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Cantos da Alma e do Sangue*
O sujeito: o eu e o(s) outro(s)
Obedecendo a determinados imperativos estético-filosóficos, ensinou um dia
Fernando Pessoa que a identidade de cada sujeito não se preenche com a mudez
falaciosa da resignação desse sujeito face ao outro. E assim escreve: «Do nosso grau de
consciência do exterior nasce o nosso grau de c(onsciênci)a do interior» (PESSOA, F.,
1993: 408). Mais tarde, em 1974, sob o influxo de conhecidas configurações literárias e
político-ideológicas, Vergílio Ferreira iria desenvolver o mesmo raciocínio. Mais:
como que respondendo, dialogicamente, a Pessoa e ao projecto deste de unificação dos
eus, reforça o pressuposto segundo o qual a identidade de cada sujeito é potenciada
pela harmonia do eu consigo mesmo. Nesse sentido, avança com uma questão (que por
si só nos esclarece quanto à resposta): «Que significado pode ter a unidade de tudo, nem
que seja no seu sonho, se não temos a nossa?» (FERREIRA, V.: 1974: 15).
Estas ideias, desenvolvidas tanto pelo criador dos heterónimos, como pelo autor
do Espaço do Invisível, remetem-nos desde logo para as reflexões de um dos mais
importantes pensadores soviéticos no domínio das ciências sociais; referimo-nos a
Mikhaïl Bakhtine. Com a segurança metodológica e a convicção ideológica que
sempre o caracterizaram, Bakhtine referiu-se por diversas vezes ao fenómeno da
alteridade, encaminhando-o quase sempre para o terreno estético e filosófico. Talvez
por isso terá recorrido à imagem do espelho para sintetizar precisamente esse fenómeno:
«[…] quando me vejo ao espelho», escreve, «não estou sozinho […], encontro-me sob o
domínio da outra alma». Pouco depois, completa este raciocínio, ao defender que, para
se ver a ele mesmo, terá que viver, não na categoria do eu uno e indivisível, mas na
«categoria do outro» (BAKHTINE, M. 1984: 53-55). Ou seja: para que o sujeito
* Este texto resulta de uma comunicação proferida em Abril de 2000, no 1º Congresso
Internacional sobre a “Guerra Colonial: Realidade e Ficção”, realizado em Lisboa, no Instituto de Defesa
Nacional. Posteriormente, foi publicada nas Actas desse mesmo Congresso.
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consiga aprofundar a consciência de si mesmo e dos outros, e assim enriquecer-se, terá
que se desdobrar internamente num outro eu.
Contudo, de um determinado ponto de vista, esse processo não escapa a alguma
perversidade: é que, se, por um lado, no contexto pessoal e interpessoal, o sujeito,
pelo desdobramento, aprende a conhecer (e a melhorar) os seus limites, por outro, esse
desdobramento confere ao próprio sujeito (ainda que este não se aperceba) uma ainda
maior autonomia. E é nesta maior autonomia que justamente se poderá encontrar o
desvirtuamento do processo da alteridade, já que, pensará o sujeito, “se me vejo com
capacidade para me criticar, terei tendência a ver-me com capacidade para criticar
também o outro”.
Recuperação de identidades
Ora, o que tem toda esta problemática a ver com os objectivos deste estudo? A
relação encontra-se em três níveis, todos eles articulados entre si: em primeiro lugar,
se considerarmos essa problemática no terreno da produção estético-literária — a poesia
africana de expressão portuguesa (angolana e moçambicana, sobretudo); em segundo
lugar, ainda que mediatamente, se alvejarmos a mesma questão num palco históricocultural enquadrado fundamentalmente pelo paradigma do sistema cultural e colonial
português; por último, se privilegiarmos a sintonia entre alguma produção literária
portuguesa e africana de expressão portuguesa (desenvolvida num contexto histórico
comprometido com a guerra colonial) e um conjunto de procedimentos de coloração
ideológica que traduzem um pragmatismo marcante: a crítica dos absurdos da guerra e a
tentativa de recuperação de identidades: de um lado, a identidade africana (abalada pela
assimilação e pela exclusão); de outro, a identidade portuguesa (desconfiada de uma
postura ainda recente).
E porquê a reconstituição da identidade portuguesa? Não porque o exija a
noblesse, nem tão-pouco o politicamente correcto, mas por três outros motivos: por um
lado, porque o presente nos atinge de forma inflexível — e obriga-nos a rever o passado
e os homens que o construíram; por outro lado, porque todos somos sujeitos (e o
sujeito, explica Manuel Faria Carrilho, «define-se pela referência aos outros»
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[CARRILHO, M. F., 1989: 9]); finalmente, the last but not the least, porque, sendo
portugueses, devemos mostrá-lo, ou, parafraseando Alberto Caeiro, devemos
sobretudo ser do tamanho que vemos e não do tamanho da nossa altura — afinal, a
mesma razão pela qual «um país tem o tamanho dos seus homens», como lembrava
Manuel Alegre em meados dos anos 60 (ALEGRE, M., s/d: 22).
A falsificação da consciência do sujeito negro
“Cantos da Alma e do Sangue”, assim se intitula este estudo. Reconhece-se
facilmente neste título um verso de um conhecido poema de António Jacinto, intitulado
«Poema da alienação» (publicado em 1961, em Poemas). Aí, este paladino do
Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (e, na década de 50, uma das
personalidades mais proeminentes da geração da Mensagem), apontando tacitamente
para uma consciencialização posterior (ratificada, aliás, pelo resto do poema), escreve:
«Não é este ainda o meu poema / o poema da minha alma e do meu sangue»
(FERREIRA, M., 1988: 136). Ainda que denotando António Jacinto uma influência
evidente dos parâmetros ideológicos neo-realistas, o sujeito poético do «Poema da
alienação» pretende, ao mesmo tempo, desligar-se dos modelos europeus, reflectir sobre
os valores africanos (angolanos) com os quais se identifica, e, em última instância,
lembrar que o povo angolano podia agir contra o esvaziamento da identidade promovido
pelo sistema colonial. Esta situação encontra-se, aliás, bem ilustrada nos últimos seis
versos:
Mas o meu poema não é fatalista
o meu poema é um poema que já quer
e já sabe
o meu poema sou eu-branco
montado em mim-preto
a cavalgar pela vida (id.: 138).
Como se vê, estas palavras conjugam três ideias que importa reter: num primeiro
nível, prevalece o desdobramento do sujeito poético em dois eus (um eu «branco»
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[António Jacinto é branco] e um eu «preto» [com o qual se solidariza ao longo de todo
o poema]); depois, ressoa a imagem do negro colonizado com o branco colonizador
montado sobre ele; por último, o apelo ao leitor. E se este apelo se insinua ao longo do
poema, ele torna-se explícito nestes últimos versos, apelo esse reforçado precisamente
pelo recorte de vitalidade da imagem do «cavalo»; o sujeito poético deixa então de se
encarar como uma vítima conivente com um fatalismo qualquer e o seu «poema»
refulge com o desejo de uma mudança. Na década de 50, aliás, essa mudança foi
também desejada, e variavelmente cantada, por Ermelinda Pereira Xavier, Alda
Lara, Humberto da Sylvan, Henrique Guerra, Luandino Vieira, António Cardoso,
Henrique Abranches, entre outros — uma mudança construída paulatinamente com a
denúncia da falsificação da consciência do negro africano operada pelo colono
durante o longo processo de assimilação, exclusão e/ou segregação1. Por essa
falsificação entendeu-se: uma repetida despersonalização e coisificação do sujeito
negro; uma contínua polarização entre valores positivos e valores negativos; um
esvaziamento do poder político dos chefes das populações africanas; o estabelecimento
de colonos em terras que pertenciam, pelo menos moralmente, ao indígena africano; o
desmembramento das estruturas e dos valores das sociedades indígenas; a exploração
do negro muitas vezes sob a aparência de uma pretensa «missão civilizadora».
Mais: essa falsificação, denunciaram-na igualmente Maurício Gomes,
Agostinho Neto e Viriato da Cruz: Maurício Gomes, no poema «Estrela pequenina» —
quando o seu apelo e as suas palavras acerca dos «angolanos [escravos] / Que fizeram o
Brasil!» repousam comovidamente sobre a dor de ser negro e sobre a fragmentação do
sujeito angolano em «mil pedaços de pele / Arrancados a chicote» (FERREIRA, M.,
1988: 81); Agostinho Neto, em Sagrada Esperança, ao criticar a alienação cultural, a
exploração económica e a repressão policial sobre o negro africano; Viriato da Cruz,
em «Mamã Negra (Canto de Esperança)», convocando agora o drama negro de todo o
mundo, apelando para o fim da alienação e anunciando a confraternização universal
num holístico «dia da humanidade».
1 - O processo de aculturação na África lusófona estendeu-se igualmente ao campo da produção
literária; até a própria instalação do prelo nos anos 40 e 50 do XIX negou em parte, justamente, o
desenvolvimento pleno de uma literatura autóctone. Já então uma recente burguesia negra e mestiça se
encontrava afastada dos antigos valores (cf. FERREIRA, M., 1989: 30).
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A poesia de guerrilha
De certa forma, esta questão reenvia-nos de novo para a dinâmica identitária do
funcionamento estratégico e ideológico do discurso colonial. Esse discurso — onde um
implacável passado colonial não deixava esquecer as noções de identidade de
referência, de periferização do sujeito, de suprematismo do colonizador, de poder
representativo do centro — obriga-nos agora a pensar nos cerca de 75 milhões de
africanos mortos ao longo do que Cornel West denominou de “assalto à humanidade
Negra”. No caso português, obriga-nos a ter consciência da nossa própria
fragilidade; a mesma consciência que, segundo Almada Negreiros, faz «gigantes e
heróis»; a mesma consciência que nos permite equacionar e apreender estética e
humanamente o outro; a mesma consciência, afinal, que nos obriga a aceitar o outro, a
sua singularidade, a sua diferença. Podemos até nem concordar com a diferença dita
pelo outro; mas impõe-se-nos o dever não só de defender o direito de o outro dizer essa
diferença, como ainda de nomear esse outro, quando por essa nomeação se entende o
simples facto de o reconhecer como sujeito.
Ora, num contexto geral de reflexão sobre o passado (nomeadamente, sobre um
período tão recente como foi a guerra colonial, e anti-colonial), e sendo a literatura
uma prática inevitavelmente contextualizada, facilmente se compreende a razão de ser
dos textos de guerrilha — produzidos entre os anos de 1961 e 1974, com uma
afirmação ideológica evidente, escritos sobretudo por quem vivenciou directamente essa
mesma guerrilha. Talvez por isso se compreenda também a razão de ser de obras como
Mayombe (1970) e As aventuras de Ngunga (de Pepetela, este último escrito em 1972),
As Lágrimas e o Vento (1975) (de Manuel dos Santos Lima) e Caderno de Um
Guerrilheiro (1974) (de João-Maria Vilanova) (sobre esta questão, leia-se
LARANJEIRA, P., 1994). Talvez por isso se justifique igualmente o aparecimento das
antologias Poesia de Combate I (1971) e II (1977), publicadas pela Frente da Libertação
Nacional, cujos contornos ideológicos convergiam na exortação à luta pela libertação e
se confinavam fundamentalmente à denúncia do colonialismo (aquele a que, em
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Jornada de África, de Manuel Alegre, o guerrilheiro angolano Domingos Da Luta se
referia, quando falava com o companheiro Trinta e Nove2).
Trata-se, é certo, de uma poesia de circunstância, mas alguns versos ganharam
rapidamente estatuto de refrão: «Vamos marchando / e as vozes vão cantando», alerta
Marcelino dos Santos (em «Nampiali») (FERREIRA, M., 1984: 199); «[…] o sangue /
é terra onde cresce a liberdade», declara Sérgio Vieira (em «Canto de Guerrilheiros»)
(id.: 310); «Na nossa terra / as balas começam a florir», ou «Há uma mensagem de
justiça em cada bala que disparo», proclama Jorge Rebelo (em «Vem contar-me o teu
destino, irmão» e em «Carta de um combatente») (id.: 366 e 369, respectivamente).
A literatura da e sobre a guerra colonial
E que dizer dos que, do lado português, representaram literariamente a guerra
colonial? Antes de tudo, e já o fez Pires Laranjeira (LARANJEIRA, P., 1991),
importa sublinhar o seguinte: a literatura cuja temática é a guerra colonial trouxe
algumas mudanças no contexto da produção literária portuguesa, sem que por tal se
pressuponha que tenha nascido uma literatura diferente, marcada por conceitos e
procedimentos técnico-narrativos novos. O que acontece é que essa literatura tem
assumido uma importância particular para o leitor português que, sobretudo esse,
vivenciou, directa ou indirectamente, aquela guerra.
Como quer que seja, estudar a literatura da e sobre a guerra colonial implica ter
necessariamente em conta a crítica movida por alguns escritores aos absurdos da guerra.
E se, após o 25 de Abril de 74, essa crítica se assumiu por diversas vezes, com maior
ou menor desenvoltura, sob a forma de registo autobiográfico, um outro sentido se
insinuava tácita e progressivamente: o de resgate de uma identidade hipotecada com a
cumplicidade de um regime — que obrigava a «conjugar na primeira pessoa o verbo
matar e o verbo morrer», certifica Manuel Alegre (ALEGRE, M., 1989: 70); o de
resgate de uma identidade desvirtuada pelo estigma da guerra, como também escreve o
narrador em Jornada de África: «Para Angola e em força. As mães redobram de
2 - Às perguntas insistentes de Trinta e Nove, o guerrilheiro angolano Domingos Da Luta «[…]
está farto de lhe explicar que o inimigo não é o branco, a cor da pele não interessa, o inimigo é o
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actividade em suas lidas, preparam roupas, malas e compotas, à noite choram. Os pais
sentam-se calados olhando para dentro. Se apanham os filhos distraídos demoram neles
o olhar aflito, carne de sua carne, quem sabe se para canhão. E de repente ficam velhos»
(id.: 179).
Lembremo-nos ainda como, antes do 25 de Abril, Manuel Alegre se insurgia
contra os absurdos da guerra colonial; que outro alcance senão este terão, por exemplo,
alguns poemas que integram a antologia Praça da Canção (1965)? «[…] a palavra vida
rima / com a palavra morte em Nambuangongo», regista em «Nambuangongo, meu
Amor» (ALEGRE, M., s/d: 110); «[…] vento que vens do lado da guerra / sem trovas /
sem trovas / carregado dos ecos da metralha […]», escreve em «Toada do Vento
Africano»; e, pouco depois, continuando a dirigir-se a esse mensageiro, pede-lhe:
Traz-me tudo o que quiseres.
Mas por favor ó vento amigo
vento viageiro
Não tragas mais os mortos do meu povo (id.: 122).
Mais flagrante e pujante se torna esta denúncia na antologia O Canto e as Armas
(1967), do mesmo Manuel Alegre, em poemas como «Metralhadoras cantam», «É
preciso um País» e «As mãos»: nesses poemas se firma o cotejo e a consonância
desabrida entre o som da guerra e o silêncio da morte, quando o sujeito poético se refere
às «Metralhadoras [que] cantam a canção da guerra» (ALEGRE, M., 1970: 40); nesses
poemas se projecta a contínua demanda de um sujeito poético em busca da pátria onde a
“vida foi traída” (id.: 51). Nesses poemas refulge a inscrição ambivalente das mãos que
edificam e subvertem, das mãos que revitalizam e pervertem: «Com mãos se faz a paz
se faz a guerra», escreve o poeta; e acrescenta: «Com mãos tudo se faz e se desfaz» (id.:
121).
Correspondendo ainda às linhas de força acima descritas, a literatura portuguesa
após o 25 de Abril que tem como pano de fundo a temática da guerra colonial acentua
gradativamente a crítica de um passado então recente. Trata-se de uma literatura que
procura rever a identidade nacional, uma literatura que regressa a África para redifinir
espaços preenchidos pela História e destilados pelo crivo da cultura oficial. Neste
colonialismo […].» (ALEGRE, M. 1989: 189).
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âmbito, por exemplo, António Lobo Antunes, com Os Cus de Judas (1979), João de
Melo, com Autópsia de um Mar de Ruínas (1984), Lídia Jorge, com A Costa dos
Murmúrios (1988), e novamente Manuel Alegre, com Jornada de África (1989),
constituem referências nucleares e paradigmáticas, cujas narrativas são envolvidas por
uma considerável incidência pragmática, em função das directrizes ideológicoliterárias de que não se demitem. Essas directrizes são essencialmente três: antes de
mais, um certo derrotismo e antitriunfalismo com que se analisa a História (desencanto
esse confessado naqueles «lusíadas do avesso», presentes n’A Jornada de África, na
carta que Sebastião escreve a Bárbara); por outro lado, a coloração negativa com que se
pinta o desvanecimento de uma sociedade colonial (por demais visível n’A Costa dos
Murmúrios, nas vaticinadoras palavras do General, quando prenuncia o futuro
fragmentado do Hotel Stella Maris); finalmente, a representação do contexto social e
histórico-político que envolveu a guerra colonial e os que nela directa ou indirectamente
participaram… ou não…, como pungentemente se critica n’Os Cus de Judas:
Éramos peixes […], treinados para morrer sem protestos, para nos estendermos sem
protestos nos caixões da tropa, nos fecharem a maçarico lá dentro, nos cobrirem com a
Bandeira Nacional e nos reenviarem para a Europa no porão dos navios, de medalha de
identificação na boca no intuito de nos impedir a veleidade de um berro de revolta. […]
Éramos peixes, somos peixes, fomos sempre peixes, […] espiados pelos mil olhos ferozes da
PIDE, condenados ao consumo de jornais que a censura reduzia a louvores melancólicos ao
relento de sacristia de província do Estado Novo, e jogados por fim na violência paranóica da
guerra, ao som de marchas guerreiras e dos discursos heróicos dos que ficavam em Lisboa,
combatendo corajosamente o comunismo nos grupos de casais do prior, enquanto nós, os
peixes, morríamos nos cus de Judas uns após outros, tocava-se um fio de tropeçar, uma
granada pulava e dividia-nos ao meio, trás! (ANTUNES, A. L., 1997: 123-125).
Desta rede temática, onde vibram exigências éticas de um imaginário social
suspenso sobre o escritor, não se pode dissociar entretanto uma dimensão pedagógica
com que, em última instância, aqueles textos acabam tangivelmente por se
comprometer; rever o passado, é certo, mas para com sabedoria aprender com ele; não
basta conquistar a sabedoria, é preciso usá-la, ensinou Cícero. Por isso, esses textos,
escreve Margarida Ribeiro, revestem-se «de um valor duplo intrinsecamente
cúmplice: são importantes elementos de reflexão sobre o modo europeu/português de
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estar em África […] e simultaneamente peças indispensáveis para entender o modo de
estar hoje em Portugal» (RIBEIRO, M., 1998: 149). Por isso também esses textos nos
convidam a usufruir da liberdade, não abdicando dela; por isso igualmente esses textos
procuram explicar o «sentimento esquisito de absurdo», aquele «gigantesco,
inacreditável absurdo da guerra» que repetida e violentamente deflui das palavras do
Capitão e do narrador d’Os Cus de Judas (ANTUNES, A. L., 1997: 28, 61 e 74,
respectivamente); por isso ainda esses textos nos convocam para nos reencontrarmos à
custa da nossa perda.
De novo o eu e o outro
No que diz respeito à relação com o outro, Mikhaïl Bakhtine esclareceu-nos que
o que verdadeiramente interessa não é que esse outro seja igual ao eu, mas que ele
traduza a diferença, tantas vezes julgada negativamente como resultado do
desconhecimento do lugar ocupado por aquele na esfera de valores em que se insere:
«Somente o outro», escreve, «pode […] fazer-me viver o finito humano, a sua
materialidade empírica delimitada» (BAKHTINE, M., 1984: 56). Por esta perspectiva,
torna-se, assim, necessário nomear o outro, sem que sobre essa nomeação pendam
interesses político-económicos.
No que diz respeito à guerra em si, aos que nela combateram, aos que dela
regressaram: doutrinou Heraclito que a guerra é a mãe de todas as coisas; mas à
guerra se referiu Lobo Antunes como uma «dolorosa aprendizagem da agonia»
(ANTUNES, A. L., 1997: 43) de cujas recordações não se isenta nenhum sobrevivente;
escreve o narrador n’Os Cus de Judas: «Trazemos o sangue limpo»; e acrescenta, com
uma ironia mordaz:
[…] as análises não acusam […] o homem enforcado pelo inspector na Chiquita, nem
a perna do Ferreira no balde dos pensos, nem os ossos do tipo de Mangando no telhado de
zinco. […] tenho o mijo limpo, […] o mijo irrepreensivelmente limpo, posso regressar a
Lisboa sem alarmar ninguém, sem pegar os meus mortos a ninguém, a lembrança dos meus
camaradas mortos a ninguém, voltar para Lisboa, entrar nos restaurantes, nos bares, nos
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cinemas, nos hotéis, nos supermercados, nos hospitais, e toda a gente verificar que trago a
merda limpa no cu limpo […] (id.: 233-235).
Alegou Fernando Pessoa que a literatura aponta continuamente a nossa
imperfeição. Ora, quando se tem em conta o perfil ideológico-literário das narrativas e
dos poemas referidos (tantos outros deveriam ser evocados!), assim como a latitude
pedagógica em parte tributária desse perfil, torna-se necessário participar com eles —
com esses “cantos da alma e do sangue” — na procura daquele ideal que nasce da
consciência que temos da nossa imperfeição. Mas, acima de tudo, é imperativo que com
eles procuremos a complacência da relação eu—outro, dignificada, apesar de tudo, com
a relação resguardada de cada sujeito consigo mesmo.
Terá sido para esta relação que, na narrativa de Manuel Alegre, Jornada de
África, apontam as palavras que o Alferes Sebastião deixou com o Poeta. Antes de,
numa emboscada, desaparecer no mato, Sebastião deixa ao amigo uma mensagem; e o
alcance dessa mensagem investe-se de um significado nuclear cujos matizes marcaram
implacavelmente o protagonista, é certo, mas também os que, em guerra, sob a sombra
da morte, conviveram de perto com o verbo morrer e com o verbo matar. Diz essa
mensagem, e termino:
Talvez tenhamos de nos perder aqui para chegar finalmente ao porto por achar: dentro
de nós. Talvez tenhamos de não ser para podermos voltar a ser.
Há outro Portugal, não este. E sinto que tinha de passar por aqui para o encontrar. Não
sei se passado, não sei se futuro. Não sei se fim ou se princípio. Sei que sou desse país: um país
que já foi, um país que ainda não é.
É por ele que me apetece dar de novo Santiago (ALEGRE, M., 1989: 231).
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