DO EU PONTUAL AO CÍRCULO HERMENÊUTICO: ELEMENTOS PARA AS
AÇÕES EDUCATIVAS*
LAGO, Clenio – (GRUPO DE PESQUISA – Educação e Conhecimento
UNOESC/SMO - [email protected];
Doutorando em Educação PUCRS – Bolsista da CAPES;
EIXO: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO/13;
Sem financiamento.
Resumo
Este ensaio tem por objetivo compreender a educação desde os encontros e
desencontros entre as diferenças. Para tal, faz-se uma leitura da instituição do eu pontual
e deste ao círculo hermenêutico. E, assumindo algumas críticas ao pensamento
gadameriano, buscou-se refletir sobre a radicalidade do pensamento de Gadamer para
compreender os encontros e desencontros entre os diferentes e iguais ao mesmo tempo.
Disso tudo, considera-se importante que, para transcender as posturas educativas
tradicionais, é necessário, também transcender ao logocentrismo abrindo-se para o
diálogo profundo como acontecimento acontecendo, o que implicaria em transcender o
eu pontual o sujeito transcendental e lançar-se no jogo educativo.
PALAVRAS-CHAVE – Eu Pontual; Círculo Hermenêutico; Educação.
1 – INTRODUÇÃO
Não raras vezes, agimos dentro do logocentrismo desconsiderando as diferentes
tradições nos processos educativos uma vez que nos baseamos em referenciais e
metodologias a priori, como expressão de vontades de poder. Outro importante aspecto
a ser destacado é a necessidade de darmos respostas que nos orientem ante as
diferenças, as multiplicidades de valores emergidas desde a crise do paradigma da
*
Texto produzido por ocasião do Seminário “Problemas da hermenêutica filosófica: interpretação,
alteridade e transmissão” organizado pela Profa. Dra. Nadja Hermann e proferido pelo Prof. Dr. Antonio
Gómez Ramos (Universidad Carlos III, Madrid) junto ao PPGE/PUCRS.
2
modernidade sem cair em horizontes dogmáticos. O intento deste ensaio é apontar
elementos à educação desde o problema das diferenças. Para tal, tomaremos as salas de
aula e as escolas como devendo ser locais promotores de diálogos verdadeiros entre as
diferentes tradições, a escola como espaços privilegiados ao diálogo profundo.
A tentativa de resposta foi efetivada a partir dos debates em torno da crise do
paradigma newtoniano-cartesiano e da busca da superação do mesmo, no horizonte da
Bilgung entendido aqui como “a maneira especificamente humana de aperfeiçoar
[formar] suas aptidões e faculdades” (GADAMER, 2005, p. 45).
2 - O EU PONTUAL
2.1 O emergir do eu pontual
O mundo medieval ergueu-se em torno de um único sistema de crenças,
portanto, entorno de um único referencial de verdade: a fé cristã. Nesse período, o
indivíduo aparece como negação: não deve aparecer. Porém, não sem resistências, a
Idade Média se institui com base na idéia de que mesmo que a razão, a ciência, a
filosofia evidenciassem o contrário da fé, vale a fé. Se antes, na filosofia clássica grega,
a diferença foi desconsiderada com a instituição do logocentrismo grego1, na Idade
Média a diferença é eliminada pelo poder interpretativo da Igreja Católica. Tal postura
se cristalizou evitando os diálogos profundos, porém não resistiu a estes, sucumbindo ao
reclame das diferenças desde as vontades de poder presentes nos debates que
permearam o problema dos universais na Escolástica.
A primeira grande síntese dos questionamentos à unidade interpretativa da Igreja
Católica efetivou-se com a Reforma Protestante, que questionou os dogmas católicos, a
autoridade papal e, por meio destes, o modelo aristotélico-tomista e a unidade do
espírito medieval. Este questionamento abriu fissuras irreparáveis à postulação positiva
do indivíduo como racional e em-si-mesmo. Desde então, outras possibilidades de
“salvação”, de interpretação das “sagradas escrituras” tornam-se possíveis à medida
que, pela universalização da fé em Cristo, o próprio crente pode ir às “sagradas
escrituras” interpretando livre e corretamente.
1
Conforme Donaldo Schüler em Pensando as fronteiras, “Platão e Aristóteles, paladinos da razão,
ratificaram a razão etnocêntrica, justificando guerra de conquista e de opressão para assegurar a liberdade
grega.”
3
Esse movimento questionador do argumento da autoridade não ficou restrito às
questões teológicas atingindo os demais saberes ou mesmo o conjunto dos saberes até
então articulados em torno paradigma medieval. Recolocou o conflito entre fé e razão.
Se antes, a fé e a razão eram conciliáveis, mas a razão subordinada à fé, de agora em
diante, razão e fé são irreconciliáveis, tendo cada uma tem seu campo próprio e não
devem misturar-se. Dessa forma, frente ao ceticismo instalado no final da Idade Média,
entrou em crise o referencial de verdade medieval, ao mesmo tempo em que emergiu a
necessidade de postular novos referenciais ao saber. Em filosofia, essa ruptura e busca
por novos referenciais efetivou-se, sobretudo, com Descartes que, baseado na dúvida
metódica, chegou à conclusão de que se duvido penso e se “penso, logo existo”. Tendo
a dúvida metódica, como referência primeira, o sujeito do conhecimento aparece como
autônomo, como “em si”, como pontualidade atômica. Descartes fundou assim as bases
do que se designou chamar de sujeito moderno, uma vez que compreendia que o bom
senso (razão) é o que há de melhor distribuído entre os homens. Conforme Taylor
(2000, p. 16),
O tema que diz dever o sábio afastar-se da mera opinião corrente e
fazer um exame mais rigoroso que leve à ciência é sem dúvida muito
antigo, remontando ao menos Sócrates e Platão. Mas o que há de
diferente em Descartes é a natureza reflexiva dessa virada. Quem
busca a ciência não é conduzido para longe da opinião mutável e
incerta e na direção da ordem do imutável, sendo antes levado para
dentro de si, para os conteúdos de sua própria mente.
Na física, esta ruptura se efetivou com Isaac Newton, que rompeu
definitivamente com a física aristotélica-tomista e postulou a física atômica,
consolidando o paradigma mecanicista, cujas bases estão ancoradas na fragmentação
sujeito/objeto, teoria/prática, “res cogitans/res extensa”.
Com a instituição do paradigma moderno “a confiança [...] é a de que a certeza
é algo que podemos gerar por nós mesmo [como indivíduos] ao ordenar nossos
pensamentos de maneira correta [...]” (TAYLOR, 2000, p. 17). Isso é possível, por que
o sujeito moderno é o indivíduo idealmente desprendido e separado dos mundos natural
e social “[...] que se aparta até mesmo do seu próprio corpo, [...] [e que] pode olhar [seu
próprio corpo] como objeto [...]” (TAYLOR, 2000, p. 19). Sendo assim, emerge na
modernidade, articulados, em última e ou primeira instâncias em torno do eu pontual
duas posturas distintas de conceber o processo do conhecimento: o racionalismo (que
4
enfatiza o sujeito como fonte do conhecimento) e o empirismo (que enfatiza o objeto
como fonte do conhecimento).
Buscando uma saída a esta fragmentação, entre o a priori e o a posteriori
emerge Kant perguntando sobre como o nosso conhecimento é possível. E como
resposta postulou o “esquematismo” como guia que acompanha a percepção “[...] a
partir do cerne a subjetividade do sujeito, o ‘eu penso’” (DUARTE, 2006, p. 24), como
elemento capaz de efetivar a “ponte” entre o conceito e a experiência.
2.2 Rumo à queda do eu pontual: Kant desde Hannah Arendt
Aqui tomamos emprestados de Hannah Arendt importantes considerações sobre
Kant, quando, em suas Conferencias sobre la filosofía política de Kant, analisa a
questão do gosto como ponto de partida de nossos juízos na relação com a comunidade
e ao senso comum. Isso por que
[...] ningún hombre puede vivir solo, que los hombres son
interdependientes no únicamente por sus necesidades y
preocupaciones, sino más bien debibo a su facultad superior, la mente
humana, que no funciona al margen de la sociedad. ‘La compañia es
indispensable para el pensador.’ (KANT). Este concepto resulta clave
para comprender la primera parte de la Critica del Juicio. (ARENDT,
2003, p. 28)
Após ressaltar de Kant a interdependência, a intersubjetividade presente na idéa
da indispensabilidade da companhia para o pensador na elaboração dos juízos Arendt,
continua a Segunda Conferencia dizendo que “[...] la facultad de juzgar se ocupa de
particulares, que ‘como tales, en consideración a lo universal, encierran algo
contingente’ y lo universal normalmente es aquello con lo que opera el pensamiento”
(ARENDT, 2003, p. 33).
Ainda na mesma conferência Arendt, para descrever que o fundamento do juízo
em Kant é a “Crítica do Gosto”. Isso por que, para Kant, as experiências gustativas e
olfativas são experiências internas e particulares que, por estas afetarem diretamente e
de forma particular não podem ser experimentadas pelos demais. Assim “[...] no puede
haber aquí discución alguna sobre la verdad o la falsedad.” (ARENDT, 2003, p. 123124). Dessa forma, para Kant, em questão de gosto não haveria disputa por que as
experiências relacionadas ao gosto e ao olfato seriam experiências internas, portanto,
particulares. Mas como juízo somente é juízo na relação com o universal Kant vale-se
5
da faculdade da comunicação e a imaginação2, faculdades capazes de fornecerem
elementos à compreensão das experiências privadas experienciadas pelo outro. E, com
base nessas faculdades indicadas, o gosto, no contraponto com a representação
universal, deixa de ser apenas experiência sensível e particular convertendo-se em um
veículo do juízo, pois julgo como membro de uma comunidade e não como suprasensível3. Porém, se “Los factores privados nos condicionan, la imaginación y la
reflexión nos permitem liberarnos y conseguir aquella imparcialidad relativa que es la
virtud propia del juicio.” (ARENDT, 2003, p. 134). E, uma vez que não são garantidas
experiências comuns quanto ao gosto e o olfato, “[...] se puede comunicar sólo si se es
capaz de pensar desde el punto de vista del otro [...] (ARENDT, 2003, p. 136) por que o
gosto “[...] es la facultad de juzgar a priori la comunicabilidad de los sentimientos que
están unidos con uma representación dada [...]” (KANT apud, ARENDT, 2003, p. 133).
Contudo, Kant ficou preso à idéia de elemento fundacional (sensus privatus e
sensus communis), pois postula o juízo como resultado do encontro dos senus, como
algo transcendental. É possível afirmar isso por que Kant não questionou a origem do
gosto uma vez sentencia que “em matéria de gosto não há disputa” e ou mesmo da
dimensão do imperativo do sensus communis em que previamente estaríamos
assentados. Sendo assim, poderíamos perguntar, se para Kant, o gosto não é um produto
histórico constituído mediante relações de força, mediante vontade de poder, como diria
Nietzsche que questiona sobre a origem da alma, ou como diária Marx, que “a formação
dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até nossos dias.” (apud
DUARTE, 2006, p. 31). Se olharmos Kant desde o Dasein heideggeriano, parece que
Kant esqueceu-se da contingência do ser-tempo e, conseqüentemente, da contingência
do ser gosto e dos esquemas de percepções como estruturalmente temporais.
Contudo, não podemos esquecer que Kant promoveu um giro radical quanto à
compreensão de humano, especialmente quanto ao juízo. Saiu da dimensão do “eu
pontual” para a compreensão dos humanos como seres interdependentes e
intersubjetivos, à medida que buscou uma saída para o impasse existente entre o
2
E, Arendt sentencia: “La solución a este enigma es la ‘imaginación’, la capacidad de hacer presente
aquelle que está ausente, que transforma los objetos de los sentidos ‘objetivos’ en objetos ‘sentidos’,
como si fueran objetos de um sentido interior. Ello sucede al reflexionar no sobre um objeto sino sobre su
representación. No es la percepción directa del objeto sino su representación lo que suscita en nosotros
agrado o desagrado. Kant denomino ‘operaión de la reflexión’.” (ARENDT, 2003, p. 121).
3
“Yo juzgo como mienbro de esta cominidad y no como miembro de un mundo suprasensible, quizás
habitado por seres de razón pelo no del mismo aparato sensorial; obedeço así a uma ley que me ha dada
[...]” (ARENDT, 2003, p. 128).
6
racionalismo e o empirismo. Suas contribuições não se resumem às aqui referenciadas,
pois seu pensamento constitui-se desde e para além do eu pontual sinalizando e
extrapolando as fronteiras do paradigma moderno: sobre e de seus ombros de gigante,
outros verão e saltarão para além de suas contribuições e críticas.
3 - O CÍRCULO HERMENÊUTICO
O círculo hermenêutico é concebido na esteira da ruptura da metafísica4, do eu
transcendental efetivada por Nietzsche que no lugar da permanência das idéias
introduziu a permanência do devir.
Criticando o eu transcendental kantiano, Nietzsche (1989, p. 73) afirma que o
“‘Eu’ trata-se de uma hipótese auxiliar com vista à inteligência do mundo”, pois “Não
existe Coisa-em-si, nenhum conhecimento absoluto; o caracter perspectivista, ilusório,
enganador é intrínseco à existência.” (NIETZSCHE, 1989, p. 77). Sendo assim,
Nietzsche se pergunta: “Em que pode unicamente consistir o conhecimento?
‘Interpretação’, de modo algum ‘explicação’ (NIETZSCHE, 1989, p. 88). De outra
forma, poderíamos dizer que para Nietzsche: não há fatos, somente interpretação.
O questionamento da verdade como algo “em si” efetivado por Nietzsche,
destituiu o referencial do “eu pontual”, do eu transcendental kantiano sem postular
outros referenciais, a não ser o perspectivismo como possibilidade da possibilidade,
com abertura. Mostrados e tocados os limites do modelo newtoniano-cartesiano, julgase que com o anúncio da morte de Deus efetivado por Nietzsche, ter-se-ía alcançado os
limites do mundo Ocidental5 emergindo a necessidade de repensar os referenciais ao
conhecimento e à vida como um todo.
A destituição do sujeito cartesiano, do “eu pontual”, da moral do método, da
idéia de substância, da idéia de “coisa em si” e da máquina kantiana abriu caminho à
Filosofia da Linguagem. Desde a ruptura da metafísica, o problema da contingência teve
4
Conforme Giacoia Junior (2000, p. 24), “O anúncio, por Nietzsche, da morte de Deus significa o fim do
modo tipicamente metafísico de pensar, na medida em que, para ele, o cristianismo, tanto como religião
quanto como doutrina moral, constitui uma versão vulgarizada do platonismo, adaptada às necessidades e
ensaios de amplas massas populares. [...] A morte de Deus implica, portanto, a possibilidade de colocar
em questão a crença na origem divida e no valor absoluto da verdade”.
5
“Heidegger [que] ao interpretar o significado da frase ‘Deus está morto’ indica que o mundo suprasensível da metafísica perdeu sua força e toda a filosofia ocidental chegou a seu término.” (HERMANN,
2001, p. 73).
7
de ser considerado positivamente no debate filosófico na busca de referenciais ao
conhecimento, à vida, pois o eu fundacional não mais se sustenta como “em-si”. E, os
fundamentos não são tão fundamentais e fundamentados em-si como julgávamos que
eram. Valendo-se das provocações nietzscheanas, um dos horizontes de abertura
constituiu-se com o Dasein postulado por Heidegger que denunciou o esquecimento do
Ser provocado pela entificação do Ser no mito do dado, ao mesmo tempo em que
apresentou a compreensão como modo de ser. Nas palavras de Gadamer (2005, p. 16)
em seu livro Verdade e Método I: “[...] Heidegger, penso eu, mostrou de maneira
convincente que a compreensão não é um dentre outros modos de comportamento do
sujeito, mas o modo de ser da própria pré-sença (Dasein)”.
É com base nas contribuições de Heidegger, à maneira de Kant, que Gadamer,
no prefácio da segunda edição de Verdade e Método I, coloca a questão filosófica de
como é possível compreender da seguinte forma: “Essa investigação coloca a questão ao
todo da experiência humana do mundo e da práxis da vida. Falando kantianamente, ela
pergunta como é possível a compreensão?” (GADAMER, 2005, p. 16). E, a essa
pergunta o próprio Gadamer responde que a compreensão é possível mediante a
linguagem e o diálogo, pois o Ser é linguagem. Nesse sentido,
A capacidade de compreensão é a faculdade da pessoa, que
caracteriza sua convivência com os demais, atuando sobre tudo pela
via da linguagem e do diálogo. Por outro lado, o caráter de linguagem
do processo de entendimento que se produz entre as pessoas
representa uma barreira intransponível que o romantismo alemão em
princípio positivamente em seu significado metafísico. (GADAMER,
2004, p. 381)
Não foi sem a crítica ao idealismo e à metodologia da teoria do conhecimento
que Gadamer (2004, p. 382) diz que, para responder a pergunta de como é possível
compreender, “Foi de especial importância [...] o aprofundamento do conceito de
compreensão, por Heidegger, que converteu o existencial, quer dizer, numa
determinação básica categorial da pré-sença (Dasein) humana”, pois Heidegger
reivindicou o círculo hermenêutico6 como positivo. Desde o Dasein, eliminou a
dedução do infundado, do motor primeiro, o infundado como referência do fundado.
6
Em Gadamer (2004, p. 382) o círculo hermenêutico, sugere que “[...] a estrutura do ser-no-mundo, quer
dizer a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença levada a cabo
por Heidegger”.
8
A partir da compreensão do círculo hermenêutico, o conhecer não mais se efetua
com base no dualismo clássico e de forma neutra, mas como um modo de ser, pois
“frente às ilusões da autoconsciência e frente à ingenuidade de um conceito positivista
dos fatos, o mundo intermediário da linguagem aparece como a verdadeira dimensão do
real, do dado.” (GADAMER, 2004, p. 391). E como o ser que é ser só é ser enquanto
linguagem, a linguagem “[...] sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia.”
(GADAMER, 2004, p. 386). O caminho é, então, a comunicabilidade e a imaginação e,
essencialmente, o caráter dialogal da linguagem, pois a linguagem
[...] ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito,
inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se
manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido
pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais
precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e
com alguém. Mas isto não significa expor-se. A linguagem está longe
de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos
preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida
e à contraposição do outro. [...]. Há algo mais [...] um potencial de
alteridade, por assim dizer, que está além de todo o consenso comum.
(GADAMER, 2004, p. 387)
Diferentemente, do que ocorre com o sujeito cartesiano, no círculo
hermenêutico, a compreensão é auto-compreensão e compreender é compreender-se no
diálogo, situação em que a consciência emerge dentro da consciência de finitude e não
mais como produto da infinitude, como transcendentalidade, como fora de, é a própria
pre-sença, ou como diria Habermas, o mundo da vida. E, como o potencial da alteridade
não emerge sem preconceitos, sem inscrição no mundo vivido, o interpretar e a
compreensão nunca se dão em numa única direção.
Para ultrapassar o dualismo clássico e dar conta da contingência, do dinamismo,
do ser-no-mundo, o jogo emerge como essencial na obra de Gadamer, pois “[...] a forma
efetiva de cada diálogo pode ser descrita a partir do conceito de jogo. Para isso é, sem
dúvida, necessário libertar-se do hábito de pensar que extrai a essência do jogo da
consciência do jogador” (GADAMER, 2000, p. 124). No jogo, embora existam acordos
prévios (regras), os jogadores (os falantes) com suas singularidades e individualidades
aparecem. Mas, o jogo, não se reduz aos jogadores e as suas consciências de jogo. O
jogo aparece enquanto jogo, enquanto diálogo acontecendo. E, se o diálogo é um jogo,
este só “está em andamento quando o jogador singular entrega-se à seriedade absoluta
do jogo [...]” (GADAMER, 2000, p. 124).
9
Nas palavras de Hermann 2002, p. 93-94)
O diálogo autêntico exige a participação dos envolvidos, expondo
nossas próprias posições sobre conceitos e pré-conceitos. Desse
modo, um diálogo levado a sério que não se oblitera em dificuldades,
pressupõe que o participante esteja aberto para mudar sua própria
posição e entrar no jogo com o outro. A palavra que circula no
diálogo desvela, questiona, configura identidades e demarca
diferenças.
Além da participação dos envolvidos expondo seus pré-conceitos, como é
possível estabelecer um diálogo verdadeiro? Pela ética e estética da pergunta, porque a
pergunta que emerge como enunciação do ser que se apresenta, que interpela exige e
provoca respostas. A pergunta enquanto pergunta exige manifestação coerente por parte
do perguntado. Nesse sentido, ser responsável é dar uma resposta à pergunta, não
valendo qualquer interpretação e qualquer resposta. É importante saber que bem antes
da pergunta e da resposta está a ética e a estética do diferente e do eu que aparece como
outro que aparecem nos encontros e desencontros entre diferentes e iguais. Nas palavras
de Marcelo Fabri (2006, 144),
O dinamismo do pensar supõe a relação com o diferente, requer a
mediação de um outro que, curiosamente, torna possível o discurso, o
logos, a razão. [...] O outro [...] como o estrangeiro [...] é aquele que
só pode comparecer na medida em que já provocou uma reação
responsiva, no interior de uma esfera própria.
É essa exigência presencial do eu e do outro como Dasein (como ser-no-mundo),
como encontro que inicia e move o jogo dialógico no horizonte das perguntas e
respostas, das proposições éticas e estéticas desde as tradições que se encontram e se
desencontram. De outra forma, “A surpresa trazida pelo outro é uma espécie de
impedimento da harmonização definitiva [...] (FABRI, 2006, p. 145)”, de fechamento.
Mas pode a pergunta ser armadilha, estratégia de reinstalação do “eu pontual”,
ou seja, podemos eu e o outro ser armadilhas? Sim. Quando, desarticular ética e estética,
perdendo-se essencialmente ou em uma ou em outra, ou quando emergir mascarada
como forma de sobreposição e subjugação, isso porque o outro emerge quanto não
harmonizado. Frente a esse problema Gadamer parece sugerir a prudência efetivada em
meio às relações de força, as relações de poder, às vontades de poder que perpassam as
tradições, situação em que a consciência que se sabe dentro da interpretação nunca é
10
relativista e nem objetivista havendo apenas efetualidade. Gadamer (2004, p. 391)
sugere que “a interpretação é o que oferece a mediação nunca acabada e pronta entre
homem e mundo, e nesse sentido, a única imediatez verdadeira e o único dado real é o
fato de compreendermos algo como algo”. Somente ante a interpretação, à tradição,
“[...] algo se converte em fato e uma observação possui força enunciativa.”
(GADAMER, 2004, p. 392). Além do mais a palavra existe dizendo-se e o diálogo
produz a verdade produzindo-se, pois não existe uma primeira e última palavra.
[...] o modo como experimentamos uns aos outros, como
experimentamos as tradições históricas, as ocorrências naturais de
nossa existência e de nosso mundo, é isso que forma o verdadeiro
universo hermenêutico. Nele não estamos encerrados como entre
barreiras intransponíveis; ao contrário, estamos sempre abertos para o
mundo. (GADAMER, 2005, p. 32).
Embora, hermenêutica gadameria rompa com a idéia de encontrar as essências,
parece que: sem as contribuições kantianas, quanto às faculdades da comunicação e da
imaginação; as provocações nietzscheanas de que toda a moral é regida por vontades de
poder (o ilógico da lógica); e, o Dasein heideggeriano, Gademer não poderia ter
avançado para além da interpretação apenas como cognição e transposto o abismo entre
essência e existência.
4 – O CÍRCULO HERMENÊUTICO COMO ACONTECER
O caráter artístico dionisíaco, não se mostra na alternância de
lucidez e embriaguez, mas em sua conjugação. (NIETZSCHE,
2005, p. 10).
Flickinger buscando radicalizar as contribuições de Gadamer sugere que
Gadamer, por estar demais preso à filosofia platônica, “[...] não consegue, por isto,
desdobrar com toda a realidade a tese de que o ‘Ser que pode ser compreendido é
linguagem’.” (2003, p. 175). E, isso teria ocorrido com Gadamer por que no
entendimento de Flickinger, Gadamer teria ficado preso ao trabalho hermenêutico com
textos o que lhes permite encontrar caminhos metodológicos prévios.
11
Falta, entretanto, aí, aquela experiência mais radical que só se
encontra no acima referido “viver na linguagem” e, mais
precisamente, no desdobramento do diálogo enquanto encontro com o
outro, ou seja, num vir ao encontro enquanto acontecer que inclui a
nós mesmos. Em outras palavras, é só no diálogo vivo que o “ser para
a linguagem” encontra seu campo de experiência principal.
(FLICKINGER, 2003, p. 175)
Assim, pensando hermeneuticamente a dinamicidade da vida, Flickinger
compreende que a hermenêutica vai além das interpretações dos textos clássicos. E, diz
isso, porque compreende que
No jogo, os participantes vêem-se referidos, por assim dizer,
enlaçados uns aos outros, sendo que jogo exige a entrega de cada um
a um processo não dominável por nenhum dos participantes. Quem
estiver, inicialmente, certo de ter elaborado o caminho mais adequado
à vitória, vê-se surpreendido, de repente, por um lance inesperado do
outro, ao qual não consegue, mas corresponder à altura. [...] O sentido
nasce do “vir ao encontro” de um outro, eu-tu, eu-texto, eu-obra de
arte, etc. (FLICKINGER, 2003, p. 173)
Assim, sem desconsiderar o importante legado de Gadamer e buscando
radicalizar a hermenêutica gadameriana, Flickinger sugere que o verdadeiro sentido se
dá nos encontros e desencontros como acontecimento acontecendo assegurados. E
lembrando que o ser humano está, antes de qualquer atividade reflexionante, como
mundo, Flickinger vê a necessidade de resgatar a dimensão ética da hermenêutica.
[...] o impulso que levou à Hermenêutica contemporânea nasceu e
alimentou-se da superestima sofrida pela racionalidade iluminista. [...]
Impulso este, da qual a Hermenêutica nasceu e cujo potencial pareceme ser, até hoje, subestimado. Refiro-me ao impulso ético que
legitima o desejo de compreender o outro e, com isso, também a si
mesmo. [...] Nada mais urgente, portanto, do que reativar este impulso
originário, reconduzindo a Hermenêutica de volta a pergunta pela
ética, intrínseca ao ser humano.
Se assim pensarmos, parece que a postura de Flickinger é de evitar que não
caiamos numa estetização da vida, visto Gadamer ter em sua obra dado importante
destaque à dimensão estética em sua obra Verdade e método. E é buscando articular
ética e estética no acontecimento que Hermann (2006, p.74) afirma que
Ética e estética não podem ser reduzidas uma à outra nem deve ser
construído um abismo intransponível entre elas. A experiência
estética pode nos auxiliar para uma contínua reconstrução da
experiência, produzindo um ethos sensível que reconheça o próprio
12
limite de nosso reconhecimento do outro. Esse é o ponto de partida
para a abertura à compreensão e a abertura à alteridade.
A hermenêutica que tem como finalidade dizer mundo desde sua finitude e
historicidade mostra o respeito pelo outro, pois com o círculo hermenêutico considerase a alteridade sem render-se e ou anular as diferenças. Assim, acompanhando o espírito
da Bildung, a formação assume a amplitude em que formar-se ocorre nos encontros e
desencontros, nos jogos da vida: sair de si para volver-se mais crescido. Isso se torna
possível à medida que o diálogo constitui-se em um processo de comunicação
imaginativa entre os diferente/iguais e iguais/diferentes, como arte, como jogo artístico
da criação em que ética e estética conjugam-se.
5 E A EDUCAÇÃO?
A tradição ocidental freqüentemente percebe a diferença de modo
perigoso, destruindo-a e assimilando o estranho sob a reivindicação
da igualdade. Isso porque, na tradição moderna, a auto-afirmação da
subjetividade implica em dominar a diferença. (HERMANN, 2001, p.
133).
Assim, na tentativa de repensar e reescrever a educação, desde as contingências,
desde as multiplicidades, podemos nos servir das contribuições de Kant quanto às
faculdades da comunicação e da imaginação, das provocações de Nietzsche quanto à
ruptura da metafísica, de Heidegger quanto à manifestação sobre o esquecimento do ser
e à proposição do circulo hermenêutico e de Gadamer, essencialmente, quanto à sua
compreensão de diálogo profundo como força transformadora.
Após esse caminho, sinteticamente apresentado, podemos compreender a
educação como um lançar-se no jogo dialógico, como acontecer, em que emergimos
como nossos pré-conceitos e possibilitamos a emergência dos outros, dos diferentes
com seus pré-conceitos, mas pagando o preço da argumentação. Agora cabe aos
educadores assegurar promover, viver e assegurar o diálogo autêntico. Assim, a
conjugação entre ética e estética emerge como garantia ao ato educativo em que me
educo e educo à medida que me encontro e desencontro com os diferentes, à medida que
me lanço nos processos.
13
Emergimos desde o mundo vivido. Sem fim previamente definido que não seja a
disposição de lançar-se, educar é provocação, respeito e abertura ao mesmo tempo,
entre os diferentes sujeitos, entre os diferentes saberes. Educar é educar-se ante e no
acontecer do estranhamento, do inesperado. Educação é acontecimento, é acontecer.
Enfim, após problematizarmos o eu pontual e apresentarmos o círculo
hermenêutico e a educação como jogo, como abertura, como educar-se poderíamos nos
perguntar: Como vem ocorrendo as ações educativas? Quais os referenciais assumidos e
com se articulam tais ações? Proporcionam o diálogo profundo? Coladas essas
considerações esperamos dar início ao jogo educativo.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Conferencias sobre la filosofía política de Kant. Barcelona;
Buenos Aires; México: Paidós, 2003.
FABRI, Marcelo. Harmonização e estranhamento: a proposta de uma fenomenologia
responsiva. In.: TREVISAN, Amarildo Luiz; TOMAZETTI (Orgs.). Cultura e
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DO EU PONTUAL AO CÍRCULO HERMENÊUTICO