QUE LÍNGUA É ESSA?
José Geraldo C. Trindade
No conto “O espelho”, Guimarães Rosa usa a expressão salto mortale no lugar da
palavra morte, e justifica: “por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões
amortecidas”. Quer dizer, por que não usarmos, de vez em quando, palavras ou expressões
que deem nova cor ao texto, ao invés de usarmos outras de uso comum e já batidas pelo
tempo de uso? Até aí, tudo bem. A língua é rica e podemos construir metáforas, metonímias,
hipérboles, anástrofes e mais o que for necessário para dar mais beleza ao discurso.
O que dizer, porém, de expressões que invadem a língua com a desfaçatez de quem
entra sem ser convidado? É o caso, a meu ver, da expressão ir a óbito que, de repente, passou
a fazer parte do falar cotidiano. De algum tempo para cá, as pessoas não morrem, elas vão a
óbito. Antes, íamos ao Rio de Janeiro, à Bahia ou a Pirenópolis. Os mais bem aquinhoados iam
a Paris, Roma ou Londres. Ou, dependendo das circunstâncias, iam catar coquinhos, pentear
macacos ou para os quintos do inferno e ainda mais longe, como este lugar no qual o caro
leitor está pensando. Mas, de repente, aparece este novo toque e timbre para uma palavra que
ainda é tabu para muita gente, agregando movimento ao encontro com a indesejada das
gentes, como escreveu Manoel Bandeira. E aí, mataram os poéticos eufemismos populares: ir
para a cidade dos pés juntos, comer capim pela raiz, vestir o paletó de madeira, apitar na curva
(esse é genial – Rapaz, sabe o João?, pois é, apitou na curva. Foi infarto!), outro muito bom:
deu com a bunda na cerca. Como se explica? Sei lá!
Bom, mas, seja como for, a língua se renova, o falar de todo dia dá à luz dezenas,
talvez centenas de novos sentidos a termos que já moram há anos nos dicionários.
O que dizer, porém, daqueles que, ao invés de enriquecerem a última flor do Lácio com
novas expressões, torturam-na com requintes de crueldade, cometendo crimes hediondos
contra o idioma pátrio? Coisas como enchentivou – que será isso? Um incentivo às enchentes?
Ou, então, acusar alguém de grave enrresponsabilidade, que deve ser uma irresponsabilidade
muito grande, ou ainda, escrever enverde... Que é isso? Não sei, mas pode ser uma espécie
de arco-íris linguístico. Vejam só: enverde amarelo pintou a parede de azul. Isso sim é grave. É
a língua indo a óbito por obra e graça do falante enrresponsável.
Escrever é uma arte difícil, todos sabem disso. Se assim não fosse, as ruas estariam
cheias de Camões, Machados, Drummonds e outros tantos. Mas não é preciso apelar! Na hora
da dúvida, fiquemos no terra a terra, no seguro e discreto feijão com arroz que, embora sem o
charme de um steak au poivre, mata a fome do mesmo jeito.
O cuidado com o idioma pátrio deveria ser preocupação de todos os falantes. Afinal, é
sobre ele que é construída toda nossa cultura. E, mesmo entre os que atropelam o português –
a língua, não o nativo de Portugal – há os que demonstram, de alguma forma, preocupação.
Exemplo? Alguém, que não tive a desprazer de conhecer, expressou-se desta forma “Que
pena que são palavras conhecidas e ultilizadas pela elite da população gramatical, pois seriá
ético se várias pessoas tivessem a capacidade de dar vida e não a morte à essas palavras que
esperam no tempo passado uma mudança no presente para nascerem no futuro. Como, meu
caro? Você não entendeu? Sorte sua, nem eu. Não consigo imaginar aquelas muitas palavras,
sentadinhas, quietas, esperando a hora de nascerem no futuro. Poderíamos chamar tal
fenômeno de gestação linguística? Talvez.
Tão ou mais grave que os erros gramaticais é a incapacidade de utilizar as palavras
adequadamente. Alguém, escrevendo sobre um acidente, informou que, “acionado o resgate,
os helicópteros subiam a montanha na tentativa de encontrá-lo.” Como é que é cidadão? Quer
dizer que os helicópteros, cansados de voar, resolveram subir a montanha a pé? Imaginemos
aquela fila de helicópteros, suados, tensos, arrastando-se montanha acima para salvar um
coitado que se meteu onde não devia.
Com certeza – ou concerteza, como querem alguns inovadores – a dificuldade maior
está em dar coerência ao texto. Parece que há, aqui, um problema de difícil solução,
representado pela distância entre o cérebro que pensa e a mão que escreve. Ao longo do
braço, pelo visto, perde-se a coerência e o resultado é outra informação tenebrosa do tipo
“alega imparcialidade, até se entende que não dá para ressaltar 50% dos lados, mas é implícito
no explícito ou é contrário que desrespeita o leitor o ovinte etc. Como minha senhora? Está
confuso? Ora, então, fica o dito pelo não dito, ou o explícito pelo implícito ou o contrário, ou
vice versa, ou seja lá o que for, que seguramente não deve ser. Entendeu?
E o que dizer dos efeitos do álcool nos neurônios do escrevinhador? Um artista,
seguramente após beber todas, escreveu que “as propagandas elaboradas para a publicidade
desse produto são sempre com o mesmo dilema de que a cerveja antártica é a boa.” Que
produto, caro amigo? Que dilema? Seu para escrever, meu para entender ou da Antarctica,
aliás, antártica, que não tem certeza se é ou não a boa? Neste caso, perguntem à Juliana
Paes.
Muito bem! Mas vamos tratar de coisa séria. Como se resolve a dificuldade que muitos
têm de colocar no papel, com coerência, o que lhes passa pela cabeça? Um quase estudioso
do assunto levantou a hipótese segundo a qual “os pensamentos divergêntes acarretam em
ganho de conhecimento às partes envolvidas em função de complementação informacional.”
Ops! Não ficou muito claro. Melhor seria que o sujeito em questão tivesse escrito que uma das
possíveis soluções para tão perturbador problema é a leitura. Fora dos livros não há salvação,
diz um amigo meu, leitor contumaz. É fora de dúvidas que ele tem razão. Falta leitura para
muitos dos nossos patrícios. Leiam, todos! Livros, revistas, jornais, panfletos, receitas de bolo,
bula de remédios, catálogos de telefone, panfletos da Dona Daiane, que faz amarração e traz
seu amor de volta em 24 horas. Leiam, por favor, para que os espíritos dos mestres da língua
possam descansar em paz.
Em tempo: aquele enverde que aparece alguns parágrafos acima nada tem a ver com a cor
verde. A intenção do desavisado escrevinhador era escrever “ao invés de”, mas saiu aquela
barbaridade. E agora, José?
Download

QUE LÍNGUA É ESSA