Ismael de Daniel Quinn
Excerto
"Com base na minha história, que matéria dirias estar eu mais qualificado para
ensinar?
Pestanejei e disse-lhe que não sabia.
Sabes, é claro. A matéria que ensino é: cativeiro.
Cativeiro.
Exacto.
Fiquei calado por um minuto, dizendo então:
Estou a tentar imaginar o que tem isto a ver com salvar o mundo.
(...)
Ismael sorriu. Não me deste crédito quando eu te avisei que esta história era
ubíqua na tua cultura. Agora entendes o que eu quero dizer. A mitologia da tua
cultura é um murmúrio tão constante que ninguém lhe presta a menor atenção. É
claro que o homem está a conquistar o espaço, o átomo, os desertos, os
oceanos e os elementos. Segundo a vossa mitologia, foi para isso que ele nasceu.
(...)
Bem dito, sim. A lei que estamos aqui a procurar assemelha-se-lhe no
respeitante a civilizações. Não trata de civilizações, mas aplica-se às civilizações
assim como se aplica a bandos de pássaros e manadas de veados. Não faz
qualquer distinção entre civilizações humanas e colmeias de abelhas. Aplica-se a
todas as espécies, sem distinção. Este é um motivo pelo qual a lei permanece por
descobrir na tua cultura.
(...)
Até à chegada de Darwin e dos paleontólogos, que enxertaram na história três
milhões de anos de vida humana, supunha-se que o nascimento do homem e o da
vossa cultura tivessem sido eventos simultâneos - que tivessem sido, de facto, o
mesmo evento. Quero eu dizer que as pessoas da vossa cultura julgavam ter o
homem nascido à sua prórpia imagem. Supunha-se que a agricultura era tão
instintiva para o homem quanto a produção de mel é para as abelhas.
(...)
Não é possível abandonar simplesmente uma história. Foi o que os jovens
tentaram fazer nos anos 60 e 70. Tentaram deixar de viver como Pegadores, mas
não havia qualquer outro modo para eles viverem. Fracassaram por não podermos
simplesmente deixar de participar numa história; precisamos de ter outra
história na qual entrar.
Ismael assentiu com um gesto de cabeça. E, caso uma outra história exista,
deveriam as pessoas conhecê-la?
Deveriam, sim.
Achas que querem conhecê-la?
Não sei. Não creio que seja possível querer-se algo antes de se saber da sua
existência.
Não podia estar mais de acordo.
(...)
A intensificação da produção no sentido de alimentar uma população aumentada
leva a um aumento ainda maior da população. Disse-o Peter Farb no seu livro
'Humankind' (O Género Humano).
Trata-se de um paradoxo, disseste tu?
Não, ele é que disse tratar-se de um paradoxo.
Porquê?
Ismael encolheu os ombros. Ele sabe decerto que na natureza qualquer espécie se
expande invariavelmente até ao máximo da expansão da sua quantidade de
alimento. Mas, como sabes, a Mãe Cultura ensina que tais leis não se aplicam ao
homem.
(...)
Considera a situação seguinte. Imagina que és um dos sem-abrigo deste país.
Desempregado, sem profissão, a esposa idem, dois filhos para sustentar. Não
tens a quem recorrer, não tens futuro, não tens esperança. Mas eu posso dar-te
uma caixa com um botão. Se o apertares, sereis todos transportados
instantaneamente até à época pré-revolucionária. Entendereis a língua então
falada e sabereis fazer o que todos fazem. Não mais precisarás de te preocupar
com o sustento da família. Serás bem sucedido, farás parte da sociedade
abastada original.
Certo.
Então, apertarias o botão?
Não sei. Tenho as minhas dúvidas.
(...)
E estás também apto agora a responder à pergunta que te fiz esta manhã: Como
é que o homem se tornou homem?
O homem tornou-se homem vivendo nas mãos dos deuses.
Vivendo como vivem os bosquímanos de África.
Certo.
Vivendo como vivem os crenacarore do Brasil.
Certo outra vez.
Mas não vivendo como os moradores de Chicago?
Não.
Ou de Londres?
Não.
Sabes então agora o que sucede às pessoas que vivem nas mãos dos deuses.
Sim. Elas evoluem.
(...)
Então aqui tens um programa: A história do Génese precisa de ser invertida. Em
primeiro lugar, Caim deve parar de matar Abel. Isto é essencial para a
sobrevivência da humanidade. Dentre as espécies ameaçadas pela extinção, os
Largadores são a mais crucial para o mundo - não apenas por serem humanos,
mas por só eles poderem mostrar aos destruidores do mundo que não existe um
único modo correcto de viver. Depois, evidentemente, deveis cuspir o fruto da
árvore proibida. De uma vez por todas, deveis abdicar da ideia de que sabeis quem
deve viver e quem deve morrer neste planeta."
"Com base na minha história, que matéria dirias estar eu mais qualificado para
ensinar?
Pestanejei e disse-lhe que não sabia.
Sabes, é claro. A matéria que ensino é: cativeiro.
Cativeiro.
Exacto.
Fiquei calado por um minuto, dizendo então:
Estou a tentar imaginar o que tem isto a ver com salvar o mundo.
(...)
Ismael sorriu. Não me deste crédito quando eu te avisei que esta história era
ubíqua na tua cultura. Agora entendes o que eu quero dizer. A mitologia da tua
cultura é um murmúrio tão constante que ninguém lhe presta a menor atenção. É
claro que o homem está a conquistar o espaço, o átomo, os desertos, os
oceanos e os elementos. Segundo a vossa mitologia, foi para isso que ele nasceu.
(...)
Bem dito, sim. A lei que estamos aqui a procurar assemelha-se-lhe no
respeitante a civilizações. Não trata de civilizações, mas aplica-se às civilizações
assim como se aplica a bandos de pássaros e manadas de veados. Não faz
qualquer distinção entre civilizações humanas e colmeias de abelhas. Aplica-se a
todas as espécies, sem distinção. Este é um motivo pelo qual a lei permanece por
descobrir na tua cultura.
(...)
Até à chegada de Darwin e dos paleontólogos, que enxertaram na história três
milhões de anos de vida humana, supunha-se que o nascimento do homem e o da
vossa cultura tivessem sido eventos simultâneos - que tivessem sido, de facto, o
mesmo evento. Quero eu dizer que as pessoas da vossa cultura julgavam ter o
homem nascido à sua prórpia imagem. Supunha-se que a agricultura era tão
instintiva para o homem quanto a produção de mel é para as abelhas.
(...)
Não é possível abandonar simplesmente uma história. Foi o que os jovens
tentaram fazer nos anos 60 e 70. Tentaram deixar de viver como Pegadores, mas
não havia qualquer outro modo para eles viverem. Fracassaram por não podermos
simplesmente deixar de participar numa história; precisamos de ter outra
história na qual entrar.
Ismael assentiu com um gesto de cabeça. E, caso uma outra história exista,
deveriam as pessoas conhecê-la?
Deveriam, sim.
Achas que querem conhecê-la?
Não sei. Não creio que seja possível querer-se algo antes de se saber da sua
existência.
Não podia estar mais de acordo.
(...)
A intensificação da produção no sentido de alimentar uma população aumentada
leva a um aumento ainda maior da população. Disse-o Peter Farb no seu livro
'Humankind' (O Género Humano).
Trata-se de um paradoxo, disseste tu?
Não, ele é que disse tratar-se de um paradoxo.
Porquê?
Ismael encolheu os ombros. Ele sabe decerto que na natureza qualquer espécie se
expande invariavelmente até ao máximo da expansão da sua quantidade de
alimento. Mas, como sabes, a Mãe Cultura ensina que tais leis não se aplicam ao
homem.
(...)
Considera a situação seguinte. Imagina que és um dos sem-abrigo deste país.
Desempregado, sem profissão, a esposa idem, dois filhos para sustentar. Não
tens a quem recorrer, não tens futuro, não tens esperança. Mas eu posso dar-te
uma caixa com um botão. Se o apertares, sereis todos transportados
instantaneamente até à época pré-revolucionária. Entendereis a língua então
falada e sabereis fazer o que todos fazem. Não mais precisarás de te preocupar
com o sustento da família. Serás bem sucedido, farás parte da sociedade
abastada original.
Certo.
Então, apertarias o botão?
Não sei. Tenho as minhas dúvidas.
(...)
E estás também apto agora a responder à pergunta que te fiz esta manhã: Como
é que o homem se tornou homem?
O homem tornou-se homem vivendo nas mãos dos deuses.
Vivendo como vivem os bosquímanos de África.
Certo.
Vivendo como vivem os crenacarore do Brasil.
Certo outra vez.
Mas não vivendo como os moradores de Chicago?
Não.
Ou de Londres?
Não.
Sabes então agora o que sucede às pessoas que vivem nas mãos dos deuses.
Sim. Elas evoluem.
(...)
Então aqui tens um programa: A história do Génese precisa de ser invertida. Em
primeiro lugar, Caim deve parar de matar Abel. Isto é essencial para a
sobrevivência da humanidade. Dentre as espécies ameaçadas pela extinção, os
Largadores são a mais crucial para o mundo - não apenas por serem humanos,
mas por só eles poderem mostrar aos destruidores do mundo que não existe um
único modo correcto de viver. Depois, evidentemente, deveis cuspir o fruto da
árvore proibida. De uma vez por todas, deveis abdicar da ideia de que sabeis quem
deve viver e quem deve morrer neste planeta."
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Ismael de Daniel Quinn Excerto "Com base na minha