Crônica 11 – Concurso Narrativas do Fim
Na ordem do progresso
Aqui estou eu, um ser humano completo. Uma neurose, uns óculos de Sol, com
proteção UVA e UVB, um Respire Melhor, uma manteiga de cacau, algumas
artérias engorduradas, resquícios de fumaça, uma cirrose, etc. Prefiro não citar
o resto. Se for para resumir, sou apenas um fruto qualquer do desenvolvimento,
já com algumas partes de minha casca queimadas, apodrecendo. Mas isso é o
de menos. Com a chegada do verão, farei um sucesso que só, sem nem precisar
de bronzeador.
O negócio é o seguinte. Foi prometido, ou ao menos planejado, um
desenvolvimento sem fim dentro de nosso planeta limitado. Mas os recursos
estavam espalhados pelo planeta, e a grandiosa ideia de separar-nos em nações
fez com que cada uma destas, "por descuido ou poesia", fosse proprietária de
ao menos alguma parte desses recursos. Porém a distribuição foi injusta, de
modo que uma nação queria saquear a outra e, por fim, isso resultou em um
pouquinho de sangue e lágrimas. Claro, tudo em nome do progresso.
Finalmente o nosso planeta limitado não suportou a falta de limites de seus
habitantes. Achei estranho, já que na natureza tudo se regenera. Só depois fui
lembrar que não se tratava mais de natureza, mas de plaquês de cem.
Foi bem interessante esse momento de nossa História. Fiquei aguardando
ansiosamente pelo dia em que o dinheiro seria comestível, e por algum motivo
isso não ocorreu. Achei estranho, até porque do jeito que tudo corria, não mais
precisaríamos ou poderíamos, querendo ou não, desfrutar de uma fruta, um
legume ou uma bela paisagem rural. Penso que deixaram essa invenção para
depois. Deve ter sido aquela velha questão de prioridades. Pena que o relógio
da natureza não foi muito paciente, ou nós que fomos apressados demais, de
modo que o tempo se esgotou. Após tanta guerra, mudanças climáticas, tudo se
acabou. Só restou uma bela cortina de fumaça para fechar o espetáculo, e eu
sou o último telespectador. Além disso, não há mais nada aqui, a não ser alguns
milhares de dólares espalhados ao redor. Contudo, há algo de bom nisso. Ao
menos antes de morrer pude realizar meu sonho de ser rico. Só que isso não
vale mais nada. Estar aqui, depois do fim, é como viver na morte. Outro privilégio
é que agora entendo melhor de Literatura. O tédio me toma assim como tomou
Brás Cubas em sua eternidade. A diferença é que escrevo em meus eternos
últimos suspiros de vida, e não para humanos, mas para os anjos e demônios,
que nada fizeram além de assistir ao nosso espetáculo mortífero. Haveria, ainda,
quem perguntasse "- E agora, José? (...) Você marcha, José! José, para onde?”
Para mim isso é uma pergunta simples demais. Eu deveria voltar para o solo e
perpetuar o ciclo da natureza, mas como este está substituído pelo concreto, é
simples: tornar-me-ei matéria prima para o concreto. E só há um agravante, não
há o que perpetuar.
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