Departamento de Comunicação Social
JORNALISMO INVESTIGATIVO E INTERESSE PÚBLICO
Aluno: Gabriela Silva Ribeiro de Oliveira
Orientador: Leonel Azevedo de Aguiar
Introdução
O projeto de pesquisa “Jornalismo Investigativo e Interesse público: experiências
profissionais no processo de construção social da realidade” pretende estudar os critérios de
noticiabilidade e valores-noticia aplicados ao jornalismo tido como investigativo,
especificamente em impressos diários de ampla circulação no Brasil. Há características
próprias do jornalismo investigativo, que o diferem do jornalismo cotidiano. Essas estão
relacionadas a forma como são apuradas essas notícias.
No processo de construção da notícia, o jornalista está muitas vezes submetido a
vários constrangimentos organizacionais (Traquina, 2000); isso se dá, em grande parte,
porque há uma relação direta entre informação e poder.
Para discutir o assunto, a pesquisa analisa uma reportagem específica: o “Dossiê
Torturas” publicado pela revista Veja em 10 de dezembro de 1969. A reportagem tem
especificidades pela forma como foi apurada e estruturada e pelo momento em que foi
publicada. Sua análise é rica para entender o fazer jornalístico em uma delicada época da
história do Brasil.
O “Dossiê Tortura” foi uma reportagem que reuniu denúncias relativas às
torturas praticadas pelo regime ditatorial vigente no Brasil. O dossiê de denúncias levantadas
por todo o país foi posteriormente enviado ao governo militar pela Editora Abril.
Foi usada como gancho para a matéria uma declaração dada por um assessor de Emílio
Garrastazu Médici, então presidente do governo militar, que disse que o governo não aceitaria
torturas. Foi o suficiente para estampar a frase “o presidente não admite torturas” na capa da
revista. Pego de surpresa ao ser confrontado por Elio Gaspari (Veja), o ministro da justiça do
governo declarou algo como “se o presidente não admite torturas, as torturas serão apuradas”.
A cena, ocorrida no aeroporto do Rio, foi o que faltava para que fosse lançado o dossiê.
A forma como a matéria foi construída é muito rica. Foram ouvidas muitas fontes de
todos os lados, o que garante credibilidade a reportagem e também ajuda a manter a ideia de
“imparcialidade”. Usando desses artifícios, a reportagem ousa ao mostrar pro leitor aquilo que
o governo militar se esforçava para manter oculto. O texto conta ainda com referências e
citações históricas que embasam a reportagem e aproximam as torturas do regime ditatorial
das outras torturas ocorridas ao longo da história.
Objetivos
Estudar como são afetados os critérios de noticiabilidade e os valores-notícia quando o
veículo se encontra em situação de censura. Partindo do estudo da reportagem publicada pela
revista Veja em dezembro de 1969, seu processo de apuração, construção, repercussões e as
histórias que a cercam, pretende-se observar como os constrangimentos do fazer jornalístico
estabelecidos pelo regime ditatorial por meio da censura aos meios de comunicação afetaram
a apuração e apresentação da reportagem histórica que ficou conhecida como “Dossiê
Torturas”.
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Desenvolvimento
Até o momento, a pesquisa permitiu concluir-se que definitivamente a censura
imposta pelo regime ditatorial teve consequências visíveis e diretas no fazer jornalístico. A
forma como se aplicam as teorias da comunicação e do jornalismo às produções dessa fase
são, então, diferentes da forma como observamos hoje em dia e em outros momentos da
história.
A importância da matéria de Veja no contexto em que ela foi publicada é notável. a
ditadura tentava a todo custo ocultar as consequências negativas do regime e o “Dossiê
Torturas” prestou um serviço de extrema importância por trazer o assunto à tona. O regime
ditatorial era realidade em todo o território nacional. Por isso, a reportagem era de interesse
geral.
A publicação da matéria resultou na demissão de muitos jornalistas envolvidos com
ela, inclusive o editor Raimundo Rodrigues Pereira. A Veja também passa a ter censura
prévia. Poucos foram os casos em que censores se instalaram nas redações para verificar as
reportagens antes das publicações. Geralmente, a censura aos meios de comunicação se dava
por meio do medo: as redações eram alertadas sobre os tipos de assunto que não podiam
abordar e, caso o fizessem, sofreriam reparações – como aconteceu com a Veja. Reza a lenda
que, após a publicação da primeira capa da Veja tratando do assunto torturas, que trazia uma
declaração de que o presidente não aceitaria torturas, todos os veículos foram avisados sobre a
proibição de publicar qualquer coisa mais sobre o assunto. Contudo, teriam se esquecido da
Veja e o diretor da revista, Mino Carta, aproveitou-se da situação para desligar os telefones da
redação para proteger a redação de qualquer tipo de contato com os censores.
Não era grande o número de publicações que esses censores proibiam; estavam ali
para causar medo maior à redação. O fato é que a partir disso a revista se descaracteriza, não
consegue manter seu caráter de critica política, e perde um número significativo de leitores.
Essa foi a primeira vez que a Veja teve uma mudança de paradigma até que se chegasse ao
modelo de jornalismo que apresenta hoje.
A própria editora Abril sofre a partir do “Dossiê Tortura”. Duas de suas revistas,
Realidade - que fazia criticas sociais e culturais- e Veja – que fazia criticas politicas, são
perseguidas pelo regime. A perda de leitores subsequente leva ela a uma crise financeira e a
redação da revista Realidade é fechada.
No documentário “Muito além do cidadão Kane”, Victor Civita, dono da editora Abril,
declara nunca ter conseguido abrir um canal de televisão por militares não gostarem dele.
Seria ingênuo pensar que Civita não teria nenhum tipo de relação com militares, porém, sua
fala deixa claro o papel emblemático que essa reportagem teve ao trazer a suas revistas o
caráter de combatente da ditadura.
Por ter saído logo após a promulgação do AI-5, auge da ditadura militar, a matéria não trouxe
consequências imediatas para o regime. Contudo, toda manifestação da época deve ser levada
em consideração para um processo que quebrou paulatinamente as fundações totalitárias do
período.
O formato do “Dossiê Tortura” goza de grande esperteza por trás dele. A construção
da matéria - cujo tom é de condenação as práticas da tortura, mas ao mesmo tempo denuncia
episódios significativos como a morte do estudante Chael - se da com a desconstrução de
ideias impostas pela ditadura. Para isso, as fontes, no total 11 e a maioria oficial, são tanto
militares, como especialistas e pessoas que participavam dos processos de luta contra a
ditadura.
Os primeiros a terem voz são delegados que justificam a tortura, Waldo Bandeira
Fraga, o “Fraguinha”, e Eldes Schenini Mesquita. O começo do texto com fontes militares
caracteriza a matéria como original e tem grande importância para seu sucesso. Além das
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fontes, figuras como Willaume, Stalin e Pierre Kramer são citados para embasar ainda mais o
coro que defende as práticas de tortura.
Em seguida, ainda na parte introdutória, entra em cena o lado contrário. O psiquiatra
Antonio Sapienza aponta os problemas que isso pode trazer ao psiquismo humano, assim
como o advogado Modesto da Silveira. Pierre Vidal Naquet, Cesare Bonesana e até a
Declaração Universal dos Direitos Humanos são citados para reforçar os argumentos que
comprovam as atrocidades da prática.
Em se tratando dos atos de tortura militares, o médico Marco Segré explica a
crueldade fatal usada no processo da morte do estudante Chael, assim como seus pais dão
detalhes da trajetória do filho. José Luís Andrade Maciel e sua esposa, por sua vez, deixam
claro a própria experiência de que a tortura psicológica também apresenta aspectos vis e causa
traumas permanentes. Um jornalista, cujo nome não foi identificado, depõe sobre o caso do
estudante Paulo Wenceslau.
Uma fonte que merece ser destacada é o então tenista Thomas Koch. O depoimento de
Koch sobre o espancamento que sofreu da polícia chamou a atenção por se tratar de uma
personalidade da época. Isso foi fundamental para chamar a atenção do público para os
absurdos cometidos pela policia truculenta.
Jornalismo Investigativo é uma vertente jornalística que busca revelar matérias antes ocultas
ao público com uma apuração mais demorada e sofisticada. Geralmente, esses fatos são
ocultados por pessoas em uma posição de alto poder. O papel do jornalista investigativo é
servir ao interesse público, permitindo que o cidadão permaneça a par de situações violadoras.
Nesse sentido, “Dossiê Torturas” é um clássico exemplo de jornalismo investigativo, estando
marcado por dar luz e denunciar circunstancias recorrentes em que o Estado brasileiro do
período militar deixou de dar proteção aos membros de sua população.
A Veja fez história quando, no momento em que nenhum veículo de comunicação
poderia falar sobre torturas, apresentou com detalhes os métodos de violência da polícia, deu
uma visão das consequências desses abusos e ainda denunciou a morte do estudante Chael –
peça importante na militância contra a ditadura.
O aspecto histórico que essa matéria adquiriu após alguns anos também é
extremamente relevante. Ela é parte importante do quebra-cabeça do antigo Estado militar do
nosso país e nos ajuda a compreender que tipo de situações formavam esse passado recente e
violento, o que se alterou e as heranças que permanecem. Atuando como formador de
memória, nos permite dar honra aqueles que lutaram pela nação e enxergar melhor o nosso
presente. A violência da polícia civil hoje muito se assemelha a polícia da ditadura, e para
entender fenômenos como esse precisamos saber daquilo que nos marcou.
Metodologia
Para realizar esse estudo, tomemos a “Teoria do Newsmaking”, perspectiva teórica
que estuda as rotinas de produção dos profissionais do jornalismo e serve como base para
diversos estudos do grupo de pesquisa. Por meio dessa teoria, analisa-se as estratégias
discursivas que constroem representações sociais da realidade pelo jornalismo.
Essa teoria supõe o produto jornalístico como uma construção narrativa da realidade
(Aguiar, 2006) e se opõe conceitualmente às teorias que enxergam o jornalismo como uma
representação da realidade. Diante dos acontecimentos do cotidiano, cabe ao jornalista decidir
o que é ou não notícia.
No caso específico da publicação estudada, está claro que, por maior que tenha sido o
esforço dos profissionais incumbidos de sua construção, a representação da realidade fica
comprometida, uma vez que o contexto é de censura e os jornais estavam sendo
constantemente observados.
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Dada essa perspectiva, a “Teoria do Newsmaking” se mostrou mais adequada ao
estudo da reportagem de Veja do que a “Teoria do Espelho”.
Conclusões
Especificamente no que diz respeito aos valores-notícia e aos critérios de
noticiabilidade, o período da ditadura afetou muito o jornalismo e estudar o fazer jornalístico
dessa época pode levar a muitas conclusões sobre o momento histórico, as relações de poder,
e sobre o próprio jornalismo, afinal, quando se está sob censura o jornalismo deixa de ser
sobre interesse público e passa a ser sobre o que interessa que o público saiba. Partindo daí, a
pesquisa busca compreender os efeitos práticos da censura nos valores-notícia, critérios de
noticiabilidade, manuais de redação e no processo de construção da realidade.
A reportagem estudada foi peculiar nesse ponto pois ousou, diante da ameaça de
censura prévia, noticiar a “verdade” abafada pelo regime a respeito das torturas. Hoje sabe-se
que as torturas eram uma realidade durante o regime, mas na época o assunto era pouco
abordado pela mídia.
Referências
1- AGUIAR, Leonel Azevedo de. O jornalismo investigativo e seus critérios de
noticiabilidade: notas introdutórias. Alceu, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 73-84, jul./dez.
2006.
2- TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são.
Florianópolis: Insular, 2004.
3- WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Lisboa: Presença, 1999.
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