Traços da morte
Carismáticos ou sedutores, personagens encarnam
a morte e levam leitores à reflexão
AMANDA BOAVENTURA, PEDRO HENRIQUE TORRE, PRISCILA FAGUNDES
idar com a morte não é uma tarefa
fácil, mas quando ela está presente
nas histórias em quadrinhos, torna-se até divertida. Neste universo, nem mesmo os personagens
conseguem escapar da “iniludível”. Super-homem e Robin já tiveram suas carreiras encurtadas
nos gibis. A novidade é quando a morte surge não
como o fim, mas como um personagem com
ações e falas muito próprias, como por exemplo,
quando ela negocia mais tempo de vida com suas
vítimas.
As encarnações são diversas, algumas até bem
humoradas e cheias de amigos. Um exemplo disso
é a Dona Morte, personagem da Turma do
Penadinho, criada em 1960, pelo desenhista
Maurício de Souza. Vestida de capuz preto e com
uma foice na mão, ela se encarrega de perseguir os
que estão presentes na sua lista de vítimas. No
entanto, apesar da fama assustadora, a personagem é sensível, transmitindo mensagens descontraídas às crianças e aos adultos, sendo capaz até
de se apaixonar. Para Maurício de Souza, as origens da sua criação são quase tão extensas quanto
as lendas sobre a morte.
– A série do Penadinho, foi criada para desmistificar os medos e pavores que cercaram a nossa
infância. Sou do tempo em que minha avó nos passava a certeza da existência das almas penadas em
v e rossímeis histórias. E ainda me lembro dos
arrepios e do medo da escuridão que sentia. Daí
resolvi criar a turma do Penadinho. Quanto à Dona
Morte, até que gostaria de pensar numa morte que
chega com uma marquinha no caderno dizendo
que chegou a nossa hora. Seria mais “humano” do
62
©
E
TIAGO CORDEIRO
DC Comics
A morte de Robin: um caso raro de morte definitiva
Julho/Dezembro 2004
© Maurício de Souza
que acontece. Nossa proposta é que a morte, ou a
Dona Morte, não seja levada tão a sério, enquanto
não a encontramos.
Já para o professor de história da arte da PUC-Rio,
Alfredo Grieco, a personagem apresenta feminilidade e até mesmo sedução para o público infantil,
diferente de personagens para outras idades.
– Em revista para criança, não poderia ser de
outra forma. Se bem que criança ainda não tem
medo da morte, tem medo é de bicho papão, da
cuca, do lobisomem. O que não é o caso da Morte
em Neil Gaiman, história em quadrinhos que passa
uma atmosfera de terror gótico inglês, com visual
que lembra as novelas góticas de Sheridan Le Fanu,
Walpole, e Mary Shelley, a criadora de Frankenstein. A faixa etária que curte Sandman já gosta
de se assustar um pouco – revela.
Para a psicóloga Dulce Miriam Raffide, contudo,
a morte personificada na história em quadrinhos
proporciona uma forma mais leve de lidar com
uma realidade que vem, geralmente, na forma de
medo ou dor e que está presente desde a infância.
– Os quadrinhos para crianças de aproximadamente sete anos são a possibilidade de um contato
com uma realidade que não se compreende, apesar
de se conviver com ela. Seja através da perda de um
ente querido, um vizinho ou por algo que vê na TV.
A partir daí até à adolescência, a noção de morte
Crianças não temem a Dona Morte
vai sendo absorvida ou compreendida gradativamente, e continua na idade adulta – ressalta a
psicóloga.
lista. Talvez para que os leitores não pensem deNa fase adulta as tentativas de explicação do
mais no que ela repre s e n t a.
fim da vida continuam com ações nas correntes
Na editora Marvel Comics, direcionada para o
científicas, filosóficas e religiosas.
público jovem, o visual clássico da
Séculos atrás, na Renascença, A
Morte, como uma caveira com véu
Na editora Marvel
dança da mort e, com ilustrações
escuro e foice, foi assumido sem
Comics,
direcionada
do artista Holbein, era um livro
p roblemas em sagas como Desafio
bem vendido que re p resentou a
i n f i n i t o, onde a criatura também
para o público jovem,
m o rte como um esqueleto dansurgia como uma mulher bela e
o visual clássico da
çante, arrebatador de ricos e
insensível para o alienígena e neMorte,
como
uma
p o b res, crianças e velhos. Séculos
c romaníaco Thanos. O leitor Otádepois, o artista mexicano José
vio Kleber, de 30 anos, diretor de
caveira com véu
Guadalupe Posada (1851-1913)
a rte da Imagem Comunicação, em
escuro e foice, foi
também desenharia esqueletos.
Cuiabá, acredita que o visual esassumido
sem
Na maior parte do tempo, a ret e reotipado e a falta de singulariproblemas
p resentação gráfica da morte não
dade da personagem se re f e rem ao
p rocura ser extremamente reafato dela não ter se transform a d o
A indesejada das gentes
63
de leitores, que não estava mais tão interessado nas
histórias de super-heróis, mais voltadas para o
público jovem. O roteirista inglês Neil Gaiman foi o
responsável por um dos maiores sucessos da editora: o personagem Sandman, envolto por referências
mitológicas e literárias de um ser encantado que
soprava areia mágica nos olhos das pessoas para
elas dormirem ou terem pesadelos. Sandman é caracterizado com uma pele pálida e cabelos negros
arrepiados e conquistou milhares de leitores pelo
mundo. Ele é um dos Perpétuos, entidades que representam forças máximas do universo, como seus
irmãos Destino, Desejo, Desespero, Delírio, Destruição e, claro, a Morte.
Apesar de representarem poderes tão elevados, o
sucesso do universo da Linha Vertigo não está nas
enormes capacidades de seus protagonistas. A estudante de medicina veterinária Joana Ikeda, de 19
anos, lê histórias em quadrinhos desde criança e há
sete anos conhece o universo dos personagens adultos criados por Gaiman. Segundo Joana, os leitores
de quadrinhos adultos buscam personagens mais
elaborados, diferenciados das figuras comuns da
Morte.
– Assim como os seus irmãos, a Morte é representada como um ser perfeitamente aceitável, incluMorte de Gaiman: personagem humana e apaixonante
sive com defeitos e personalidade humanas. Acredito que esses traços coerentes instigam o leitor
adulto – disse Joana.
num estilo próprio para uma série de histórias, mas
Para o professor aposentado da Universidade
apenas aparecer limitando-se à sua clássica função
Federal Fluminense (UFF) Moaci Cyrne, especialista
de recolher as almas dos mortais. Nada mais lógico,
em Histórias em Quadrinhos, a razão desse fascínio
já que para muitos adolescentes filmes de terro r
por um personagem que represenpodem ser tão divertidos e irre a i s
ta algo tão amedrontador não é
quanto a clássica imagem da
difícil de se explicar.
Morte.
“É mais fácil lidar
– É mais fácil lidar com a morte
Mesmo com leitores que costucom a morte como
como algo simbólico do que
mam comprar quase todos os gibis
algo simbólico do que
como sua realidade. Essa relação
da banca como Daniel Karrer, estué bem recebida exatamente
dante de engenharia, de 22 anos,
como sua realidade”
porque traz algo sombrio e mórque coleciona revistas há 11 e tem
Moaci Cyrne
bido, mas ao mesmo tempo belo
um acervo com mais de 500 exeme fascinante. E vem com todo
plares, o tipo de leitor ainda é funaquele mistério do que existe dedamental para a criação do perpois da morte? – resume.
sonagem. Entre tantas razões para as diferenças
E se as representações da morte, nos quadrinhos,
estéticas, o público-alvo é sempre a maior referênsão variadas e diferentes, talvez isso seja, simplescia. Em 1993, a editora DC Comics criou a linha
mente, porque re p resentem a mesma função.
Vertigo com o objetivo de atingir um público adulto
©
64
DC Comics
Julho/Dezembro 2004
Pedro Henrique Torre
Para Alfredo Grieco matar personagens sempre foi difícil
Grieco vê nas coincidências históricas a certeza
desta afirmação.
– O historiador francês Philippe Ariés aponta em
seus livros sobre a história da morte, da idade
média aos nosso dias, uma tipologia de várias
m o rtes. Cada qual re p resentando uma relação
diferente com o homem: ele fala da morte romantizada, da morte selvagem, da morte domesticada.
Talvez o grafismo da morte seja uma tentativa de
fingir que há diálogo onde, certamente, não existe
nenhum. Na hora da morte não tem papo, talvez
por isso mesmo ela venha sempre acompanhada,
quer de muito bom humor, como em Maurício de
Souza, ou em uma atmosfera gótico-poética, como
no “Sandman”.
A morte de personagens
Para qualquer leitor que começou a comprar gibis nos anos
1990, a morte de personagens nas
histórias em quadrinhos já é algo
comum. Depois da década de
1980 em que personagens como
Batman e X-men passaram por
uma total reformulação que modificou seus estilos e traços, a
moda foi matar para revitalizar o
personagem.
Em 1992, a DC Comics assustou
vários fãs de histórias em quadrinhos ao afirmar que o Superhomem, o maior e mais famoso
super-herói de todos os tempos,
morreria. Contudo, para outros
não passava de um jogo de cena.
E era. Meses depois na saga “O
Retorno do Super-homem”, o
homem de aço ressuscitaria. Isso
confirmaria que se o assassinato
de personagens era uma forma
de reavivar uma marca adormecida pelo tempo e pela queda de
leitores, a sua ressurreição poderia funcionar tão bem quanto.
Não apenas assassinatos não
vingam, mas a ação do tempo
não age sobre os personagens.
Alfredo Grieco lembra que a
maior parte dos heróis permanece intocada pelo tempo e
que a ressurreição de persona-
A indesejada das gentes
gens não é privilégio das histórias
em quadrinhos.
– Sir Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, não
conseguiu “matar” seu mais famoso personagem. Milhares de
leitores escreveram e Conan Doyle sentiu-se obrigado a ressuscitar
o grande detetive. O mesmo acontece nos quadrinhos. Quando
algum super-herói morre, ou se
casa, é sempre mais uma jogada
de marketing do que uma solução
espontânea e criativa do roteiro.
O Super-homem, um dos que já
casou e já morreu, acabou
voltando, como se nada tivesse
acontecido.
Mesmo assim, a seqüência
“morre e ressuscita” não é uma
tendência absoluta. Quatro anos
antes do último filho de Kripton
p a rtir desta para melhor (e
depois voltar), Batman perderia
seu segundo parceiro, Robin (nos
quadrinhos o primeiro Robin,
Dick Grayson, abandonou a
parceria para se tornar o herói
Asa Noturna e, atualmente, o
C a v a l e i ro das Trevas re c e b e
ajuda do jovem Tim Drake) e
jamais o veria novamente. Na
saga “A Morte de Robin”, o Coringa assassina o alter ego de Ja-
Frank Miller
son Todd e produziu, assim, uma
das mais fortes cenas vistas nos
gibis.
Para Moaci Cyrne, a conjuntura
era completamente diferente nos
quadrinhos dos anos dourados.
– Nos anos 1940 e 1950 não havia morte de personagens. Só me
lembro de um super-herói que
morreu, mas ele era tão insignificante que nem sei mais o nome
dele. Nem mesmo os vilões poderiam morrer, imagine se o Coringa morresse? O Batman não seria
hoje o que ele é – afirma.
De qualquer forma, todo esse
descrédito com a morte não passou impune. A fórmula hoje em
dia não convence ninguém, e
leitor algum acredita que editoras tradicionais exterminarão
uma poderosa marca em nome
de uma boa história. No último
ano Joe Arad, editor-chefe da
Marvel Comics afirmou que a
partir de então os heróis da editora não ressuscitariam mais.
Mesmo assim, algumas histórias
indicam que o personagem Colossus morto há alguns anos,
deve retornar. Para os quadrinhos a morte pode até ser personagem, mas nunca uma barre i r a.
65
Download

traços da morte - Portal PUC