O DUALISMO EM “O LOBO DA ESTEPE” DE HERMANN HESSE
THE DUALISM IN “THE STEPPE WOLF” BY HERMANN HESSE
Elise Schmitt1
RESUMO: Neste trabalho será focalizado o dualismo característico do personagem Harry
Haller, também chamado de “lobo da estepe” (Steppenwolf) por apresentar personalidades de um
cidadão normal e de um lobo. Em constante conflito com sua identidade, o personagem sofre de
desequilíbrio e melancolia, originados da educação severa e extremamente religiosa que recebeu
de seus amáveis pais e mestres, o que supostamente provocou a interrupção de seus desejos
(Brechen des Willens) na base de sua formação. O personagem se evade do mundo civilizado para se
entregar a uma natureza lupina, o que constitui uma crítica a esse mesmo mundo. Nessa obra,
escrita durante a República de Weimar, em cuja literatura expressionista havia um pano de fundo
que tematizava a crise em forma de crimes e violência, Hesse usa o tema da desagregação e
deformação do indivíduo, bem como da decadência cultural.
PALAVRAS-CHAVE: Harry Haller; Lobo da estepe; dualismo; Literatura de Weimar.
ABSTRACT: This work focuses on the dualism which characterizes the character Harry Haller,
also called "wolf of the steppe" (Steppenwolf) for presenting figures of a normal citizen and a
wolf. In constant conflict with his identity, the character suffers from imbalance and melancholy,
produced by the extremely strict upbringing and religious education he received from his loving
parents and teachers, which allegedly interrupted his desires (Brechen des Willens) on the basis of
his formation. The character evades from the civilized world to engage in a lupine nature, which
is a critique against that world. In this work, written during the Weimar Republic, whose
expressionist literature had a background that thematized the crisis in the form of crime and
violence, Hesse uses the theme of disintegration and distortion of the individual as well as the
cultural decline.
KEYWORDS: Harry Haller, the Steppenwolf; dualism; Literature of Weimar.
Introdução
Durante a República de Weimar, principalmente de 1920 a 1929, grande parte da literatura
alemã apresentava como temática o dualismo, em que se tratava dos conflitos com a própria
identidade e de outras problemáticas resultantes das atrocidades vividas durante a I Guerra
Mundial. Esse dualismo foi usado como pano de fundo pelos autores expressionistas para
tematizar a crise em forma de crimes e violência. Contudo, nem tudo era absolutamente novo no
1Elise
Schmitt, Professora de Língua e Literatura Alemã na UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do
Paraná, Campus de Marechal Cândido Rondon; e-mail: [email protected]
Elise Schmitt
estilo dessa época, pois muito do que passaria a ser focalizado já havia surgido no Romantismo,
como, por exemplo, a subjetividade, o imaginário e a fantasia.
Com a I Guerra Mundial, o terceiro elemento da constelação ternária – Sujeito, objeto, Deus
– vigente até o Idealismo, teria quase que desaparecido, tendo surgido, assim, o dualismo –
sujeito e objeto – e entre estes, agora, figurava o imaginário que, por sua vez, tornava-se forte e
intenso. No subjetivismo dualista da literatura da República de Weimar está presente uma fantasia
caótica, insegura a ponto de perder completamente sua orientação, sendo guiada apenas pelos
instintos.
Em O Lobo da Estepe, Hesse usa o tema da desagregação e da deformação do indivíduo, e
também da decadência da cultura. Neste trabalho sobre o romance de Hesse, o foco será o
dualismo vivido pelo personagem Harry Haller, também denominado “lobo da estepe”,
Steppenwolf, pelo fato de viver uma personalidade dupla que alterna entre a de um cidadão normal
e a de um lobo. O livro pode ser dividido em quatro partes distintas: Prefácio do editor,
Anotações de Harry Haller, nas quais está inserido o Tratado do Lobo da Estepe e, por
último, sua passagem pelo Teatro mágico. Sobre sua obra, o autor diz:
Möge jeder aus ihr machen, was ihm entspricht und dienlich ist! Aber es wäre mir doch lieb,
wenn viele von ihnen merken würden, dass die Geschichte des Steppenwolfes zwar eine
Krankheit und Krisis darstellt, aber nicht eine, die zum Tode führt, nicht einen Untergang,
sondern das Gegenteil: eine Heilung.2 (HESSE, 1972, p.6)
Após fazer uma breve resenha de cada uma destas passagens ainda será traçado um paralelo
entre a vida de Hermann Hesse, o autor da obra, e a do personagem Harry Haller e, por último,
um pequeno relato sobre a receptividade da obra na Alemanha e em outros países.
1. Prefácio do editor
Um editor fictício, no prefácio do livro, apresenta um homem muito estranho que fica
conhecendo superficialmente quando este aluga um pequeno apartamento na casa de sua tia. De
2Que
cada um faça dela, o que a ela corresponda e lhe for útil! Mas seria do meu agrado, se muitos deles percebessem
que a história do lobo da estepe, na verdade, representa uma doença e uma crise, mas não uma que leve à morte, não
um declínio, mas sim o contrário: uma cura. (Tradução nossa)
Elise Schmitt
imediato, percebe que o estranho hóspede estaria doente de espírito, deprimido ou que tivesse
algum desvio de caráter. Era insociável, vivia isolado em seu mundo. Apesar disso, havia nele
certa simpatia e demonstrava ser muito inteligente. Conforme o fictício editor, sua “resistência,
com o correr do tempo, foi se transformando em simpatia, em compaixão para com aquele
profundo e permanente sofredor, cujo isolamento e cuja morte íntima eu contemplava.“
(HESSE, 1971, p.8)
Harry Haller vive em enorme conflito com sua identidade. Como supõe o editor, os
motivos desse desequilíbrio e melancolia estariam no fato de o personagem ter sido educado em
todos os sentidos por pais e professores muito amáveis, porém severos e muito religiosos, o que
teria tornado o Brechen des Willens3 como base de sua formação. Assim, aprendeu a odiar a si
mesmo e, com a falta do amor próprio, tornava-se impossível o exercício do amor ao próximo.
Hermann Hesse apresenta tentativas de evasão do mundo civilizado, atribuindo ao personagem
Harry Haller uma natureza lupina como crítica a esse mesmo mundo.
O personagem-editor, durante o período em que tivera alguns contatos com Haller, por
morarem na mesma casa, a princípio sentia uma certa rejeição a esse, mas que, com o passar do
tempo, chegou a adquirir uma certa simpatia por ele, apesar de que esta estava baseada numa
profunda solidariedade. Diz em relação a Haller:
Ich erkannte, dass Haller ein Genie des Leidens sei, dass er, im Sinne mancher Ausprüche
Nietzsches, in sich eine geniale, eine unbegrenzte, furchbare Leidensfähigkeit herangebildet
habe. Dass nicht Weltverachtung, sondern Selbstverachtung die Basis seines Pessimismus sei,
denn so schonungslos und vernichtend er von Institutionen oder Personen reden konnte, nie
schloss er sich aus, immer war er selbst der erste, gegen den er seine Pfeile richtete, war er selbst
der erste, den er hasste und verneinte...4 (HESSE, 1958, p. 193)
2. Anotações de Harry Haller
O protagonista Harry Haller, agora como autor, com foco narrativo em primeira pessoa,
3
Não encontramos uma tradução exata para o termo, por isso o traduzimos literalmente: impedimento do querer
ou interrupção dos desejos.
4
Eu reconheci que Haller era um gênio do sofrimento, que ele, no sentido de muitas expressões de Nietzsche,
teria formado em si uma aptidão genial, ilimitada e terrível de sofrimento. Que não seria o desprezo pelo
mundo mas o desprezo por si mesmo a base do seu pessimismo, pois tão impiedoso e aniquilador como ele
conseguia falar de instituições e pessoas, nunca ela excluía a si mesmo, sempre era ele o primeiro contra
quem ele apontava sua flecha, era a si mesmo que ele odiava e negava...(Tradução nossa)
Elise Schmitt
antes de ir embora da casa em que também morava o “editor fictício”, entrega seu manuscrito a
ele. Pelo fato do editor ter conversado algumas vezes com Harry Haller e tê-lo conhecido um
pouco melhor, tornou-se possível que, em parte, entendesse e até aprovasse as suas “anotações”.
Na parte final do prefácio, ele fala sobre elas:
Hesitaria em transmití-las a outrem se nelas visse apenas as fantasias mórbidas
de um pobre e solitário doente de espírito. Mas nelas vejo algo mais: um
documento da época, pois a enfermidade anímica de Haller é, hoje o percebo,
não o capricho de um solitário, mas a enfermidade do próprio tempo, a neurose
daquela geração a que pertencia Haller, neurose que não atacava em absoluto
os débeis e insignificantes, mas precisamente os fortes, os mais espirituais, os
mais fortes. (HESSE, 1971, p.18)
Com essas palavras, principalmente ao falar da “enfermidade do próprio tempo”, o editor
refere-se à época da República de Weimar, dos anos subseqüentes à Primeira Guerra Mundial,
pois foi neste período que foi escrita a obra publicada em 1927.
Em suas “anoatações”, como que num diário, Harry Haller, o personagem narrador,
descreve seu dia, com lembranças de sua infância e juventude, faz uma análise de sua vida e chega
à conclusão de que deve dar a ela um novo sentido, pois estaria perdendo o rumo. Sentia-se um
verdadeiro lobo da estepe, “aquele animal extraviado que não encontra abrigo, nem alegria, nem
alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.” (HESSE, 1971, p.26)
Harry Haller, um intelectual em conflito com sua identidade, havia esperado por vários
anos pela solidão em que vivia, pois a imaginava como sinônimo de independência, certamente
uma conseqüência do tipo de educação rígida que recebera em sua juventude. Em seu casamento,
ele havia sido abandonado pela esposa mentalmente adoecida, tendo, assim, o amor e a confiança
se transformado em ódio e luta mortal. Não raro ele sonhava com os gênios imortais da música e
da literatura e via-se conversando com eles, principalmente com Goethe e Mozart.
Estas anotações de Harry Haller com o “tratado do lobo da estepe”, nelas inserido,
podem ser chamadas de paratexto, por este conduzir a um outro determinado texto, que é a parte
em que relata a passagem de Haller pelo teatro mágico, com os subtítulos Nur für Verrückte5 e
Nicht für Jedermann6, onde o personagem é induzido a mudar sua maneira de pensar sobre a vida.
5
6
Só para loucos.
Traduzido por Barbosa como “só para raros”
Elise Schmitt
Portanto o “Tratado” pode ser entendido como uma teoria da antecipação, que tenta generalizar
de forma precisa o problema existencial individual de Harry Haller. Assim também o baile de
máscaras teria uma função preparatória para encaminhá-lo ao teatro mágico. Este ritual de
mudança na vida de Haller já vinha se intensificando a partir do momento em que ele encontrou
e conheceu a cortesã Hermine, personagem que lhe ensinou os “prazeres da vida”, como a dança
e o sexo, para o que ela também encaminhou a sua amiga Maria, com quem Haller teve um
relacionamento baseado nos prazeres carnais. Ele já havia se submetido a todos os ensinamentos
de Hermine, e via nela um amigo de infância, chamado Hermann. Conforme Bayer (2004, p.1),
em algumas obras de Hesse, inclusive no “Lobo da Estepe” nós nos deparamos com pessoas
andrógenas, as quais nunca se deixam agregar claramente a um só sexo e, por isso, ostentariam
um efeito erótico especial. Isto poderia ser atribuído à Hermine em algumas passagens da obra.
3. Tratado do Lobo da Estepe
Este tratado apareceu em forma de livrinho de feira, entregue a Harry Haller por um
vendedor ambulante, cujo autor, deduz-se, tenha sido o próprio Pablo do “Teatro mágico”, sobre
quem falaremos mais adiante. O texto, escrito na perspectiva da terceira pessoa do singular, trata
de Harry Haller, o lobo da estepe, que anda sobre duas pernas e que nunca havia aprendido a
estar satisfeito consigo mesmo. Questiona-se se Harry Haller estaria sabendo que ele não era um
humano, mas um lobo da estepe, ou então, antes de seu nascimento como lobo, ele teria sido
transformado em humano; ou ainda, nascido como homem, mas dotado por uma alma de lobo e
possuído por ela. Entretanto, havia ainda a possibilidade de que sua vida lupina fosse apenas uma
imaginação ou uma doença. Por que, se em outras pessoas que também teriam vivido este
dualismo (humano/animal), o lado animal vivia em paz com o lado humano e até se ajudavam,
sem ferir um ao outro, o lobo e Harry viviam em constante inimizade mortal? E este conflito
entre as duas almas transformou a vida de Harry Haller num horror, pois ele vivia infeliz, apesar
de ser amado por algumas pessoas. Mas estas pessoas amavam apenas seu lado humano e se
decepcionavam quando descobriam seu lado lupino, uma vez que este as fazia infelizes.
Conforme o autor desse tratado, existem muitas pessoas com duas almas, dois seres
dentro de si. Pessoas como Harry, principalmente artistas e intelectuais, teriam uma alma dividida
Elise Schmitt
entre Deus e o diabo, o homem e o lobo, o santo e o estróina, a razão e o impulso, a capacidade
de ser feliz e de sofrer, entre outros pólos opostos. Harry Haller passou a perceber que a sua tão
esperada independência o fazia perecer. Pertencia aos suicidas, sem necessariamente conviver
diretamente com a morte. Havia sim, pensado no suicídio, planejado para quando completasse 50
anos (estava agora com 47) e, caso não tivesse alternativa, faria uso da “saída de emergência”,
apesar de saber que esta seria uma solução mesquinha e ilegítima. (HESSE, 1958, p.233)
O autor do tratado compara o suicídio à febre por existirem naturezas que com qualquer
doença tendem a ela; também os suicidas, por qualquer abalo, pensam no suicídio. Ele diz que
deveriam esperar pela morte natural, o que seria mais bonito. Fala também do humor, um mundo
imaginário, mas soberano, que permanece burguês, apesar de que o verdadeiro burguês seria
incapaz de entendê-lo. Quer com isso dizer que o lado burguês em Harry Haller não dá espaço ao
humor, mas o que se encarrega disso seria seu lado animal.
O tratado, na verdade, seria uma preparação para o teatro mágico, ao qual Harry será
conduzido e onde homem e lobo são colocados olho a olho, onde sob a luz do humor, entre
outras possibilidades, provavelmente seria firmado uma Vernunftehe7. (HESSE, 1958, p.241)
Assim ele poderia encontrar o necessário para a libertação de sua descuidada alma.
Embora predomine o dualismo ocidental, faz-se referência à pluralidade oriental. De
acordo com ela, as almas que habitam um corpo não seriam apenas duas ou cinco, mas
incontáveis. (HESSE, 1958, p. 245). Compara-se o ser humano a uma cebola com suas várias
cascas, ou com um tecido formado por muitos fios. Mas Harry atribuía tudo o que lhe acontecia
apenas ao humano ou ao lobo. O autor do “Tratado” contesta Harry Haller, por ele atribuir tudo
apenas aos seus dois lados, ao humano e ao lupino:
Er glaubt, wie Faust, dass zwei Seele für eine einzige Brust schon zu viel seien und die Brust
zerreißen müssten. Sie sind aber im Gegenteil viel zu wenig und Harry vergewaltigt seine
arme Seele furchtbar, wenn er sie in so einem so primitiven Bilde zu begreifen sucht. Harry
verfährt, obwohl er so ein hoch gebildeter Mensch ist etwa wie ein Wilder, der nicht über zwei
hinaus zählen kann. Er nennt ein Stück von sich Mensch, ein andres Wolf, und damit
glaubt er schon am Ende zu sein und sich erschöpft zu haben. In den Menschen packt er alles
Geistige, Sublimierte oder Kultivierte hinein, das er in sich vorfindet, und in den Wolf alles
Triebhafte, Wilde und Chaotische. Aber so simple wie in unsern Gedanken, so grob wie in
unsrer armen Idiotensprache geht es im Leben nicht zu, und Harry belügt sich doppelt, wenn
er diese negerhafte Wolfsmethode anwendet. Harry rechnet, so fürchten wir, ganze Provinzen
7
Casamento de conveniência.
Elise Schmitt
seiner Seele schon zum „Menschen“, die lange noch nicht Mensch sind, und rechnet Teile
seinesWesens zum Wolfe, die längst über den Wolf hinaus sind.8 (HESSE, 1958, p.246)
Como também pode ser visto através dessa citação, perto do final do “Tratado”, o leitor
consegue entender que aquilo que até então foi dito sobre a personalidade de Haller teria sido
apenas uma simplificação do problema, pois sua vida não estaria apenas oscilando entre dois
pólos, mas entre inúmeros pares de pólos. Esta perspectiva de análise da personalidade é
expressa no teatro mágico, principalmente com a ajuda de espelhos.
4. O teatro mágico
“O teatro mágico” é a última parte da obra e relata a passagem de Harry Haller pelo
teatro mágico de Pablo, um músico sul-americano e suposto autor do “Tratado do lobo da
estepe”, texto que teria preparado H.H. para as vivências que enfrentaria neste mundo, com certa
miscigenação de realidade e fantasia. É nesta parte que ocorre o ponto culminante do processo de
destruição do eu, bem como da formação de um novo eu. Quando olha nos olhos de Hermine,
sente-se como se tivesse um encontro com seu próprio interior.
Vor ihrem Blick, aus dem meine eigene Seele mich anzuschauen schien, sank alle
Wirklichkeit zusammen, auch die Wirklichkeit meines sinnlichen Verlangens nach ihr.
Verzaubert blickten wir einander an, blickte meine kleine arme Seele mich an. 9 (HESSE,
1958, p. 366 )
Hermine é usada por Pablo como intermediária entre a vida despreocupada do momento e
8
Como Fausto, ele acredita que duas almas para um só peito já seriam demais e que o peito teria que arrebentar.
Mas ao contrário, são muito poucas, e Harry violenta terrivelmente sua pobre alma, caso ele procure entendela num quadro tão primitivo. Apesar de ser um homem tão culto, Harry age quase como um selvagem que não
sabe contar além de dois. Uma parte dele ele denomina homem, a outra, lobo, e com isso ele já pensa estar no
fim e ter se esgotado. No ser humano ele coloca tudo o que há de espiritual, de sublime e culto que ele encontra
pela frente, no lobo, tudo que é instintivo, selvagem e caótico. Mas tão simples como em nosso pensamento,
tão rude como em nossa pobre linguagem de idiota, não acontece na vida, e Harry mente duplamente a si
mesmo quando ele usa esse negro método lupino. Harry já inclui, assim nós tememos, províncias inteiras de
sua alma ao “humano”, mas que ainda estão longe de serem humanas, e pensa que partes de seu ser pertençam
ao lobo, também as que já há muito ultrapassaram o lobo. (Tradução nossa)
9
Diante de seu olhar, do qual minha própria alma parecia me contemplar, toda realidade sucumbiu, também a
realidade do meu desejo erótico por ela. Como que enfeitiçados olhamos um para o outro, e minha pequena
alma olhava para mim. (Tradução nossa)
Elise Schmitt
das inúmeras experiências e possibilidades que incluem as percepções transcendentais da
existência dos “imortais”, como, por exemplo, Nietzsche, Goethe, Novalis, Mozart, Haendel e
outros.
A entrada ao teatro pode ser entendida como um caminho que conduz ao próprio mundo
interior, onde são feitas suas experiências, principalmente com a parte lúdica da vida. Ele se vê
numa sala diante de muitas portas com diferentes inscrições. Basta escolher por onde entrar e por
quais ensinamentos passar. Uma das portas escolhidas foi a da inscrição “Einleitung zum Aufbau
der Persönlichkeit – Erfolg garantiert”10 (HESSE, 1958, p. 386)
Em alguns momentos, ele escuta as risadas de Pablo e de Mozart que lhe parecem como
irmãos e que dominam o jogo da vida. Deles, recebe conselhos para a vida. Assim a saída da sala
de espelhos parece um despertar de uma meditação subconsciente semelhante a um sonho.
(ESSELBORN, 1988. p.93)
Pablo explica a Haller que o “outro mundo” que ele busca é o mundo da sua própria alma.
Portanto, no seu interior, estaria outra realidade, o que o deixava muito ansioso. Pablo ainda diz
que não podia oferecer a ele algo que não estivesse dentro dele mesmo, que não poderia abrir a
ele outra sala de imagens além daquela em sua própria alma.
Embora predomine o dualismo ocidental, já no “Tratado” são feitas várias referências à
pluralidade oriental, inclusive à yoga de Buda, com que se descobriu uma técnica apropriada para
desmascarar as ilusões da personalidade. (HESSE, 1958, p. 244)
Um ator, provavelmente o próprio Pablo, explica a ele o jogo da vida. A princípio, Harry
ficara apenas como espectador, pois ainda não tinha a coragem dele mesmo fazê-lo. Teria ali a
chance de começar tudo pela frente para que algum dia ele aprendesse a jogar certo este “jogo da
vida”, comparando-o a um jogo de xadrez, em que era necessário locomover as peças de modo a
saber vencer e ser feliz.
5. Alguns paralelos entre Hermann Hesse e Harry Haller
10
Instrução para construção da personalidade – sucesso garantido (Tradução nossa).
Elise Schmitt
Tomando conhecimento da vida de Hermann Hesse e lendo O Lobo da estepe, pode-se
até mesmo pensar numa autobiografia, tantos são os dados biográficos e psicanalíticos do autor
com que nos defrontamos na obra. Não é por acaso, também, que as iniciais dos nomes do autor
e do personagem sejam iguais. Traçamos aqui alguns paralelos entre a vida de ambos.
-
Tanto Hesse como Haller sofriam por causa da solidão e passavam por fortes depressões;
-
Hesse e Haller viviam separados de suas primeiras esposas, ambas esquizofrênicas;
-
Hesse, após alguns anos, casou-se novamente, sem sucesso. Separou-se no mesmo ano
do lançamento de “O lobo da estepe”. Haller posuía uma namorada que raramente via,
mas também, nos poucos encontros, não se entendiam;
-
Hesse, após algumas tragédias, passou por sérias crises e, aos 47 anos e alguns meses,
chegou a planejar suicídio, que cometeria no dia do seu 50º aniversário, “caso ainda
achasse necessário”. Exatamente o mesmo ocorre com o personagem Harry Haller;
-
Ambos mudaram inúmeras vezes de residência. Hesse em Montagnola, Basel e Zürich.
Os endereços de Haller, porém, permanecem ocultos em toda obra, mas nada vai contra
o fato de que poderiam ser nessas cidades suíças;
-
Hesse, quando jovem, “queria ser poeta ou mais nada”. Também Haller era poeta e
escritor e jamais teria desejado trabalhar num escritório, órgão público ou chancelaria. Foi
terrível um sonho em que se via preso num quartel (HESSE, 1958, p. 230);
-
Hesse e Haller sofriam de artrite e de outras doenças, passando por crises de muita dor.
6. A receptividade da obra
No ano de seu lançamento, 1927, O lobo da estepe teve de seus leitores as mais diversas
reações. Alguns até mesmo se sentiram ofuscados pelas confissões do lobo da estepe e,
indignados, recusaram a visão psicanalítica e a descrição impiedosa dos “abismos” humanos. Já
outros liam a obra com entusiasmo. Segundo Hesse, a obra foi interpretada de modo mais
simpático do que ele próprio esperava. (ESSELBORN, 1988, p.18)
Durante a II Guerra Mundial, os livros de Hesse faziam parte da literatura indesejada na
Alemanha, e o próprio autor, por ter requerido a cidadania suíça, era considerado pelos nazistas
um traidor da pátria. No entanto, depois da Guerra, a literatura de Hesse foi redescoberta por
Elise Schmitt
um grande público de leitores. O prêmio Nobel de Literatura atribuído a ele em 1946 fez com
que suas obras fossem divulgadas, ainda que, num primeiro momento, apenas em países de língua
alemã. A recepção no exterior se dava a passos muito lentos ou era até recusada, pelo fato de
Harry Haller ser visto apenas como um homem alemão em decadência. Assim, a obra foi
estigmatizada como “trauma nacional”. (ESSELBORN, 1988, p. 21)
Já no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, a venda de O lobo da estepe e de outras
obras de Hesse aumentou, produzindo um considerável número de traduções e publicações em
outras línguas.
Os Estados Unidos também foram palco de um inesperado entusiasmo de intelectuais e
público jovem, principalmente pelas obras O lodo da estepe e Siddhartha. Já no início dos anos
80, foram vendidas nos Estados Unidos 11 milhões de obras e, no Japão, oito milhões. Essas
obras haviam se tornado proféticas entre o público hippie dos anos 1960 e 1970, pois oferecia a
eles uma possibilidade de identificação bem maior do que a Metarmofose, de Kafka, em que o
personagem Gregor Samsa se transforma numa barata. (STEPHAN, 1984, p. 340)
7. Considerações finais
Seria possível trabalhar mais detalhadamente cada aspecto da obra em questão, porém
pensamos fazer um apanhado geral para dar ao leitor comum uma noção geral de seqüência da
obra, ou seja, de cada uma das diferentes partes que compõem a obra, e de como elas se
relacionam. A relação entre as diversas partes da obra remete a uma característica do
Romantismo. Os personagens e autores não são definidos e não apresentam concretismo. A
divisão da subjetividade da Literatura de Weimar encontra um fiel representante no personagem
de Harry Haller. Hesse expressou a problemática do alheamento (Entfremdungsproblematik) com a
divisão da personalidade entre a natureza humana e animal em Harry Haller, e estilizou o
dualismo metafísico entre espiritualidade e instinto, geralmente limitados a personagens
intelectuais e artistas. Deve-se ainda destacar, nesta obra, a presença de um dos temas favoritos
de Hesse: a reabilitação da identidade perdida.
Elise Schmitt
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMANN, Bárbara & OBERLE, Birgitta. Deutsche Literatur in Epochen. München: Max
Hueber, 1985.
BAYER, Florian. Sexualität und (Homo)Erotik in Hesses Werk. p. 1, em texto extraído do
site http://www.xinxii.com/product_info.php?products_id=313001 em 28/09/2009.
ESSELBORN-KRUMBIEGEL, Helga. Hermann Hesse, Der Steppenwolf. In: Oldenbourg
Interpretationen. 2. Aufl. München: Oldenbourg, 1988
HESSE, Hermann. Der Steppenwolf. In: Gesammelte Schriften. Vierter Band. Berlin:
Suhrkamp Verlag. 1958, p. 185-415.
________________. O lobo da estepe. Trad. Ivo Barroso. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1971.
MICHELS, Volker. Hermann Hesse: Leben und Werk im Bild. Frankfurt am Main: Insel
Verlag, 1977.
ROTHMANN, Kurt. Kleine Geschichte der deutschen Literatur. Stuttgart: Reclam, 2005,
p.245-268.
STEPHAN, Inge. Literatur der Weimarer Republik. In: Deutsche Literaturgeschichte. 2. Aufl.
Stuttgart: J.B.Metzlersche Verlagsbuchhandlung. 1984. p. 340-341.
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