AS ATITUDES DO HOMEM PIUIENSE DIANTE DA MORTE
Elane da Costa Oliveira∗
O historiador João José Reis nos chama a atenção que a história das atitudes diante da
morte constitui um dos campos mais interessante da história das mentalidades.
[...] o historiador passou a estudar as atitudes em relação ao gosto culinário, o
amor, a religiosidade popular, as mais diversas formas de sensibilidade física e
espiritual. Os franceses chamaram essa nova história de ‘histórias das
mentalidades’ (1992, p.22).
Percebe-se ainda uma pequena produção neste campo na historiografia piauiense,
sobretudo no que se refere às atitudes diante da morte. Há uma produção significativa dos
franceses, que se utiliza de fontes literárias [em sentido amplo], arquivísticas, iconográficas e
arquitetônicas, evidenciam as mudanças das atitudes do homem europeu ocidental diante da
morte; estudos que privilegiam a longa e média duração. O que se deseja é que esta investigação
seja um contributo para a historiografia brasileira e piauiense em particular.
Nesta comunicação o objetivo é apresentar uma pesquisa em construção, cuja proposta é de
natureza histórica, toma como referência a experiência religiosa, privilegia a descrição e a
interpretação histórica de ritos, práticas e diálogos mediados entre devotos e santos protetores,
para narrar histórias de fé, de religiosidade e de espiritualidade. Objetivo da pesquisa é analisar e
descrever as atitudes e sensibilidades do homem piauiense diante da morte, a partir de um corpus
documental privilegiado, quais sejam: os testamentos e estatutos de irmandades católicas do
século XIX, que compõem parte do acervo do Arquivo Público do Estado do Piauí. Os diálogos
são estabelecidos com autores como Lawers (2002), Scmitt (2002), Le Goff (2002) que em seus
textos permitem compreender a noção histórica de práticas, rituais de fé que se faziam presentes
nas sensibilidades, na vida cotidiana do homem medieval, sentimentos e atitudes que foram
ressignificados ao longo do tempo por sociedades diversas.
Graduanda em Historia pela Universidade Federal do Piauí. Bolsista CNPq, sob a orientação da Profª Drª Áurea da
Paz Pinheiro. Membro do Grupo de Pesquisa “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”. E-mail:
[email protected]
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Piauí: por entre rezas e devoção
A colonização portuguesa, com a presença do elemento indígena e africano, legou ao
Brasil um diverso catolicismo, constituindo uma cultura rica e plural, onde a mistura de raças,
crenças e valores foram se forjando e dando o tom à religiosidade das populações. O Brasil
Império herdou da colônia, apesar do processo de secularização dos ritos católicos, um
catolicismo “marcado pelas espetaculares procissões.” As práticas religiosas das populações não
estavam de acordo com a ortodoxia católica, o que resultou nesse peculiar catolicismo, com
marcas do profano e do sagrado, mesclas da doutrina cristã europeia e das manifestações
religiosas da cultura negra e indígena.
A colonização do Piauí se deu a partir dos meados do século XVII com a penetração nos
sertões, impulsiona pela expansão da pecuária e o domínio colonial português.
Atraídos pela largueza das terras, pela abundância dos rios - condição propicia
para a criação do gado - contingentes de desbravadores se espalharam pela área
intermediária entre a bacia do rio São Francisco e a região do Maranhão.
Tornaram-se donos de currais, expulsaram e dizimaram as populações
indígenas, conquistaram as terras e constituíram as elites locais que se
mantiveram secularmente a frente da organização politica e social aristocrática e
interiorana que marcou a história deste povo (PINHEIRO, 2009, p.16).
A formação histórica do Piauí se caracteriza pela forte presença de missionários
franciscanos e jesuítas, que vinham para catequizar os nativos e criar vilas, antes mesmo da
instalação da capitania de São José do Piauí, os missionários já pregavam aos índios,
percorrendo as terras e distribuindo os sacramentos.
Esse caráter religioso e devocional que permeia o Piauí foi plantado pelos primeiros
missionários e jesuítas, que usando a inventividade cabocla se apropriaram de seu conteúdo para
criar manifestações artísticas e práticas devocionais diversas. “[...] a católica fé se embrenhou
pelos terreiros das danações adentrou a sala ornamentada pelos oratórios e santos e saiu pelos
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quintais santificando o alecrim e as arrudas das benzeções e pondo cheiro no capim, velame e
manjericão (FONSECA NETO, 2009, p.7).
É relevante estudar as manifestações religiosas piauienses - folias, festas, procissões, ritos
devocionais, pois constituem emblemáticas fontes para a busca do papel que os espaços de
devoção e ritualização da fé exercem nas sociedades.
A manifestação do sentimento religioso se dá pela exteriorização de ritos devocionais
presentes no dia-a-dia do devoto, de seus cultos privados, nos ornamentos de altares domésticos,
nas missas, nas procissões, nos enterramentos e nas peregrinações do calendário devocional.
[...] Em muitas casas urbanas do Brasil antigo, conforme fixou a tradição oral,
podia-se ver uma cruzinha de madeira pregada à porta da entrada; nas zonas
rurais, um mastro, com a bandeira de um santo, revelava aos visitantes a
preferencia da devoção familiar. Dentro de casa, uma série de imagens, quadros
e amuletos sinalizavam a presença do sagrado no espaço privado do lar (MOTT,
1997, p.164).
Nesse sentido, hoje é possível identificar fortes expressões da religiosidade tradicional: as
peregrinações ao Santuário de Santa Cruz dos Milagres; a Procissão do Fogaréu e a Procissão de
Bom Jesus dos Passos, em Oeiras; as práticas de ex-votos; as incelências entoadas pelas
carpideiras em diversas cidades do interior do Piauí.
Dentre as celebrações populares e atos religiosos destaco a Procissão do Bom Jesus dos
Passos. “[...] É uma das mais significativas manifestações de fé do Estado do Piauí dela
participam milhares de devotos [...]” (PINHEIRO, 2009, p.41). A procissão acontece sempre na
sexta-feira anterior à Sexta-Feira Santa da Paixão de Cristo. Ocorre na cidade de Oeiras desde o
inicio do século XVIII. Um dos símbolos da procissão é a flor de passos, roxa como a flor de
maracujá que simboliza a dor que a natureza sentiu ao ver ao sofrimento de Cristo. Vários são os
elementos que compõem a procissão, fiéis que pagam promessas, carregam ex-votos, cruzes,
vestem-se de roxo ou percorrem as ruas com os pés descalços como um sinal de penitência e
humildade.
[...] os símbolos religiosos oferecem uma garantia cósmica não apenas para a
sua capacidade de compreender o mundo, mas também para que,
compreendendo-o, dêem precisão a seu sentimento, uma definição às suas
emoções que lhes permita suportá-los, soturna ou alegremente, implacável ou
cavalheirescamente (GEERTZ, 1979, p.120).
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A Procissão do Fogaréu ocorre na Quinta-Feira Santa. Aproximadamente às nove horas da
noite, intercalando silêncio e oração, os homens de todas as idades e condição social saem em
procissão pelas ruas do centro histórico de Oeiras, apenas iluminadas pelas lamparinas que
carregam.
Os Congos é outra celebração emblemática para os oeirenses. Marcada pelo som de
tambores, maracás e pandeiros, a celebração se materializa em dança em ritmo sensual, homens
negros com sues vestidos rodados e maquiados, se denominam “Os Congos de Oeiras”,
representam de forma dramática o louvor a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito, santos
de devoção negra.
Na apresentação dos Congos, os homens dançam, cantam e dramatizam em
ritmos que encantam leveza e simplicidade. Ao longo da representação, quatro
personagens se destacam: o rei congo (defensor da fé de seu povo), a ordenança
(defensor do rei), o secretário (transmissor das ordens e mensagens do rei) o
embaixador (mensageiro de outro país, que questiona o rei, dialoga com ele e
posteriormente se junta ao grupo para louvar os santos negros (PINHEIRO,
2009, p.103).
Os ex-votos significam a força de uma promessa, designam uma variedade de objetos
doados aos fiéis aos santos de sua proteção como forma de agradecimento por um pedido
atendido. A prática de trocas simbólicas entre o devoto e o santo de sua proteção é uma
manifestação artístico-religiosa que se liga diretamente à arte religiosa e popular desde os
primórdios da colonização portuguesa no Brasil.
No Piauí, os pedidos mais recorrentes são quanto à cura de doenças e se
materializam em esculturas produzidas por artesãos santeiros, que esculpem em
madeira parte do corpo afetadas por moléstias-perna, cabeça, mão coração etc.
(PINHEIRO, 2009, p.37).
O artesão da história, em especial aquele que tem como matéria-prima às sensibilidades, é
aquele capaz de transitar por métodos que consigam “decifrar” os mistérios encobertos pelas
sutilezas das subjetividades humanas e assim decifrar os sentimentos.
A morte como um espetáculo: as irmandades
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As irmandades católicas têm suas origens nas tradições medievais, grupos organizavam
obras assistencialistas, atividades direcionadas ao provimento e caridade de seus membros e dos
necessitados da comunidade. “[...] seguiam o modelo das guildas de marcadores e artesãos e se
agrupavam para praticar ajuda mútua e garantir os funerais dos defuntos, expressando a
solidariedade entre os membros desde sua admissão” (TAVARES, 2008, p.144).
As irmandades organizavam-se de forma autônoma em relação ao clero. Foram
fundamentais para a propagação da fé católica no Brasil Colônia já que era pouco o número de
clérigos para as dimensões territoriais da Colônia. O que se destacava nas confrarias era o
aspecto devocional e o caráter leigo. Essas agremiações, em geral, possuíam estrutura
organizacional em torno de estatuto que previa suas atribuições e compromissos. Dentre as mais
comuns à promoção de “eventos” em homenagem ao santo de devoção, procissões, novenários,
festejos; assistência aos irmãos e organização de cortejos fúnebres.
O que definia, portanto, as normas e atividades da associação, ou seja, os direitos e deveres
de seus membros eram os estatutos mais conhecidos como compromissos, que deveriam ser
aprovados por Lei. Além de regularem a administração das irmandades, os compromissos
estabeleciam a condição social ou racial exigida dos sócios, seus deveres e direitos. A irmandade
tinha autonomia para administrar seus bens, que consistiam na arrecadação junto aos seus
associados de jóias e esmolas. A principal atividade era manter a devoção ao orago, da
organização do culto ao cuidado com a capela. Na ausência de capela própria, as irmandades se
reuniam em outros espaços, como altares laterais de outras confrarias, até conseguir recursos
para a construção da capela própria.
Dentre as atividades já citadas pelas associações, podemos destacar o que viria a ser uma
vantagem de ser associado às confrarias, o privilégio de possuir um enterramento cristão, ou seja,
associar-se a uma irmandade garantiria a “boa-morte” (REIS, 1991), asseguraria o ritual que o
ajudaria na hora da morte. A crença concebia que as rezas do ritual fúnebre ao irmão falecido
preparava o caminho entre a terra e o além, amenizando assim as penalidades no juízo final. “[...]
essas confrarias exigiam que seus membros pagassem direitos de entrada (jóias) e contribuições
mensais, variáveis oferecendo a estes, em contrapartida, ao lado de objetivos espirituais,
assistência à vida e na hora da morte” (MATTOSO, 1992, p. 400).
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As confrarias cuidavam que seus membros, ricos ou pobres, tivessem enterros solenes,
embora os ricos os usassem com frequência para tornar mais opulentos seus funerais.
Os cortejos fúnebres eram acompanhados pelos irmãos. O compromisso da Irmandade de
São Benedito em Teresina dedicava três artigos para descrever as disposições no que se refere
aos enterramentos:
Art.33 A irmandade acompanhará até a sepultura os irmãos que falecerem, seus
ascendentes ou descendentes em linha reta; e aos irmãos indigentes fará o
enterro, com o qual não poderá desprender mais de vinte mil reis.
Art.34 As pessoas que não forem irmãos podem ser acompanhadas aos seus
jazidos dando, quem nisto interessar, uma esmola de 8 mil reis para a despensas
da irmandade.
Art.37 Todos os anos do dia dois de novembro inclusive em diante, e em dias
intercalados, de três, se mandará dizer, se mandará dizer uma capela de missa
pelos irmãos finados, e em intenção dos vivos.
Às vésperas da Independência, a Igreja Católica transmitia a imagem de uma corporação
servil ao poder temporal. O catolicismo era religião única e oficial, as autoridades eclesiásticas
cuidavam da educação, saúde e assistência pública e até meados do século XIX, os padres
exerciam, em nome do Estado, numerosas funções civis. No Brasil Colônia, devido ao regime de
padroado, a autoridade estatal pouco influenciou a Igreja colonial. O rei possuía plenos poderes
sobre o clero e o ordenamento dos templos religiosos.
A implantação das confrarias religiosas no Brasil teve inicialmente o papel de subsidiar a
instituição eclesiástica em virtude do número reduzido sacerdotes e religiosos. As atribuições das
irmandades eram tanto de caráter assistencial, como espiritual aos seus membros associados.
Desse modo, para o Estado as obras de caridade se apresentavam proveitosas e para a Igreja a
forte devoção fortalecia o vínculo cristão dos seus fiéis além do provimento financeiro.
Analisando os compromissos de Irmandades encontrados no acervo do Arquivo Público do
Estado do Piauí podemos perceber uma vida religiosa ritualizada e hierarquicamente pensada.
No Capitulo14 do compromisso da Irmandade do Glorioso São Gonçalo de Amarante está
prescrito as atribuições dos diversos empregados da irmandade:
Art.19 Ao irmão zelador, que terá asento na mesa à esquerda do secretario ,
compete:
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1° Pedir, por si, ou por outro empregado da porta ou adro da igreja, esmolas aos
fiéis todas as quartas-feiras ou designando pela mesa, tendo para isso uma bolsa
de veludo azul simples e sem lhe seja sobreposta alguma imagem de Santo ou
Santa, quer de vulto, quer de pintada.
2° Mandar dizer com o producto d΄essas esmolas uma missa na sexta-feira de
cada semana na intenção dos irmãos vivos e defuntos
5° Destruir as insígnias e vellas pela irmandade nas procissões e nos mesmos
actos conduzir a cruz.
Os compromissos das irmandades são ricos em informações. São registradas as assistências
fúnebres devidas aos seus membros, portanto são fontes significativas para a interpretação de
ritos, usos fúnebres, especialmente os cortejos, o local de sepultura, as missas dentre outras
informações.
Existiam irmandades que garantiam a assistência fúnebre aos irmãos que morreriam em
estado de pobreza sem cobrar nada. Como no compromisso da irmandade das Almas Erecta na
Igreja Matriz da Freguezia de Santo Antonio de Campo Maior havia um capítulo intitulado Dos
Sufrágios:
Art 5° Aos irmãos que fallecerem em indigência notória, e não tiverem
parentes, ou pessoas que por caridade os mande sepultar, o Thesoureiro dará
mortalha, signaes, fará visita de cova com uma missa no 7° dia, a que assistirão
os Irmãos que poderem, e mandará dizer mais quatorze missas, completando
assim as quinze que se deve dizer por cada um irmão fallecido, sendo esta
despeza feita pelo cofre da irmandade.
Mas também existiam leis nos compromissos de irmandades que estipulavam uma
determinada quantia a ser gasta com os irmãos que faleciam em estado de pobreza. Como no
Capitulo 19 do compromisso da Irmandade do S.S da Freguesia de Nossa Senhora do Amparo da
Cidade de Teresinha:
Capítulo 19° Os irmãos que fallecerem terão sepultura por conta da Irmandade
em catacumbas do Cemitério, e o Procurador fará por cada um dos sinais, que a
Igreja permitte, em todos os sinos da Matriz, mandará avisar aos Irmãos, e na
hora marcada se reunirão na Matriz, d΄onde sahirão em comunidade com suas
capas, e cruz da Irmandade para a casa do fallecido, a fim de o acompanharem a
sepultura; e se algum irmão fallecer em tanta indigência , que deixe meios, com
que se possa fazer o enterro [...]
A preparação para a morte: os testamentos
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A morte se apresenta como um problema para os vivos. É na hora da morte que a fé e a
esperança dos indivíduos são demonstrados em canções, lamentos e pedidos de interação das
almas. “[...] morte é desordem e, por mais esperada e até desejada representa ruptura com o
cotidiano”. (REIS, 1991, p.138)
As atitudes diante da morte e dos mortos foram tomando novas formas e novos sentidos ao
longo do século XIX:
As concepções sobre o mundo dos mortos e dos espíritos, a maneira como se
esperava a morte, o momento ideal de sua chegada, os ritos que precediam e
sucediam, o local da sepultura, o destino da alma, a relação entre vivos e mortos
eram todas questões sobre os quais muito se pensava, falava, escrevia, e em
torno das quais se realizavam ritos, criavam-se símbolos, movimentavam-se
devoções e negócios (REIS, 1997, p. 96).
O historiador Michel Lawers entende a morte e as atitudes em relação a ela como um
fenômeno cultural:
[...] a ‘morte domesticada’ da Alta Idade Média, esperada e reconhecida, vivida
serenamente, em público, considerada como uma espécie de sono prolongado
teria sido progressivamente substituída, a partir dos séculos XII e XIII, por uma
visão mais dramática do falecimento: a morte foi doravemente pensada como
uma separação instantânea da alma e do corpo, seguida pelo julgamento
imediato e particular de cada defunto (2002, p.243).
Ao analisar os testamentos, busco a sensibilidade diante da morte, as atitudes. “[...] o temor
da morte, no entanto, não deve ser visto como o medo sem controle. O grande medo era mesmo
morrer sem um plano, o que para muitos incluía um testamento” (REIS, 1991, p.95).
As preocupações estavam centradas em fazer um testamento. Percebem-se dois motivos:
primeiro, era importante que fossem feitos enquanto ainda estava-se lúcido, mesmo doente o
testador deveria fazer por vontade, para que se mantivesse a validade; segundo, era necessário
preparar a morte. O maior medo, contudo, não era da morte em si, mas da morte inesperada, sem
uma preparação adequada, que para muitos significava a feitura de um testamento. A morte
planejada aliviava a apreensão causada pelas incertezas da passagem para o além. “[...] O além é
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um dos grandes horizontes das religiões e das sociedades. A vida do crente transforma-se quando
pensa que nem tudo fica perdido com a morte” (LE GOFF, 1988, p.15).
A morte planejada aliviava a apreensão causada pelas incertezas da passagem para o além.
No passado as pessoas se preparavam diligentemente para a morte. A boa morte
significava que o fim não chegaria de surpresa para o indivíduo, sem que ele
prestasse aos que ficavam e também os instruísse sobre como dispor de seu
cadáver, de sua alma e de seus bens terrenos. Um dos meios de preparar,
principalmente, mas não exclusivamente entre as pessoas mais abastadas, era
redigir um testamento. Essa providência pode ser entendida como o rito inicial
de separação (REIS, 1991, p. 92).
A possibilidade de se redigir um testamento suavizava ainda os rigores da lei, pois permitia
que o testador tivesse maior controle sobre a distribuição de seus bens.
Ao perceber que a hora de sua morte estava próxima, o indivíduo procurava deixar bem
claro em seu testamento a sua devoção à igreja e sua fé na intercessão celeste.
Em seu testamento cerrado Jardelino Francisco Barbosa de Amorim identifica sua religião:
[...] Como cristão católico apostólico romano, que sou em a qual tenho
conservado e espero morrer, tenho me declarado a fazer meu testamento, como
faço de minha livre vontade, e em meu perfeito juízo.
Caso contrário poderia queimar nas chamas do inferno ou ir para uma espécie de ante-sala
do céu: o Purgatório. Esse seria um plano intermediário entre o “céu” e o “inferno”. O Purgatório
é um lugar onde os mortos sofrem uma (ou algumas) provação (ões). Essas provações podem ser
múltiplas e assemelha-se às sofridas pelos condenados, no Inferno. Mas duas delas aparecem
mais frequentemente, o ardente e o gelado; e uma delas, a do fogo, desempenhou um papel de
primeiro plano na história do Purgatório.
As almas penadas podiam exigir de tudo aos vivos, mas seus pedidos em geral se
concentravam nas coisas simples a que tinham direito: sepultura, confissão, orações e
principalmente missas.
Aqueles que tivessem tido uma vida desregrada, longe do que pregava a Igreja, teriam uma
oportunidade de pagar pelos pecados de maneira mais branda: bastava realizar um belo ritual
funerário dentro das regras do cristianismo, local onde receberia orações dos seus amigos e de
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todos os fiéis que frequentassem a igreja onde estivesse sepultado. Quanto mais cedo poderia
merecer a companhia dos anjos e santos.
[...] Os sufrágios pelos mortos supõem a formação de longas solidariedades de
um lado e de outro da morte, relações estreitas entre vivos e defuntos, a
existência, entre uns e outros, de instituições de ligação que pagam os sufrágios
- como os testamentos - ou de fazem delas prática obrigatória - como as
confrarias (LE GOFF, 1980, p.26).
Quanto maior o número de missas, maior seria a possibilidade de se chegar mais
rapidamente ao plano celeste. Nos desejos, dois testamentos encontrados no acervo do Arquivo
Público do Estado do Piauí chamaram atenção, os de Marcelino Gonçalves Pereira e Manoel
Antônio Braga, neles ambos os testadores pedem que se realizem cinquentas missas em favor de
suas almas, número em que não se registra em outros testamentos.
As missas não eram encomendadas apenas para a própria alma, mas para as de
defuntos parentes, amigos, parceiros comerciais e até escravos e senhores.
Cuidar da própria morte implicava cuidar dos já mortos, para que estes, em
troca, intercedessem em favor do novo finado (REIS, 1991, p. 211).
Na hora da morte o testador exprimia, através das formalidades, tudo o que pensava,
desejava, além de sua fé e sua confiança na intercessão de toda a Corte celeste. Em seu
testamento Dona Raimunda Joaquina da Conceição pede duas capelas de missas, sendo uma por
sua alma, e outra para seu marido. Um desejo da testadora nos chama a atenção:
Desejo que meu primeiro testamenteiro, e herdeiro - fação todos para este acto
do meu desaparecimento, seja tão inapercebido, como foi a minha vida, o que
muito lhes recommendo, por que o verdadeiro do só está nos corações sensíveis,
e não em exterioridade de representação estéril.
A crença na salvação da alma era uma constante nos testamentos. A hora do julgamento
final era imprevisível, planejar o ritual fúnebre e arrepender-se dos pecados o quanto antes era
uma atitude que poderia garantir a salvação e evitar que a morte chegasse de forma repentina e
avassaladora.
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Os testamentos serviam, na maioria das vezes, para reconhecer paternidades, filhos
ilegítimos eram reconhecidos, inimigos eram perdoados, dar a tão sonhada liberdade aos
escravos.
A Ana Maria do Espírito Santo trata de libertar uma escrava.
Declaro mais que possuo a escrava de nome de Joaquina Maria, acaboclada cuja
escrava im causa morte deixo forra e assim confirmo aquillo que lhe prometi e
lhe dou plena liberdade para que desta maneira entendida.
A preocupação com o enterro mostra que a morte não se finda em si mesma, é a
participação dos vivos no bem morrer assim como as vontades do morto. Seus desejos devem ser
atendidos e desempenhados. Tanto que os testadores nomeavam para seus testamenteiros
parentes mais próximos como esposa, compadre ou até mesmo amigos como uma forma que sua
vontade fosse realizada após sua morte. Em seu testamento Lasaro Rodrigues de Souza nomeia
como seus testamenteiros sua esposa, um compadre e um amigo;
Declaro que nomeia por testamenteiros pela intima e confiança que estes
merecem em primeiro lugar a minha mulher Dona Raimunda Pinto de Oliveira
Amorim, em segundo lugar a meu compadre e bom amigo João Cluraes da
Silveira, e me terceiro lugar a meu distinto amigo Armando Correia Luio.
Os testamentos serviam, na maioria das vezes, para reconhecer paternidades, filhos
ilegítimos eram reconhecidos, inimigos eram perdoados, dar a tão sonhada liberdade aos
escravos.
A Ana Maria do Espírito Santo trata de libertar uma escrava.
Declaro mais que possuo a escrava de nome de Joaquina Maria, acaboclada cuja
escrava im causa morte deixo forra e assim confirmo aquillo que lhe prometi e
lhe dou plena liberdade para que desta maneira entendida.
As almas que se encontravam no purgatório não poderiam ser esquecidas, pois os vivos
acreditavam em seu poder de interceder pelos agonizantes. Manoel Bento Alves tinha
consciência disso, em seu testamento ao pedir missas diz:
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Para se da de esmola no dia de meu enterro deis a quantia de 25 mil reis mandar
dizer de missas por minha alma de minha fallecida mulher Dona Apollonia
Barbosa dos Anjos, e dez mil reis por missas as almas do purgatório.
Considerações finais
Percebemos um Piauí devoto, marcado por rezas, procissões e ritos fúnebres desde as suas
marcas coloniais à contemporaneidade. Estudar as inúmeras manifestações religiosas piauienses
- folias, festas, procissões, ritos devocionais como já foi dito anteriormente constitui-se de
importância capital para a busca do papel que os espaços de devoção e ritualização da fé
exercem na sociedade numa longa duração.
Especificamente quando investigo e analiso as atitudes do homem piauiense diante da
morte, marcado por uma devoção, por um sentimento religioso manifesto de maneira singular em
práticas, atitudes, exteriorizações e materializações que se acredita se por mais próximo do
sagrado. Essas materializações estão em “maneiras” – conjuntos de gestos, ações, pensamentos e
desejos expressos em testamentos e compromissos das irmandades católicas, sentimentos
repletos de signos e significados que singularizam a relação do homem com o sagrado.
A documentação utilizada como os testamentos e estatutos de irmandades católicas do
século XIX constitui um material riquíssimo para os estudos sobre a morte e os ritos que a
contornam, constituindo atitudes coletivas, registradas na assistência fúnebre aos membros das
irmandades e em atitudes particulares que nos permite perceber uma busca incessante pela
salvação da alma, a crença no além.
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Referências
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______. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Editora Brasiliense, 1988.
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA, Laura de
Mello e (org). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América
portuguesa.
PINHEIRO, Aurea; MOURA, Cássia. Cebrações/Celebration. Teresina: Educar: artes e ofícios,
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FONSECA NETO, Antônio. Apresentação. In: PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia (orgs).
Cebrações/Celebration.Teresina:Educar: artes e ofícios,2009.
13
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SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
TAVARES, Mauro Dillman. Irmandades, Igreja e Devoção no Sul do Império do Brasil. São
Leopoldo: Oikos, 2008.
Leis
LEI 587, publicada em 28 de agosto de 1863, que aprovou o compromisso da Irmandade do
Glorioso São Benedito da cidade de Teresina.
LEI 799, publicada em 12 de dezembro de 1872, que aprovou o compromisso da irmandade do
Glorioso de Amarante na cidade de Amarante.
LEI 554, publicada em 28 de julho de 1864, que aprovou o compromisso da irmandade do S.S.
da Freguesia de Nossa Senhora do Amparo na cidade de Teresina.
LEI 553, publicada em 21 de julho de 1864, que aprovou o compromisso da irmandade das
Almas na Igreja Matriz da Freguezia de Santo Antonio de Campo Maior.
Testamentos
Testamento de Jardelino Francisco Barbosa de Amorim do ano de 1896. Acervo do Arquivo
Público do Piauí. Fundo do Poder Judiciário. Caixa 0034.
Testamento de Anna Maria do Espírito Santo do ano de 1867. Acervo do Arquivo Público do
Piauí. Fundo do Poder Judiciário. Caixa 0047.
Testamento de Dona Raimunda Leonor de Almendra do ano de 1877. Acervo do Arquivo
Público do Piauí. Fundo do Poder Judiciário.
14
Testamento de Lásaro Rodrigues de Sousa do ano de 1890. Acervo do Arquivo Público do Piauí.
Fundo do Poder Judiciário. Caixa 0034.
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