Sobre a crítica ao pansexualismo freudiano
Ubirajara Cardoso de Cardoso
Faz 100 anos de psicanálise e comemora-se, com razão, a sua invenção por
Freud.
Que a psicanálise tenha influenciado a cultura, isso aconteceu tanto quando
foi bem quanto quando foi mal interpretada e desde aí se teceram seus elogios ou se
tramaram as críticas contra ela.
Chamou-me a atenção, pela brevidade do tempo em que ouvi nos últimos
dias, a repetição de uma crítica à teoria freudiana. Todos conhecem: “para Freud tudo se
decide no sexual; em Freud há uma redução do discurso amoroso ao sexual; toda a
explicação da neurótica em Freud é sexual; para sua época histórica podia ser
verdadeiro, porém, agora....”.
O que chama a atenção, supondo ou não autoridade de conhecimento nos
lugares dos quais vêm essas críticas, é que elas continuam tendo o mesmo motivo,
mesmo quando tantas outras críticas à psicanálise e a Freud já foram feitas ou são feitas
com tão melhor pontaria.
O que é notável é que esse tipo de denúncia do freudismo não desiste e,
mesmo que reducionista, de certa forma ele é perfeitamente rigoroso, embora se faça
acompanhar sempre de uma espécie de ranço que se escuta nas formas das resistências à
psicanálise.
Faz 100 anos de psicanálise e, se essa crítica do tipo “pansexualismo
freudiano” continua, concluo que uma recusa do essencial da experiência psicanalítica
ainda é sintoma da história da psicanálise neste final de século XX e indica a atualidade
e vigor do pensamento do mestre vienense, já que aquilo que Freud descobriu (e fundou
teoricamente) como lugar real de onde se determinam as subjetividades continua sendo
o mesmo lugar.
Que lugar é esse? Observemos que ainda que com as mais fantásticas
descobertas das ciências biológicas e experiências de reprodução em laboratório com
condições controladas, as pequenas crianças, assim como seus adultos pais, continuam
formulando as mais estranhas – para evocar o sentido que Freud dá ao termo alemão
Unheimliche – teorias sexuais a propósito das questões do nascimento, diferença sexual,
origem, destino, etc...(aqui cabe, em excesso, uma pergunta: o sucesso do efeito da
psicanálise na cultura se mediria ou verificaria pela ausência de recusa dos efeitos de
sua prática? Mesmo que fosse uma idéia que poderia estar no horizonte dos ideais do
psicanalista, denotaria mais um sinal do seu engano1).
A teoria psicanalítica é elaborada e seus conceitos são operadores de uma
sintaxe que interdita a si mesma um lugar de toda verdade2. Foi preciso para Freud
retornar sempre sobre seus passos para avançar.
Que o surpreendente para Freud tenha sido encontrar o trauma (sempre de
ordenamento sexual) como origem do sintoma, foi necessário depois postular a fantasia
de sedução, obrigando a pensar a cena real como lembrança construída por traços
1
Cf. Evocamos a interpretação do sonho da jovem homossexual analisada por Freud, trabalho
publicado com o título de “A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”. O
sonho da paciente indicava termos de “bom prognóstico” para seu tratamento, todavia, é aí
mesmo que Freud foi encontrar o máximo da resistência.
2
Cf. “A questão de uma Weltanschauung”, 36ª das Novas Conferências Introdutórias sobre a
Psicanálise, Freud, 1933)
investidos libidinalmente. Mas por que se deveria interpretar esses traços como sempre
organizando uma história que é fundamentada no enredo sexual? O pansexualismo
freudiano é este: Freud escuta e constrói uma teoria que leva em consideração que a
sexuação não pode ser toda falada, que sobre isso não se diz nunca a última palavra3.
A tempestuosa descoberta freudiana é de que dos lugares de sexuação é o
falo que responde, mais especificamente a falta simbólica do falo imaginarizado que se
teria ou seria4. Mas, se há a diferença sexual e diferentes posições sexuadas, como pode
ser um só o elemento simbólico para fundá-las? A resposta freudiana é decidida pelos
pares presença/ausência e ativo/passivo em relação ao falo, pares de oposição que são a
origem do ordenamento simbólico do sujeito.
Se isso nos excita ao debate é porque o que Freud fez foi construir uma
teoria que leva em consideração essas condições de estrutura. Isso quer dizer que se é
um só o elemento simbólico (como falta, já dissemos, que por isso mesmo põe em
questão o seu lugar) o distribuidor dos sexos, da diferença sexual, ele não nos deixa
muito tranqüilos com isso, já que não nos dá uma garantia última sobre o que é o sexo e
por isso falamos de sexo sem esgotar nem o assunto nem o desejo.
Então o sexual insiste em retornar sempre, pois sempre há um resto que
escapa à simbolização. Também por isso, Freud é acusado de pansexualismo e isso
rigorosamente como se observa, só que ao contrário de desmenti-la, isso vem confirmar
a sua descoberta.
3
O que determina que a sexuação para os falantes seja, além de perversa, diversa.
Cf. J. Lacan – Seminário 4 – A relação de objeto e as estruturas freudianas – aula de 28 de
novembro de 1956
4
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