, então, planejamos uma avaliação, baseados nos estudos de Kohlberg (1992). O segundo ponto estudado é a maconha. Concentramos-nos na história da legislação sobre drogas no Brasil até a atualidade: a descriminalização do consumo. Traçamos um perfil do usuário, baseados nos estudos mais recentes. Os dados epidemiológicos partem do Brasil e chegam até a universidade, culminando na análise do uso entre os formandos da Universidade Estadual Paulista - UNESP, São José do Rio Preto e na análise de seu julgamento moral. Objetivos O objetivo desse trabalho era responder, basicamente, uma questão: Qual o nível de desenvolvimento moral de um universitário usuário de maconha? Para isso, entrevistamos alunos que já usaram ou usam a droga, utilizando a MJI (Moral Judgement Interview) e investigando também a análise I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 377 que eles fazem de sua própria conduta. O presente artigo tem, portanto, a função de descrever sinteticamente nossa pesquisa e de discutir nossos resultados à luz das Teorias de Desenvolvimento Moral, salientando a importância destas para a prevenção e tratamento da conduta de uso de SPA nos meios educacionais. Metodologia Para cumprir nossos objetivos, a pesquisa foi dividida em duas partes. Primeiramente foi realizado um levantamento inicial com 155, de um universo de 393 formandos, do ano de 2007, dos cursos de graduação oferecidos em um dos campi da Universidade Estadual Paulista - UNESP que concordaram em responder ao questionário. Os dados revelaram que 119 alunos nunca experimentaram maconha e 36, sim. A entrevista sobre julgamento moral foi aplicada nos participantes dos dois grupos. Os pertencentes ao grupo A responderam, também, uma entrevista específica sobre uso abusivo de maconha. O campus universitário que estudamos possui nove cursos de graduação distribuídos pelas três grandes áreas de conhecimento; Humanidades, Biológicas e Exatas; são cerca de dois mil alunos. Os participantes do levantamento inicial são formandos de quatro cursos de graduação: Ciência da Computação, Matemática, Letras (noturno e diurno) e Biologia. Cuidamos para que fossem abrangidas as três grandes áreas de conhecimento. Dos 155 participantes, 11 alunos eram especiais; alguns também formandos de outros cursos, e estavam presentes na aula quando aplicamos o instrumento. Instrumentos A primeira etapa consistiu numa avaliação composta de cinco partes: a) Variáveis sócio-demográficas: nome, telefone, endereço, curso, período, turma, idade e sexo; b) Avaliação do nível sócio-econômico via critério Brasil (ALMEIDA e WICKERHAUSER, 1991); c) Religião; d) Identificação dos consumidores de álcool com o instrumento de teste de Identificação de Desordens Devido ao Uso de Álcool – AUDIT (BABOR et al, 1992); e) Avaliação do uso das sete drogas psicoativas mais utilizadas entre adultos jovens (álcool, tabaco, maconha, cocaína, crack, solventes e anabolizantes) e uma questão aberta para apresentar outra droga de que estivesse fazendo uso, ou já fizera. Foi desenvolvido baseado no questionário elaborado por Smart el al. (1982), sob auspícios da Organização Mundial de Saúde - OMS, e que vem sendo utilizado com frequência em nosso país (por exemplo, ANDRADE et al., 1997; GALDURÓZ et al., 1997; KERR-CORRÊA et al., 2001). I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 378 As variáveis sociodemográficas foram necessárias para a identificação do aluno, que poderia ser chamado futuramente para responder a entrevista, e também para uma avaliação da relação do nível socioeconômico e uso de SPA. Para essa avaliação, usamos o critério de ALMEIDA e ABA/ABIPEME (WICKERHAUSER, 1991). O AUDIT, usado para avaliar o consumo de álcool dos alunos, é um instrumento desenvolvido por um grupo de pesquisadores vinculados a OMS (BABOR et al., 1992), na década de 80; composto de 10 questões, sua pontuação varia de 0 a 40; foi adaptado para o Brasil por Méndez (1999), e vem sendo utilizado por diversos estudiosos como Martins (2006), Cruz (2006) e Lepre (2005). Para verificar o nível de desenvolvimento moral dos universitários, que foram selecionados a partir do levantamento inicial, utilizamos a entrevista semi-estruturada de Kohlberg (MJI), na forma adaptada por Lepre (2005). Cada parte da entrevista era estruturada com um dilema, seguido de questões dissertativas. Esta entrevista pede que o participante reflita sobre possíveis soluções para três dilemas morais e é composta de três versões paralelas: A, B e C. Em cada uma dessas versões, aparecem valores morais em conflito. Assim como Lepre (2005), optamos pela forma A, por ser mais conhecida e por serem dilemas mais adequados aos objetivos de nosso estudo. Na forma A, os valores em conflito são: vida/lei; moralidade/consciência/castigo e contrato/autoridade. O segundo dilema, (moralidade/consciência/castigo) foi reelaborado, criando uma história que aborda uso de drogas, foi também adaptado de Lepre (2005) e acrescentamos uma quarta parte, sobre uso abusivo de maconha a ser respondida somente por alunos do grupo A. Os dados do levantamento inicial foram digitados em uma planilha eletrônica e, então, exportados para um programa de análises estatísticas (SPSS, 2003) no qual foram feitas todas as análises sobre condição socioeconômica, religião, idade, consumo de álcool e de drogas. Este programa também foi usado para separar os dados dos alunos que responderam a entrevista. As respostas das entrevistas foram digitadas como texto e arquivadas, sem a identificação dos alunos, que apenas foram divididos em usuários e não-usuários. Os três primeiros dilemas (contrato/autoridade, moralidade/consciência/castigo e vida/lei) foram analisados, segundo as teorias de Piaget (1994) e Kohlberg (1992). Primeiramente, elaboramos quadros com as respostas resumidas dos 21 entrevistados para cada uma das quatro partes da entrevista. Em seguida, criamos categorias para essas respostas e fizemos uma análise quantitativa, os resultados foram distribuídos em tabelas. Por fim, utilizamos os critérios piagetianos e neokantianos propostos por Kohlberg (1992) para avaliar normas, elementos e estágios. Este trabalho foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa - CEP do Instituto de I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 379 Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE), campus da UNESP de São José do Rio Preto - SP que emitiu parecer favorável em 25 de janeiro de 2007. Todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE e foram informados de que poderiam desistir da pesquisa, caso se sentissem desconfortáveis ou prejudicados. O mesmo comitê de ética aprovou o relatório com resultados da pesquisa em 13 de outubro de 2008. Autonomia moral e uso de maconha Para Vazquez (2004), responsabilidade moral significa conhecimento das regras morais e capacidade de prever as consequências que resultarão de seus atos, o indivíduo deve praticar o ato livre de qualquer coação, seja ela interna ou externa. Logo, se há conhecimento suficiente do contexto e de suas prescrições morais, se não há coação, o sujeito é plenamente autônomo para decidir sobre seus atos. Piaget e seus seguidores, como Kohlberg (1992) e Turiel (1984), investigaram a formação da autonomia moral. Inspirado em concepções como a de Durkheim e de Kant, Piaget, em O juízo moral na criança (1994) investigou regras de jogos infantis, noção de justiça e responsabilidade em crianças e dividiu o desenvolvimento moral do ser humano em três fases: anomia (ausência de regras), heteronomia (respeito unilateral pelas regras morais) e autonomia (autogoverno). Baseado no trabalho de Piaget, Kohlberg (1992) investigou os níveis de desenvolvimento moral em adolescentes e adultos jovens, subdividindo os três níveis citados por Piaget (anomia, heteronomia e autonomia), em seis estágios. O primeiro nível é chamado Pré-Convencional, está relacionado a acontecimentos externos e resulta nos dois primeiros estágios: de moralidade heterônoma e de moralidade individualista. O estágio 2, da moralidade individualista e instrumental, se caracteriza por uma perspectiva individualista concreta, há uma consciência de que cada pessoa tem seus próprios interesses e que esses podem entrar em conflito, sendo assim, o moralmente correto é relativo. O segundo nível, Convencional, é caracterizado pela manutenção da ordem e das expectativas dos outros. No estágio três, moralidade normativa interpessoal, o indivíduo preocupa-se com a opinião dos outros e se comporta bem para manter uma boa imagem, para ser o “bom menino”. No estágio 4, moralidade do sistema social, há uma preocupação com a ordem social e submissão a uma autoridade. No nível 3, chamado Pós-Convencional, o sujeito, já identificado com as regras da sociedade, começa pensar em valores que garantam os direitos e o bem-estar social. No estágio 5, moralidade dos direitos humanos, os valores morais se apoiam nas condutas e direitos compartilhados pelo grupo. O I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 380 estágio 6 é chamado o de moralidade de princípios éticos universais, o sujeito considera os direitos e deveres de cada um e aplica o imperativo categórico de Kant (2006) em suas ações morais (Kohlberg, 1992). Quanto aos aspectos referentes à maconha, podemos dizer que é uma droga que causa efeitos tanto físicos quanto psíquicos e estes são percebidos como agradáveis pela maioria dos usuários. Como efeitos físicos a literatura científica mostra que as pessoas podem sentir taquicardia, tontura, retardo psicomotor, letargia, depressão, dificuldade de memória de curto prazo, alterações no raciocínio e concentração, mas não há um consenso sobre danos causados ao sistema nervoso a longo prazo (Marques e Ribeiro, 2006). O papel da escola na formação de um julgamento sociomoral e na conscientização sobre os prejuízos causados pelo uso de drogas é muito importante, tanto que o volume VIII, dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1996) prevê o desenvolvimento de Programas de Saúde e do estudo de Ética. Magalhães, Barros e Silva (1991) pesquisaram o padrão de uso de maconha entre os universitários da cidade de São Paulo e traçaram um perfil desses jovens. O usuário padrão seria: homem, solteiro, de nível socioeconômico alto e que consumiu pela primeira vez durante a adolescência. A pesquisa também pôde constatar que há um grupo padrão para os usuários, ou seja, os jovens que fumam, o fazem socialmente, geralmente em programas culturais, enquanto que os não usuários preferem ficar em casa, estudando e/ou vendo televisão. Esses mesmos pesquisadores, em uma pesquisa sobre a frequência do uso de maconha entre os universitários, concluíram que a maioria também usava álcool e tabaco e, cerca de 90% dos usuários, já experimentaram outra droga ilícita na vida. Pensando nesses dados, optamos por investigar universitários, que pelos dados encontrados se tornam um grupo de grande vulnerabilidade e que estivessem se formando, ou seja, foram expostos por mais tempo aos fatores de risco que fazem parte do ambiente estudantil. Como dissemos no início do trabalho, nossa primeira questão era: qual o nível de desenvolvimento moral dos universitários que usam maconha? Analisando os dados das entrevistas, constatamos que: no primeiro dilema, as respostas mostram que 75% dos usuários se encontram no estágio 3, no segundo e no terceiro dilemas eles se encontram no estágio 4 (50% e 75% respectivamente). Baseados nesses dados, podemos concluir, primeiro, que os entrevistados usuários de maconha se encontram em estágios avançados de desenvolvimento moral; segundo, não há diferenças significativas no nível de desenvolvimento dos grupos A e B, lembrando que os grupos são de tamanho diferentes e terceiro, os usuários entrevistados não fazem uso abusivo de maconha. Os universitários do grupo A costumam fazer uso da maconha entre seus pares, porém, I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 381 essa conduta de uso não é relevante para o grupo. Notamos também, pelas respostas, que a droga só os prejudica quando é misturada a outras drogas e, mesmo assim, não houve prejuízos acadêmicos, inclusive porque se trata de formandos. Em seu artigo “Redução de danos para o uso de cannabis”, Mac Era (apud SILVEIRA e MOREIRA, 2006) comenta que, o uso de maconha, geralmente, se inicia em grupos e que estes servem de reguladores, ou seja, em contato com usuários mais experientes, os novatos se informam sobre como usá-la de modo a não se prejudicar fisicamente ou atrapalhar suas atividades diárias. O contato com seus pares nas ‘rodas de fumo’ ajudaria os indivíduos a desenvolverem suas estratégias de consumo controlado. Pela troca de experiências os usuários aprenderiam a distinguir as atividades em que a maconha servia como facilitadora, inspiradora ou complemento agradável, daquelas em que agia como perturbadora ou empecilho (SILVA E MOREIRA,2006, p. 366). Esses grupos se tornam importantes, também como meio de integração social, e mesmo que com o tempo a tendência seja a de se afastar, ou mesmo a de o grupo já não ser mais tão presente em sua vida social, os usuários continuam achando importante compartilhar experiências e o barato. Nesse momento a ‘roda de fumo’ deixava de ser importante como ritual de controle, para ser substituída por sanções internalizadas, passando a ser comum o uso solitário (SILVA e MOREIRA,2006, p. 366). É importante que os educadores e pais fiquem muito atentos, quando forem tratar o uso de drogas, para alguns aspectos: primeiro, as drogas não podem ser estudadas de modo geral, cada uma tem um perfil farmacológico e, portanto, diferentes modos de agir no organismo e afetar a saúde; segundo, mesmo que se atente a cada droga separadamente é muito importante que se distinga uso abusivo de dependência e, por fim, nunca tratar a conduta com misticismo, preconceitos e autoritarismo, o diálogo e as informações, assim como troca aberta de experiências são fundamentais ao tratar o assunto. Como nosso trabalho se propõe a estudar mais especificamente a maconha, vamos fazer algumas considerações a respeito dela. A maconha, segundo a Organização Mundial de Saúde - OMS é menos prejudicial que duas drogas lícitas: o tabaco e o álcool, portanto não há argumento nesse sentido para sua proibição ou restrição. Não há qualquer pesquisa que evidencie dependência física de maconha e, mesmo a psicológica ainda não foi unanimemente aceita por ser subjetiva e variar demais entre os usuários (MARQUES e RIBEIRO, 2006). Quando se trata de educação, retomamos a importância da educação moral, quando se trata de uso de drogas para dois fins: a prevenção e a intervenção. Antes de tudo, é preciso que se elaborem I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 382 ambos os programas fundamentados em princípios de desenvolvimento da autonomia, porém, que se saiba diferenciar a aplicação de cada um deles. Um programa de prevenção ao uso de maconha, por exemplo, pode ser elaborado retomando os conceitos de Vazquez (2004) sobre responsabilidade e liberdade e os de Piaget (1994) sobre educação internacional e tendo como principal objetivo a redução ou exclusão dos fatores de risco. Já comentamos que os fatores de risco podem ser biológicos, psicológicos ou sociais; pois bem, os dois primeiros estão muito ligados a hereditariedade e devem ser tratados diferenciadamente, porém, os fatores sociais são mais amplos e, por isso, estão diretamente ligados à educação. São eles: 1. Falta de estrutura familiar concreta: violência doméstica, abandono, carências materiais; 2. Exclusão social e violência; 3. Baixa escolaridade; 4. Opções de lazer precárias ou falta de oportunidade de diversão; 5. Pressão do grupo para o consumo; 6. Ambiente permissivo ou estimulador para o consumo (MARQUES e RIBEIRO, 2006). Juntamente com os fatores sociais existem os fatores de proteção. No caso de fatores sociais, são considerados os que se opõem aos de risco, por exemplo: boa estrutura familiar, alta escolaridade, ambiente social saudável etc. Os fatores 1, 2 e 3 dizem respeito ao ambiente em que a criança cresce, extra-escolar, que muitas vezes não favorece o desenvolvimento moral dela, então, seria função da escola mostrar à criança que existem outros ambientes, fornecer a segurança e recursos (materiais e psicológicos) que a ajudem a não ser afetada por esse meio e, em situações mais graves, retirá-la de tal situação. Os fatores 4, 5 e 6 podem ser reduzidos, ou totalmente excluídos, com o desenvolvimento da autonomia. A criança ou adolescente vai aprendendo, com o auxílio da educação moral, a lidar com a pressão do grupo e com os ambientes estimuladores e a procurar opções de lazer que não envolvam uso de SPA ou qualquer outra coisa que possa trazer riscos a sua saúde física e mental. Em nossas entrevistas, nos chamaram a atenção as respostas de um participante do grupo B, classificado no estágio 5 do Nível Pós-Convencional (alto, portanto) que disse nunca ter tido vontade de usar qualquer tipo de droga por não precisar desse tipo de estímulo para se divertir. Por que você acha que Paulo consumiu álcool e maconha? (dilema 3, questão 4) Talvez porque viu os amigos fazendo isso e quis experimentar (B5). Se você fosse Paulo, o que faria?Por quê? (dilema 3, questão 5) Iria curtir a festa sem usar maconha, porque eu não acho que eu preciso alterar meu estado por meio da maconha para me divertir e também porque prometi que não faria I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 383 (B5). Retomando a teoria de Piaget (1994), podemos construir um programa de prevenção baseado no desenvolvimento da autonomia. Para Piaget (1994), a moral não é homogênea porque nasce na sociedade e esta também não é. O social é um conjunto de relações de coação e cooperação. A sociedade, tal qual a criança passa por uma evolução, do respeito unilateral ao respeito mútuo, para chegar à autonomia. Nem as normas lógicas, nem as morais são inatas, é preciso construí-las. Esta construção só é possível com a interação entre os indivíduos. O indivíduo é dotado de estruturas que lhe permitem uma autonomia, mas por si só permanece egocêntrico. Só a cooperação leva à autonomia. Na escola, é necessário que a experimentação individual e a reflexão sejam estimuladas para o desenvolvimento do respeito mútuo e da autonomia e com esta, um autocontrole, um self-government, que leve à exclusão dos fatores de risco para a dependência de drogas. Assim, retomamos também o conceito de responsabilidade de Vazquez (2004), pelo qual o indivíduo, para que tenha plena responsabilidade sobre suas ações, deve ser livre de qualquer coação e poder prever as consequências de seus atos; então, a escola, informando sobre drogas e seus possíveis prejuízos e, educando para a autonomia, formará um sujeito consciente. Já um programa de intervenção deve visar principalmente à redução de danos. Em primeiro lugar, voltemos à Teoria de Domínios Sociais de Turiel (1984) e pensemos na conduta de uso fora do domínio moral, ou seja, não é porque a autonomia ajuda a prevenir abuso de substâncias que devemos relacionar essa conduta à moralidade, ela se encontra no domínio pessoal. Portanto, um usuário não deve ser visto como ser imoral. Em segundo lugar, ao se tratar com usuários é importante que se investigue se esse uso é moderado, nocivo ou pesado (dependência). Para que se possa fazer essa avaliação, a OMS dispõe de manuais de orientação, como o Guia prático sobre uso, abuso e dependência de substâncias psicotrópicas para educadores e profissionais da saúde (MARQUES e RIBEIRO, 2006). Por fim, para que se possa promover o desenvolvimento da autonomia é importante, antes verificar em que nível de desenvolvimento está o usuário, podendo ser aplicada a teoria de Kohlberg (1992), como fizemos no presente trabalho. Tomados esses cuidados, o programa deve se concentrar na extinção dos fatores de risco, já citados, e que podem ser tratados tanto com o desenvolvimento da autonomia, quanto com orientação psiquiátrica e medicação (no caso de fatores biológicos ou psicológicos); e, também, o fortalecimento dos fatores de proteção. Pesquisas recentes nos ajudaram a traçar um perfil do usuário de maconha, notamos algumas características deste perfil que são comuns a nossa pesquisa e que estão ligadas a autonomia. Pesquisa realizada na UNESP (KERR-CORRÊA et al., 2001) mostrou que: morar em república, relatar que fez uso I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 384 antes de entrar na faculdade e ter amigos que não desaprovam o uso são alguns dos fatores de risco para o uso de maconha. Os estudantes, entrevistados por Coutinho et al. (2004), apontam fuga dos problemas como principal motivo de uso. Bom relacionamento com a família era predominante entre não usuários (PAVANI et al., 2007); os estudantes buscam prazer na droga, ou seja, mantém uma expectativa positiva em relação ao uso (FONSECA et al. 2007) o que pode ser mudado com mais informações e com o incentivo para obter prazer de formas mais saudáveis e autônomas. Todas essas características estão ligadas aos fatores de risco que tentamos reduzir ou excluir com o desenvolvimento moral. A redução de danos tem como objetivo reduzir progressivamente o uso da droga, seria uma consequência a mais da formação de autonomia e de independência que é objetivo do programa. O usuário deve adquirir progressivamente controle sobre sua conduta, de modo que o prazer que encontre no uso, seja substituído por outras formas mais saudáveis de diversão. Conclusão Após concluir essa pesquisa de Mestrado, pensamos em reunir os dados desse trabalho, sobre o julgamento moral de universitários usuários de maconha e dados de um trabalho anterior, um levantamento sobre aplicação do volume VIII dos PCN em escolas públicas de ensino médio (ALMEIDA, 2005) para, por fim, elaborar, num trabalho futuro, um programa de orientação para direção e professores sobre prevenção e intervenção sobre uso de maconha. Para isso, eles seguiriam as orientações do volume VIII, que trata de Ética e Programas de Saúde e cuidariam da educação moral ao mesmo tempo em que promoveriam estratégias especificas para lidar com a conduta de uso de maconha. Os dados da pesquisa de Mestrado orientarão a aplicação de entrevistas e classificação dos estágios de desenvolvimento dos alunos, servindo assim de base para o início dos projetos. Os instrumentos usados em nosso levantamento inicial poderão ser usados para investigar conduta de uso de SPA e, por fim, as teorias cognitivas fundamentarão as estratégias de desenvolvimento da moralidade. Referências ALMEIDA, E. S. Trabalhos sobre ética e saúde nas escolas públicas de São José do Rio Preto nos anos de 2004 e 2005. Iniciação Científica – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Universidade Estadual Paulista, 2005. ALMEIDA, P. M.; WICKERHAUSER, H. O critério ABA/ABIPEME: em busca de uma atualização. São Paulo: LPM/Burke & Marplan, 1991. BABOR, T. 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I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 387 Concepção de Educação Moral de Estudantes de Pedagogia NICACIO SILVA. Sônia Bessa Centro Universitário Adventista de São Paulo Lpg/Fe/Unicamp COSTA. Erenita Maria Silva Costa Curso Pedagogia – UNASP-SP FERREIRA. Joselha Brandão LIMA, Luciana COSTA, Rebeca Bessa [email protected] Resumo Pesquisa de natureza qualitativa e quantitativa, investiga as concepções de educação moral e os procedimentos para a educação moral de estudantes concluintes do curso de pedagogia. Tem como referencial a Epistemologia genética de Jean Piaget e os trabalhos de seus colaboradores que deram continuidade ao estudo do Conhecimento Social. Objetivou identificar as representações de educação moral dos estudantes do último ano do curso de pedagogia e verificar quais são as representações de procedimentos de educação moral. Para tanto foi constituída uma amostra de 71 estudantes do ultimo ano do curso de pedagogia. Com idade entre 23 e 47 anos, sendo 5 do sexo masculino e 66 do sexo feminino. O instrumento proposto é uma pergunta tema que deverá ser respondida pela técnica de redes semânticas naturais, também chamada de “Técnica de Evocações Livres de Palavras” e permite reconhecer as representações sociais dos estudantes sobre o assunto em questão. A partir da análise dos dados verificouse que os futuros professores confundem Procedimentos de Educação Moral e Educação Moral, utilizando o mesmo conceito para definir as duas coisas. Os procedimentos de educação moral estão relacionadas a uma visão da Educação Tradicional, com ênfase nos conceitos empíricos de conhecimento exterior que deve ser assimilado pelo sujeito, compreendendo uma aprendizagem que se dá do exterior para o interior. A concepção de educação moral e o que fazer para desenvolvê-la se restringe ao sentimento de Respeito, com ênfase na ação do professor quanto aos procedimentos e na atitude do professor quanto a Educação Moral. Palavras-chave: Educação moral. Concepções. Professores. Abstract Search for qualitative and quantitative nature, investigates the moral conceptions of education and procedures for the moral education of students concluding. Course pedagogy. Its reference to genetic epistemology of Jean Piaget and the work of its employees who have continued the study of Social Knowledge. The objective was to identify the representations of moral education for students of final year students of pedagogy and see what are the procedures for representations of moral education. The sample consisted of 71 students from last year of the course of education, ages ranging between 23 and 47 years, 5 males and 66 females. The instrument consisted of a question that issue was answered by the technique of natural semantic networks, also called the "Free University of evocations of words" that allows to recognize the students' social representations on the matter. From the data analysis found that the teachers confuse procedures Moral Education and Moral Education, using the same concept to define the two. The procedures for moral education are related to a view of traditional education, with emphasis on the concepts of empirical knowledge that should be treated as outside the subject, including a learning that occurs outside to the inside. The conception of moral education and what to do to develop it is restricted to the sense of fulfillment, with emphasis on the action of the teacher as to the procedures and the attitude of the teacher in moral education. Keywords: Moral education. Design. Teachers. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 388 Introdução No início do século XX a psicologia estava lançando as bases, quando o epistemólogo suíço Jean Piaget voltava seu olhar para o estudo do conhecimento, que separou a filosofia no sentido de levá-lo, para o campo experimental da psicologia. A obra de Piaget o livro O Julgamento Moral na Criança escrito em 1932, influenciou quase todos os pesquisadores de psicologia moral neste século a começar por Lawrence Kohlberg que embora tomasse outros rumos como por exemplo a questão da justiça como eixo do desenvolvimento moral, é considerado por alguns como expressão sofisticada e necessária da obra de Piaget. Mas se for feito uma análise mais profunda da obra de Piaget pode-se dizer que ele pressentiu a complexidade do tema e tenha optado por outros mais relevantes naquele momento. Ou ainda como diz De La Taille (2002, p.18) “que o fenômeno moral é multifacetado e complexo”, no entanto isso não significa que a sua obra não tenha sido muito importante para a maioria dos pesquisadores. Cabe destacar que os conceitos de moral e ética que predominaram até recentemente estão enraizados na visão judaico cristã de direitos e deveres, mesmo para o próprio Piaget que terminou por transmitir isto aos demais investigadores. Piaget estabeleceu a presença de duas morais na criança: a heteronomia e a autonomia. Embora esta última oponha-se à primeira do ponto de vista dos fundamentos, ela representa uma superação daquela: a autonomia pode substituir a heteronomia, mas, nesse caso, ela nasce da heteronomia que é o primeiro estágio do desenvolvimento moral. Estes conceitos de autonomia e heteronomia derivaram de Kant, Piaget acrescentou mostrando que estas duas morais são construídas durante o desenvolvimento da criança e que a evolução de uma sobre a outra dependerá de vários fatores, principalmente aqueles ligados as relações sociais em que a criança está inserida, conforme os relatos presente no livro O Julgamento Moral da Criança a respeito de diversos aspectos do desenvolvimento moral, em especial os relacionados ao juízo ou julgamento moral. Menin (2003), explicando Kant, diz que a vontade dá dignidade ao ser humano: ele obedece somente aquilo que lhe faz um profundo sentido interno, isto é o auto-governo, ou autonomia. Na autonomia a obediência a uma regra se dá pela compreensão e concordância com sua validade universal. Obedecemos porque concordamos que os motivos para a ação poderiam tornar-se “leis universais” e seria um bem para todos, enquanto que na heteronomia a obediência a uma regra se dá pelo medo da punição ou pelo interesse nas vantagens a serem obtidas pessoalmente. Para Piaget a moral é oriunda do respeito que adquirimos às regras, mas esta começa no respeito que temos às pessoas que nos impõem tais regras. O respeito pode ser unilateral ou mútuo. Nesta perspectiva toda moral consiste num sistema de regras, e o mais importante não é possuir este ou aquele I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 389 valor moral, mas sim o motivo pelo qual aceitamos ou seguimos esses valores. A moralidade, portanto implica em refletir no por que seguir certas regras ou leis e não outras, mais do que simplesmente obedecê-las. O mais importante não é se a criança obedece às ordens do adulto ou cumpre as regras da classe, mas por que as cumpre. A Educação Moral De forma intencionada ou não a educação moral ocorre no ambiente escolar. Segundo Puig (1998, p.90) a moral diz respeito às relações interpessoais, a deveres e direitos, visa à harmonia social, e a educação tem por objetivo promover a autonomia moral. “A moralidade consiste em uma forma de regular os comportamentos dos sujeitos para tornar possível uma convivência social ótima e uma vida pessoal desejável”. Já em 1930, Piaget dizia que é nas relações interindividuais que as normas se desenvolvem: são as relações que se constituem entre a criança e o adulto ou entre ela e seus semelhantes que a levarão a tomar consciência do dever e a colocar acima de seu eu essa realidade normativa em que consiste a moral. Quanto aos procedimentos da educação moral ele diz que esta não deverá ser uma matéria especial de ensino, mas um aspecto particular da totalidade do sistema, uma vez que a educação forma um todo e a atividade que a criança executa com relação a cada uma das disciplinas escolares supõe um esforço de caráter e um conjunto de condutas morais. Dessa forma a classe constitui uma associação de trabalho, e a vida moral está intimamente ligada a toda a atividade escolar. Piaget (2005) estabeleceu um elo de ligação entre a educação intelectual e moral quando disse que a educação constitui um todo indissociável e que não se pode formar personalidades autônomas no domínio moral se por outro lado o individuo é submetido a um constrangimento intelectual de tal ordem que tenha de se limitar a aprender por imposição sem descobrir por si mesmo a verdade: se é passivo intelectualmente, não conseguirá ser livre moralmente. A educação moral, na perspectiva de Piaget, supõe que a criança possa fazer experiência morais e que a escola constitui um meio próprio para tais experiências, supõe um ambiente de colaboração e cooperação, uma vez que o desenvolvimento moral ocorre em função do respeito mútuo, além do respeito unilateral, a cooperação no trabalho escolar está apta a definir-se como o procedimento mais fecundo de educação moral. São os procedimentos ativos que vão proporcionar ocasião para o desenvolvimento moral. Piaget (2003, p. 22) diz que: Para aprender a física ou a gramática, não há método melhor que descobrir por si por meio de experiência ou análise de textos, as leis da matéria ou as regras da linguagem; do I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 390 mesmo modo, para adquirir o sentido da disciplina, da solidariedade e da responsabilidade, a escola ativa se esforça em colocar a criança numa situação tal que ela experimente diretamente as realidades espirituais e discuta por si mesma, pouco a pouco, as leis constitutivas.... O estudante descobre as obrigações morais por uma experimentação verdadeira, envolvendo toda a sua personalidade. A cooperação constitui a condição indispensável à perfeição da razão e o desenvolvimento da consciência moral, pois sem o confronto com o outro, sem a cooperação intelectual e moral, ficamos circunscritos ao nosso egocentrismo “em certas condições, o outro é necessário: à tomada de consciência de si, à socialização e ao desenvolvimento da razão e da autonomia moral”. (PIAGET, 2003, p.57) Portanto as operações pelas quais chegamos ao que a consciência racional denomina de verdadeiro dependem da sociedade porque a tese fundamental da psicologia genética de Piaget é que a criança tanto se constrói na interação com os objetos físicos, como na interação com as pessoas, é o meio físico e o social. Se o ambiente não favorece as interações sociais, o indivíduo não chegará a construir a suas estruturas de modo coerente, e poderá privar o sujeito de libertar-se do seu ponto de vista egocêntrico, porque o indivíduo se corrige na medida em que procura reconsiderar o seu ponto de vista, para não se contradizer frente aos outros. Piaget (1977, p. 164) diz que: “Assim como a objetividade, a necessidade de comprovação, a necessidade de conservar seu sentido das palavras e das ideias, etc. são outras tantas obrigações sociais como condições do pensamento operatório”. Sem o confronto com o outro, sem a cooperação intelectual e moral, ficamos circunscritos ao nosso egocentrismo. Sem a ação de quem aprende, não ocorre processo de aprendizagem quanto ao crescimento dos esquemas mentais, no entanto sem a cooperação social, o individuo fica prisioneiro do seu egocentrismo deformador. Porque é a cooperação que permite o descentramento. O outro é necessário à tomada de consciência de si, à socialização e ao desenvolvimento da razão e da autonomia moral. A lógica não é inata no ser humano, mas se constrói em função das relações de reciprocidade, aparecendo como a forma de equilíbrio final das ações. Xypas (1997), citando Piaget, esclarece que quem nos leva a ser razoáveis, quem nos obriga a não nos contradizermos, a não deformar a verdade ao sabor da nossa fantasia, quem nos incita a argumentar racionalmente, a basear as nossas afirmações em fatos verificáveis, senão a objeção do outro, a observação critica, a censura de um pai, o comentário ou as perguntas do professor? Piaget insiste na interação social no desenvolvimento da consciência moral e da inteligência, da importância do outro na construção da pessoa. Considerando os procedimentos da educação moral e a perspectiva piagetiana para o seu desenvolvimento a presente pesquisa intenta identificar as representações de educação moral de futuros professores da educação básica, bem como as representações dos procedimentos da educação moral I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 391 destes. As representações são formas de conhecimento, uma espécie de organização psicológica, cópias da realidade, que circulam através da fala, gesto... fazem parte da vida de todos os indivíduos e envolve toda a sociedade, estando presente em qualquer tipo de situação social. As representações que o indivíduo fizer com base em seus valores e ideias guiarão seu modo de agir, decidir e responder aos acontecimentos. (Brenelli, 2006, p.91) As representações conduzem cada indivíduo à organização de uma realidade que tem como base um imaginário coletivo, diverso em cada tempo e espaço, mas que se transforma em um imaginário individual, sem deixar de ser também uma expressão do coletivo (Denegri 1998 p.128). Neste sentido conhecer as representações dos estudantes de pedagogia sobre moralidade e procedimentos da Educação Moral, poderá mostrar-se útil aos futuros professores da Educação Básica. Portanto este trabalho tem como objetivo identificar as representações de educação moral dos estudantes do quinto semestre do curso de pedagogia e identificar as representações de procedimentos de educação moral comparando com o referencial piagetiano. Metodologia A presente pesquisa de natureza qualitativa e quantitativa investiga as concepções de educação moral e os procedimentos para a educação moral de estudantes concluintes do curso de pedagogia. Tem como referencial orientador a Epistemologia genética de Jean Piaget e os trabalhos de seus colaboradores que deram continuidade ao estudo do Conhecimento Social. A pesquisa caracteriza-se como um estudo sobre a construção do conhecimento social tomando como recorte o desenvolvimento moral. Amostra A amostra constitui-se de 71 estudantes de curso de pedagogia de Instituição de Ensino Superior da Região Sul da grande São Paulo. Todos os estudantes são concluintes do curso de pedagogia com idade entre 23 e 47 anos sendo 5 homens e 66 mulheres. Instrumento O instrumento proposto é uma pergunta tema respondida pela técnica de redes semânticas naturais. A rede semântica é o conjunto de conceitos eleitos pela memória através de um processo reconstrutivo que permite aos estudantes organizar um conhecimento, um plano de ação e avaliar subjetivamente os eventos hierarquicamente e permite reconhecer as representações sociais dos estudantes sobre o assunto em questão. O instrumento é composto de duas partes, e foi solicitado aos estudantes que definissem mediante I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 392 a utilização de 10 palavras individuais: a) O que é educação moral; b) Como Ensinar a Educação Moral para crianças de 1ª a 4ª séries. Uma vez definidas as palavras, em segundo momento, deverão hierarquizá-las assinalando com o número 1 (hum) a palavra mais próxima e mais relacionada à questão colocada. Valor J é definido pelo tamanho da rede: resulta do total de palavras definidoras que foram mencionadas pelos sujeitos. Valor M (peso semântico) é o resultado que se obtém como resultado da multiplicação da frequência de aparecimento das palavras que representam definições dadas pelos sujeitos. O valor M é o indicador do peso semântico das palavras definidoras. Conjunto SAM (núcleo) é o grupo de 15 palavras definidoras que obtiveram os maiores valores totais (M) . Este é um indicador de quais são as palavras definidoras que estão de acordo com o núcleo central da rede M, ou seja, qual o significado do conceito para o grupo estudado. O Valor FMG (distância semântica): obtém-se para todas as palavras definidoras que compõem o conjunto SAM, a distância semântica entre o conjunto de significado varia de 20 a 25%. Este instrumento foi desenvolvido por Figueroa (1980), Bravo (1991) e Valdez (1998). Resultados Conceito de procedimentos da Educação Moral Para a interpretação dos dados foi utilizado critérios de organização propostos por FIGUEROA (1980), Bravo (1991), VALDEZ (1998) com o propósito de aproximar o estudo do significado diretamente com os indivíduos e a premissa proposta por ABRIC (2001) de que os termos que atendessem, ao mesmo tempo, aos critérios de evocação com maior frequência e nos primeiros lugares, supostamente teriam uma maior importância no esquema cognitivo do sujeito, ou seja, se configurariam como hipóteses de núcleo central da representação Social, O grupo de sujeitos entrevistados apresentaram informações que nos permite verificar uma rede semântica heterogênea, dada a distribuição dos conceitos e com abundantes conceitos, o que pode ser verificado pelo Valor J (183) que representa o total de palavras definidoras para o estímulo. A representação central para os Procedimentos da Educação Moral está definida como respeito (100%), e “amor” aparece muito próximo (95%) como um atributo essencial para definir os procedimentos da educação moral. Não aparecem atributos secundários que apoiem o núcleo central e os conceitos de “paciência ao ensinar” e “conversar” são tidos como significados dispersos. Os conceitos de dar exemplo; fazer dinâmicas; histórias; músicas; falar de Jesus; dedicação; carinho; criatividade; responsabilidade; leitura e livros didáticos são representações individuais e apresentam baixo peso semântico em decorrência da heterogeneidade da rede. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 393 Tabela 1 - conjunto SAM: Como ensinar Educação Moral para crianças de primeira a quarta série? e O que é Educação Moral?- Relação de 15 palavras definidoras com maior índice de frequência de aparecimento. Pergunta estímulo: Como Ensinar Educação Moral para Crianças de Primeira a quarta série”? N = 15 Valor J = 183 Palavras Frequência FMG -% definidoras Respeito 206 100 Amor 196 95 Paciência ao ensinar 136 66 conversar 125 61 Dar exemplo 103 50 Dinâmicas 95 46 Historias 94 46 Musicas 93 45 Falando de Jesus 82 40 Dedicação 80 39 Carinho 77 37 Criatividade 75 36 responsabilidade 73 35 Leitura 71 34 Livros didáticos 51 25 Pergunta estímulo: O que é Educação Moral? N = 15 Valor J = 186 Palavras definidoras Frequência FMG % Respeito Amor 497 301 100 61 Ética Valores Educação Caráter Solidariedade Compromisso Cidadania Princípios Inclusão Consciência Responsabilidade Disciplina Honestidade 197 174 169 159 104 99 82 81 79 77 68 65 61 40 35 34 32 21 20 16 16 16 15 14 13 12 A partir do conjunto SAM, foram construídos os núcleos centrais, periféricos, significados dispersos e opiniões pessoais de acordo com a percentagem atribuída. Tabela 2 - Núcleo central e periférico referente às representações de procedimentos da Educação Moral e o conceito de Educação Moral. Núcleo Central Núcleo periférico Significados dispersos Representação Procedimentos da Educação Moral Respeito Amor Paciência ao Ensinar conversar Exemplo Dinâmicas Histórias Músicas Falando de Jesus Opiniões pessoais Dedicação Carinho Criatividade Responsabilidade Leitura Livros didáticos Representação O Que é Educação Moral Respeito Amor Ética Valores Educação Caráter Solidariedade Compromisso Cidadania Princípios Inclusão Consciência Responsabilidade Leitura Livros didáticos Tabela distributiva em que aparece o núcleo central e o periférico das representações, o significado de cada um deles e as palavras representadas. (NC) Caracteriza a representação e lhe confere Identidade e estabilidade. Percentagem de 80 a 100%; núcleo periférico (N.P) Dá suporte e apoio ao I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 394 núcleo central, porém não representa o pensamento da amostra, atuam como coadjuvantes Percentagem de 60 a 79%; significados dispersos (S.D) Palavras soltas sem atributos essenciais, ou Secundários que não representam o núcleo central, mas que regulam e apoiam os elementos do núcleo central percentagem de 40 a 59% e opiniões pessoais (O.P) Congrega evocações que representam Opiniões pessoais e se apresentam desprovidas de uma análise mais racional e caráter cientifico, com significados dispersos e isolados. Percentagem de 0 a 39%. Educação Moral Como na frase estímulo que descreve os procedimentos da Educação Moral, a rede semântica para o conceito de Educação Moral está igualmente dispersa e heterogênea, dada a distribuição dos conceitos, o que pode ser verificado pelo Valor J (186) com apenas 3 palavras a mais que para a primeira frase estímulo referente para os procedimentos. A representação central é a mesma encontrada na situação anterior, “Respeito” contudo a frequência de aparecimento é muito superior como pode ser verificado na tabela 3 o atributo essencial da representação é o conceito “respeito” (100%) que se sobressai aos demais, não aparecendo nenhuma representação secundária que apoie o núcleo central. Como atributo de menor significância aparece o conceito de “amor”. As representações individuais aparecem com um número alto de palavras e baixo valor semântico, são elas ética, valores, educação, caráter, solidariedade, compromisso, cidadania, princípios, inclusão, consciência, responsabilidade, leitura, livros didáticos. Como pode ser observado nas tabelas 1 e 3 a representação central está concentrada num único conceito para Educação Moral e Procedimentos da Educação Moral. Os dois conceitos apresentam uma distância semântica muito diferente em relação aos atributos essenciais, embora o conceito “amor” apareça seguido da representação central, nos dois estímulos, o valor semântico é bem diferente, 95% para procedimentos da Educação Moral e 61% para Educação Moral. Nas opiniões pessoais dos procedimentos da educação moral a distancia semântica é muito próxima uma da outra entre 50 e 25% como pode ser observado na tabela 1 e está concentrada em atributos ligados de fato a procedimentos que o professor deve fazer, como realizar dinâmicas, contar histórias, falar de Jesus, ser responsável, criativo, organizar leituras, usar livros didáticos, embora apareça algumas opiniões em menor proporção ligadas a atitudes como dedicação e carinho. Para a definição de Educação Moral a distancia semântica entre as opiniões pessoais também são muito próximas entre 40 e 12% (tabela 3) e diferente dos procedimentos que tem como foco o fazer, esta concentra-se em atitudes como, ser solidário, ter ética, ser um educador, ter compromisso, princípios, ser responsável, disciplinado, honesto, inclusivo, cidadão e ter valores. I Colóquio Internacional de Epistemologia e Psicologia Genéticas 395 Os dados nos permitem dizer que a representação de Educação moral é exclusivamente “respeito” e os demais conceitos que aparecem são apenas representações individuais. Discussão A rede semântica para os procedimentos da Educação moral está mais coerente quanto ao valor semântico do que a rede de Educação Moral. O núcleo central na primeira é respeito, o atributo essencial é amor e os conceitos de “ser paciente” e “conversar com o aluno” aparecem como núcleo secundário apoiando a representação de respeito e amor. Já no conceito de educação moral o conceito de respeito aparece como representação central, não tem conceitos essenciais e o conceito “amor” aparece como núcleo secundário, mas com uma distância semântica de 39% excluindo-o de atributo essencial e figurando como atributo de menor importância. Se destacam as opiniões pessoais que representam quase todas as palavras definidoras (13 em 15) a distribuição da frequência de aparecimento é desproporcional em relação as duas frases estímulos. Quando o conceito “respeito” nos procedimentos da educação moral aparece 206 vezes, no conceito de educação moral aparece 497 vezes. Piaget (2005) descreve o respeito como um sentimento; ele diz que existem três espécies de sentimentos ou de tendências afetivas capazes de interessar a vida moral e se apresentam inicialmente na constituição mental da criança. Em primeiro a necessidade de amor, que se manifesta em diversas e em muitas formas, desde o berço até a adolescência. Um sentimento de medo, em relação aos maiores e mais fortes que ele, tendência que desempenha um papel importante nas condutas de obediência e conformismo utilizadas em graus diversos, por vários sistemas de educação moral e um terceiro sentimento que é um sentimento misto , composto simultaneamente de afeição e de temor cuja importância excepcional na formação da consciência moral é reconhecida por todos os moralistas. Segundo ele, para alguns o respeito constitui um estado afetivo derivado e único no seu gênero e teria por objeto os outros indivíduos, como o amor ou o medo, mas se prenderia diretamente aos valores e às leis morais. O respeito, ao mesmo tempo em que permanece suscetível de assumir secundariamente formas superiores, é antes de mais nada, um sentimento de indivíduo para indivíduo, e começa com a mistura de afeição e de medo que a criança experimenta em relação aos pais e em relação aos adultos em geral. Não é possível saber se o conceito de respeito para os estudantes pesquisado tem o mesmo sentido proposto por Piaget. A representação social tanto de Procedimentos da Educação Moral quanto a Educação Moral em si são confundidas como sendo a mesma coisa pelo grupo, é possível pela distribuição dos conceitos diante das solicitações inferir que o conceito de “respeito” nos proced