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ID: 55864191
25-09-2014
Tiragem: 37998
Pág: 47
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 13,25 x 30,41 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Piratas de cabelo
branco
Debate Direitos de autor
Tito Rendas
magine que chega a casa da sua avó –
ou de qualquer outro membro sénior
da sua família que não fale a língua dos
torrents e dos downloads – e esta lhe
pergunta quem é o Lil Wayne. “É que
recebi uma carta a dizer que andei a
tirar músicas dele da Internet”. Como
o microondas da sua avó ainda não
permite aceder à Internet (e do que ela
gosta mesmo é do Tony), decide ler a
carta e percebe que sim, a matriarca da
família tinha sido acusada de descarregar
e partilhar faixas de rap hardcore. Mas não
se preocupe: a sua avó não é a primeira a
receber semelhante acusação.
Enquanto a opinião pública em geral
investe esforços a criticar a actualização
da Lei da Cópia Privada, o Governo vai
apregoando novas medidas antipirataria.
A compensação equitativa devida em
contrapartida da reprodução de obras
protegidas pelo direito de autor para
fins exclusivamente privados é, de facto,
criticável. Desde logo porque o sistema se
baseia na presunção de que o adquirente
de aparelhos de reprodução digital os usa
para armazenar conteúdos cujos direitos de
autor não lhe pertencem (e não as fotos dos
miúdos a brincar no parque).
Mas mesmo que se aceite esta presunção
como a única forma viável de conceber e
gerir o sistema da compensação equitativa,
a medida continua a merecer reparos.
Segundo a tão badalada Directiva 2001/29,
o principal critério para a “determinação
da forma, das modalidades e do possível
nível dessa compensação equitativa (...)
será o possível prejuízo resultante do acto
em questão para os titulares de direitos”.
Sucede que o prejuízo resultante da cópia
privada é nulo ou, na melhor das hipóteses,
difícil de estimar: se a cópia privada não
fosse lícita, quantos de nós compraríamos
múltiplas cópias do mesmo filme ou
canção, para as podermos ouvir em
diferentes dispositivos?
A dificuldade em justificar a compensação
equitativa adensa-se ainda mais nos
casos em que as obras adquiridas estão
protegidas por dispositivos tecnológicos
que restringem a possibilidade de cópia
das mesmas ou em que o adquirente já
pagou pela possibilidade de copiar a obra
para outros dispositivos (como no caso da
aquisição de músicas através do iTunes).
Deixando de lado a fraca fundamentação
da figura da compensação equitativa
em contrapartida da cópia privada,
convenhamos nisto: há coisas piores do que
pagar mais vinte e tal cêntimos por uma
pen de 16 GB. Uma dessas coisas é a nossa
avó saber quem é o Lil Wayne.
O sistema de resposta graduada, também
conhecido por three-strikes law, é a nova
I
moda no combate à violação do direito de
autor em rede. Num sistema deste género,
cada strike – um aviso, por email ou carta
registada – equivale à detecção de uma
violação por parte do utilizador. Ao terceiro
strike, é aplicada automaticamente uma
sanção, que pode ir de uma simples multa à
suspensão do acesso à Internet.
À forte eficácia preventiva deste tipo
de medidas contrapõe-se um conjunto
não desprezível de desvantagens: o
aumento dos custos de vigilância da
rede por parte dos fornecedores de
Internet e o consequente aumento das
mensalidades; a falta de um processo justo
e equitativo para os (alegados) infractores;
a desproporcionalidade das sanções;
a limitação da liberdade de expressão
adveniente do policiamento da Internet e
a falta de rigor na detecção das violações.
Dois casos ocorridos
nos Estados Unidos
são especialmente
ilustrativos deste
último problema: o
de uma adolescente
que foi acusada
de partilhar dez
canções numa
rede peer-to-peer...
enquanto estava no
hospital a receber
tratamento para
a pancreatite de
que padecia; e o
de uma senhora de
66 anos acusada
de disponibilizar
canções de rap
hardcore quando
o seu computador
não tinha sequer
capacidade para
correr um programa
de partilha de
ficheiros.
De entre as
alterações ao direito
de autor em cima
da mesa, aquela
que vai afectar
gravemente o
quotidiano e o bolso da generalidade dos
consumidores não é a actualização da Lei
da Cópia Privada, mas a que ainda está
para vir. Enquanto se chora sobre o leite
(praticamente) derramado da compensação
equitativa, vão ganhando ímpeto soluções
de carácter panóptico – medidas de
combate à violação do direito de autor
baseadas na invasão da privacidade dos
utilizadores.
Quanto a si, caro leitor, não sei, mas eu cá
preferia que a minha avó continuasse sem
saber quem é o Lil Wayne.
Enquanto
se chora
sobre o leite
derramado da
compensação
equitativa,
vão ganhando
ímpeto
medidas
baseadas na
invasão da
privacidade
dos
utilizadores
Professor da Faculdade de Direito
da Universidade Católica
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Piratas de cabelo branco, Dr. Tito Rendas