Gragoatá
n. 29
2o semestre 2010
Política Editorial
A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional
de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem
contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a
análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e
Literatura.
ISSN 1413-9073
Gragoatá
Rev Gragoata n 29.indb 1
Niterói
n. 29
p. 1-278
2. sem. 2010
11/7/2011 19:21:33
© 2010 by
Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense
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Editora
filiada à
G737 Gragoatá. Publicação dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da
Universidade Federal Fluminense.— n. 1 (1996) - . — Niterói : EdUFF, 2010 –
26 cm; il.
Organização: Fernando Muniz e Lucia Teixeira
Semestral
ISSN 1413-9073
1. Literatura. 2. Linguística.I. Universidade Federal Fluminense. Programas de
Pós-Graduação em Estudos de Linguagem e Estudos de Literatura.
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Gragoatá
n. 29
2o Semestre 2010
Sumário
Apresentação..................................................................................
Fernando Muniz e Lucia Teixeira
ARTIGOS
O estatuto da crítica .....................................................................
Luiz Costa Lima
5
9
Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis?........................ 23
Sírio Possenti
Acaso e método na pesquisa das poéticas da palavra
cantada: um registro de caso ...................................................... 35
Leonardo Davino de Oliveira
Da problemática do método ao método como problema hermenêutica filosófica e a questão do compreender ............ 49
Paulo Cesar Duque-Estrada
O estranhamento: um exílio repentino da percepção ........... 63
Olga Guerizoli-Kempinska
A obra literária na era da explosão de signos:
uma proposta semiótica de análise do romance ..................... 73
Sergio Ricardo Lima de Santana
A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes ..................... 93
Davi Andrade Pimentel
A abordagem metodológica da análise multidimensional.. 107
Tony Sardinha
Contribuições para a elaboração de testes
psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças ...... 127
Maity Siqueira, Maitê Gil, Tamara Melo
O que fazer com grupos de fatores não selecionados?
O caso da concordância nominal no Paraná ............................ 147
Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes,
Loremi Loregian-Penkal
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Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis
relacionados à primeira pessoa do discurso no plural ....
161
Cássio Florêncio Rubio, Sebastião Carlos Leite Gonçalves
Estatuto da forma cê: clítico ou palavra? ...........................
Liliane Pereira Barbosa
Implicações de uma perspectiva discursiva para
a construção de uma metodologia de análise das
práticas linguageiras ..............................................................
Isabel Cristina Rodrigues, Décio Rocha
Veridicção e paixão na práxis enunciativa ........................
Arnaldo Cortina
Reflexões metodológicas para a análise sociocultural
de redatores em corpora históricos .....................................
Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio,
Márcia Cristina de Brito Rumeu, Alexandre Xavier Lima
RESENHAS
Tatit, Luiz. Semiótica à luz de Guimarães Rosa ...............
Sílvia Maria de Sousa
OSTERMANN, Ana Cristina; FONTANA,
Beatriz (orgs.). Linguagem. Gênero. Sexualidade:
clássicos traduzidos ...............................................................
Alexandre José Cadilhe
COLABORADORES DESTE NÚMERO ...........................
183
205
223
239
255
263
269
NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS ........... 275
4
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Apresentação
A questão do método nos estudos literários e linguísticos
parece ser, em momento de questionamento de paradigmas, uma
noção em crise. Associadas às ideias de rigor, disciplina e modelo,
metodologias de abordagem dos fenômenos da linguagem parecem reduzir-se a uma atitude analítica baseada em receitas a serem
seguidas, dotadas de previsibilidade e constância. A adoção de
um método, assim, estaria vinculada a uma certa ideia de ciência
historicamente associada a experiência controlada e objetividade.
As ciências humanas, e mais particularmente as ciências da
linguagem, sempre resistiram a essa concepção estreita de ciência
e propuseram, ao longo da história das disciplinas envolvidas, um
alargamento na direção da experiência como vivência do corpo,
dos sentidos e da lógica discursiva intelectual e uma consequente
problematização da perspectiva objetiva de interpretação dos fenômenos. Trata-se de restituir ao sujeito e à história suas funções
no modo de produção da ciência e de acolher o esgarçamento
das fronteiras disciplinares e a discussão crítica dos paradigmas.
Se a atitude de questionamento tem ampliado as possibilidades de análise, há sempre procedimentos a tomar numa análise,
há sempre pressupostos de leitura que a condicionam e, por essa
razão, a questão do método sofre uma espécie de eterno retorno.
Um panorama dos estudos de linguagem hoje no Brasil exibe uma
evidente tensão entre os estudos linguísticos e os literários, que se
revela, na prática, na separação das duas áreas nos Programas de
Pós-graduação e Departamentos, explodindo a noção de Letras
como campo unificado, abrangente e consensual. Observa-se
uma crescente diferença entre a linguística, dedicada a afirmar-se
como ciência por meio de métodos cada vez mais sujeitos a testes,
programas estatísticos, controle de resultados e experiências, e a
literatura, cada vez mais porosa ao contato com outras disciplinas e à absorção de teorias que inscrevem o problema literário
no âmbito da cultura, da história e da experiência humana em
sentido abrangente. É evidente que se fala aqui de oposições mais
marcadas e que sempre haverá oscilações e deslizamentos que
permitem flutuações de concepções e práticas.
A revista Gragoatá pretende, neste volume, oferecer boa e
polêmica amostragem a respeito de metodologias, esperando
com isso contribuir tanto para a discussão do conceito quanto
para a exemplificação de métodos. Sempre vinculados a uma
posição teórica, os modos de abordagem das manifestações de
linguagem são bastante diferentes na linguística e na literatura
e expõem o paradoxo que deriva da tensão entre a necessidade
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do método como princípio de ação científica e a hiperproblematização que o abole.
No entanto, o leitor, ao folhear este volume, verá que os organizadores optaram por não separar rigidamente estudos literários
de linguísticos, por considerar interessante e produtivo tensionar
visões diferenciadas, tanto como forma de expor as fissuras e
nítidas diferenças entre os dois campos de conhecimento quanto
como convite à possibilidade de estabelecer interfaces entre eles.
O artigo de Luiz Costa Lima, que abre o volume, expõe
exemplarmente a mencionada fratura teórica, ao recusar um método para a crítica literária no mesmo ato em que executa uma rigorosa e veemente crítica aos pressupostos e conceitos das leituras
desconstrutivistas. Também aceitando a idéia da polêmica, Sírio
Possenti confronta a linguística textual e a análise do discurso,
apresentando os pontos conceituais que considera inconciliáveis
entre as duas perspectivas teóricas, muitas vezes consideradas,
especialmente pelos linguistas mais duros, como uma só teoria.
Se conceitos já difundidos têm sua discussão assegurada, o
volume também se abre para proposta metodológica inovadora.
Leonardo Davino de Oliveira elege uma experiência pessoal de
audição e análise de canções para propor um método que considere o acaso, a relação amorosa do pesquisador com seu objeto
e a reelaboração de teorias consagradas como possibilidade de
percurso de conhecimento das poéticas da palavra cantada.
Paulo Cesar Duque Estrada reflete sobre a concepção
ideal de método e encontra na própria emergência histórica da
hermenêutica, segundo Gadamer, a raiz da problematização da
noção. Já Olga Guerizoli-Lepinska escolhe o rigor do método,
ao refazer a história do conceito de estranhamento (ostranienie)
a partir de Viktor Chlovski, revelando o fundo prático-teórico
que o viabiliza, problematiza e torna de novo pensável.
Sergio Ricardo Lima de Santana apresenta uma proposta
de análise semiótica de romance fundamentada em Pierce, que
permite maior interferência do analista na obra, enquanto Davi
Andrade Pimentel, de modo mais enfático, ao expor os princípios da crítica-escritura de Leyla Perrone-Moisés, investe no
apagamento dos limites entre a crítica e a obra.
No campo da linguística, várias são as contribuições que
expõem ou exemplificam uma metodologia. O artigo de Tony
Sardinha apresenta a perspectiva metodológica da Análise Multidimensional, muito usada na Linguística de Corpus. Trata-se
de abordagem que lida com corpora eletrônicos para analisar
padrões de ocorrências de elementos lexicogramaticais, permitindo, por exemplo, classificar textos em gêneros.
Outros artigos testam métodos de análise já conhecidos,
como o de Maity Siqueira, Maitê Gil e Tamara Melo, que oferece
dois estudos em que os autores verificam variáveis psicolinguísticas numa lista de sentenças que envolve material metafórico e
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não metafórico, tendo como base a teoria da metáfora conceitual
de Lakoff e Johnson. O artigo de Odete Pereira da Silva Menon,
Edson Domingues Fagundes e Loremi Loregian-Penkal, ao relatar pesquisa sociolinguística no âmbito do projeto VARSUL,
discute resultados de análise da concordância nominal, em
razão de divergência ocorrida quando das rodadas com duas
cidades do Paraná, Irati e Pato Branco, propondo considerar
nova sobreposição de grupo de fatores na análise. Também
amparado teoricamente na Sociolinguística laboviana, o artigo
de Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves
aplica a metodologia a amostras do português falado no interior paulista e aponta como resultados a presença de fatores de
natureza distinta, ora linguísticos, ora sociais, tanto na escolha
entre as formas “nós” e “a gente” quanto na concordância verbal
com tais formas. No âmbito da fonologia, o artigo de Liliane
Pereira Barbosa discute, com base na Teoria da Cliticização e na
Fonologia Prosódica, o estatuto da forma “cê”, defendendo sua
existência como palavra e não como clítico.
Alguns artigos propõem de modo crítico a construção de
uma metodologia. É o caso de Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha, que reafirmam a solidariedade entre teoria, corpus e
metodologia, ao apresentar uma análise dos debates a respeito
da educação de surdos no Brasil, a partir da perspectiva teórica
da análise do discurso de base enunciativa, considerando como
fator de problematização da metodologia a prática linguageira
analisada. Também Arnaldo Cortina, ao expor as novas bases
da semiótica discursiva e exemplificar com um estudo sobre a
veridicção e as paixões no discurso, está atento às necessidades
de fazer avançar a teoria, por meio de método de análise que
acolha uma práxis enunciativa feita de oscilações e gradações
capazes de expressar as relações entre os sujeitos envolvidos na
produção do sentido dos textos.
O artigo de Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre
Xavier Lima põe em discussão procedimentos metodológicos
produtivos no processo de reconstrução dos perfis socioculturais
de redatores de sincronias passadas da língua portuguesa, questionando a aplicação de categorias sociais, como gênero e grau
de escolaridade, aos redatores dos textos analisados. Os autores
indicam caminhos metodológicos que, estabelecendo conexões
entre as formas linguísticas e a função social do informante,
contribuem para o desenvolvimento de uma sociolinguística
histórica do português.
Fecham o volume duas resenhas: Sílvia Maria de Sousa
deteve-se sobre o livro de Luiz Tatit, Semiótica à luz de Guimarães
Rosa, que, num exemplo da possibilidade de articular literatura
e linguística, propõe a leitura de contos de Guimarães Rosa,
considerando-os como verdadeiras reflexões semióticas sobre
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a produção do sentido. Já Alexandre José Cadilhe, ao resenhar
o livro organizado por Ana Cristina Ostermann e Beatriz
Fontana, Linguagem. Gênero. Sexualidade: clássicos traduzidos,
aponta para a importância dessa coletânea de artigos seminais
desencadeadores da análise do discurso voltada para questões
de gênero e identidade social.
A questão do método permanece aberta, urgente e estimulante. O conjunto de artigos e resenhas aqui apresentado propõe
ao leitor justamente possibilidades de reflexão sobre o problema,
que tanto pode reduzir-se à clássica dicotomia necessidade versus
recusa de método quanto pode ganhar densidade e rendimento
com a compreensão da metodologia como condição polêmica
mas sempre definidora da pesquisa científica.
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O estatuto da crítica
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Resumo
O texto faz parte de um debate sobre a posição
da crítica literária quanto à questão do método.
De fato, contudo, o autor, não se julga defensor
de algum método em critica literária, o que vale
dizer, o divisor básico hoje em dia na abordagem
literária não concerne ao ataque ou à defesa do
método. Nem por isso, entretanto, há algum denominador comum na abordagem teórico-crítica.
Isso aqui se mostra pela contraposição à chamada
crítica desconstrucionista, mais especificamente
contra conceitos-chaves da abordagem de Jacques
Derrida.
Palavras-chaves: Desconstrucionismo, Derrida,
referencialidade, différance, metáfora, indeterminação, indecidibilidade
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Luiz Costa Lima
Minha presença aqui decorre de meu nome haver sido sugerido para participar de um confronto entre defensores de duas
posições: aqueles para os quais a crítica literária é uma atividade
contra o método e os que defendem ela implicar um método.
Embora me surpreenda ser incluído na alternativa, como defensor do método, o lugar em que me põem é bastante aceitável se
entender que a linhagem contrária é sustentada sobretudo pela
obra de Jacques Derrida. Portanto, ainda que um fator de polidez
contribua para minha aceitação, não é exclusivamente por ele que
decido colaborar.
É oportuno que comece por argumentar por que me oponho
aos chamados estudos desconstrucionistas.
Ainda estando em andamento uma discussão mais longa
que faço de minha discordância com o textualismo derridiano,
restrinjo-me aqui ao mínimo necessário. Não creio que seja
trivializar o pensamento do judeu argelino que revolucionou o
sistema acadêmico norte-americano declarar que sua intuição
básica esteve baseada no caráter em que via fundada a linguagem humana: sua nuclearidade metafórica. Ela implicava que, na
linguagem, não há diferença entre o sentido próprio ou literal e
sua significação figurada. A afirmação da metáfora resultaria de
uma “mitologia branca”, como desenvolverá no ensaio de mesmo
título (cf. Derrida, J.: 1971), i.e., que apaga a diferenciação das
cores, que daria a peculiaridade desta mitologia quanto àquela,
daquela contra aquela outra, provocando, portanto, uma usura
da imagem, cujo lugar, sempre mutável e sensível à posição que
ela ocupa numa cadeia de signos, é substituído por um sentido
estável, tendencialmente fixo, metafísico. Metáfora e metafísica
derivariam do mesmo propósito de fazer com que a estabilidade
substituísse a incômoda dinamicidade incessante do mundo e
da produção textual humana; a conversão seria possível porque
todo signo verbal, enquanto nomeador de algo, sempre equivale
a uma moeda cuja efígie fosse progressivamente desgastada pelo
uso. A distinção entre sentido próprio e figurado indicaria uma
arbitrariedade multissecular, acolhida pelos tratados de retórica,
admitida por aquele desgaste.
Todo o aparato pressuposto pela “mitologia branca”, com
a corrosão da efígie que transforma a palavra em uma moeda
lisa conduz ao conceito mais famoso de Derrida: o de différance –
ainda que foneticamente idêntico a “différence”, deste se distingue
porque deriva de différer (diferir, adiar, prolongar, procrastinar). Ou
seja, submetida a um fluxo metafórico contínuo, a palavra, em
vez de designar, como quem apontasse com o dedo, move-se e
serpenteia, nunca se restringe a ser isso ou aquilo, pois sempre
está sendo. Que, portanto, provoca esse efeito de diferir, contra
o qual se erguem metafísicas e retóricas? Que, afinal, tanto se
difere? Difere-se, retarda-se a conclusão de qualquer argumento
– pelo menos, desde que ele não se confunda com uma resposta
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O estatuto da crítica
pragmática banal. (Que pode haver de mais corriqueiro do que
um cumprimento automático? Porém, se a um trivial ‘bom dia”,
respondo: “você acha?”, o interlocutor ou entenderá que a réplica
é brincalhona ou ficará intrigado. O inesperado da resposta dissolve o clichê e o fluxo de logos restabelece a dúvida e a inquietação). Dito de modo mais preciso: vista em sua potencialidade, a
nomeação, enquanto manifestação humana, é sempre o produto
de um deslocamento – não se esqueça que ‘metáfora’ significa em
grego ‘viagem, travessia’. Por conseguinte, a différance ressalta que
um enunciado traz consigo a possibilidade de nunca alcançar a
plena decifração. Independente da vontade de quem fala, dizer
provoca o diferir do que se pretendia concluir. A decisão conclusiva é sempre passível de ser retorcida, assumir outra volta, ser
entendida ao revés, a ofensa virar louvor, o louvor, advertência,
etc, etc. E tudo porque o que se diz guarda um resto, imprevisto
mas nele assente. Por isso supor a decifração plena da verdade
corresponde à crença na verdade absoluta, produto por excelência
da concepção metafísica da linguagem. A metafísica equivale a
um corpo pesado que busca tornar estável a frágil leveza que
somos. Daí, recorrendo ao título de seu ensaio sobre a semiologia hegeliana, “Le puits et la pyramide” (1971b), a metafísica ser
comparada à pirâmide, o volume liso e pesado que guardaria
o corpo mumificado do faraó. Por oposição à pirâmide, o poço
corresponderia à fluidez abissal de logos.
Lado a lado da oposição entre poço e pirâmide, põe-se a
idêntica e drástica separação entre logos e escrita. A escrita, como
já dissera em “La pharmacie de Platon”, é um “morto vivo, um
morto em sursis, uma vida diferida, uma aparência de sopro”
(Derrida, J.: 1968, 179); “a magia da escrita e da pintura é, portanto,
a de um fardo que dissimula o morto sob a aparência do vivo”
(idem, 177); enquanto identificada com a figura do estático, do
piramidal, a escrita se põe ao lado da verdade “como possibilidade
da repetição e da submissão (…) à lei (…)” (ibidem, 152). Logos, ao
contrário, é a palavra dançarina, correspondente à formulação
semi-heideggeriana: “Die Sprache spricht, nicht nur der Dichter”.
Que significa que “a fala fala e não só o poeta”? senão que,
por ela, a différance atinge seu máximo potencial. E assim sucederia
simplesmente, porque, na ficção literária – Derrida diria apenas
“na literatura” –, à sua não pragmaticidade se acrescenta a não
referencialidade. (Tenho de resistir à vontade de interromper o
resumo da posição derridiana porque cada vez mais me é difícil ser justo com um argumento de que discordo por completo.
Introduzir aqui, contudo, a contraposição ainda não seria correto.
Quando nada, preciso explicar por que Derrida e os desconstrucionistas excluem a referencialidade da ficção literária). Para me
aproximar do entendimento que ofereceria o pensador francês
preciso recordar a diversidade do que sucede com o conceito. Esse,
para ter assegurada a univocidade que pretende alcançar, precisa
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Gragoatá
Luiz Costa Lima
manter-se como metáfora desgastada e mesmo desbastar o que
ainda dela reste, ao passo que a expulsão da referencialidade no
poético decorreria, ao contrário, de ele afastar-se do sentido único.
O sentido único supõe o uso do sentido próprio do signo. Contra
ele, ou melhor comprovando a arbitrariedade de distingui-lo do
sentido figurado, a poesia potencializa a profundidade do poço,
os deslocamentos do corpo coleante da palavra.
Explicitadas as razões que levam Derrida e seus seguidores,
com ênfase particular para Paul de Man, a relacionar o ficcional
literário com a desreferencialidade, abro uma primeira brecha na
linha expositiva a que acima me dediquei. Parto de uma afirmação
a ser depois retomada. Se Derrida tem o inegável mérito de ser um
leitor extremamente minucioso, em troca tem uma vocação generalizante no mínimo incômoda para o leitor cuidadoso. É o que
tipicamente sucede no exame da referencialidade. Reconhece-se
que o questionamento derridiano ressalta o fundo falso que sustentava a referencialidade: ela era considerada o correspondente
extratextual do sentido próprio de um termo. Assim, ‘árvore’ teria
como correspondente a figura maciça de um tronco de altura
mediana para alta, encimado por galhos e folhas.
É evidente que se entendermos referencialidade deste modo
ela só é cabível quanto ao signo em função indicial – “sim, disse a
vítima, é ele mesmo quem me atacou”. Mas uma certa diferença se
estabelece se entendermos por referencialidade não o dado factual a
que o signo aponta senão que o horizonte de correspondência que o signo
traz consigo. Enquanto horizonte de correspondência, o referencial
por certo pertence à ordem do mundo e não se esgota no campo
lexicográfico. Os dicionários não seriam factíveis se pretendessem
dizer do potencial de correspondência dos signos. Enquanto tal,
o horizonte que traz a palavra em seu uso não cria a equivalência
de duas ordens, a do mundo e a do léxico, senão que impede que
as duas ordens permaneçam desconectadas. Por isso sua conexão
não é pontual mas caracterizada como horizonte, pano de fundo
que cria a ambientação para a cena.
Feita a retificação, é absurdo dizer-se que a poesia ignora a
referencialidade. Por certo, desconhece, em absoluto, a equivalência pontual mas, se ela não se relacionar com um horizonte de
sentido, significará aquilo que o intérprete, de algum modo legitimado - seja por pertencer a um país “metropolitano” ou a uma
instituição de prestígio, seja por representar a corrente de antemão
acatada – “demonstrar” aquilo que está a dizer. Desbastado seu
entendimento grosseiro, pode-se acrescentar: a referencialidade
acompanha todo ato da fala. Acompanha-se pela razão absolutamente oposta àquela em que se fundamentou sua concepção
corriqueira, contra a qual se levantará a filosofia da linguagem
contemporânea: a que se apresenta de modo sucinto na passagem
dos Tópicos: “Uma definição é uma frase que indica a essência de
alguma coisa” (Aristóteles, Tóp., I, 101 a 39). (Em relação a cuja
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O estatuto da crítica
concepção Barbara Cassin bem escreve: “E porque certas palavras
têm um sentido sem que lhes corresponda essência alguma, devese recusar a proposição geral conforme a qual as palavras têm um
sentido porque as coisas têm uma essência” (Cassin, B.: 1989, 38).
Desde a declaração mais corriqueira, ante a qual é impossível ignorá-la ou confundi-la, até o poema mais intenso em sua
extrema síntese. Considere-se neste caso o “Mattina” de Ungaretti,
exemplo a que em tantas ocasiões tenho recorrido. Ele consta de
apenas dois versos:
M’illumino
D’immenso
O leitor dotado de um mínimo de sensibilidade compreenderá que o sujeito da frase não corresponde ou ao eu do poeta ou
a outro qualquer eu. Sua referencialidade? A agência – humana –
objeto da invasão de imensidade que o transborda. Seu horizonte
é o de uma claridade ímpar, que, no entanto, não se poderia dizer
sem limites porque se percebe que é terrena, apenas humana,
nada suprassensível ou concorrente de uma experiência mística.
O referencial poético não se confunde com o de uma proposição
qualquer. Mas, poético ou não poético, todo enunciado tem um
referente.
Tomo ainda um outro exemplo. Digamos que me defronte
com a frase: “Luz! Mais luz!”. Embora banal, ela se torna incompreensível se não se conhecer o contexto a que alude. E como
ignorarei que tem um referencial específico, que mais bem
manifestaria a vontade de permanecer em atividade de vida do
que algum conteúdo dramático, se recordo que eram as palavras
pronunciadas pelo Goethe moribundo? Não se diz que a frase,
por ter sido pronunciada por Goethe, se torna poesia (!), senão
que, como no “Mattina”, não é entendida se não se considerar o
contexto pelo qual é precisado seu horizonte de sentido. Sem que
esse seja pontual, muito menos aquele ou algum outro, o horizonte
referencial supõe a compreensão da ambiência em que se dá – seja
a página de um livro, seja um leito de morte.
Suspendi a exposição que procurava que fosse a mais imparcial possível pela afirmação terminante de uma restrição quanto a
um ponto decisivo do pensamento de Derrida. Desde aí, contudo,
desfiar as progressivas divergências seria algo demasiado esperável. É preferível confrontar-me com o pensamento sob exame,
vendo-o sob o ângulo especial a que o submete Peter Sloterdijk,
em um ensaio tão pequeno quanto notável.
O propósito do pensador alemão, em Derrida, um egípcio,
não era nem atacar, nem defender o autor que há pouco havia
morrido, senão que pensar sobre seu legado. Procuro resumi-lo
para, a partir daí, verificar que desenvolvimento lhe darei.
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Gragoatá
Sloterdijk cita sua
edição em alemão, sem
indicar sua data de publicação. Como Borkenau, austríaco de nascimento, passara a viver
na Alemanha, nos anos
20, e, com a ascensão
do nazismo, se exilara
na Inglaterra, sua obra
póstuma, como acentua seu editor Richard
Lowenthal, é formada
tanto por textos escritos originalmente em
alemão como em inglês.
Na falta de cotejo com a
edição mencionada por
Sloterdijk, tomo a em
língua inglesa como a
original.
1
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Luiz Costa Lima
Fundando-se em obra póstuma do historiador da arte Franz
Borkenau1, Sloterdijk partia de as culturas derivarem de uma
alternativa:
Enquanto um dos tipos de cultura rejeita a morte e reage com
uma doutrina da imortalidade, o outro se resigna e desenvolve,
fundamentalmente, uma cultura comprometida com este mundo.
Borkenau qualificava essas opções bipolares como ‘antinomia da
morte’ (Sloterdijk, P.: 1986, 40).
Comprometidas com a aceitação da morte, as culturas
grega e moderna [não é acidental que um dos temas capitais que
essa acolhe esteja no antagonismo entre a tese da secularização
– “Todos os conceitos pregnantes da moderna teoria do Estado
são conceitos teológicos secularizados” (Schmitt, C.: 1922, 43) – e
sua recusa terminante por Hans Blumenberg (cf. Blumenberg, H.:
1966)] – divergem na raiz das que asseguram a imortalidade (Egito,
Jerusalém, Roma). Sloterdijk recorda a tese de seu compatriota
para logo acrescentar que Derrida não optava por uma ou outra
linha, senão que mantinha uma linha de compromisso entre elas.
A escrita (écriture), morta-viva, é o seu lado piramidal, ao passo
que a fluidez do signo seria indicativa da vida de logos, sempre
entrecortada pelo incessante deslocamento do sentido. Daí caber a
Derrida tanto a afirmação que valeria para o desconstrucionismo
em geral – “Poder-se-ia descrever o procedimento desconstrutor
como um manual de instruções, a fim de permitir a transmissão
das igrejas e castelos do ancien régime metafísico e imortalista para
as mãos dos mortais civis” (Sloterdijk, P.: idem, 44) – como a de
direção contrária: “(A desconstrução) significaria uma tentativa
de associar igualmente o pertencimento da cidade moderna dos
mortais a uma opção em favor do imortalismo egípcio” (ibidem,
47). Serem as direções contrárias, não significa que Sloterdijk procurasse com elas desmerecer o amigo morto, senão apenas assinalar que esse se punha na confluência de linhagens contrapostas.
xxx
Se expus as teses contrárias com boa vontade e mesmo
simpatia, por que não as endosso? Lembro a sábia advertência do
filósofo: a qualidade de teu trabalho pode depender da escolha de
teu adversário. Mas o que importa é a razão da discordância com
o que expus. Resumo-a aos mínimos pontos capitais.
(a)Seja a primeira a que afirma que um conjunto de enunciados formadores de uma linha argumentativa se apresenta
como uma cadeia metafórica desgastada. Essa cadeia
constituiria, portanto, uma “sedimentação metafórica
dos conceitos” (Derrida, J.: 1971, 255), sedimentação responsável pela “camada de ‘primeiros filosofemas’ “(idem,
261), de que resulta que a suficiência dos conceitos e dos
primeiros filosofemas é sempre uma ilusão de uniciNiterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010
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O estatuto da crítica
dade; poderíamos dizer é um engano “piramidal”, pois
dá a entender que, por fim, se conseguiu fazer cessar
as contínuas reviravoltas e deslocamentos de sentido.
Sem entrar em uma discussão filológica para a qual não
sou competente, e mesmo que admita que “a teoria da
metáfora (…) parece pertencer à grande cadeia imóvel
da ontologia aristotélica” (ibidem, 281), que, por conseguinte, o “sol” nele se multiplica em um sistema estelar
(cf. ib., 291), daí não se conclui que, ao ter sua efígie
desgastada, a metáfora lisa continue a funcionar como
metáfora. O que equivale a dizer: a crítica da metafísica
e da verdade como substância e, assim, indestrutível,
firme e inamovível assume em Derrida uma tamanha
totalidade que reproduz, pelo avesso, a própria vocação
totalista da metafísica. Nele, se tem a defesa do singular
que paradoxalmente eleva a singularidade à condição de
totalidade. Daí o engano que, como Sloterdijk observa,
favoreceu o próprio Derrida: a muitos sua reflexão deu a
entender que a desconstrução era “a derradeira oportunidade para uma teoria integrar por meio da desagregação”
(idem, 17) quando, em verdade, era a figura final de um
processo lógico, o “da virada linguística ou semiológica”
a que, no século XX, foram submetidas “as filosofias da
linguagem e da escrita” (ibidem, idem). Porém o mais
grave não está em considerar novo o que era o ato a mais
de uma peça já encenada senão na pretensão de dizer da
linguagem em termos absolutos, sem considerar que sua
função se modifica de acordo com a disposição discursiva
em que ela está sendo usada. Ao ignorar a diversidade
dos modos discursivos, Derrida converte o propósito de
destruir a metafísica em equivalente ao que julga idêntico
à desmistificação de toda forma de pensamento, ou seja,
idêntico a negar a ambição de algum enunciado ser pura
conceitualidade;
(b)Papel da différance: dentro da ambição totalizante, que
esperava “integrar por meio da desintegração” (Sloterdijk), para Derrida, onde haja linguagem, ao menos onde
ela não se confunda com uma nomeação banalizada, o
diferimento que processa significa o estabelecimento de
uma indecidibilidade. Contra o decisionismo político de
Carl Schmitt – cujo pensamento é aqui lembrado porque,
nos mesmos anos 70, suas obras recomeçavam a circular
fora da Alemanha – a indecidibilidade derridiana se
mostraria como seu avesso irônico, cuja aparência radical
era, na verdade, algo ocioso.
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Lembre-se a passagem de alguém que escrevia então de dentro
da universidade norteamericana: “Enquanto
tentativa de corroer toda
autoridade, a própria
descon st r ução i n st itucionalizou-se como
u m e mp r e e nd i m e n to antihermenêutico,
convertendo-se em um
mecanismo mimético de
exclusão e apropriação”
(Spariosu, M.: 1984, 79).
3
Para maiores esclarecimentos acerca da distinção entre indecidível
e interminável, remeto
para o meu Mímesis,
desafio ao pensamento.
Cap. VII, “O Paradoxo
em Kafka”.
2
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Luiz Costa Lima
Pode ser proveitoso levar adiante o cotejo. Por que a indecidibilidade, do ponto de vista de Carl Schmitt, seria ociosa? Porque
decisionismo era formulado como um meio para a luta política,
enquanto a indecidibilidade antes se assemelharia à “conversa
infinita” com que Schmitt caracterizava a atitude liberal, que,
tornando o sujeito individual o verdadeiro centro do regime,
convertia o liberalismo em impotente para enfrentar os regimes
de força. Por que avesso irônico do decisionismo? Por dois motivos. De imediato, porque, dentro de uma ortodoxia derridiana, a
postura de Schmitt ignorava a propriedade mínima da linguagem:
a decisão criaria um dique que o fluxo da linguagem terminaria
por rebentar. Em segundo lugar, porque o auge de prestígio da
différance e, em consequência, do indecidível, nas universidades
norte-americanas, levava os desconstrucionistas a discriminar
autoritariamente os que não concordassem com eles. Ou seja,
teoricamente desinteressados pela luta política na prática, “decidiam” pela exclusão de seus adversários.2
O contraste acentuado não teria sentido – afinal Schmitt e
Derrida tratavam de objetos bastante diversificados – caso não
fossem seus pontos de contato não fossem pontos de atrito: se, por
um lado, o decisionismo pareceria algo rude e, portanto, diante
do qual os defensores da indecidibilidade poderiam permanecer ociosos ou ironicamente separados, por outro, quando esses
exerciam posições de mando mostravam saber decidir do modo
mais peremptório: por exclusão dos divergentes.
Considere-se o caso ilustrativo do que de fato sucede com a
différance: seu desinteresse por assuntos ou disputas tão-só acadêmicas era apenas uma aparência, e decorria da entonação totalista
contida no pensamento derridiano. Por efeito de seu totalismo, em
vez de considerar a différance como provocadora de um inevitável
indecidível, considero que, no próprio texto poético, a indecidibilidade – i.e., a terminante impossibilidade de dizer-se qual o
sentido de um poema – é tão-só uma entre duas possibilidades,
sendo a outra, a indeterminabilidade – i.e., o sentido é passível de
ser declarado, embora nunca se possa dizer que ele seja o único
e estavelmente fixado.3
Como já considerei a questão da referência não estranharia
que a muitos seu retorno pareça extravagante. Sucede porém que
a posição assumida por Derrida e os desconstrucionistas em peso
não foi inaugurada por eles. Como já se disse acima, confundir
a referência com um duplo natural do signo a tal ponto generalizou-se que ainda agora questionar sua negação chega a parecer
inconcebível. Como primeiro sinal do que sistematizarei a seguir
como próprio da postura que tenho assumido, devo, portanto,
insistir sobre o questionamento da repulsa da referencialidade.
Vale partir de uma observação que ouvi do poeta João
Cabral. Visitava-o em seu apartamento do Rio de Janeiro, onde
estava de férias de alguma embaixada na América Hispânica.
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Meio irritado, meio irônico, me contava que recebera à tarde a
visita de uma professora de literatura. Conforme o poeta, ela
queria saber se a referência frequente à cana de açúcar, em seus
poemas sobre o Nordeste, não trazia uma carga fálica. Ainda
exasperado, João acrescentava: por que esta sua colega não considerou que eu venho da zona da mata de Pernambuco onde, desde
criança, convivi com a paisagem dos canaviais? Tiro do episódio
uma consequência banal: a palavra, mesmo a poética, por certo
que desconhece uma referência unívoca, mas tomá-la como se
solta no mundo, juntando-se aleatoriamente a qualquer outra
e então passível de sustentar uma simbologia qualquer, seria
viável apenas para um surrealismo facilitado e/ou promotor de
uma poesia que confunde o inefável a que aspira com a arbitrariedade que pratica – os exemplos são tão frequentes quanto a
permanência do desdém pela teorização. Em suma, a referência,
desde a imediata – alguém entra na sala e pergunta: “quem aqui
é Pedro?” – até a mais alusiva é uma sombra que sempre acompanha a palavra. Seu desdém é tão estúpido como o realismo
banal a que usualmente está associada. Se próprio da imagem
é sua potencial plurivocidade, pela qual ela se põe na antítese
do conceito, negar a referencialidade termina por implicar que,
diante do mundo, o comércio com a linguagem, supõe de duas
uma: ou a pura objetividade que configura o conceito ou a intensa
subjetividade estimulada pela imagem. É ainda de se acrescentar:
o conceito, entendido como operador científico, tem um referencial
a posteriori. (Algo que se pareça com um limão não é necessariamente incluído entre os cítricos). A referencialidade do conceito,
na acepção filosófica, tampouco se estabelece a priori. Ou seja, não
é por sua relação com a referencialidade que o operador científico
se diferencia do conceito filosófico, senão pela maneira como um
e outro se “aproximam” do que tratam – o operador manipula seu
objeto, o conceito o tematiza. Quanto à imagem, ser ela plurívoca
não quer dizer que signifique o que pretenda nela ver quer o
engenho, quer o primarismo do leitor. Mais relevante que essas
considerações sobre o papel da referencialidade na ciência, na
filosofia e na ficção literária é levar em conta que o fenômeno da
linguagem assume feições distintas de acordo com a modalidade
discursiva em que se mostra. (Modalidade discursiva, i.e., análise
das distintas formas discursivas é algo que não se encontra em
Derrida. Mas tampouco posso aqui mais do que dizer que a
abordagem linguística do discurso muito menos é satisfatória).
xxx
A partir dos pontos destacados, posso agora me perguntar:
sou então defensor de um método, em crítica literária? Sem qualquer sofisticação, entendo por método o conjunto de procedimentos reiterados que visam ao alcance de certo resultado previsto. Os
exames médicos rotineiros a que nos acostumamos obviamente
se processam de acordo com um método. A importância que as
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ciências assumem em nosso cotidiano é contudo responsável pelo
uso abusivo do termo. E passa-se a chamar de ‘método’ não só o
que é habitual na conduta de alguém como se exige a declaração
de método onde ele não se dá. Assim, por exemplo, os formulários
a serem enviados aos institutos de apoio à pesquisa, costumam
indagar aos que pretendem bolsas ou outra forma de ajuda, nas
ciências humanas, que método será usado em seu trabalho. O
solicitador então terá de dar voltas à capacidade de forjar sentido
para frases inócuas, enquanto seu colega em ciências da natureza
simplesmente indicará o nome de um procedimento reconhecido.
A competência administrativa de uma instituição por certo não
se mede pela capacidade de seus funcionários em saber o que
distingue a prática entre as ciências “duras” e as humanidades.
Nem por isso é explicável que continuem a ser impressos formulários com semelhantes questões. Seja o caso da análise de
um texto poético-ficcional. Empregar a seu propósito um método
significaria supor que há etapas fixas, pelas quais se pretenderia,
ante a positividade de resultados já alcançados, alcançar um certo
resultado. Diante de certo procedimento analítico, o texto deveria reagir como uma substância química ao contato com certo
reagente. Ora, alguém que tenha de fato aprendido com a própria
experiência saberá que cada autor exige que se desenvolva uma
abordagem específica. Na formulação tão sumária como precisa
de Ernst Jünger: “Os autores diferem entre si como diferem os
peixes, os pássaros, os insetos”. Ao contrário de uma aplicação
metodológica rotineira, aqui não há qualquer previsão de um
certo resultado ou mesmo de chegar-se a resultado algum. Podese até lamentá-lo, mas a rotina não é esperável na tarefa analítica
no campo literário. Negar a expectativa de rotina não equivale a
dizer que qualquer procedimento torne-se então válido. Se, pela
dificuldade que encontro em certo texto ou autor, adoto os princípios da direção que atrás se indicou como contrária ao método,
demonstro apenas que meus princípios teóricos não devem ser
levados a sério.
Em suma, portanto, mostrar-me contrário aos princípios que
orientam a prática desconstrucionista não supõe que eu proponha
algum método. Na posição que defendo e orienta minha prática
analítica, o que mais se aproxima de uma afirmação metodológica
seria a de que cada área discursiva (a ficcional, a das ciências da
natureza, a das ciências humanas, a da filosofia, a da religião, a
das interrelações pragmático-cotidianas) exige modos de indagação diferenciados. Quando algum deles admite ou mesmo passa
a exigir um certo método será pela combinação de duas condições: (a) que a operação analítica já tenha apresentado resultados
tão constantes que possa ser usada automaticamente e (b) que o
objeto mostre uma alta previsibilidade de comportamento. Se essa
combinação não fosse frequente, as ciências não teriam ganho o
prestígio que hoje têm. Mas, se as próprias ciências fossem apenas
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Prefiro falar em nocional para não voltar a
distinguir entre o conceito, em sua acepção
filosófica e em sua dimensão operacional, i.e.,
científica.
4
reiteradoras de métodos já afirmados, elas não avançariam. E, se
avançarem graças apenas à argúcia do pesquisador, enquanto o
objeto mostrar condutas imprevistas? Neste caso, já não se estará
tratando com uma área científica. Para comprová-lo, sugiro que –
desconsiderando a patente orientação a favor da imagem, concentrada na qualificação de ‘crueza’, - leia-se a seguinte passagem:
“Quem pensa em conceitos e não em imagens, procede diante da
linguagem com a mesma crueza de quem vê apenas as categorias
sociais e não os homens (Jünger, E.: 1949, II, 59).
Mesmo desconsiderando o manifesto parti pris de Jünger,
é evidente que, nas ciências humanas, só as categorias sociais
podem oferecer um grau aproximado da estabilidade dos fenômenos naturais; por isso só elas são passíveis de alcançar um certo
grau de cientificidade.
Isso posto, posso acrescentar uma razão extra para me orientar pelo caminho que assumo: se, em vez de uma visão totalistametafísica, acentua-se a necessária diversidade de campos discursivos, assume-se, em consequência, uma indispensável visão
diversificada do signo. No signo, as direções passíveis de serem
tomadas dependem da relevância de uma entre duas direções: a
imagética e o nocional.4 É bastante sabido que, nas ciências ditas
exatas, a dimensão imagética necessariamente estiola. Que interessa ao biólogo que o termo ‘célula’ tenha como lastro metafórico
original ‘pequena cela’? Em troca, se o analista do texto ficcional
literário não considera essas diferenças, é arrastado a converter
seu próprio texto em competidor daquele que examina. Se o ficcional literário, sobretudo em sua espécie poemática, é comparável
a um poço interminável e indecidível, o texto analítico deveria
então ter as mesmas qualidades. Que interessa compreendê-lo, se,
enquanto poético, estará sempre aberto a outra compreensão? Para
que então o analiso? Para saber-me responsável por uma de suas
variantes interpretativas? Por isso a crítica desconstrucionista, ao
se recusar a reconhecer uma diferença capital entre ela e o texto
sobre o qual se dobra, ou assume um panficcionalismo ou afirma
de si que é um gênero tão poético como seu objeto. Deste modo,
sob o pretexto, correto, de que a crítica não é julgamento senão
que indagação dos limites da razão, o desconstrucionista torna-se
um grande juiz: sua sentença consiste em deslocar o entendimento
prévio e assente e, ao mesmo tempo, em desconsiderar quem não
parta de seus pressupostos.
Contra tal curso, terei de dizer que a crítica por certo não
é julgamento, mas juízo sobre os limites da razão – o imagético
e as formas de conceitualidade (cf. nota 3) traçam limites para a
razão. Se a crítica não é poética, nem por isso há de ser menos
poiesis. Quando não alcança esse estágio, ela é algo que apenas
serve para a premiação em concursos ou para discriminar entre
autores que separa entre bons ou maus. Poiética, a crítica do ficcional literário não possui propriamente conceitos. Ora, se dela já
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afastamos a dominância imagética, onde, afinal, se sustenta? Em
sua acepção científica, i.e., enquanto operador, o conceito é um
enunciado tanto mais poderoso quanto mais unívoco. Sua univocidade é sua vantagem e, ao mesmo tempo, seu limite. O conceito
da atração universal dos corpos é algo que, desde sua formulação,
a humanidade não pode ignorar. Mas não se queira que ele diga
mais do que diz. O conceito é literalmente Begriff, i.e., algo que
agarra e prende. O latim forneceu ao alemão a possibilidade de
um par, Konzept. Mas, no léxico corrente, Konzept significa ’esboço,
projeto, programa’. Para que o termo diga de sua função na filosofia teríamos de ressaltar sua etimologia: konzipieren, derivado de
concipere. A crítica é poiética à medida que supõe a abertura para
uma concepção que ela então elabora. Longe de tornar as imagens
ociosas, o poiético da crítica não compete com as voltas e giros,
torsões e deslocamentos do ficcional literário, mormente de sua
espécie poemática. Muito menos pretende alcançar a precisão e
limite dos Begriffen. Ela visualiza o indeterminável, minoritariamente o indecidível. A crítica ativa o pensar; só ao tentar conciliar
o inconciliável, passa a competir com o texto poemático: a fluidez
do poço com o volume fixo da pirâmide. Contra essa possibilidade, a ativação da crítica pelos três tratados kantianos já nos
tinha alertado. Não é acidental que, como corrente de agora, o
desconstrucionismo ponha a crítica no ostracismo.
xxx
Reservo uma última observação para o modo como me
distancio do desconstrucionismo. Sloterdijk já disse que ele
representou a esperança de que se conseguisse construir algo
novo por meio da destruição. Neste sentido, Derrida foi um continuador de Nietzsche e Heidegger. Ora, ainda que se admita que
essa promessa não se cumpriu não se pode negar que os instrumentos que aguçou trouxeram um sopro novo e deram maior
maleabilidade ao ato de pensar. À minha posição, ao contrário,
parece caber imagem de sentido bem diverso: como que ela volta
a percorrer o campo do conhecimento, de que, depois de arado
por vários sistemas de pensamento, ainda apresentasse, aqui e
ali, alguns brotos que tivessem escapado ou colhidos de maneira
imperfeita. Seria antes com esses restos que tenho trabalhado. É
tipicamente o que sucede com o que tenho feito com a mímesis.
Nos vários livros em que a considerei, procurei mostrar que não
cogitava nem de recuperar seu sentido aristotélico, nem de nos
aproximar do sentido que receberá na acepção hegeliana, sem
que tampouco se pudesse pensar em alguma afinidade fosse
com a tradição clássica da imitatio ou com a reflexologia em que
o marxismo recaiu. Não vou aqui repetir senão que a retomada
da mímesis inverte seu perfil: se ela guarda da velha acepção o
princípio de correspondência entre textualidade verbal ou visual
e configuração de um certo mundo, nunca tal correspondência dá
a entender que o produto da mímesis seja uma segunda natureza, i.e.,
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O estatuto da crítica
algo que se explique antes da configuração formal. Não poderia
sê-lo porque entendo que a mímesis artística supõe a dominância
do vetor diferença sobre um lastro - sempre mais distante quanto
mais se caminha ao longo do processo de autonomização da arte
– de semelhança.
Não vou nem desrotinizar a explicação acima, nem a prolongar até aos princípios de controle do imaginário e de ficção
literária. Para os três casos, mantém-se correta a imagem de
alguém que cuida dos restolhos que sobraram de campos amplamente cultivados. Duas interpretações seriam então possíveis:
ou isso sucede por falta de inventividade de quem o tenha feito
ou porque as colheitas anteriores eram feitos com instrumentos
rudimentares.
Por mais diferentes que sejam as duas possibilidades
nomeadas, elas têm algo em comum: a primeira indicaria o
reconhecimento de que o que fiz não faria falta; a segunda daria
a entender um gesto de presunção insuportável: o que antes de
mim a propósito foi feito, tinha ferramentas toscas. A presunção
seria tamanha que provocaria o mesmo resultado: o que a motivou pode ser esquecido, porque não faz falta. Como então evitar
o pensamento de haver gasto a vida com inutilidades? Sem que
apresente uma resposta definitiva, lembro o que Ernst Jünger
afirmava em seu ultimo diário: “Ao saber pertence a dúvida”
(Jünger, E.: 1949, III, 273).
Abstract
The text belongs to a debate in literary criticism
on the question of method. As a matter of fact, the
author does not consider himself as a defensor of
a definite method. This means that the dividing
line in current literary approach does not concern
the question of method. What does not imply that
there is a common denominator in today theoretical and critical approach to literature. That is
the reason why the text below is characterized by
its contraposition to the so-called desconstructionist critique, more specifically against Jacques
Derrida’s approach.
Keywords: Deconstructionism, Derrida, referentiality, différance, metaphor, indetermination,
undecidibility
Referências
ARISTÓTELES. Tópicos, trad. de Edson Bini, in Órganon, EDIPRO,
São Paulo, 2005.
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Gragoatá
Luiz Costa Lima
BLUMENBERG, H.: Die Legitimität der Neuzeit (1966), ed. renovada
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DERRIDA, J.: “Le puit et la pyramide” (1971b), republ. in Marges,
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JÜNGER, E.: Strahlungen II. Das Zweite Pariser Tagebuch (1949), DTV,
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JÜNGER, E.: Strahungen III. Kirschhorster Blätter. Jahre der Okkupation, (1949), DTV, Munique, 1966.
SCHMITT, C.: Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der
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O problema da pirâmide judaica, Estação Liberdade, São Paulo, 2009.
SPARIOSU, M.: “Mimesis and contemporary French theory”, in
Mimesis in contemporary theory, volume 1: The Literary and philosophical debate, Mihai Spariosu (organiz.), John Benjamins Publishing
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Niterói, n. 29, p. 9-22, 2. sem. 2010
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Teorias de texto e de discurso:
inconciliáveis?
Sírio Possenti
Resumo
O trabalho parte da constatação de que não há,
praticamente, debates ou polêmicas na academia
brasileira, pelo menos na área de estudos da linguagem. Depois de expor a tese de Dascal sobre
a relevância das controvérsias, concentra-se na
distinção entre os estudos de texto e de discurso,
que eventualmente são aproximados, pelo menos
pela ocorrência de certos termos, especialmente
“discurso”. Apresenta as diferenças fundamentais
em relação a determinadas questões (sujeito, leitura, multissemiose) e concentra-se nas diferentes
concepções sobre um tema que os estudos de texto
tornaram corrente no Brasil, a referenciação. A
tese é que as soluções da análise do discurso e dos
estudos de texto são incompatíveis e que temas
como este deveriam ser explicitamente debatidos,
como se se tratasse de “descobrir” efetivamente a
melhor solução.
Palavras-chave: controvérsia, discurso, texto,
referenciação
Gragoatá
Rev Gragoata n 29.indb 23
Niterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010
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Gragoatá
Sírio Possenti
Introdução
Preciso começar este texto com duas notas quase pessoais,
e bem diferentes entre si. A primeira é que tenho um gosto pelas
polêmicas (embora o cultive menos do que gostaria). Já disse a
amigos que, se pudesse, viveria delas. Ou seja, gastaria de bom
grado meu tempo debatendo dados, análises, argumentos. De
certa forma, exercito esse meu gosto nas colunas que escrevo há
uma dúzia de anos na imprensa, primeiro em um jornal do interior paulista (Jundiaí), depois em mídias eletrônicas. Mas essas
polêmicas privilegiam “interlocutores” da própria mídia – jornalistas, colunistas, intelectuais diversos e políticos que decidem pronunciar-se sobre questões de língua. É “contra” eles que a maioria
de minhas colunas é produzida. Se tomam conhecimento delas,
fazem de conta que não as leram. Só uma ou duas vezes escrevi
claramente sobre leituras de textos de minha autoria feitas na
academia. Mas creio que posso dizer que quase tudo o que escrevi
era motivado por esta espécie de sanha de debater com alguém.
A segunda nota é sobre a inexistência de debates na academia brasileira, de forma que tenho que alimentar meu gosto
lendo o que ocorre em outros países. Há pouco tempo, escrevi
um prefácio um pouco em desacordo com as regras do gênero
(pelo menos entre nós). Estas, aparentemente, obrigam a elogiar
e, quando se trata de coletâneas, a fazer um resumo de cada texto,
como para ensinar a ler o livro. Fui mais ou menos execrado, pelo
que sei. A consequência mais óbvia dessa quebra das regras, dessa
pequena heresia (eu dizia que o livro era bom, mas indicava uma
direção dissonante em relação a teses fundadoras do campo, e
que cumpria esperar para ver se a tendência se afirmaria ou não)
foi a diminuição de convites para bancas e outras participações
similares em determinados espaços. Mas não houve uma resposta
escrita, nem mesmo uma conversa direta.
Um dos corolários desse estado da questão é que as resenhas
são sempre amigáveis, feitas por alguém do grupo. Acrescento
imediatamente que considero as resenhas “de dentro” fundamentais, porque penso que é verdade que só assim estão dadas
as condições para uma leitura adequada do texto resenhado (as
teorias sobre a relevância da ideologia para o “progresso” do
conhecimento explicam esse fato (ver Löwy 2003, especialmente o
capítulo sobre o marxismo). Mas fazem falta as resenhas “de fora”,
as que explicitariam possíveis limites das obras, eventualmente,
seus problemas ou defeitos, ou, mais amplamente, alternativas
de análise.
Um motor?
Dascal (1994) defende que o “avanço” da ciência se deve às
controvérsias. Constata o fracasso da epistemologia lógico-positivista, tanto em suas vertentes normativas (as que ditam com24
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Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis?
1
Apelo para esta palavra para não tomar
posição em relação ao
enquadramento do caso
na tipologia de Dascal...
portamentos aos cientistas – quer sejam indutivistas, quer sejam
dedutivistas, quer estejam entre os que acreditam que devem
testar duramente suas hipóteses ou mesmo ser persistentes diante
do falseamento delas) quanto nas descritivas (que pretendem dizer
como a ciência “avança” pela análise de sua história). Segundo
ele, nenhuma dessas propostas tem espaço para a consideração
do papel das controvérsias, que, a seu ver, são o verdadeiro motor
da ciência.
Apresenta duas teses gerais sobre as controvérsias: (I) As
controvérsias são indispensáveis para a formação, evolução e avaliação das teorias; (II) A pesquisa das controvérsias é indispensável
para uma descrição adequada da história e da práxis das ciências.
Distingue, num terceiro passo, no interior do fato empírico
“discurso polêmico”, as discussões, as disputas e as controvérsias.
Caracteriza as primeiras como polêmicas cujo tema é bem circunscrito. Os participantes da discussão tendem a reconhecer que o
problema é um erro relativo a algum conceito ou procedimento.
Discussões permitem soluções. Uma disputa envolve, além de
problemas ou procedimentos, diferenças de atitudes, sentimentos ou preferências. Não há procedimentos mutuamente aceitos
para decidi-las; ou seja, elas não têm soluções. As controvérsias
estão em posição intermediária entre as duas anteriores. Podem
começar com um problema específico, mas logo se expandem para
outros e revelam divergências profundas. Envolvem preferências,
mas não se reduzem a elas. A eventual resolução pode consistir
no reconhecimento de que se acumularam mais argumentos ou
dados em favor de uma posição do que de outra. Um dos efeitos
é que ambas as posições podem resultar em parte modificadas.
As principais características das controvérsias são: a) não
se confinam aos problemas iniciais; b) os contendores questionam os fundamentos da posição contrária, sejam factuais, sejam
metodológicos, sejam conceituais; c) os contendores discutem os
procedimentos hermenêuticos dos adversários; d) são abertas,
ou seja, não se sabe onde vão desembocar; e) encerram-se sem
“fechar” a questão; f) sua abertura não implica anarquia, ou seja,
nelas não há vale-tudo (Dascal 1994, passim).
Minha experiência de análise de um debate1 deixou a seguinte impressão: que as posições dos contendores são mais facilmente modificáveis a partir dos dados. Mostrar outros dados e/
ou que os dados que sustentam uma posição foram mal coletados
enfraquece posições ou leva contendores a admitir problemas em
seus trabalhos mais comumente do que apresentar argumentos
metafísicos ou ideológicos contrários.
Talvez valha a pena mencionar a posição de Maingueneau
(1984/2008) sobre as polêmicas. Ele analisa o embate entre duas
formações discursivas (que depois chamaria de posicionamentos) religiosas no espaço do cristianismo devoto. Sua tese é que
a polêmica é regida pela semântica de cada FD, de forma que os
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Gragoatá
Sírio Possenti
contendores não se “entendem” (a polêmica é regida pelo que ele
chama de “interincompreensão regrada”, que não implica nem
desonestidade intelectual nem deficiências cognitivas, mas apenas
decorre do fato de que cada contendor lê o outro a partir de sua
semântica, do que deriva que nunca se “compreendem”). É o verdadeiro diálogo de surdos. Maingueneau compara a interincompreensão à incomensurabilidade que haveria entre paradigmas
e ressalta uma diferença: no caso de teorias opostas, é possível
que a controvérsia seja resolvida em favor de uma (pelos dados,
eventualmente); no caso das polêmicas ideológicas, não há um
juiz exterior e acima das duas posições que possa definir vitoriosos. Quando os há, os motivos são outros: um grupo desaparece,
por exemplo, e o que a história pode fazer é explicar esse fato. É
exatamente o caso dos jansenistas, um dos polos da polêmica que
Maingueneau analisa.
Um debate surdo
Por isso não trato de
estudos específicos e,
portanto, não há citação
de nenhum trabalho. Se
o fizesse, talvez criasse
mais problemas do que
imagino criar por ora.
3
Ponho a palavra entre
aspas apenas porque,
em geral, não há uma
teoria em cada um dos
lados, mas teorias mais
ou menos próximas ou
que partilham de elementos comuns; essas
características constituem nitidamente dois
pontos de vista distintos.
2
26
Rev Gragoata n 29.indb 26
Meu objetivo, neste trabalho, é apresentar bastante informalmente2 as questões teóricas (e algumas empíricas) centrais
que dividem as teorias de texto e as de discurso. Meu argumento
– nada novo – é que elas não são equivalentes, nem complementares, e que não são simplesmente duas maneiras de fazer a mesma
coisa. Eventualmente, trata-se de explicações concorrentes para os
mesmos fatos. Mas, em geral, mais do que isso, trata-se de teorias,
ou de conjuntos de teorias, que funcionam paralelamente, sem
intercâmbio e mesmo sem debate. Esta característica não deixa de
ser curiosa, porque pode dar a entender que não há interesse em
resolver de fato determinados problemas, mas apenas em que as
duas comunidades discursivas sobrevivam, cada uma resolvendo
a sua maneira os problemas que formula para si e nos seus termos.
O “sonho” deste texto é que, por alguma razão, passe a haver um
debate sobre as diferentes soluções para problemas semelhantes.
Mas ele não resulta de nenhum traço de otimismo.
Nos estudos de texto e de discurso (esta terminologia vai
aos poucos se fixando, em certos casos em detrimento dos termos
“Análise do Discurso” e “Linguística Textual” ou “do Texto”), há
aspectos que se superpõem e para os quais as palavras “texto” e
“discurso” podem ser – ou têm sido - eventualmente intercambiadas. Mas há questões para as quais é de relevância crucial
distinguir entre as denominações, que não são duas por mero
acaso, e também propor quadros teóricos claros de cada uma delas
(eventualmente, mencionando suas diferenças). Às vezes, é absolutamente necessário explicitar (ou explicitar de novo) quais são
os problemas concernidos, ou fundamentais, e quais são deixados
de lado ou postos em segundo plano por cada uma das “teorias”3.
Antes de mais nada, creio que vale a pena fazer uma
observação relativa ao que poderia parecer mera casualidade, ou
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Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis?
simples questão de palavras, mas que, de fato, é bem mais do que
isso: o termo “discurso” é frequentemente empregado em trabalhos de linguística textual e até mesmo nos de sociolinguística ou
de análise da conversação em acepções que não se aproximam das
que são consideradas relevantes pelos analistas de discurso (por
mais que haja diferenças entre as diversas teorias que adotam ou
adotaram esta denominação).
Este fato parece ser sintoma de um certo prestígio (a requerer
explicação mais detalhada) do termo “discurso” e dos sentidos
que lhe são associados, e que a palavra “texto” não evoca. Uma
hipótese é que o termo “discurso” implica ou supõe um desejo
de afastar-se do que soa como apenas “linguístico” e de aproximar-se do que soa como “social” ou “cultural” ou “psicológico”.
Ou mesmo “ideológico”. As linguísticas de texto deixaram há
bastante tempo de ser apenas “linguísticas” e se tornaram em boa
medida fortemente marcadas pela psicologia cognitiva e mesmo
pela atenção a outros problemas, originariamente não textuais
em sentido estrito, como, por exemplo, a intertextualidade. Creio
que foi esta expansão que fez com que “discurso” parecesse um
termo não incompatível com textualidade. Penso que não deveria
mesmo ser, mas por outras razões.
Talvez um espaço para uma compreensão mais adequada
desse fenômeno, que, a meu ver, como disse, não é banal, porque
indica opções diversas dos estudos da linguagem, sejam as abordagens dos gêneros (no sentido textual-discursivo, não no sentido
de “sexual”, é óbvio). A noção revitalizada por Bakhtin tinha, na
obra do pensador russo, claríssimos ingredientes que “ultrapassavam” a questão da estrutura interna do texto. Dado decisivo, ou
constitutivo, é seu pertencimento a uma esfera ou campo. Resta
verificar em que medida esse “algo mais” está presente, ou, alternativamente, ocupa o primeiro ou pelo menos o segundo plano
nas abordagens que atualmente se fazem da questão. Conforme
se trate de uma ou de outra “escolha”, ela indicará até que ponto
se incluem de fato no próprio objeto de estudo as questões que são
também, ou originariamente, “sociais” (adoto esta palavra aqui
para referir o que, nas teorias “duras” de discurso, se designa com
a expressão “exterioridade”), ou se elas são acrescidas ao núcleo
duro de uma teoria como um elemento a mais a ser considerado e
a ser explicado, então, por uma teoria específica de outro campo.
O exemplo mais claro desse emprego de “discurso” ocorre
nos trabalhos de linguística de texto ou de análise da conversação
que consideram central a problemática da referenciação, tal como
definida em Mondada e Dubois, e implementada no Brasil principalmente por Marcuschi e Koch, nitidamente em oposição a uma
real ou suposta postulação da relação direta entre as palavras e
as coisas, vale dizer, a uma solução “linguística” ingênua – sem
“enunciação”, sem relação interacional ou dialógica etc. – para a
questão. O adjetivo “discursivo” tem quase sempre, nesses trabaNiterói, n. 29, p. 23-34, 2. sem. 2010
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Sírio Possenti
lhos, um sentido muito diferente do que tem a mesma palavra,
por exemplo, em Foucault, em Pêcheux e em Maingueneau, e
mesmo em Charaudeau.
O processo de referenciação é concebido pela LT como sociocognitivo, por um lado, mas, por outro, está ligado a processamentos individuais ou, no máximo, interacionais, admitindo-se que o
sentido, ou as diversas alternativas de referenciação (nomeação,
predicação...) possam ser negociadas, eventualmente durante o
próprio processamento on-line da conversação. Como se vê, a
ênfase recai sobre a cognição e/ou sobre as opções individuais.
Se a AD considerar os mesmos dados para análise, voltará
seu olhar para o que ela considera fatos históricos: as diversas
maneiras de referir-se a um “objeto” (do mundo ou do universo
de discurso) serão “buscadas” no interdiscurso, na memória discursiva, e serão “selecionadas” pelo enunciador (e não produzidas
por ele) segundo critérios da teoria, da formação discursiva ou
do campo em que o discurso é produzido (ver os dois exemplos
no final do texto).
Diferenças
A afirmação de Foucault de que uma obra
é u m nó nu m a rede
pode ser aproximada,
mas certamente não é
equivalente nem nasce
do mesmo quadro em
que nascem as teses de
Bakhtin sobre o dialogismo ou as de Pêcheux
ou de Maingueneau sobre interdiscurso. Certamente, porém, estão
mais próximos entre
si do que estão as de
Chomsky ou mesmo de
Halliday e Hasan, ou de
Van Dijk.
4
28
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Este trabalho, como foi dito acima, pretende comentar um
conjunto de opções que diferenciam as teorias de texto e as de
discurso, na medida em que elas oferecem explicações claramente
distintas para determinados problemas. Essas teorias consideram
cruciais explicações ou psicossociológicas ou históricas; consideram a
memória ou em termos cognitivos ou em termos psicanalíticos e/ou
históricos; consideram fundamental um corpus institucional (mais
frequentemente escrito) ou um corpus sem a consideração dos laços
institucionais (independentemente de ser falado ou escrito), tratam
diferentemente questões como a legibilidade dos textos, vale dizer,
o processo de leitura e a figura do leitor etc.
Frequentemente, trabalhos nesses campos apresentam traços
marcantes de “ecletismo”, nem sempre, é verdade, com o mesmo
grau ou com a mesma sem cerimônia. As diferenças básicas entre
eles são de três tipos: a) há trabalhos que adotam ou dizem adotar
perspectivas associadas a diversos autores, ora mais, ora menos
compatíveis. Bons exemplos são Pêcheux, Foucault e Bakhtin,
que, provavelmente, formam um “grupo” (seu ponto de partida
é o social ou o histórico, não o individual ou o biológico) que
pode ser claramente oposto a outro (que privilegie o individual
e o biológico), sem que, no entanto, eles se filiem exatamente à
mesma4; b) há trabalhos que adotam perspectivas que talvez
possam ser compatibilizadas, mas que exigem este trabalho de
compatibilização, sempre por fazer (são exemplos os diversos – na
verdade, numerosos – trabalhos que incorporam teses da pósmodernidade às problemáticas formuladas pela AD, não sendo
claro que, por exemplo, uma categoria como “o sujeito da pós
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Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis?
Para Bakhtin e Maing ueneau, apesar das
diferenças, é o pertencimento a um campo
ou a uma esfera o ponto
de partida para definir um gênero, e não
seu formato textual. A
tese de Marcuschi mais
conhecida sobre a questão é sua postulação de
um continuum entre
fala e escrita (isto é, de
uma não ruptura entre
as duas modalidades),
ou seja, sua ênfase recai
sobre a “composição” do
texto genérico.
6
É evidente que tais
e x pr e s s õ e s n ão t ê m
sentido óbvio; mas são
indicadoras de uma incompatibilidade básica.
5
modernidade” seja compatível com a categoria correspondente
em Foucault, em Pêcheux, em Bakhtin ou em Maingueneau); c)
há trabalhos que “misturam” claramente, e, aparentemente, como
se pudessem ser apenas “somados”, procedimentos, hipóteses e
“axiomas” oriundos de teorias bastante diferentes entre si em
seus fundamentos mais característicos (por exemplo, as teses de
Marcuschi, de Bakhtin e de Maingueneau sobre gênero5).
Não pretendo concluir que há teorias melhores do que
outras, nem que, se as houvesse, deveria haver alguma pressão
“ética” para que as menos boas fossem abandonadas em favor
das melhores (ou que deixassem de receber financiamentos).
Nem por isso, no entanto, deixarei de tomar posição em relação a
determinadas análises, emitindo, eventualmente, juízos de valor.
A diferença fundamental entre a LT e a AD está clara em
duas ou três questões filosóficas. Uma diz respeito ao sujeito: para
a LT, explicita ou implicitamente, o sujeito (falante, locutor, leitor)
é de tipo cartesiano: é uma unidade de consciência e de saber.
Locutores e leitores são concebidos como (ou muito aproximados
de) falantes e leitores empíricos. Não há na LT categorias específicas para referir-se aos indivíduos e às “personagens” textuais
ou discursivas. Esta caracterização sumária (talvez simplificada)
pode ser mais claramente atestada nos trabalhos de análise da
conversação, cujas diferenças filosóficas de fundo em relação
à LT praticamente inexistem. A consideração da memória e da
atividade inferencial são outros elementos que confirmam essa
concepção, frequentemente não explicitada no próprio interior da
LT, cuja “psicologia” deve ser visitada nos textos próprios desta
outra disciplina. O locutor está na fonte do texto e o leitor na origem da leitura (ele é mesmo “o que lê”).
Para a AD (talvez essa seja sua tese mais conhecida), o sujeito
é concebido como efeito, marcado pelo inconsciente e pela ideologia; é “dividido / disperso”, o que significa que, no que se refere a
seu saber, à memória, à manipulação dos textos, às atividades de
interpretação etc., é marcadamente concebido como “efeito”. Por
exemplo, a tese da AD é que sujeitos ocupam posições “previstas”
pelos discursos (pelas práticas discursivas), a cujas regras estão
submetidos – eventualmente mais em alguns campos que em
outros. A diferença pode ser formulada nos seguintes termos:
para a LT, o sujeito é origem; para a AD, ele é efeito6.
Outra diferença fundamental: a LT considera qualquer
texto como texto, ou seja, como categoria primeira, sem questionar se sua natureza, ou determinado traço que o caracteriza,
é condicionada de alguma forma pelo campo ou esfera em que
este texto é “gerado” e circula. Trate-se de questões de coerência
ou de referenciação, os fatos são analisados independentemente
de explicitar se tal traço é ou não característico de certos tipos de
textos (por exemplo, dos poéticos ou dos científicos). Para a AD, a
consideração do campo é fundamental: para as análises discursi-
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vas, o ponto de partida é a inscrição institucional do texto (tanto
quanto do enunciador). Um poema é “coerente” por razões que
não valem necessariamente para um paper ou para um chiste. As
discussões sobre gêneros textuais levadas a cabo no interior da
LT poderiam modificar esta divisão, mas as análises não têm sido
afetadas crucialmente por este fato.
Estas duas diferenças explicam a tendência da LT a aceitar
determinadas formas de negociação ou de produção de sentido
(de base interacional), o que é basicamente inaceitável para a
AD, que concebe o sentido como derivado de unidades como as
formações discursivas ou os campos: como “negociar” sentidos
jurídicos ou científicos a não ser com outros discursos jurídicos
ou científicos? Outra questão, paralela, e talvez ainda mais crucial:
posicionamentos diferentes negociam sentidos? Basta ver debates
políticos, religiosos, jurídicos e outros, mesmo alguns científicos,
para verificar que tal negociação é rara. Os enunciadores só negociam em relação a questões de pouco relevo: cerveja mais ou menos
gelada, mais ou menos tempero na comida. Mas um vegetariano
não “negocia” com um carnívoro, nem um abstêmio com um
consumidor de álcool. Muito menos um ateu com um religioso,
um machista ou um racista com defensores de direitos iguais.
Estas diferenças ao mesmo tempo decorrem de e implicam
outra: a LT trata do leitor empírico: uma leitura será bem ou mal
sucedida, no que for relevante, em decorrência de certas competências do leitor (na verdade, dos leitores). Tanto é assim que
experimentos para medir sucesso ou insucesso de leituras fazem
todo o sentido para a LT. Mas, certamente, não fariam sentido
para a AD, porque, para a AD (na verdade, para todas as teorias
para as quais a questão da enunciação é fundamental), o leitor é
uma personagem discursiva (bem como o locutor / enunciador
/ sujeito / autor).
Ainda como decorrência dessas diferenças, ainda outra
é fundamental. Diz respeito à concepção de memória. Para a
LT, a memória é de certa forma pessoal, enquanto para a AD é
um conceito marcadamente institucional e histórico. Para a LT,
memória se aproxima de lembrança mais do que de arquivos, para
usar definienda nada evidentes. Uma incursão mais detalhada no
campo mostrará que esta diferença se manifesta claramente também quando se trata das memórias de longo ou de curto prazo:
memória de trabalho é uma expressão que pode ser de extrema
relevância (uma questão empírica a não ser desprezada) para
teorias de texto, especialmente de leitura, mas certamente é um
corpo estranho nas teorias de discurso. Evidentemente, memórias
de fundamento neurológico só fazem sentido para falantes empíricos, não para enunciadores; para escritores, mas não para autores.
Diga-se que uma questão que pode ser incômoda para a AD é em
que medida ela faz sentido para sujeitos...
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Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis?
Uma das diferenças mais cruciais entre as duas abordagens,
certamente, é o tratamento da intertextualidade. Para a LT, coerentemente, o prefixo “inter” só se aplica à intertextualidade, e se
aplica a textos independentemente de outros efeitos ou condições.
Para a AD, a distinção entre intertextualidade e interdiscursividade é decisiva. Mas não se trata, para a AD, apenas de distinguir
dois fenômenos onde, para a LT há só um. Trata-se de subordinar
a intertextualidade à interdiscursividade: ou seja, para a AD, a
forma de citação do Outro texto no interior do Um se define por
suas afinidades ideológicas (ou teóricas) ou por sua incompatibilidade. Para a AD, haver mais de um locutor não é suficiente para
que haja polifonia. Para tanto, é necessário que haja mais de uma
“voz social”, ou seja, mais de um posicionamento ou mais de uma
ideologia expressos no texto. Para a AD, o interdiscurso comanda o
intradiscurso, de que as “vozes” e as relações (anafóricas e outras)
de retomada são exemplos.
Mais do que isso: para a AD, sempre há interdiscursividade, mesmo que um texto não mencione outro (“a Terra é
redonda” opõe-se a “a Terra é plana”, mesmo que a menção a esta
outra concepção astronômica não ocorra neste texto – o que é um
bom exemplo da diferença de concepção do funcionamento da
memória, aliás).
Que a AD e a LT operem tipicamente sobre corpora diferentes não é mera casualidade. Um dos traços característicos da
LT é fundir-se, de certa forma, à análise da conversação (textos
sobre referenciação, por exemplo, incluem quase sempre dados
oriundos de “língua falada”). Por outro lado, um dos traços mais
característicos da AD é operar tipicamente com textos institucionais. Ambos os casos têm o efeito de poderem, intuitivamente,
pelo menos, dar conteúdo empírico mais aos posicionamentos ou
mais aos falantes, mais ao arquivo ou à lembrança, mais à relação
institucional ou à interação. Os casos extremos são, assim, exemplares: é mais intuitivo que um sentido não possa ser negociado
se ele é característico de uma teoria; e que possa sê-lo se ele parece
uma questão de preferência ou gosto (mesmo que não seja).
Há outra diferença relacionada aparentemente ao corpus:
as teorias associadas a teses filosóficas típicas da LT tratam dos
fenômenos da multissemiose em termos de multimodalidade,
enquanto as teorias de AD tratam dos fenômenos de multimodalidade em termos de multissemiose. O que significa que as
teorias de LT (ou que lhe são próximas) privilegiam – sem contar
que fazem de conta que se trata de um fenômeno recente, quase
associado à informática – a diversidade dos meios para produzir
sentidos (textos são multimodais e sua leitura exige competências
específicas). As teorias de AD, por sua vez, e ao contrário, privilegiam a unidade de sentido; isto é, para elas é mais relevante
o fato de que os diversos meios se orientam para uma (só) significação (ou para significações retomadas, aludidas etc., típicas da
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interdiscursividade). Os casos mais evidentes são aqueles em que
uma legenda diz a mesma coisa que uma fotografia. Casos menos
óbvios são aqueles em que uma “imagem” se associa claramente
a uma ideologia, a uma formação discursiva, a uma doutrina
(de que a publicidade, política ou comercial, fornece excelentes
ilustrações).
Dois exemplos
Em uma viagem ao México, há algum tempo, li noticiário
sobre um desempenho ruim da seleção brasileira de futebol em
um torneio que acabara de ocorrer. No meio do texto, os atletas
brasileiros eram referidos ora como “los amazônicos”, ora como
“los cariocas”. Perguntei a colegas de lá se nos viam como “amazônicos”, e a resposta era “sí”, em tom que implicava obviedade.
Expressei minha estranheza. Então me perguntaram se nós também não os referimos como “astecas”, e eu disse que sim, mas que
achava que eles são astecas. A resposta foi que eles acham que
somos amazônicos...
Creio que se trata de um bom exemplo para mostrar que não
há “mapeamento” na relação entre as palavras e as coisas (mas
quem, mesmo, defende que haja?). Mas, por outro lado, o exemplo
mostra que não se trata de uma questão cognitiva ou interacional.
Em nada adiantou dizer-lhes que a Amazônia é apenas uma das
regiões do Brasil. Não se tratava de geografia, como ficou evidente.
Nem de conhecimento ou de ausência de conhecimento prévio.
Trata-se de uma questão ideológica, ou de estereótipos, de certa
forma “imposta” aos mexicanos (a meio mundo, na verdade)7.
Em junho de 2009, ocorreu uma ocupação do campus da USP
pela polícia militar. Durante o evento, um manifesto assinado por
um conjunto (não por todos, ainda bem!) de diretores de unidades
incluía o seguinte parágrafo:
Conclamamos toda a comunidade universitária ao entendimento em torno do respeito ao direito de greve e da livre expressão de ideias, refutando qualquer tipo de violência, seja por
grevistas ou por policiais. Ao mesmo tempo, enfatizamos que,
nos termos da lei, as manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas devem preservar o acesso ao trabalho, sem
causar ameaça ou dano às pessoas ou ao patrimônio público,
como os que geraram, em primeira instância, a necessidade
das ações judiciais de reintegração de posse e a subsequente
presença da polícia no campus para seu cumprimento.
Nem vale a pena comentar que me pediam
que sambasse!
7
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Segundo a AD, a ocorrência do sintagma “a necessidade”
decorre de uma certa formação discursiva (ou posicionamento),
de sua memória, de seus pré-construídos: é para a certa posição
ideológica que defendeu (a ainda defende!) a intervenção policial
na universidade que as ações judiciais e a presença da polícia no
campus podem ser postas em termos de necessidade. Tanto é assim
que cerca de uma dezena de diretores não assinou a nota. Ora,
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Teorias de texto e de discurso: inconciliáveis?
a discordância não diz respeito a questões de textualização, mas
a posicionamentos. Não se trata de uma categorização, mas de
um pré-construído. Para os que assinam a nota, “a necessidade”
é uma expressão óbvia, que deriva da formulação prévia – real
ou hipotética – “ações judiciais de reintegração são necessárias”.
Modalidade? Sim. Mas por que a necessidade em vez da impossibilidade?
Conclusão
Que explicações de natureza cognitiva sejam postuladas no
lugar de outras, históricas ou psicanalíticas (determinadas associações), é legítimo. Tão legítimo quanto a decisão inversa. Pode
ser que se trate de preferências às quais não faltam ingredientes
de ordem metafísica (o que é mesmo um ser humano? como sua
mente funciona? como ele aprende? o que se deve saber para falar
de certa maneira? o saber é consciente? o que é uma escolha entre
alternativas? ela existe?), portanto, de certa forma indecidíveis.
A questão que poderia ser proposta é se existem casos em
que uma explicação histórica ou institucional é efetivamente mais
correta do que uma psicológica e individual (minha posição é que
sim). Nestes casos, ainda haveria lugar para escolhas?
O que significa o fato de a academia não realizar debates
abertos sobre temas como os aqui rapidamente mencionados?
Significa que não se trata de erros contra verdades, mas de opções,
e que todas têm o mesmo valor? Há teorias a serem compatibilizadas, como se sua relação fosse de inclusão, de algum tipo de
inclusão, e não de exclusão? Por exemplo, para mencionar dados
que a AD não considera tipicamente: uma memória “neurológica” pode incluir uma “psicanalítica” ou ser incluída por ela,
na medida em que lesões produzem efeitos que não podem ser
desconsiderados em sua natureza biológica?
Certamente, ainda há caminhos a serem trilhados. O que é
preocupante, a meu ver, é que não há debate no horizonte. Sem ele,
cada uma das duas vertentes continuará seguindo seu caminho,
e os adeptos de cada uma delas continuarão falando basicamente
para seus pares, todos já convencidos de que estão certos.
Se um dia sairmos deste estado, haverá disputas, controvérsias ou discussões? Ou estaremos imersos em uma polêmica,
no sentido que Maingueneau dá à expressão? Talvez nunca
venhamos a saber...
Abstract
This work believes that there is hardly any debates
or controversy in the Brazilian academy, at least
in the area of language studies. After reflecting
about the theory of Dascal, which discusses the
relevance of the controversies, the distinction
between studies of text and studies of discourse
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Gragoatá
Sírio Possenti
is analyzed, since the term “discourse” is often
related to both of them. It is presented the fundamental differences on certain issues (subject,
reading, multisemiosis) and it is emphasized the
different conceptions about a current subject in
Brazil: the reference. The thesis is that the solutions from discourse analysis and from the study
of text are incompatible and that issues like this
should be explicitly discussed, as if to “discover”
the best solution.
Keywords: controversy, discourse, text, reference.
Referências
DASCAL, M. Epistemologia, controvérsias e pragmática. In: Revista
da SBHC, 12. pp. 73-98. 1994.
LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen – marxismo e positivismo na sociedade do conhecimento. São Paulo:
Cortez Editora. 2003.
MAINGUEANEAU, D. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola.
1984/2008.
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Acaso e método na pesquisa
das poéticas da palavra cantada:
um registro de caso
Leonardo Davino de Oliveira
Resumo
O artigo relata e discute um procedimento metodológico particular, utilizado pelo autor. No
entanto, pela carência de meios de abordagens
da questão das poéticas da palavra cantada, em
particular a canção popular mediatizada, pode ser
aproveitado por outros pesquisadores. O objetivo
é mostrar como a coleta de dados ao acaso, pelo
rádio, pode contribuir para a restituição da relação
entre poesia e canção, por meio da integração de
elementos como a presença do corpo na pesquisa
e a relação amorosa do pesquisador com o objeto,
articuladas à utilização de uma base teórica já
testada e reconhecida.
Palavras-chave: canção, poesia, rádio, acaso,
método.
Gragoatá
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Gragoatá
Leonardo Davino de Oliveira
A pesquisa que venho desenvolvendo desde a minha graduação em Letras, e de que a minha dissertação de mestrado Pletora de alegria: a aventura frustra e reluzente do país mulato na poesia de
Caetano Veloso significou o mais bem acabado resultado, despertou
em mim, enquanto pesquisador de literatura e de canção popular
mediatizada, a necessidade de verticalizar dados, teorias e dúvidas. Quando terminei o curso de mestrado, quando a dissertação
estava para ser defendida, eu compreendi que a pesquisa estava
apenas começando. Deparei-me com a sensação de vazio que
acomete a maioria daqueles que findam um ciclo existencial. No
caso, minha pesquisa sobre a obra do cancionista Caetano Veloso.
Paralelo a isso, eu tinha dúvidas em relação ao projeto e ao processo de ingresso no doutorado, além da certeza de que eu estava
muito longe de alcançar e desenvolver o conhecimento esperado
para um pesquisador de canção. Campo do saber ainda bastante
insipiente no Brasil, apesar da riqueza do corpus, e aglutinador de
outras ciências: é preciso usar múltiplas chaves de leitura, tendo
em vista os cruzamentos interdisciplinares. O objeto canção exige
competências para as quais o pesquisador, envolvido exclusivamente com o objeto literário, não está preparado.
Propus-me então, como pretendia continuar trabalhando e
pesquisando canção popular mediatizada, um desafio: analisar e
publicar em um blog a primeira canção que eu ouvisse ao ligar o
rádio. 365 canções, portanto, maturadas dia-a-dia. Uma amostra
significativa e sintomática da canção difundida pelos meios de
comunicação de massa. Sem contar que eu estaria entrando em
contato com aquilo que o “povo” está ouvindo, sem que minhas
escolhas (atravessadas por (pré)conceitos) atrapalhassem a coleta
dos dados, que eu propunha que surgissem ao acaso: com engajamento do corpo.
Isso me possibilitaria tanto ouvir as “novidades”, as novas
composições, quanto perceber como algumas canções parecem
permanecer fixas no cotidiano (sempre renovado) das pessoas,
enquanto outras somem. Por que novos intérpretes, e até compositores-intérpretes, regravam “antigos” sucessos (ou não) e dão a
estas canções novos significados, mediante a mudança da performance vocal? Que diferenças de significado cada nova leitura
(gravação) de uma determinada canção traz? Quais compositores
tocam mais nas rádios? Quais são os mais regravados? Estas e
outras dúvidas, que destacarei mais adiante, estimularam a formulação do projeto e desenharam sua metodologia.
A proposta era ouvir e pensar a primeira canção que tocasse
no rádio quando este fosse ligado, independente da hora do dia e
de onde eu estivesse (em casa, ou na rua); reservar um tempo para
sentar e articular as ideias surgidas a partir da audição daquela
canção, também independente da hora e do tempo disponíveis,
o que implicaria que alguns textos seriam maiores que outros,
mais pela questão de tempo do que pelo fato de o objeto ser mais
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Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso
ou menos relevante; e postar em um blog a análise (o texto), a
capa do disco em que a canção foi lançada e a letra dela. Além de
armazenar tudo em um banco de dados, bem como cada canção
(garimpada em sites de música e afins).
O acaso, obviamente, é limitado, para dizer o mínimo, no
momento em que escolho uma única estação para manter o rádio
(de casa, do celular, do computador e do automóvel) sintonizado.
Pois, de antemão, ouvinte de rádio, escolhi uma estação em que
é possível ouvir um raio maior e diverso dos matizes sonoros
brasileiros. Eu precisava de uma estação que cobrisse o maior
número de ritmos, compositores e intérpretes: cânones e novatos.
Aqui abro um espaço para contar que cresci ouvindo rádio.
No interior da Paraíba de então, de onde venho, o sol nascia e
morria ao som de repentistas e emboladores. A palavra cantada,
portanto, desde cedo me acompanha e me intriga: afinal, que
mistério tem a palavra cantada? Como pesquisador, que métodos
eu posso criar para melhor abordar um objeto que é tão efêmero
quanto, e aqui corro o risco de ser redundante, encantador? Para
mim, enquanto criança, ouvir canção significava entrar em contato
com o gosto das pessoas ao redor, pois, se todos, em diversas partes
do mundo (para mim, criança, o mundo tinha outra dimensão)
estavam ouvindo aquilo, no mesmo instante, era porque aquilo
tinha alguma importância ontológica. Algo que me deslocava do
individual para o coletivo: conectava-me com os outros.
Voltando ao meu desafio particular, decidi que o resultado
desta investida seria o corpus da minha tese de doutoramento.
Mas era preciso me impor critérios, mesmo, e talvez por isso,
trabalhando com o acaso. Primeiro precisei aceitar o risco de
permanecer trabalhando em setores em que minha competência de formação acadêmica é limitada: como a música e as artes
plásticas. Demorei bastante tempo para me encontrar fazendo
um curso de Teoria e Percepção Musical. Por outro lado, as capas
dos discos, a contraparte visão do projeto, me cobravam atenção e
leituras complexas sobre Semiótica da Cultura, entre outras. Tais
lacunas eram resolvidas concomitantemente: à medida que os
dias corriam, eu estudava a teoria e aplicava, de alguma forma,
nas canções analisadas diariamente. Afinal, o exercício faz a interpretação e não pensar tudo com antecipação permite destravar
o pensamento. Eu sabia que seria preciso modificar ou ampliar
minhas perspectivas e certezas muitas vezes.
A canção hoje é matéria de estudo de várias ciências. O
pesquisador, portanto, na impossibilidade de dominar todos os
saberes, deve escolher campos de abordagens, mas não pode prescindir dos contatos. Daí o papel fundamental que exerce a leitura
dos estudos na área da etnomusicologia, que integra musicologia
e antropologia, por exemplo. Ela permite a investigação, entre
outros aspectos, das vozes portuguesas, indígenas e africanas,
além das imigrações, dentro do panorama da entidade sonora
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Leonardo Davino de Oliveira
nacional brasileira. Seja como for, urgia a ultrapassagem (com
prudência) das disciplinas particulares ao meu conhecimento.
E, além disso, havia ainda as disciplinas obrigatórias do
curso de doutorado e os textos teóricos não apenas sobre canção,
mas sobre literatura e filosofia, campos do saber que sempre
atravessam meus pensamentos e meu trabalho. Tudo isso precisava fazer sentido dentro das análises diárias. Por outro lado, eu
não poderia “pesar” (ser hermético) nas elucubrações teóricas e
filosóficas, afinal meu público, já que o blog é aberto à visitação
de qualquer interessado, poderia cobrar mais clareza e objetividade, como de fato em alguns momentos aconteceu. Ao mesmo
tempo, eu não poderia me repetir, pois corria o risco de entediar
e eu precisava do feedback, já que uma das minhas propostas era
entender, também, o processo de recepção da canção mediatizada
– aquela que “abole a presença de quem traz a voz e sai do puro
presente cronológico, porque a voz é reiterável, indefinitamente,
de modo idêntico” (ZUMTHOR, 2000, p. 14). Parti do pressuposto
de que se algo canta é porque alguém quer ouvir e deve haver um
motivo, mesmo inapreensível verbalmente (na escrita), para isso.
O blog é também um canal com outros ouvintes de canção,
assim como eu, e não apenas um contato com meus leitores. Os
canais informais de comunicação, mediados pelo computador,
com o advento da internet, são fundamentais aos pesquisadores
pela oportunidade de troca e discussão. Além de, muitas vezes,
facilitar o acesso a determinados objetos. O desejo do Projeto 365
Canções surgiu exatamente da vontade de me testar diante da
surpresa das canções que surgissem, mas também para sair da
zona de conforto na qual, muitas vezes, nos colocamos.
Resolvi, assim, criar dois problemas principais que eu
deveria responder ao longo dos 365 dias, a saber: a) responder
à pergunta: que contribuição o curso de Letras pode oferecer
ao estudo de canção, além da “simples” análise das letras?; e b)
defender a premissa de que o cantor popular é uma neossereia
na era da (re)produção e da mobilidade técnica.
Para resolver a primeira questão, precisei mergulhar na
leitura de textos de autores que pensam a poesia para além da
palavra escrita, tais como: Haroldo de Campos (1979), Octávio
Paz (1982), Alfredo Bosi (1983) e Paul Zumthor (1998; 2000), entre
outros. Era preciso estabelecer conjunções e disjunções entre os
pensamentos destes autores e trazer os resultados para junto do
meu pensamento, enriquecendo as possibilidades das análises
das canções.
Já para desenvolver a minha segunda premissa era preciso
um movimento verticalizado maior: a maturação diária das
canções ouvidas e analisadas, a leitura atenta dos comentários
deixados pelos leitores do blog e a separação, por critérios de
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Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso
regravações, recorrência de temas (paisagens ficcionais) e gestos
estéticos.
Desde cedo eu sabia que não seria tarefa simples: ter a
obrigação de escrever um texto inédito e estimulante (para quem
lê e para mim, enquanto pesquisador na busca da solução das
questões), diariamente (final de semana e feriados, inclusive), era
enfrentar problemas como: falta de tempo, de ânimo, de gosto
pela música ouvida e de ordem material.
Quanto ao gosto, de fato, na medida em que o tempo passa,
ficamos mais exigentes. A academia nos impõe posturas que,
muitas vezes, nos afastam, no mau sentido, do objeto analisado:
a imparcialidade nem sempre traz bons resultados. A oportunidade de analisar canções que eu talvez, pelo gosto, não parasse
para analisar, era assustadora e excitante: como ser imparcial e
encontrar (ou não) elementos estéticos que singularizassem uma
canção da qual eu não gostasse? Eis que me surpreendi revendo
meu gosto: confirmando uns e mudando outros. O simples gesto
de discernimento me deu a certeza de que o processo da pesquisa
estava no caminho certo: trincar fórmulas preestabelecidas de
entendimento do meu objeto.
Muitas vezes, “grávidos” de muita informação, passamos
todo o curso para aplicar (praticar e exercitar) a teoria apenas
no final do processo, nos chamados “trabalhos finais”. Eu quis o
caminho contínuo, a disseminação perene mais constante: saber
seria o resultado das leituras, das audições e das escritas, diárias.
Tudo atravessado por tudo: revisto todo dia.
Formular e defender a ideia de que o compositor popular é
uma neossereia começou a se configurar no momento em que me
dei conta de que eu poderia, aos poucos, ir separando as canções
por temas, releituras (regravações) e informações que confirmassem minha suspeita. Parti, assim, do preceito de Paul Zumthor
quando afirma que “o ponto de vista inicial que faz deslanchar o
processo de confirmação, e, se aí couber, o de prova, é da ordem
da percepção poética e não da dedução” (ZUMTHOR, 2000, p.11).
Em relação às regravações, importava, além do cotejamento,
perceber as intenções, não apenas do intérprete, mas do novo
sujeito que emergia da nova interpretação. Afinal, uma boa regravação é aquela que investe em pontos que outras gravações não
tocaram. Ou seja, quem são os sujeitos, e quais são os sentidos que
surgem a cada novo canto de uma mesma canção? Por outro lado
eu perguntava às canções: o que as fazia ser sempre novas (e inéditas) para quem as ouve várias vezes? Se na poesia escrita há uma
gramática interna singular, era preciso detectar o gesto entoativo
singular também. Tentei cindir com a ideia de que haveria uma
primeira (e melhor, haja vista servir de modelo) interpretação: há,
defini para fins didáticos e metodológicos, o retorno ao mesmo,
mas de forma diferenciada. Ou seja, as versões musicais são a
verdade de cada voz atendendo a determinada ânsia de dado
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público-ouvinte. E aqui tento abolir a ideia de original e puro:
“A pureza é um mito”, como Hélio Oiticica grafou na instalação
Tropicália, nos idos de 1967.
Era preciso, portanto desenvolver uma pesquisa paralela e
complementar sobre as sereias. Ao mesmo tempo em que era preciso resistir ao poder encantador delas e da canção, que arrebata o
pesquisador, embaçando sua percepção e levando-o a abandonar
a análise. Urgia encontrar uma terceira margem: nem se amarrar
ao mastro dos (pré)conceitos, nem tapar os ouvidos: não destruir
meu objeto, gesto comumente praticado, mas deixá-lo cantar.
O episódio das sereias, cantado por Homero (2000) no “canto
XII” da Odisséia, ocupa um espaço de particular importância na
crítica literária e deve desempenhar importante lugar nos estudos de canção. Seja pelas referências filosóficas nele lançadas,
seja pela força do mito em si: a ideia de um canto fundamental e
fundador do ser.
A quantidade de textos que comentam este episódio é bastante grande. Minha pesquisa precisava ampliar tais abordagens
fazendo uma comparação entre as leituras e as interpretações
dadas ao público por Theodor Adorno e Horkheimer (1985) e, mais
recentemente, Peter Sloterdijk (2003). Sem deixar de mencionar as
leituras feitas por Franz Kafka (2002) e Maurice Blanchot (1984).
Se “o poeta diz o que o povo quer ouvir”, como o poeta Paulo
Leminski declarou em entrevista ao Canal Brasil, penso que o
compositor, por sua vez, canta aquilo que o povo quer ouvir. Daí
a importância do cotejamento dos dados coletados que permite
perceber a reincidência de casos.
Obviamente, para fins metodológicos e didáticos, parto de
uma generalização – o compositor popular é uma neossereia – a
fim de poder perceber as estratégias particulares de cada canção.
Entre elas, a presença marcante da canção que canta a si mesma:
“objeto olhante e olhado”, como diria Roland Barthes (2003, p.
28). Ora, pensar sobre si, em um país com sérios problemas de
identidade e aceitação como o nosso, problemas que, de fato, instituem nossa identidade, como o fazem as metacanções, implica
na urgência da análise deste objeto. Nossa canção popular, por
vezes, resgata o popular (tradições orais e folclóricas) de um isolamento profundo, promovido pela retórica de certa elite escrita.
O cancionista percebe que preservar cegamente uma cultura,
ou simplesmente desprezá-la, é uma perversão, em um país tão
diverso quanto o Brasil. O cancionista assume função semelhante
à da sereia de Ulisses: canta o passado, o presente e o futuro de
nossas verdades. Ele assume para si a tarefa da cantar as dores
e delícias do povo. Fica claro, assim, que a definição do termo
“canção”, na minha pesquisa, tem sua dimensão radicalmente
ampliada: cantar à vida, a existência.
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Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso
Em carta a Peter Gast, Nietzsche (1888) vaticinou que “a vida
sem música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um
exílio”. Tal afirmação ressoa em nós, ouvintes de música e de canções, quando percebemos o quanto esta linguagem artística está
imbricada à nossa vida. Peter Sloterdijk, filósofo pós-nietzschiano,
no livro Esferas I (2003), pensa o ventre materno (microesfera) como
esfera sonora pré-natal, pois a mãe, em um nível mais profundo
de sentido, canta a vida para o bebê. Ao mesmo tempo Sloterdijk
observa que o desenvolvimento da capacidade crítica do espaço
compartilhado leva o sujeito, enquanto adulto, a fechar os ouvidos.
No entanto, o desejo de ser cantado não cessa. É aqui que entra
a importância, por exemplo, dos artistas e, no meu trabalho, do
compositor. Com ênfase na canção popular, daquela canção que
toca no rádio, propus-me pensar os cancionistas como neossereias
na era da reprodução técnica (BENJAMIM, 1980), visto utilizarem
o ritmo já existente no mundo e em si para compor; além de conseguirem ter a sensibilidade de captar a necessidade do ouvinte e
criar a experiência musical desejada. Ou seja, propus pensar, a
partir das audições diárias, em como os compositores podem
investir em dado aspecto, a fim de conseguir um determinado
efeito no ouvinte, aproximando-os daquilo que Octávio Paz, em O
arco e a lira (1982), denominou de poeta: aquele que usa o “tempo
e ritmo primordiais” para compor e engendrar, em quem ouve, a
sensação de realinhamento (pertencimento) no mundo. Ou, como
Nietzsche (1992) definiu, a música como “afirmação da existência”.
Os desvios filosóficos que empreendi, como se percebe,
serviram para facilitar meu contato com o objeto. Inventariando
os dados – as canções (letras e melodias) e as capas dos discos
– concentrei minhas preocupações nas formas de separação,
por campos de: metacanções e regravações. Não que as canções
ouvidas se reduzissem a isso, mas estes seriam, ao final, os eixos
temáticos e núcleos duros de minha tese. Aquelas canções que
não se encaixavam eram separadas à espera de novos campos
efetivamente significativos dentro do projeto.
A premissa teórica da metacanção abre o campo de investigação dos diálogos entre as canções: e, como pudemos perceber
nos dados coletados, estes diálogos acontecem à mancheia. A metacanção (canção que come a si mesma) se desdobra para fora (toca
outras canções ou outras linguagens estéticas) e para dentro (se
autorreitera/questiona: letra e melodia). Algumas canções chegam
a citar títulos, versos e melodias de outras canções, trabalhando
com a herança cancional, além de apontarem para a consciência
de que, se tudo já foi cantado, elas cantam sobre a impossibilidade
de cantar (algo novo); enquanto outras empreendem discussão
interna tão profunda da definição de si que promovem verdadeiros monólogos interiores. Sem dúvida, subjacente, percebi aqui
uma das formas de como a área de Letras pode contribuir para as
pesquisas de canção: seja pelo desenvolvimento dos estudos sobre
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Leonardo Davino de Oliveira
paródia, pastiche e intertextualidade; seja pelas investigações da
escrita de si e os limites da representação, por exemplo.
Como ouvintes, somos, em alguns momentos, metaouvintes:
ouvimos o sujeito da canção ouvindo a si mesmo e ao outro: a própria canção cantar. Uma questão, importante, foi formulada por
um leitor do blog: “e se uma canção se repetir?”. Como a proposta
era ter um banco de dados com 365 canções, resolvi o problema
definindo que, caso, ao ligar o rádio, uma canção já lida/ouvida
surgisse, eu passaria para a imediatamente posterior. Isso agradou
a mim e aos leitores. Isso particularizava minha proposta.
Auerbach (1994) já apontou que somos reconhecidos pelas
nossas cicatrizes, quando analisou o Ulisses homérico. Talvez
a canção popular, pela pluralidade de temas e ritmos, consiga
tocar nossas tais cicatrizes chamando atenção para a individuação do sujeito, mesmo, e talvez por isso, sendo canção popular e
transmitida pelos meios de comunicação de massa: afinal, somos
diferentes, mas estamos expostos aos mesmos apelos da existência. Aliás, como McLuhan (1969), um dos primeiros a analisar a
questão, observou: a canção popular se cria na indústria cultural
e de consumo: o meio acaba sendo a mensagem, ou parte dela.
Hoje em dia não é mais preciso comprar um disco para
curtir uma canção, a não ser os colecionadores e os fãs. Basta
comprar apenas as várias músicas de desejo e pronto: cada sujeito
monta sua trilha sonora particular. Daí a importância de coletar,
publicar e guardar as imagens das capas dos discos cujas canções
surgissem. Vale ressaltar que a audição de mais de uma canção,
de um mesmo disco, aconteceu. Mas, como nosso investimento
analítico era prioritariamente sobre canção, não vimos nenhum
problema nisso. Esta relação com as imagens permitiu, de viés,
entrar em contato com a cristalização de tempos e espaços: discos
“antigos” e “novos” apontando para a fotografia dos instantes em
que foram lançados, até porque, “o espaço em que se desenrola a
voz mediatizada torna-se ou pode se tornar um espaço artificialmente composto” (ZUMTHOR, 2000, p. 14). A capa fixa o instante.
Paralelamente a isso, pude constatar que a distância relacional entre o público e o artista está muito menor, no sentido
de mais próxima e acessível. As possibilidades são enormes: a
internet explode cada vez mais, e com mais recursos e eficiências,
as fronteiras de separação. Assim como as soluções de feitura e de
divulgação de uma canção. E, acredito, em um futuro próximo, a
renda do artista virá das apresentações e dos produtos paralelos
ao disco (este objeto de desejo) propriamente dito. Porém, eu não
saberia precisar o nível de vantagem ou desvantagem para cada
parte envolvida – cancionista / gravadora / ouvinte.
Importa lembrar que a canção popular brasileira há muito
rompeu com a distinção entre arte democratizada e arte de elite
grafocêntrica. Letra de música não é poesia, e nem quer (nem deve
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Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso
querer) ser, isto já está claro. Embora uma atividade atravesse a
outra, reciprocamente, o que a canção transmite “é percebido
pelo ouvido (e eventualmente pela vista), mas não pode ser lido
propriamente, isto é, decifrado visualmente como um conjunto
de signos codificados da linguagem” (ZUMTHOR, 2000, p. 15). O
pesquisador de canção, de formação em Letras, deve criar novos
meios de ouvir, avaliar e interpretar canções: incluindo re-historicização e re-espacialização do objeto. A história da canção (como
toda a História) é um exercício de ficção. Cada autor/pesquisador
investe em determinado interesse ou aspecto, por ora considerado
relevante.
Processo intrinsecamente inacabado e permanente, a pesquisa não pode prescindir das questões que a motivaram à custa
do pesquisador perder o foco de seus objetivos. Cabe a ele fazer
o movimento que vai da pesquisa básica, geradora de conhecimentos novos e úteis, ao avanço da ciência, no estabelecimento
de novas diretrizes, métodos e meios. Incipientes, os estudos de
canção no Brasil precisam de modelos e solicitam olhares novos e
livres para o seu imenso potencial: seja pela variedade de ritmos,
seja pela convergência de temas, entre outros motivos.
Parti da premissa quantitativa das 365 canções, surgidas ao
acaso, para criar uma amostragem de informações estéticas, com
o objetivo de apontar não só o panorama daquilo que é ouvido
hoje, através das frequências modulares, mas, principalmente, da
qualidade do nosso cancioneiro popular: por meio da observação
sistemática.
Quantificar não significa reduzir ou enquadrar os dados,
mas, ao contrário, no caso da pesquisa de canção, a possibilidade
de cotejar e ler as filigranas do objeto: classificá-lo e organizá-lo.
Temas, sujeitos, arranjos, implicamentos da composição (letra e
melodia) são alguns dos recursos de distinção estatísticos a ser
utilizados pelo pesquisador, no processo de determinar a ocorrência (ou recorrência) dos fenômenos. Daqui se configura a pesquisa
qualitativa: aquela que estabelece as relações dinâmicas entre os
dados coletados e entre o arcabouço teórico do pesquisador e seu
objeto.
Manter a dúvida, tal qual o filósofo, muito mais do que achar
uma verdade, é o compromisso do pesquisador que participa
do levantamento, que se deixa tocar pelo objeto, sem deixar de
interrogar diretamente este objeto na expectativa de cumprir os
objetivos preestabelecidos. Desde que não limite o conhecimento
– e um objeto como a canção, pelo poder encantador pulsante,
facilita isto – a mero encaixe do objeto em quadros estanques.
O objeto precisa ser cantado, mas também precisa cantar. A
experiência do canto, ou melhor, a escrita do acontecimento da
experiência do canto é apenas um dos registros necessários para
o desenvolvimento do saber.
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Gragoatá
Leonardo Davino de Oliveira
A resposta para a pergunta “o que pretendo abordar?” precisa e deve ser enfrentada continuamente. Ainda mais quando o
objeto aparece sem que nós tenhamos, a princípio, qualquer domínio sobre ele: assim é a canção popular, que faz parte do exercício
diário da vida; emoldura momentos afetivos das formas mais
variáveis possíveis, atendendo a diversos apelos do indivíduo.
Provar que o cantor popular é neossereia significou eleger,
em detrimento de outros aspectos igualmente importantes, uma
parcela limitada das possibilidades de ação sobre o objeto: seja
por causa do tempo de duração de um curso de doutorado, seja
pelo espaço físico limitado onde os resultados da pesquisa serão
depositados: a tese.
Para tanto, utilizando o gesto barthesiano de “saber com
sabor”, é imprescindível que o pesquisador se apaixone pelo objeto,
mesmo que, aos poucos, à medida que o processo decorra, o efeito
da porção amorosa se desfaça: para tristeza tanto do objeto, quanto
do pesquisador e do resultado da pesquisa. O risco do desencanto
precisa ser encarado. Limites e restrições vão desenhando o surgimento dos capítulos, pois há prazos a ser cumpridos: o resultado
“final” da pesquisa.
Obviamente, alguma coisa, ou muito, do que se pretendia
investigar ficará de fora e/ou perderá força no meio do caminho.
Isso não significa falhas, pelo contrário, quando bem administradas, as perdas das certezas disparam novos caminhos, mais
eficazes para o momento.
Pesquisar é procurar respostas para inquietações, ou para
um problema, que incita o pesquisador: no meu caso, como o curso
de Letras pode ajudar no estudo de canção? E como argumentar
e desenvolver a ideia de que o compositor popular (mediatizado)
é uma neossereia, ou seja, diz (canta) aquilo que o ouvinte quer
ouvir?
Eu disse acima que a canção necessita de teorias e práticas de
investigação e afirmo, sem me contradizer, que o número de livros,
sites e outros produtos que tem a canção como mote é enorme. Há,
sem dúvida, um interesse claro no tema. Afinal, como também
já afirmei acima, a canção é parte integrante de nossa existência.
Porém, para o pesquisador que queira chegar a outras camadas,
para além da simples descrição e paráfrase, é preciso revisar com
atenção a literatura existente sobre a questão. Já é possível encontrar livros que facilitam diversos tipos de abordagens do assunto.
Cabe ao pesquisador fazer as escolhas que melhor atendam às suas
necessidades momentâneas, sem perder de vista o senso crítico:
o mesmo discernimento que ele aplicará sobre o objeto, ele deve
aplicar sobre aquilo que já se escreveu e foi publicado sobre o
assunto. Só assim o pesquisador de poéticas da palavra cantada,
ou de qualquer área do conhecimento, poderá, não só observar
as lacunas existentes, mas também propor soluções para elas. Ou
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Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso
seja, é a revisão – teórica, empírica, histórica – que determina as
diretrizes do futuro da pesquisa, bem como os resultados desta.
A formulação adequada do problema a ser solucionado mantém tênue relação com os objetivos esperados. Neste momento,
da montagem do projeto, pensei na relevância daquilo a que me
propunha pesquisar, ou seja, qual era minha intenção com esta
pesquisa, bem como investi na síntese dos caminhos a que os
estudos de canção poderiam me levar. Se meu objetivo geral era
provar minha tese, eu precisava de objetivos específicos que auxiliassem meu intento. Eram estes objetivos que me explicitariam
os detalhes e o desdobramento da minha ideia inicial e geral.
Precisei esboçar objetivos específicos na feitura do projeto,
mas estes só começaram a ser marcados quando o processo, concomitante, de audição e leitura já estava em andamento. Saber quais
os resultados que pretende alcançar ou qual será a contribuição
significativa da pesquisa é ação que só se configura efetivamente
no processo de captação das amostras acidentais, pelo menos foi
assim no meu caso.
Com custo financeiro relativamente barato, a pesquisa de
campo e a coleta de dados, por outro lado, forçam certo isolamento
do pesquisador. Nada que cause espanto em um mundo onde
cada indivíduo-ouvinte pode levar sua sereia particular no bolso,
basta ter um celular e acessar uma estação de rádio, ou baixar as
músicas que bem quiser (aquelas que melhor cantem o ouvinte)
e montar uma trilha sonora pessoal e intransferível.
Esta imposição do objeto deve ser enfrentada com a ida,
sempre que possível, a espaços onde a canção possa ser consumida
“ao vivo”, ou onde ela repouse guardada: daí a importância dos
shows (de onde os artistas têm tirado seus sustentos, com a crescente defasagem do mercado das gravadoras de disco), espaços de
contato direto não só com o cancionista e sua performance, mas
também com o público que, assim como o pesquisador, a princípio, consumiu a canção pelo rádio: o show é a percepção do canto
pelos cinco sentidos; além de lugares como museus e institutos
que trabalham com a preservação da memória da palavra cantada,
fonte de muitos cancionistas contemporâneos. O pesquisador
de canção precisa, portanto, sair da zona de conforto, segura,
mas limitadora, do fone no ouvido e deixar o corpo se embalar e
transpirar na busca de pensamentos corajosos que estimulam (e/
ou confirmem) a construção de hipóteses.
Neste momento entra também o trabalho laborioso do pesquisador em distinguir quais procedimentos são empregados
no estudo de problemas semelhantes ao seu e como tais fatores
afetam nos resultados. Mais uma vez surge a importância da
revisão bibliográfica. Ela mostra a evolução dos conceitos dentro
do estudo de determinado objeto e aponta para a obtenção de
informações sobre a situação atual do tema em pesquisa.
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Leonardo Davino de Oliveira
Para tabular e apresentar os dados de 365 canções, devido
à diversidade de informações, foi imprescindível a anotação
e a notação diária, que iluminaram os resultados do processo
dentro do processo. O aspecto final depende da organização,
desde o princípio, da coleta. O computador, com os vários
recursos disponíveis (elaboração de tabelas e índices), facilita
na armazenagem, mas cabe ao pesquisador cotejar, separar e
direcionar os dados.
A organização facilita a interpretação e a análise: momentos
em que o pesquisador estabelece relação entre aquilo que foi coletado e os objetivos do projeto. De fato, nenhuma canção deixou de
ter significado: se tivéssemos a possibilidade temporal e espacial
de ilimitar nosso arco investigativo, mas é preciso rejeitar ou
confirmar objetivos. Retornar aos pressupostos que motivaram
a pesquisa facilita a síntese dos resultados.
Os excedentes, ao contrário do que possa parecer, não atrapalham o resultado final. Pelo contrário, eles apontam que a pesquisa conseguiu progredir e tais “sobras” significam que o objeto
ainda tem frentes de abordagens a ser investigadas, por outros
pesquisadores, ou pelo mesmo pesquisador, noutro momento. Ou
seja, os excedentes revigoram a pesquisa científica.
Meu gesto aqui teve a intenção de esboçar um percurso,
o qual se desenvolveu como metodologia, ainda (e sempre) em
estado de progressão, sobre a importância dos estudos do papel
da canção (da palavra cantada) popular mediatizada dentro dos
cursos de Letras: colocando-me como pesquisador e ouvinte. Dito
isto, este trabalho pretende contribuir para mostrar caminhos que
diminuam a carência de métodos de abordagem da canção; investir na reconciliação entre poesia e canção, já que o estudo desta
pode oferecer àquela o caráter original (retorno) de ser percebida
pelos cinco sentidos; e, como ambição pessoal, chegar a comprovar a tese de que o cancionista popular é uma neossereia na era
da reprodução e da mobilidade técnicas. A ambição é grande; os
riscos também; mas o desejo e a vontade são maiores.
Abstract
The paper reports and discusses a particular
methodological procedure used by the author.
However, the lack of media approaches the issue
of poetic singing words, particularly the popular
song the media, can be used by other researchers.
The goal is to show how data collection at random,
by radio, can help to restore the relationship between poetry and song, through the integration of
elements such as the presence of the body in search
and loving relationship between the researcher
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Acaso e método na pesquisa das poéticas da plavra cantada: um registro de caso
and the object, articulated the use of a theoretical
base has been tested and recognized.
Keywords: song, poetry, radio, random, method.
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Leonardo Davino de Oliveira
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Da problemática do método ao método
como problema – hermenêutica
filosófica e a questão do compreender
Paulo Cesar Duque-Estrada
Resumo
Este artigo pretende oferecer uma apresentação
sintética de uma parte da longa narrativa histórico-filosófica desenvolvida em Verdade e Método,
na qual Gadamer se refere ao aparecimento do ideal de método no decorrer da história da hermenêutica clássica. O objetivo aqui perseguido é situar
a incompatibilidade existente, segundo Gadamer,
entre, por um lado, o ideal de método voltado para
o tratamento de objetos históricos e, por outro, o
fato deste mesmo ideal de método encontrar-se
originariamente enraizado no modelo romântico
da interação entre indivíduos pertencentes a uma
mesma experiência histórica.
Palavras-chave: Hermenêutica, Método, História, Subjetividade.
Gragoatá
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Paulo Cesar Duque-Estrada
O presente artigo pretende situar em linhas gerais a reflexão
que, em sua obra monumental, Verdade e Método, Gadamer dedica
à questão do método. Na esteira de Schleiermacher e Dilthey,
a reflexão de Gadamer segue o movimento de uma contínua
explicitação, para além de suas práticas pontuais e concretas, do
fenômeno hermenêutico. Dentro de um certo recorte, e a partir
do tema de sua desregionalização, tentarei acompanhar a narrativa
histórico-filosófica de Gadamer sobre a hermenêutica e suas prévias implicações com o ideal de método.
Desregionalização e universalidade do fenômeno hermenêutico
Gadamer, H-G: Verdade e Método., p. 277.,
ligeiramente modificado. Wahrheit und Methode. 2. Auflage, p. 165.
Daqui por diante referido como VM. Havendo
dois números de página
para uma mesma citação, o primeiro número
se refere à tradução brasileira.
1
50
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O termo “desregionalização da hermenêutica” se refere ao
processo em que ela se emancipou de uma função meramente
acessória, enquanto foi entendida como um simples conjunto
de regras auxiliares de interpretação. Tais regras deveriam ser
aplicadas apenas ocasionalmente, nos casos excepcionais onde a
leitura se via diante de passagens obscuras que comprometiam a
compreensão de um texto. Era assim que, até então, cada disciplina
humana como a Filologia, a Teologia, ou o Direito, possuía, como
um apêndice, o seu próprio conjunto de regras hermenêuticas, de
acordo com as características específicas de seu campo de investigação. Mas, com a falência da função normativa que a tradição
exercia sobre tais disciplinas – são exemplos disto o paradigma
que a Antiguidade Clássica representou para a Filologia; ou a
autoridade que a tradição dogmática da igreja representou para a
teologia –, a compreensão que elas, tais disciplinas, proporcionavam passou a se desprender de sua função meramente servil de
garantir continuidade às formas tradicionalmente legitimadas de
transmissão, e a se afirmar, por si mesma, como uma questão. Ou
seja, não a coisa compreendida mas o compreender de alguma coisa
veio a se configurar como questão. É neste sentido que Schleiermacher iniciou um projeto, retomado posteriormente por Dilthey,
de estabelecimento do que constituiria os princípios universais da
hermenêutica. Progressivamente, de Schleiermacher a Dilthey, a
hermenêutica irá se afirmar como um método de aplicação universal
para realização do compreender (Verstehen). É assim que Dilthey,
como observa Gadamer, sustentava a necessidade da hermenêutica
“ter que começar a desvencilhar-se de todas as suas limitações
dogmáticas e liberar-se a si mesma para elevar-se ao significado
universal de um organon histórico”.1 A novidade que resulta deste
processo – de desregionalização que é também e ao mesmo tempo
de sua própria universalização – será exatamente esta: a reflexão
hermenêutica passa a se separar das operações locais de aplicação
de regras auxiliares para a compreensão dos conteúdos transmitidos pela tradição, e a se voltar para os aspectos fundamentais
subjacentes ao fenômeno mesmo da compreensão. Schleiermacher
e Dilthey representam dois momentos decisivos deste processo.
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Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender
Schleiermacher: da ocasionalidade à permanência da relação
entre compreensão e interpretação
Cf., VM., p. 286; 171.
VM., p. 276 ligeiramente modificado; 164.
2
3
A mudança de enfoque – dos conteúdos transmitidos pela
tradição para os elementos que entram em jogo na compreensão
dos mesmos – foi levada a cabo por Schleiermacher, através de
uma retomada do modo de se pensar a relação entre interpretação
e compreensão. Até então, a interpretação compunha justamente
aquele conjunto de procedimentos que deveriam ser aplicados
apenas ocasionalmente, nos momentos em que o encontro com
alguma passagem obscura de um texto comprometia a imediata
compreensão de seu conteúdo. Gadamer situa em Spinoza e
Claudenius dois exemplos deste caráter ocasional atribuído à interpretação.
Spinoza entendia a interpretação como um procedimento
metódico que se punha em prática sempre que se pretendesse
remover as obscuridades que impediam a compreensão que deveria resultar naturalmente da leitura de um texto. O seu método
interpretativo visava inferir o que o autor queria dizer a partir
dos dados históricos retirados do contexto em que ele vivera.
Claudenius, por sua vez, também percebia a compreensão como
resultante de toda e qualquer aproximação a um conteúdo já previamente familiar. A interpretação, ao contrário, só era necessária
nos casos excepcionais em que uma determinada passagem se
mostrasse ininteligível. O seu procedimento interpretativo apresentava, aliás, uma função pedagógica: no ato da interpretação,
o mestre deveria se acomodar à perspectiva do aluno, acrescentando os conceitos necessários para a plena compreensão de uma
passagem.2
Em ambos os casos, tanto em Spinoza quanto em Claudenius,
sempre que um procedimento interpretativo se fizesse necessário
ele deveria se orientar por um antigo princípio hermenêutico, o
princípio universal da interpretação textual, já conhecido pela tradição
da retórica clássica e incorporado por Lutero e seus sucessores.
Segundo tal princípio, “todos os detalhes de um texto devem ser
compreendidos a partir do contextus, do conjunto, bem como
do sentido unitário para o qual o todo [do texto] está orientado, o
scopus.”3 A seguinte circularidade encontrava-se envolvida neste
princípio: as partes de um texto deveriam ser compreendidas
à luz do todo do texto que, por sua vez, adquiria o seu sentido
através da compreensão acumulativa de cada uma de suas partes
individuais. Este mesmo princípio permaneceu válido para
Schleiermacher como também para o desenvolvimento posterior
da reflexão hermenêutica na obra de Dilthey. Mas Schleiermacher,
no entanto, opera uma transformação no modo de se perceber a
relação entre compreensão e interpretação; transformação esta
que supõe uma re-colocação, em bases completamente distintas,
daquele antigo princípio hermenêutico. Tal princípio, como já
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Isto é, do que não é da
ordem do esperado.
5
VM., p. 281; 167.
6
“superação de mal-entendidos”; outra forma
de se referir ao vínculo
inseparável entre compreensão e interpretação.
7
VM., p. 290 ligeiramente modificado; 174.
8
Ou seja, a cada instante pode-se interferir
- interpretativamente
- no desenrolar de uma
situação de conversa a
fim de se preservar ou
restaurar a mútua compreensão entre os seus
participantes.
4
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Paulo Cesar Duque-Estrada
disse, era observado apenas ocasionalmente, quando o encontro
com alguma passagem obscura comprometia a compreensão
de um texto. Schleiermacher, por sua vez, e por contraste, passa
a não mais perceber a situação de um mal-entendido, ou seja, de
uma interrupção no fluxo da compreensão, como uma situação
ocasional, esporádica. Ao contrário, o mal-entendido, segundo ele,
constitui uma experiência humana universal. Não que a compreensão,
para ele, seja impossível mas sim que “a experiência do que é
estranho4 e a possibilidade do mal-entendido é universal.”5
De acordo com esta perspectiva, o que ocorre, de um modo
imediato, não é o livre fluir da compreensão mas sim o mal-entendido. Isto quer dizer, no que se refere à relação entre compreensão
e interpretação, que esta última passa a ser percebida não mais
como um processo acionado episodicamente mas, antes, o tempo
todo. Compreensão e interpretação mostram-se, assim, como dois
momentos inseparáveis no âmbito da comunicação que se faz
através da linguagem. Nesta última, cada ato de compreensão é
também um ato de interpretação e vice-versa. A tarefa que, a partir
de então, passa a ser atribuída à hermenêutica é a de reproduzir,
num plano metodológico, o mesmo processo de superação de malentendidos6 que ocorre o tempo todo no transcorrer espontâneo da
comunicação humana. O caráter geral da hermenêutica afirmado
por Schleiermacher consiste, pois, precisamente nisto: no fato de
o mal-entendido, por um lado, e o processo de sua superação, por
outro lado, dizer respeito ao próprio desenrolar da comunicação
humana; não constituindo, portanto, um fenômeno isolado, restrito ao âmbito da leitura de textos.
Com tal posicionamento, Schleiermacher se contrapõe à prática dos estudos hermenêuticos que, até então, limitavam os seus
respectivos campos de investigação ao domínio da palavra escrita
e, mais especificamente, em línguas estrangeiras. Ele contesta,
“como se a mesma coisa [ou seja, o acontecer de um mal-entendido
acompanhado de um esforço simultâneo por superá-lo na realização de
uma efetiva mútua compreensão] não pudesse ocorrer igualmente na
conversação e no ouvir imediato de um discurso.”7 Mas enquanto
a comunicação oral se processa através da participação interpretativa dos agentes envolvidos em uma situação de conversa8, na
recepção de textos escritos, ao contrário, a ausência do autor, por
um lado, bem como, por outro lado, a objetivação de suas palavras
em estruturas estáveis de sentido que, repetidamente, podem ser
lidas para além do contexto originário em que o seu discurso foi
expresso; esses dois aspectos, por si mesmos, já indicam uma
interrupção no fluxo interpretativo da compreensão. Interrupção
esta que é estrutural à recepção e, portanto, à transmissão dos
textos escritos. É aqui que a hermenêutica, enquanto disciplina
metódica, se faz necessária para, a partir de tal interrupção, restaurar a continuidade do processo interpretativo da compreensão. Este
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Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender
ponto de partida da hermenêutica romântica inaugurada por
Schleiermacher será decisivo na determinação do caráter ético
da hermenêutica filosófica de Gadamer. Também para o autor
de Verdade e Método, a hermenêutica se associa à tarefa de garantir
permanência ao processo interpretativo da compreensão. Como diz: “a
hermenêutica pode designar uma capacidade natural do homem,
isto é, a capacidade de um contato compreensivo com os homens.” 9
O método interpretativo e o paradigma do vínculo ético
Cabe observar que esta generalização do fenômeno hermenêutico - por parte do pensamento de Schleiermacher, alçando-o
à condição de método de interpretação – ocorria dentro de limites
muito precisos. Ela se dava no âmbito dos estudos teológicos. O
método de Schleiermacher se estruturava em dois níveis: interpretação gramatical e interpretação psicológica. Na interpretação
gramatical, o intérprete deveria levar em conta a influência que a
totalidade previamente dada da linguagem exerce sobre o autor,
bem como a influência que uma determinada literatura exerce
sobre uma obra particular.10 Na interpretação psicológica – que
Gadamer considera a principal contribuição de Schleiermacher
devido à influência decisiva que ela teve sobre os teóricos do
século xix e, particularmente, em Dilthey -, o intérprete deveria
considerar o texto como expressão de uma parte da vida do autor.
Ambas as formas de interpretação se orientavam pela já referida
circularidade entre as partes e o todo. Como sintetiza Georgia
Warnke, a propósito da primeira forma de interpretação:
Gadamer, H-G: “Hermenêutica como Filosofia Prática”; in A Razão
na Época da Ciência, p.
61.
10
Cf. VM., p. 291-292;
174-175.
11
Warnke,G: Gadamer:
Hermeneutics, Tradition and Reason, p. 13
(minha tradução).
12
Cf. VM., 292; 175.
13
Em outras palavras,
o objetivo do interprete
consistia em encontrar
um acesso ao processo
original de criação da
obra com base em um
“ato divinatório”. Nesta perspectiva, como
sintetiza Gadamer, a
compreensão passa a ser
percebida como “uma
reprodução referida à
produção original, uma
pós- con st r ução, que
parte do momento vivo
da concepção (...).” VM.,
p. 292; 175.
A interpretação gramatical busca determinar os sentidos das
palavras em função das frases em que elas se encontram como
uma de suas partes constitutivas, e as frases em função da obra
como um todo; finalmente, [a interpretação gramatical] situa a
obra mesma no contexto de seu uso lingüístico e do gênero
literário ao qual ela pertence. Ao mesmo tempo, a compreensão
das frases, da obra, do gênero literário e do uso lingüístico
se constitui através da compreensão das partes menores que
compõem aquelas totalidades maiores.11
9
A interpretação psicológica, por sua vez, de acordo com a
mesma lógica da interpretação gramatical, visa compreender cada
estrutura de um pensamento que se encontre expresso e objetivado em uma determinada obra como um elemento integrante
de uma totalidade maior que constitui o contexto da vida de seu
autor.12 O pertencimento ao processo universal da vida que inclui
os dois, autor e intérprete, permitiria ao último se transportar, via
imaginação, para as experiências e pensamentos que engendraram a obra. Seria, deste modo, possível ao intérprete re-atualizar a
mesma situação original em que a obra havia se revelado enquanto
manifestação única da vida do autor.13
O pertencimento a uma totalidade é a condição que, em última
ou primeira instância, garante a possibilidade de superação dos
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14
“As nossas experiências das coisas, e mesmo da vida diária, dos
modos de produção, e,
sim, também da esfera
de nossas preocupações vitais, são, de todo,
hermenêuticas.” Carta
a Richard Bernstein; in
Bernstein, R: Beyond
Objectivism and Relativism., p. 263 (minha
tradução). Sobre este
tópico, cf. a seção “O
problema hermenêutico
da aplicação” de VM.
54
Rev Gragoata n 29.indb 54
Paulo Cesar Duque-Estrada
mal-entendidos. Assim, em ambas as formas de interpretação,
gramatical e psicológica, a superação de uma dificuldade inicial
que um intérprete possa ter em sua tentativa de compreender uma
obra é possibilitada pelo fato dele pertencer, de algum modo, à
mesma totalidade na qual o autor original se encontra igualmente
inserido. Na interpretação gramatical, trata-se da totalidade da
linguagem que permite ao intérprete mover-se para além de seu
meio lingüístico e introduzir-se na gramática e no gênero literário referentes ao autor original. Na interpretação psicológica,
trata-se da totalidade da vida que, ao reunir todos os indivíduos,
se constitui sempre e já como a condição por excelência para a
mútua compreensão que se dá entre eles. Nos dois casos, isto quer
dizer o seguinte: a alienação - o encontrar-se diante do que é outro,
de outra ordem, do que não responde ao esperado ou responde de modo
inesperado - é sempre acompanhada da possibilidade de sua superação,
via interpretação, no restabelecimento de uma mútua compreensão. No
trânsito interpretativo entre esses dois momentos, da alienação e da
compreensão, o fenômeno hermenêutico segue em sua dinâmica
circular do todo para as partes e vice-versa.
Gadamer não deixará de se apoiar nesta dinâmica ao sugerir
uma produtividade própria à verdade que, em VM, ele sustenta
como mais originária, anterior à esfera da objetividade. O traço
essencial a tal produtividade consiste no fato de o todo e as partes
sempre se repetirem diferentemente, ou seja: o todo se re-integra a
cada vez através de suas partes constitutivas que ocorrem sempre
de um modo novo, segundo o caráter singular, “aqui e agora”,
de cada situação que, por sua vez, é sempre e já compreendida
enquanto tal à luz de uma totalidade cambiante, ou seja, uma
totalidade que não é jamais a mesma, estática e auto-idêntica
totalidade. A produtividade sugerida por Gadamer consiste justamente nesta determinação recíproca do todo e das partes que, aliás,
é o que o seu conceito de “aplicação” quer dizer. Mais originária
do que a aplicação metódica de uma lei ou regra, a aplicação, no
sentido gadameriano desta recíproca determinação, diz respeito
ao próprio movimento de realização da práxis humana que é o
que ele se propõe a pensar em sua hermenêutica filosófica.14
Mas voltemos à nossa apresentação. Encontramos-nos a
caminho do momento em que a hermenêutica passa a assumir
plenamente para si o ideal de um método universal do compreender; o que ocorre com Dilthey, mas não sem a influência da escola
histórica.
A escola histórica: o paradigma do vínculo ético
para além da relação entre autor e intérprete.
Na perspectiva da passagem do projeto de Schleiermacher
para o de Dilthey, a importância da escola histórica (Ranke,
Droysen), segundo Gadamer, reside no fato dela ter preservado e
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Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender
reafirmado, em uma dimensão mais ampla, aquele mesmo traço,
encontrado em Schleiermacher, de um vínculo ético intrínseco à
condição originária de mútua compreensão. Este vínculo ético é,
portanto, preservado e pensado de uma forma mais ampla pela
escola história.
Da ampliação: a escola histórica promoveu, em relação a
Schleiermacher, uma ampliação do campo de investigação que,
da intenção de um texto - mais precisamente, do que o seu autor
tinha em mente -, se deslocou para o âmbito da história. Com esta
mudança, o que passa a interessar já não diz respeito à significância da individualidade de um autor para o intérprete, mas sim
do passado de uma tradição para o presente.
Da preservação: apesar da mudança, o mesmo princípio
hermenêutico do todo e das partes que valia para a interpretação
textual - ou seja, para a interpretação do que o autor quis dizer seguiu válido para a interpretação da história. Como diz Gadamer:
“o esquema fundamental, em conformidade com o qual a escola
histórica pensa a metodologia da história universal, não é pois
nada mais que o que é válido face a qualquer texto. É o esquema
do todo e das partes.”15 Isto quer dizer também, em outros termos,
que as operações hermenêuticas que se voltavam para o domínio
da história seguiram obedecendo a mesma lógica das operações
hermenêuticas que tinham por paradigma a individualidade do
autor. Assim, do texto, enquanto obra da individualidade de um
autor, à história, enquanto significância do passado relativa ao
presente, o esquema do vínculo ético com o outro – pensado por
Schleiermacher nos termos da relação entre autor e intérprete e
com base, como vimos, no modelo da interação entre os participantes de uma conversa - é preservado e re-situado em uma
esfera mais ampla.
Com tal ampliação do campo da interpretação,16 a escola
histórica se viu diante da seguinte dificuldade: como submeter
a história à reflexão metódica? Se, no âmbito do método interpretativo de Schleiermacher, a transmissão do sentido em questão
era pensada com base na experiência (Erlebnis) do autor que, via
imaginação, deveria ser re-atualizada pelo intérprete; agora, com
o novo cenário aberto pela escola histórica, não há mais lugar para
a experiência vivenciada e re-vivenciada por indivíduos. Aqui a
transmissão do sentido se propaga através de um nexo histórico
que, no dizer de Gadamer, “já não é vivido nem experimentado por
indivíduo algum”.17 Mas será com Dilthey que tal problema receberá
uma clara formulação.
VM., p. 307; 186.
Ampliação que é também do campo da teologia para o campo da
“história universal”.
17
VM., p. 343; 210.
15
16
Dilthey: explicitação da afinidade do método historiográfico
com a hermenêutica romântica.
Não foram os representantes da escola histórica, segundo
Gadamer, mas sim Dilthey quem percebeu com toda a clareza a
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semelhança estrutural entre a interpretação textual e a interpretação histórica. Assim, ele pôde realizar que a questão sobre como
submeter a história à reflexão metódica deveria ser recolocada
no interior do próprio âmbito em que ela, tal questão, tomava
corpo; ou seja, o âmbito do princípio hermenêutico do todo e das
partes. Na verdade, além da semelhança, tratava-se ainda de uma
interpenetração, se assim podemos dizer, entre as estruturas da
interpretação textual e da interpretação histórica:
VM., p. 307; 186., modificado.
19
VM., p. 308; 186., ligeiramente modificado.
20
“Com essa transferência da hermenêutica
para a historiografia,
Dilthey torna-se o intérprete da escola histórica.
Ele formula o que Ranke
e Droysen, no fundo,
pensavam.” VM., p. 308;
186,
21
O termo “metafísica
da individualidade”,
na a rg umentação de
Gadamer, reporta a um
legado, por assim dizer, da hermenêutica de
Schleiermacher. Arrisco
uma breve descrição da
“lógica” interna a tal
metafísica do seguinte
modo: antes de tudo, a
individualidade é tomada como um segredo que jamais pode ser
completamente explicado; ou seja, há sempre
algo em toda individualidade que permanece
opaco às perspectivas,
valores e verdades da
vida corrente. Numa
palavra, há, em cada
indivíduo, uma alteridade em relação a todos
os outros indivíduos.
Mas, ao mesmo tempo,
a individualidade de
cada indivíduo é também uma manifestação
da universalidade da
vida. Schleiermacher
vai afirmar, neste sentido, que cada indivíduo
traz em si uma diminuta
parcela de todos os outros indivíduos. Assim,
além da alteridade, há
também familiaridade
e, conseqüentemente,
a possibilidade de um
indivíduo se transportar para o lugar de um
outro. É isto o que, para
Schleiermacher, constitui fundamentalmente o
ato do compreender. Cf.
VM., p.294-297; 177-179.
22
VM., p. 308; 186.
18
56
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A interpretação histórica pode servir como meio para compreender a coesão interna de um texto, embora, na perspectiva
de um outro interesse, ela [a interpretação histórica] possa ver
o texto apenas como uma fonte que se integra no todo da
tradição histórica.18
Com base nesta constatação, Dilthey foi capaz de retomar
a hermenêutica romântica e ampliá-la, “até fazer dela uma metodologia histórica e até uma teoria do conhecimento das ciências
do espírito”19, logrando, assim, explicitar e aprofundar a reflexão
iniciada pela escola histórica.20 Isto, para Gadamer, significa algo
muito importante; precisamente,
que a hermenêutica romântica e seu pano de fundo, a metafísica panteísta da individualidade21 foram determinantes para
a reflexão teórica da investigação da história no século xix.
Isso foi decisivo para o destino das ciências do espírito e para
a concepção do mundo da escola histórica.22
Conclui-se, portanto, que entre o princípio hermenêutico do todo
e das partes e o ideal de cientificidade perseguido pela pesquisa histórica
não há ruptura e sim continuidade.
A distinção entre explicar e compreender.
Dilthey poderá, a partir daí, estabelecer uma distinção entre
a experiência que é própria das ciências humanas e a experiência
das ciências da natureza. Nestas últimas, a experiência constitui
o momento em que uma hipótese a respeito de um dado fato vem
a ser confirmada ou não. Mas, no plano das ciências humanas, o
que se dá à investigação nunca é alguma coisa fixa ou completamente estranha, mas sim algo feito. Por esta razão, a estrutura da
experiência comporta uma interioridade histórica que a diferencia
da experiência das ciências da natureza. Com base nisto, Dilthey
vai afirmar dois tipos distintos de conhecimento: a explicação
(Erklärung), própria às ciências da natureza, e a compreensão
(Verstehen), própria às ciências humanas.
Na explicação, o conhecimento dos objetos naturais é obtido
isolando-se relações entre causa e efeito dos conteúdos sensíveis
da percepção. Os vários âmbitos de tais relações constituem os
diferentes contextos (leis, princípios, etc) à luz dos quais as coisas
do mundo familiar são apreendidas (explicadas) na condição de
objetos de investigação das ciências da natureza. Por sua vez, na
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Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender
compreensão, o conhecimento de um objeto histórico se ancora
na homogeneidade entre o objeto investigado e o contexto à luz
do qual ele, o objeto, se mostra enquanto tal. Isto quer dizer que,
em contraste com o isolamento de um campo de relações causais
através de operações intelectuais, como ocorre nas ciências da
natureza, o contexto que antecipa a inteligibilidade do objeto de
uma investigação historiográfica não se dá por abstração, quer
dizer, por meio de construções intelectuais, mas, antes, através
do sofrimento e da instrução (das Leiden und die Belehrung) que o
sujeito do conhecimento recebe de sua própria vida histórica. E
é com base nesta última que o sujeito já se encontra relacionado
ao objeto de sua investigação. No dizer de Dilthey, “a primeira
condição de possibilidade da ciência da história consiste em que
eu mesmo sou um ser histórico, em que aquele que investiga a
história é o mesmo que a faz.”23 O inseparável envolvimento com
o objeto não constitui aqui uma carência em relação ao poder de
objetivação das ciências da natureza. Comparado com o explicar
das ciências da natureza, o compreender se apresenta como um
outro tipo de conhecimento que se funda, como sua condição primeira, não no isolamento de relações causais intelectualmente
construídas, mas, antes, no fluxo histórico da vida mesma.
Estabelecimento do método científico da compreensão
Apud Gadamer; VM.,
p. 340; 209.
23
O primeiro aspecto, na realização do compreender - ou seja,
do conhecimento de objetos históricos com base na universalidade de um método – consiste na vivência imediata subjacente a
cada manifestação da vida de um indivíduo. Dilthey reconhece
o caráter contingente das vivências; algo que, de pronto, poderia barrar qualquer pretensão de universalidade. No entanto, a
contingência, segundo ele, não é a primeira e última verdade das
vivências. Basta ter em mente que elas ocorrem sempre no âmbito
de uma coesão ou “con-juntura” (Zusammenhang) que constitui a
continuidade da vida do indivíduo. É esta coesão, a que Dilthey
se refere com o conceito de “estrutura” (Gebilde), que constitui o
elemento de estabilidade, ou de continuidade, que torna possível a
realização do conhecimento.
A estrutura será, assim, afirmada em distinção às relações
causais; a primeira como âmbito do conhecimento de objetos
históricos, a segunda como âmbito do conhecimento de objetos
naturais. No primeiro caso, a base da continuidade garantidora
de conhecimento não consiste na seqüência de relações causais,
mas nas vivências efetivas dos indivíduos. Do ponto de vista
metodológico, tal diferença pode ser estabelecida do seguinte
modo: ao contrário das relações causais, que não podem ser vistas
no fenômeno que é por elas regulado, mas apenas deduzidas, as
relações históricas podem ser vistas como partes de um todo estrutural – ou seja, como partes componentes de um fato histórico.
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Gadamer oferece a seguinte ilustração deste “nexo estrutural”
que, aliás, constitui o que Dilthey entende por significado:
... uma estrutura psíquica, como por exemplo, um indivíduo
forma a sua individualidade na medida em que desenvolve
suas tendências naturais ao mesmo tempo em que sofre o
efeito condicionador das circunstâncias. O que daí resultará,
a própria “individualidade”, isto é, o caráter do indivíduo, não
é uma mera conseqüência dos fatores causais, nem pode ser
entendida meramente a partir dessa causalidade, mas representa uma unidade compreensível em si mesma, uma unidade
vital que se expressa em cada uma de suas manifestações e
que pode, por isso, ser compreendida a partir de cada uma
delas. Independentemente da ordem das relações de causa e
efeito (der Ordnung des Erwirkens) algo se integra aqui em uma
configuração única.24
Numa palavra, ao contrário da causa que não pode ser
vista a partir de seu efeito, a unidade do todo da vida de um
indivíduo não permanece oculta mas sim expressa em cada uma
das manifestações deste mesmo indivíduo. Expressão é, aliás,
um termo chave em Dilthey. Ele significa a simultaneidade entre
a imediaticidade de uma expressão e a mediaticidade do que é
expresso na expressão. Como diz Gadamer, o que é expresso na
expressão “está presente na expressão mesma (im Ausdruck selbst)
e é compreendido quando a expressão é compreendida.”25
Há que se notar, contudo, que o conhecimento obtido aqui,
com base na continuidade da vida de um indivíduo, não é ainda
histórico mas biográfico. O conhecimento histórico requer, assim,
um salto para além do nível psicológico das vivências ou experiências particulares de um indivíduo, a fim de se alcançar o
momento da experiência histórica – que não é experiência de nenhum
indivíduo particular.
Do plano psicológico ao plano lógico do sujeito da história:
a vida histórica.
VM., p.344-345; 212.,
ligeiramente modificado.
25
VM., p344; 211 , ligeiramente modificado.
26
VM., p. 343; 211., modificado.
24
58
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Dilthey reconhece a insuficiência que significa permanecer
no plano das vivências de indivíduos reais e que, portanto, apesar
de seu compromisso com as vivências - e não com construções
intelectuais, apriorísticas, das ciências naturais -, é necessário
postular a existência de sujeitos lógicos - não reais - no campo da
investigação histórica. Isto não significa, contudo, uma invalidação
de seu projeto. Gadamer:
Dilthey vê claramente essa dificuldade. Mas responde a si
mesmo que isso não pode ser inadmissível em si, na medida em
que a pertença mútua dos indivíduos a um todo – por exemplo,
na unidade de uma geração ou de uma nação – representa uma
realidade espiritual (eine seelische Wirklichkeit) que teria de ser
reconhecida como tal, precisamente porque não se pode retornar
para trás dela a fim de explicá-la.26
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Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender
Esta passagem, do plano dos sujeitos reais (wirklicher Subjekte) ao plano lógico do sujeito histórico, constitui o momento de
transição, no projeto de Dilthey, da fundamentação psicológica para
a fundamentação hermenêutica das ciências humanas. A questão
epistemológica que Dilthey terá que responder, para poder realizar com sucesso esta transição, será a seguinte: de que modo uma
coesão – ou “con-juntura” (Zusammenhang) –, que não é a vivência
de nenhum indivíduo em particular, pode ser conhecida? Ele tentará responder à questão lançando mão dos mesmos conceitos já
desenvolvidos na “etapa psicológica” de sua análise. Assim como
os momentos pontuais da experiência (Erlebnis) de um indivíduo
encontram-se reunidas no todo coeso de sua própria vida, do
mesmo modo, as experiências históricas encontram-se reunidas
no todo coeso de uma determinada vida histórica. Os conceitos
de expressão e estrutura seguirão válidos também aqui, neste
segundo momento. Juntos, eles vão constituir o seu conceito mais
amplo de “vida”.
Dilthey fará do conceito de vida a base de sua hermenêutica das ciências humanas. Contra a perspectiva idealista, ele
percebe a idealidade do significado como situada não no plano
do sujeito transcendental, mas na efetividade histórica da vida.
Ora, se a vida pode, assim, ser afirmada como o solo das ciências
humanas, isto quer dizer que ela, a vida, comporta a sua própria
inteligibilidade. O mesmo esquema do todo e das partes entra
novamente em cena: a vida [o todo] se objetiva [se expressa] em
estruturas estáveis de sentido [obras de arte, leis, enfim, textos]
que são transmitidas através das situações particulares [partes
do todo] em que elas, tais estruturas, são compreendidas. Sobre
a estrutura hermenêutica deste processo, diz Gadamer:
É a vida mesma que se desenvolve e se configura rumo a
unidades compreensíveis, e é o indivíduo particular que compreende essas unidades como tais. ... O nexo (Zusammenhang)
da vida tal como se oferece ao indivíduo ... se fundamenta na
significância de determinadas vivências (Erlebnisse). A partir
delas, como a partir de um centro organizador, constitui-se a
unidade de um decurso de uma vida, do mesmo modo em que
uma melodia adquire o sentido de sua forma – não a partir da
mera sucessão de tons passageiros, mas a partir dos motivos
musicais que determinam a sua unidade formal.27
Mais sinteticamente,
A própria vida, essa temporalidade em constante fluir, está
voltada à configuração de unidades de significado duradouras.
A própria vida se auto-interpreta. Tem estrutura hermenêutica. É dessa forma que a vida constitui a verdadeira base das
ciências do espírito.28
VM., p.342; 210., ligeuramente modificado.
28
VM., p. 345-346; 21227
No entanto, apesar de todas as suas inovações possibilitadas
pelos seus conceitos de “expressão”, “compreensão”, “estrutura”,
“vida”, etc, o fato é que Dilthey não teve sucesso no enfrentamento
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da questão: como a unidade coesa de um todo histórico, que não
é vivência de nenhum sujeito particular, pode ser conhecida?
O problema: do método.
Para irmos diretamente ao ponto, eis o problema: se o ser da
consciência particular de cada indivíduo se constitui no âmbito
de uma coesão estrutural29 da vida histórica, cabe perguntar:
qual é a distinção da consciência histórica - face a todas as
demais formas de consciência da história –, para que seus
próprios condicionamentos não devam suspender a sua pretensão fundamental de alcançar um conhecimento objetivo?30
Em outras palavras, se a consciência metodológica própria
à investigação histórica – ou seja, a “consciência histórica” – não
pode escapar de sua imersão na história; então, em que bases
se pode afirmar que, em distinção a todas as outras formas de
consciência que se encontram igualmente imersas na história,
a consciência histórica é capaz de fornecer um conhecimento
objetivo da história? Gadamer vai apontar para uma incompatibilidade no cerne do projeto de Dilthey. Há, segundo Gadamer,
uma incompatibilidade entre, por um lado, o seu ideal de um
conhecimento histórico baseado em um método científico e, por
outro lado, a sua tentativa de fundar este método na imanência
da vida histórica. É neste sentido que ele vai falar de um “cartesianismo não resolvido” existente em Dilthey. Ou seja, por um
lado, em um estilo cartesiano,
Dilthey exigirá uma reflexão filosófica que se estenda a todo
o campo em que “a consciência já tenha sacudido toda autoridade e procure chegar a um saber válido do ponto de vista
da reflexão e da dúvida.31
Ou “nexo estrutural”,
seg uindo a t radução
brasileira de Verdade e
Método.
30
VM., p. 357; 221.
31
VM., p. 362; 224.
29
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Por outro lado, ao contrário de uma perspectiva cartesiana,
o exercício sistemático da reflexão e da dúvida que é reivindicado
aqui deve se fundar no fluxo espontâneo da vida histórica. Mas,
pela sua própria natureza, o tipo de conhecimento fundado “na
reflexão e na dúvida” não se inscreve num movimento imanente
à vida mas sim em um movimento que se dirige à mesma. Daí
a sua tentativa sem sucesso de combinar o seu ideal de método
com uma reflexão imanente à vida. A conseqüência, em última
análise, é a de que o tratamento do objeto histórico se reduz à
condição de uma decifração do mesmo; uma operação que se
precipita sobre o mesmo, mas nunca um movimento imanente
ao próprio objeto; nunca uma experiência histórica (Erfahrung)
como ele gostaria de ser.
Para Gadamer, leitor de Heidegger, seria preciso que a subjetividade intrínseca ao ideal de método fosse desconstruída em
seus fundamentos para que a interpretação, enfim, se tornasse
experiência imanente à vida histórica.
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Da problemática do método ao método como problema – hermenêutica e a questão do compreender
Abstract
This article intends to offer a synthetic presentation of part of the long historical and philosophical
narrative developed in Truth and Method, where
Gadamer refers to the appearance of the ideal of
method within the history of classic hermeneutics.
The aim pursued here is to situate the incompatibility that exists, according to Gadamer, between,
on one side, the ideal of method for approaching
historical objects and, on the other side, the fact
that this very ideal of method be originally rooted
in the Romantic model of the interaction among
individuals belonging to one and the same historical experience.
Keywords: Hermeneutics, Method, History,
Subjectivity.
Referências
GADAMER, H-G. Wahrheit und Methode. 2. Auflage. Tübingen:
J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1960.
_________. Verdade e Método. Trad. Flávio Paulo Meurer. 2ed.
Petrópolis: Vozes, 1998.
_________. Hermenêutica como Filosofia Prática. In: A Razão na
Época da Ciência. Trad. Ângela Dias. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. [Biblioteca Tempo Universitário 72]
__________. Carta a Richard Bernstein. In BERNSTEIN, R. Beyond
Objectivism and Relativism. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1988.
WARNKE, G. GADAMER. Hermeneutics, Tradition and Reason.
Stanford University Press, 1987.
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O estranhamento:
um exílio repentino da percepção
Olga Guerizoli-Kempinska
Resumo
Partindo de uma visão do conceito do estranhamento (ostranienie) enquanto um conceito
dinâmico, o presente ensaio se debruça sobre a
tumultuada história de sua formação pelo jovem
Viktor Chklovski. Babélico e traduzido de diferentes maneiras, o conceito de estranhamento é
impensável sem a discussão entre a teoria da arte
e a prática literária e pictórica da vanguarda futurista. Conceito aberto e frutífero, o estranhamento
remete à solicitação da arte enquanto invenção de
uma forma radicalmente nova de percepção.
Palavras-chave: Estranhamento. Formalismo
russo. Viktor Chklovski.
Gragoatá
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Gragoatá
Olga Guerizoli-Kempinska
O presente artigo propõe-se retraçar brevemente a história da concepção da noção de “estranhamento” (остранение),
concentrando-se em especial naquelas suas particularidades que
tornaram o primeiro conceito da teoria moderna da literatura
tão babélico, confuso e aberto. As traduções múltiplas, o nãoacabamento conceitual, para não dizer o caráter contraditório,
e a abertura aos usos que excedem o campo da literatura são,
com efeito, características pertencentes desde o início ao termo
“estranhamento”. E seu início situa-se claramente no seio de
uma teoria jovem e feita por jovens, no tempo onde não havia
fronteiras estanques entre a prática artística de vanguarda e a
atividade teórica. O “estranhamento” carrega traços da situação
de sua elaboração nas condições de ruptura dos limites entre arte
e vida, traços de solicitações violentas e contraditórias, de reivindicações extremas da revolução russa, por um lado, e de exigências
estéticas da forma da obra de arte, por outro. Sem escapar às
contradições próprias à visão do progresso, o “estranhamento”
aproxima anelos tão inconciliáveis como a visão prometeica da
máquina, relacionada a uma valorização entusiasta do funcionalismo e do “procedimento”, e a crescente urgência de liberar
a experiência e a percepção humanas de todo caráter mecânico
alienante. O “estranhamento” é, finalmente, impensável sem o
diálogo, livre e aberto, da literatura com uma outra linguagem,
a da pintura, diálogo que naturalmente vai contra as pretensões
sistemáticas e o rigor da teoria.
O objetivo da arte consiste em dar a sensação das coisas enquanto visão e não como reconhecimento; o procedimento da
arte é o procedimento de “остранение” das coisas e o procedimento da forma dificultada, que aumenta os obstáculos e a
duração da percepção, pois, em arte, o processo da percepção
é o próprio fim e deve ser prolongado; a arte é uma maneira de
viver o fazer-se das coisas, e aquilo que está pronto não importa na
arte. (ШКЛОВСКИЙ, 1990, p. 63).
Nesta longa e densa frase, dividida nas traduções em duas
ou mesmo três, Viktor Borisovitch Chklovski introduz pela primeira vez o termo “остранение” (ostranienie), um neologismo formado a partir do adjetivo “странный” (strannyi) e por isso escrito
entre aspas. Como em russo “странный” significa “estranho”, a
tradução literal e segura de “остранение” para o português é
sem dúvida “estranhamento”. Mas, devido a traduções indiretas, o termo de Chklovski é também freqüentemente transposto
como “singularização”, palavra decalcada da tradução francesa
(TODOROV, 1965, p. 82) e usada na tradução brasileira do texto
de Chklovski (OLIVEIRA TOLEDO, 1971, p. 39-56) e ainda como
“desfamiliarização”, decalcada da tradução em inglês (LEMON
e REIS, 1965, p.12). Há algo de irônico nas aventuras do neologismo proposto por Chklovski, que, ao inaugurar a aventura da
primeira teoria moderna da literatura com fortes pretensões ao
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O estranhamento: um exílio repentino da percepção
caráter científico, desencadeia ao mesmo tempo uma verdadeira
confusão terminológica. A palavra “остранение” não deixa de
fato de ser traduzida e re-traduzida, tornando-se altamente hesitante e incerta através de propostas tão ousadas como “étrangéification” em francês (JACCARD, 2005, p. 52) ou ainda de tentativas
de transposição explicativa, a saber, “desautomatização”, que
traz uma descrição do efeito do estranhamento, a superação do
automatismo da percepção.
Se o termo “estranhamento” apareceu apenas no famoso
artigo “Arte como procedimento” (“Искусство как прием”),
publicado em 1917, considerado um dos manifestos do grupo
ОПОЯЗ (OPOIAZ – Sociedade de Estudo da [Teoria] da Linguagem Poética) e, com isso, um dos manifestos do formalismo russo,
a própria reflexão sobre a necessidade de uma revitalização da
percepção pela arte foi o centro do interesse teórico de Chklovski desde o início de seu engajamento intelectual. Este início
teve lugar em dezembro de 1913, quando Chklovski, à época
um estudante de filologia de 19 anos, apresentou em um ilustre
café literário de Petersburgo uma pequena conferência sobre o
lugar do futurismo na história da língua, suscitando escândalo
com a radicalidade de seus argumentos e o caráter incisivo de
seus exemplos. As idéias desta conferência foram retomadas no
artigo “Ressurreição da palavra”, publicado no início de 1914.
Nele, Chklovski compara a linguagem habitual a um cemitério,
mostrando como, não apenas palavras, mas também metáforas,
contextos e obras literárias inteiras, na medida em que são repetidos, perdem gradualmente sua vitalidade, tornam-se rígidos e
morrem, ou seja, deixam de ser vivenciados para serem apenas
automaticamente reconhecidos:
Cf. “(...) não vemos
as coisas mesmas; limitamo-nos, no mais das
vezes, a ler etiquetas
coladas sobre elas. Essa
tendência, oriunda da
necessidade, acentuou-se ainda mais sob a influência da linguagem.
Pois as palavras (com
exceção dos nomes próprios) designam gêneros”. (BERGSON, 2004,
p. 114).
As palavras – porque usadas pelo nosso pensamento no lugar
dos conceitos, no papel de, por assim dizer, signos matemáticos, devendo ser desprovidas de caráter metafórico, porque
usadas na linguagem de todos os dias, em que não as falamos
nem as ouvimos até o fim, tornaram-se comuns e tanto sua
forma interior (metafórica) quanto exterior (fonética) deixou de
ser vivenciada. Nós não vivenciamos o habitual, não o vemos,
apenas o reconhecemos. Nós não vemos as paredes de nossos
quartos, temos dificuldades para ver um erro de impressão em
uma cópia a corrigir, sobretudo quando se trata de um texto
escrito em uma língua bem conhecida, porque não podemos
nos forçar a ver, a ler, e não “reconhecer” a palavra habitual
(ШКЛОВСКИЙ, 1990, p. 36).
1
Mas como uma tal postulada desde 1913 em termos fortemente bergsonianos1, “ressurreição” da palavra e que tem
por objetivo forçar a passagem do mero reconhecimento à
visão, chegou a se transformar para Chklovski, em 1917, em
“estranhamento”? Não é fácil acompanhar esta passagem, pois
o pensamento de Chklovski nunca completa trajetos retos, preferindo avançar por linhas oblíquas, evocadas pela imagem do
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Gragoatá
O próprio Chklovski
sentia, aliás, cada vez
mais a falta da oportunidade de aprofundar e
de organizar o trabalho
teórico de OPOIAZ. Nos
anos 20, houve projetos de uma revista de
grande alcance e de um
trabalho coletivo sobre
a história da literatura russa. No contexto
dessas tentativas, frustradas pelas pressões
ideológicas e institucionais, é também difícil avaliar a sucessiva
inclusão do contexto
social de produção da
obra nas discussões dos
formalistas: trata-se de
concessões em prol do
ma rxismo ou de um
verdadeiro amadurecimento de OPOIAZ?
2
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Olga Guerizoli-Kempinska
movimento da figura do cavalo do jogo de xadrez, privilegiada
a tal ponto que deu título à coletânea de ensaios daquela época,
reunidos em 1923. O pensamento do jovem Chklovski avança por
movimentos quebrados, por artigos breves e belicosos, por parágrafos concisos, operando com uma diversidade extraordinária
de exemplos da literatura e de outras artes, usando as idéias dos
mestres, Potiebnia e Viesselovski, para em seguida negá-las com
vigor. A pressa e o gosto da negação, presentes nos movimentos
quebrados que ritmam a formulação daquela que foi a primeira
teoria da literatura, sem dúvida também refletem as condições
tumultuadas em que o jovem Chklovski trabalhava. Naquela
época, o Chklovski formalista era também o Chklovski voluntário
de guerra em 1914, o Chklovski terrorista que, durante a guerra
civil, no âmbito do partido socialista de direita, organizava ações
contra os bolcheviques, o Chklovski emigrante que fugia das
perseguições políticas rumo à Finlândia e a Berlim, o Chklovski
terrorista arrependido, que fazia um pedido, não desprovido de
ambigüidade, de voltar à Rússia (Cf. “Террорист Шкловский”),
e, finalmente, o Chklovski escritor, autor de três romances.
“O cavalo não é livre, - ele anda de lado porque a via reta
lhe é proibida” (ШКЛОВСКИЙ, 1990, p. 74), explica Chklovski. E
nesta afirmação, que se assemelha a uma confissão, é possível ler
não apenas as condições de formulação do conceito de estranhamento, mas toda história do formalismo russo. Os movimentos
do pensamento do jovem Chklovski, figura de proa da OPOIAZ,
têm o caráter de violentas ofensivas com vistas à defesa do
formalismo, primeiro contra o psicologismo, o biografismo e o
historicismo, tradicionalmente solidários com o tratamento da
literatura como ilustração de idéias e de vidas dos autores, logo
depois no âmbito do conflito contra o marxismo. Iniciado pela
inteligente crítica de Trotsky que, em 1923, no texto “A Escola
poética formalista e o marxismo” (OLIVEIRA TOLEDO, 1971,
p. 71-85), apontava para a insuficiência da abordagem puramente
formal da arte, tal conflito transforma-se, no fim dos anos 20,
em uma impiedosa exclusão ideológica da “heresia formalista”.
Fadada assim a ser sempre polêmica, a produção teórica de
Chklovski carece de uma oportunidade de um movimento reto,
pleno, puramente afirmativo, no qual fosse possível desenvolver algo do início até o fim.2 Formulado nos passos quebrados
da figura do cavalo, em um tom sempre desafiador, o próprio
conceito de estranhamento aparece como instável e disperso.
Este seu caráter fragmentário e um tanto fugidio reflete-se, por
um lado, na já evocada multiplicidade de suas traduções e, por
outro, na prodigiosa diversidade de propostas de suas origens.
Já foram evocados como seus precursores pensadores tão diferentes como Marco Aurélio, Tolstoi, Kant, Novalis e Bergson. O
“estranhamento” de Chklovski é, afinal, também contemporâneo
do conceito freudiano do “estranho”, “das Unheimliche”, definido
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O estranhamento: um exílio repentino da percepção
“Pode ser verdade
que o estranho [unheimlich] seja algo que é
secretamente familiar
[heimlich-heimisch], que
foi submetido à repressão e depois voltou, e
que tudo aquilo que é
estranho satisfaz essa
co nd iç ão”. ( F R EU D,
1996, p. 154).
3
como a experiência de “rever as coisas, pessoas, impressões, eventos e situações que conseguem despertar em nós um sentimento
de estranheza, de forma particularmente poderosa e definida”
(FREUD, 1996, p. 142). Mas se o estranhamento de fato compartilha, por um lado, com o conceito freudiano a força da experiência
da singularização, i.e., da separação dos objetos do cotidiano de
seu contexto ordinário, por outro lado, sem dúvida, lhe opõe sua
visão do sujeito e sua fé revolucionária na possibilidade de uma
percepção radicalmente nova, desprovida de origens e alheia a
todo reconhecimento.3
Para aproximar-se do conceito de estranhamento e de suas
fontes históricas que, mesmo sendo múltiplas, não deixam de se
dividir em diretas e indiretas, concretas e vagas, parece-me inevitável levar em conta, sobretudo, a maneira como ele foi concebido
e formulado, ou seja, o fato de sua formulação encontrar-se dispersa em vários artigos escritos por Chklovski entre 1914 e 1922.
O fato de o “estranhamento” ser nomeado no artigo “Arte como
procedimento”, o único texto de Chklovski amplamente traduzido e conhecido, deixa freqüentemente despercebidos alguns
elementos importantes. Em primeiro lugar, que o estranhamento
é o procedimento, “прием” (priom), geral da arte, que deve ser
compreendido no sentido de “técnica”, “artifício” ou “mecanismo”,
e que este procedimento geral consiste, por sua vez, em uma multiplicidade de diferentes procedimentos. Em segundo lugar, as
relações decisivas do conceito de estranhamento com o futurismo
russo, que, mesmo sendo mencionadas no famoso artigo, parecem
ocupar uma posição secundária na reconstrução da história do
conceito e não adquirem a relevância que de fato tiveram em sua
formulação. E, finalmente, analisado exclusivamente à luz do
artigo “Arte como procedimento”, o conceito de estranhamento
não revela suas relações com a reflexão sobre a linguagem pictórica, nem suas aspirações a ultrapassar o campo da teoria da
literatura para se tornar “o procedimento geral da arte”.
É preciso então investigar como o jovem Chklovski desenvolve o trabalho sobre a arte como procedimento, como faz do
estranhamento o procedimento da arte e como analisa, um por
um, uma enorme diversidade de procedimentos concretos, presentes não apenas nas obras literárias, mas também nos quadros
dos pintores suprematistas. A leitura de seus artigos daquela
época dá de fato a impressão de uma tentativa de fazer um
inventário completo dos procedimentos da arte, recolhidos nas
obras das mais diversas épocas e dos mais diversos gêneros literários, impossíveis de serem reunidas sob algum denominador
comum, a não ser sob a presença do funcionamento de procedimentos formais. Estes procedimentos, cuidadosamente recolhidos,
como se se tratasse de elementos de alguma fórmula científica,
são abordados de uma maneira analítica em diferentes artigos,
nos quais o próprio termo “estranhamento” nem mesmo vem à
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Este procedimento
será desenvolvido por
Bertold Brecht enquanto o efeito de Verfremdung, cuja tradução
posterior para o russo
aumentará ainda o caráter babélico do “estranhamento”, transformando o остранение
e m о ч у ж д е н и е, d i s t a n c i a m e nt o. (C f.
ТУЛЬЧИНСКИЙ, 1980).
4
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tona. Como aquele que afirma, em uma carta a Roman Jakobson,
saber como é feita a vida, como é feito Dom Quixote e como é feito
um automóvel, Chklovski dedica-se à pesquisa de procedimentos
formais nas obras de arte e de relações entre esses procedimentos.
O primeiro, segundo Trotsky, a pensar a arte não como alquimista,
mas como químico, o jovem líder da OPOIAZ, empreende um
esforço de explicar se não todos os procedimentos da obra de
arte, literária e pictórica, com certeza uma considerável amostra.
Os esforços de desvelar sucessivamente todos os mecanismos da arte que dificultam a forma, prolongam o tempo da
percepção e produzem o estranhamento deixam-se perceber na
prodigiosa diversidade de procedimentos particulares analisados por Chklovski: o procedimento de “quebrar palavras” para
potencializar o alcance emocional de sua sonoridade praticado
por poetas futuristas (em “Saiu o livro de Maiakovski ‘Nuvem de
calças’”, de 1915, e “Sobre a poesia e a linguagem trans-mental”, de
1916); o procedimento de criar uma barreira psicológica através
do procedimento da “ilusão cintilante”, possibilitada pelo desvelamento das convenções da representação teatral (em “Sobre a
barreira psicológica”, de 1920, e “A respeito de ‘Rei Lear’”)4; vários
procedimentos da construção da novela e do romance, tais como
contraste, paralelismo, deformação de proporções, retardação,
encaixamento, colocação em fileiras (em “A construção da novela e
do romance”, de 1921); o procedimento da digressão (em “A literatura além do assunto”, de 1921). Quebrando os limites disciplinares
e aventurando-se para o domínio da teoria da pintura, Chklovski
debruça-se sobre o caráter convencional da representação do
espaço pictórico, sobre o papel do espectador na sua configuração
e ainda sobre a importância da “faktura” para a constituição da
pintura enquanto um objeto estético e não como representação da
natureza (em “O espaço na pintura e os suprematistas” e “Sobre
a factura e os contra-relevos”, de 1919).
Esta longa lista de procedimentos analisados por Chklovski
não é exaustiva, mas já é possível constatar que se trata em todos
os casos de artifícios formais suscetíveis de impossibilitar uma
percepção fácil e que o procedimento geral de estranhamento
está sendo trabalhado através de uma acumulação de análises
de procedimentos particulares. Visto a multiplicidade de procedimentos investigados por Chklovski em diferentes artigos, os
procedimentos de retirar um objeto do contexto habitual e o de
chamar um objeto com um nome inabitual, descritos no famoso
texto “Arte como procedimento”, aparecem não como explicitações completas do procedimento geral do estranhamento, mas
como exemplos dentre outros.
Para chegarmos mais perto das origens mais diretas e mais
concretas do conceito de estranhamento é importante notar que,
ao exemplificar os procedimentos de estranhamento com obras
de Tolstoi e com charadas eróticas populares, o artigo “Arte como
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procedimento” deixa praticamente despercebida a importância
das conexões deste conceito com a prática poética e a produção
teórica dos poetas futuristas. A própria necessidade de forjar uma
nova palavra, “остранение”, que substitui a um tanto obsoleta
“ressurreição da palavra”, mais apropriada ao contexto da poesia
simbolista, corresponde perfeitamente a solicitações de renovar
radicalmente a linguagem, próprias aos futuristas. Maiakovski,
amigo de Chklovski, vê em um artigo de 1914 intitulado “Guerra
e língua” a vocação do poeta como um trabalho com palavras
que devem ser “trocadas” e “quebradas” para que se recupere
sua novidade e, com isso, a força de seu efeito. O quanto este trabalho e o próprio efeito são violentos o demonstra um exemplo,
emprestado por Maiakovski ao próprio Chklovski:
Em uma aula, Chklovski deu este bruto, mas muito instrutivo
exemplo. Um professor de matemática sempre chamava o
aluno: burro, burro e burro. O aluno acostumou-se, olhava
inexpressivo e indiferente. Mas quando certa vez no lugar
do esperado ‘burro’ o professor lançou-lhe ‘burra’, o menino
chorou. Por quê? Porque, ao quebrar a palavra, forçou-o a compreender que ela era ofensiva. (МАЯКОВСКИЙ).
Além da reivindicação de um novo vocabulário que revitalizasse a percepção, o trabalho dos futuristas de “quebrar”
as palavras para “quebrar” o automatismo da percepção tem
ainda outra conseqüência, muito importante para o surgimento
do “estranhamento”. Quando radicalizado, aquele trabalho faz
com que as palavras pareçam não pertencer à língua russa. A
idéia de que a nova linguagem poética fosse muito dificilmente
compreensível e que mal lembrasse a língua russa aparece já no
primeiro artigo de Chklovski, “Ressurreição da palavra”, sendo
amplamente retomada no artigo de 1916, “Sobre a poesia e a linguagem trans-mental”. Nele, Chklovski analisa a permanência da
linguagem trans-mental, (заумный язык, termo conhecido também como заумь, “zaum”), aquela que, partindo da sonoridade,
escapa à determinação semântica. Ao mostrar as relações entre
o “zaum”, os jogos gratuitos infantis com palavras e a glossolalia,
ou seja, o dom de falar em línguas estrangeiras desconhecidas,
manifesta em práticas místicas de diversas seitas, Chklovski
detém-se longamente na reflexão sobre a importância do efeito
emocional, além da significação, das “estranhas palavras”, que
compõem a linguagem trans-mental. A própria formulação do
conceito de estranhamento (остранение) deve muito à reflexão
sobre as deformações vitais da língua praticadas pelos poetas
futuristas, que ao quebrarem as palavras tornam-nas “estranhas”
(странные) e parecidas com palavras de uma língua “estrangeira”
(иностранный).
Importantes traços desta influência do futurismo e da
linguagem trans-mental na elaboração do conceito de estranhamento deixam-se detectar afinal no próprio artigo “Arte como
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procedimento”. Ao começar o artigo com um ataque à idéia de
Potiebnia, segundo a qual a arte seria um pensar com imagens,
Chklovski argumenta não contra a própria imagem (na qual ele
reconhece, de fato, um dos procedimentos da arte), mas contra
a idéia de uma economia específica da imagem que pouparia as
forças mentais do leitor. O próprio procedimento de estranhamento funciona de acordo com uma lógica exatamente oposta:
ao invés de facilitar a percepção, cria-lhe obstáculos; ao invés de
visar uma aproximação, provoca distanciamento.
No seu mais famoso artigo, Chklovski opõe-se com violência à visão da imagem que explica o desconhecido através do
conhecido e propõe, justamente através do procedimento de
estranhamento, ver na experiência da arte uma experiência do
desconhecido, do novo, do radicalmente “estranho”, tal como os
barulhos sugestivos e incompreensíveis do “zaum”. Além disso,
o procedimento do eufemismo presente nas charadas eróticas
populares, é também descrito em termos da busca pelo significado de uma palavra retirada do contexto próprio e colocada em
um outro contexto ou em um contexto “estranho”. Nos famosos
exemplos dos procedimentos de troca de pontos de vista, que,
nas obras de Tolstoi, desautomatizam a percepção, os artifícios
formais forçam a percepção a mudar de lugar, a adotar, como
ponto de vista, outro lugar ou o lugar do outro. A própria palavra
иностранный, que significa “estrangeiro” em russo, e que tantas
vezes serviu à descrição do efeito das experiências com a linguagem trans-mental dos futuristas, remete de fato à combinação
do “outro”, do “diferente”, (иной), e do “país”, “lugar” (страна).
O conceito do procedimento da arte que é o estranhamento,
que pode se desdobrar nas obras literárias em procedimentos
tão diferentes como, por um lado, o uso de uma palavra incompreensível e estranha por Khlebnikov e, por outro, a construção
de um ponto de vista diferente e estranho, o de um estrangeiro,
tal como a perspectiva do cavalo em na novela de Tolstoi intitulada “Kholstomer”, onde a humanidade é vista pelos olhos do
animal, escapa à firmeza e à unidade. Trata-se de um procedimento cuja plena definição e cujo aprofundamento teórico foram
adiados e, finalmente, frustrados pelas condições ideológicas da
União Soviética. Os precursores do conceito de estranhamento
são tão múltiplos quanto vagos. Ele encontra-se (apenas?) muito
bem exemplificado através da análise de uma diversidade desnorteante de procedimentos formais, manifestos em diferentes
obras de arte e cuja lista, apesar dos esforços de Chklovski, está
sempre aberta.
A única verdadeira unidade de todos esses procedimentos
de estranhamento está em forçarem a percepção a experimentar (não sem violência) o radicalmente estranho, novo, outro e
diferente. Conceito em obra, em busca de uma nova forma de
percepção, o “estranhamento” sempre extrapolou o campo dos
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O estranhamento: um exílio repentino da percepção
estudos da literatura, buscando o novo e o diferente no diálogo
com a linguagem visual. É também na experiência das artes
visuais, em busca acelerada do novo, que o “estranhamento”
se manifesta da maneira mais genuína e talvez por isso o eco
mais autêntico da teoria de Chklovski não seja a teoria do efeito
estético de Wolfgang Iser, mas a confissão frustrada de Leo Steinberg. Ao situar-se francamente dentro do primeiro público da
pintura americana dos anos 60, Steinberg relata a perda, o tédio,
a frustração e o imenso desconforto que acompanham o estranhamento. Recuperando dessa maneira a violência da experiência
da arte, postulada pelos fulturistas russos, Steinberg compara a
experiência da arte não a uma viagem da percepção mas a seu
“exílio repentino”:
Sei que há pessoas que se sentem verdadeiramente perturbadas com certas mudanças como as que ocorrem em Arte.
Este fato deveria dar ao que chamo de “situação do público”
uma certa dignidade. Há um sentimento de perda, de exílio
repentino, de algo que foi voluntariamente negado – às vezes o
sentimento de que a cultura ou a experiência acumulada sofre
uma irremediável desvalorização, deixando a pessoa exposta
à privação espiritual. (STEINBERG, 1975, p. 248).
Abstract
Taking the dynamic character of the concept of
desfamiliarization (ostranienie) as its starting-point, the present essay aims to reconstruct
the complicated history of that concept by the
young Viktor Chklovski. Translated in several
different ways, the concept of desfamiliarization
was largely motivated by the dialogue between
the theory of art and the practice of the futurist
poets and artists. As an open and fecund concept, desfamiliarization stresses the necessity to
radically reinvent, through the art, the ways of
the perception.
Keywords: Desfamiliarization. Russian Formalism. Viktor Chklovski.
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A obra literária na era da explosão
de signos: uma proposta semiótica
de análise do romance
Sergio Ricardo Lima de Santana
Resumo
Este artigo propõe uma abordagem metodológica
do romance sob o ponto de vista da semiótica
de Charles Sanders Peirce, utilizando como
parâmetros as categorias universais da
primeiridade, secundidade e terceiridade para
análise do texto literário. É realizada uma breve
análise do romance O talentoso Ripley, de
Patricia Highsmith, com o intuito de demonstrar
a aplicabilidade e pertinência da metodologia
proposta. Pôde-se concluir que, diante da
complexidade contemporânea no que se refere à
multiplicação de signos, a abordagem pode trazer
vantagens, ao tornar necessária a análise dos
aspectos do romance, sem desprezar a participação
da própria subjetividade do analista.
Palavras-chave: Romance; semiótica;
metodologia
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Gragoatá
Sergio Ricardo Lima de Santana
1. Introdução
A ideia da qual partimos aqui é que, dentro de um contexto
de explosão semiótica, no qual os signos multiplicam-se continuamente e desafiam nossa capacidade de compreensão, qualquer
arte ou linguagem, assim como qualquer obra em particular, é
uma tradução de outros signos, por meio de um código relativamente específico. Esta ideia tem implicações: primeiramente,
torna necessário que consideremos a literatura dentro de uma rede
semiótica, indissociável dos outros saberes, artes e ciências, com
os quais necessariamente ela interage. Em segundo lugar, lembranos de que, ainda que assim o seja, a literatura e sua teoria têm
suas próprias convenções, tradições e vocabulário, com os quais
precisamos lidar para tornar possível algum entendimento e uma
comunicação sobre o assunto. Além disso, chama atenção para
o fato de que uma realização particular – como um romance, ou
uma crítica, ou uma adaptação cinematográfica de um romance,
entre outras – pode ser considerada uma atualização da literatura,
ao desvendar e produzir novos signos, dentro da grande rede
semiótica e diante de todos os outros textos existentes.
Já se constitui um lugar-comum afirmar que, no mundo
atual, os sistemas de signos se multiplicam, e é necessário
criar ferramentas para compreender e lidar com os signos em
constante produção. Podemos perceber que, tanto os romances
produzidos contemporaneamente, como as leituras e releituras
atuais de romances atuais ou antigos, estão impregnados dessa
qualidade, ou seja, tanto na sua forma, quanto no seu conteúdo,
é provável que reproduzam a característica atual de produção
constante, em ritmo exponencial, de novos signos. Diante disso,
algumas perguntas podem ser colocadas: Primeiramente, de
quais ferramentas, por exemplo (uma vez que não há limites para
as possibilidades), podemos nos munir, a fim de adquirirmos a
competência para lidarmos com tal criação frenética de signos?
Em segundo lugar, até que ponto é possível ou necessário nos
dedicarmos à rede semiótica como um todo, ou nos atermos a
determinados limites que denominamos estudos de literatura?
Parece ser necessário que encontremos uma abordagem que esteja
na interseção entre o reconhecimento do todo – a rede semiótica
– e a concentração em uma subrede mais específica – a literatura
e os estudos literários. Tendo isto em vista, nosso objetivo neste
artigo é delinear uma possível metodologia para a análise do
texto literário, mais particularmente o romance.
Para isso, nossa proposta é a aplicação de conceitos da
semiótica peirciana, com o intuito de forjar um método de análise
do texto literário envolvendo três níveis de significação, correspondentes às categorias peircianas da primeiridade, secundidade
e terceiridade. O filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce
desenvolveu uma teoria semiótica com um caráter bastante geral
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A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance
e abstrato (SANTAELLA, 1992, p. 43). Dessa forma, sua teoria não
visa a uma aplicação prática (SANTAELLA, 2005, p. XI; XII); antes,
Peirce buscou desenvolver uma semiótica, que ele mesmo chamava de lógica, a qual procurava, entre outras coisas, investigar
o modo como apreendemos algo com que nos deparamos. Isso
significa que a sua proposta se voltava à compreensão do processo de pensamento mais que à investigação sobre um sistema
de signos em particular. Ainda assim, podemos utilizar a lógica
estabelecida por Peirce para abordarmos o texto literário de acordo
com a sua suposta especificidade e, ao mesmo tempo, dentro de
um contexto semiótico complexo e em constante mutação.
As categorias peircianas mencionadas acima configuram
uma lógica que procura dar conta de como se dá o fenômeno da
significação; de certa forma, constituem a base da fenomenologia
peirciana. Para Peirce, um Terceiro é algo que traz um Primeiro
para uma relação com um Segundo. Podemos considerar o Terceiro como sendo um resultado (parcial) do processo de significação. O Primeiro, relacionado à categoria da primeiridade, é
algo apresentado de forma imediata, aquilo que está presente
como uma impressão ou sentimento; o Segundo (secundidade) é
a relação ou embate que se estabelece, por exemplo, na tentativa
de compreensão do Primeiro; o Terceiro (terceiridade) relacionase à camada da inteligibilidade, do conhecimento racional, da
interpretação.
À qualidade do signo corresponde a categoria universal
da primeiridade, a qual se relaciona à percepção ou sensação,
à possibilidade de significação. A existência singular remete à
secundidade, categoria associada ao campo da experiência e da
ação, ou seja, à realidade. Por fim, ao caráter de lei corresponde a
terceiridade, categoria que está ligada ao pensamento, à convenção,
à apreensão racional e à necessidade (WALTHER-BENSE, 2000,
p. 3; LIMA DE SANTANA, 2009, p. 29).
De acordo com a mesma lógica, Peirce define o signo como
uma tríade formada pelo representamen – que é o signo propriamente dito –, o objeto que ele representa e o interpretante, que é
forma como o signo se configura na mente de alguém (PEIRCE
apud SANTAELLA, 2004, p. 12). O objeto só existe enquanto tal
quando veiculado por um representamen e gerar uma imagem
mental. Do mesmo modo, um signo só pode ser considerado signo
se houver um objeto que seja por ele manifestado segundo alguma
concepção. Assim como só existe um interpretante se for veiculado
por um signo, ao denotar um objeto. Deve-se esclarecer que um
interpretante não deve ser confundido com uma interpretação,
sendo antes uma relação lógica necessária para que o signo possa
ser definido como tal. A semiose não está confinada à necessidade
de um interpretante mental, o que não quer dizer que o intérprete
seja desprezível ou inexistente (SANTAELLA, 1992, p. 189).
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Gragoatá
Sergio Ricardo Lima de Santana
Em relação ao objeto representado, o signo pode ser um
ícone, quando imita a aparência do objeto, estabelecendo com ele
uma relação de semelhança e despertando sensações análogas;
um índice, quando apresenta uma conexão ou uma relação de
causa e efeito com o objeto, estando organicamente ligado a ele;
ou um símbolo, quando representa o objeto por uma convenção
ou lei, que deve ser aprendida para que o signo funcione, de fato,
como símbolo (PEIRCE, 1999, p. 73).
Partindo dessa lógica, podemos propor a análise do romance da seguinte maneira: o conjunto de elementos próprios
do romance ligados à construção de uma atmosfera, às sensações
e sentimentos (primeiridade), formariam uma base da qual partiríamos para observar a relação entre o romance e os existentes,
sejam estes referências à chamada realidade ou simplesmente
inventados pelo autor, bem como a outros textos os mais variados
(secundidade); finalmente, tal observação nos daria subsídios para
traçarmos conjecturas sobre os conceitos trazidos pelo romance,
sobre possíveis significados (terceiridade).
É possível notar que tanto os elementos imediatos e formais,
os quais se relacionam à primeiridade; quanto os dêiticos, narrativos, factuais ou intertextuais, ligados à secundidade; assim
como os conceituais e convencionais, os quais correspondem à
terceiridade, apontam para uma comunicação ou interação com
os processos de construção sígnica em funcionamento no mundo.
Isto significa que a análise de obras artísticas atuais potencialmente revela os signos contemporâneos ligados ao sentimento e
à impressão, ao embate e à luta pela compreensão e desenvolvimento de uma ideia, bem como à convenção e à inteligibilidade.
Entretanto, exatamente por estarmos impregnados dos signos de nossa própria época, o contrário também acontece: tendemos a identificar elementos icônicos, indexicais e simbólicos mais
significativos do ponto de vista da época da leitura. Daí porque
podemos sugerir que uma crítica diz mais sobre a época em que
ela (a crítica) surge do que sobre a obra criticada. Consequentemente, a análise de obras artísticas, sejam elas contemporâneas
ou não, potencialmente revela, em grande parte, signos próprias
da contemporaneidade.
As próximas seções apresentam uma proposta metodológica para abordagem do texto literário, mais especificamente o
romance, e a aplicação da referida proposta na análise do romance
O talentoso Ripley, da escritora norte-americana Patricia Highsmith
(1921-1995). Finalmente, alguns comentários adicionais concluem
este trabalho.
2. Proposta metodológica de análise do romance
Um romance pode ser visto como uma tradução de uma
história ou de uma ideia para a linguagem literária. Ao mesmo
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A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance
tempo, podemos considerar que uma tradução é uma crítica, a
qual faz o texto-fonte necessariamente passar por uma série de
operações (seleção, recorte, transformação, recriação, conformação
etc), para gerar o texto-alvo. Portanto, um romance é uma crítica,
seja da estética, dos conceitos ou da moral relacionados à história
contada. Sendo uma crítica, fala principalmente de sua própria
época e contexto. Utiliza-se de signos icônicos, indexicais e simbólicos próprios de seu tempo e espaço.
Também, uma leitura (ou interpretação) de um romance é
uma tradução para a complexidade do pensamento, uma atualização, uma crítica, que fala mais sobre o(a) próprio(a) leitor(a), sua
época e referências, do que sobre o romance em si. Assim como,
por exemplo, uma adaptação cinematográfica é também uma
tradução, uma crítica, que revela principalmente a maneira de
ver o mundo, as aspirações e interesses dos realizadores (diretor,
roteirista, produtores etc) do filme (LIMA DE SANTANA, 2009,
p. 116).
É interessante notar que a fortuna crítica de um romance,
por meio da crítica propriamente dita, da leitura, da adaptação
cinematográfica e tradução para outros sistemas de signos – ou
seja, da sua constante atualização – é em grande parte responsável
pela sua importância no conjunto da cultura e pelas significações
que lhe são atribuídas. Por extensão, concorre também para a
afirmação do gênero romance e do próprio sistema de signos
literário. Assim, há uma conexão indissociável entre o romance
e os demais sistemas de signos que participam do contexto no
qual ele surge. Do mesmo modo, há uma ligação necessária
entre a leitura, a crítica ou a análise do romance e os sistemas de
signos que formam o contexto no qual tais atividades se realizam.
Isto posto, podemos enumerar, em correlação com as categorias
peircianas e levando em conta a capacidade que elas apresentam
de, simultaneamente, considerarem o todo e o específico, três
momentos de uma análise literária, os quais poderiam constituir
um método de análise possível:
1) A percepção da forma como o romance veicula sentimentos, sensações, especialmente a uma primeira vista
e com respeito àquilo que é imediatamente apresentado,
provocando impressões que escapam à racionalidade.
Em outras palavras, quais são os atributos ou signos
icônicos do romance, aqueles que tendem a colaborar na
formação de uma atmosfera, na veiculação ou produção
de sentimentos?
2) A identificação do processo de atualização provocado
pelo romance na sua construção, isto é, dos elementos
que se conjugam para construir uma narrativa, das
referências textuais e intertextuais particulares da obra
em questão. Trata-se aqui dos elementos indexicais, dos
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índices que conectam o romance com o mundo, veiculam
ou criam um embate na direção do significado e possibilitam a compreensão por parte do(a) leitor(a).
3) A interpretação gerada a partir das análises anteriores
ou, colocando-se de outro modo, a sugestão de um significado, ainda que transitório e relativo, por ser particular
e pontual e por estar sujeito à cadeia de significados próprios do contexto onde a interpretação é feita. Quais são as
ideias que o romance defende ou que lhe são subjacentes?
É necessário ressaltar que nem o romance, conforme salientamos, nem a sua análise, estão isentos da infindável rede sígnica
estabelecida. Assim como o romance traduz determinados sentimentos, narrativas e ideias sob a influência de um contexto maior,
também sua análise sofre ação de um contexto semiótico próprio
do período, lugar e situação em que é feita. Uma vez que nossa
época procura abrir espaço para diferentes discursos, ao invés de
aceitar ou assumir um discurso hegemônico e central, uma análise
contemporânea tende a buscar no romance diversos discursos
explícitos ou implícitos. Similarmente, é plausível que as análises
literárias tornem-se cada vez menos profundas e abrangentes e
se voltem mais a aspectos específicos, assumindo um formato de
comentários hipertextuais, à medida que nosso aparelho sensorial
vai se acostumando cada vez mais com as mídias digitais, sua alta
capacidade de armazenamento e recuperação de informações, com
a aceleração do tempo e as mudanças constantes, as interfaces
gráficas e hipertextos.
Na próxima seção, aplicamos os procedimentos acima especificados em uma breve análise do romance O talentoso Ripley, da
escritora norte-americana Patricia Highsmith.
3. Três vezes Ripley
Apesar da aversão que Hollywood lhe inspirava na época,
Patricia Highsmith considerava-se afortunada por Alfred Hitchcock ter se interessado em adaptar o romance Pacto sinistro, escrito
em 1951. Embora ela não tenha recebido royalties, uma vez que o
cineasta adquiriu direitos perpétuos sobre o romance, essa adaptação foi um marco fundamental para que a escritora passasse a
ser reconhecida e cultuada (CINÉMA, 1988).
Nas narrativas policiais de Highsmith, a maior parte das
ações se dá na mente dos seus principais personagens. São os
sentimentos, os reflexos, a intuição, os pensamentos mais secretos dos personagens centrais que conferem às suas narrativas a
atmosfera de suspense e tensão. Em virtude disso, o(a) leitor(a) é
incitado(a) a se identificar com as suas razões e ações, mesmo que
não necessariamente as aprove do ponto de vista ético.
Um exemplo disso é a potencial cumplicidade que se pode
estabelecer com o personagem principal da série Ripley, composta
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A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance
por cinco romances. Em Nova York, o jovem Ripley do primeiro
romance (O talentoso Ripley [The talented Mr. Ripley], publicado em
1955) recebe uma proposta do empresário Herbert Greenleaf: Ele
deve ir à Europa para tentar convencer o filho de Herbert, Dickie
Greenleaf, que vive na pequena cidade de Mongibello com sua
namorada Marge, a voltar para os Estados Unidos e reassumir suas
obrigações, dando continuidade aos negócios do pai. A oferta é
vista por Ripley como uma possível saída para sua difícil situação
financeira, uma vez que já pensava em deixar Nova York, onde
vive em um apartamento sujo e decadente. Nesta cidade, Ripley
leva uma vida difícil e sem perspectivas; não tem emprego fixo,
faz pequenos bicos e aplica alguns golpes para tentar sobreviver.
Na Europa, Ripley conquista a confiança e a amizade de
Dickie, contando-lhe os planos de Herbert Greenleaf. Ripley se
fascina por Dickie e sua forma de viver. Faz planos para continuar
desfrutando dos prazeres da vida na Europa. Porém, após algum
tempo de convívio, em um momento de rejeição, no qual Dickie
deixa claro que a brincadeira terminou, a reação de Ripley é matar
o rapaz e assumir a sua identidade. Posteriormente, assassina também Freddie Miles, o desconfiado amigo de Dickie que lhe aparece
como um obstáculo. Com seu talento para imitar assinaturas,
bem como sua inteligência para se esquivar das desconfianças,
Ripley não somente sai impune dos homicídios, como ainda forja
uma carta, supostamente escrita por Dickie, deixando-lhe uma
significativa herança, em agradecimento pela sua fiel amizade.
Em O talentoso Ripley, podemos encontrar signos que potencialmente conectam-se à ordem do sentimento, da sensação e da
incerteza. Além disso, há signos que apontam para outros objetos, como índices do mundo do qual o romance emerge. A partir
desses signos, é possível realizar uma análise que nos permita
estabelecer algum nível de generalização ou interpretação, a qual
pode funcionar como um novo signo que, por definição, não se
esgota, mas que gera novas significações ad infinitum.
3.1. Análise de signos icônicos
No primeiro caso, é possível sugerir que, na linguagem literária, que tem como matriz a linguagem escrita, é com dificuldade
que o(a) analista consegue se desprender dos aspectos racionais,
lógicos e sintagmáticos, para identificar aquilo que foge à regra,
que não obedece a uma determinada ordem ou convenção e, dessa
maneira, assume potencialmente outras possibilidades. Aquilo
que não pode ser generalizado, que estabelece uma relação icônica
com seu objeto, são especialmente as questões ligadas à forma,
ao caráter qualitativo da narrativa e, finalmente, às descrições
e metáforas (SANTAELLA, 1980, p. 151; LIMA DE SANTANA,
2009, p. 75-76).
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He needn’t ever tell
her where he was. No
more of the snidely digging letters, the sly
comparisons of him to
his father, the poddling
checks for the strange sums of six dollars
and forty-eight cents
and twelve dollars and
ninety-five, as if she had
had a bit left over from
her latest bill-paying, or
taken something back to
a store and had tossed
the money to him, like
a crumb […] Aunt Dottie
insisted that his upbringing had cost her more
than his father had left
in insurance, and maybe
it had, but did she have
to keep rubbing it in
his face? (HIGHSMITH,
1999, p. 37)
2
He thought suddenly of one summer day
when he had been about
twelve, when he had
been on a cross-country
trip with Aunt Dottie
and a woman friend
of hers, and they had
got stuck in a bumper-to-bumper traffic jam
somewhere. It had been
a hot summer day, and
Aunt Dottie had sent
him out with the thermos to get some ice water at a filling station,
and suddenly the traffic
had started movi ng.
He remembers running
between huge, inching
cars, always about to
touch the door of Aunt
Dottie’s car and never
being quite able to, because she had kept inching along as fast as
she could go, not willing
to wait for a minute, and
yelling, ‘Come on, come
on, slowpoke!’ (p. 37-38).
3
He remembered the
vows he had made, even
at the age of eight, to run
away from Aunt Dottie,
the violent scenes he
had imagined – Aunt
Dottie trying to hold
him in the house, and
he hitting her with his
fists, flinging her to the
ground and throttling
her, and finally tearing
the big brooch off her
dress and stabbing her
a million times in the
throat with it (p. 39).
1
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Uma narrativa que se imiscui e desvia a atenção do que
está sendo narrado para qualificar o personagem, por exemplo,
estabelece uma relação com o objeto da narração que não se
determina de maneira totalmente lógica, predominando nela
o nível da sensação, da possibilidade. Por exemplo, quando, no
romance, Ripley está no navio a caminho da Europa, ele escreve
uma carta para sua Tia Dottie, fato que o faz sentir-se melhor, pois
representa para ele uma forma de se separar definitivamente dela.
Ao relembrar momentos desagradáveis, nos quais Tia Dottie o
humilhava ou diminuía, a narrativa opera, ao mesmo tempo, como
um comentário que dá informações a mais sobre o personagem,
como um desvio que enseja novas possibilidades e sensações:
Ele não precisava contar para ela onde ele estava. Não haveria
mais cartas maliciosamente sarcásticas, comparações dissimuladas entre ele e seu pai, os cheques de somas estranhas
como seis dólares e quarenta e oito e doze dólares e noventa e
cinco, como se ela tivesse ficado com um restinho da última vez
que pagou uma conta ou devolvido algo a uma loja e atirado
o dinheiro para ele, como uma migalha [...] Tia Dottie insistia
que sua educação tinha custado a ela mais do que o pai dele
tinha deixado de seguro, e talvez tenha, mas ela precisava ficar
passando na cara dele? (HIGHSMITH, 1999, p. 37).1
De repente ele pensou em um dia de verão quando ele tinha
doze anos, na ocasião em que ele tinha viajado com Tia Dottie e
uma amiga dela e eles ficaram presos em algum lugar, em um
lento engarrafamento. Era um dia quente de verão e Tia Dottie
o tinha mandado sair com uma garrafa térmica para buscar
água gelada em um posto de gasolina, e repentinamente o
trânsito começou a andar. Ele se lembra de ter corrido entre
carros enormes que se deslocavam aos poucos, sempre perto
de tocar na porta do carro de Tia Dottie e nunca conseguindo,
porque ela continuava deslocando o carro o mais rapidamente
que podia, incapaz de parar por um minuto e gritando, ‘Anda,
anda, sua lesma!’ (p. 37-38)2.
Ele lembrava a promessa que fez, mesmo aos oito anos de idade,
de fugir de Tia Dottie, as cenas violentas que ele imaginava –
Tia Dottie tentando segurá-lo na casa e ele batendo nela com
os punhos, jogando-a no chão e estrangulando-a, e finalmente
arrancando um grande broche do vestido dela e cravando-o
um milhão de vezes na garganta dela (p. 39)3.
Essas narrativas espaciais (SANTAELLA, 2005, p. 326) atuam
na estrutura do romance, na sua materialidade, dando lugar a
impressões subjetivas e afastando o romance do domínio da
lógica sintagmática da linguagem escrita. O caráter qualitativo é
responsável pela quebra da linearidade dos eventos por meio do
uso de organizações paralelísticas que provocam uma multiplicidade de visões sobre um mesmo evento.
No romance em questão, diversas narrativas qualitativas,
acontecimentos hipotéticos e descrições contribuem para a
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A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance
construção sensorial da atmosfera, como, por exemplo, a seguinte
passagem, na qual o narrador revela o que se deduz ser o pensamento e o sentimento de Ripley enquanto este cogita e planeja o
assassinato de Dickie:
A água. Mas Dickie era tão bom nadador. Os penhascos.
Seria fácil empurrar Dickie de algum penhasco enquanto
eles caminhassem, mas ele imaginou Dickie se agarrando a
ele e puxando-o consigo, e ele enrijeceu na cadeira até que
seus músculos doessem e suas unhas formassem conchas
vermelhas nos seus polegares. Ele teria que tirar o outro anel
também. Mas ele não viveria em um lugar claro, onde morasse
alguém que conhecesse Dickie. Ele só tinha que parecer com
Dickie o suficiente para usar o seu passaporte (HIGHSMITH,
1999, p. 100-101).4
The water. But Dickie was such a good
swimmer. The cliffs. It
would be easy to push
Dickie off some cliff
when they took a walk,
but he imagined Dickie
grabbing at him and
pulling him off with
him, and he tensed in
his seat until his thighs
ached and his nails cut
red scallops in his thumbs. He would have to get
the other ring off, too.
But he wouldn’t live in
a place, of course, where
anybody who knew Dickie lived. He has only
to look enough like Dickie to be able to use his
passport. Well, he did.
If he – (HIGHSMITH,
1999, p. 100-101).
5
San Remo. Flowers.
A main drag along the
beach again, shops and
stores and French and
E ng l i sh a nd It a l i a n
tourists. Another hotel,
with flowers in the balconies. Where? In one
of these little streets tonight? The town would
be dark and silent by
one in the morning, if
he could keep Dickie up
that long. In the water?
It was slightly cloudy,
though not cold. Tom
racked his brain […]
( HIGH SMI T H, 1999,
p. 101).
4
A ação não se converte em fato na narrativa, mas no pensamento do personagem, revelado pelo narrador. A narrativa
assume um caráter qualitativo, aproximando o(a) leitor(a) do
personagem. Assim, o(a) leitor(a) se torna o único a saber o que
se passa na mente de Ripley e, portanto, estabelece com ele uma
relação de cumplicidade. Não pode denunciar – e talvez nem
mesmo o desejasse fazer, impedido mesmo pelo seu voyerismo –,
mas somente compreender e esperar o que a narrativa apresentará
como fato concreto. Ripley continua os seus planos:
San Remo. Flores. Uma caminhada ao longo da praia outra vez,
lojas e turistas franceses, ingleses e italianos. Um outro hotel
com flores nas varandas. Onde? Em uma dessas ruas pequenas hoje à noite? A cidade estaria escura e silenciosa uma da
manhã, se ele pudesse manter Dickie acordado tanto tempo.
Na água? Estava ligeiramente nublado, embora não frio. Tom
queimava as pestanas [...](HIGHSMITH, 1999, p. 101).5
Aqui se observa como Ripley continua o seu esforço mental
para encontrar uma solução. A focalização, tendo Ripley como
referência, torna acessível ao(à) leitor(a), de forma fragmentada,
como o personagem raciocina, como e o que ele vê, como se sente.
Em ambos os trechos, a formatação do discurso, ao imitar o processo de pensamento, extrai da linguagem convencional um certo
caráter icônico, que se apresenta tanto como incerteza quanto
potência, possibilidade de significação. Além disso, as descrições
e metáforas podem incrementar tal teor qualitativo, como se vê
no trecho seguinte, que expõe o momento em que Ripley definitivamente se dá conta de que Dickie não o quer mais por perto:
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Ele olhou fixamente nos olhos azuis de Dickie que ainda estavam franzidos, o branco das sobrancelhas decoradas pelo sol e
os olhos brilhantes e vazios, nada mais que pedaços pequenos
de geleia azul com um ponto preto dentro, sem significado,
sem nenhuma relação com ele. Devia-se ver amor através dos
olhos, o único lugar onde você poderia olhar outro ser humano
e ver o que realmente estava lá dentro, e nos olhos de Dickie
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Tom não viu nada mais do que ele veria se olhasse a face dura
e sem sangue de um espelho (HIGHSMITH, 1999, p. 91).6
A metáfora feita na descrição do olhar de Dickie como vazio,
bem como a comparação entre os olhos dele e a face dura e sem
sangue de um espelho, reforçam, ao menos potencialmente, a
sensação de perigo que ronda, de ameaça, de risco de perda da
vida. Não é amor que Ripley encontra nos olhos de Dickie, mas o
seu próprio reflexo, rígido, uma auto-imagem sem vida. As metáforas e descrições frequentemente funcionam, em conjunto com
os elementos icônicos citados e com o próprio conteúdo narrativo,
como possibilidade de significação. Isso quer dizer que o contexto
em que esses elementos aparecem faz com que eles ganhem tal
qualidade e atuem no sentido aqui atribuído.
Para além dos aspectos formais, como acabamos de sugerir,
o próprio conteúdo narrativo pode contribuir para a construção
dos sentimentos e sensações do romance. A narrativa começa
com Ripley fugindo de Herbert Greenleaf, a quem não conhecia
e que desconfiava ser um agente da polícia que descobrira seus
pequenos golpes. Antes, há a fuga de Tia Dottie, que tratava
Ripley com um misto de sadismo e indiferença (HIGHSMITH,
1999, p. 37), os esconderijos e frequentes trocas de casa (p. 11;
p. 26), as fraudes que tornam necessárias constantes dissimulações
e a própria capacidade que o personagem tem de forjar e fingir. A
recorrência de um tema – neste caso, a fuga e a clandestinidade –
atua potencialmente sobre a atmosfera da narrativa.
Após esses breves exemplos de elementos icônicos, tratemos
agora dos índices ou elementos indexicais, aqueles que travam
contato com o mundo e o contexto.
3.2. Análise de signos indexicais
He stared at Dickie’s
blue eyes that were still
frowning., the sun-bleached eyebrows white
and the eyes themselves
shining and empty, nothing but little pieces of
blue jelly with a black
dot in them, meaningless, without relation to
him. You were supposed
to see love through the
eyes, the one place you
could look at another
human being and see
what really went on inside, and in Dickie’s eyes
Tom saw nothing more
than he would have seen
if he had looked at the
hard bloodless face of
a mirror (HIGHSMITH,
1999, p. 91).
6
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Os índices são as referências do romance ao seu contexto,
que conectam o romance com sua própria realidade. Trata-se
da realização particular da história, dos temas, textos e intertextos estabelecidos na construção da narrativa (categoria da
secundidade).
Na casa dos Greenleaf, ainda enquanto faz os acertos para
sua viagem à Europa para convencer Dickie a voltar para casa,
Ripley observa Dickie em um álbum de fotografias. Chama-lhe a
atenção o fato de Dickie ter mudado muito pouco desde os dezesseis anos, até o momento em que foi para a Europa, aos vinte e
três ou vinte e quatro. Por intermédio das imagens fotográficas,
Ripley faz inferências sobre a inteligência de Dickie, observa-o
em Paris e em uma praia, conhece Mongibello e recebe suas
primeiras impressões sobre Marge. Ripley percebe que Dickie
parece mais amadurecido nas fotos europeias, diferente do bobo
que aparentava antes (HIGHSMITH, 1999, p. 19-20). Na sequênNiterói, n. 29, p. 73-91, 2. sem. 2010
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A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance
cia, a força das imagens é demonstrada contundentemente, como
mostram os trechos abaixo:
[…] Tom permaneceu de pé, com as mãos na cintura, sua cabeça
para cima. Em um grande espelho na parede ele pôde se ver:
novamente o jovem ereto e respeitável […] (p. 20).
[…]
Mr. Greenleaf entrou na sala. Sua figura parecia pulsar e crescer mais e mais. Tom piscou os olhos, sentindo um repentino
terror em relação a ele, um impulso para atacar antes de ser
atacado […].
[…]
É como um filme, pensou Tom. Em um minuto, a voz de Mr.
Greenleaf ou de alguma outra pessoa diria, ‘OK, corta’!, e ele
relaxaria de novo […] (p. 21)7.
[…] Tom remained
standing, his hands at
his sides, his head high.
In a large mirror on
the wall he could see
himself: the upright,
self-respecting young
man again […] (p. 20).
[…]
Mr. Greenleaf came
into the room. His figure
seemed to pulsate and
grow larger and larger.
Tom blinked his eyes,
feeling a sudden terror
of him, an impulse to
attack before he was
attacked […].
[…]
It’s like a movie, Tom
thought. In a minute,
Mr. Greenleaf or somebody else’s voice would
say, ‘Okay, cut!’ and he
would relax again […]
(p. 21).
7
Percebe-se que o romance de Highsmith carrega em si referências imagéticas e meta-narrativas ao cinema e à fotografia. O
primeiro dos trechos acima remete à imagem especular e ao fato
de que o personagem se orienta pelas imagens que vê, além de se
preocupar com a imagem que os outros podem fazer dele.
No segundo trecho, Ripley associa a forma como Mr. Greenleaf se aproxima dele a uma espécie de ameaça. A referência à
imagem de Mr. Greenleaf se aproximando, como um movimento
de câmera ameaçador e aterrorizante, é usada para revelar algo
da subjetividade de Ripley, que age como um animal acuado,
medroso, assustado com os seus próprios fantasmas. Afinal, não
haveria motivo plausível para Mr. Greenleaf fazer-lhe algum mal,
mas a própria consciência de Ripley, que sabia estar simulando
situações que agradassem ao pai de Dickie, parece fazê-lo imaginar algo irreal a partir do que estava vendo.
No terceiro trecho citado acima, há uma referência direta ao
cinema, quando Ripley aparentemente constata a insanidade de
sua própria imaginação. Além disso, toda a sequência é marcada
pela encenação de Ripley diante do casal. Ripley finge interesse
pelos assuntos, luta para não decepcionar os pais de Dickie, tenta
se mostrar disponível, quando, na verdade, toda a situação beira
o insuportável, chegando quase a fugir ao seu controle. O cinema
aqui pode ser visto como uma simulação ou farsa por meio de
imagens. No trecho seguinte pode-se notar mais uma vez a
ocorrência de referências imagética e intertextual, constantes ao
longo dos romances:
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[Tom] sentiu que poderia desmaiar se ficasse mais um minuto naquele foyer mal iluminado, mas Mr. Greenleaf ria mais
uma vez, perguntando-lhe se ele havia lido um certo livro de
Henry James.
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‘Lamento dizer que não, senhor, não esse’, disse Tom.
‘Bem, deixe pra lá’, disse Mr. Greenleaf, sorrindo.
Então apertaram as mãos, um longo e sufocante aperto de Mr.
Greenleaf, e acabou. Mas a expressão dolorida e assustada permanecia no seu rosto enquanto descia no elevador, percebeu
Tom […] (p. 24).8
[Tom] felt t h at he
could faint if he stayed
one minute longer in
the dimly lighted foyer,
but Mr. Greenleaf was
chuckling again, asking
him if he had read certain book by Henry James.
‘
I’m sor r y to say I
haven’t, sir, not that one’,
Tom said.
‘Well, no matter.’ Mr.
Greenleaf smiled.
Then they shook hands, a long suffocating
squeeze from Mr. Greenleaf, and it was over.
But the pained, frightened expression was still
on his face as he rode
down the elevator, Tom
saw […] (p. 24).
9
O título original do
romance de Highsmith
e do filme de Hitchcock
é Strangers on a train
(Estranhos num trem).
8
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O livro de Henry James, como é revelado depois, quando
Ripley tenta comprá-lo no navio, é Os embaixadores, escrito em
1903. Nesse romance, é contada a história de Lewis Steher, que é
incumbido da missão de trazer da Europa o filho da viúva Mrs.
Newsome, chamado Chad. Steher tem um interesse direto em
ser bem sucedido na sua tarefa, pois crê que as chances de casarse com a viúva aumentarão se conseguir lhe dar essa felicidade.
Entretanto, Steher percebe que Chad está envolvido amorosamente em Paris, e que não seria correto convencê-lo a voltar para
a América. Outros “embaixadores” são enviados, mas Steher se
decide por agir da forma que considera moralmente correta, que
é a desistência da tarefa inicial.
Obviamente, o parentesco de O talentoso Ripley com o
romance de Henry James é direto, pelo próprio motivo da história, e declarado, ao se fazer a citação. Assim, logo nas passagens
iniciais do romance de Highsmith, pode-se antever a enxurrada
de imagens e referências que constituirão a narrativa. O texto
faz supor a inevitabilidade das citações e referências imagéticas,
que, se não o saturam, fazem parte de sua composição de modo
praticamente indissociável.
Também o romance Pacto sinistro, da própria Highsmith, e,
por extensão, sua adaptação para o cinema por Hitchcock, aparecem como referências narrativas intertextuais. Nessa história, Guy
Haines conhece, em uma viagem de trem9, o perturbado Charles
Anthony Bruno. A partir da conversa que se desenvolve entre os
dois, Bruno fica sabendo que a esposa de Guy está criando problemas para lhe conceder o divórcio do qual precisa para poder
casar-se outra vez. Por outro lado, Bruno demonstra nutrir um
forte ódio pelo pai. Propõe, então, que os dois “troquem” crimes,
cada um matando a pessoa que representa um problema para o
outro, de forma que nenhum tipo de suspeita recaia sobre eles.
A fala de Bruno, extraída do romance, pode esclarecer uma das
relações que há entre as histórias:
[...] Mas eu não estou a fim de trabalhar. Não preciso, percebe?
Não sou escritor, nem pintor, nem músico. Por que uma pessoa
deve ser obrigada a trabalhar, se não precisa? Não passa de
uma maneira de ter uma úlcera. Meu pai tem úlcera. Pois é.
Ele ainda tem esperanças de que um dia eu participe do seu
negócio de ferragens. Mas eu lhe digo que negócios, qualquer
espécie de negócios, não passam de falcatruas legalizadas,
do mesmo jeito que casamento é a fornicação legalizada. Não
estou certo? (HIGHSMITH, 2006, p. 16).
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A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance
O diálogo entre os romances O talentoso Ripley e Pacto
sinistro parece claro, não somente em virtude da visão amarga
presente em ambos, mas pelo argumento narrativo em si. Herbert Greenleaf pede a Ripley para buscar o seu filho na Europa,
julgando que ele deveria voltar para assumir suas responsabilidades (HIGHSMITH, 1999, p. 5). Na Itália, Dickie Greenleaf dizia
estudar pintura, mas na opinião de seu pai, ele não tinha nenhum
talento (p. 6), fato comprovado por Ripley, ao ver as pinturas de
Dickie (p. 60). O fato é que tanto Dickie quanto Bruno recusam-se
a realizar o desejo do pai.
A utilização deliberada de referências intertextuais e imagéticas não é particularidade de um período ou movimento literário,
sendo, em geral, um traço do próprio romance. Do mesmo modo,
a proliferação de imagens torna inexorável a sua assimilação pela
literatura, seja como uma questão cognitiva e relacionada à experiência de vida do autor, seja como um empréstimo por meio do
qual a literatura luta por sua sobrevivência (CRUZ, 2003, p. 215).
Ainda assim, as diversas referências intertextuais e imagéticas do
romance em questão apontam para questões como intermediação
do mundo por meio das imagens, a farsa, a fraude e a imitação,
conforme poderemos concluir em seguida, ao tratarmos do
terceiro nível de análise, no qual sugerimos um significado ou
interpretação para o romance, com base nas análises anteriores.
3.3. Análise de signos simbólicos
Se em Crime e castigo (1866), de Dostoievski – um dos autores
preferidos de Patricia Highsmith –, o personagem central tem o
desejo de melhorar o mundo matando uma agiota e, sem planejar, acaba matando também a irmã da agiota, que tinha visto
o corpo, no romance de Highsmith há também o planejamento
de um homicídio e a ocorrência de um outro não planejado.
Uma diferença fundamental, porém, é que Ripley não pensa em
melhorar o mundo, a não ser o seu próprio. Além disso, Ripley
não é descoberto e passa a desfrutar de uma vida relativamente
tranquila, como podemos ver nos romances posteriores da série.
Dificilmente se pode encontrar um traço de julgamento em relação às atitudes do personagem. Suas reflexões, transmitidas pelo
narrador, demonstram o seu sentimento em relação aos outros ou
às situações, mas não veiculam nenhum juízo moral a respeito de
suas próprias atitudes e emoções. Por outro lado, nas suas relações
e no seu modo de agir e pensar, Ripley parece se tratar de uma
pessoa comum, que não se diferencia especialmente das outras.
O romance de Patricia Highsmith, ao passo que esclarece
os acontecimentos do ponto de vista do personagem Thomas
Ripley, o faz de forma pouco linear e com uma série de lacunas e
interrogações. Não se sabe se alguém fez algo, mas sim que Ripley
suspeita que isso aconteceu. As idas e vindas do seu pensamento,
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as narrativas espaciais, as constantes descrições de lugares, ações,
gestos e expressões, sob a perspectiva de Ripley, dão um tom
subjetivo que, ao mesmo tempo, potencialmente provoca no(a)
leitor(a) uma cumplicidade com os sentimentos e atitudes de
Ripley. Este não está certo o tempo todo, não é um herói infalível
nem digno de admiração, mas é, parodiando Nietzsche, “humano,
demasiado humano”.
Considerando-se que todo discurso tem uma vontade de
verdade (BARTHES, 1996-7, p. 43), a tese de Highsmith parece
estar ligada à existência de uma ilegalidade difusa e de uma farsa
subjacentes à própria sociedade. Se para Bruno, de Pacto sinistro,
qualquer negócio é uma falcatrua legalizada (HIGHSMITH, 2006,
p. 16), para Ripley, uma vida prazerosa seria aquela em que ele
tivesse dinheiro o suficiente para colecionar peças de arte, ler
bons livros (HIGHSMITH, 1999, p. 250), conhecer a arte de diversos países e ajudar jovens artistas talentosos que precisassem de
dinheiro (p. 284). O Ripley de Highsmith sai impune e ainda fica
com a herança de Dickie.
Posteriormente, no romance Ripley subterrâneo, saberemos
que o personagem passa a investir também na falsificação de
pinturas. Será um sujeito comum, amante das artes, casado e
vivendo em uma pequena cidade perto de Paris. A ideia da farsa
mencionada acima pode ser sustentada se analisamos as temáticas sugeridas ou abordadas, como a falsificação de pinturas, por
meio da qual o pintor Derwatt, mesmo depois de morto, acaba
se tornando cada vez mais renomado. Aquele que nota a farsa,
o personagem Murchison, é eliminado por Ripley. Além disso,
Tufts, que tinha sido discípulo do verdadeiro Derwatt e passa a ser
cúmplice da fraude, sofre em sua consciência por sentir que está
traindo o seu mentor e acaba cometendo suicídio. Ripley, sempre
se reinventando, chega a se disfarçar de Derwatt, para, por meio
de uma conferência de imprensa, provar que o pintor falsificado
continua vivo. É insistente o tema do apagamento das diferenças,
após o que tudo volta à sua (aparência de) normalidade.
Voltando ao romance O talentoso Ripley, os dias de Ripley,
desde que ele conheceu Dickie, tinham sido dias da mais plena
felicidade, a ponto de ele chegar a pensar que, mesmo se fosse
descoberto e condenado à cadeira elétrica, tais dias teriam valido
a pena:
[…] supondo que o pegassem pelas impressões digitais, ou pelo
testamento, e sentenciassem-no à cadeira elétrica – será que
a morte na cadeira elétrica poderia se igualar no sofrimento,
ou a própria morte aos vinte e cinco anos seria tão trágica, a
ponto de ele não poder dizer que os meses desde novembro
até agora não tinham valido a pena? Certamente que não
(HIGHSMITH, 1999, p. 284).10
O Ripley de Highsmith é um herói amoral, fiel somente aos
seus sentimentos e gostos. Sonha conhecer outros países, especial86
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A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance
[...] supposing they
got him on the fingerprints, and on the will,
and they gave him the
electric chair – could
that death in the electric
chair equal in pain, or
could death itself, at
twenty-five, be so tragic,
that he could not say
that the months from
November until now
had not been worth it?
Certainly not (HIGHSMITH, 1999, p. 284).
10
mente depois que a estada na Europa lhe despertou um grande
interesse pelas artes e, em especial, a pintura (p. 284). Colecionaria
pinturas e incentivaria novos artistas, se tivesse dinheiro. De fato,
acaba recebendo o dinheiro de Dickie, pois o testamento forjado
é aceito por Herbert Greenleaf. Ainda que tema, por alguns instantes, que encontrará policiais em todos os portos pelos quais
passar, ele está livre (p. 290). A sua preocupação em ser descoberto
algum dia parece ser simplesmente um traço ou uma fantasia
de qualquer falsário – quando falsificava cartas de cobrança de
impostos, em Nova York, também temia ser preso. No entanto, a
vida que pretende levar é de contemplação e prazer, usufruindo
das artes e provavelmente daquilo que o mundo tiver de melhor
para lhe oferecer.
Nessa história, é colocada em xeque a diferenciação essencial
entre certo e errado, bem e mal, verdadeiro e falso, o que acontece
em virtude da própria estrutura da narrativa. De certa forma, o(a)
leitor(a) tem conhecimento do que se passa na mente do anti-herói
amoral Thomas Ripley e fica sujeito à sua simpatia. Pode-se dizer
que o(a) leitor(a) corre o risco de cair em uma armadilha, uma
vez que não é necessário concordar com os atos de Ripley para
perceber o quanto os seus pensamentos e emoções são comuns e
tipicamente humanos.
Por um lado, o personagem Ripley é aquele sujeito que
consegue se livrar, mesmo com alguns arranhões, das diversas
situações em que precisa manter o status que atingiu e do qual não
deseja abdicar. Suas motivações podem parecer levianas do ponto
de vista de uma ética humanista, mas não daquilo que faz sentido
para o personagem de Highsmith: os bens materiais, as obras de
arte, a livre circulação entre as cidades, as atividades simples do
dia a dia. Tanto no que concerne à cultura e à arte, como ao ser
humano e suas motivações, o personagem e os romances parecem
advogar que o sistema que constrói as diferenças é o mesmo que
as apaga, quando isso é conveniente.
Por outro lado, a construção do romance em questão tem
como algumas de suas principais características o diálogo com
outras obras e outras linguagens, como livros, filmes, o próprio
cinema e as imagens, mas também a pintura e a música. Como
meta-narrativa, o romance já carrega em si um confronto de discursos e ideologias, uma pluralidade de vozes (CRUZ, 1997, p. 11).
Entre as características da condição pós-moderna está a
ênfase na imagem, a qual tem sido multiplicada pela fotografia e
pelo cinema (e ainda mais intensamente na atualidade, por meio
das mídias digitais). A literatura tem incorporado, em sua própria
estrutura, bem como nas escolhas temáticas, essa característica tão
marcante e sem sinais de arrefecimento na cultura atual (CRUZ,
1997, p. 6-9). Se seguirmos esse raciocínio, poderemos supor que
o personagem Tom Ripley pode ser considerado como criação
de uma lógica em que a força da imagem sobre os sentidos já se
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Gragoatá
Sergio Ricardo Lima de Santana
faz presente. A reprodução de imagens, da forma como se dá em
nossa cultura contemporânea, frequentemente designada como
pós-moderna, denota e implica uma saturação de cópias do
mundo atual. Diminui o contato direto do sujeito com os objetos,
sejam eles materiais ou abstratos, e o conhecimento ocorre sob a
intermediação das imagens, como em alguns exemplos citados
anteriormente – por exemplo, quando Ripley começa a conhecer
Dickie pelas fotografias.
4. Comentários finais
Esta breve análise do romance, na qual aplicamos a proposta metodológica esboçada, deve ser vista, em primeiro lugar,
como um exemplo possível, entre muitos outros, e que pode ser
desenvolvido e tomar outras direções. Para a análise da construção de sentimentos e das possibilidades de significação, na qual
reconhecemos a categoria da primeiridade, diversos outros fatores
poderiam ser tomados em consideração, como a estrutura das
orações e dos períodos, a escolha lexical etc.. Similarmente, a identificação de elementos relacionados à categoria da secundidade
(como outros intertextos, dêiticos e fatos), assim como a discussão
sobre a interpretação provisória, poderiam seguir caminhos os
mais variados. Entretanto, uma vez que nosso objetivo é delinear
uma proposta metodológica no âmbito restrito de um artigo, os
resultados encontrados parecem suficientes para prosseguirmos
com a discussão.
Sendo um romance particular a tradução de uma ideia
para o código literário do gênero ‘romance’, sua análise semiótica
idealmente deve permitir tanto a identificação da ideia traduzida,
quanto dos processos semióticos utilizados para veiculá-la. Adicionalmente, tal análise pode proporcionar uma maior compreensão
do próprio gênero narrativo em questão, ao menos da maneira
como ele era concebido no momento de sua produção.
De fato, pudemos identificar instâncias de signos icônicos
e indexicais utilizados na composição do romance, bem como
um interpretante plausível, obtido a partir das análises iniciais.
Podemos afirmar que elementos marcantes do romance em questão, como as narrativas espaciais, as descrições e metáforas, bem
como a recorrência de temas, situam-se no campo do icônico, da
primeiridade. Com isso, podemos supor que esses elementos ou
são características do romance, ou do romance da época (meados
do século XX), e testar essa hipótese em outros romance. Por outro
lado, é possível que encontremos, na análise de outras obras,
signos icônicos diferentes destes observados aqui.
Em relação aos signos indexicais, hipóteses semelhantes
podem ser levantadas. Por exemplo, a intertextualidade que destacamos no romance, apesar de ser uma característica presente
em toda a literatura, provavelmente é utilizada, em determinadas
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A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance
obras, de forma deliberada, para, por exemplo, sustentar a ideia
defendida pelo romance. Pode-se supor que a exacerbação do
uso da intertextualidade faça parte da poética contemporânea.
As referências imagéticas do romance em questão, ao passo que
concorrem para sustentar ainda mais o tema da farsa, da cópia e
da fraude, refletem os signos que estão presentes no contexto de
surgimento do romance, no qual os objetos são mediados por suas
representações. É possível se investigar como as mídias digitais e
a cibercultura têm reconfigurado a literatura, da mesma maneira
que a fotografia e o cinema têm feito desde o advento destes sistemas de signos.
No que concerne ao interpretante, a exemplo da análise aqui
realizada, acaba se constituindo em um meta-signo ou tradução
na forma de um outro texto, desta vez acadêmico. Assim, a análise
apresentada no item 2 anterior é uma tradução do romance para
um artigo acadêmico. Este mesmo texto, sendo signo, é uma tríade,
formada pelo representamen (o próprio texto), o seu objeto (o
romance O talentoso Ripley) e o interpretante (aquilo que a referida
análise apresentada gera na mente de quem a lê).
O signo aqui gerado oferece uma visão parcial, que pode
continuar sendo infinitamente desenvolvida e colocada em contato
com outras visões. O objetivo deste processo é fazer o interpretante
voltar-se para objeto, o que é a função mesma do signo. A percepção aqui exposta de O talentoso Ripley, como sendo a denúncia de
uma farsa disseminada na sociedade, onde as cópias se multiplicam e as imagens substituem os objetos – assim como o dinheiro
suspende a moral –, é, portanto, um interpretante que tentamos
fazer voltar-se para o objeto, mas que, ao mesmo tempo, o fabrica.
Em um mundo cada vez mais mediado, o objeto, se algum dia
existiu, parece estar para sempre perdido.
De qualquer sorte, uma das vantagens da metodologia apresentada é a orientação do processo de análise do texto literário de
forma que tanto suas características internas quanto as relações
estabelecidas pelo texto com o contexto exterior sejam igualmente
consideradas. Além disso, é requisito lógico da proposta que o(a)
analista se insira na própria análise, por meio das relações que ele
mesmo estabelece entre o texto investigado e outros textos, teorias
e conhecimentos, sem que a análise se reduza a impressões subjetivas e opiniões pouco embasadas, nem tampouco caia na ilusão da
objetividade pura. Antes, a abordagem que apresentamos permite
um exercício interdisciplinar virtualmente ilimitado. Uma outra
vantagem está na percepção de que todas as coisas funcionam
como signos, não havendo hierarquia entre os seus diferentes
tipos e formas de apresentação. Por exemplo, um romance pode,
em algum caso, ser a tradução de uma teoria ou de um tratado
filosófico, e a identificação deste fato depende das ferramentas
das quais dispõe o(a) leitor(a) ou analista.
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Gragoatá
Sergio Ricardo Lima de Santana
Abstract
This paper proposes a methodological approach of the
novel based on Charles Sanders Peirce’s semiotics,
by using the universal categories of the firstness,
secondness and thirdness for analysis of literary
texts. A brief analysis of the novel The Talented Mr.
Ripley, by Patricia Highsmith, is made, in order to
demonstrate the applicability and relevance of the
proposed methodology. It was concluded that, given
the contemporaneous complexity in terms of the multiplication of signs, the approach can be advantageous
for requiring the analysis of the aspects of the novel,
without neglecting the participation of the analyst’s
own subjectivity.
Keywords: Novel; semiotics; methodology
Referências
BARTHES, Roland. Aula: Aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França. Tradução e pósfácio de Leila
Perrone-Moysés. São Paulo: Cultrix, 1996-7.
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CRUZ, Décio Torres. Post-modern meta-narratives: literature in the
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entre a literatura e as adaptações cinematográficas. 2009. 254 f.
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PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1999.
SANTAELLA, Lucia. Por uma classificação da linguagem escrita.
In: Produção de linguagem e ideologia. São Paulo: Cortez, 1980. p.
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______. A assinatura das coisas: Peirce e a literatura. Rio de Janeiro:
Imago, 1992.
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A obra literária na era da explosão de signos: uma proposta semiótica de análise do romance
______. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as
coisas. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.
______. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora visual verbal:
aplicações na hipermídia. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, Fapesb,
2005.
WALTHER-BENSE, Elisabeth. A teoria geral dos signos. São Paulo:
Perspectiva, 2000.
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A crítica-escritura de Blanchot,
Butor e Barthes
Davi Andrade Pimentel
“a escrita é uma realidade ambígua”
(BARTHES, 2004, p. 15)
Resumo
Este artigo analisa a abordagem metodológica,
denominada de crítica-escritura, apresentada pela
pesquisadora Leyla Perrone-Moisés em seu livro
Texto, crítica, escritura. Neste livro, Perrone-Moisés estuda textos dos escritores Maurice
Blanchot, Michel Butor e Roland Barthes, demonstrando o novo percurso da crítica literária,
datado do final do século XIX, que se baseia numa
postura de aproximação com o objeto literário, não
mais o afastando, não mais permanecendo à sua
sombra, mas imergindo deliberadamente em sua
arquitetura discursiva, confundindo-se, muitas
vezes, com o próprio objeto.
Palavras-chave: Crítica-Escritura, Literatura,
Blanchot, Butor e Barthes
Gragoatá
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Gragoatá
De acordo com
Blanchot, a busca da
obra literária em tentar
entender-se, em tentar procurar respostas
para as suas perguntas,
nunca deixará de ser
uma esperança, uma
esperança que se afirma
no/pelo desejo de nunca
ter aquilo que se espera:
“a esperança proclama a
vinda esperada daquilo
que não existe ainda
senão como esperança.”
(BLANCHOT, 2001, p.
84). Caso a esperança
trouxesse as respostas
às perguntas desejadas,
a obra literária deixaria
de existir, pois o grande
alicerce que estimula a
sua sobrevivência atemporal e, consequentemente, a ininterrupta
produção de sentidos
desapareceria. Estamos
falando da ambig uidade: “Na literatura, a
ambiguidade é como
entregue aos seus excessos pelas facilidades que
ela encontra, e esgotada
pela extensão dos absurdos que pode cometer.”
(BLANCHOT, 1997, p.
327-8).
2
PERRONE-MOISÉS,
2005, p. XII. A partir
daqui, as referências ao
livro Texto, crítica, escritura serão indicadas
apenas com o número
da página entre parênteses.
1
94
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Davi Andrade Pimentel
Aquele que escreve está disposto a se perder deliberadamente, diz-nos Blanchot. Barthes comenta que a liberdade é permitida ao crítico quando ele se entrega ao corpo erótico da linguagem. Butor revela que somente se pode fazer crítica inventando.
Nessas três concepções de escrita, presenciamos algo perturbador
e apaixonado: o novo movimento da crítica literária, que deixa o
seu posto inferior, subalterno, de simples auxílio/explicação de
obras literárias, para tornar-se texto de escrita, texto produtivo, e
não mais texto representativo de uma narrativa ficcional. Nesse
novo percurso, fora das hierarquias, o texto crítico alcança uma
beleza semelhante à poeticidade das obras que fazem parte do
seu jogo textual. Assim, a escrita crítica, como salienta Leyla
Perrone-Moisés, no livro Texto, crítica, escritura, passa a ser escritura: movimento simbiótico, movimento ambíguo, movimento
produtivo, movimento avassalador, movimento literário, como
só soem ser o movimento da escrita poética.
O surgimento dessa nova crítica, segundo Perrone-Moisés,
na obra acima referida, é datada do final do século XIX, quando
a obra literária deixa de ser representação da Natureza para
voltar-se para si, para os conflitos de sua constituição, para os
questionamentos de sua elaboração, dialogando consigo mesma
e perdendo, aos poucos, o diálogo representativo com o mundo:
“Desde então, a obra literária tem-se tornado, cada vez mais, uma
reflexão sobre a literatura, uma linguagem que contém sua própria
metalinguagem” (PERRONE-MOISÉS, 2005, p. XI-II). Desse modo,
não há mais lugar para a crítica institucionalizada, uma vez que
a nova obra literária rompe com os paradigmas estratificados,
não precisando, por sua vez, de um texto que tente explicá-la ou
desvendá-la, visto que esse trabalho, metalinguisticamente, já se
efetivava no próprio discurso literário1: “A crítica institucionalizada entrou em crise: as novas obras a repeliam, tornavam-na
supérflua.”2
A crítica, baseada na “função explicativa, função informadora, função didática” (p. XII), torna-se material obsoleto, não
mais necessário às obras e aos leitores. A decadência da crítica
institucionalizada deve-se, também, à queda do Ser/Sujeito/Autor/Deus em todas as ciências humanas a partir do início século
XX. O Sujeito é posto em questão, não havendo mais espaço para
autores-deuses ou autores à luz do Criador, pois as hierarquias
não mais existem: o eu somente existe a partir do outro ou, como
salienta Barthes, a obra somente começa a existir através da leitura.
O que se percebe, nesse entremeio, é uma crescente partilha de
poderes e de saberes, não há mais o tirano que impõe o seu saber
ou a sua Verdade, não há mais elementos a serem copiados. Agora,
a obra literária não é vista à sombra de seu Autor, de elementos
extraliterários ou como reflexo da realidade. A obra literária liberta-se, uma vez que o seu carcereiro está morto: “Sabemos agora
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A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes
que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir
um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas”
(BARTHES, 2004 A, p. 62). Em outras palavras, diz-nos Deleuze:
“Escrever não é certamente impor uma forma de expressão a
uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe,
ou do inacabamento” (DELEUZE, 1997, p. 11). Na mesma linha de
pensamento, Blanchot comenta:
O escritor não pode permanecer junto da obra: só pode
escrevê-la, pode, quando ela está escrita, somente discernir
nela o acercamento do abrupto Noli me legere que o distancia
de si mesmo, que o afasta ou que o obriga a regressar àquela
situação de “afastamento” em que se encontrou inicialmente,
a fim de se converter no entendimento do que lhe cumpria
escrever. (BLANCHOT, 1987, p. 14, grifos do autor)
Com a morte do Autor, a obra pode ser vista e lida livremente. Não há mais a reverência à obra literária, o “respeito” ao
autor, não há mais a prática da cópia edificante, efetuada pela
crítica anterior, que não ousava ir contra os preceitos da obra
lida. Não mais existindo autor a ser reverenciado e não mais existindo obra a ser dada como representante da Natureza e, por isso
mesmo, obra sagrada, a crítica reinventa-se, como salienta PerroneMoisés: “Assistimos, então ao aparecimento de um novo tipo de
discurso literário, aflorando no lugar anteriormente ocupado pelo
discurso crítico: um discurso crítico-inventivo” (p. XII). Do mesmo
modo que surge uma nova literatura, há o surgimento de uma
nova crítica, baseada no texto-escritura, que deseja desgarrar-se
do laço de dependência com as obras analisadas. Ou seja, assim
como a obra mata o seu autor, a crítica-inventiva deseja acabar
com a submissão ao texto analisado, já que eles participam de
um mesmo espaço, o espaço literário, com suas perdas e suas
ambiguidades. A nova crítica e a nova literatura perdem o ranço
do opressor e do oprimido para instaurarem-se como textos de
escritura: textos produtivos por excelência, no que se refere à
interpretação e à pluralidade de significações.
A nova crítica não buscará mais verdades ou parâmetros
a serem seguidos, pois desejará a pluralidade das formas e das
significações do texto comentado e do seu próprio texto: “Não se
trata mais, para o crítico, de simplesmente escrever bem e de assumir por vezes um estilo poético. Trata-se de aceder, na sua prática
de linguagem, à liberdade total que é a de todo escritor.” (p. XII).
Nesse momento, duas observações são necessárias: primeiro, na
crítica-escritura, o texto crítico não perderá o seu caráter avaliativo
e nem explicativo; todavia, esses dois critérios serão subvertidos
em uma não-busca pela verdade, ambos optando por apresentar
a ambiguidade do texto poético. Em relação a essa opção crítica,
fala Perrone-Moisés: “O crítico não se porá diante dela [obra] como
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Davi Andrade Pimentel
um explicador de ambiguidades mas como um desenvolvedor de
ambiguidades, isto é, como um escritor.” (p. 78-9).
No texto-escritura, não haverá escalas de valores, embora
a questão do valor de uma obra já exista na escolha do crítico em
tê-la junto ao seu texto. Ao escrever sobre uma narrativa, o crítico está nos oferecendo o seu olhar sobre o objeto analisado, por
mais que a linguagem crítica esteja isenta de objetividade e por
mais que o crítico se perca nesse comentário, silenciando-se ao
falar e ausentando-se ao se apresentar, como é o caso de Maurice
Blanchot, visto que a obra literária não apresenta verdades indubitáveis, mas possibilidades: “Esses textos refletem o mal-estar
de uma leitura que busca conservar o enigma e a solução, o malentendido e a expressão desse mal-entendido, a possibilidade de
ler a impossibilidade de interpretar essa leitura.” (BLANCHOT,
1997, p. 13).
Segundo, no surgimento da crítica-escritura, datado do
fim do século XIX, em que a linguagem crítica se aproxima da
linguagem poética, alguns podem contestar, afirmando que
sempre existiu a crítica poética (os críticos-artistas), bem como
sempre existiu o poeta crítico (os artistas-críticos). Em relação a
essa contestação, Perrone-Moisés comenta:
Os críticos-artistas – um Sainte-Beuve, um Thibaudet – eram
bons estilistas sem ser verdadeiramente escritores; seu objetivo primordial era explicar, classificar, avaliar, mesmo se,
além disso, seus textos eram semeados de imagens, de “belezas” literárias. Por sua vez, os artistas-críticos – um Hugo,
um Baudelaire – continuavam sendo antes de tudo poetas, e
neles o objetivo crítico inicial se esfuma, quando não se perde
totalmente. (p. 92)
O Canto das Sereias
é uma interpretação literária de Blanchot para
a passagem de Ulisses
pelas Sereias. De acordo
com o crítico, o escritor
tem de agir diferente
de Ulisses, não tapando
os ouvidos, mas entregando-se por completo
às belas moças. É uma
forma meta fórica de
expressar a imersão e
o perigo daqueles que
adentram o espaço da
escrita literária.
3
96
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Antes da crítica-escritura, houve textos parecidos; contudo,
os muros de separação ainda prevaleciam no momento da análise,
não se podia misturar a crítica (análise) com a literatura (criatividade/produtividade). É com a escritura que ocorre o apartheid
textual, onde se condensam esses dois tipos de textos, num ritmo
melódico e poético, em que a crítica se deixa levar pelo Canto das
Sereias3 e a literatura se deixa ser olhada pela crítica-escritura,
igualmente, Eurídice a Orfeu, ambos soltando-se dos mastros,
ambos perdendo-se no inferno: “Ele [Orfeu] perde Eurídice e
perde-se a si mesmo, mas esse desejo e Eurídice perdida e Orfeu
disperso são necessários ao canto, tal como é necessária à obra
a prova da ociosidade eterna.” (BLANCHOT, 1987, p. 173). Com
o muro derruído, a liberdade da escritura se evidencia de várias
formas, uma delas está na intertextualidade. De acordo com
Perrone-Moisés, ao citar Butor, tudo num texto é intertextualidade, e mesmo as citações, que parecem ter um ar inocente e de
comprometimento com o texto original, escondem uma espécie
de paródia:
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A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes
“A citação mais literal já é, em certa medida, uma paródia. O
simples levantamento a transforma, a escolha na qual eu a insiro, seu recorte (dois críticos podem citar a mesma passagem,
fixando seus limites de modo bem diverso), as supressões que
opero em seu interior, e que podem substituir a gramática
original por uma outra, e, naturalmente, o modo como eu a
encaro, como ela é tomada em meu comentário.” (BUTOR apud
PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 69-70)
Tanto o texto literário quanto o texto crítico são intertextuais, ou seja, comentam, rememoram, fazem lembrar, parodiam,
parafraseiam outros textos. E todo ato intertextual é um ato de
absorção, de deglutição, de aprimoramento, de deslocamento e
de transformação textual, tornando-se, por vezes, um processo
complexo quando não conseguimos destacar o que é próprio ao
texto lido e o que não o é, embora saibamos que as partes do texto
original, imersos em outro texto, deixam de pertencer àquele que
lhes deu origem. No entanto, há uma considerável diferença entre
a intertextualidade crítica e a poética. A intertextualidade na crítica tradicional deve ser comprovada, uma vez que se está a falar
de outro texto em termos científicos; e toda e qualquer omissão
da comprovação pode gerar ônus ao crítico: “a intertextualidade
crítica é declarada” (p. 70, grifos da autora). A comprovação não
descarta a submissão do texto crítico ao poético. Em contrapartida,
devido à liberdade de criação, “a intertextualidade poética pode
ser tácita (e na maior parte das vezes o é)” (p. 70).
A comprovação intertextual instaura, novamente, o muro
entre a crítica tradicional e a literatura. A crítica institucional está
amarrada aos grilhões da obra analisada, não lhe é permita a liberdade da escrita, a invenção poética. Contudo, no texto-escritura, a
comprovação é optativa, o que demarca a produtividade do texto
da nova crítica, pois há, nessa escrita, a possibilidade de interação
total com o texto comentado, o que a aproxima da escrita literária:
“Só a crítica-escritura pode ser um discurso verdadeiramente
intertextual. Nela, não se trata de recobrir explicitando, mas de recobrir ambiguizando (isso é a disseminação, isso é a significância).”
(p. 78, grifos da autora). Em textos de Blanchot, por exemplo, muitas vezes não conseguimos identificar a que obra ou a que autor o
crítico faz referência em seus textos: ou por somente colocar entre
aspas a citação sem o número da página ou por colocar o nome
do autor sem a obra referida ou por colocar pura e simplesmente
uma citação, o leitor que se esmere em identificar o texto citado.
Isso comprova o poder de inovação/invenção da crítica-escritura,
que procura absorver o texto comentado num nível tão literário
que não é possível fazer a distinção entre os dois, o que provoca
a pluralidade do novo texto crítico, como também a possibilidade
de múltiplas interpretações desse texto. Exemplificaremos com
este fragmento d’O espaço literário:
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Escrever apresenta-se como uma situação extrema que supõe
uma reviravolta radical, à qual Mallarmé fez breve alusão
quando disse: “Ao sondar o verso a esse ponto, encontrei,
lamentavelmente, dois abismos que me desesperaram. Um
deles é o Nada...” (a ausência de Deus, o outro é a sua própria
morte). (BLANCHOT, 1987, p. 31)
No trecho acima, Blanchot não comprova de qual texto mallarmeano essa citação pertence, ratificando a liberdade de criação
da escritura, que não se submete a revelar a sua constituição, e por
isso não se deixa subjugar, abrigando-se em seu véu subtendido
e enigmático.
Desde o início deste artigo, pontuamos a palavra escritura.
Mas, o que seria, realmente, a escritura? Perrone-Moisés tenta
nos explicar:
Antes de empreender qualquer definição da escritura, devemos munir-nos de certas precauções: trata-se de um conceito
(abstrato) operatório que não pode nem pretende recobrir
exatamente nenhuma obra ou trecho de obra concretos. Menos (ou mais?) do que um conceito, trata-se de um conjunto
de traços que permitem distinguir, em determinados textos,
um aspecto propriamente indefinível como uma totalidade.
(p. 29, grifos da autora)
As tentativas de definição do termo escritura, dadas por
Perrone-Moisés, em Texto, crítica, escritura, seguem as definições
levantadas por Roland Barthes em sua extensa obra, como esta,
por exemplo: “Na escritura múltipla, com efeito, tudo está para
ser deslindado, mas nada para ser decifrado; [...] a escritura propõe
sentido sem parar, mas é sempre para evaporá-lo: ela procede a
uma isenção sistemática do sentido.” (BARTHES, 2004 A, p. 63,
grifos do autor). Leitora assídua do teórico, a pesquisadora tece
várias definições do termo escritura, que, igualmente a Barthes,
tem como matéria-prima de sua constituição a mobilidade e o
deslocamento, sempre agrupando certos conceitos para depois
abandoná-los ou reagrupá-los. Num primeiro Barthes, autor d’O
grau zero da escrita, a escritura tem um compromisso com a sociedade, pois é do meio social que a escrita surge e é para o social que
ela se direciona. Não há escrita sem História. E quando a escrita
tentar demonstrar a ausência da História, é nesse momento que
ela se afirma enquanto “História profunda” (BARTHES, 2004, p.
4). E todo ato de escrita sustenta uma função:
Língua e estilo são forças cegas; a escrita é um ato de solidariedade histórica. Língua e estilo são objetos; a escrita é uma
função: é a relação entre a criação e a sociedade, é a linguagem
literária transformada em sua destinação social, é a forma
captada em sua intenção humana e ligada assim às grandes
crises da História. (BARTHES, 2004, p. 13)
N’O grau zero, Barthes salienta que a escrita literária é “uma
realidade formal independente da língua e do estilo” (BARTHES,
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A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes
2004, p. 7). Ela seria uma terceira dimensão da forma, que teria
traços da língua (traços gerais de uma língua comum a todos os
habitantes de um determinado espaço social) e traços de estilo
(características próprias do autor, aquele dom que nasce com o
sujeito criador). Como salientamos no parágrafo anterior, a escrita
teria que ter uma função no meio social e ter um direcionamento.
Nessas definições, que não deixam de ser um pouco contraditórias
entre si, como é característica de Barthes, o escritor nos diz que o
estilo “tem sempre algo de bruto: ele é uma forma sem destino, é o
produto de um surto, não de uma intenção, é como uma dimensão
vertical e solitária do pensamento. [...] ele é a ‘coisa’ do escritor,
seu esplendor e sua prisão, é a sua solidão” (BARTHES, 2004, p.
10-1). Por não ter um vínculo com o real ou por ser particular
demais, o estilo não é dado como participante da sociedade e,
por consequência, está fora da arte: “Por sua origem biológica, o
estilo se situa fora da arte, isto é, fora do pacto que liga o escritor
à sociedade.” (BARTHES, 2004, p. 12).
A noção de escrita ligada a uma função social e vinculada
à História, logo, ao seu Autor, será abandonada por Barthes em
seus demais escritos. Em O rumor da língua, Barthes nos diz: “A
escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge
o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve.” (BARTHES, 2004 A,
p. 57). Nesse momento barthesiano, a noção de escritura perde a
funcionalidade com o meio social, perdendo também o vínculo
com o autor: o autor está morto, dirá Barthes. E as características
de definição do estilo, elaboradas n’O grau zero, deixarão de ser
características fora da arte para inteirarem-se como características elementares da escritura. Antes, o sugerir, o indecifrável e o
indefinível pertenciam ao estilo do autor, agora, em O prazer do
texto, essas características do gozo liberto, sem amarras, pertencerão à escritura: “O prazer do texto é esse momento em que meu
corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as
mesmas ideias que eu.” (BARTHES, 1999, p. 26). A linguagem da
escritura passa a exercer no autor e no leitor um objeto de fetiche,
de gozo, de suspensão das ideias, instalando-se na liberdade do
inconsciente, onde tudo é desvendado e produzido à luz do nãodito. No que se refere ao inconsciente barthesiano, Perrone-Moisés
comenta: “A valorização progressiva do inconsciente nos textos
de Barthes leva-o assim a uma sutil reformulação dos problemas
da escritura.” (p. 35).
O texto-escritura não tem um pacto com a verdade, já que
a obra literária, seu “objeto de estudo”, nada diz: “a obra – a obra
de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. [...]
Quem quer fazê-la exprimir algo mais, nada encontra, descobre
que ela nada exprime.” (BLANCHOT, 1987, p. 12). Grande parte
da literatura do início do século XX não tem um objetivo único,
não tem uma mensagem a ser dada ao final de sua narrativa, ela
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apenas se apresenta; e, apresentando-se, deixa-se flanar nas interpretações que suscita o seu roldão ambíguo discursivo: “Escrever
é praticar uma linguagem indireta, cuja ambiguidade não é de
fim mas de fato.” (p. 33). O texto-escritura não é uma forma/instrumento de comunicação, ele não diz o mundo, diz apenas de si
mesmo, uma vez que ele elabora um espaço narrativo de regras
próprias, em que o seu referente é o próprio texto-escritura. A
característica principal da escritura é a produção, é a disseminação
de vários textos a partir da leitura de outros textos, é a concomitância textual, é a quebra de hierarquias, é o desenvolvimento
poético. Aquele que escreve está perdido, pois se deixou perder nos
amavios eróticos da linguagem poética. E é próprio ao crítico que
exerce a escritura o deixar-se levar, o deixar-se escrever sem fim,
sem propósito, escrever sem funcionalidade, escrever por escrever.
Sobre essa questão, diz-nos Perrone-Moisés: “O crítico-escritor é
um ser de aparição e de desaparecimento, de prazer e de gozo,
de consistência e de perda e, como tal, um exemplo significativo
do escritor em crise – o escritor de hoje.” (p. 60).
A pesquisadora cita três críticos-escritores em seu livro
Texto, crítica, escritura: Maurice Blanchot, Michel Butor e Roland
Barthes. De acordo com a autora, “Blanchot fala a obra literária de
dentro da escritura, na vizinhança perigosa do ‘centro da esfera’
(origem, silêncio e morte).” (p. 96). A concepção de literatura, para
Blanchot, é bastante singular. Ao falar o que seria literatura, o
crítico acerca-se, como todo e qualquer pensador, de um corpus
particular, onde ele apresentará as bases do que para ele seria
literatura: Kafka, Beckett, Artaud, Bataille, Sade, Borges, Breton,
Gide, Mallarmé, Valéry, Virginia Woolf, dentre outros. Em relação
aos autores escolhidos por Blanchot, Perrone-Moisés comenta:
“Os grandes, para Blanchot, são os que assumem a louca empresa
de autodestruição que é a escritura” (p. 103). Na perspectiva de
Blanchot, a literatura é um mundo próprio, com regras próprias,
instituído pela ambiguidade, sua força produtiva e sua própria
negação. Esse mundo poético produtivo é constituído de uma
linguagem literária distante da linguagem utilitária com a qual
nos comunicamos no dia-a-dia, uma vez que a palavra poética
nasce e se relaciona com o espaço literário que a originou. Na perspectiva blanchotiana, a literatura nunca faz uma relação imediata
com os referentes do mundo prático, ou seja, a literatura não é
representação, não serve para, ela simplesmente é, não tendo uma
função prática no mundo organizacional, ela apenas apresenta-se:
“Sob essa perspectiva, reencontramos a poesia como um potente
universo de palavras cujas relações, a composição, os poderes,
afirmam-se, pelo som, pela figura, pela mobilidade rítmica, num
espaço unificado e soberanamente autônomo.” (BLANCHOT,
1987, p. 35).
Não pensemos que por não representar e por não servir para
um objetivo imediato, a literatura é um mero espaço inocente.
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A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes
Blanchot comenta que somente se pode chegar ao espaço literário
através da perda: “A obra exige do escritor que ele perca toda a
‘natureza’, todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com
os outros e consigo mesmo pela decisão que o faz ‘eu’, converta-se no lugar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal.”
(BLANCHOT, 1987, p. 50). Aquele que decide escrever responde
a um demônio interior (um chamado, uma força, que o impele a
escrever), despojando-se do eu para se tornar ele, para se tornar
um ser múltilplo, perdendo-se nos ambientes, no tempo e nos personagens literários. O escritor se divide, se multiplica, despoja-se
de si mesmo, de seus conceitos mundanos, para poder adentrar no
espaço das impossibilidades literárias: seja a impossibilidade de
estabilização discursiva, seja a impossibilidade da morte4, seja a
impossibilidade de respostas para os questionamentos que surgem
ao longo do espaço narrativo. E não apenas o escritor se perde,
mas também aquele que escreve sobre as narrativas literárias, pois
somente se pode falar da ausência perdendo-se nessa ausência.
A escritura, para Blanchot, é perda, é afundamento, é desrazão:
Escrever é a loucura própria de Sade. Dessa loucura, provocada pela prisão ou que pelo menos veio a tornar-se o que é
– uma força subterrânea e sempre clandestina – a partir dela,
a liberdade não o livra, antes a duplica de uma outra loucura
que o fará crer que ela pode afirmar-se à luz do dia, como a
reserva ou o futuro das possibilidades comuns. (BLANCHOT,
2007, p. 209)
A morte entendida
como fim, seja como fim
das lamentações e da errância dos personagens,
da fragmentação da narrativa e da instabilidade
do discurso ou morte
como verdade absoluta
e como poder.
4
Os dois escritores (o romancista e o crítico) devem se deixar
perder, eles devem sucumbir ao chamado das Sereias para um
lugar ainda não formulado, de origem desconhecida, porém, de
ancoragem certa, o espaço literário. Eles devem olhar para trás,
perderem-se em Eurídice-obra-literatura. E não devem de modo
algum ter um diálogo socrático da ordem, da objetividade e da
razão, eles devem possuir um discurso da ausência, do vazio, da
negação: “Mas o próprio do escritor é, em cada obra, reservar o
indeciso na decisão, preservar o ilimitado junto ao limite, e nada
dizer que não deixe intacto todo o espaço da fala ou a possibilidade
de dizer tudo.” (BLANCHOT, 2005, p. 149).
Os termos ausência, vazio e negação devem ser interpretados
à luz da escrita blanchotiana. Esses termos não possuem uma
significação pejorativa acerca do texto literário, mas o contrário,
visto que são elementos essenciais do espaço poético para Blanchot. A literatura é vazia, pois não tem uma verdade a ser usada
com estandarte, e sim uma pluralidade que excede a completude,
beirando o vazio. A literatura é o tudo que se transforma no nada
(vazio). Por dizer tudo ao mesmo tempo, por apresentar várias
noções de escritura concomitantemente, a linguagem poética nada
diz, mantendo “apenas um murmúrio que nada acrescentará ao
grande tumulto das cidades que suportamos ouvir.” (BLANCHOT,
2005, p. 320). A literatura é negação ao abandonar qualquer refe-
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rência explícita com o mundo e ao não desejar empunhar uma
verdade última e absoluta. Ao negar o mundo, a literatura nega
a si mesma como um constructo do homem, haja vista que quem
a elabora não é um sujeito social, mas um sujeito literário. Desse
modo, o autor, como constituição social, é descartado/expulso da
obra: “Ninguém que tenha escrito a obra pode viver, permanecer
junto dela.” (BLANCHOT, 1987, p. 14). Como o texto literário não
sustenta uma intenção, a voz do autor é mais uma voz no meio de
tantas outras vozes que surgem no espaço literário. O autor não
tem domínio sobre o que escreve, diz-nos Blanchot. Se houve uma
intenção no início da escrita, essa intenção passou a ser fragmento
de escrita, elemento literário e, por isso, elemento ambíguo.
De acordo com Blanchot, a literatura se basta. A literatura é
ela mesma. A literatura não serve para. A literatura é perdição. A
literatura é ausência. Numa interpretação importante da crítica de
Blanchot, os comentários de Perrone-Moisés podem ser resumidos
com esta seguinte frase: “O discurso de Blanchot é intransitivo,
não diz nada a não ser ele mesmo.” (p. 107). Ao terminar a sua fala
sobre Blanchot, Perrone-Moisés a passa a outro escritor, Butor: “A
face crítica da obra de Butor é simétrica e complementar à sua face
inventiva, de modo que é realmente impossível separá-las.” (p.
126). A autora exemplifica o seu comentário sobre Butor a partir
da leitura do texto butoriano História extraordinária, que não pode
ser catalogado nos parâmetros textuais que nós conhecemos e não
encontra na própria bibliografia do crítico lugar de classificação.
Essa obra está em suspensão. Não é uma narrativa, mas também
não é uma análise crítica propriamente dita, é apenas um texto de
escritura. Nesse livro, Butor apanha alguns fatos da vida pessoal
e da obra literária de Baudelaire, bem como recria fatos fictícios.
Com esses fatos, o crítico faz desses pedaços baudelairianos argamassa de sua arquitetura textual. Baudelaire é reinventado por
Butor. O poeta torna-se um constructo de uma nova figura, de uma
nova persona textual: “Figura baudelairiana ou butoriana? Uma
coisa e outra. Trata-se de uma figura baudelairiana na medida em
que os dados, o material é baudelairiano; mas a coerência que aí
encontramos só existe nesta escolha e neste arranjo particular que
é Histoire extraordinaire.” (p. 124).
Em História extraordinária, há um intenso jogo de escrita,
várias formas de linguagem circundam essa narrativa: o começo
do texto se inicia com um sonho de Baudelaire (sonho que realmente ocorreu e que foi escrito e enviado em carta para um
amigo do poeta) e, logo depois, à escrita desse sonho (criação do
inconsciente e desde já elemento puramente literário) são costuradas citações da obra de Baudelaire, que são retiradas à revelia
do poeta, pois quem as escolhe e as utiliza livremente é Butor. A
essa arquitetura textual é acrescentado Edgar Allan Poe, que dá
título a esse texto butoriano (Baudelaire, em vida, traduziu Contos
Extraordinários, de Poe). Ou seja, temos vários tipos de textos que
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A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes
nos oferecem uma pluralidade muito grande de interpretações.
Esses textos comungam traços próprios, porém, eles somente
podem ser vistos no todo, nunca separadamente. No exercício de
bricolagem, Butor agrupa deliciosamente esses textos num jogo
de linguagem que somente a escritura poderia dar acesso:
Butor não cita Baudelaire como os críticos citam os autores.
Os trechos de Baudelaire, mesmo se ainda entre aspas, não
constituem um domínio à parte dentro do texto. Butor se
apropria dos fragmentos de Baudelaire, dispõe-nos de outra
forma, envolve-os com seu próprio texto, armando uma nova
obra fortemente estruturada e doravante indivisível em suas
partes. (p. 118)
Nesse processo inventivo, a escritura que surge faz desaparecer o poeta, como também o crítico, pois o amálgama é tamanho
que não podemos fazer distinções, tudo faz parte de um texto de
criação. Claro que não podemos descartar que há uma análise,
mesmo que criativa, da obra de Baudelaire; todavia, História
extraordinária nos apresenta um texto que rompe com as barreiras e hierarquias impostas tanto pela crítica institucionalizada
quanto pelo meio social, que não admitia a incursão criativa no
discurso crítico. Deve-se a essa liberdade inventiva butoriana, a
despreocupação da intertextualidade que se opera em sua escrita
de não ser e de não querer ser comprovada, haja vista que tudo
faz parte de um único texto; não há dividendos, nem cobranças,
há, somente, arte de escritura:
O grande crítico é aquele que é capaz de utilizar a obra anterior, não em seu próprio proveito, mas de tal modo que a obra
anterior possa entrar na sua. Citação, crítica, colaboração, são
as diferentes faces de uma mesma empresa. (BUTOR apud
PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 131)
Segundo Butor, não há crítica literária sem invenção/criação.
Após a análise da crítica butoriana, é chamado o pensamento
barthesiano para concluir o estudo sobre a crítica-escritura. No
que se refere a Roland Barthes, terreno esmeradamente estudado
por Perrone-Moisés, a autora nos diz: “Inconstante, charlatão,
esnobe, reacionário, brilhante mas pouco profundo, hábil mas (ou
portanto) perigoso – esses qualificativos o seguem, de perto ou
de longe, com aquela impressionante constância que caracteriza,
através dos séculos, a repulsa a toda vanguarda artística.” (p.
133). A partir das leituras das obras de Barthes, surgem muitas
inquietações que se transformam, aos poucos, em questões: algum
leitor, mesmo o mais dedicado, pode dizer que conhece Roland
Barthes? Alguém pode, precisamente, classificar a obra barthesiana, impondo a ela rótulos ou impondo a Barthes fases, quando
estamos nos referindo a um ser da ordem do deslocamento, da
sugestão por excelência? O que dizer de sua crítica? Profunda,
rasa, comezinha? E se a sua crítica for tudo ao mesmo tempo,
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misturando o sincrônico e o diacrônico, subvertendo o anacrônico? Isso não seria uma expressão libertária da crítica-escritura
de Barthes? Nessa impalpabilidade, que é a escrita barthesiana, a
única certeza da qual dispomos é a importância de Barthes para o
estudo das artes, principalmente, para o estudo da obra literária,
pois, seguindo os pressupostos da pluralidade poética, a escrita
barthesiana torna-se também plural/diversa, haja vista que a obra
de arte comporta múltiplas interpretações, não sustentando, assim,
uma Verdade. Barthes não se contradiz. Barthes experimenta as
possibilidades que a ele são ofertadas pelo espaço literário.
No estudo de Perrone-Moisés, a obra barthesiana em análise
é S/Z, em que Barthes comenta a narrativa Sarrasine, de Balzac.
Essa leitura poderia se estender pelos demais livros de Barthes,
uma vez que a autora estuda/comenta as peculiaridades da crítica-escritura barthesiana, que são inerentes aos demais estudos do
crítico, como, por exemplo: o trabalho intertextual, no qual Barthes
inicia um trabalho de fusão entre o objeto analisado e a sua escrita,
transformando-os em escritura (linguagem plural/produtiva); a
avaliação, que se inicia desde a escolha da obra até a sua análise
subjetiva dentro do corpo da escritura, e que somente pode ser
avaliada/estudada em termos de escritura ou dentro do espaço
da escritura, jamais analisada por elementos extra-escritura; a bricolagem (prática das relações), que faz de pedaços de outros textos
um quebra-cabeça textual que encontra na escrita barthesiana a
sua coerência; a disseminação, que se refere à produção de sentidos
dos textos barthesianos, devido à prática da escritura que envolve
esses textos (escritura = produção, logo, leitura = disseminação
= produção de outros textos); o erotismo: somente sabe trabalhar
a linguagem quem a entende como um corpo pulsante, desejoso
de carícias e de complementações; e a suspensão, a obra nunca
está totalmente decifrada, pois não é decifrável completamente,
permanecendo ausente e silenciosa.
No decorrer deste artigo, o conceito de escritura, partilhado/
disseminado por Leyla Perrone-Moisés, em seu livro Texto, crítica,
escritura, provém dos textos e das indagações de Roland Barthes
sobre a escrita literária e a escrita crítica. A escritura, nos diversos livros do crítico, ganha/perde definições. Todavia, no que se
reporta ao percurso barthesiano, poderíamos dizer que o conceito
atual de escritura refere-se a todo texto que se deseja livre das
amarras sociais/institucionais; que se faz poético através de sua
pluralidade; que se faz produtivo por ser multifacetado e passível
de interpretações; que se faz erótico por trabalhar com a linguagem em todos os seus aspectos sensuais, bem como a utiliza, e
é utilizado, como forma de sedução: “Nada mais deprimente do
que imaginar o Texto como um objeto intelectual (de reflexão, de
análise, de comparação, de reflexo etc.). O Texto é um objeto de
prazer.” (BARTHES, 2005, p. XIV).
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A crítica-escritura de Blanchot, Butor e Barthes
Como tentativa elucidativa e de conclusão, poderemos definir, não definindo completamente, que a escritura, segundo os críticos referidos neste artigo, é: perdição (Blanchot), invenção (Butor)
e prazer/deslocamento (Barthes). Não poderíamos terminar este
artigo sem lembrarmos que: “Escrever é entrar na afirmação da
solidão onde o fascínio ameaça. É correr o risco da ausência de
tempo, onde reina o eterno recomeço.” (BLANCHOT, 1987, p. 24).
Abstract
This paper analyses the methodological approach,
entitled critical-writing, presented by the researcher Leyla Perrone-Moisés in her book Text,
critique, writing. In this book, Perrone-Moisés
studies the texts of the writers Maurice Blanchot,
Michel Butor and Roland Barthes, showing the
new course of literary criticism, dating from the
late nineteenth century, which is based on an
attitude of approximation to the literary object,
dismissing it no longer, staying in its shadow no
longer either, but immersing deliberately in its
discursive architecture, often confusing this with
the object itself.
Keywords: Critical-Writing, Literature, Blanchot, Butor e Barthes
Referências
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______. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004 A.
______. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. S/Z. Paris: Éditions du Seuil, 1970.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
______. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
__________________. A conversa infinita 1 : A palavra plural. São
Paulo: Escuta, 2001.
______. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. A conversa infinita 2: A experiência-limite. São Paulo: Escuta,
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DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.
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Niterói, n. 29, p. 93-105, 2. sem. 2010
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A abordagem metodológica
da análise multidimensional
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Resumo
O presente artigo apresenta a perspectiva metodológica da Análise Multiaspectual Multidimensional (Multi-feature, Multi-dimensional Analysis)
ou simplesmente Análise Multidimensional
(AMD, BIBER, 1985 et seq.), que é uma das
metodologias em uso na Linguística de Corpus
(SINCLAIR, 1991; MCENERY e WILSON,
1996; BIBER, CONRAD e REPPEN, 1998;
BERBER SARDINHA, 2004; 2005; TEUBERT
e KRISHNAMURTHY, 2007; BAKER, 2009;
BERBER SARDINHA, 2009; LÜDELING e
KYTÖ, 2009). A AMD viabiliza a análise em
larga escala de variação de corpora eletrônicos e
permite chegar a uma classificação de registros ou
gêneros em termos de dimensões, que são padrões
de coocorrência de elementos lexicogramaticais
que subjazem aos textos de uma língua (BIBER,
2009). Como tal, as dimensões capturam o espaço
de variação dos textos, sintetizam-no e mostram a
proximidade ou distância entre os textos investigados. A AMD apoia-se na análise estatística de
co-ocorrência de grupos de variáveis linguísticas,
anotadas de modo automático ou semiautomático.
Palavras-chave: Linguística de Corpus, Análise
Multidimensional, Variação
Gragoatá
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Introdução
1
‘Register is used here
as a cover term for any
language variety defined by its situational
characteristics, including the speaker’s purpose, the relationship
between speaker and
hearer, and the production circumstances.’
2
‘a corpus-based methodological approach
to, (i) identify the salient
linguistic co-occurrence
patterns in a language,
i n empirical/quant itative terms, and (ii)
compare registers in the
linguistic space defined
by those co-occurrence
patterns.’
108
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A Linguística de Corpus é a área de investigação linguística
responsável pela coleta e análise de corpora eletrônicos, com o
auxílio de ferramentas computacionais (SINCLAIR, 1991; MCENERY e WILSON, 1996; BIBER, CONRAD e REPPEN, 1998; BERBER
SARDINHA, 2004; 2005; TEUBERT e KRISHNAMURTHY, 2007;
BAKER, 2009; BERBER SARDINHA, 2009; LÜDELING e KYTÖ,
2009). Corpora, por sua vez, são grandes quantidades de texto,
coletadas criteriosamente e mantidas em formato de computador,
com o propósito de servirem à pesquisa linguística (BERBER
SARDINHA, 2004). São formados, por definição, por textos de
um ou mais gêneros (ou outra variante discursiva).
O presente artigo enfoca uma das metodologias da Linguística de Corpus, mais especificamente, a Análise Multiaspectual
Multidimensional (Multi-feature, Multi-dimensional Analysis) ou
simplesmente Análise Multidimensional (AMD, BIBER, 1985 et
seq.). A AMD viabiliza a análise de variação em corpora e permite
chegar a um classificação detalhada e abrangente de registros ou
gêneros e das relações que estabelecem entre si. Tal classificação
é operacionalizada por meio da anotação automática e semi-automática de variáveis relevantes para a caracterização dos gêneros,
com o subsequente agrupamento e interpretação dessas variáveis
em fatores, que são conjuntos de textos que possuem padrões de
coocorrência de variáveis definidos estatisticamente.
A AMD opera com o conceito de registro, que significa
‘uma variedade linguística definida por aspectos situacionais,
incluindo o propósito do falante, a relação entre falante e ouvinte,
e o contexto de produção’1 (BIBER, 2009 , p. 823), podendo indicar desde gêneros específicos, como artigos acadêmicos, quanto
variedades mais gerais, como ‘documentos oficiais’ ou ‘discurso
acadêmico’. Dimensões de variação são padrões de coocorrência
de elementos lexicogramaticais que subjazem aos registros de uma
língua (BIBER, 2009). Como tal, capturam o espaço de variação dos
textos, sintetizam-no e mostram a proximidade ou distância entre
os registros investigados. Um exemplo de dimensão de variação
(da língua inglesa) é ‘Interação versus Informatividade’ (BIBER,
1988), que indica que todos os textos dessa língua possuem essas
características essenciais, que são a interação, de um lado, e a
informatividade, de outro: textos interativos tendem a ser menos
informativos e vice-versa.
A AMD se caracteriza como uma ‘abordagem metodológica
baseada em corpus destinada a (i) identificar os padrões de coocorrência salientes da linguagem (...) e (ii) comparar registros no
espaço linguístico definido por tais padrões.’2 (BIBER, DAVIES,
JONES et al., 2006 , p. 5). Como tal, busca revelar as dimensões de
variação entre os registros de uma língua. Registro é o termo usado
na AMD para se referir a ‘uma variedade linguística definida por
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A abordagem metodológica da análise multidimensional
aspectos situacionais, incluindo o propósito do falante, a relação
entre falante e ouvinte, e o contexto de produção’ (BIBER, 2009 ,
p. 823). O termo possui considerável amplitude (BIBER, 1994 , p.
32), podendo especificar tanto gêneros específicos, como cartas
de instituições de caridade (ANTHONY e GLADKOV, 2007) e
artigos acadêmicos de bioquímica (KANOKSILAPATHAN, 2007),
quanto variedades mais gerais, como ‘conversação’ (BIBER, 2004),
‘documentos oficiais’ e ‘humor’ (BIBER, 1988).
Todos sabemos que há incontáveis textos em circulação em
uma língua como o português do Brasil. Por sua vez, diversas
teorias sustentam que os textos não variam livremente, mas na
verdade relacionam-se estreitamente ao contexto cultural, situacional, de produção e de recepção, além de compartilharem recursos
lexicogramaticais, e propõem conceitos como gênero e registro
para explicar essa variação (BRONCKART, 1985; BAKHTIN,
1986; SWALES, 1990; BHATIA, 1993; EGGINS, 1994; FERGUSON,
1994; EGGINS e MARTIN, 1997; BRONCKART, 1999; MAINGUENEAU, 2002; BHATIA, 2004; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004;
MACHADO, 2005; MAINGUENEAU, 2005; MEURER, BONINI e
MOTTA-ROTH, 2005; MARTIN e ROSE, 2008). Muitas pesquisas
em áreas como Análise de Discurso, Análise de Gênero, Linguística Sistêmico-Funcional, Interacionismo Sócio-Discursivo,
Estilística e Linguística de Corpus, entre outras, enfocam um ou
mais gêneros, tipos textuais, registros e estilos (BIBER e CONRAD,
2009) e mostram tanto as semelhanças e diferenças entre eles
quanto sua constituição e organização interna.
Tais teorias e estudos empíricos são fundamentais para
entendermos questões importantes da constituição da língua e
do discurso. A AMD é uma metodologia que propicia um olhar
em larga escala sobre essas questões, na medida em que enfoca
muitos textos de vários registros ou gêneros ao mesmo tempo.
Assim, dado que há uma profusão de registros e textos na
sociedade, surgem questões chave da variação em larga escala,
tais como: (1) quais são os parâmetros de variação subjacentes aos
muitos registros conhecidos, ou, em outras palavras, como podemos chegar a uma síntese dos elementos centrais dessa variação?
(2) qual a variação entre textos de uma mesma variedade textual
(por exemplo, entre uma dezena de dissertações de mestrado, ou
entre dissertações de áreas distintas, como engenharia e letras)? (3)
quais aspectos lexicogramaticais (voz passiva, expansão do grupo
nominal, metáfora gramatical, etc.) distinguem registros próximos como comunicação oral e artigo científico, ou reportagem e
notícia? Tais perguntas podem ser respondidas por meio da AMD.
Pesquisas anteriores promoveram a identificação de dimensões de diversas línguas, como o inglês (BIBER, 1988; LEE, 1999; DE
MÖNNINK, BROM e OOSTDIJK, 2003; CROSSLEY e LOUWERSE,
2007), o coreano (KIM e BIBER, 1994), o somali (BIBER e HARED,
1994), o nukulaelae tuvalan (BESNIER, 1988), o gaélico (LAMB,
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2008) e o espanhol (BIBER, DAVIES, JONES et al., 2006; PARODI,
2007); contudo, a variação dimensional da língua portuguesa
ainda não foi realizada.
Poucos são os estudos de AMD já realizados no Brasil; até
onde pudemos determinar, são os seguintes: Oliveira (1997), que
investigou a variação entre composições de alunos de inglês e de
falantes nativos; Shimazumi (1998), que também enfocou a escrita
de estudantes de inglês como língua estrangeira, porém sob a
perspectiva da Linguística Sistêmico-Funcional; Silveira (1997),
que pesquisou a linguagem de negócios; Conde (2002), que comparou a escrita de alunos de uma escola bilíngue de inglês com a
de alunos advindos de institutos de idioma; Shergue (2003), que
contrastou comunicações em congresso e os artigos acadêmicos da
área médica; Kauffmann (2005), que mapeou a variação na escrita
jornalística de um jornal brasileiro; Oliveira (2007) e Oliveira et al.
(2009), que coletaram um corpus voltado à AMD; e Bértoli-Dutra
(2010), que descreveu a variação entre letras de música popular
anglo-americana.
Procedimentos metodológicos da Análise Multidimensional
Faz-se necessário explicitar como a Análise Multidimensional é levada a cabo. Para ilustrar, tomaremos como base a extração
das dimensões da língua inglesa realizada por Biber (1988).
Primeiramente, foi selecionado um corpus de textos, disponível na época, que representasse a variedade de registros
encontrada no inglês. Os corpora escolhidos foram o LOB, de textos
escritos em inglês britânico e o London-Lund, de transcrições de
eventos falados, também da variedade britânica. Foram retiradas
porções desses corpora e adicionados outros dois registros (variedades de cartas) e obteve-se um total de 481 textos, somando 960
mil palavras.
Em segundo lugar, foi feito um levantamento das principais
variáveis que, segundo a literatura existente na época, seriam
relevantes para a descrição da língua inglesa. Foram elencadas
67 variáveis, de cunho lexical e estrutural. Os 481 textos foram
etiquetados com essas variáveis por meio de um etiquetador
especificamente desenvolvido para o estudo (conhecido por Biber
Tagger). Parte da etiquetagem foi feita manualmente.
Em terceiro lugar, partiu-se para a Análise Fatorial, a qual
identificou sete fatores como sendo a melhor solução. Fez-se então
o mapeamento de quais textos estavam presentes em cada fator.
Os fatores foram inspecionados um por um e decidiu-se eliminar
o sétimo fator porque era composto de variáveis cujo peso era
maior em outros fatores.
Em quarto lugar, fez-se, então, a computação dos escores de
cada texto em cada dimensão. Os escores consistiam de somas
relativas às quantidades das variáveis existentes em cada fator.
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A abordagem metodológica da análise multidimensional
Para exemplificar o método de cálculo, tomemos o fator
2. Este fator inclui como variáveis de peso positivo as seguintes
características: verbos no tempo passado, verbos no aspecto
perfeito, pronomes pessoais de terceira pessoa, verbos ‘públicos’
(concordar/agree, reclamar/complain, negar/deny, etc.), orações
reduzidas, e negações sintéticas (formadas por ‘no’, ‘neither’ ou
‘nor’). Supondo-se que um dos textos tenha a seguinte contagem
destas características: 113 verbos no tempo passado, 124 verbos
no aspecto perfeito, 30 pronomes pessoais de terceira pessoa, 14
verbos ‘públicos’, 5 orações reduzidas, e 3 negações sintéticas, seu
escore no fator 2 seria 289, isto é, a soma de 113 + 124 + 30 + 14 + 5
+ 3. Na verdade, a computação dos escores não foi feita por meio
das contagens brutas, mas sim através de contagens padronizadas com base na média e desvio padrão, a fim de se evitar que o
tamanho diferente dos textos influísse nos escores. Estes valores
padronizados podem assumir valores negativos, pois indicam
quão acima ou abaixo da média cada valor está. Por isso, os escores
dos textos podem ser negativos também.
Desse modo, cada texto possuía um valor que indicava
sua participação em cada dimensão. Depois fez-se o cálculo dos
escores de dimensão para cada registro, por meio de uma média
aritmética. Por exemplo, se houvesse três textos de um registro
específico na dimensão 2, e eles tivessem os escores 16, 12 e 11,
somar-se-iam os três valores, o que resultaria em 39, e dividir-se-ia
este total por 3, o que daria 13. O valor 13 seria então o escore de
dimensão deste registro na dimensão 2. É possível haver escores
de dimensão negativos. Isto acontece quando há uma maioria de
escores negativos de cada texto individual.
Por fim, o conjunto de variáveis linguísticas de cada fator
foi interpretado funcionalmente e discursivamente, levando ao
estabelecimento das dimensões. Cada dimensão é, na verdade,
uma escala em que são dispostos todos os registros incluídos
na análise, de acordo com seus escores de dimensão. A escala
geralmente compreende dois polos opostos, de tal modo que as
dimensões são geralmente descritas como ‘polo A versus polo B’.
Quanto mais distantes estão os registros na escala, mais distintos
são. Na terminologia da AMD, emprega-se os termos ‘positivo’ e
‘negativo’ para se referir a esses polos, sendo que o polo A recebe
o nome de ‘positivo’ e o B de ‘negativo’. Contudo, tal denominação
não implica em juízo de valor; ambos polos são igualmente relevantes e complementares. Os termos refletem a análise fatorial, na
qual são mostradas variáveis com sinal positivo e sinal negativo.
Isso significa que, em um mesmo texto, quando uma variável
positiva ocorre, uma negativa tende a não ocorrer ou a ocorrer
em menor número. Por exemplo, as variáveis positivas de maior
peso do primeiro fator são: verbos ‘particulares’ (‘private verbs’,
e.g. doubt, forget, guess), apagamento de ‘that’ e contrações. E as
principais negativas são: substantivos, palavras longas e propoNiterói, n. 29, p. 107-125, 2. sem. 2010
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sições. Desse modo, nos textos em que ocorram verbos ‘particulares’, e apagamento de ‘that’, há uma tendência de aparecimento
também de contrações. Por outro lado, nos textos em que existem
verbos ‘particulares’, apagamento de ‘that’ e contrações, há uma
tendência de escassez ou ausência de substantivos, palavras longas
e proposições. Em alguns casos, quando a análise fatorial mostra
não haver variáveis negativas, a dimensão é formada por um polo
apenas (como a dimensão 6 de Biber 1988).
Assim, ainda em relação ao fator 1, decidiu-se que as variáveis com peso positivo tinham como parâmetro subjacente o
que se convencionou chamar de ‘produção interativa’. Já o conjunto
de características com peso negativo revelavam um parâmetro que
se chamou de ‘produção informacional’. Por isso, o rótulo adotado para a dimensão 1 foi ‘produção interativa versus produção
informacional’. Na Fig. 1 aparece a escala referente à dimensão 1.
Fig. 1: Dimensão 1 de Biber (1988 , p. 128; 2009 , p. 833): Produção interativa versus
informacional (ou Interação versus Informatividade). A parte superior da escala
indica o polo ‘interativo’ e o inferior o ‘informacional’. Os números representam o
escore de dimensão de cada registro. Os registros grafados em letras maiúsculas
são falados, enquanto os em letra minúscula são escritos.
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A abordagem metodológica da análise multidimensional
Como se percebe na figura, os registros mais fortemente
associados com a interação (na parte superior da escala), no inglês,
são as conversas, sejam elas por telefone ou face a face; já os registros mais diretamente ligados à informação (na parte inferior)
são documentos oficiais (relatórios, etc.) e a escrita acadêmica e
a jornalística.
O mesmo procedimento foi levado a cabo em relação aos
outros fatores. Os registros foram então dispostos numa escala,
de acordo com seu escore de dimensão. A nomeação dos fatores
resultou na identificação de seis dimensões, que são:
1. produção interativa versus produção informacional;3
2. preocupações narrativas versus não-narrativas;
3. referências explícitas versus referências dependente do
contexto;
4. expressão explícita de persuasão versus não-explícita;
5. informação abstrata versus não-abstrata;
6. elaboração informacional ‘on-line’.
Os registros mais típicos de cada dimensão são:
• Dimensão 1 - produção interativa versus produção
informacional: os registros que melhor representam o
modo de produção com interação são as conversas, tanto
ao telefone quanto face a face; os registros que melhor
representam a produção informacional são documentos
oficiais, reportagem jornalística e prosa acadêmica.
• Dimensão 2 - preocupações narrativas versus nãonarrativas: os registros que melhor demonstram uma
preocupação com a narração são os registros de ficção,
enquanto que os que melhor exprimem uma orientação
não narrativa são os registros de rádio e TV, passatempos
e documentos oficiais.
• Dimensão 3 - referências explícitas versus referências
dependente do contexto: os registros que apresentam
referência explícita em maior grau são documentos oficiais, cartas profissionais, resenhas jornalísticas e prosa
acadêmica. Já os registros de rádio e TV, conversas telefônicas e cara a cara e ficção romântica exprimem referência
dependente da situação.
3
O s nome s da s d imensões podem ser sintetizados, de tal forma
que a primeira dimensão poderia ser chamada de ‘Interação versus
Informatividade’.
• Dimensão 4 - expressão explícita de persuasão versus
não-explícita: os registros de caráter mais persuasivo são
as cartas profissionais, os editorias e a ficção romântica.
Por outro lado, os registros nos quais a persuasão é menos
explícita são os de rádio e TV, resenhas jornalísticas e
ficção de aventura.
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• Dimensão 5 - informação abstrata versus não-abstrata:
os registros que veiculam informação mais abstrata são
os acadêmicos, os documentos oficiais e os religiosos. Já
as conversas telefônicas, face a face e ficção romântica
apresentam informação menos abstrata.
• Dimensão 6 - elaboração informacional on-line: os
registros nos quais a elaboração da informação é mais
imediata são palestras preparadas, entrevistas e palestras
espontâneas, enquanto que os registros nos quais a informação é elaborada de antemão são os de ficção (mistério,
aventura, científica e geral.)
As dimensões mostram uma inter-relação entre registros
escritos e falados. Alguns registros escritos possuem características em comum com registros falados e vice-versa. Por exemplo, de
acordo com a dimensão 1, cartas pessoais, palestras espontâneas
e entrevistas possuem como característica comum o fato de serem
produzidas com interação entre escritor ou falante de um lado e
leitor ou ouvinte do outro.
Apesar disso, persiste uma diferenciação básica entre os
registros falados e escritos na metade das dimensões. Nas dimensões 1, 3 e 5, os registros escritos ocupam majoritariamente um dos
polos e os registros falados o outro. O registro que predomina no
polo onde se concentram os textos escritos é a escrita acadêmica.
Já os registros que se concentram no polo falado destas dimensões
são os conversacionais.
Principais estudos com base em Análise Multidimensional
Conforme colocado na introdução, dimensões de variação
são padrões de coocorrência de elementos lexicogramaticais
que subjazem aos textos de uma língua (BIBER, 2009). Como tal,
capturam o espaço de variação dos textos, sintetizam-no e mostram a proximidade ou distância entre os registros investigados.
Conforme define Berber Sardinha (2004 , p. 304-305):
‘Dimensão é o estatuto que um fator assume assim que é
interpretado do ponto de vista de sua função comunicativa.
Uma dimensão permite visualizar características em comum
partilhadas por uma porção significativa dos dados. A interpretação do fator leva em conta tanto as características linguísticas quanto as características partilhadas pelos registros que
estão representados no fator. As dimensões permitem redefinir
o quadro inicial de registros.’
A metodologia de identificação das dimensões foi introduzida por Biber (1985) e posteriormente refinada por Biber (1988),
para a língua inglesa. O termo ‘multidimensional’ deriva do fato
de a análise pressupor a existência de múltiplas dimensões no
espaço de variação intertextual.
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A abordagem metodológica da análise multidimensional
Diversos estudos já empregaram a AMD, voltados a uma
ampla gama de situações. Entre os estudos disponíveis na literatura, encontramos aqueles que se ocupam da variação geral
de uma língua inteira (BIBER, 1985; BESNIER, 1988; BIBER, 1988;
BIBER e HARED, 1994; KIM e BIBER, 1994; JANG, 1998; LEE,
1999; LAMB, 2002; BIBER, DAVIES, JONES et al., 2006; BIBER
e TRACY-VENTURA, 2007; PARODI, 2007), bem como outros
que investigam registros específicos, tais como o discurso universitário (BIBER, 2006), a linguagem da música pop (BÉRTOLI
DUTRA, 2010), composições de aprendizes de inglês (REPPEN,
1994; SHIMAZUMI, 1998; CONDE, 2002) e textos jornalísticos
(KAUFFMANN, 2005), entre outros.
Existem dois tipos básicos de pesquisa em AMD. No primeiro tipo, é realizada a identificação das dimensões, por meio
de análise fatorial, que podemos chamar de ‘completa’ (‘full MD
study’ segundo BIBER, 2009 , p. 844), muito embora os corpora
analisados não precisem representar uma língua por completo,
podendo ser específicos de um registro apenas. Neste primeiro
grupo é que se encaixa a presente proposta. No segundo tipo,
não são extraídos fatores, mas são utilizadas dimensões obtidas
em pesquisas anteriores e são mapeados os dados sobre essas
dimensões; podemos chamar essa modalidade de ‘aplicação de
dimensões’ (‘applying dimensions’, BIBER, 2009 , p. 844).
O segundo grupo, como foi dito, utiliza-se de dimensões
já identificadas (geralmente as que se referem à língua como um
todo) e serve para descrever a variação de corpora que não estavam presentes nelas. Como exemplos desse segundo tipo (todos
referentes ao inglês e tendo como base as dimensões relatadas por
Biber (1988)) temos os estudos de Biber et al. (2002), que investiga
registros do contexto universitário, como aulas, orientações e
livros didáticos; Biber (1987), que compara registros escritos de
inglês americano a semelhantes do inglês britânico; Helt (2001),
que confronta registros falados do inglês britânico a seus semelhantes do inglês americano; Conrad (1996), que contrasta artigos
de pesquisa, livros didáticos e trabalhos estudantis de duas áreas
de conhecimento (biologia e história); Biber e Finegan (1989), que
mapeiam as mudanças diacrônicas em diversos registros; Atkinson (1992; 2001), que apresenta as mudanças ao longo do tempo
no discurso acadêmico; Connor e Upton (2003), que focalizam
variação em cartas comerciais; Quaglio (2009), que verifica a semelhança entre o seriado de TV Friends e a conversação face a face;
e Rey (2001), que observa as mudanças nos padrões dos diálogos
dos personagens masculinos e femininos da série de TV Star Trek.
Estão disponíveis na literatura quatro análise multidimensionais de registros específicos do português, sendo duas completas e duas que aplicam dimensões existentes. Os dois estudos
que efetuaram uma análise com extração de fatores da língua
portuguesa são Oliveira (1997) e Kauffmann (2005). Nenhum
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Tony Sardinha
desses estudos, contudo, enfocou a variação da língua portuguesa
em geral. Oliveira enfocou composições escritas por estudantes,
enquanto Kauffmann investigou a variação de registros jornalísticos da Folha de S. Paulo. Os dois estudos que aplicaram dimensões
são Santos (2003) e Berber Sardinha (2003). Santos analisou um
manual de gestão de negócios, extraiu palavras-chave (SCOTT,
2000; BERBER SARDINHA, 2009) e as mapeou sobre as dimensões do inglês obtidas por Biber (1988). Berber Sardinha (2003)
teve como corpus de estudo uma reunião de negócios e também
levantou as palavras-chave desse corpus, encaixando-as nas
dimensões do inglês previamente extraídas por Biber (1988). Esses
dois estudos têm a limitação séria de empregarem dimensões de
uma língua (inglês) para caracterizar dados de uma outra (português), o que não é recomendável, visto que língua diferentes
geralmente possuem dimensões distintas. Caso houvesse na época
uma pesquisa que tivesse extraído as dimensões do português,
esses dois estudos poderiam se servir delas e mapear seu corpus
nessas dimensões, o que seria mais apropriado.
O arcabouço empregado para a descrição multidimensional
do inglês foi aplicado a uma série de outras línguas. Até o presente,
foram descritas multidimensionalmente por Biber e outros pesquisadores os seguintes idiomas: inglês (BIBER, 1988; LEE, 1999),
nukulaelae tuvalan (BESNIER, 1988), coreano (KIM e BIBER, 1994),
somali (BIBER e HARED, 1994), taiwanês (JANG, 1998), gaélico
(LAMB, 2008) e espanhol (BIBER, DAVIES, JONES et al., 2006;
PARODI, 2007). No que se segue, são apresentados os resultados
das análises que trataram de línguas oficiais, portanto o inglês,
nukulaelae tuvalan, coreano, somali e espanhol, concentrando-se
nas dimensões encontradas e em seus registros mais salientes.
Para a descrição dessas línguas usou-se, em cada estudo, um
corpus específico. A quantidade de variáveis, registros e textos
também variou consideravelmente. O quadro a seguir resume os
elementos centrais de cada corpus empregado.
A primeira língua a ser enfocada pela AMD foi o inglês,
conforme dito acima, por Biber (1985 et seq.), que empregou uma
mescla de corpora de textos escritos e falados de inglês britânico
e americano. As dimensões da língua inglesa reveladas nesse
estudo já foram apresentadas e discutidas acima. O inglês também
foi foco de outros dois estudos, o de Lee (1999) e o de Crossley e
Louwerse (2007). Lee replicou e testou a metodologia proposta
por Biber com outro corpus, retirado do British National Corpus,
de inglês britânico apenas. Seu estudo mostrou que é preciso ter
muito rigor na análise estatística fatorial a fim de garantir a confiabilidade dos resultados. Lee, entretanto, não chegou a interpretar
os fatores e propor dimensões. Scott e Louwerse utilizaram um
conjunto de corpora britânicos e americanos, alguns com situações
simuladas, com o TRAINS corpus, que são diálogos simulados
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A abordagem metodológica da análise multidimensional
(role playing) entre um informante que se faz o papel de passageiro
de trem e outro que se faz passar por funcionário do serviço de
informação da estação ferroviária (https://192.5.53.208/research/
speech/trains.html). Embora haja textos autênticos (os corpora
London Lund, LOB e Brown) na coletânea de corpus empregada,
a presença de textos artificiais é passível de crítica, visto que uma
das razões de ser da AMD é lidar com a variação existente em
um contexto autêntico de uso da língua, e não em dados fabricados para a pesquisa linguística. Mesmo assim, do ponto de vista
metodológico, o estudo merece destaque, pois autores inovaram
ao empregar variáveis lexicais (mais especificamente, bigramas,
que são sequências de duas palavras) como variáveis, em vez de
morfológicas, estruturais e sintáticas, que são normalmente usadas
em AMD. Os resultados foram promissores, pois sugeriram que a
ocorrência de pacotes lexicais frequentes (como os bigramas) seja
capaz de distinguir registros. Bértoli-Dutra (2010) também empregou pacotes lexicais na análise multidimensional de músicas pop
britânicas e americanas e notou que essas variáveis podem ser
úteis na caracterização dos registros. Pretendemos testar o uso de
n-gramas (bi, tri ou quadrigramas) na pesquisa a fim de aferir a
sua viabilidade para complementar as variáveis lexicogramaticais.
Entretanto, devido à presença de textos artificiais, as dimensões
encontradas pelos autores ficaram comprometidas, pois não refletem a distribuição de registros autênticos da língua inglesa, não
sendo assim comparáveis às encontradas por Biber.
Quadro 1: Dimensões de corpora usados em AMD
Língua
Variáveis
Registros
(escritos /
falados)
Textos
Textos por
registro
Total de
palavras
Inglês (1)
67
23 (17/6)
481
6 a 80
960.000
Inglês (2)
39, 58,
63, 65
66 (41/25)
430
2 a 133
2.006.093
Inglês (3)
84
22 (4/18)
Não
informado
Nukulaelae
Tuvaluan
6
7 (2/5)
222
12 a 70
152.771
Coreano
42
22 (12/10)
150
5 a 10
135.500
Somali
58
33 (23/10)
604
3 a 49
600.000
Espanhol (4)
85
19 (8/11)
4049
16 a 791
20.301.847
Espanhol (5)
65
3 (2/1)
90
4 a 74
1.466.744
Não
informado
6.287.734
(1) Biber (1988)
(2) Lee (1999). Seu estudo testou diversos números
de variáveis.
(3) Crossley e Louwerse (2007). O artigo relata dois
estudos com os mesmos dados, mas com números
de variáveis diferentes. Referimo-nos ao estudo 2,
considerado mais robusto.
(3) Biber et al. (2006; 2007)
(4) Parodi (2007)
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Tony Sardinha
Cronologicamente, a segunda língua a ser descrita por
meio da AMD foi o nukulaelae tuvalan, falado em Tuvalu, um
arquipélago localizado no Pacífico. O corpus usado para a descrição do nukulaelae tuvalan consistiu de pouco mais de 150 mil
palavras, compreendendo 222 textos de sete registros diferentes.
As três dimensões extraídas são apresentadas no quadro abaixo,
juntamente com os registros mais característicos de cada uma.
Quadro 2: Dimensões da língua nukulaelae tuvalan
(BESNIER, 1988)
Dimensão
Registros mais característicos
Polo positivo
Polo negativo
Abalizado: Sermões escritos e
cartas pessoais
1
Discurso atitudinal
versus abalizado
Atitudinal: Discursos em
contextos particulares e
comícios
2
Referência
interpessoal versus
informacional
Interpessoal: Cartas
pessoais e conversações
Informacional: Programas de
rádio e TV e sermões escritos
3
Construção textual
em grupo versus
monológica
Em grupo: Conversação,
sermões escritos
Monológica: Cartas pessoais e
programas de rádio e TV
A terceira língua cuja descrição multidimensional foi publicada é o coreano. O corpus empregado possuía cerca de 135 mil
palavras, incluindo 22 registros. As seis dimensões extraídas
aparecem no quadro a seguir.
Quadro 3: Dimensões da língua coreana (KIM e BIBER, 1994)
Dimensão
Registros mais característicos
Polo positivo
Polo negativo
Elaboração: Crítica
literária, livros didáticos
para faculdade
Implícita: Documentos
legais e oficiais e notícias
de rádio e TV
Menos explícita:
Reportagem jornalística
e documentos legais e
oficiais
Não-narrativo:
Documentos legais e
oficiais e crítica literária
1
Interação informal versus
elaboração explícita
Interação: Conversas
particulares e
dramaturgia televisiva
2
Coesão explícita versus
implícita
Explícita: Contos e
conversação
3
Expressão explícita de
posicionamento interpessoal
Mais explícita:
Dramaturgia televisiva e
conversas particulares
4
Discurso narrativo versus
não-narrativo
Narrativo: Dramaturgia
televisiva e contos
5
Relato presente (‘on-line’)
de eventos
Mais presente:
Transmissões esportivas
e discursos públicos
preparados
Menos presente:
Reportagem jornalística e
notícias de rádio e TV
6
Honorificação
Mais honorífico: Cartas
pessoais e conversas em
público
Menos honorífico:
Documentos legais e
oficiais e crítica literária
A quarta língua descrita multidimensionalmente foi o
somali. O corpus que serviu de base para a descrição possuía 33
registros, o que somava por volta de 600 mil palavras. À semelhança do coreano, foram extraídas seis dimensões, as quais aparecem no quadro a seguir.
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A abordagem metodológica da análise multidimensional
Quadro 4: Dimensões da língua somali (BIBER e HARED, 1994)
Dimensão
Polo positivo
Registros mais característicos
Polo negativo
1
Elaboração estrutural:
envolvimento versus
exposição
Envolvimento: conversações
e reuniões de família
Exposição: Introduções de livros
e editoriais
2
Elaboração lexical:
produção em tempo
real (‘on-line’) versus
planejada
Em tempo real: Transmissões
esportivas e palestras
universitárias
Planejada: Discursos políticos
publicados e editoriais
3
Apresentação
argumentativa versus
relatada de eventos
Argumentativa: reuniões de
família e reuniões formais
Relatada: Reportagens
jornalísticas e estórias populares
4
Organização discursiva
narrativa versus nãonarrativa
Narrativa: Histórias
populares e histórias seriadas
Petições e anúncios
5
Interação distanciada e
diretiva
Mais distanciada e diretiva:
Cartas pessoais e reuniões de
família
Menos distanciada e diretiva:
Reportagem jornalística
e transmissões esportivas
6
Persuasão pessoal
Mais persuasão: Petições e
cartas pessoais
Menos persuasão: reportagem
jornalística e transmissões
esportivas
A quinta língua cuja variação foi mapeada pela AMD é o
espanhol. Há duas pesquisas diferentes referentes a esse idioma,
quais sejam Biber et al. (2006; BIBER e TRACY-VENTURA, 2007)
e Parodi (2007). A de Biber et al. enfocou uma variedade ampla de
registros (19), enquanto a de Parodi trabalhou com um espectro
maior de variação (apenas três registros gerais: técnicos, orais e
literários). Os resultados são, portanto, diferentes e aparecem nos
dois quadros a seguir.
Quadro 5: Dimensões da língua espanhola
(BIBER, DAVIES, JONES et al., 2006)
Dimensão
Registros mais característicos
Polo positivo
Polo negativo
Discurso letrado: Enciclopédia e
prosa acadêmica
1
Discurso oral versus
letrado
Discurso oral: Conversas ao
telefone e conversa coloquial
face a face
2
Discurso hipotético
(‘irrealis’)
Mais hipotético: entrevistas
políticas e debates políticos
Menos hipotético: Enciclopédia
e prosa acadêmica
3
Discurso narrativo
Mais narrativo: Ficção e teatro
Menos narrativo: Enciclopédia e
prosa acadêmica
4
Interação focada no
interlocutor
Mais focada: Teatro e
conversas telefônicas de
negócios
Menos focada: telejornais e
transmissões esportivas de TV
5
Relato informacional
Mais informacional:
Enciclopédias e cartas
comerciais
Menos informacional: Teatro e
debate político
6
Estilo formal
Mais formal: Prosa acadêmica
e editoriais
Menos formal: Conversas
telefônicas de negócios e
transmissões esportivas de TV
No quadro abaixo, apresentamos as dimensões do espanhol
obtidas por Parodi (2007).
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Quadro 6: Dimensões da língua espanhola (PARODI, 2007)
Dimensão
Registros mais característicos (a)
Polo positivo
Polo negativo
1
Foco na
contextualização e
interação
Foco mais contextual e
interativo: registros orais
Foco menos contextual e
interativo: registros técnicos
2
Foco na narração
Foco mais narrativo: registros
literários
Foco menos narrativo: registros
técnicos
3
Foco no
comprometimento
(‘commitment’)
Mais comprometimento: registros
orais
Menos compromentimento:
registros técnicos
4
Foco na
modalização
Mais modalização: registros orais
Menos modalização: registros
técnicos
5
Foco na informação
Mais informação: registros
técnicos
Menos informação: registros
orais e literários (b)
(a)Como há apenas três registros no corpus, é apontado apenas um deles para cada
polo.
(b)Houve empate estatístico entre os escores dos registros nesse polo da dimensão.
Os resultados dos vários estudos resenhados aqui indicam
que, embora línguas diferentes possuam dimensões diferentes,
há certas dimensões que reaparecem, independente da língua e
do tamanho do corpus. Segundo Biber e Conrad (2009 , p. 851),
há duas oposições comuns a todas as línguas pesquisadas: a
primeira, entre textos com foco informacional versus interativo/
interpessoal, e outro entre textos com foco narrativo versus não
narrativo.
Comentários finais
A Análise Multidimensional é uma metodologia que tem
permitido enfocar a variação textual em corpora eletrônicos por
meio de procedimentos estatísticos. Seus resultados fornecem
uma visão sintética da variação de textos em corpora, em forma
de escala, auxiliando no entendimento das variantes linguísticas
estudadas, por meio de suas propriedades comunicativas, funcionais e discursivas.
Abstract
This article presents a particular methodology of
Corpus Linguistics (SINCLAIR, 1991; MCENERY e WILSON, 1996; BIBER, CONRAD e
REPPEN, 1998; BERBER SARDINHA, 2004;
2005; TEUBERT e KRISHNAMURTHY, 2007;
BAKER, 2009; BERBER SARDINHA, 2009;
LÜDELING e KYTÖ, 2009), namely Multi-feature, Multi-dimensional Analysis, or simply
Multi-dimensional Analysis (AMD, BIBER,
1985 et seq.). MDA enables the study of large
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A abordagem metodológica da análise multidimensional
scale variation in electronic corpora, leading to
a classification of registers and genres along dimensions, which are patterns of co-occurrence of
lexico-grammatical features underlying (oral and
written) texts in a particular language or variety.
As such, dimensions capture the space of variation
among texts and depict the proximity or distance
between texts.
Keywords: Corpus Linguistics, Multi-dimensional Analysis, Variation
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Contribuições para a elaboração
de testes psicolinguísticos: construção
de uma lista de sentenças
Maity Siqueira
Maitê Gil
Tamara Melo
Resumo
Neste artigo, são descritos dois estudos que visam
à verificação de variáveis psicolinguísticas de
uma lista de 135 sentenças envolvendo material
linguístico metafórico e não metafórico. A noção
de metáfora aqui adotada parte da perspectiva
da Linguística Cognitiva, mais especificamente
da Teoria da Metáfora Conceitual (LAKOFF e
JOHNSON, 1980). O Estudo I (n=200) busca
averiguar a existência de uma correlação entre
a convencionalidade de mapeamentos conceituais metafóricos primários e a familiaridade das
expressões linguísticas metafóricas derivadas
desses mapeamentos. O Estudo II (n=316) objetiva verificar o grau de familiaridade, alerta e
valência das sentenças que compõem a lista, as
quais tiveram tamanho e complexidade sintática
previamente controlados. A partir da lista de sentenças aqui elaborada, pretende-se contribuir para
a construção de testes psicolinguísticos com material metafórico e não metafórico envolvendo as
variáveis apresentadas ao longo dos estudos.
Dessa forma, os resultados dos cuidados metodológicos descritos ao longo do artigo podem ser
aplicados não só no âmbito da linguística, mas
também em estudos de interface entre a linguagem
e outras funções cognitivas.
Palavras-chave: lista de sentenças; cuidados
metodológicos; psicolinguística; metáfora.
Gragoatá
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Maity Siqueira, Maitê Gil e Tamara Melo
A elaboração de um teste psicolinguístico exige atenção
especial a fatores fundamentais inerentes a esse processo. O
controle de variáveis, por exemplo, é essencial para se obter um
maior grau de confiabilidade nos resultados finais. O presente
trabalho descreve os passos para a construção de uma lista de
sentenças envolvendo material literal e metafórico. A partir dos
estudos aqui descritos, pretende-se fornecer um material linguístico controlado que possa ser utilizado em pesquisas psicolinguísticas. A abordagem que fundamenta o trabalho é a Teoria da
Metáfora Conceitual (LAKOFF e JOHNSON, 1980), que se insere
na perspectiva da Linguística Cognitiva.
A relevância deste artigo está no fato de que a literatura
recente da área vem ressaltando a importância dos cuidados
metodológicos nas pesquisas psicolinguísticas (GIBBS, 2007;
GONZALEZ-MARQUEZ ET AL, 2007;), frente à exaustiva busca
pela confiabilidade nos resultados obtidos. Como nos mostra
Gibbs (2007), pesquisadores de outras áreas argumentam que
os estudos cognitivos sobre a linguagem não são baseados em
experimentos científicos objetivos, o que geraria análises muito
subjetivas. Outra crítica, relacionada à primeira, reside na importância dada às intuições dos linguistas cognitivos nas suas pesquisas sobre a linguagem. Gibbs ressalta que, apesar de as reflexões
dos pesquisadores serem um recurso valioso para a construção
de hipóteses, devemos ser cautelosos ao aceitar os julgamentos
linguísticos individuais. Além disso, o autor defende que os
pesquisadores devem descrever e explicar mais detalhadamente
os seus métodos, a fim de mostrar que eles levam a resultados
consistentes. Low (2003), ao falar das pesquisas sobre metáfora,
afirma que os critérios metodológicos relacionados aos modelos
metafóricos ainda não estão bem estabelecidos. Após analisar
cinco estudos na área, o autor propõe sugestões para trabalhos
futuros - todas relacionadas à transparência e ao detalhamento
de cada etapa da pesquisa.
Nesse sentido, o presente artigo pretende contribuir
para estudos experimentais que envolvam sentenças literais e
metafóricas, não só no âmbito da linguística, mas também para
aqueles interessados em construir interfaces entre características
da linguagem e outras funções cognitivas superiores, tais como:
memória, atenção e percepção.
De fato, para a Linguística Cognitiva, a linguagem desempenha um papel central nos estudos da cognição, uma vez que,
através da linguagem, é possível identificar aspectos do funcionamento de outras funções cognitivas humanas. Uma das hipóteses
basilares com as quais a Linguística Cognitiva opera é a de que a
linguagem não é uma faculdade cognitiva autônoma. A ideia de
que a linguagem reflete certas propriedades da mente humana
tem fortes implicações na agenda e nos métodos de pesquisa da
Linguística Cognitiva. O chamado Compromisso Cognitivo (Co128
Rev Gragoata n 29.indb 128
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Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças
Neste trabalho, seguindo uma formalização amplamente estabelecida na Linguística
Cog n it iva, dom í n ios
conceituais e metáforas
conceituais são apresentados em caixa alta.
1
gnitive Commmitment) representa a visão da Linguística Cognitiva
de que os princípios que regem o funcionamento da linguagem
humana devem ser psicologicamente plausíveis e devem estar
em consonância com os pressupostos e achados de outras áreas
das ciências cognitivas, tais como a Psicologia, a Neurologia e a
Inteligência Artificial. Sendo assim, um modo de testar a adequação de hipóteses dentro da perspectiva aqui considerada é levar
em conta as evidências convergentes de outras áreas da cognição
(LANGACKER, 1999).
O material aqui desenvolvido foi elaborado de forma que
possa ser utilizado em pesquisas que envolvam linguagem e
outras funções cognitivas. Para isso, foram controladas e verificadas variáveis que serão detalhadas ao longo da apresentação
dos estudos. Antes disso, porém, faremos uma breve exposição
da Teoria da Metáfora Conceitual.
Conforme Lakoff e Johnson (1980), os proponentes dessa
teoria, a metáfora é uma questão de central interesse no estudo da
cognição, estando presente não só na linguagem, mas também no
pensamento e na ação. Sob essa perspectiva, a metáfora deixa de
ser exclusivamente uma questão do âmbito da linguística, isto é,
algo que se relaciona somente com palavras, frases e expressões
verbais. Mais do que isso, os processos do pensamento humano
são amplamente metafóricos. Dessa forma, só é possível produzir
e entender um enunciado metafórico porque as metáforas estão
no sistema conceitual de cada indivíduo, sistema este que é evidenciado através da linguagem.
Assim, as expressões linguísticas metafóricas são a materialização das metáforas conceituais. É importante notar que a
metáfora conceitual (doravante MC) se distingue da metáfora
linguística, na medida em que a primeira se refere a um nível
abstrato do sistema conceitual, e a segunda se refere a um nível
concreto de expressão linguística (SIQUEIRA, 2004). Em outras
palavras, a MC é o entendimento de um domínio conceitual em
termos de outro, e as metáforas linguísticas são expressões que
tornam manifestas no nível da linguagem as relações abstratas
das MCs.
As metáforas conceituais são formadas através de mapeamentos que partem de um domínio conceitual (fonte), tipicamente mais bem estruturado, que serve como fonte de inferências,
para outro domínio conceitual (alvo), tipicamente mais abstrato,
ao qual as inferências se aplicam. Assim, as pessoas têm, por
exemplo, um conhecimento coerentemente organizado sobre o
domínio conceitual TAMANHO, no qual se baseiam para compreender o domínio conceitual IMPORTÂNCIA, e esse processo
propicia a formação da MC IMPORTÂNCIA É TAMANHO.1 Os
falantes atualizam linguisticamente essa metáfora conceitual ao
se referirem a uma pessoa ou a um evento importante através
de metáforas linguísticas, como: Gandhi foi um grande homem ou
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A ida do homem à lua foi um grande feito. Ainda sobre a formação
das metáforas conceituais, é preciso ressaltar a unidirecionalidade
dos mapeamentos, já que, contrariando a visão clássica de que
as metáforas expressariam similaridade entre dois domínios, as
inferências podem ser feitas apenas do domínio fonte para o alvo
e não no sentido oposto. Se o mapeamento fosse bidirecional, as
pessoas falariam de objetos grandes em termos de sua impor­
tância, em sentenças do tipo Essa régua é muito importante, então não
vai caber no meu estojo, e isso simplesmente não acontece.
As metáforas conceituais podem ser classificadas como
primárias ou complexas. São consideradas metáforas primárias
aquelas que resultam de interações entre particularidades dos aparatos físico e cognitivo humanos com suas experiências subjetivas
no mundo, independentemente de língua e cultura (GRADY, 1997).
Segundo Lakoff (comunicação pessoal), as metáforas complexas
são combinações de metáforas primárias, e tais combinações são
determinadas por aspectos culturais. Neste artigo, trataremos
apenas de metáforas primárias.
Em nossas experiências diárias, existem algumas situações
que se repetem mais frequentemente e que têm significados mais
salientes, em função do modo como essas experiências estão relacionadas a nossos objetivos. As metáforas primárias são baseadas
e motivadas pelas experiências corporais mais salientes e recorrentes, assim como pelo modo como o corpo humano funciona
e interage com o mundo físico (YU, 1998). Uma vez que essas
experiências são comuns à espécie humana, elas têm um elevado
potencial de universalidade. A correlação entre o aumento de
peso e uma maior dificuldade, por exemplo, é tão frequente na
experiência humana, que as pessoas conceituam “mais difícil”
em termos de “mais pesado”, mesmo quando a medida de peso
não se aplica literalmente. Essa correlação experiencial motiva
atualizações linguísticas metafóricas como O dia foi pesado hoje ou
O interrogatório foi mais leve do que o esperado.
Tal conjunto de correspondências sistemáticas entre um
domínio fonte (tipicamente mais concreto ou acessível aos sentidos) e um domínio alvo (tipicamente mais abstrato) evidencia
algumas relações intrínsecas entre a estrutura e o funcionamento
típico do corpo humano e o modo como as pessoas conceituam sua
experiência no mundo. Em suma, conforme a Teoria da Metáfora
Conceitual, a metáfora tem bases corpóreas e experienciais.
Tendo em vista os pressupostos aqui apresentados e a relevância que os estudos empíricos têm na perspectiva adotada,
passamos à descrição dos estudos desenvolvidos para a elaboração
da lista de sentenças.
Estudo I
Neste primeiro estudo, o objetivo era averiguar a existência
de uma correlação entre a convencionalidade de mapeamentos
130
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Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças
conceituais metafóricos primários e a familiaridade das expressões
linguísticas metafóricas derivadas desses mapeamentos.
A familiaridade é definida como uma propriedade de
expressões metafóricas inteiras e, por hipótese, está relacionada à
frequência de uma dada manifestação linguística em uma mesma
comunidade. A convencionalidade, por sua vez, é uma propriedade da relação entre mapeamentos conceituais e as expressões
linguísticas oriundas desses mapeamentos, e representa o quão
estabelecidas estão essas metáforas conceituais em uma determinada comunidade. Considerando-se que uma mesma metáfora
conceitual convencional pode gerar metáforas linguísticas familiares e não-familiares, pretendeu-se, neste estudo, verificar a relação entre essas duas propriedades exclusivamente em metáforas
conceituais primárias (SIQUEIRA e ZIMMER, 2006).
Método
O método utilizado para este estudo foi baseado na aplicação
de duas escalas Likert (LANG, 1980) de cinco pontos, elaboradas
especialmente para esta pesquisa. Uma delas objetivava verificar
o nível de convencionalidade das metáforas conceituais e de suas
expressões linguísticas, e a outra pretendia avaliar o seu grau de
familiaridade.
Participantes
A amostra foi composta por 200 estudantes da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, com média de idade de 24,75 anos
(dp= 5,6), 118 do sexo feminino e 72 do masculino, de diversos
cursos das áreas exatas e humanas. Sua participação era voluntária
e anônima.
Instrumentos
Foram elaborados dois questionários para a realização deste
estudo: um para a verificação do grau de convencionalidade das
expressões e outro para a avaliação da sua familiaridade. No
primeiro, foram utilizadas oito metáforas conceituais primárias:
A FELICIDADE É PARA CIMA; INTENSIDADE DE EMOÇÃO
É CALOR; BOM É CLARO; DIFICULDADE É PESO; ACEITAR
É ENGOLIR; INTIMIDADE EMOCIONAL É PROXIMIDADE;
IMPORTÂNCIA É TAMANHO; SIMPATIA É SUAVIDADE. A
partir de cada uma delas, criou-se uma frase contendo expressões
que as atualizavam linguisticamente, perfazendo, então, um total
de oito frases testadas em cada questionário. A partir da metáfora
conceitual TRISTEZA É PARA BAIXO, por exemplo, foi selecionada e apresentada a atualização linguística Estou me sentindo pra
baixo, seguida da sua correspondência semântica não-figurada
“para expressar minha tristeza”. As frases foram listadas verticalmente em uma tabela (parcialmente representadas pela tabela
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1). No sentido horizontal, havia uma escala de cinco pontos na
qual os participantes eram orientados a assinalar a opção correspondente a sua avaliação de cada frase. No segundo questionário,
foram apresentadas, também em forma de tabela, somente as oito
expressões linguísticas derivadas dos mapeamentos conceituais
utilizados e suas respectivas escalas de cinco pontos, nas quais as
frases deveriam ser classificadas quanto ao seu grau de familiaridade (parcialmente representadas pela tabela 2). Nesse segundo
instrumento, não foram explicitadas as correspondências semânticas das frases, pois o objetivo era verificar o grau de familiaridade
das expressões linguísticas quando descontextualizadas.
Tabela 1 – Convencionalidade
QUESTÕES SOBRE
CONVENCIONALIDADE
DOS MAPEAMENTOS
Nada
convencional
Pouco
convencional
Medianamente
convencional
Muito
convencional
Totalmente
convencional
1. “Estou pra baixo”, para
expressar minha tristeza.
1
2
3
4
50
2. “Hoje é um grande dia”,
para dizer que hoje é um
dia importante.
1
2
3
4
5
Tabela 2 – Familiaridade
QUESTÕES SOBRE
FAMILIARIDADE DAS
EXPRESSÕES
Nada
familiar
Pouco
familiar
Medianamente
familiar
Muito familiar
Totalmente familiar
1. “Estou pra baixo”
1
2
3
4
5
2. “Hoje é um grande dia”
1
2
3
4
5
A coleta dos dados foi realizada em grupos na sala de aula
dos próprios alunos, os quais assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado conforme diretrizes éticas
que regulamentam a pesquisa com seres humanos. A amostra foi
dividida aleatoriamente em dois grupos, de forma que metade dos
alunos respondeu individualmente ou ao questionário de convencionalidade ou ao de familiaridade. A coleta de dados iniciou após
os participantes serem informados sobre os objetivos da pesquisa.
Em seguida, as instruções foram lidas em voz alta, ainda
que elas estivessem escritas no questionário que cada participante
recebeu, de modo que eles poderiam lê-las diretamente da sua
folha, caso quisessem. Nas instruções para o teste de convencionalidade, foi explicado que, em cada língua, algumas expressões
são mais aceitas para veicular determinadas idéias, enquanto
outras nem tanto. Os participantes foram, então, instruídos a
avaliar essas expressões, marcando, por exemplo, o quanto a frase
Essa aula foi pesada (atualização linguística da metáfora conceitual
DIFICULDADE É PESO) é convencional para expressar que a
aula foi difícil, através das opções da escala: “nada convencional”
(1), “pouco convencional” (2), “medianamente convencional” (3),
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Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças
“muito convencional” (4), ou “totalmente convencional” (5). No
teste de familiaridade, era solicitado aos participantes que assinalassem uma das opções da escala, respondendo em que nível
as expressões apresentadas lhes eram conhecidas/familiares:
“nada familiar” (1), “pouco familiar” (2), “medianamente familiar” (3), “muito familiar” (4), ou “totalmente familiar” (5). Cada
participante respondeu individualmente, no seu próprio ritmo,
às questões propostas.
Tratamento dos Dados
Os dados obtidos foram analisados através de cálculos de
média simples. Os resultados encontrados revelaram que, quando
um mapeamento conceitual é considerado convencional, as expressões linguísticas metafóricas derivadas desses mapeamentos
também são consideradas familiares. Todas as expressões apresentadas foram consideradas convencionais e familiares (média
de 3,8 e de 3,6 respectivamente), considerando as escalas Likert
de cinco pontos (para uma melhor visualização desses dados,
ver fig. 1). A partir dessa constatação, foi elaborado um segundo
estudo, descrito a seguir.
Figura 1. Grau de familiaridade e convencionalidade em português (L1).
4,
1
3,
2
3,
1
3,
3
3,
4
3,
5
3,
5
3,
3
3,
3
4
3,
8
3,
9
3,
3
3,
2
Escala Likert
4
4,
3
4,
2
5
3
2
1
0
1
2
3
4
5
Metáforas primárias
6
7
8
Familiaridade
Convencionalidade
Estudo II
Neste estudo, buscamos verificar os níveis de familiaridade, alerta e valência, uma vez que estudos anteriores (REYNA
e KIERNA, 1994; OCHSNER, 2000; KENSINGER e CORKIN,
2003) indicam que essas variáveis influenciam o funcionamento
de outras capacidades cognitivas, tais como a memória. Alerta e
valência são duas dimensões das experiências afetivas, ou seja,
estão ligadas às emoções. A variável alerta se refere ao grau de
excitação de uma pessoa em determinada situação, variando
entre dois polos: calmo em um extremo e agitado em outro. Já a
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variável valência se refere ao grau em que uma resposta emocional a determinada situação é mais negativa ou positiva, variando,
portanto, de altamente negativa a altamente positiva, passando
pela valência neutra. As variáveis tamanho e complexidade sintática das sentenças foram controladas no processo de elaboração
da lista de sentenças, conforme detalhado na seção Instrumento.
A variável convencionalidade não foi controlada ou analisada,
devido a sua correlação com a variável familiaridade, como indicaram os resultados obtidos no Estudo I.
Método
O método utilizado para este estudo foi baseado na aplicação
de três escalas Likert de cinco pontos. A tabela de familiaridade
(fig. 2) foi especialmente desenvolvida para este estudo, e as tabelas
de alerta e valência foram adaptadas das escalas de Lang (1980).
Figura 2. Escala de familiaridade, alerta e valência
Participantes
A amostra foi composta por 316 estudantes, 155 do sexo
feminino e 161 do masculino, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, de cursos distintos das áreas humanas e exatas.
Sua participação era voluntária e anônima, e sua idade média era
de 22,8 anos (dp = 5,7). Nenhum dos participantes do estudo II
havia colaborado com o estudo I.
Instrumentos
Para a realização deste estudo, foram elaboradas 135 sentenças, sendo 67 literais e 68 metafóricas. Todas as sentenças eram
atualizações linguísticas derivadas de metáforas conceituais primárias, ou suas respectivas paráfrases literais, todas de familiaridade presumidamente alta. Sempre que possível, foram formuladas duas sentenças metafóricas a partir do mesmo mapeamento
(uma de valência presumidamente positiva e outra de valência
presumidamente negativa) e duas paráfrases literais derivadas de
cada uma das sentenças metafóricas (uma de valência presumidamente positiva e outra de valência presumidamente negativa).
Em alguns casos, porém, não foi possível elaborar quatro frases a
partir do mesmo mapeamento. Partindo do mapeamento RUIM
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Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças
É FEDOR, por exemplo, temos as atualizações linguísticas A
situação está fedendo e A situação está ruim, sentenças de valência
presumidamente negativa e, respectivamente, metafórica e literal.
A sentença metafórica de valência presumidamente positiva que
atualizaria este mapeamento (A situação está cheirosa) não é usual
em nossa comunidade, por isso não foi utilizada na pesquisa.
Alguns mapeamentos, entretanto, possibilitavam somente atualizações linguísticas de valência presumidamente neutra. Nesses
casos foi derivada somente uma sentença metafórica e sua paráfrase literal. Ao contrário da variável valência, os valores para a
variável alerta não foram presumidos na construção das frases.
Essa variável foi mensurada diretamente pelos participantes da
pesquisa.
O tamanho das sentenças foi controlado e pareado em
relação ao número de palavras e caracteres, dividindo a lista de
sentenças em dois grupos: eram consideradas “pequenas” as frases
de quatro até cinco palavras, com 15 a 25 caracteres, enquanto
aquelas de cinco a sete palavras, com 26 a 35 caracteres, eram
classificadas como “grandes”. As sentenças originadas de um
mesmo mapeamento preferencialmente enquadravam-se todas
em um mesmo grupo, de sentenças grandes ou pequenas. Quando
não era possível manter o sentido da sentença ou elaborar uma
sentença familiar com o mesmo tamanho, optamos por manter o
sentido e a frase mais familiar em detrimento do tamanho exato.
As sentenças foram também controladas quanto à complexidade sintática por dois juízes, professores universitários
de linguística, a fim de parear suas estruturas e evitar que a
complexidade gramatical influenciasse nos resultados de testes
envolvendo outras funções cognitivas.
As 135 sentenças foram divididas em quatro blocos, de modo
que três deles eram formados por 34 sentenças e o outro por 33.
Essa divisão foi necessária para que um mesmo participante não
respondesse a todas as 405 questões (135 sentenças x 3 variáveis),
evitando assim que fatores como o cansaço prejudicassem as
respostas finais. As atualizações linguísticas derivadas de uma
mesma metáfora conceitual foram separadas nestes blocos, pois a
proximidade das frases na lista de estudo poderia influenciar os
resultados de testes psicolinguísticos posteriores, particularmente
em casos de testes envolvendo memória. Ainda quanto à constituição dos blocos, observou-se o critério de distribuição equitativa
no que diz respeito ao tipo de sentença (literal ou metafórica), ao
tamanho das frases de cada um dos grupos e à valência presumida
(positiva, negativa e neutra).
As sentenças foram, então, listadas em uma tabela, que
continha as três escalas de cinco pontos distribuídas em linha.
Essas escalas, intituladas familiaridade, alerta e valência, tinham
o objetivo de avaliar as frases apresentadas (fig. 2).
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135
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Maity Siqueira, Maitê Gil e Tamara Melo
Procedimentos
A coleta dos dados foi realizada em grupos, na sala de aula
dos próprios alunos, os quais assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado consoante as diretrizes
éticas que regulamentam a pesquisa com seres humanos. Os
participantes foram divididos aleatoriamente em quatro grupos,
de maneira que a cada grupo foi apresentado um dos quatro
blocos de sentenças do experimento. Após serem informados
os objetivos da pesquisa aos participantes, foi iniciada a coleta
propriamente dita.
Foi solicitado aos participantes, então, que avaliassem individualmente o quanto as frases a serem projetadas e lidas em voz
alta lhes pareciam familiares ou não. Além disso, eles deveriam
informar o quanto elas lhes pareciam estimulantes (alerta) e o
quanto as sentenças eram agradáveis ou desagradáveis (valência).
Ainda nas instruções, foram dados exemplos, como a sentença Fui
numa festa, que pode ser considerada por alguns AGRADÁVEL e
ESTIMULANTE, enquanto a frase Estou na praia pode também
ser considerada AGRADÁVEL por um grande número de pessoas, porém RELAXANTE. Deste mesmo modo, foi apresentada
uma frase considerada por muitos DESAGRADÁVEL e ESTIMULANTE, como Aconteceu um desastre, e também uma classificada
como DESAGRADÁVEL e RELAXANTE por outros: Está chovendo.
Foi ainda frisado que se tratava de uma avaliação subjetiva, não
existindo respostas certas ou erradas, e que não havia uma relação
direta entre as três classificações.
A seguir, as frases do bloco escolhido foram projetadas uma
a uma, com um intervalo de 22 segundos entre elas, e pronunciadas em voz alta para que os participantes pudessem avaliá-las. A
projeção foi feita com um datashow em um quadro branco.
Tratamento dos Dados
A partir dos dados obtidos, cada variável foi analisada
individualmente. Para classificar as sentenças quanto a sua familiaridade, foram primeiramente calculados a média e o desvio
padrão de todas as sentenças (M= 3,4 / dp= 0,5). As frases que
tinham média inferior a 2,9 (M -1dp) foram classificadas como não
familiares. Em seguida, calculou-se a média e o desvio padrão
geral da variável alerta (M= 2,9/ dp= 0,6). Todas as sentenças que
tinham sua média de alerta de 2,3 a 3,5 (M -1dp/ +1dp) foram
consideradas frases de alerta médio, o que representa a grande
maioria das 135 sentenças. As frases com médias inferiores a 2,3
foram consideradas de alerta baixo, enquanto aquelas com médias
superiores a 3,5 foram consideradas de alerta alto. Para a valência,
foi igualmente feito o cálculo de média e de desvio padrão (M=
3/ dp= 1). A partir desses dados, foi elaborada a seguinte escala
para a classificação das frases quanto a sua valência: sentenças
136
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Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças
com média até 2 (M -1dp) foram consideradas negativas; as com
média de 2,5 a 3,5 foram classificadas como neutras (M -0,5dp/
+0,5dp) e, por fim, aquelas com média acima de 4 (M +1dp) foram
definidas como positivas. Sugere-se que todas as sentenças que
ficaram fora dessa margem, ou seja, as sentenças com média entre
2,1 e 2,4 e entre 3,6 e 3,9 sejam descartadas na elaboração de testes
psicolinguísticos que envolvam o controle dessa variável.
Obteve-se, como produto do trabalho acima descrito, uma
lista de 135 frases classificadas quanto ao tipo (literal ou metafórico) e ao tamanho (grande ou pequeno). Além disso, foram
verificadas, em uma mesma comunidade linguística, as médias
para familiaridade, alerta e valência dessas 135 frases, conforme
a tabela 3, em anexo.
Considerações Finais
As pesquisas na área da psicolinguística necessitam de
subsídios metodológicos confiáveis para obterem êxito. O controle
de variáveis é um importante passo na exaustiva busca pela
confiabilidade nos resultados obtidos através de testes psicolinguísticos. Os resultados dos estudos I e II são importantes para que
seja possível a produção posterior de materiais adequados para a
investigação de eventuais relações envolvendo sentenças literais e
metafóricas e outras funções cognitivas, em testes que exijam um
controle prévio das variáveis verificadas (tabelas 3 e 4, em anexo).
Considerando, por exemplo, a capacidade mnemônica (REYNA e
KIERNAN, 1994), as sentenças apresentadas neste artigo podem
constituir um material confiável para verificar possíveis alterações
no comportamento da memória quando submetida ao reconhecimento de sentenças literais e metafóricas.
A partir dos construtos teóricos e do estudo aqui apresentados, entendemos, portanto, que o controle de material linguístico
envolvendo metáforas pode proporcionar um avanço para as pesquisas que correlacionem determinadas habilidades linguísticas
a outras funções cognitivas.
Abstract
This article describes two studies aiming at the
assessment of psycholinguistic variables from
a list of 135 sentences containing methaporical
and non-metaphorical linguistic material. The
notion of metaphor adopted here stems from
the framework of Cognitive Linguistics, more
specifically from the Conceptual Metaphor Theory (LAKOFF and JOHNSON, 1980). Study I
(n=200) aims to inquire into the existence of a correlation between the conventionality of mappings
involving primary conceptual metaphors and the
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familiarity of linguistic metaphorical expressions
derived from these mappings. Study II (n=316)
seeks to assess the degree of familiarity, arousal
and valence of the sentences included in the list.
These had their size and syntactic complexity previously controlled. Through the list of sentences
elaborated here, this work aims to contribute to
the development of psycholinguistic tests with
metaphorical and non-metaphorical material involving the variables presented in the two studies.
Thus, the results of the methodological precautions described in this article may be applied not
only to studies in Linguistics, but also to studies
dealing with the interface between language and
other cognitive functions.
Keywords: list of sentences; methodological
precautions; psycholinguistics; metaphor.
Referências
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138
Rev Gragoata n 29.indb 138
Niterói, n. 29, p. 127-145, 2. sem. 2010
11/7/2011 19:21:42
Contribuições para a elaboração de testes psicolinguísticos: construção de uma lista de sentenças
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Memory in Sentence Recognition: Effects of Lexical Familiarity,
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Anexos
Tabela 3 - Tipo, tamanho, familiaridade, alerta e valência
(L = literal, M = metafórica, P = pequena, G = grande)
Frase
Tipo
Tamanho
Familiaridade
Alerta
Valência
1 Ele fica controlando o funcionário.
L
G
3,5
2,3
2,0
2 Essa moda deixou de existir naquele ano.
L
G
3,0
1,9
2,9
L
L
L
L
L
L
L
L
L
L
L
L
L
G
G
G
P
G
G
P
P
P
P
P
P
P
3,8
4,4
3,2
3,7
3,8
4,2
4,0
3,8
3,6
3,2
4,4
3,8
3,1
3,6
3,2
2,5
2,9
2,6
2,8
3,7
3,1
2,9
2,6
3,0
3,8
2,4
4,3
2,7
3,3
4,1
2,3
2,0
4,4
4,1
3,1
3,7
1,9
4,0
3,2
16 A situação está ruim.
L
P
4,3
3,4
1,4
17 Nós já chegamos no nosso objetivo.
M
G
3,4
3,4
4,2
18 Ele tem um jeito antipático.
L
P
3,9
2,6
2,1
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
Meu trabalho está ficando melhor.
O problema foi difícil de resolver.
A situação mudou depois da aula.
Ele é uma pessoa amável.
Ele tem pouco conhecimento do tema.
O time está perdendo no campeonato.
Esse é um momento bom.
Ele aceitou as desculpas.
As teorias são diferentes.
Esse foi um jogo honesto.
Essa aula foi difícil.
A proposta me interessa.
O contrato ainda é válido.
19 Nossa cidade fica morta à noite.
M
G
3,4
2,1
2,2
20 Aquela idéia deu ótimos frutos.
M
G
3,3
3,4
4,3
21 Estou me coçando para ver esse filme.
M
G
3,1
3,2
3,6
22 O monumento está em péssima forma.
M
G
2,4
2,1
2,2
23 Nossa amizade nasceu de repente.
M
G
3,7
3,3
4,1
24 Ela atingiu o topo da carreira.
M
G
3,1
3,0
3,8
25 O mercado financeiro esfriou um pouco.
M
G
3,0
2,0
2,5
26 Aquela é uma pergunta central.
M
G
2,7
2,5
3,0
27 Essa é uma arte maior.
M
P
2,5
2,8
3,4
28 Ele está numa má posição no emprego.
M
G
3,1
2,7
1,7
29 Estou me sentindo para baixo.
M
P
4,2
2,7
1,3
30 Eu vou pesar a decisão.
M
P
2,7
2,7
2,9
31 Meus colegas são distantes.
M
P
3,1
2,2
1,8
32 Nosso namoro está quente.
M
P
3,5
4,1
4,7
33 Ele machucou a minha honra
M
P
2,2
3,2
1,7
34 Ele é uma pessoa amarga.
M
P
3,8
2,7
1,8
35 O monumento está em péssimas condições.
L
G
3,6
2,3
1,8
36 Essa moda passou a existir naquele ano.
L
G
3,1
1,8
2,9
37 Aquela idéia deu ótimos resultados.
38 Meu trabalho está ficando pior.
39 Aquela é uma pergunta importante.
L
L
L
G
G
G
4,1
3,6
4,1
3,6
3,5
3,5
4,5
1,2
3,4
40 Ele tem muito conhecimento do tema.
L
G
4,1
3,2
3,8
Rev Gragoata n 29.indb 141
11/7/2011 19:21:43
41 Esse foi um jogo desonesto.
L
P
4,0
3,5
1,7
42 A proposta não me interessa.
L
P
3,6
2,3
2,4
43 Ela atingiu o máximo da carreira.
L
G
3,3
3,3
4,0
44 Eu vou considerar a decisão.
L
P
3,6
2,9
3,1
45 A situação virou depois da aula.
M
G
2,9
3,0
2,9
46 Essa aula foi fácil.
L
P
3,8
3,0
4,3
47 Ele prejudicou a minha honra
L
P
2,4
3,5
1,4
48 Ele tem um jeito simpático.
L
P
4,0
2,9
3,9
49 Nossa cidade ganha vida à noite.
M
G
3,6
3,5
4,0
50 Ela é uma pessoa sofrida.
L
P
4,0
2,9
1,6
51 O mercado financeiro esquentou um pouco.
52 Ele fica em cima do funcionário.
53 O problema foi duro de resolver.
M
M
M
G
G
G
3,3
3,3
4,2
2,5
2,7
3,3
3,2
2,2
2,7
54 Ele está numa boa posição no emprego.
55 Ele engoliu as desculpas.
56 Nossa amizade morreu de repente.
M
M
M
G
P
G
3,8
3,3
3,3
3,2
2,8
3,4
4,1
2,4
1,4
57 Ele é uma pessoa doce.
M
P
3,8
2,8
4,1
58 Esse é um momento iluminado.
M
P
3,2
3,5
4,3
59 O time está atrás no campeonato.
M
G
3,8
2,8
2,1
60 As teorias são distantes.
M
P
3,0
2,2
2,5
61 Estou me sentindo para cima.
M
P
3,8
3,8
4,5
62 Essa é uma arte menor.
63 Nosso namoro está frio.
M
M
P
P
2,7
3,3
2,1
3,5
2,4
1,4
64
65
66
67
68
69
L
M
M
L
L
L
G
P
P
G
G
G
4,0
3,6
3,7
3,8
4,8
3,0
3,6
3,4
3,2
3,0
4,0
2,0
4,4
1,7
4,0
3,1
4,3
2,1
M
G
4,1
4,1
2,5
Nós já conseguimos o nosso objetivo.
A situação está fedendo.
O contrato está de pé.
Ela precisa de ajuda no projeto.
Estou querendo muito ver esse filme.
Nossa cidade não tem atividade à noite.
70 O momento da prova final chegou.
71 O mercado financeiro ficou mais ativo.
L
G
2,8
1,9
3,1
72
73
74
75
76
77
78
79
80
L
M
L
L
L
L
M
M
L
G
G
G
P
P
P
G
G
P
3,5
3,0
3,8
3,9
2,5
3,7
3,3
3,1
4,3
2,7
2,6
3,5
3,6
2,3
2,9
1,8
2,6
4,2
1,6
3,0
4,4
1,4
2,4
3,2
3,0
3,3
4,8
81 Nosso namoro está sem emoção.
L
P
2,7
2,8
1,5
82 Meus colegas são íntimos.
83 Eu sei que existe solução.
84 Ela está muito rancorosa.
L
L
L
P
P
P
2,8
3,9
3,1
2,5
3,7
3,0
3,5
4,1
1,6
85 Ele é flexível em novas situações.
M
G
3,1
2,4
3,6
86 Nós não chegamos no nosso objetivo.
M
G
3,2
3,1
1,6
87 Esse foi um jogo sujo.
M
P
3,5
3,7
1,5
Ele está numa má situação no emprego.
Ela precisa de apoio no projeto.
Nossa amizade iniciou de repente.
Esse é um momento ruim.
Essa é uma arte irrelevante.
Ela tem certeza desta idéia.
Essa moda apareceu naquele ano.
Há paralelos entre as duas histórias.
Estou me sentindo feliz.
Rev Gragoata n 29.indb 142
11/7/2011 19:21:43
88
89
90
91
92
93
94
95
96
97
98
99
100
101
102
O monumento está em ótima forma.
As teorias são próximas.
A proposta não me apetece.
Ele tem conhecimento profundo do tema.
Meu trabalho está indo para frente.
Ele manchou minha imagem
O problema foi fácil de resolver.
O time está na frente no campeonato.
Ele tem um jeito áspero.
O contrato foi por terra.
Eu entendi essa idéia rapidamente.
Nós precisamos aperfeiçoar esse e-mail.
Essa aula foi leve.
Aquela é uma pergunta irrelevante.
Ele tem desejo de poder.
M
M
M
M
M
M
L
M
M
M
L
L
M
L
L
G
P
P
G
G
P
G
G
P
P
G
G
P
G
P
2,0
2,9
3,1
3,9
3,4
2,7
3,9
4,0
3,0
2,4
4,0
2,9
3,5
3,8
3,7
2,0
2,2
2,1
3,1
3,6
3,5
3,1
3,1
2,8
2,7
3,4
2,0
2,6
2,5
3,3
3,3
3,1
2,2
3,8
4,3
1,4
4,3
3,9
1,9
1,8
4,3
2,6
4,3
2,3
2,3
103 Nós não conseguimos o nosso objetivo.
L
G
3,5
2,4
1,4
104 Essa moda desapareceu naquele ano.
M
G
2,6
1,8
2,9
105
106
107
108
109
110
111
112
113
114
115
116
L
L
M
L
L
L
L
M
M
L
L
M
G
G
G
G
G
P
P
G
P
P
P
G
3,7
2,8
3,7
4,3
2,8
3,8
2,7
1,8
3,3
2,9
3,1
3,7
3,2
2,1
2,3
3,6
3,0
2,7
2,6
1,6
3,1
3,6
3,3
3,0
4,1
2,5
2,3
4,1
1,4
1,2
3,4
2,8
2,8
4,0
1,7
4,2
117 Eu peguei essa idéia rapidamente.
M
G
3,7
3,4
4,1
118 O contrato não vale mais.
119 Ela tem firmeza nesta idéia.
L
M
P
P
2,9
3,2
2,7
2,9
2,4
3,3
Ele está numa boa situação no emprego.
O mercado financeiro ficou menos ativo.
Nós precisamos limpar esse e-mail.
O time está vencendo no campeonato.
Nossa amizade acabou de repente.
Estou me sentindo triste.
Essa é uma arte importante.
Aquela é uma pergunta periférica.
Ele tem fome de poder.
Nosso namoro está com emoção.
Ele prejudicou minha imagem
O problema foi mole de resolver.
120 Ele tem conhecimento superficial do tema.
M
G
3,6
2,4
2,4
121 Meu trabalho está indo para trás.
M
G
2,6
3,0
1,4
122 Esse foi um jogo limpo.
M
P
3,4
2,7
3,9
123 Ele se adapta a novas situações.
L
G
3,7
3,0
3,9
124 Esse é um momento sombrio.
M
P
2,9
3,3
2,1
125 A proposta me apetece.
126 Meus colegas são próximos.
127 Essa aula foi pesada.
M
M
M
P
P
P
3,0
3,3
4,4
3,1
2,8
2,9
3,9
3,9
3,5
128 Nossa cidade tem mais atividade à noite.
L
G
3,5
3,2
3,6
129 Eu vejo que existe solução.
M
P
3,8
3,7
4,3
130 Ela está cheia de rancor.
M
P
3,3
2,7
1,6
131 O momento da prova final é agora.
L
G
3,8
4,1
2,5
132 O monumento está em ótimas condições.
L
G
2,7
2,2
3,7
133 Há semelhanças entre as duas histórias.
L
G
3,4
2,5
3,2
134 Ele tem um jeito suave.
M
P
2,5
1,9
3,3
135 As teorias são similares.
L
P
3,3
2,3
3,1
Rev Gragoata n 29.indb 143
11/7/2011 19:21:43
Tabela 4 - Metáforas Conceituais
Frase
1, 52
CONTROLE É ACIMA
2, 36, 78, 104
EXISTÊNCIA É VISIBILIDADE
3, 38, 92, 121
MELHORA É PARA FRENTE
4, 53, 94, 116
DIFICULDADE É DUREZA
5, 45
MUDANÇA É MOVIMENTO
6, 57
AMABILIDADE É DOÇURA
7, 40, 91, 120
INTENSIDADE É PROFUNDIDADE
8, 59, 95, 108
VANTAGEM É PARA FRENTE
9, 58, 75, 124
BOM É CLARO
10, 55
ACEITAR É ENGOLIR
11, 60, 89, 135
SIMILARIDADE É PROXIMIDADE
12, 41, 87, 122
HONESTIDADE É LIMPEZA
13, 46, 100, 127
DIFICULDADE É PESO
14, 42, 90, 125
INTERESSANTE É SABOROSO
15, 66, 97, 118
VÁLIDO É ERETO
16, 65
RUIM É FEDOR
17, 64, 86, 103
ATINGIR UM PROPÓSITO É CHEGAR NUM DESTINO
18, 48, 96, 134
SIMPATIA É SUAVIDADE
19, 49, 69, 128
ATIVIDADE É VIDA
20, 37
IDÉIAS SÃO PLANTAS
21, 68
DESEJO DE AGIR É COCEIRA
22, 35, 88, 132
CONDIÇÃO É FORMA
23, 56, 74, 109
RELAÇÕES SÃO ORGANISMOS VIVOS
24, 43
Rev Gragoata n 29.indb 144
Metáfora Conceitual Correspondente
SUCESSO É PARA CIMA
11/7/2011 19:21:43
25, 51, 71, 106
INTENSIDADE DE ATIVIDADE É CALOR
26, 39, 101, 112
IMPORTÂNCIA É CENTRALIDADE
27, 62, 76, 111
IMPORTÂNCIA É TAMANHO
28, 54, 72, 105
SITUAÇÃO É POSIÇÃO
29, 61, 80, 110
FELICIDADE É PARA CIMA
30, 44
31, 82, 126
32, 63, 81, 114
INTIMIDADE É PROXIMIDADE
INTENSIDADE EMOCIONAL É CALOR
33, 47
PREJUDICAR É FERIR
34, 50
SOFRIMENTO É AMARGURA
67, 73
ASSISTÊNCIA É SUPORTE
70, 131
AGORA É AQUI
77, 119
CERTEZA É FIRMEZA
79, 133
SIMILARIDADE É ALINHAMENTO
83, 129
SABER É VER
84, 130
Rev Gragoata n 29.indb 145
CONSIDERAR É PESAR
SENTIMENTO É UMA SUBSTÂNCIA EM UM
RECIPENTE
85, 123
ADAPTABILIDADE É FLEXIBILIDADE
93, 115
PREJUDICAR É SUJAR
98, 117
ENTENDER É PEGAR
99, 107
IMPERFEIÇÃO É SUJEIRA
11/7/2011 19:21:43
Rev Gragoata n 29.indb 146
11/7/2011 19:21:43
O que fazer com grupos de fatores
não selecionados? O caso
da concordância nominal no Paraná
Odete Pereira da Silva Menon
Edson Domingos Fagundes
Loremi Loregian-Penkal
Resumo
O objetivo deste trabalho é repensar a questão da
seleção de grupos de fatores (GFs) pelo pacote Varbrul, a partir de uma divergência ocorrida quando
das rodadas com duas cidades do Paraná, Irati e
Pato Branco, na análise da concordância nominal. Um dos GFs estruturais, tipos de formação
do plural, foi selecionado quando se rodou Irati,
mas não em Pato Branco, apesar de a amostra
ter sido feita com uma única metodologia, a do
Projeto Varsul, e com exatamente os mesmos GFs,
tanto os linguísticos, quanto os sociais. Por isso
se questiona até que ponto se deve considerar, na
análise, somente a seleção dos GFs pelo Varbrul,
quando o objetivo de uma amostra, como é o caso,
é perscrutar se e até que ponto a ocupação étnica
diferenciada (sobretudo na região Sul) poderia
interferir em fenômenos da língua portuguesa
no Brasil.
Palavras-Chave: Sociolinguística quantitativa.
Seleção de grupos de fatores. Concordância nominal em Irati e Pato Branco. VARSUL-PR.
Gragoatá
Rev Gragoata n 29.indb 147
Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010
11/7/2011 19:21:44
Gragoatá
Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka
O projeto VARSUL: diversidade étnica e sociocultural
O Projeto Variação
Linguística Urbana na
Região Sul (VARSUL),
i n ic i ado e m 199 0, é
composto inicialmente
pelas três universidades federais dos três
estados do Sul do Brasil:
Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC),
Universidade Federal do
Paraná (UFPR) e Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS).
Em 1993, passa a contar
com a Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUC–RS). O Projeto VARSUL tem como
horizonte armazenar
amostras de realizações
de fala de habitantes de
áreas urbanas sócio-representativas de cada
um dos três estados da
região Sul do Brasil,
estratificados por localidade, faixa etária, sexo
e escolaridade. O Banco
VAR SUL vem sendo
constantemente ampliado com o acréscimo de
novas amostras em todas as sedes. À amostra
básica, constituída de
informantes sem curso
superior, distribuídos
por grau de escolaridade, sexo e faixa etária
(acima de 25 anos), outras vêm sendo acrescidas, contemplando novas regiões, diferentes
faixas etárias, bem como
níveis de escolaridade.
2
Como havia a limitação de três cidades por
estado, ficaram de fora
algumas etnias presentes nos estados: árabes,
franceses, japoneses e
holandeses, por exemplo.
1
148
Rev Gragoata n 29.indb 148
Os dados de concordância nominal aqui discutidos são provenientes do Banco de Dados VARSUL, cujo objetivo geral é fornecer
dados para a descrição do português falado no Sul do Brasil e está
sediado em quatro Universidades, dos estados do Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul.1
O Banco de dados VARSUL é resultante da execução do
projeto Variação Linguística Urbana na Região Sul do Brasil, cuja
concepção foi idealizada em 1984, por Leda Bisol, que reuniu, em
outubro daquele ano, alguns pesquisadores em Porto Alegre. O
projeto proposto pela pesquisadora deveria espelhar-se no projeto pioneiro de levantamento sociolinguístico no Brasil: Projeto
Censo Linguístico do Rio de Janeiro, coordenado por Anthony
Julius Naro, e executado no final dos anos 70, com os primeiros
resultados publicados no início dos anos 80. O Projeto Censo
limitou a coleta de dados à cidade do Rio de Janeiro, realizando as
entrevistas em diferentes bairros, representativos das diferentes
comunidades cariocas, sobretudo do ponto de vista social.
Embora o modelo de coleta de dados do Varsul fosse o do
Censo, para dar conta da diversidade étnica da região, chegou-se
a um denominador comum: não bastaria pesquisar as capitais
dos três estados (Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre); seria
necessário incluir algumas das etnias representativas da ocupação étnica diferenciada não só da região Sul, mas de cada estado
tomado individualmente. A razão disso residia no fato de que se
pretendia pesquisar se o português da região sul diferiria dos
demais dialetos do PB (português do Brasil) como consequência do
povoamento distinto dos três estados (essa região era praticamente
despovoada no tempo em que mais entraram escravos no Brasil).
Em relação à metodologia do levantamento de dados, a
equipe VARSUL seguiu a mesma diretriz laboviana do Projeto
Censo, a das entrevistas ditas sociolinguísticas, com duração
média de cinquenta minutos.
Para dar conta da diversidade étnica, em cada estado foram
selecionados, então, três municípios representativos de grupos
populacionais comprovadamente relevantes no seu processo de
ocupação.2 No Paraná, optou-se pelas etnias mais antigas: Irati
(eslavos); Londrina (colonização mineiro-paulista); Pato Branco
(colonização gaúcho-catarinense). Em Santa Catarina, foram
selecionadas: Blumenau (alemães); Lages (caminho das tropas);
Chapecó (italianos, provenientes do RS). No Rio Grande do Sul,
uma escolha evidente: alemães (Panambi); italianos (Flores da
Cunha) e região de fronteira (São Borja).
Uma série de estudos já foi realizada pelos pesquisadores
pertencentes ao projeto, a partir do banco de dados, seja no campo
da fonética/fonologia; da morfossintaxe ou do léxico, desde 1995,
quando já estavam disponibilizadas (transcritas e armazenadas
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O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná
em microcomputadores) as entrevistas das capitais. Para detalhamento, consulte-se o site www.cce.ufsc.br/~varsul e www.pucrs.
br/fale/pos/varsul/index.php.
O fenômeno em estudo: a concordância nominal no Paraná
É interessante obs e r va r que, no c a s o
dos aumentativos que
passaram a constituir
entrada lexical independente, como giletão,
machão, bailão, bodegão,
a não-concordância foi
categórica.
3
O grupo de pesquisa do Varsul-Paraná vem se dedicando
ao estudo da concordância nominal nas cidades do banco, a fim de
verificar se a regra geral do fenômeno, classificada por Scherre &
Naro (1997, p. 93) como um “caso típico de variação inerente” no
PB, se aplicaria no estado, apesar de ela apresentar uma realização
bastante característica, quando um dos determinantes é pronome
possessivo (o meus filho). Para fins de comparabilidade com outras
regiões do Brasil, adotou-se para os GFs linguísticos o critério
de tentar utilizar aqueles já empregados em outras pesquisas do
mesmo teor. A igualdade absoluta não foi possível, visto que, em
alguns trabalhos, apareceram casos que não foram registrados
na nossa amostra, como aquele de Dias (1993, p. 124): “Aí tinha
treis filhotin, den da barriga dela (Paul, 10, r, m)”, classificado como
“redução do item lexical”. No campo das variáveis extralinguísticas, há a limitação natural do banco: sexo, idade (25-45 e mais
de 50 anos), escolaridade (até cinco anos, oito e onze anos) e etnia
(conforme acima).
Fizemos uma restrição na análise dos dados da alternância
na concordância nominal (CN): consideramos somente a concordância intra-sintagmática, deixando de lado a concordância com
o predicativo. Como em outros trabalhos, a variável linguística
dependente foi a presença/ausência de marca morfológica de
plural nos elementos do sintagma nominal (SN) e as variáveis
independentes linguísticas foram: posição linear dos elementos no
SN; classe gramatical das palavras; posição em relação ao núcleo
do SN; tipos de formação de plural, marcas precedentes; contexto
fonológico seguinte (para eliminar os casos problemáticos, como
“nas porta_? sabe?”); grau dos substantivos3 e adjetivos; tonicidade
das palavras; animacidade dos substantivos.
Como pretendemos fazer o levantamento das quatro
cidades do Paraná, começamos por Irati, visto que, no estudo
de outros fenômenos (apagamento do se reflexivo em Bandeira,
2007 e na alternância indicativo/subjuntivo em Fagundes, 2007),
essa localidade já havia mostrado apresentar características mais
conservadoras quando comparada com as outras três do Banco.
Os resultados de Irati foram apresentados no Gel de 2008
e os de Pato Branco no CELLIP de 2009. Em Irati, foram nove os
GFs selecionados: relação com o núcleo; posição linear no SN;
escolaridade; grau do substantivo; tipos de formação de plural;
sexo do informante; traço semântico; idade e classe gramatical.
Quando rodamos Pato Branco, apareceu um problema: o GF tipos
de formação de plural, que havia sido selecionado em quinto lugar
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Gragoatá
Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka
em Irati, não foi selecionado porque apresentou nocaute no item
VEZ4. Os resultados de Irati podem ser conferidos na Tabela 1
(Input .76).
TABELA 1 – Tipos de formação de plural – Irati
Fatores
Apl./Total
%
PRel.
Item lexical VEZ
24/28
86
.86
Itens terminados em -ão/-ões
59/72
82
.81
Itens terminados em -r
84/106
79
.75
Plural duplo
15/20
75
.73
Itens terminados em -l
33/43
77
.65
Itens terminados em -s/-z
15/22
68
.59
3.316/4.358
76
.48
19/42
45
.33
3.565/4.691
76
Itens com plural regular
Itens terminados em -ao/-s
Total
Para Pato Branco, como não tinha sido selecionado o GF,
foi feita uma rodada só com a variável dependente (com ou sem
concordância) e o GF tipos de formação de plural, para se obter
pesos relativos, a fim de comparar com os resultados de Irati (ainda
que esses tivessem sido objeto de iterações com outros GFs). O
resultado da rodada está na Tabela 2, com Input de .81 (onde se
incluiu o nocaute com o item VEZ só para constar o número de
ocorrências visto que, evidentemente, foi retirado do GF para se
poder rodar o Varb2000):
TABELA 2 – Tipos de formação de plural – Pato Branco
Fatores
Apl./Total
%
02
100
2.187/2.695
81
.51
Plural duplo
11/14
79
.47
Itens terminados em -ão/-s
24/31
77
.45
Itens terminados em -ão/-ões
32/43
74
.41
Itens terminados em -r
52/75
69
.35
Itens terminados em -l
19/28
68
.34
2/3
67
.32
2.329/2.891
81
Item lexical VEZ
Itens com plural regular
Pela alta incidência
da locução nominal às
vezes, ela não foi considerada, como já aconteceu em outros trabalhos.
O item lexical VEZ foi
analisado em separado,
conforme critério adotado por Dias (1993).
4
150
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Itens terminados em -s/-z
Total
P.Rel.
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O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná
Nessa rodada, foram selecionados os GFs: posição linear no
SN; relação com o núcleo; traço semântico; grau do substantivo;
sexo do informante; idade e escolaridade.
As diferenças (e/ou aparentes incongruências) que se
pode apontar entre os resultados contidos nas Tabelas 1 e 2
compreendem: para os itens terminados em -ão/-ões temos grande
favorecimento da aplicação da regra de concordância em Irati
(.81) e desfavorecimento da concordância para Pato Branco (.41).
O mesmo ocorre em relação ao plural duplo, com Irati favorecendo
a aplicação da regra com .73 e Pato Branco desfavorecendo com
.47. Seguem na mesma direção os itens terminados em -r (Irati com
.75 e Pato Branco com .35); os itens terminados em -l (Irati com .65
e Pato Branco com .34) e os itens terminados em -s/-z (Irati com .59
e Pato Branco com .32).
Como ambas as cidades tiveram idêntico tratamento, tanto
na gravação das entrevistas como no tratamento dos dados quantificados, não havia explicação lógica para tal situação. Mais: não
seria possível a comparação linear dos resultados, pois havia as
divergências acima.
Tentamos, então, reparar a situação, fazendo outra rodada
para Irati, sem o item lexical VEZ (que ali contava com 28 ocorrências, das quais 24 com concordância). A nova rodada consistiu em
aplicar a regra também rodando somente a variável dependente
(com ou sem concordância) com o GF tipos de formação de plural. Os
resultados são os que constam nas duas tabelas abaixo (Input .76):
TABELA 3 – Tipos de formação de plural – Irati (sem vez)
Fatores
Apl./Total
%
PRel.
Itens terminados em -r
84/106
79
.55
Itens terminados em -ão/-ões
59/75
79
.54
Itens terminados em -l
33/43
77
.51
3.320/4.365
76
.50
Plural duplo
15/20
75
.49
Itens terminados em -s/-z
15/22
68
.40
Itens terminados em -ão/-s
19/42
45
.21
3.547/4.676
76
Itens com plural regular
Total
Como ainda se apresentassem divergências em algumas
variantes – o que, em princípio, poderia ser atribuído à questão
etnia ou povoamento diferenciado –, resolvemos fazer uma série
de testes, com ambas as cidades em separado, rodando a variável
dependente com o GF tipos de formação de plural, eliminando ora
umas, ora outras variantes do grupo, ou amalgamando variantes
com resultados semelhantes.
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Gragoatá
Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka
Iniciamos com a rodada sem o item vez e sem itens terminados em -r, cujos resultados podem ser comparados nas tabelas
4 e 5 (input .76 e .81, respectivamente):
TABELA 4 – Tipos de formação de plural: Irati (sem vez e -r)
Fatores
Apl./Total
%
PRel.
Itens terminados em -ão/-ões
59/75
79
.54
Itens terminados em -l
33/43
77
.51
3.320/4.365
76
.50
Plural duplo
15/20
75
.49
Itens terminados em -s/-z
15/22
68
.41
Itens terminados em -ão/-s
19/42
45
.21
3.463/4.570
76
Itens com plural regular
Total
Como se pode observar nessas tabelas, há resultados seme­
lhantes em alguns itens testados mas, em relação aos itens terminados em -ão/-ões (Irati .54; Pato Branco .41), aos itens terminados
em -l (Irati .51; Pato Branco .33) e aos itens terminados em -ão/-ãos
(Irati .21; Pato Branco .45) continua havendo certas discrepâncias
entre os pesos atribuídos às duas cidades.
TABELA 5 – Tipos de formação de plural: Pato Branco (sem vez e -r)
Fatores
Apl./Total
%
PRel.
Itens com plural regular
2.187/2.695
81
.50
Plural duplo
11/14
79
.46
Itens terminados em -ão/-s
24/31
77
.45
Itens terminados em -ão/-ões
32/43
74
.41
Itens terminados em -l
19/28
68
.33
2/3
67
.32
2.329/2.891
81
Itens terminados em -s/-z
Total
Face a esses números, e porque o plural regular do ditongo
nasal -ão (em -ãos) apresentou divergência de comportamento,
resolvemos rodar juntas as duas cidades (Input .78), em relação
ao GF tipos de formação de plural, sem o item vez e sem os itens
terminados em -ão/-s:
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Rev Gragoata n 29.indb 152
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O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná
TABELA 6 – Tipos de formação de plural: IRT/PBR
(sem vez e - ão/-s)
Fatores
Apl./Total
%
PRel.
Itens com plural regular
5.510/7.063
78
.50
Itens terminados em -ão/-ões
91/118
77
.49
Plural duplo
26/34
76
.48
Itens terminados em -r
136/181
75
.46
Itens terminados em -l
52/71
72
.44
Itens terminados em -s/-z
17/25
68
.38
5.832/7.492
78
Total
Observa-se que o item tipo de formação de plural não foi selecionado e houve favorecimento da marca de concordância para
a cidade de Pato Branco (.54) em relação a Irati (.48).
TABELA 7 – distribuição por cidade (sem vez e -ão/-s)
Fatores
Apl./Total
%
PRel.
Pato Branco
2.303/2.858
81
.54
Irati
3.531/4.637
76
.48
Total
5.834/7.495
78
Na nova rodada foram consideradas as duas cidades em
relação ao GF tipos de formação de plural (Input .78), sem o item
vez e amalgamando os itens terminados em -s/-z (mês/meses) e -r
(plural regular: cama/camas); ão/-ões e -ão/-s (pão/pães e mão/mãos) e o
plural das palavras terminadas em -r e -l (colher/colheres e animal/
animais).
TABELA 8 – Tipos de formação de plural com dados
amalgamados e sem vez
Fatores
Apl./Total
%
P.Rel.
plural regular e terminados em -s/-z
5.527/7.088
78
.50
Itens terminados em -ão/-ões e -ão/-s
134/191
70
.49
26/34
76
.48
Itens terminados em -r e -l
188/252
75
.46
Total
5.875/7.4
78
Plural duplo
Observamos que, em todos os casos, a CN fica no limite do
ponto neutro, com nítida tendência à queda. Essa talvez tenha sido
a razão de o GF não se ter mostrado estatisticamente relevante.
Assim, somente cidade é que foi selecionado, com mais possibilidade de aplicação da regra no PB.
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Gragoatá
Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka
TABELA 9 – distribuição por cidade dados amalgamados e sem vez
Fatores
Apl./Total
%
P.Rel.
Pato Branco
2.327/2.889
81
.54
Irati
3.550/4.679
76
.47
Total
5.877/7.568
78
A seguir, outra rodada considerando as duas cidades em
relação ao GF tipos de formação de plural, sem o item vez e sem plural
regular (Input .73).
TABELA 10 – Tipos de formação de plural (sem vez e plural regular)
Fatores
Apl./Total
%
PRel.
Itens terminados em -ão/-ões
91/118
77
.55
Plural duplo
26/34
76
.55
Itens terminados em -r
136/181
75
.53
Itens terminados em -l
52/71
73
.50
Itens terminados em -s/-z
17/25
68
.44
Itens terminados em -ão/-s
43/73
59
.35
365/502
73
Total
Nessa rodada, embora haja leve favorecimento para algumas
variantes, a significância foi de (.848) e nenhum dos fatores foi
selecionado (o stepdown confirmou a eliminação).
TABELA 11 – distribuição por cidade (sem vez e plural regular)
Fatores
Apl./Total
%
PRel.
Irati
227/311
73
.50
Pato Branco
140/194
72
.49
Total
367/505
73
Estaríamos, então, em face de um problema de falta de ortogonalidade? Ao se retirar plural regular, sobraram poucos dados.
No entanto, é quando se retira plural regular que a expectativa de
que Irati favoreceria a CN se concretiza, mesmo se o GF não se
tenha mostrado relevante do ponto de vista estatístico.
Para refinar a análise foram feitas duas outras rodadas,
via Crosstab ou tabulação cruzada, considerando todos os GFs
e selecionando alguns para testar o cruzamento. Um dos resultados que fica evidenciado é que quanto mais regular o item,
maior o percentual de concordância. No cruzamento efetuado
entre escolaridade e processos morfológicos de formação do plural, por
154
Rev Gragoata n 29.indb 154
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11/7/2011 19:21:44
O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná
exemplo, nos itens terminado em -ão/-ãos temos para falantes do
primário 62%; para os do ginásio 74% e para os do colegial 90%
de concordância (confirmando os pesos relativos das rodadas que
consideraram a variável escolaridade).
Já para os itens terminados em -ão/-ões, não se verifica tal
acréscimo de percentual de concordância, pois temos o primário
com 50%; o ginásio com 78% e o colegial com 54% de frequência
da concordância.
Nesse tipo de análise podem surgir algumas questões que
se originam principalmente da “necessidade analítica de comparação controlada” dos dados (cf. Guy e Zilles, 2007, p. 51), sendo
as principais: (i) a ortogonalidade dos grupos de fatores e (ii) a
assimetria da distribuição dos dados.
Ortogonalidade de grupos de fatores e assimetria
na distribuição dos dados
Para que se possa efetuar análises e comparações precisas
e confiáveis de dados, faz-se necessário que os grupos de fatores
sejam ortogonais, ou quase ortogonais. De acordo com Guy e Zilles
(2007, p. 52), para que tenhamos grupos de fatores ortogonais é
preciso que eles coocorram livremente e que não sejam sub- ou
supercategoriais uns dos outros. Em outras palavras, quando
não temos dados bem distribuídos por grupos de fatores temos
a ausência de ortogonalidade: todas as ocorrências de “y” são
também as ocorrências de “x”, e todas as ocorrências de “x” são
também as ocorrências de “y”.
Guy e Zilles ressaltam que para o programa VARBRUL não
importa se as não-ortogonalidades ocorrem por acaso ou por
impossibilidade estrutural. Isto porque “quaisquer que sejam
as origens do problema, nenhum procedimento analítico pode
parcializar efeitos separados para dois grupos de fatores que
apresentem esse tipo de distribuição dos dados” (GUY; ZILLES,
2007, p.53).
Nesse estudo, há dois casos de figura:
a) aparentemente, o plural regular (muito mais numeroso e,
portanto, mais suscetível de apresentar ortogonalidade)
está puxando para baixo a concordância em Irati, quando,
pelos dados passados no pente fino, os falantes apresentam maior frequência de concordância (inclusive no caso
do plural em -ões);
b) há restrições de ordem estrutural, uma vez que a formação de plural irregular é numericamente inferior à do
plural regular (veja-se o número de ocorrências de cada
um).
Essas divergências entre as duas cidades parecem apontar
para algum fator de ordem estrutural, que seria de aplicação difeNiterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010
Rev Gragoata n 29.indb 155
155
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Gragoatá
Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka
renciada da regra, por conta da ocupação diferenciada das duas
cidades. No entanto, não foi possível localizar exatamente onde
residiria essa diferença pois, além de tudo, no caso dos plurais
irregulares, caso específico de -ãos, o número de itens lexicais é
muito pequeno nas duas cidades (19 ocorrências – 9 de irmão/-s
– em Irati e 24 em Pato Branco – 17 de irmão/-s). Isso nos leva a
um questionamento: será que o número de palavras com plural
em -ãos é menor do que o das palavras cujo plural é -ões? Não
se dispõe – que seja do nosso conhecimento – de levantamento
estatístico dessa frequência que pudesse nos auxiliar na análise.
Além disso, vamos ver que, nas duas últimas grandes rodadas,
tanto o plural regular quanto o em -ões têm comportamento similar (desfavorecendo levemente a concordância, com .49 e .43, respectivamente). É no plural -ãos que se localiza a divergência, com
favorecimento da CN, em .76, talvez resultado daquele pequeno
número de itens e, portanto, de não-ortogonalidade dos dados. E
aí é que reside o impasse: Irati apresentaria maior concordância
nesse plural irregular (talvez marca de posição/avaliação social?)
e menor nos plurais regulares?
Guy e Zilles (2007) afirmam que nem sempre a ortogonalidade se dá em termos categóricos, isto porque ela também
pode ocorrer como uma propriedade escalar ou relativa. Nesse
sentido, a assimetria tem relação direta com a questão de como
os dados se distribuem entre as categorias nos diferentes grupos
de fatores. “O caso analítico ideal é o de uma distribuição equilibrada com todas as células contendo números iguais (...). Com uma
distribuição equilibrada, obtemos resultados analíticos robustos
e significativos (...), mas quando começamos a ter distribuições
altamente sobrepostas, todos esses resultados começam a cair”
(GUY; ZILLES, 2007, p. 58-59).
Passamos, então, a considerar como caso de sobreposição
(acavalamento) de grupos de fatores dois dos GFs também utilizados em outros trabalhos sobre CN: ordem linear dos elementos
dentro do sintagma nominal e posição em relação ao núcleo: isso estaria
representando uma espécie de burla para o programa, pois ambas
as variáveis estariam testando coisas semelhantes, contrariando
o princípio da independência dos fatores, proposta pelo pacote
Varbrul.
Além disso, parece que a ordem linear não testa a regra,
visto que o núcleo pode estar em todas as posições consideradas
no GF e, assim, não se pode localizar o que está à esquerda do
núcleo. Se esse GF é selecionado em algumas rodadas, é porque
ele tem ortogonalidade (tem uma boa distribuição do número de
ocorrências em cada variante) e, portanto, é lido pelo programa
como estatisticamente relevante. Qualitativamente, ele não acrescenta nada à análise.
Realizou-se, então, uma dobradinha de rodadas (Input .78
em ambas): em cada uma delas eliminou-se um dos GFs acima
156
Rev Gragoata n 29.indb 156
Niterói, n. 29, p. 147-159, 2. sem. 2010
11/7/2011 19:21:45
O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná
mencionados, para se verificar se, quando um não está presente,
o outro tem comportamento diferenciado. Dito e feito: quando
se alterna o padrão dos GFs, alguns dos outros GFs passam a ter
comportamento aleatório: é o caso de classes de palavras, que é selecionado em primeiro lugar quando se mantém o GF ordem linear
dos constituintes do SN. Quando se exclui ordem linear e se inclui
posição em relação ao núcleo, classes de palavras cai para a penúltima
posição, antes de animacidade:
Tabela 12 – Rodadas com ordem linear (sem posição)
e sem ordem linear (com posição) – GF classes de palavras
Com ordem linear – 1º. selecionada
Fatores
Apl./Total
Indefinidos
518/523
Determinantes
%
Com posição em relação ao núcleo 7º
P.R Fatores
Apl./Total
%
P.R.
99%
.83
Indefinidos
518/523
99%
.87
2707/2753
98%
.73
Determinantes
2707/2753
98%
.79
Possessivos
234/246
95%
.73
Possessivos
234/246
95%
.57
Adjetivos
306/422
73%
.35
Adjetivos
306/422
73%
.35
Quantificadores
101/111
91%
.34
Quantificadores
101/111
91%
.44
Substantivos
2003/3497
57%
.27
Substantivos
2003/3497
57%
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Isso demonstra que também classes de palavras está interagindo com ordem linear, uma vez que determinantes, possessivos e
indefinidos sempre ocorrem nas primeiras posições – favorecedoras
da regra; adjetivos, quantificadores e substantivos podem aparecer
nas últimas posições, o que desfavorece a CN.
No entanto, os outros GFs (escolaridade; grau dos substantivos
e adjetivos; idade; cidade; morfologia e animacidade dos substantivos)
permanecem nas mesmas posições, o que garante a confiabilidade
dos resultados e a certeza de que a sua distribuição e seleção não
ficam alteradas por conta do tropeço do acavalamento daqueles
dois GFs. Esse equívoco se reflete somente na seleção dos dois GFs,
evidenciando que ordem linear não é relevante para a concordância
nominal, uma vez que, quando está presente nas variáveis, só é
selecionado em terceiro lugar. Quando posição em relação ao núcleo
está entre as variáveis, é selecionado em primeiríssimo lugar,
demonstrando, como em outras pesquisas sobre o assunto, ser este
o mais proeminente no grupo de fatores estruturais, na variação
da concordância nominal do PB.
Quanto aos GFs sociais, vemos que idade é selecionado
depois de escolaridade, apresentando resultado semelhante ao de
outras regiões, ou seja, os mais jovens estão realizando menos
concordância (.43) que os mais velhos (.55), podendo se caracterizar
o fenômeno como de mudança em curso.
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Odete Pereira da Silva Menon, Edson Domingos Fagundes e Loremi Loregian-Penka
Escolaridade é selecionado em segundo lugar, nos dois casos.
Podemos inferir, então, que a passagem pela escola, no tocante à
concordância nominal, surte algum efeito. Não que acreditemos
que a escola seja altamente competente: trata-se da ação, mais
intensificada pela escola, sobre o efeito social de que se reveste
o uso da não-concordância. De fato, diferentemente de outros
fenômenos de variação do PB (como o de nós/a gente, p. ex.), há um
estigma linguístico-social gritante que marca negativamente as
pessoas que não produzem concordância nominal (e também a
verbal, cf. Naro & Scherre, 1999) no Brasil. Esta sempre é atribuída
a pessoas de baixa renda e de pouca ou nenhuma escolaridade.
Nos nossos dados, os informantes de colegial não vão além de 64
na aplicação da regra.
À guisa de conclusão...
Dessa forma, se não se conseguiu localizar exatamente o
problema da inversão de resultados da CN entre Irati e Pato Branco
(apesar de vislumbrarmos, pelas múltiplas rodadas do Varb2000 e
dos crosstabs realizadas, algum resultado estranho em Irati – mais
conservador?) para caracterizá-lo como resultante de ocupação
étnica diferenciada, pudemos transitar pelos efeitos causados por
alguns GFs, quando retirados das rodadas gerais. Esses efeitos
seriam o resultado de uma sobreposição (involuntária?) de GFs
e que, até agora, não havia sido questionada em outros trabalhos
sobre a CN no Brasil.
Abstract
This paper aimed at thinking over the issue of
selecting groups of factors (GFs) for the Varbrul
package after a discrepancy occurred during the
rounds with two cities of the state of Paraná
– Irati and Pato Branco – regarding nominal
agreement analysis. One of the structural GFs –
types of plural formation – was selected during
the Irati round but not in Pato Branco, although
the sample was prepared according to a single
methodology (that of the Varsul Project) and with
exactly the same GFs, both linguistic and social.
That is why the question was raised on whether
the analysis should consider exclusively the GF
selection by Varbrul when the sample objective as in this case – was to investigate if and to what
extent the distinct ethnic occupation (especially in
southern Brazil) could interfere with phenomena
of the Portuguese language in Brazil.
Keywords: Quantitative sociolinguistics, factors
group selection, nominal agreement in Irati and
Pato Branco, VARSUL-PR.
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O que fazer com grupos de fatores não selecionados? O caso da concordância nominal no Paraná
Referências
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Opções metodológicas no estudo de
fenômenos variáveis relacionados à
primeira pessoa do discurso no plural
Cássio Florêncio Rubio
Sebastião Carlos Leite Gonçalves
Resumo
Neste trabalho, apresentamos metodologia para o
tratamento conjunto de três fenômenos variáveis
do português brasileiro: (i) codificação de primeira
pessoa do discurso no plural pelas formas nós e
a gente, (ii) concordância verbal com o pronome nós e (iii) concordância verbal com a forma
pronominal a gente. Amparada teoricamente na
Sociolinguística laboviana (LABOV, 1966, 1972),
a metodologia é aplicada a amostras do português
falado no interior paulista (GONÇALVES, 2007).
Os resultados apontam que fatores de natureza
distinta prevalecem na escolha das formas alternantes de cada fenômeno: na concordância verbal
com a gente, prevalecem fatores linguísticos; na
concordância verbal com nós, fatores sociais, e
no uso de nós/a gente, tanto fatores linguísticos
quanto sociais.
Palavras-chave: concordância verbal, primeira
pessoa, nós, a gente.
Gragoatá
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Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves
Introdução
No português brasileiro (doravante, PB), já está mais do
que provado que a concordância verbal (CV, daqui em diante)
de primeira e de terceira pessoa do plural (1PP e 3PP, daqui em
diante, respectivamente) é regra variável. Normalmente, as pesquisas sobre o tema se concentram mais na investigação da 3PP
do que da 1PP.
Grande parte dos trabalhos sobre 1PP se concentra na variação de CV entre o pronome nós e a forma verbal a ele relacionada,
como encontramos em Bortoni-Ricardo (1985), que trata da fala
de migrantes da zona rural na cidade satélite de Brazlândia (DF),
em Assis (1988), que descreve brevemente o sistema de CV do
dialeto da Ilha do Desterro (SC), em Rodrigues (1987), que trata do
português popular da periferia de São Paulo, incluindo também
a 3PP, em Camacho (1993), que investiga aspectos funcionais e
estruturais da CV no português culto registrado nas amostras do
Projeto NURC de São Paulo, em Zilles, Maya e Silva (2000), que
abordam a CV em Panambi e Porto Alegre (RS), e em Lucchesi et
al. (2009), que pesquisam amostras do dialeto da Helvécia (BA).
A alternância entre nós e a gente também já foi atestada no
PB por diversos autores, dentre os quais destacamos Omena
(1986, 1996, 2003), para o dialeto carioca, Lopes (1998, 1999), para a
fala culta do Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador, Zilles (2004,
2005, 2007), que tratou da gramaticalização e da avaliação social
da forma a gente na fala e na escrita de diferentes variedades do
território brasileiro.
A variação na concordância com a forma pronominal a
gente, apesar de pouco investigada, já se revela fenômeno comprovadamente variável, segundo estudos de Costa et al. (2001), na
comparação entre PB e PE, e de Pereira (2003), sobre concordância
nominal entre predicativos e a gente em posição de sujeito.
A análise conjunta da variação na concordância de 1PP e da
alternância entre as formas nós e a gente foi proposta nos trabalhos
de Naro et al. (1999), de Vianna (2006), ambos em amostras de
fala do Rio de Janeiro, e de Coelho (2006), para a língua falada na
periferia paulistana. O primeiro estudo tratou do uso variável da
flexão verbal de 1PP e 3PS junto às formas nós e a gente, em quatro
gerações de falantes. O segundo teve como objetivo principal a
análise de estruturas predicativas que complementam verbos
em dados de fala e escrita. Coelho (2006) apresentou resultados
que evidenciam relação direta entre o fenômeno da CV e o da
alternância entre nós e a gente, além de atestar que a aplicação de
desinência verbal de 1PP junto à última forma é pouco frequente.
Com base nas pesquisas ora mencionadas, neste trabalho,
propomos a apresentação, discussão e experimentação de opções
metodológicas para o tratamento conjunto da variação entre nós
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Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural
e a gente em posição de sujeito e da variação na CV em relação ao
uso dessas formas pronominais.
Variação e mudança em torno da expressão
de primeira pessoa do discurso
O primeiro ponto a ser discutido nesta seção relaciona-se à
distinção entre pessoa do discurso e pessoa gramatical. Como já
apontado por Benveniste (1995), a noção de pessoa do discurso
é própria somente de eu/tu e suas formas correlatas, porque são
essas as únicas que “se prendem ao próprio processo de enunciação” (p. 278). Ao contrário das formas de expressão de pessoa, “há
enunciados de discurso, que (...) escapam à condição de pessoa,
isto é, remetem não a eles mesmos, mas a uma situação “objetiva”.
É o domínio daquilo a que chamamos a ‘terceira pessoa’” (p. 282).
No português padrão há correspondência exata entre pessoa
do discurso e pessoa gramatical. Para a primeira pessoa, o falante,
existe um pronome de primeira pessoa gramatical, eu, com flexão
verbal própria. Para as demais pessoas, tanto no singular quanto
no plural, a mesma univocidade se verifica. Porém, nas variedades não padrão do PB, a inclusão de novas formas de menção
à segunda pessoa (singular/plural) e à 1PP reelaborou o quadro
pronominal e de CV, levando à falta de total correspondência entre
mesmas pessoa e flexão verbal. É o caso das formas inovadoras
você e a gente, que, ao assumirem valores discursivos de segunda
pessoa (singular/plural) e 1PP, respectivamente, retêm flexão verbal de terceira pessoa. (OMENA e BRAGA, 1996; MENON, 1996;
LOPES, 1999, 2003; ZILLES, 2005).
Não é recente o reconhecimento da variação entre as formas
nós e a gente. A menção ao uso de a gente como forma “popularesca”
de valor pronominal é evidenciada já em gramáticas do início do
século XX, como se verifica em Nunes (1919).
A parte de pessoa, ocorre, frequentemente, sobretudo na fala
popular, o nome gente, que, como aquele, costuma neste caso
tomar o género, pedido pelo sexo da pessoa a que se refere.
No povo o vocábulo gente tem valor colectivo, valendo pelos
pronomes eu e tu ou ele, nos casos em que a língua culta usa nós.
(NUNES apud PEREIRA, 2003, p. 13)
Mesmo entre linguistas e filólogos da língua portuguesa
não é consensual o reconhecimento da forma a gente como pronominal. Perini aponta que formas como o senhor, a senhora, a
gente “seriam ‘pronomes pessoais’ no sentido de que se referem
ao locutor; mas gramaticalmente não diferem dos outros SNs”
(PERINI, 2010, p. 115). Há, segundo o autor, distinção entre o item
a gente e os pronomes pessoais, o que faz com que ele esteja mais
próximo de “outros SNs” do que de pronomes. Para Neves (2000, p.
470), entretanto, a gente pode ocorrer como pronome pessoal para
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referência à 1PP ou para referência genérica a todas as pessoas do
discurso, funcionando como forma de indeterminação do sujeito.
Ainda que outros sintagmas nominais (o pessoal, o cara, o cidadão)
sejam empregados com mesma função na linguagem coloquial,
“seu estatuto não tem identificação com a classe dos pronomes
pessoais como o sintagma A GENTE tem”.
Segundo Hopper (1991), pelo princípio da estratificação, novas
“camadas” emergem em um domínio funcional, sem que formas antigas sejam substituídas imediatamente, proporcionando
coexistência de camadas novas e antigas no mesmo domínio, que
codificam funções semelhantes ou idênticas e compõem diferentes
variantes estilísticas. É o que mostram Omena e Braga (1996) sobre
a gramaticalização da forma a gente, que passa a coexistir com
nós, deixando, gramaticalmente, de ser forma substantiva para
integrar o sistema de pronomes pessoais, e constituindo assim
claro caso de variação, captado pela estratificação, como postula
Hopper (1991).
Segundo a tradição gramatical, a flexão verbal de 1PP é
requerida nos casos em que figuram como sujeito da oração: (i)
pronome 1PP, (ii) formas compostas que possam representar a pessoa do falante em conjunto com outros seres (eu + SN ou pronome)
e (iii) uma categoria vazia com referência anafórica ao sujeito.
Rodrigues (1987), em estudo da CV variável com o pronome
nós, na fala de favelados de São Paulo, obteve percentual de 53%
de aplicação de flexão de 1PP contra 47% de 3PS. Zilles et al. (2000),
ao analisarem falantes com escolaridade fundamental e média de
Panambi e de Porto Alegre (RS), obtiveram frequência geral de
87% de aplicação de desinência de 1PP. No estudo de Lucchesi et
al. (2009) sobre a fala da comunidade afro-brasileira de Helvécia,
houve 18% de frequência de pluralização verbal em contextos de
1PP (ou seja, frequência de 82% de flexão de 3PS).
No tocante à CV com a forma a gente, Teyssier (1989, p. 243)
alude ao uso muito comum de a gente na linguagem familiar, normalmente com flexão de 3PS. Contudo, a forma pode ocorrer com
verbos em 1PP, uso percebido como incorreto pelos falantes. Além
das flexões de 3PS e de 1PP, Vianna (2006) observa, em amostras
do PB, do estado do Rio de Janeiro, também a combinação de a
gente com flexão verbal de 3PP (a gente estão), padrão menos comum
no PB, em relação às outras duas alternantes.
Naro et al. (1999) resumem os fenômenos de alternância
pronominal e de variação na CV de 1PP da seguinte forma:
Em português padrão o sujeito de primeira pessoa do plural
é nós e sua forma verbal correspondente é feita com a flexão
gramatical –mos. Um exemplo típico é nós falamos. Entretanto,
há uma alternativa para o sujeito pronominal de primeira pessoa do plural: a gente, que deriva de um sintagma nominal com
a mesma forma e significa as pessoas. Na linguagem padrão o
verbo usado com a gente recebe desinência de terceira pessoa do
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singular, com terminação zero. Um típico exemplo é a gente fala.
Conquanto, o uso do pronome sujeito, com certa frequência,
não é obrigatório, e, na linguagem informal, a desinência –mos
é omitida com nós e usada com a gente, a despeito do papel
categorial e ao contrário do padrão. As formas nós falamos e a
gente fala são padrão; nós fala e a gente falamos são não-padrão.
(NARO et al.,1999, p. 201, tradução nossa)
Procedimentos para o tratamento conjunto
de três fenômenos variáveis
Para testar os procedimentos metodológicos de tratamento
conjunto dos três fenômenos identificados anteriormente, em
nossa pesquisa, utilizamos 76 amostras de fala do Banco de Dados
Iboruna (GONÇALVES, 2007), provenientes de informantes da
região Noroeste do Estado de São Paulo, estratificados em cinco
faixas etárias (7 a 15; 16 a 25; 26 a 35; 36 a 55 e mais de 55 anos),
quatro níveis de escolarização (1º. e 2º. Ciclos do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior) e gêneros masculino e
feminino, distribuídos de forma equânime por entre as variantes
sociais.
Para a análise conjunta dos fenômenos em variação, selecionamos ocorrências em que se verifica a expressão de 1PP do
discurso tanto na forma pronominal de sujeito explícito nós/a gente
quanto na flexão verbal referente às formas nós/a gente expressas
em contexto anterior. Segue em (1) a combinação dessas possibilidades, quais sejam: (i) nós com verbo em 3PS (1a); (ii) nós com
verbo em 1PP (1b); (iii) a gente com verbo em 3PS (1c); (iv) a gente
com verbo em 1PP (1d); (vii) forma verbal de 3PS com referente
explícito nós ou a gente em oração anterior ((1e) e (1f)); (vii) forma
verbal de 1PP com referente explícito nós ou a gente em oração
anterior ((1g) e (1h)).1
(1)a. aí o moleque fa/ acho que foi embora né? nós foi
embora pra casa…(AC-015, l. 30)
b. nove e meia da noite... nós fomos pro apartamento e
num tinha nada (AC-082, l. 55)
c. desde junho do ano pasSAdo a gente namorava escondido... (AC-22, l. 5)
As indicações nos parênteses que seguem as
ocorrências exemplificativas referem-se, respectivamente: ao tipo de
amostra (AC, Amostra
Comunidade), ao número que identifica o perfil
social do informante e à
linha em que o dado se
situa na transcrição.
1
d. quando a gente chegamo(s)… do serviço ela pegô(u)
e ligô(u) pra colega dela (AC-016, l. 40)
e. a gente vai:: compra sorvete e fica na praci::nha
conversan::(d)o... (AC-034, l. 23)
f. Nós fugimo(s) casamo(s)... teve uma vida muito difícil
(AC-059, l. 17)
g. Inf.: a gente ficô(u) lá::... quinze dias... fomos de
ô::nibus chegamo(s) lá tudo (AC-024, l. 70)
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Não foram consideradas na análise da CV ocorrências de
sujeito desinencial sem referente explícito em contexto anterior,
como mostrado em (2a), por se constituírem casos em que não
se admite variação entre formas de 1PP e 3PS no único elemento
indicativo de pessoa do discurso, como mostra o confronto de
(2a) e (2b).
(2)a. Inf.:é muito difícil começar... começamo(s) a fazê(r)
barzi::nhos começamo(s) a fazê(r) casamen::tos festas...
e aí foi crescen(d)o... e e e e fomo(s) convidan(d)o mais
músicos e se tornô(u) uma banda (AC-029, l. 02)
b. é muito difícil começar... começou em em::... antes da
banda começou a fazê(r) barzi::nhos começou a fazê(r)
casamen::tos festas...
Para a análise da alternância entre nós e a gente, descartamos
sujeitos desinenciais (ocultos) e consideramos somente ocorrências
de sujeitos pronominais. Também foram descartadas ocorrências
em que a gente figura como SN, como em (3a), porque tais casos
não constituem alternantes da forma de 1PP, nós, como mostra (3b).
(3)a. e sempre que eu ia lá... a gente daquele lugar ficava olhando... (AC-092, l. 222)
b. e sempre que eu ia lá... nós daquele lugar ficava olhando...
Por constituir objeto de análise a variação entre nós e a
gente, desconsideramos ocorrências de sujeitos compostos pela
forma pronominal eu e outras estruturas (SNs e pronomes), que,
sabidamente, apresentam variação na CV ((4a) e (4b)). A inclusão
dessas estruturas inviabilizaria a consideração dos sujeitos do tipo
oculto ou desinencial na análise da CV, os quais foram considerados,
conforme menção prévia, em relação a seu referente explicitado
em orações anteriores.
(4)a. eu:: meu tio:: meu pri::mo e um colega nosso tava
sentado ali na frente de casa... (AC-046, l. 389)
b. graças a Deus eu e meu marido... construímos uma família
(AC-083, l. 195)
Contextos linguísticos variáveis
Dentre as variáveis linguísticas que já se mostraram relevantes para a investigação da CV de 1PP e da variação entre nós e
a gente, apenas três servem à análise conjunta dos três fenômenos:
grau de determinação do sujeito, saliência fônica verbal e tempo e modo
verbal. Sobre elas passamos a discorrer.
Diversos trabalhos apontam grau de determinação do referente
sujeito como importante fator na alternância entre nós e a gente
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Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural
(OMENA, 1986; MACHADO, 1995; LOPES, 1999; VIANNA, 2006,
dentre outros). Segundo Buescu (1961, apud PEREIRA, 2003), o
pronome pessoal nós possui maior concretude, porque é usado
para se referir a um número mais completo ou determinado de
pessoas, enquanto a gente é usado para delimitar categorias, isto
é, para referir-se a um número não limitado.
Em nossa investigação, o controle do grau de determinação
do referente sujeito foi feito mediante os seguintes fatores: (i)
referência genérica e indefinida, quando o pronome remete a categoria generalizada e indeterminada de indivíduos ((5a) e (5b)); (ii)
referência genérica e definida, quando o pronome remete a categoria
generalizada, mas determinada de indivíduos ((5c) e (5d)); (iii)
referência específica e definida, quando o pronome remete a categoria específica e determinada de indivíduos, em que o falante se
inclui junto a outro referente também específico; a recuperação
do referente é feita com exatidão no contexto posterior ou anterior
((5e) e (5f)).
(5)a. a gente tem que se preocupá(r) SIM com o meio ambiente... (AC-051-550)
b. então Deus sabe o que faz e nós num sabe o que fala
né?... (AC-090, l. 60)
c. então tem um secante de cobalto... que a gente utiliza
lá no serviço (AC-086-380)
d. todos nós que somos membros... nós temo(s) pintores...
nós temos encanadores (AC-106, l. 455)
e. eu e minha esposa não saia de lá... a gente passeava lá na
pracinha... (AC-111-34)
f. aí nós entrô(u) na casa do moleque esperô(u) um tempinho
lá aí depois nós foi embora (AC-015, l. 10)
Nos trabalhos pesquisados não há menção da influência
do grau de determinação do sujeito sobre a CV com nós e com a
gente, contudo insistimos na consideração dessa variável para os
três fenômenos, motivados pela hipótese de que referentes mais
específicos e definidos, nos quais o falante nitidamente se inclui,
influenciariam a aplicação da desinência de 1PP, independentemente do sujeito pronominal.
No estudo da concordância verbal e nominal, saliência fônica
é fator relevante na retenção de marcas de pluralidade no sujeito,
no verbo e no predicativo. Os resultados demonstram que distintos
graus de diferenciação entre formas em competição no processo
de variação têm importância fundamental na seleção da forma
preferida. Naro et al. (1999) comprovam que maiores níveis de
saliência entre as formas verbais levam a maiores frequências de
uso da forma de 1PP, seja com sujeito nós, seja com sujeito a gente.
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Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves
À medida que o nível de saliência aumenta, a frequência de aplicação da desinência de 1PP também aumenta.
Considerando a síncope da vogal postônica em palavras
proparoxítonas (LEMLE, 1977), Rodrigues (1987) e Coelho (2006)
comprovam que os falantes de suas amostras tendem a evitar
formas verbais proparoxítonas, que ocorrem com 1PP em alguns
tempos verbais. Os resultados comprovam, nesses contextos, aplicação quase categórica da desinência de 3PS junto do pronome
nós (RODRIGUES, 1987) ou a preferência acentuada pela forma a
gente, com desinência de 3PS (COELHO, 2006).
Com base no exposto em relação à saliência fônica, propomos
o controle dos seguintes contextos: (i) saliência esdrúxula: quando a
forma de 1PP é proparoxítona, e a oposição X/X-mos não é tônica
nas duas formas ((6a) e (6b)); (ii) saliência máxima: quando ocorre
mudança no radical e a oposição X/X-mos é tônica em uma ou
duas formas ((6c) e (6d));; (iii) saliência média: quando ocorre uma
semivogal na forma de 3PS que não ocorre na forma de 1PP e a
oposição X/X-mos é tônica nas duas formas ((6e) e (6f)); (iv) saliência
mínima: quando a oposição X/X-mos é tônica em uma ou nas duas
formas, mas não há mudança no radical ((6g) e (6h)).
(6)a. a gente obedecia (obedecíamos) o pai e a mãe antigamente né? (AC-122, l. 10)
b. dava incentivo... pra que nós pudéssemos (pudesse)
participar de entida::des (AC-114. l. 915)
c. graças a Deus a gente fez (fizemos) uma casinha boa...
né? (AC-112, l. 250)
d. agora como... nós somos (é) em cinco sócios (AC-132,
l. 200)
e. a gente fomos (foi) tudo mundo pra chácara... catei
meus neto (AC-132, l. 80)
f. aí nós mudou (mudamos) de lá (AC-015, l. 165)
g. aí a gente joga (jogamos) ela num centrífuga que é um
lugar que a gente faz o metal (AC-045, l. 290)
h. de repente nós tá (tamos) tudo ali esperan(d)o o corpo...
(AC-105, l. 100)
A opção pela separação dos fatores saliência esdrúxula e saliência máxima se deve à hipótese, observada em trabalhos anteriores,
de que esses contextos apresentam comportamento dessemelhante
em relação aos fenômenos investigados.
Vários são os estudos que investigam a influência da expressão modo-temporal do verbo no emprego das formas nós e a
gente e do tipo de CV que elas desencadeiam. Segundo Fernandes
e Gorski (1986), em relação à CV, a desinência –mos de 1PP vem
adquirindo função de morfema de Pretérito, em oposição ao mor168
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Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural
fema Ø de Presente, o que leva à expectativa de que o pronome
nós tenha seu uso mais vinculado a verbos no Pretérito enquanto a
gente, a verbos no Presente. Omena (1986) e Lopes (1998) mostram
que Pretérito Imperfeito, Presente e formas nominais tendem a
favorecer o uso de a gente, enquanto Futuro e Pretérito Perfeito,
o uso de nós. A gente estaria relacionado a tempos menos definidos, como o Presente (que pode expressar ação presente, futura,
tempo indefinido, atemporalidade e habitualidade) e o Pretérito
Imperfeito, que denota ação passada inconclusa. Tempos verbais
de valores mais definidos, como o Pretérito Perfeito (que denota
ação passada conclusa), estariam mais ligados ao emprego do
pronome nós (VIANNA, 2006).
Em relação à CV de 1PP, Naro et al. (1999) comprovaram que
formas de Pretérito relacionadas aos sujeitos pronominais nós e a
gente tendem a apresentar com maior frequência desinências de
1PP do que formas no Presente.
Em nossa investigação, esse grupo de fatores compõe-se das
seguintes variantes: (i) Presente do Indicativo e do Subjuntivo (7a);
(ii) Pretérito Imperfeito do Indicativo e do Subjuntivo (7b); (iii)
Pretérito Perfeito do Indicativo (7c); (iv) Futuro do Presente, do Pretérito do Indicativo e do Subjuntivo e outros tempos verbais (7d).2
(7)a. a gente tira o dentinho da onde a gente pingô(u) tirô(u)
o dentinho (AC-045, l. 225)
b. a gente trabalhava viajando né? sempre viajan(d)o né?
(AC-045, 220)
c. aí de de lá nós pegamos ela e levamos pra U.T.I (AC-105,
l. 20)
d. amanhã nós estaremos in(d)o pra lá ficaremos lá mais
uns dez dias (AC-151, l. 190)
Ainda que optemos pela investigação da variável linguística
tempo e modo verbal, é importante mencionar a correlação notável
entre ela e o grupo de fatores saliência fônica verbal. Verbos regulares
do Presente do Indicativo possuem nível mínimo de saliência
entre 3PS e 1PP. A maioria dos verbos no Pretérito Perfeito da
amostra tem nível médio de saliência e verbos no Pretérito Imperfeito do Indicativo e Subjuntivo associam-se a casos de saliência
esdrúxula.
Variáveis sociais consideradas
Devido à baixa frequência e ao comportamento semelhante do
futuro e de alguns tempos verbais, optamos por
amalgamar variantes.
2
Diferentemente de variáveis linguísticas que restringem o
tratamento conjunto dos três fenômenos aqui investigados, variáveis sociais estão livres de restrição e suas inclusões no presente
estudo já estão de antemão justificadas pela própria importância
de considerá-las em todo e qualquer estudo sociolinguístico.
Assim, sob as premissas já estabelecidas para as variáveis sociais
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Gragoatá
Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves
mais tradicionalmente consideradas nos estudos variacionistas,
controlamos aqui sexo/gênero, idade e escolaridade.
Sobre o uso alternante de nós e a gente, é esperado que a
forma inovadora esteja mais presente na fala dos mais novos do
que na fala dos mais idosos, a exemplo do que constatam Omena
e Braga (1996).
Em relação à CV, alguns trabalhos evidenciam não haver
aumento ou diminuição gradativa da aplicação de marcas relacionada à faixa etária (NARO; SCHERRE, 1998; RUBIO, 2008),
não sendo, portanto, previsíveis os resultados para essa variável,
por não haver, no PB, um movimento em direção única, seja de
aquisição, seja de perda de marcas de plural, ao longo dos anos, o
que Naro e Scherre (1991) denominaram fluxos e contrafluxos dos
fenômenos sociolinguísticos do PB.
Para a variável escolaridade, a hipótese inicial é de que o
aumento da escolaridade do informante e, consequentemente, o
maior contato com a norma culta presente no ambiente escolar
acarretem maior emprego da CV tal como ela é prescrita e do uso
de nós em detrimento de a gente.
Seguindo princípios gerais da atuação da variável gênero
em fenômenos variáveis (LABOV, 1990), a expectativa é de que
mulheres, em relação à alternância pronominal, sejam mais
propensas ao uso da forma inovadora, comprovadamente pouco
estigmatizada no PB (ZILLES, 2004). Para a CV, a hipótese é de
que homens apresentem maior propensão de desvio à norma,
com menores frequências de aplicação da flexão de 1PP com o
pronome nós e da flexão de 3PS com o pronome a gente.
O último passo metodológico a ser esclarecido diz respeito
à quantificação dos dados, pois ainda que os fatores considerados sejam comuns a todos os fenômenos, os dados não foram
submetidos a uma única rodada estatística, já que, como se sabe,
as variáveis dependentes possuem natureza distinta. Uma delas
ligada ao uso dos pronomes de 1PP nós e a gente em posição de
sujeito e as outras duas ligadas à aplicação da desinência de 1PP
e 3PS em formas verbais de 1PP do discurso.
Para a quantificação da variação na CV, os dados referentes
às formas a gente e nós foram rodados separadamente, com a
inclusão das ocorrências com sujeitos ocultos ou desinenciais. A
decisão sobre a inclusão dos verbos como formas vinculadas ao
pronome a gente ou ao pronome nós foi pautada pela presença
formal do pronome em orações anteriores, como mostram as
ocorrências (8).
(8)a. a gente ficô(u) uns seis dias... mas foi muito bom até
aproveitamo(s) bastante (AC-042, l. 15)
b. nós fica mais sozinho aqui né?... e lá em cima fica um na
guarita... e durante o dia fica DOIS... à noite éh:: ficamo(s)
sozinho também (AC-121, l. 225)
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Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural
Ao procedermos à rodada de verificação da frequência de
aplicação de CV nos verbos, consideramos as especificidades de
cada pronome. O pronome nós, influenciado pela tradição normativa, normalmente se vincula com maior frequência a desinências
de 1PP; o pronome a gente, por se constituir em forma gramaticalizada de um SN, normalmente se liga a verbos com desinência
de 3PS (NARO et al.,1999). Dessa forma, os pesos relativos para os
verbos ligados ao pronome nós foram extraídos em relação à aplicação da forma de 1PP. Para a forma pronominal a gente, os pesos
relativos foram extraídos em relação à aplicação da forma de 3PS.
Análise dos resultados
Ainda que resultados normalmente constituam-se o ponto
principal da maioria dos trabalhos, conforme vimos argumentando até aqui, nosso intuito é a apresentação de uma proposta
de consideração conjunta de fenômenos variáveis do PB, o que
rende discussão mais ampla do que normalmente se apresenta.
Os resultados gerais da tabela 1 comprovam o predomínio
da forma a gente sobre nós, evidenciado, sobretudo, pelo percentual
quase três vezes maior de frequência da primeira forma pronominal, gramaticalizada, em relação à segunda, conservadora.
Tab. 1: Frequência de uso de nós e a gente.
Nós
A gente
Total
25,4% (573)
74,6% (1682)
100% (2255)
Em relação aos resultados da frequência de aplicação das
desinências de 1PP e 3PS junto aos dois tipos de sujeito, a forma
pronominal nós mostrou-se mais suscetível à variação, com 79,5%
de flexão verbal de 1PP contra 20,5% de 3PS. A frequência de
aplicação de flexão verbal de 3PS com sujeitos a gente prevaleceu
acentuadamente sobre a frequência de aplicação de 1PP (94,2%
de verbos em 3PS), revelando forte tendência à não pluralização
verbal com a gente. A tabela 2 apresenta os resultados para a CV
com nós e a gente.
Tab. 2: Flexão de 1PP e 3PS com nós e a gente em posição
de sujeito (explícito ou desinencial).
Nós
A gente
1PP
3PS
1PP
3PS
79,5% (551/693)
20,5% (142/693)
5,8% (112/1943)
94,2% (1831/1943)
Os percentuais apresentados em relação à alternância das
formas pronominais e em relação à CV variável de 1PP confirmam
a tendência, já evidenciada em outras variedades, de redução do
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Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves
paradigma flexional do PB, com a diminuição gradativa do uso
da desinência de 1PP, como vemos na tabela 3.
Tab. 3: Frequência de uso de flexão de 1PP e 3PS
Verbos com desinência
de 1PP
Verbos com
desinência de 3PS
Total
25,2% (663)
(551-Nós/112-A gente)
74,8% (1.973)
(142-Nós/1.831-A gente)
100% (2.636)
(693-Nós/1.943-A gente)
A soma das amostras com desinência de 1PP, incluindo
os casos em que a forma pronominal a gente exerce função de
sujeito, representa percentual de apenas 25,2% do total, enquanto
o percentual de uso de 3PS junto de nós e a gente é de 74,8%. A seguir, passamos aos resultados da atuação das variáveis
linguísticas e sociais sobre os fenômenos aqui considerados. O
quadro 1 apresenta os fatores selecionados para cada fenômeno
e a ordem de seleção indicada pelo programa Goldvarb.
Quadro 1:
Ordem de seleção dos fatores considerados para os fenômenos
Fenômeno
Nós x A gente
Nós + 1PP/3PS
A gente + 1PP/3PS
Saliência fônica
verbal
1º
2º
1º
Grau de
determinação
do suj.
4º
não
selecionado
2º
Tempo e modo
verbal
5º
não
selecionado
3º
Escolaridade
3º
1º
não selecionado
Faixa etária
2º
3º
4º
Gênero
6º
4º
não selecionado
sociais
Linguísticos
Fatores
Com base nos resultados do quadro 1, cabem as seguintes
observações iniciais: (i) Na alternância nós x a gente, tanto as variáveis linguísticas quanto as variáveis sociais são relevantes; (ii)
A CV com nós em posição de sujeito é mais suscetível à influência
de fatores sociais do que de linguísticos, já que somente o fator
linguístico saliência fônica verbal foi selecionado; (iii) Na CV com
o sujeito a gente, há maior influência de fatores linguísticos do
que de sociais, o que se verifica pela seleção apenas da variável
social faixa etária, última em ordem de relevância; (iv) As variáveis
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Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural
saliência fônica e faixa etária são relevantes para os três fenômenos,
embora não na mesma ordem de importância.
Passando à análise da atuação de cada um dos fatores,
iniciemos pelos resultados expostos na tabela 4 para a variável
saliência fônica.
Tab. 4:
Frequência e PR dos três fenômenos em relação à saliência fônica
Fenômeno
Nós
A gente
Nós + 1PP
peso relativo
peso relativo
peso relativo
peso relativo
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
Esdrúxula
(proparoxítonas)
0,497
24 (105/438)
0,503
76 (333/438)
0,096
0,924
59,1 (68/115)
99,7 (358/359)
Mínima
0,353
12,1 (109/900)
0,647
87,9 (791/900)
0,271
0,522
76 (76/112)
97,1 (883/909)
Média
0,642
38,9 (309/795)
0,358
61,1 (486/795)
0,680
0,200
86,9 (357/411)
88,2 (518/587)
Máxima
0,669
41 (50/122)
0,331
59 (72/122)
0,689
0,135
90,9 (50/55)
81,8 (72/88)
A gente + 3PS
Saliência fônica
O peso relativo (PR, doravante) dos níveis médio e máximo
de saliência fônica, em relação à aplicação de 1PP junto de nós, foi
de 0,680 e 0,689, respectivamente, demonstrando que esses fatores
atuam positivamente no uso de nós. Em relação à CV com a gente,
os fatores saliência média e máxima apresentaram os menores PRs
para aplicação de 3PS (0,200 e 0,135), o que, por análise complementar, sugere que eles atuam positivamente na aplicação da flexão de
1PP junto dessa forma pronominal. Esses resultados confirmam
a primeira hipótese sobre a atuação da saliência fônica: maiores
níveis de saliência fônica propiciam maior aplicação de 1PP tanto
para a gente quanto para nós (NARO et al., 1999).
Os PRs em relação à alternância nós/a gente revelam favorecimento de a gente à presença de formas verbais de saliência esdrúxula
e mínima (0,503 e 0,647), e de nós junto a formas verbais de saliência
média e máxima (0,642 e 0,669). Ainda sobre a aplicação de 1PP e
3PS, é possível observar forte tendência do falante a evitar formas
proparoxítonas (verbo em 1PP) com nós (59,1% e PR de 0,096, para
aplicação de 1PP) e com a gente (99,7% e PR de 0,924, para aplicação
de 3PS). Confirma-se assim a segunda hipótese da atuação da
variável saliência fônica: o falante tende a evitar formas verbais
proparoxítonas, recorrendo a 3PS para nós e para a gente (RODRIGUES, 1987; COELHO, 2006).
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Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves
Concernente à variável grau de determinação do sujeito, as
expectativas são duas: (i) a forma nós é usada para sujeitos de referência específica e definida, enquanto a gente é usada para sujeitos
de referência indefinida; (ii) para variação de CV, a hipótese a
ser investigada é de que referentes mais específicos e definidos
influenciem a aplicação de desinência de 1PP. Segue a tabela com
os resultados para essa variável.
Tab. 5: Frequência e PR dos três fenômenos em relação
ao grau de determinação do sujeito
Fenômeno
Grau
Nós
A gente
Nós + 1PP
A gente + 3PS
peso relativo
peso relativo
peso relativo
peso relativo
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
Genérico
e indefinido
0,396
12,7 (27/213)
0,604
87,3 (186/213)
não selecionado
0,830
85,7 (24/28)
99,1 (577/582)
Genérico
e definido
0,443
23 (168/732)
0,557
77 (564/732)
não selecionado
0,445
81,6 (199/244)
97,5 (193/198)
Específico
e definido
0,511
28,9 (378/1310)
0,489
71,1(932/1310)
não selecionado
0,320
74,1 (346/467)
91,2 (1061/1163)
de det.do suj.
Os resultados para alternância pronominal confirmam a
hipótese de que a forma a gente tende a ser mais usada com sujeitos
de referência genérica e indefinida (PRs de 0,604 e 0,557), enquanto
a forma nós tende a codificar com maior frequência referentes
mais específicos e definidos (PR de 0,511).
A expectativa de que graus diferentes de referência aos
sujeitos influenciariam também a CV foi confirmada parcialmente, pois o grupo foi selecionado como relevante apenas para
a CV com o pronome a gente. A hipótese de que sujeitos mais
específicos e definidos exerceriam influência positiva em relação
à aplicação de desinência de 1PP se concretizou, já que, dentre
as ocorrências de CV com a gente, a variável referente específico e
definido apresentou PR baixo para a combinação com 3PS (91,2% e
0,320, respectivamente). Para o sujeito pronominal nós, a variável
não foi selecionada, contudo a maior frequência de aplicação de
1PP é para sujeitos genéricos e indefinidos.
A categoria variável tempo e modo verbal tem se mostrado
relevante em diversos estudos sobre a alternância entre as formas
pronominais nós e a gente, bem como na variação de CV de 1PP.
As principais hipóteses já confirmadas em outros trabalhos, a
serem investigadas nesta pesquisa são: (i) formas mais marcadas
tendem a favorecer o uso de nós, e formas menos marcadas, o uso
de a gente; (ii) Nós é mais usado diante de Pretérito Perfeito, a gente,
diante de Presente, Pretérito Imperfeito e formas nominais; (iii)
formas de Pretérito são mais frequentes com 1PP do que formas
de Presente, tanto com sujeito pronominal nós, quanto com a gente.
Adiante, segue a tabela para esse fator.
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Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural
Tab. 6:
Frequência e PR dos três fenômenosem relação ao tempo-modo verbal
Nós
Fenômeno
Tempo-
A gente
Nós + 1PP
A gente + 3PS
peso relativo
peso relativo
peso relativo
peso relativo
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
PRES.IND +
PRES.SUBJ
0,422
16,6 (171/1032)
0,578
83,4 (861/1032)
não selecionado
0,579
80,4 (144/179)
98,3 (967/984)
PRET.IMP.IND. +
PRET.IMP.SUBJ.
0,502
24,3 (102/419)
0,498
75,4 (317/419)
não selecionado
0,883
59,6 (68/114)
99,7 (344/345)
PRET. PERF.IND.
0,640
42,5 (288/677)
0,360
57,5 (389/677)
não selecionado
0,085
86,9 (338/389)
81 (402/94)
FORMAS FUT. +
OUTROS
0,470
19,4 (12/127)
0,530
80,6 (115/127)
não selecionado
0,788
66,7 (10/15)
99,2 (128/129)
modo verbal
Ao compararmos os PRs da tabela 6, é possível notar que o
Pretérito Perfeito favorece o uso de nós (0,640), enquanto o Presente tende a favorecer o uso de a gente (0,578). Para o Pretérito
Imperfeito, os resultados mostram equilíbrio entre o uso de nós
e a gente (0,502 e 0,498, respectivamente). O futuro em conjunto
com outros tempos e modos favorece o uso do pronome a gente.
A expectativa de que formas de Pretérito apresentariam
maior frequência de aplicação de 1PP foi confirmada apenas
para ocorrências com sujeito a gente no Pretérito Perfeito, já que
essa categoria apresentou menor percentual e PR em relação à
aplicação de desinência de 3PS (81% e 0,085). Verbos no Presente
influenciam negativamente a aplicação de 1PP, pois apresentaram
alta frequência de aplicação de desinência de 3PS (98,3 % e 0,579
de PR).
Para a CV com nós, não houve seleção da variável tempo e
modo verbal, contudo maiores percentuais de 1PP ocorrem com
Pretérito Perfeito e Presente e menores, com Pretérito Imperfeito,
Futuro e outros tempos, conforme previam as expectativas.
Os resultados para Pretérito Imperfeito são justificados pela
consideração de que essas ocorrências são, em sua totalidade, casos
de saliência esdrúxula, em que a forma de 1PP é proparoxítona,
contextos em que os falantes tendem a evitar o uso da forma, seja
o sujeito nós, seja a gente. Os percentuais e os PRs confirmam a
tendência: junto a nós, a frequência de aplicação de 1PP é a mais
baixa (59,6%), e junto a a gente, a aplicação de 3PS é quase categórica
(99,7% e 0,883 de PR).
Faixa etária foi a única variável social selecionada pelo programa Goldvarb para os três fenômenos. Os resultados alcançados
seguem na tabela 7.
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Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves
Tab. 7: Frequência e PR dos três fenômenos em relação à faixa etária
Nós
A gente
Nós + 1PP
A gente + 3PS
peso relativo
peso relativo
peso relativo
peso relativo
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
7 a 15 anos
0,593
26 (98/377)
0,407
74 (279/377)
0,143
0,721
51,2 (62/121)
96 (334/348)
16 a 25 anos
0,282
12,4 (56/452)
0,718
87,6 (396/452)
0,416
0,608
84 (63/75)
95,6 (435/455)
26 a 35 anos
0,443
22,3 (102/458)
0,557
77,7 (356/458)
0,299
0,303
78 (92/118)
90 (368/409)
36 a 55 anos
0,682
39,6 (210/530)
0,318
60,4 (320/530)
0,767
0,385
91,1 (235/258)
94,3 (347/368)
0,573
0,489
81,8 (99/121)
95,2 (347/363)
Fenômeno
Faixa etária
mais
de 55 anos
0,490
24,4 (107/438)
0,510
75,6 (331/438)
Em referência à alternância pronominal, não se verifica
comportamento que possa refletir mudança em direção a uma
ou outra variante. Contrariando expectativa geral, falantes entre
7 e 15 anos apresentaram maior uso da forma nós e os de mais
idade, leve tendência ao uso de a gente (PRs de 0,593 e 0,510, respectivamente). Para as demais faixas, o comportamento não foge
às expectativas; há aumento gradativo de uso de a gente, da faixa
de maior para a de menor idade.
Sobre a influência da variável faixa etária na CV, constatamse as mesmas tendências exibidas para o uso alternante de nós e
a gente, ou seja, os resultados não demonstram movimento único
em relação à maior ou menor aplicação de marcas de 1PP nos
verbos. Destaquem-se apenas as faixas etárias mais elevadas,
com tendência ao uso de 1PP com nós (com PRs de 0,767 e 0,573,
respectivamente), e para as duas faixas mais jovens, que demonstraram maior propensão à aplicação de 3PS com a forma a gente
(7 a 15 anos, 0,721 e 16 a 25 anos, 0,608).
Em observação horizontal da tabela, é possível constatar a
propensão dos mais jovens a evitar o uso de 1PP, disposição mais
evidente na faixa de 7 a 15 anos, que, ainda que exiba tendência
ao uso da forma nós (PR de 0,593), manifestou grande inclinação
à aplicação de 3PS com esse mesmo pronome (PR de 0,143). Essa
faixa foi também a que exibiu maior PR (0,721) em relação a aplicação de 3PS com a gente.
Embora a CV tenha sido considerada em relação à variante
padrão, com PRs verificados para aplicação de 1PP para nós e de
3PS para a gente, é possível notar, pelas duas últimas colunas da
tabela 7, um comportamento oposto em relação ao uso da forma
padrão. Faixas etárias com tendência ao desvio do padrão em
um fenômeno de CV são as mais conservadoras em outro, forte
indício de que os fenômenos possuem diferentes avaliações na
comunidade.
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Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural
No que se refere à atuação da escolaridade, seguem na tabela
8 os resultados.
Tabela 8: Frequência e PR dos fenômenos em relação à escolaridade
Nós
Fenômeno
A gente
Nós + 1PP
A gente + 3PS
peso relativo
peso relativo
peso relativo
peso relativo
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
% (nº de oc./total)
1º ciclo Ens.
Fundamental
0,561
32,9 (148/450)
0,439
67,1 (302/450)
0,161
não selecionado
69,4 (129/186)
94,6 (333/352)
2º ciclo Ens.
Fundamental
0,464
21,8 (126/577)
0,536
78,2 (451/577)
0,245
não selecionado
Escolaridade
57,4 (89/155)
92,5 (491/531)
0,685
não selecionado
Ensino Médio
0,380
17,2 (114/663)
0,620
82,8 (549/663)
92,8 (128/138)
95,3 (603/633)
Ensino Superior
0,628
32,7 (185/565)
0,372
67,3 (380/565)
0,852
não selecionado
95,8 (205/214)
94,6 (404/427)
Observando os resultados da alternância pronominal, é
possível, preliminarmente, concluir que o comportamento de
informantes com mínima escolarização (PR de 0,561, para uso de
nós) aproxima-se muito do de informantes com o máximo de escolarização (PR de 0,628, para uso de nós), comprovação frustrante
em relação às expectativas para a influência do fator escolaridade
em fenômenos variáveis do PB.
Todavia, ao alargarmos o escopo de análise para incluir
os demais resultados da tabela, constamos que a possível seme­
lhança de comportamento das faixas extremas de escolaridade
não se repete na variação de CV. Os valores apontam gradativo
aumento na aplicação de marcas de 1PP para o sujeito nós, na
medida em que a escolaridade do falante aumenta (PR 0,161;
0,245; 0,685 e 0,852), revelando que falantes de Ensino Médio e
Superior primam fortemente pelo uso de 1PP, enquanto os de 1º e
2º ciclos do Ensino Fundamental têm maior tendência à aplicação
de desinências de 3PS.
Esses resultados corroboram a visão de Lucchesi (2009), que
afirma haver uma polarização linguística no Brasil, com gramáticas diferentes em concorrência. Não obstante faixas extremas
possuírem semelhança no uso pronominal, têm comportamento
regulado por gramáticas diferentes. Para a faixa menos escolarizada, há apagamento sistemático das marcas redundantes de
plural nos verbos, fenômeno também verificado em relação à
concordância nominal. Já os mais escolarizados tendem a aproximar sua fala da norma-padrão, que prescreve, nesse caso, o uso
da desinência de 1PP.
Para a CV com a gente, a variável escolaridade não se mostrou
relevante, o que pode ser comprovado, inclusive, pelos percentuais
apresentados. Discrepâncias entre faixas escolares normalmente
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Gragoatá
Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves
revelam avaliação social da comunidade em relação às variáveis
do fenômeno. Falantes com maior escolaridade tendem a evitar
formas estigmatizadas e a privilegiar formas prestigiadas na
comunidade. A não seleção dessa variável, aliada ao comportamento uniforme dos informantes, revela que o fenômeno não sofre
interferência do nível de escolaridade dos falantes.3
Por fim, seguem, na tabela 9, os resultados para a variável
gênero.
Tabela 9: Frequência e PR dos fenômenos em relação ao gênero
Nós
peso relativo
% (nº de oc./total)
A gente
peso relativo
% (nº de oc./total)
Nós + 1PP
peso relativo
% (nº de oc./total)
A gente + 3PS
peso relativo
% (nº de oc./total)
Masculino
0,545
28 (269/960)
0,455
72 (691/960)
0,429
72,1 (238/330)
não selecionado
93,8 (751/801)
Feminino
0,467
23,5 (304/1295)
0,533
76,5 (991/1295)
0,564
86,2 (313/363)
não selecionado
94,6 (1080/1142)
Fenômeno
Gênero
Os resultados confirmam a hipótese de que as mulheres
privilegiam a forma inovadora a gente (PR de 0,533), e os homens,
a forma conservadora nós (PR de 0,545). Do mesmo modo, para
a CV com nós, as mulheres tendem mais à aplicação de marcas
de plural (86,2 % e PR de 0,564) do que os homens (72,1% e PR de
0,429), o que comprova serem elas mais sensíveis ao significado
social das variáveis linguísticas, evitando formas socialmente
desprestigiadas, a exemplo de falantes mais escolarizados.
A variável gênero não foi relevante para o fenômeno variável
de CV com a gente, (93,8% para homens e 94,6% para mulheres).
Conclusão
Esses resultados consideram conjuntamente
os contextos de sujeito
explícito e de sujeito
nulo. Se considerados
separadamente, seria
possível detectar diferenças na atuação da
escolaridade sobre a CV
com a gente, principalmente nos contextos de
sujeito explícito, como
em a gente vamos.
3
178
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A consideração dos fatores linguísticos e sociais propostos
na metodologia deste trabalho permitiu detectar a pertinência
deles na análise conjunta de três fenômenos variáveis do PB: o
uso variável de nós e a gente, a CV com nós e a CV com a gente.
A forte influência dos fatores sociais escolaridade, idade e
gênero sobre a CV com nós leva à conclusão de que determinadas faixas sociais têm maior consciência do fenômeno do que
outras. Para a CV com a gente, a seleção apenas da variável idade
evidencia que o falante é menos consciente do fenômeno, sendo
este regulado mais por fatores linguísticos do que sociais. Em
relação à alternância entre as formas pronominais nós e a gente,
evidenciamos a influência simultânea tanto dos fatores sociais
(escolaridade, idade e gênero) quanto dos linguísticos (saliência fônica,
grau de determinação do sujeito e tempo e modo verbal).
Essas constatações tornaram possível a determinação dos
fenômenos propensos a influências de fatores sociais e de suas
variantes estigmatizadas e prestigiadas, já que alguns segmentos
sociais, como o mais escolarizado e o do gênero feminino, tendem
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Opções metodológicas no estudo de fenômenos variáveis relacionados à primeira pessoa do discurso no plural
a evitar variantes estigmatizadas na comunidade, no caso em
questão, a aplicação de 3PS com sujeito nós.
Concluímos este trabalho com a convicção de que a metodologia proposta, ainda que restringida por variáveis comuns aos
três fenômenos investigados, fornece uma visão mais ampla do
uso efetivo da 1PP do discurso na variedade falada no noroeste
paulista, metodologia que se mostra aplicável a outras variedades do PB.
Abstract
This paper presents methodology for an integrated
treatment of three variable phenomena in Brazilian portuguese: (i) encoding of first-person plural
into the forms nós (we) and a gente (the people),
(ii) verbal agreement with the pronoun nós and
(iii) verbal agreement with the pronominal form a
gente. Based on the theoretical framework provided by Labovian sociolinguistics (LABOV, 1966,
1972), the methodology is applied to a sample of
Brazilian portuguese spoken in the countryside
of São Paulo State (GONÇALVES, 2007). The
results indicate that distinct factors predominate
in the choice of the alternative forms of each phenomenon: in the verbal agreement with a gente,
linguistic factors are the most prominent; in the
verbal agreement with nós, social factors are the
most salient; and in the use of nós/a gente both
linguistic and social factors prevail.
Keywords: verbal agreement, first person, nós
(we), a gente (the people).
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180
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Rev Gragoata n 29.indb 181
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Gragoatá
Cássio Florêncio Rubio e Sebastião Carlos Leite Gonçalves
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Rev Gragoata n 29.indb 182
Niterói, n. 29, p. 161-182, 2. sem. 2010
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Estatuto da forma cê:
clítico ou palavra?
Liliane Pereira Barbosa
Resumo
O fato de investigações considerarem cê um clítico
pronominal sintático e a constatação da possibilidade de esta forma aparecer em posições em que
um clítico não aparece fizeram-nos questionar o
seu caráter. Assim, baseados em dados extraídos
da literatura atestada e publicada, além de construções do dialeto do Norte de Minas, constatamos, fundamentados na teoria da Cliticização e na
Fonologia Prosódica, que cê se comporta não como
clítico, mas como palavra plena. Ademais, propusemos, ancorados, ainda, na Fonologia Prosódica,
que a atonicidade percebida em cê está no nível da
frase e não da palavra. Nesse viés, a sua ausência
de tonicidade ocorre em razão da possibilidade de
alternância de proeminência acentual no nível da
frase entoacional, que, por se relacionar a aspectos
semânticos, sintáticos e de desempenho do falante, determina nó forte ou fraco a cê, ou seja, sua
posição forte ou fraca na sentença.
Palavras-chave: forma cê; clítico; palavra fonológica; Fonologia Prosódica; Cliticização.
Gragoatá
Rev Gragoata n 29.indb 183
Niterói, n. 29, p. 183-203, 2. sem. 2010
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Gragoatá
Liliane Pereira Barbosa
introdução
Considerando a grande produtividade, atualmente, entre os
falantes do Português do Brasil – PB –, das formas pronominais
alternantes você/ocê e cê, aliada ao fato de a gramática normativa
não se pronunciar sobre essa última forma, pois a considera não
padrão (estigmatizada), e a análise proposta por Vitral na qual
afirma que o cê é clítico sintático, entre as variáveis citadas, determinamos a forma cê como nosso objeto de estudo e nos propomos
a fazer um recorte de seu uso no tempo atual e investigar seu
estatuto no PB.
Pelo fato de a posição do clítico em Português Europeu (PE)
ser sensível à informação prosódica, segundo Frota e Vigário
(1996), e de supormos o mesmo para o Português Brasileiro, estabelecemos a seguinte hipótese: assim como alta frequência de
ocorrência, velocidade de fala (rápida) e estilo mais informal (fala
espontânea) favorecem o processo de redução de itens (BYBEE,
2001) – fato que ocorreu com o pronome você, que se reduziu a cê –,
estes dois últimos aspectos, acrescidos de informação semântica,
não favorecem alternância do padrão acentual de cê em constituinte prosódico superior à w (palavra fonológica)? Ou seja, o cê
não seria uma palavra plena (e, portanto, não clítico, conforme
proposta de Vitral) que surge em contextos e nível prosódico
específicos, ora como elemento fraco, ora forte?
A partir do uso do cê em estilo informal pelos falantes do
PB (e com velocidade de fala rápida) pretendemos: a) analisar se a
forma reduzida cê se comporta nesta língua como clítico pronominal (sintático e/ou fonológico), dentro do quadro da Cliticização;
b) conferir o status de palavra plena cê, tanto dentro do aparato da
Cliticização quanto da Fonologia Prosódica; c) propor uma análise
alternativa para a atonicidade percebida em cê fundamentada
em pressupostos teóricos da Fonologia Prosódica; d) contribuir
com uma reflexão sobre os clíticos no PB, enfocando os aspectos
sintáticos, morfológicos e fonológicos destas formas, uma vez
que constituem tema controverso entre os estudiosos que por
elas se interessam, e e) dialogar com outros textos que abordam
o mesmo assunto. Em suma, nossa proposta é demonstrar que cê
não é clítico sintático, mas palavra plena.
1 revisita à literatura
Como nosso objeto de estudo é um pronome, nesta seção
revisitamos essa categoria gramatical e os pressupostos das propostas teóricas nas quais nos ancoramos.
184
Rev Gragoata n 29.indb 184
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Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?
1.1 Sobre os pronomes
A literatura atesta que a Língua Portuguesa do Brasil possui um elenco de pronomes pessoais clíticos em distribuição
complementar com suas formas plenas correspondentes (algumas dessas formas plenas, ao longo dos tempos, passaram por
reenquadramentos), cuja distribuição é bem diferente do PE, pois
enquanto em PE as regras de posição de próclise e ênclise são bem
definidas, em PB há prevalência da posição proclítica (PEREIRA,
1981). Dados também confirmam que o PB não segue a Lei de
Wackernagel2 e nem a de Tobler Mussafia3, pois há no PB clíticos
iniciando sentenças, distribuição sintática não permitida em PE.
Ambos os dialetos do Português Brasileiro e do Europeu
possuem padrões bem definidos quanto à posição ocupada pelos
clíticos. Alguns autores como Duarte (1986) atualmente defendem
a ideia de que os clíticos acusativos em PB estão sendo anulados,
optando-se, em seu lugar, pela variante OD nulo, NP lexical ou
pronome tônico.
1.2 Cliticização
L e i Wa c k e r n a g e l :
Ja k o b Wa c k e r n a g e l
observou que em líng uas indo-européias
os elementos clíticos
geralmente aparecem
em seg u nda posição
nas orações, embora,
primeiramente, tenha
ident i f icado cl ít ico s
como elementos tipicamente sem acento,
formas prosodicamente
dependentes.
3
L e i d e To b l e r
Mussa f ia: pronomes
átonos não podem
ocupar a posição inicial
em sentenças.
4
Adotamos o termo
mista para denominar
esta terceira abordagem
pelo motivo dos estudiosos, por nós selecionados para fundamentar
o trabalho, divergirem
quanto à análise dos
clíticos. Spencer, Zwicky
e Klavans optam pelo
prisma morfossintático-fonológico e Galves e
Abaurre, pelo prisma
sintático-fonológico.
2
Clítico é um termo que denomina as formas que se asseme­
lham a palavras, mas que não podem aparecer sozinhas em um
enunciado normal, sendo estruturalmente dependentes fonológica
ou sintaticamente de uma palavra vizinha (hospedeiro). Assim
sendo, a cliticização expressa a ligação do clítico com um elemento
hospedeiro, a qual será, nesta investigação, observada segundo
abordagens sintáticas, fonológicas e/ou morfológicas, já que elas
auxiliarão na definição do status atual da forma cê.
A descrição dos clíticos sintáticos, segundo a literatura
transformacional, nos indicará suas propriedades, mas destacamos também os enfoques de Kayne (1975) e Sportiche (1992; 1993;
1995) por considerarmos que suas posições corroboram as de nossa
proposta, razão de surgirem destacados. Para a análise fonológica
utilizamos o enfoque de Nespor e Vogel (1986) e, por fim, para uma
análise mista4, adotamos autores como Spencer (1991), Klavans
(1982; 1985), Zwicky (1985), Galves e Abaurre (1996). No quadro
2), a seguir, apresentamos uma síntese dessas abordagens.
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Gragoatá
Liliane Pereira Barbosa
QUADRO 2 - Síntese das propostas para clíticos
Propostas
Abordagem sintática
Literatura
transformacional
Kayne
Objetos clíticos estão em distribuição complementar com objetos NPs plenos; clítico em
Romance é adjungido ao V lexical e o complexo todo contém categoria V, podendo ser
elevado de sua posição inicial.
Análises divergentes para a categoria vazia surgida com a elevação:
a) Aoun: clítico ocupa posição não argumental; b) Borer: clítico assume posição argumental do NP, mas não absorve Caso; c) Jaeggli: clítico assume posição argumental do
NP, absorve Caso e cv deve ser pro.
Sua análise para os clíticos é a mesma da literatura transformacional. Propõe testes
sintáticos para atestar o caráter clítico de uma forma.
Este autor não opta pela análise de que clítico substitui NP (DP), nem por movimento
de clíticos ou que clíticos são gerados em posição artificial.
Sportiche
Para ele, clíticos ocorrem adjungidos ao elemento mais alto da oração que contém XP
e clíticos pronominais de sujeito não são clíticos sintáticos, apenas clíticos fonológicos,
que assumem a posição de núcleo de NP e não de DP.
Abordagem fonológica
Nespor e Vogel
Clíticos nunca ocorrem sozinhos e não podem receber acento contrastivo. As autoras
corroboram três testes fonológicos de Zwicky.
Abordagem mista
Spencer
Clíticos atam-se fonologicamente a hospedeiros, são incapazes de receber acento (exceto
grego) e sua posição depende da acentuação da sentença ou fatores prosódicos similares.
Atam-se mais a um elemento prosódico que a um sintático, podendo ser de dois tipos:
a) aqueles que parecem ter a mesma função morfossintática que palavras plenas; b)
aqueles que não parecem corresponder a formas plenas.
Klavans
Zwicky
Propõe uma teoria unificada – parametrização dos clíticos: P1(dominância): inicial/
final; P2(precedência): antes/depois; P3(liaison): próclise/ênclise (P1 e P2 são parâmetros sintáticos e P3 fonológico).
Clíticos podem ter um hospedeiro fonológico e um sintático independentes. Domínio
da Cliticização: S ou N’ (exceto para línguas românicas cujo domínio é V).
Considera dois clíticos:
-clítico simples: forma ditada pela frase fonológica;
-clítico especial: forma alomorfe separada da forma plena, que não é derivada de
processos de redução de frase fonológica.
Propõe testes fonológicos e sintáticos para se distinguir clítico de palavra independente.
Galves e Abaurre
Distinguem clíticos sintáticos e fonológicos, sendo estes mais amplos que aqueles
e não totalmente condicionados pela sintaxe. Clíticos sintáticos são núcleos de sintagmas e os fonológicos são parte integrante da palavra em que se ancoram.
Pelo exposto no quadro 2, percebe-se que há abordagens
para cliticização que sugerem que tal fenômeno é, provavelmente,
analisado como um fenômeno sintático, mas algumas reforçam a
186
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Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?
necessidade de uma operação fonológica e morfológica para seu
desvendamento.
1.3 Fonologia prosódica
5
Refere-se à parte dos
estudos da língua que
analisa o processo por
meio do qual os itens se
tornam mais gramaticais através dos tempos,
focalizando como formas e construções gramaticais surgem e como
são usadas (HOPPER e
TRAUGOTT, 1993).
6
Segundo Hopper e
Traugott apud Vitral e
Ramos (1999), a etapa
de cliticização apresenta
duas propriedades: perda de autonomia lexical
(dependência contextual) e significação mais
geral.
Desenvolvida como uma reação contra os conceitos de
fonologia gerativa padrão, que tinha como características uma
organização linear de segmentos e um conjunto de regras cujos
domínios de aplicação eram definidos segundo uma interface
sintaxe e fonologia (sistema fonológico homogêneo), a Fonologia
Prosódica – teoria da interação entre fonologia e os demais componentes da gramática (sintaxe, morfologia e semântica) – propõe
que a representação mental da fala é dividida hierarquicamente
em chunks organizados e cada constituinte prosódico serve de
domínio de aplicação de regras fonológicas específicas, além de
obter diferentes tipos de informação fonológica e não fonológica,
não necessariamente isomórficos, na definição de seus domínios.
Esse modelo apregoa que alguns fenômenos fonológicos
dependem de sua relação sintática, morfológica e/ou semântica
para operarem e lidarem com regras de mapeamento que agrupam os elementos terminais de um nó, criando unidades que
não necessariamente estão em uma relação um-a-um com os
constituintes da hierarquia morfossintática. Tais unidades constituem os domínios de aplicação de regras fonológicas que fazem
uso de diferentes tipos de noções gramaticais em cada nível da
hierarquia.
São sete os constituintes da hierarquia prosódica, segundo
Nespor e Vogel (1986), contudo nos referimos, em nossa pesquisa,
apenas à w, C, f e I, cujas regras de mapeamento incorporam
informações morfológicas (w), sintáticas (C, f e I) e semânticas (I).
Essa relação entre constituintes e informação linguística
se dá em razão de diferentes tipos de fenômenos se referirem à
hierarquia prosódica, que inclui não apenas processos fonológicos, mas também fenômenos rítmicos, duracionais, entoacionais
e de proeminência, podendo haver discordância entre estrutura
fonológica e morfossintática, isto é, enquanto a estrutura sintática
é fixa, a estrutura fonológica pode variar de acordo com fatores
como velocidade de fala, extensão (tamanho) dos constituintes
prosódicos.
2 PROPOSTA DA FORMA CÊ COMO CLÍTICO
A proposta de Vitral (1996), fundamentada na noção de gramaticalização5, é de que cê comporta-se como clítico pronominal
sintático com especialização na posição sintática de sujeito préverbal. Esse estudioso defende que cê passa por uma das etapas
desse processo de gramaticalização: a cliticização6. Segundo sua
abordagem, um elemento lexical que passa por esse processo de
gramaticalização apresenta perda de expressividade e enfraque-
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cimento da forma fonológica e do significado lexical, podendo
tornar-se cada vez mais gramatical. Vitral (1996) analisa a forma
cê sob esse aspecto em razão de, segundo as transformações
ocorridas ao longo do tempo, ter sido um pronome lexical (Vossa
Mercê) e de hoje se apresentar como forma gramatical.
(1)item lexical: Vossa Mercê > item gramatical: você > clítico:
cê > afixo flexional7
A proposta de Vitral de que cê é clítico fundamenta-se em
vários dados analisados. Esse estudioso alega que a forma cê: a)
especializou-se na posição de sujeito (pré-verbal), não ocorrendo
em posições deslocadas (sentenças topicalizadas, focalizadas,
sujeito posposto), nem sozinha em enunciados ou coordenada e
modificada; b) é clítico sintático nominativo em estágio inicial,
razão de surgir interpolada, ou seja, haver elementos lexicais
entre a forma cê e o verbo; c) caracteriza redução fonológica de
você, que se tornou um item mais gramatical com o passar dos
tempos, sofrendo enfraquecimento do significado lexical da forma
fonológica; d) possui características fonéticas como duração e
intensidade, de acordo com seus dados, muito próximas de se.
3 ANÁLISE DE CÊ COMO CLÍTICO
Há formas intermediárias entre as etapas
descritas em (48): vosmecê entre a 1ª e a 2ª etapas;
ocê entre a 2ª e 3ª etapas
e essas etapas descritas
foram extraídas de Vitral (1996).
8
Para esse propósito, foi tomada parte do
corpus do trabalho variacionista de COELHO
(1999), a quem agradecemos, como material
investigativo, desconsiderando-se suas formas
combinadas (docê/ducê
(de+ocê), procê/prucê/
pucê (pra+ocê), socê/sucê
(se+ocê), concê/cuncê/cucê
(com+ocê), quecê/quicê
(que+cê), socê (só+ocê)) e
vocêis.
9
A tabela 2 de Coelho
(1999, p. 56) deixa evidente essa preferência
si ntát ica das formas
você/ocê/cê.
7
188
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Vitral (2001b) observa que, numa abordagem tradicional, a
atonicidade desses elementos [clíticos] condiciona a distribuição sintática
deles, mas isso viria como uma consequência de serem átonos, que seria
assim, o traço definitório desses itens. Assim, anteriormente à discussão de sua análise, reavaliamos o comportamento fonológico de
cê descrito por Coelho (1999)8, que incluiu, em sua análise, formas
combinadas, as quais optamos por desconsiderar.
Coelho (1999), em análise, concluiu que a forma cê ocorre,
preferencialmente, antecedida de pausa, enquanto as demais formas, de vogal; verificou, também, que cê ocupa preferencialmente
a posição sintática de sujeito (assim como as demais formas).
3.1 A forma cê é [um] clítico?
Nesta subseção, avaliamos cada argumento de Vitral, que
propõe ser o cê clítico nominativo sintático com a finalidade de
lhe conferir status e para comprovar ou refutar essa análise.
Primeiro Argumento: especialização sintática da forma cê
na posição de sujeito (pré-verbal).
Relacionamos esse argumento de especialização sintática da
forma cê na posição de sujeito (pré-verbal) à análise variacionista
de Coelho (1999) que constata ser a forma cê mais frequente em
função de sujeito.
Porém, em Coelho (1999), fica também evidente que as formas você/ocê preferem essa mesma posição9; logo, esta não é uma
característica exclusiva da forma cê, uma vez que é compartilhada
por suas outras variáveis. Além disso, esse ambiente sintático
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Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?
também pode ser ocupado por palavras lexicais. Isso quer dizer
que o fato de cê ocupar tipicamente esta posição sintática não é
suficiente para classificá-la como clítico, ou seja, não se poderia
considerar que cê se alocou na posição de sujeito para se realizar
como clítico (posição propícia a clítico para se agregar ao verbo),
já que palavras plenas podem ocupar este mesmo lugar.
Mesmo assim, buscamos confirmar a especialização proposta por Vitral, mas constatamos no Norte de Minas Gerais a
ocorrência de cê em ambientes sintáticos não considerados (e até
mesmo tidos como agramaticais) por Vitral (2002), ambientes estes
característicos de elementos fortes. Há na região citada emprego
da forma de cê:
a) em posição pós-verbal:
(1) Eu vi cê na festa ontem posposto ao verbo:
(2) Foi cê o culpado de tudo.
preposto:
(3)Cê, ele não viu nascer.
d) coordenado com constituinte similar:
(4)Cê e Pedro podem votar contra, eu não me importo.
e) modificado por advérbio:
5) Apenas cê sabe como tudo aconteceu, mais ninguém.
f) tópico:
(6) Cês, eu acho que cês não passaram, não.
g) foco contrastivo:
(7) - Maria, nós vamos comprar esse livro.
- Cê vai, eu não. Eu já o conheço e não gosto na-
dinha dele.
h) resposta:
(8) - Pode deixar que vou resolver isso pra você.
- Cê??? (risos)
Esses ambientes variados de ocorrência de cê corroboram a
análise de que é forma forte.
Segundo Argumento: a forma cê é um clítico sintático em
estágio inicial no processo de cliticização.
Segundo Vitral (2002), a forma cê é um novo clítico que trilha
os estágios iniciais do processo de cliticização, assemelhando-se
aos clíticos do período medieval, pois, nesse período, era recorrente a não estrita adjacência entre clítico e hospedeiro e, embora
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os clíticos atuais não compartilhem essa característica – exigem
adjacência estrita ao seu elemento hospedeiro –, o mesmo ocorre
com a forma cê, já que entre esse elemento e o verbo, seu suposto
hospedeiro, vários elementos podem ser intercalados.
Acontece que 1) a opção pela não interpolação não era marginal no português medieval (VITRAL, 2002). Há, mesmo em
contextos favoráveis à interpolação, opção pela não interpolação,
conforme se pode comprovar abaixo:
(9)
como aqui se comtem. (1522)
(10) que não se Laura. (1510)
No caso da forma cê, contudo, sabemos que, quando há
elementos interpolados, esta opcionalidade não existe:
(11) Cê já foi ao mercado?
*Já cê foi ao mercado?
Verificamos que sua interpolação é obrigatória (11), inclusive
já mencionada por Vitral (2002), e atinge até mesmo o nível oracional (12), em que se constata um grande distanciamento entre
cê e o verbo do qual é o argumento externo:
(12) Cê, que é filho de Deus, saberá o que fazer quando
chegar a hora.
*Que é filho de Deus, cê saberá o que fazer quando
chegar a hora.
Comparamos o fato de cê não admitir não interpolação, em
ambientes em que há elementos interpolados, com o fato de os
clíticos medievais admitirem essa não interpolação (embora preferissem a interpolação); concluímos que cê, na atualidade, não
se encontra no mesmo estágio dos clíticos medievais, porque se
assim fosse compartilhariam também essa característica (o que
não impede que isso venha a ocorrer).
Reforça-se ainda que, segundo a literatura, o clítico ocorre
contíguo ao seu hospedeiro, sendo a interpolação uma característica de palavras plenas. Então, o fato de surgirem elementos
interpolados entre cê e o verbo é indício de que, nessas construções, cê não é clítico; nesses casos, a forma cê é elemento forte.
Essa característica de a forma cê surgir em interpolação levanta
um questionamento: Terá a forma cê status ambíguo dependendo
do contexto, isto é, será elemento forte quando aparece em ambiente de
interpolação e elemento fraco quando não há interpolação? Acreditamos
que não e, por isso, propomos uma análise que consideramos
adequada, conforme veremos posteriormente.
Vitral (2002) também verificou que 2) apesar de cê admitir
essa “interpolação”, não exibe a segunda característica dos clíticos
medievais: não ocorrência em 1ª posição. Pelo contrário, corroborando Vitral, a análise fonológica atesta que cê ocupa, tipicamente,
a posição precedida de pausa, isto é, a 1ª posição, ou seja, cê não
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Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?
Mesmo sendo especulação, será que, tentando-se definir um ponto
no processo de gramaticalização, a forma cê
não estaria num período
anterior ao medieval, já
que neste período o fenômeno de interpolação
entre os atuais pronomes oblíquos átonos e o
verbo era variável (+/-)
e no período contemporâneo é categórica a
não-interpolação (-)?
Levando-se em conta
a Teoria Variacionista (LABOV, 1972), que
prevê variação antes de
mudança, será que antes
do período medieval a
interpolação entre esses elementos não era
categórica (+)? Assim:
(+) →(+/ -) → ( - )
11
Construções gramaticais do dialeto norte-mineiro.
10
segue as Leis de Wackernagel e de Tobler Mussafia como os clíticos medievais.
Com essas características não é possível se definir um
ponto no processo de cliticização em que cê poderia encontrar-se,
porque essa forma não se comporta como os clíticos medievais
(ela ocorre tipicamente como primeiro elemento da sentença e a
interpolação, quando surgem elementos, é obrigatória) e nem como
os clíticos atuais, pois cê admite interpolação, quando surgem
elementos entre ela e o verbo10.
Consideramos que, no período medieval, quando as interpolações eram recorrentes e preferenciais, os atuais pronomes
átonos da Língua Portuguesa não eram clíticos, assim como cê
não o é; trilhavam possivelmente um estágio anterior do processo
de gramaticalização.
Terceiro Argumento: o pronome você, com o passar dos
tempos, sofreu redução fonológica e se tornou mais gramatical
(enfraquecimento de significado).
Este terceiro argumento deixa evidente a proposta de Vitral,
em seu trabalho com Ramos (1999), de que, com o passar do tempo,
você sofreu enfraquecimento de seu significado e já atingiu o status
de expletivo, enquanto sua forma reduzida cê apresenta apenas
perda de referência virtual. Essa análise é intrigante, porque a
noção de gramaticalização pressupõe que a forma reduzida deve
apresentar, nesse tipo de fenômeno, maior gramaticalidade (perda
de conteúdo semântico) do que a forma plena. Na realidade, esses
estudiosos constatam que o inverso ocorreu entre você e cê, isto
é, você apresenta maior gramaticalidade que cê, contrariando a
noção. Para corroborar essa posição dos autores, estendemos a
esta análise exemplos de cê11 com o mesmo suposto uso expletivo
de você:
(13a) Em Buenos Aires cê/você tem confeitarias.
(14) Em Kioto cê/você tem aquela confusão nas ruas.
Questionamos se estas formas você/cê são realmente expletivas, porque isto implica que, em PB, há formas expletivas e que
o verbo é impessoal, conforme essa análise. E sabe-se que, em PB,
não há evidências da existência de formas expletivas até então. Por
outro lado, o verbo ter é usado, em nossa língua, com o mesmo
valor semântico de haver.
Porém, construções como Em Buenos Aires cê há confeitarias
não são recorrentes na PB. Acreditamos, na verdade, que a proposta de Viotti (2003) na qual alega que ter é um verbo leve, isto
é, esvaziado semanticamente e com predicativo enfraquecido,
podendo, portanto, construir uma multiplicidade de sentenças de
significados diferentes, cujo significado é resultado da composição
do sentido dos vários itens lexicais que compõem a sentença, seja
mais interessante.
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Essa proposta faz-nos postular que o verbo “ter” poderia
imantar-se de sentido pessoal, não de “possuir”, mas de “poder
gozar de”, “encontrar”, “dispor de”, justificando a presença de você/
cê com uso indeterminado, indefinido nas sentenças abordadas.
Dessa maneira, preservamos a intuição dos falantes norte-mineiros que atestam as formas você/cê nestes ambientes com significado
de “a gente”, “as pessoas”, como em:
(13b) Em Buenos Aires você/cê pode gozar de confeitarias.
(13c) Em Buenos Aires você/cê encontra confeitarias.
(13d) Em Buenos Aires você/cê dispõe de
confeitarias
para ir...
Em relação a este argumento, consideramos pertinente a
gramaticalização diagnosticada por Vitral nas formas você e cê,
mas não há indícios suficientes para se afirmar que você tenha
atingido o status de expletivo e nem que cê já atingiu a etapa de
cliticização (nem mesmo o estágio inicial, conforme proposta de
Vitral). Estas formas possuem emprego definido e indefinido
alternantes, de acordo com o uso dos falantes do norte de Minas,
diagnosticado nos dados de Coelho (1999).
Quarto Argumento: características fonéticas (duração e
intensidade) da forma cê são muito próximas de se.
Este quarto argumento baseia-se no experimento fonético
de Vitral (2001b), que teve por finalidade examinar se a forma cê
se aproxima foneticamente, em intensidade (I) e duração (D), de
se. A análise concluiu que as duas primeiras formas são clíticos
e que a forma Zé é tônica, mas, considerando-se a análise absoluta, esse experimento registra gradação de valores, conforme
resultado a seguir:
SE: I: 23,6 dB
D: 0,129 ms
12
Resultado, em números absolutos, extraído
de Vitral (2001b).
192
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CÊ: I: 26,3 dB
D: 0,138 ms
ZÉ: I: 31,3dB
D: 0,194 ms12
Porém, é necessário considerar que a altura da língua das
vogais de cê e Zé atesta diferença de intensidade e duração no
português do Brasil – possibilidade esta descartada por Vitral,
uma vez que considera que a distinção entre Zé e cê não deve ser
atribuída à intensidade das vogais envolvidas.
Além disso, fenômenos entoacionais e de proeminência
relacionados à velocidade de fala, informações semânticas (foco,
tópico) e estilo de fala informal também podem gerar variação
da estrutura fonológica e possibilitar que um mesmo chunk se
realize com proeminência acentual distinta, conforme demonstra
o exemplo a seguir: em (15a) a 1ª frase fonológica apresenta nó
forte; em (15b), o nó forte está na 2ª frase fonológica; e, em (15c) o
nó forte está na 3ª frase fonológica.
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Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?
(15a) [ [ [ [ Zé ] w] C ]f [ [ [ num pensô] w] C ]f [ [ [que terminaria] w] C ]f ] I
s
w
w
(15b) [ [ [ [ Zé ] w] C ]f [ [ [ num pensô] w] C ]f [ [ [que terminaria] w] C ]f ] I
w
s
w
(15c) [ [ [ [ Zé ] w] C ]f [ [ [ num pensô] w] C ]f [ [ [que terminaria] w] C ]f ] I
w
w
s
Com base no resultado desse experimento e a partir dos
questionamentos levantados, a forma cê não pode ser considerada
clítico.
4 TESTANDO O COMPORTAMENTO DE CÊ
A partir de nossas reflexões descritas acima, optamos por
aplicar testes de identificação de clíticos tanto na perspectiva da
teoria da Cliticização quanto da Fonologia Prosódica, conforme
a seguir, para verificar o status da forma cê.
4.1 Sob a perspectiva da Cliticização
Em razão dos inúmeros questionamentos que permeiam
este trabalho, propomo-nos a analisar se o pronome cê se
comporta como clítico sintático e a avaliar seu estatuto atual,
segundo os testes de Zwicky (1985) e Kayne (1975), uma vez que
almejam à identificação de clíticos distinguindo-os de palavras
plenas através de suas características fonológicas, morfológicas
e sintáticas.
Testes fonológicos
Os testes fonológicos de Zwicky (1985) indicam o comportamento do elemento investigado, atentando-se à sua formação no
constituinte prosódico palavra fonológica. Ou melhor, caso apareça um elemento hospedeiro na palavra fonológica que domine
cê, nosso objeto de estudo será clítico; porém, se este constituinte
prosódico for não-ramificado, cê é palavra plena porque dispensará hospedeiro.
O clítico forma com uma palavra plena uma palavra fonológica:
(16)[[[[[Cê,]w]C]f]I[que está de blusa amarela,]I[[[[aproxime-se.]w]C ]f]I]U
Em (16) temos três frases entoacionais cuja organização
prosódica é justificada pelo fato de orações relativas explicativas
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Liliane Pereira Barbosa
formarem seu próprio domínio entoacional. Nesse exemplo, o
pronome cê é uma única palavra plena (possui um acento primário) que forma uma palavra fonológica; esta forma uma unidade prosódica superior: grupo clítico. Este grupo clítico forma
uma frase fonológica não ramificada (formada apenas por uma
única palavra fonológica) que, por sua vez, constitui uma frase
entoacional. Como o clítico pronominal se ancora num elemento
hospedeiro verbal, é impossível analisar cê como clítico, pois não
há este elemento hospedeiro necessário no grupo clítico e nem no
constituinte prosódico imediatamente superior: frase fonológica.
Já na terceira frase entoacional de (16) podemos constatar
que se é clítico, pois se ancora no elemento verbal aproxime e ambos
constituem uma palavra fonológica formada de clítico+verbo.
Esta análise é corroborada por Zwicky (1985), quando salienta a
importância dos domínios prosódicos na identificação de clítico
e de palavra plena: se o elemento descrito possui seus traços
prosódicos (acento, p.e.) distribuídos na frase fonológica é palavra
plena; mas se seus traços prosódicos estão distribuídos no domínio
da palavra fonológica, este elemento é clítico.
Testes acentuais
Devido ao fato de clíticos carecerem do acento de seu hospedeiro (dependência acentual) por serem formas átonas, estes
testes (ZWICKY, 1985) também colaboram na identificação do
status de cê.
(17) Foi cê o culpado de tudo
≠
(18) Foi-se o culpado de tudo.
Através da contraposição entre os sintagmas foi cê (17) e foi-se
(18) verificamos, mediante a atonicidade do pronome clítico se, que
não há semelhança acentual entre cê e se. Pelo contrário, este par
salienta a tonicidade acentual de cê, ratificando o teste anterior,
pois em (17) tanto o verbo quanto cê possuem acento primário
independente, constituindo duas palavras plenas distintas.
Testes usando similaridades entre afixos flexionais e clíticos
Estes testes (ZWICKY, 1985) também auxiliam na identificação dos clíticos, já que se comportam como afixos flexionais de
uma palavra plena.
Segundo o teste de ligação, elementos que estão unidos a um
hospedeiro são clíticos.
(19)– Pode deixar... eu resolvo este problema pra você.
– Cê?!...(risos)
Embora, aparentemente, cê pareça não figurar sozinha em
um enunciado, conforme atestam dados de Vitral (2002), há contex194
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Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?
tos que favorecem sua figuração isolada (19). Esta possibilidade é
determinada por contextos influenciados pela entoação e fatores
prosódicos similares; uma entoação própria da surpresa, dúvida,
deboche ou incredulidade parecem favorecê-la.
Porém, essa impossibilidade de figurar sozinha em um
enunciado não ocorre apenas com palavras átonas; é confirmada
em palavras tônicas, conforme Vigário (2001), o que torna esse
critério insuficiente para classificar cê como clítico.
Também, a posição de Nespor e Vogel (1996), quando afirmam que clíticos nunca ocorrem sozinhos, reforça a classificação
de cê como palavra plena, já que esta forma figura sozinha em
determinados contextos, assim como palavras tônicas.
Elementos que preservam combinações serão clíticos,
segundo o teste do fechamento.
(20)Cê viu Maria?
(21)Cê jamais viu Maria?
(22)Cê, que viaja tanto, jamais viu Maria?
(23)Cê certamente nunca mais verá Maria.
(24)Cê e eu jamais veremos Maria.
(25)Vi cê na festa ontem.
(26)Cê, que já tá pra ganhar neném e tem problema de pressão alta, deve repousá bastante.
Estes dados comprovam as variadas combinações possíveis
de cê e atestam seu status de palavra plena, pois, conforme Zwicky
(1985), se um elemento tem habilidade para se combinar com frases
e muitas palavras, certamente é palavra plena.
A ordem dos elementos também é importante, pois, assim
como os morfemas adjacentes, os clíticos não possuem liberdade
de alterarem sua ordem (certos clíticos exibem alguma liberdade,
mas causam mudança de significado cognitivo), podendo permanecer apenas proclíticos ou enclíticos ao seu hospedeiro.
(27a) Eu acho que cês não passaram de ano, não.
(27b) Cês, eu acho que não passaram de ano, não.
O deslocamento de cês em (27b) para a posição inicial de
sentença não acarretou mudança semântica. A possibilidade desse
deslocamento sem gerar alteração de seu significado cognitivo
classifica cê como palavra plena. Também, a distribuição de um
elemento colabora na sua identificação como palavra plena ou
clítico, pois os clíticos possuem distribuição simples: um único
princípio governa sua distribuição (teste da distribuição), assim
como os afixos flexionais. Os dados a seguir demonstram distribuições possíveis de cê:
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Cê combinada com NP lexical (nominativos pré-verbal):
(28) Cê e João serão felizes juntos.
Cê (nominativo pré-verbal) combinada com V’:
(29) Cê comeu o bolo?
Cê (nominativo pós-verbal) combinada com V:
(30) Vi cê na festa ontem.
Cê combinada com CP:
(31) Cê, que é a preferida, receberá uma gratificação.
Cê combinada com NP lexical (acusativos):
(32) Verei cê e João na festa sábado.
Os clíticos também não demonstram complexidade morfológica
(raramente possuem dois ou mais morfemas); as palavras sim,
apresentam maior complexidade.
(33) Cê { pronome} { 2ª pessoa} { singular}
O pronome cê (33) possui três morfemas, podendo ser enquadrado entre as palavras plenas. Mas vale ressaltar que essa complexidade morfológica é compartilhada por clíticos de 3ª pessoa
em PB; como exemplo temos o pronome oblíquo átono a que possui
quatro morfemas: (34) a {pronome} {3ª pessoa} {feminino} {singular}
Testes sintáticos
Como o clítico não está sujeito a processos sintáticos, em
razão de sua fixidez em relação ao seu hospedeiro, o elemento
que não for imune a tais processos será palavra plena. No caso de
um de dois elementos x+y poder ter sua identidade oculta, ambos
serão palavras plenas (apagamento sob identidade):
(35a) Eu vou à festa e cê vai também.
(35b) Eu vou à festa e cê, também.
O apagamento sob identidade do verbo foi possível (35b) nos
elementos cê vai (35a); logo, ambos são palavras plenas.
A substituição de um dos dois elementos combinados por
outro os caracteriza como palavras plenas. E essa substituição foi
possível com um pronome tônico e até com um NP lexical:
(36) Duas horas e cê só falou isso agora!
(37) Duas horas e tu só falou isso agora!
(38) Duas horas e Gisele só falou isso agora!
O movimento de apenas um dos dois elementos combinados
também os caracteriza como palavras plenas. O deslocamento
de cê, em (39a) para a posição inicial da sentença (39b) comprova
196
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Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?
a possibilidade de cê mover-se isoladamente, logo independe do
outro elemento; então, ambos são palavras plenas.
(39a)Eu acho que cês não passaram de ano, não.
(39b) Cês, eu acho que não passaram de ano, não.
Como nada intervém entre clítico e verbo, então, se entre cê e
o verbo vários elementos podem ser interpolados, conforme (40),
esta forma não é clítica.
(40) Cê nunca mais me verá.
Também, o fato de os clíticos não poderem ser modificados e a
presença de modificadores em (41b) não corroboram que cê seja
clítico, pelo contrário:
(41a)Cê é o mais sem-vergonha.
(41b) De todos, cê só é o mais sem-vergonha.
Quanto ao teste que se refere à impossibilidade de clítico aparecer
unido por conjunção, este não é também aplicável, pois em (42) e
(43) temos cê coordenado a um NP lexical e a um pronome tônico,
respectivamente; e, se somente coordenamos elementos de mesma
hierarquia (paralelismo), então cê não é clítico.
(42) Cê e Joaquina vão viajar juntas.
(43) Cê e ele serão felizes.
Cardinaletti e Starke (1994) corroboram
três critérios de Kayne
ao afirmarem que apenas pronomes fortes
aparecem coordenados,
ocupam posição sintática periférica e são
acompanhados por modificadores. Assim como
Nespor e Vogel (1986),
t a mb ém con sidera m
que apenas palavras
acentuadas (pronomes
fortes) suportam acento
contrastivo.
13
Por fim, ao se determinar que clítico não pode ser topicalizado,
atesta-se que cê não é clítico, é palavra plena, porque esta forma
pode surgir como tópico: (44) Cês, eu acho que cês não passaram de
ano, não.
Essa análise realizada resulta na classificação de cê como
palavra plena e não clítico (sintático e/ou fonológico). Os resultados, tanto dos testes de Zwicky (1985) quanto de Kayne (1975)13,
reforçam o status de palavra plena da forma cê e descartam a
hipótese de clítico fonológico e/ou sintático, visto que os critérios
de análise consideraram os aspectos fonológicos, morfológicos e
sintáticos.
Mesmo que o teste de ligação comprove que cê geralmente
não figura sozinha em qualquer enunciado, apenas em contextos
influenciados por determinada entoação e outros fatores prosódicos, nossa análise não se enfraquece, pois este fator não ocorre
apenas com palavras átonas, também é confirmado em palavras
tônicas, conforme Vigário (2001). O fato de cê ocorrer sozinha já
descarta a possibilidade de ser clítico, segundo Nespor e Vogel
(1986) – para essas estudiosas, clítico nunca ocorre sozinho em
enunciados. A revelação de que há em PB pronomes átonos que
possuem maior complexidade morfológica que cê é outro aspecto
que também não prejudica nossa proposta já que, assim como cê,
temos palavras acentuadas com menor complexidade morfológica
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que os pronomes átonos de nossa língua (por exemplo, as palavras
aquilo, nada, tudo).
Em razão do resultado dos testes realizados nesta seção,
defendemos que cê possui caráter acentuado (acento de palavra),
mas pode sofrer perda acentual no nível da frase entoacional –
uma análise alternativa para justificar sua atonicidade em algumas construções, que consideramos mais adequada do que lhe
fornecer um status ambíguo.
4.2 Sob a perspectiva da Fonologia Prosódica
Visto que cê é palavra com acento primário, como se comprovou através de testes sintáticos, morfológicos e fonológicos
propostos pela teoria da cliticização (seção anterior), corroboramos seu caráter; porém, sob uma abordagem prosódica. Isso
se torna possível em razão de apenas palavras plenas poderem
constituir, sozinhas, prosodicamente, uma palavra fonológica
não ramificada.
Fundamentando-nos em Selkirk (2004), quando defende que
palavras funcionais podem adquirir status de palavra fonológica,
e em Bisol (2000), que atesta e comprova a existência de palavras
fonológicas monossílabas em PB14, partimos da hipótese de que cê
também aí se enquadra. Para confirmar tal hipótese, valemo-nos
de palavras do PB que possuem a mesma estrutura, mas que se
distinguem apenas pela tonicidade/atonicidade:
(38) Palavras monossílabas
acentuadas
Palavras monossílabas
não acentuadas
dê [Ède]
de [dZI]
nu [Ènu]
no [nU]
dá [Èda]
da [d«]
E cê também aqui se enquadra:
Vigário (2001) afirma
que em PE também há
palavras fonológ icas
monossílabas.
14
198
Rev Gragoata n 29.indb 198
Palavras monossílabas
acentuadas
Palavras monossílabas
não acentuadas
cê [Èse]
se [sI]
Desta distribuição, constata-se que as formas acentuadas
constituem w, mas as formas não acentuadas (clíticas) precisam
de um hospedeiro acentuado para que façam parte de uma w,
porque isoladas não a constituem.
(46)[ [Cê]w]C [[se viu]w]C [ [no espelho.] w]C
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Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?
As 2ª e 3ª palavras fonológicas de (46) demonstram a dependência dos clíticos em relação a seus hospedeiros; porém a 1ª palavra fonológica comprova a ocorrência de cê sem hospedeiro, logo
não pode ser clítico. Para reforçar esta classificação, Vigário (2001)
afirma que a presença de acento impossibilita a ocorrência de
processos fonológicos que se aplicam a ambientes não acentuados:
- é impossível redução vocálica:
(47) dê [e]/ *[i] de [e]/ [i]
cê [e]/ *[i] se [e]/ [i]
- é impossível semivocalização ou apagamento da 1ª ou 2ª
vogal:
(48) cê ia [e]/ *[i]/ *0 se una [e]/ [I 9 ]
Se um desses processos se aplica à palavra monossílaba,
constitui evidência de que a palavra relevante não é acentuada
e, por isso, carece de status de palavra fonológica. Não é o caso
da forma cê, pois, conforme demonstrado acima, nenhum dos
processos foi aplicado a ela.
Vigário (2001) também verificou, em PE, que a presença de
um acento tonal (ou focal) pode ser vista como meio de demonstrar o status acentuado de uma dada palavra e o mesmo ocorre
com cê em PB:
(49)[[[[Cê]w]C]f [[[gostou]w [da festa]w]C]f]I,[[[eu]w]f [[[a odiei]w]C]f]I
s
w
w
w
w
Ao cê formar a frase fonológica mais proeminente da primeira frase entoacional (49) e, dessa proeminência, provocar foco
contrastivo, comprovamos que cê ocorre em posição acentual
forte; logo, não pode ser elemento clítico, afirmativa também
em concordância com Hall (1999a), que defende a ocorrência de
foco contrastivo como teste identificador de palavra com acento
primário. O mesmo ocorre em (50) e (51).
(50)- Maria, cê foi na festa ontem? (51) -Gê, cê adorou a festa, né?
- Cê foi, eu não. -Cê adorou, eu a detestei.
Como defendemos a ideia de que cê não é clítico nem mesmo
nas construções em que apresenta fraca intensidade, em razão
dos vários e fortes indícios sintáticos, morfológicos e fonológicos
descritos ao longo desse trabalho, propomos que a palavra plena
cê pode adquirir ou não acento frasal, dependendo de padrões
prosódicos específicos e do contexto no qual estiver inserida.
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Major (1985) observa que um acento no nível da palavra pode
ser alterado no nível da sentença, isto é, padrão rítmico do nível
da sentença pode alterar padrão rítmico do nível da palavra para
acomodar uma tendência acentual. Acreditamos que isso explique
a fraca intensidade de cê em alguns contextos.
Defendemos também o ponto de vista de que a teoria de
domínios de aplicação de regras fonológicas e não fonológicas (não
necessariamente isomórficas) nos apontará regras rítmicas e de
ajustamentos rítmicos que são importantes para o processamento
da fala (NESPOR e VOGEL, 1986) da forma cê, pois, enquanto a
estrutura sintática é única, a estrutura fonológica pode variar
dependendo de fatores como velocidade da fala (VIGÁRIO, 2001),
estilo de fala e desempenho do falante. Acreditamos que esta
forma, em uma unidade prosódica acima da palavra fonológica,
pode sofrer perda acentual com proeminência em outro elemento
ou sintagma, de acordo com o contexto.
Como em posição de sujeito simples cê é frase fonológica
não ramificada, não podendo passar por reestruturação, porque
em PB há fronteira de frase fonológica entre sujeito e predicado,
conforme Sândalo ([2002]), tal forma constitui nó forte neste
contexto, o que é confirmado em (52):
(52) [Cê ]f [sabe]f [ muito bem]f [ do que eu gosto.]f
s s ws w ww s
Na posição de complemento verbal, poderá constituir junto
com o verbo uma frase fonológica ramificada, através de reestruturação, como em (53):
(53)[Foi cê]f [ que eu vi na festa. ]f
w s
Será o nó mais forte porque, em frase fonológica, o elemento
mais à direita é o mais proeminente, e cê está nesta posição na
1ª frase fonológica da sentença acima. Porém, analisando a frase
entoacional, hierarquia acima da frase fonológica, verificamos que
cê pode assumir padrões de proeminência diferentes. Isso ocorre
em razão de a frase entoacional, formada de uma ou mais frases
fonológicas, ser uma unidade prosódica que possui variabilidade
na sua organização, conforme explicitado anteriormente.
Os exemplos (54) podem assumir três padrões de proeminência acentual diferentes para as frases fonológicas que constituem I, conforme distribuição a seguir:
(54a)[ [ [ [ Cê ] w] C ]f [ [ [ o conhecê] w] C ]f [ [ [ muito bem] w] C ]f ] I15
w w s
Nó forte está na frase
fonológica “muito bem”;
as demais constituem nó
fraco.
15
200
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(54b)[ [ [ [ Cê ] w] C ]f [ [ [ o conhecê] w] C ]f [ [ [ muito bem] w] C ]f ] I16
s w w
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Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?
(54c)[ [ [ [ Cê ] w] C ]f [ [ [ o conhecê] w] C ]f [ [ [ muito bem] w] C ]f ] I 17
w s w
O primeiro e o último exemplo dessa série de padrões de
proeminência exploram formação fraca para a frase fonológica cê,
com proeminência acentual alternante em outra frase fonológica
da mesma I; mas o segundo exemplo representa cê como uma frase
fonológica da I, com proeminência forte. Este exemplo explora
formação não ramificada para cê, já que esta frase fonológica
está representada por um grupo clítico formado de apenas um
elemento: uma palavra fonológica. Esta mesma formação deixa
evidente a ausência do suposto hospedeiro para cê e reforça o
seu caráter acentual; consequentemente, esta forma não pode ser
considerada clítico, mas palavra plena.
Essas descrições prosódicas de cê favorecem a identificação
de proeminência acentual alternante no nível da sentença, de
acordo com o desempenho do falante. Percebe-se que a palavra
plena cê sofre perda acentual no nível da sentença (no constituinte
prosódico frase entoacional) em determinados ambientes, recebendo acento fraco. Isso não quer dizer que perdeu seu acento
de palavra, mas apenas que não recebeu acento frasal. Outros
ambientes são indicadores de sua presença com acento forte,
também no nível da sentença (no constituinte frase entoacional),
conforme discutido nesta seção.
CONCLUSÃO
Nó forte está na frase fonológica “cê”, as
demais constituem nó
fraco.
17
Nó forte está na frase
fonológica “o conhece”,
as demais constituem
nó fraco.
16
Nesta investigação, detectaram-se ocorrências de cê em
posições que não constituem ambientes de clíticos. Esses fatos
aliados à obrigatoriedade de interpolação, quando entre cê e o
verbo surgem outros elementos, a aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos não propícios a clítico revelados pelos testes de
Zwicky (1985) e de Kayne (1975) – testes tidos como identificadores
de clítico –, serviram de subsídios para refutar a análise de Vitral,
conferindo-se e comprovando-se o status de palavra plena a cê e,
consequentemente, a impossibilidade de ela ser clítico sintático.
Mas, como era nossa proposta investigar seu caráter acentual, fundamentando-nos em pressupostos teóricos da Fonologia Prosódica, valemo-nos da existência de palavras funcionais
monossilábicas acentuadas. A impossibilidade de redução e de
semivocalização ou apagamento da vogal (neste último caso,
quando cê está seguido de palavra iniciada por vogal), conjugada
à possibilidade de apresentar acento tonal ou focal, proeminência
acentual forte, no constituinte frase entoacional, reafirmaram
nossa expectativa, pois acento é fator que impede sândi vocálico,
e apenas palavras que possuem acento primário recebem acento
frasal.
Acrescentando-se, ainda, o fato de constituir frase fonológica não ramificada quando em posição de sujeito, constituinte
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Liliane Pereira Barbosa
imediatamente superior ao grupo clítico, e à impossibilidade de
reconstrução, já que entre sujeito e predicado em PB é sempre
encontrada uma fronteira prosódica, postulamos o status de
palavra plena a cê.
Devido a essa constatação também num aparato prosódico,
questionamos por que percebemos uma perda acentual dessa
forma em algumas construções e decidimos observar seu comportamento em um nível hierárquico superior à palavra fonológica.
Como frase fonológica, cê, em posição de sujeito, constitui
nó forte de f não ramificada; em frase fonológica ramificada, em
posição de complemento de verbo, e sendo o elemento mais à sua
direita, também é nó forte. Porém, na frase entoacional, nível em
que há maior variabilidade do padrão de acento frasal, percebemos
que cê exibe ora maior, ora menor proeminência.
Assim, o presente estudo advoga que cê possui acento primário, logo é palavra plena (e não clítico), mas que pode apresentar
alternância acentual como f (fraca/forte) no domínio da I em fala
espontânea e informal.
Abstract:
The fact that investigations consider ‘cê’ a syntactically clitic pronoun and the finding that this
form may appear in positions in which a clitic
does not occur made us question its character.
Thus, based on data extracted from attested and
published literature beyond constructions of the
dialect from the North of Minas Gerais, Brazil,
based on the Cliticization theory and Prosodic
Phonology, we found out that ‘cê’ behaves not as
a clitic, but as a full word. Besides, we proposed,
still based on the Prosodic Phonology , that the
perceived stress on ‘cê’ is at the phrase level, not
at the word level. So this stress absence occurs
due to the possibility of stress prominence alternance at the intonation phrase level which, due
to its relation to semantic, syntactic aspects and
speaker performance, determines a strong or weak
node to ‘cê’, that is, its strong or weak position
in the sentence.
Keywords: ‘cê’ form; clitic; phonological word;
Prosodic Phonology; Cliticization.
Referências
BARBOSA, Liliane Pereira. Estatuto da forma cê: clítico ou palavra?.
Orientador: Seung Hwa-Lee. Dissertação (Mestrado em Estudos
Linguísticos) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte. 2005.135p.
202
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1997. PhD dissertation, Cornell University.
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Implicações de uma perspectiva
discursiva para a construção
de uma metodologia de análise
das práticas linguageiras
Isabel Cristina Rodrigues
Décio Rocha
Resumo
Este artigo apresenta a construção de uma metodologia de análise que procurou investigar em
que medida os debates acerca da educação bilíngue
para surdos no Brasil ao longo da década de 1990,
momento em que ganhavam visibilidade no país,
reproduziam controvérsias clássicas da área da
surdez. A perspectiva teórica adotada foi a da
Análise do Discurso de base enunciativa, com
ênfase nas reflexões de Maingueneau. O trabalho
destaca que a metodologia norteadora de uma
pesquisa assentada em bases de ordem discursiva
encontra-se em estreita interlocução com o quadro
teórico e com o tipo de práticas linguageiras que
se deseja investigar. Como resultados principais
desta investigação, estão os seguintes elementos:
relação entre a delimitação do corpus e saberes
do pesquisador acerca do universo pesquisado;
eleição de marcas linguísticas como apoio à delimitação de um corpus; especificação do quadro
teórico adotado para o tratamento de enunciados
de interesse, neste caso, enunciados negativos de
caráter polêmico (DUCROT); problematização
do quadro teórico adotado.
Palavras-chave: Análise do Discurso; negação
polêmica; práticas linguageiras; implicações
teórico-metodológicas; educação de surdos.
Gragoatá
Rev Gragoata n 29.indb 205
Niterói, n. 29, p. 205-222, 2. sem. 2010
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Gragoatá
Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha
1. Introdução
O trabalho de análise das práticas linguageiras em uma
perspectiva discursiva oferece-nos desafios de diferentes ordens.
Com efeito, desde a escolha do ponto de vista teórico a ser adotado
– o vasto leque de “análises do discurso” que se apresentam na
atualidade já foi amplamente tematizado (ver MAINGUENEAU,
1995) – até a construção de um corpus em meio à diversidade de
recortes passíveis de constituírem objetos de análise, as possibilidades são bastante diversificadas.
Neste artigo, nossa atenção estará voltada para um
dos muitos desafios a que fazemos menção: como enfrentar
dificuldades impostas pelo plano metodológico do trabalho em
uma perspectiva discursiva – seja ela qual for. Nesse sentido,
procuraremos traçar um caminho que reafirme a absoluta
solidariedade entre teoria, corpus e metodologia:
... por nosso objeto de análise ser um objeto teórico, é
preciso ressaltar que a teorização determina o procedimento
metodológico, da mesma forma que este nos faz refletir sobre a
teoria. E ambos levam à constituição do corpus, o que significa
dizer que o corpus não está dado, mas é construído pelos
gestos do analista de pôr unidades em contato, selecionar
sequências, agrupá-las em bloco, voltar à teoria para, a
partir dela, construir recortes, relacioná-los e, a partir deles,
repensar a teoria, num movimento em espiral de retomadas
de aspectos metodológicos e teóricos, lançando novos olhares,
surpreendendo-se. (MITTMANN, 2007, p. 155)
No caso, nas reflexões que ora apresentamos, o caminho
escolhido partiu de uma questão de pesquisa voltada para um
debate em curso no campo da educação brasileira, e a perspectiva
discursiva adotada foi a da Análise do Discurso de base enunciativa (doravante AD), com ênfase nas reflexões de Maingueneau,
que nos permitiu redimensionar uma categoria de análise – o não
polifônico descrito por Ducrot (1987) – e apostar em sua produtividade na constituição de um corpus.
2. Esboço do corpus em função da questão
de pesquisa e do referencial teórico
O trabalho de onde se origina este artigo (ver RODRIGUES,
2002) centra-se no debate sobre a proposta de educação bilíngue
para pessoas surdas, que, no Brasil, começou a ganhar visibilidade
no início da década de 1990 e que, na primeira década do século
XXI, produziu uma série de políticas públicas. De acordo com essa
proposta, no espaço escolar, a língua brasileira de sinais (Libras)
corresponde à primeira língua e o português, à segunda língua,
para esses indivíduos.
A história da educação de surdos – que possui pelo menos
dois séculos – parece narrar uma controvérsia fundamental que
se apresenta num movimento pendular entre aceitação e proibição
206
Rev Gragoata n 29.indb 206
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Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras
Dados os limites deste
artigo, estamos sintetizando em uma questão
fundamental, no caso, o
uso da língua de sinais,
a ampla complexidade
psicossociocultural que
envolve a educação desses indivíduos.
1
do uso da língua de sinais. Essa controvérsia se pauta, em especial,
no preconceito que se tem sobre as línguas de sinais – seriam de
fato uma língua? – e na preocupação de que, com sua valorização,
os surdos acabassem se desinteressando da língua da comunidade
ouvinte em que estivessem inseridos.1
Assim, definimos como problema de pesquisa investigar
como estavam sendo construídos os discursos que procuravam legitimar
e/ou discutir o ensino bilíngue no processo educacional de pessoas surdas
no Brasil ao longo da década de 1990. Tal problema relacionava-se com
a seguinte hipótese: os discursos em questão continuariam polemizando
a controvérsia clássica na área da surdez na tentativa de delimitar as
possibilidades de implantação desse projeto político-pedagógico.
À luz de uma perspectiva discursiva de base enunciativa,
observar como os discursos estão-se construindo requer que os
tomemos como um modo de apropriação da linguagem socialmente constituído. Sendo assim, mais do que com o conteúdo
temático, os efeitos de sentido que se produzem têm a ver com o
lugar sócio-histórico de onde o tema é falado e, consequentemente,
com o modo pelo qual ele é falado. Trata-se de uma complexidade
que só faz ratificar um modo de funcionamento discursivo compatível com os princípios de uma semântica global (MAINGUENEAU, 2005), com base nos quais não se apreende o discurso
“privilegiando tal ou qual de seus ‘planos’, mas integrando-o a
todos, tanto na ordem do enunciado quanto na da enunciação”
(MAINGUENEAU, 2005, p. 79).
Como então, com base na questão de pesquisa e nessa perspectiva teórica, selecionar um corpus de análise? Não bastaria,
por exemplo, analisar um corpus procurando o tema em foco,
mapeando se ele está presente ou não, e em que quantidade, no
debate em questão. O objetivo é justamente outro: o de tentar
observar como os enunciados sobre o tema investigado circulam,
num movimento dialógico – quem os assume e de que lugar.
Discursos sobre a educação bilíngue para surdos no Brasil
podem provir de fontes diversas. A produção escrita que trata do
assunto é variada, além do que outros caminhos também poderiam ser escolhidos, como realizar entrevistas, gravar reuniões.
Enfim, era preciso proceder a um recorte desses discursos.
Decidimos então estabelecer um primeiro critério para
nortear a escolha do corpus: optar pelas publicações do Instituto
Nacional de Educação de Surdos (INES) como nossa fonte, pelo
papel de destaque da instituição na concretização da chamada
“educação de surdos” no Brasil e por sua posição de centro de
referência no país na área da surdez. O início das publicações do
INES, que foi criado em 1857, data do final do século XIX, mas os
primeiros registros da discussão sobre bilinguismo / educação
bilíngue são do começo da década de 1990. Desdobramos então
esse primeiro critério: pesquisaríamos os periódicos do instituto
publicados ao longo da década de 1990.
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Gragoatá
Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha
A revista Espaço, logo de início, mostrou-se de especial interesse: seu primeiro número foi publicado no segundo semestre
de 1990, coincidindo justamente com o momento em que o debate
começava a ganhar visibilidade. Além disso, comparando-a com
Fórum e Arqueiro, os dois outros periódicos da mesma década,
Espaço possuía uma caracterização bem clara, que definia para
ela um certo perfil de gênero, ponto a se privilegiar pela natureza
de nosso quadro teórico. Já na primeira edição (jul.-dez./1990),
na primeira capa, na página 3, no editorial e na quarta capa, essa
revista procura se definir como o “informativo técnico-científico
para profissionais da área de deficiência auditiva”, “um veículo
para democratização da informação”, que “busca preencher a
carência de bibliografia específica”, “divulgando artigos e comunicações de profissionais, possibilitando a troca de informações”.
Pode-se dizer assim que, desde o início, trata-se de um
periódico que define bem seu objetivo de promover um amplo
debate de ordem técnico-científica. Sobre o conteúdo, o que se
pode dizer, de forma geral, é que, de fato, Espaço tem conseguido
reunir um grande número de profissionais / pesquisadores dedicados a diferentes áreas de estudo sobre a surdez, provenientes
de instituições variadas.
Em meio a dezesseis edições (1990 até 2001) e dezenas de
artigos, porém, um novo critério se mostrava necessário para o
recorte do corpus. Notamos que havia, ao longo de todas essas edições, artigos que se propunham a tratar especificamente do tema
educação bilíngue / bilinguismo. Consideramos essa entrada
pertinente por vir diretamente ao encontro do problema da pesquisa. Foram selecionados, assim, todos os artigos que traziam
no título os termos “bilíngue” ou “bilinguismo”, descartando-se
aqueles cujo objetivo claro era discutir prática fonoaudiológica,
e não pedagógica, e os que se referiam a contextos de educação
bilíngue apenas para pessoas ouvintes. Restou ao final um total
de oito artigos. A organização interna da maior parte deles focalizava a discussão sobre educação bilíngue em seções específicas.
Optamos, em consequência, por localizar a análise nessas seções,
selecionadas também pelas entradas “bilíngue” ou “bilinguismo”
nos títulos.
3. Rumo à definição do corpus em função
de uma categoria de análise
Após as sucessivas escolhas para o recorte do universo textual de Espaço, faltava ainda decidir por uma entrada de análise
que explicitasse o interesse do recorte feito para o debate em questão. Essa decisão levou em conta três fatores inter-relacionados:
os objetivos da pesquisa, a natureza do material selecionado e o
quadro teórico de análise.
208
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Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras
O material até então selecionado era composto por artigos
publicados num periódico que delimita seu caráter genérico como
de ordem técnico-científica, destinado basicamente a profissionais
da área da surdez. Como partimos da hipótese de que o debate
em pauta materializava um embate discursivo que poderia estar
retomando uma controvérsia clássica da história da educação de
surdos, priorizamos entradas de análise que permitissem identificar e reunir três elementos: pontos de controvérsia; enunciadores
que o gênero traz para o debate e que posição enunciativa ocupam; o que
estes nos permitem apreender dos efeitos de sentido que se produzem.
Avaliando cada artigo e suas características, escolhemos
então um artigo do número 6 (1997) de Espaço – “Uma análise
preliminar das variáveis que intervêm no projeto de educação
bilíngue para os surdos” – para realizar uma análise-piloto, com
base nos seguintes critérios: é o único artigo que propõe uma atitude de análise geral do assunto e também é o único que faz parte
da seção “Debate” da revista que propôs como tema justamente
“Bilinguismo e Educação de Surdos”.
Pudemos depreender, não sem uma intensa atividade
de leitura do referido artigo, uma marca enunciativa bastante
presente e que, por essa razão, deveria representar um traço
constitutivo seu: a marca linguística de negação não. Tal presença
não poderia ser desprovida de sentido, principalmente quando
aproximamos a essa reflexão o fenômeno da negação polêmica
descrito por Ducrot (1987). Como veremos a seguir, a “aposta” feita
na produtividade dessa entrada linguística permitiu identificar os
três elementos que priorizamos como centrais na caracterização
de nosso corpus. Uma vez realizada a análise-piloto, sua produtividade fez com que estendêssemos essa entrada para os outros
artigos, e verificamos que, em todos, ela se atualizava de modo
pregnante, revelando para a pesquisa um caminho que prometia
ser bastante produtivo, em especial no que diz respeito ao caráter
polifônico dos enunciados.
4. Repercussões do quadro teórico sobre
o encaminhamento metodológico da pesquisa
Ducrot (1987), ao esboçar sua teoria polifônica da enunciação, recorre à descrição do fenômeno da negação a fim de mostrar
a pertinência linguística das noções de enunciador e de locutor
no que diz respeito à caracterização da polifonia como traço
constitutivo da linguagem. Para esse autor, parece interessante,
para descrever a negação, recorrer à distinção entre locutor e
enunciador, afirmando que:
O locutor L que assume a responsabilidade do enunciado “Pedro não é gentil” coloca em cena um enunciador E1 que sustenta
que Pedro é gentil, e um outro, E2, ao qual L é habitualmente
assimilado, que se opõe a E1. (DUCROT, 1987, p. 202)
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Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha
E1 e E2 sustentariam pontos de vista opostos. Esse choque
entre atitudes antagônicas, uma positiva e outra que é a recusa
desta, segundo Ducrot, aparece em grande parte dos enunciados
negativos. Ele apresenta as condições de emprego da expressão
“ao contrário” após os enunciados negativos como uma forma de
identificar E1:
Depois de um enunciado “Pedro não é gentil”, pode-se encadear “ao contrário, ele é insuportável”. A que o segundo
enunciado é “contrário”? Não ao primeiro tomado em sua
totalidade, mas ao ponto de vista positivo [Pedro é gentil]
que este, segundo penso, nega e veicula ao mesmo tempo.
(DUCROT, 1987, p. 203)
Assim, Ducrot reafirma que a presença de um enunciador
que se confronta com um locutor que assume um enunciado negativo está marcada na frase – é um fato da língua recuperado no
enunciado. Esse fenômeno se enquadra no que o autor denomina
negação polêmica. É importante destacar aqui que esse enunciador
E1 colocado em cena não é assimilado a nenhum locutor que,
dizendo eu, assuma a responsabilidade de algo efetivamente
proferido, enunciado. Segundo explicação do próprio Ducrot, “a
atitude positiva à qual o locutor [no caso o enunciador E2] se opõe
é interna ao discurso no qual é contestada” (DUCROT, 1987, p. 204).
A uma perspectiva discursiva interessam, fundamentalmente, os efeitos de sentido produzidos pela negação polêmica:
a possibilidade de identificar duas “vozes” distintas encenando
um embate de posicionamentos em relação a um dado tema, uma
polarização de pontos de vista. Com isso, marca-se a presença de
“um outro” no discurso, remetendo à discussão sobre heterogeneidade discursiva.
Ducrot apresenta sua tese da negação polêmica, mas não
faz parte dos limites de suas reflexões aprofundar a análise sobre
um caráter discursivo dos enunciadores antagônicos, o que é feito
pela AD ao retomar o trabalho desse autor. Retomando a teoria de
Ducrot por essa perspectiva, pode-se considerar que a polêmica
discursiva não é individual; ela se instaura entre dois sujeitos que
representam lugares sócio-históricos antagônicos. Toda organização discursiva pressupõe uma certa forma de se relacionar com o
“outro”. Quando um enunciador mobiliza enunciados produzidos
por outros enunciadores, ele estabelece relações específicas de
similaridade ou de divergência com esses. E a negação polêmica
vem denotar um modo como um dado discurso se relaciona com
outro que lhe é exterior.
Definida assim essa noção operatória, que se mostrou produtiva – o não polêmico –, um recorte final para a delimitação
do corpus precisou ser feito. Procedemos ao recorte de todos os
fragmentos que contivessem a pista linguística não e verificamos
quais poderiam se localizar dentro da categoria definida por
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Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras
Ducrot como “negação polêmica”. A identificação desses enunciados só pôde ser feita de forma concomitante à depreensão das
afirmativas a eles subjacentes. De fato, em nossa experiência de
análise, vimos que se trata de um processo indissociável. Afinal,
reconhecer o embate de vozes, quando trabalhamos com uma
perspectiva teórica discursiva, é poder distinguir posicionamentos
enunciativos distintos.
Para isso, a fim de distinguir os casos de negação polêmica2,
utilizamos os seguintes procedimentos:
• empregar a expressão “ao contrário”, proposta por Ducrot,
na sequência do enunciado, a fim de mapear a presença
de um outro enunciador;
• verificar sob que condições, dentro do contexto do debate,
as afirmativas subjacentes, isto é, os diferentes pontos de
vista depreendidos que não chegavam a se materializar
em enunciados, seriam, de fato, sustentadas por algum
enunciador.
• A respeito das condições a que ora fazemos referência
para vincular os pontos de vista depreendidos a possíveis
enunciadores que polemizam com o locutor, diremos no
momento tão somente que aí está uma decisão de ordem
metodológica a ser explicitada mais tarde. No momento,
porém, antes de passarmos a considerações acerca de tal
decisão, e também antes de prosseguirmos nas análises
realizadas em nosso corpus, faremos uma breve reflexão
acerca de todo um conjunto de decisões metodológicas
que se acham implícitas ao longo dos itens 2 e 3 deste
artigo. Por intermédio de tais reflexões, nosso objetivo
será conferir uma maior visibilidade aos procedimentos
metodológicos que pudemos construir em nosso trabalho,
buscando, desta forma, ao menos mitigar as insuficiências de um dos pontos de debilidade de uma abordagem
discursiva: o caminho metodológico construído pelo
pesquisador.
5. Revendo decisões metodológicas
para a delimitação do corpus
E m s e u s e s t udo s,
Ducrot distingue três
tipos de negação: polêmica, metalinguística e descritiva. Dados
os limites deste artigo,
detivemo-nos na breve
apresentação apenas da
primeira, sobre a qual
recai nosso interesse.
2
No âmbito das decisões metodológicas que cumpre tomar
em todo trabalho de pesquisa, um dos territórios mais áridos é o
da delimitação do material a ser submetido a análise. “Segundo
que critérios optar por um dado recorte de corpus como preferencial em comparação a um outro? Como garantir que o recorte
escolhido seja adequado aos objetivos que se propõe alcançar uma
pesquisa? Do ponto de vista quantitativo, com quantos enunciados
se faz um corpus suficientemente poderoso para que nos aproximemos de uma resposta à pergunta propulsora da atividade de
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Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha
pesquisa?”. Eis algumas das indagações que costumam pontuar
no cotidiano o trabalho de delimitação de um corpus de pesquisa.
Uma possível resposta à questão parece residir na busca de
um princípio que norteie a ação do pesquisador a esse respeito.
Com efeito, não há como não perceber que várias seriam as possibilidades de critérios que o levariam à escolha de um corpus,
assim como também não se pode deixar de reconhecer o que há
de insustentável na eleição de critérios de ordem exclusivamente
quantitativa: não há como preconizar um número mínimo de
enunciados que possa garantir a adequação de um corpus ideal.
Diante das dificuldades levantadas, acreditamos constituir
um ponto de partida confiável para a construção de um corpus
o recurso a um conceito que se encontra em íntima relação com
a problemática interdiscursiva: o conceito de espaço discursivo
(MAINGUENEAU, 2004). Trata-se de uma noção que corresponde
a uma “escolha estratégica de ação” do pesquisador, tendo em
vista a impossibilidade de se apreender a totalidade de um campo
discursivo. Assim sendo, o espaço discursivo, entendido como
subconjunto do campo discursivo, seria “constituído ao menos de
dois posicionamentos discursivos, cuja correlação é considerada
importante pelo analista para sua pesquisa” (MAINGUENEAU,
2004, p. 92).
Com base nessa definição oferecida por Maingueneau, que
fique bem clara a ideia de que a produtividade da correlação
entre os dois conjuntos de textos não nos é garantida de antemão,
configurando-se, antes, como uma hipótese ou um investimento
feito pelo pesquisador. Em outras palavras: afastamo-nos do plano
das evidências empíricas, segundo o qual bastaria ir ao campo
para “coletar” um corpus já pronto, e adentramos o da construção
(sempre por meio de escolhas perspectivas, interessadas, assentadas em um quadro teórico) empreendida pelo pesquisador.
Ao iniciarmos uma pesquisa, nem sempre dispomos de
hipóteses suficientemente poderosas acerca da inscrição dos textos
ali presentes em “posicionamentos discursivos” a serem correlacionados, segundo nos sugere a definição de espaço discursivo que
transcrevemos. Na verdade, o procedimento de interdelimitação
proposto por Maingueneau parece funcionar mais imediatamente
quando se dispõe de pistas deixadas pela tradição, isto é, pelos
saberes instituídos acerca dos discursos que circulam em um
dado momento e em um dado espaço. Nesse caso, parece facilitada a tarefa de eleição de um espaço discursivo em que dois
posicionamentos entrem em confronto. Não parece ser outra a
situação dos textos sobre os quais se debruça Maingueneau (2005),
por exemplo: o embate entre a prática discursiva do humanismo
devoto, em contraposição à do jansenismo, embate esse nítida e
largamente atestado pela tradição.
212
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Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras
Outra era a situação dos textos com os quais trabalhávamos.
Por evidentes que possam parecer determinadas posições (antagônicas) assumidas no conjunto das práticas linguageiras voltadas
para a educação bilíngue3, estávamos efetivamente longe de um
quadro em que se vislumbrasse a confrontação de posicionamentos discursivos claramente delimitados.
Impedidos de tomar como ponto de partida de nosso trabalho a “confortável evidência” de discursos em franca situação
de embate, recorremos a um modo alternativo de entendimento
da referida função de interdelimitação:
...o sentido que atribuímos à função de interdelimitação desses
textos não coincide necessariamente com o modo como a referida função se atualiza nos trabalhos de Maingueneau, ... (...)
... insistiremos na possibilidade de o Mesmo já se constituir
em pista para localizar o Outro (nos pequenos deslizamentos
que se verificam). (ROCHA, 2003, p. 201-2)
No caso, considerando a tradição desse campo de debate, discursos
que preconizam a oralização confrontando-se com discursos que
preconizam o acesso à
Libras.
3
Como se dá tal possibilidade de apreensão do Outro no
Mesmo?
Para tentar responder à questão, lembramos inicialmente
que trabalhar com grandes conjuntos remetendo a posicionamentos discursivos em franca oposição não representa qualquer
garantia de sucesso; pelo contrário, as grandes oposições são
também aquelas que dificilmente poderíamos operacionalizar
em procedimentos de análise consistentes. Por exemplo, não nos
parece de grande interesse a oposição entre discursos do cristianismo versus discursos do budismo, uma vez que lidaríamos com
uma oposição excessivamente genérica. Mais valeria, nesse caso,
desmembrar cada um dos integrantes desse par em unidades
menores, mais claramente situadas, para, então, alcançar um
grau de comparabilidade suficiente: discursos do cristianismo
de que espécie? situados em que momento da história do cristianismo? em que espaço? discursos sustentados por que atores?
Tal “metodologia do fracionamento” seria levada adiante para
se alcançar uma possibilidade qualquer de interdelimitação, e o
mesmo deveria ser feito em relação ao que denominamos “discursos do budismo”. O resultado seria a obtenção de conjuntos
de textos que talvez não se opusessem tão frontalmente, como
era o caso dos discursos do cristianismo e do budismo, mas com
certeza estaremos diante de unidades que apresentarão um grau
de comparabilidade bem superior. O caminho, como vimos, foi
o da “progressiva neutralização das diferenças”, até que chegássemos a unidades suficientemente próximas, cuja confrontação
possibilitaria resultados mais precisos, porque mais fortemente
ancorados em uma dada situação de enunciação. Tal caminho de
neutralização progressiva das diferenças, que nos parece corresponder à mencionada “captação do Outro no Mesmo”, também
pode ser trilhado como um caminho de produção progressiva de
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Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha
diferenças, que ora ilustraremos por meio da exemplificação dos
discursos voltados para a educação bilíngue para surdos.
Com o objetivo de dar visibilidade ao modo de fracionamento progressivo do material, procedimento que nos permitiu
a composição de um corpus no qual o que aparentemente se dava
como um Mesmo acabou se revelando como Outro, recuperaremos
nossa questão de pesquisa e os sucessivos passos de aproximação
ao corpus final. Nosso interesse de pesquisa centrava-se no modo
pelo qual estavam sendo construídos no Brasil os discursos de
legitimação / discussão do ensino bilíngue no processo educacional de surdos ao longo da década de 1990. Como primeiro passo
rumo à consecução de nossos objetivos, deveríamos nos decidir
por uma dada categoria de textos, em meio à grande diversidade
de práticas linguageiras em que esses debates se atualizavam.
Assim, esquematicamente, diremos:
1º.passo: discursos de artigos acadêmicos sobre educação
bilíngue X outros gêneros textuais, como entrevistas,
reuniões de trabalho
Observe-se que, dependendo da perspectiva que venhamos
a assumir, o conjunto de textos a que ora nos referimos pode ser
apreendido como um Mesmo ou como já configurando traços de
alteridade: trata-se de textos que versam todos, sem exceção, sobre
educação bilíngue (um Mesmo, portanto), os quais se atualizam
em gêneros diversos (condição que nos permite falar da entrada
em cena de um Outro).
Uma vez feita a opção pelos artigos acadêmicos, novamente
se impunha a necessidade de transformar o que então se apresentava como um Mesmo (textos acadêmicos sobre educação
bilíngue) em uma composição que explicitasse sua dimensão
de alteridade. Este seria, então, o segundo passo a ser dado na
construção do corpus:
2º.passo: discursos sobre educação bilíngue apreendidos
na revista acadêmica Espaço X discursos sobre educação
bilíngue apreendidos em outras revistas acadêmicas
A decisão tomada nesse segundo passo consistiu na escolha
da revista Espaço, tendo em vista as razões anteriormente apresentadas. Como é fácil perceber, mais uma vez, o que antes se
apresentava como um Mesmo (discursos sobre educação bilíngue
apreendidos em revistas acadêmicas) acabou se fracionando em
um Outro, procedimento que foi sucessivamente adotado, como
indicaremos resumidamente a seguir:
3º.passo: artigos da revista Espaço escolhidos ao longo de
toda a década de 1990 X artigos de apenas alguns exemplares da revista Espaço escolhidos pontualmente
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Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras
4º.passo: artigos da revista Espaço da década de 1990 em
que figuravam no título termos como “bilíngue”, “bilinguismo” X outros artigos
5º.passo: artigos da revista Espaço (década de 1990, figurando
no título termos como “bilíngue”, “bilinguismo”) focalizando uma prática pedagógica X artigos focalizando
uma prática fonoaudiológica
6º.passo: enunciados negativos em artigos da revista
Espaço (década de 1990, figurando no título termos como
“bilíngue”, “bilinguismo” e focalizando uma prática
pedagógica) X demais tipos de enunciados
7º.passo: enunciados contendo negação polêmica X enunciados contendo outros tipos de negação (descritiva e metalinguística)
Desse modo, fica claro de que modo chegamos à definição
final do corpus. Aliás, se nos referimos a uma etapa “final” de
construção do corpus, que fique bastante claro para o leitor que,
na realidade, estamos longe de haver esgotado as possibilidades
de recortes sucessivos do material textual em questão: não fazemos senão interromper os procedimentos de recortes sucessivos
por acreditarmos que já dispomos de um corpus suficientemente
homogêneo para ser submetido à análise e, ao mesmo tempo,
suficientemente diverso para garantir o interesse dos resultados
que poderemos obter por meio de sua análise. A relatividade de
nosso “recorte final” pode ser apreendida no fragmento a seguir:
Onde se situa a fronteira que demarcaria a referida passagem do
Mesmo ao Outro? Quando é que, nos sucessivos recortes a que
procedemos ao longo do trabalho de pesquisa, não mais se teria
um Outro em oposição, mas um Mesmo? Isto é, quando é que
cessaria a função de interdelimitação? (ROCHA, 2003, p. 203)
Gostaríamos de retomar uma questão que deixamos em
suspenso ao final do item 4, não sem nos comprometermos em
retomá-la mais tarde. É o que pretendemos fazer no momento.
Trata-se, no âmbito dos debates que concernem à negação polêmica, da questão dos vínculos entre os pontos de vista afirmativos depreendidos sob os enunciados negativos e os possíveis
enunciadores que dariam sustentação a tais pontos de vista. Em
outras palavras, o que nos cabe no momento é registrar algumas
considerações acerca das condições nas quais identificamos um
enunciado negativo como polêmico ou não. Conforme anunciado,
estamos convencidos de que temos aí uma decisão de ordem
metodológica que cumpre explicitar.
No âmbito da teoria de Ducrot, não há uma caracterização
satisfatória que permita distinguir entre negação polêmica e
descritiva. A materialidade linguística de ambas é a mesma – o
não. Sendo assim, em última instância, apenas o conhecimento
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Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha
do universo do debate permite o reconhecimento efetivo de um
enunciador que sustentaria uma afirmativa subjacente a um
enunciado negativo. Queremos salientar com isso que, muitas
vezes, coube aos pesquisadores decidir, com base na interlocução
que vêm mantendo com a área, se um enunciado negativo era ou
não de caráter polêmico.
Assim, definidos os enunciados com a marca da negação
polêmica, seu conjunto constituiu nosso corpus final de análise.
Foi a partir desse conjunto de enunciados negativos que pudemos
localizar pontos de controvérsias, propondo a organização de suas
afirmativas subjacentes por categorias / perfis de enunciadores.
6. A negação polêmica e suas tonalidades dialógicas
Para Bakhtin (1992), todo enunciado que assume uma completude comunicativa provoca uma “atitude ou compreensão
responsiva ativa”, que é uma reação ao processo de produção de
sentido que o enunciado deflagra. Tal reação, contudo, não precisa se manifestar necessariamente sob a forma de uma réplica
imediata – caso mais recorrente dos gêneros secundários, como
os artigos científicos, que não costumam manter relação direta
com os enunciados alheios e podem até simular a alternância dos
sujeitos falantes própria dos gêneros primários. Essa é uma forma
de se trazer a palavra do outro para o interior de um enunciado,
de se predeterminarem posições responsivas desse outro: tonalidades dialógicas que se imprimem no enunciado.
Um enunciado pode ser motivado, portanto, pelo teor do
enunciado do “outro”. É o que reconhecemos no interior dos
enunciados polêmicos, nos quais dizer não significa negar o
conteúdo que o ponto de vista de um outro poderia assumir,
travando-se um diálogo sub-reptício. Admitimos, portanto, duas
possibilidades. Se o locutor diz que “a proposta bilíngue não privilegia uma língua”, ele pode estar:
• antecipando-se a um enunciador que, a partir das suas
considerações sobre o tema, poderia supor que ele (locutor) assume que “a proposta bilíngue privilegia uma
língua”; ou,
• reconhecendo entre os enunciadores que integram o
debate em pauta algum que assumiria que “a proposta
bilíngue privilegia uma língua”, isto é, o locutor estaria manifestando sua discordância em relação a esse
enunciador.
Analisar cada enunciado negativo, depreendendo suas afirmativas subjacentes, foi para esta pesquisa um modo de tornar
visível esse diálogo – restava saber quem dialoga. Os enunciados
negativos são plenamente assumidos pelo locutor, são de fato
“enunciados”. Mas o que dizer das afirmativas subjacentes? Que
vozes as assumiriam? Tais vozes são trazidas para o discurso como
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Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras
marca de alteridade, como algo que pertence ao “exterior” – um
exterior, aliás, que se rejeita. Os pontos de vista sustentados nas
afirmativas são exatamente aquilo de que a prática de linguagem
instaurada na revista Espaço quer se distanciar.
Neste trabalho, não tivemos como objetivo central oferecer ao leitor resultados de análise de um corpus, mas explicitar
o caminho metodológico empreendido. Queremos, contudo,
apresentar um mínimo acerca dos resultados de nossas análises,
uma vez que foi certamente a metodologia que adotamos que nos
permitiu cartografar diferentes vozes e o diálogo que elas tecem
com o locutor, o que constitui uma forma de compreender efeitos
de sentido que o debate sobre a educação bilíngue poderia estar
produzindo. Após a depreensão de cada afirmativa subjacente aos
enunciados negativos que integraram nosso corpus, concluímos
que as vozes recuperadas poderiam ser agrupadas em quatro
categorias / perfis mais visíveis de enunciadores, descritas a
seguir, que ocupariam um dos polos das controvérsias discursivas.
Passemos a essas categorias.
Identificamos um enunciador reducionista, ou seja, aquele
que reduz a real dimensão dos tópicos em debate, sobretudo no
que diz respeito à concepção prática e teórica do que seja educação bilíngue. Por exemplo, com base no enunciado negativo “A
educação bilíngue para surdos não é um problema meramente
linguístico”, pudemos depreender o ponto de vista afirmativo – A
educação bilíngue para surdos é um problema meramente linguístico – o qual correspondia a esse enunciador, que desconsidera a
complexidade dos assuntos em discussão.
Identificamos também um enunciador equivocado, aquele que
apresenta considerações sobre os tópicos em debate que se revelam enganosas e parece tirar conclusões parciais dos assuntos em
debate. Exemplo: com base no enunciado negativo
“Não se trata [na proposta bilíngue para surdos] de uma
negação [à língua portuguesa].”, depreende-se a seguinte afirmativa subjacente: Trata-se [na proposta bilíngue para surdos]
de uma negação [à língua portuguesa]. Ora, concluir que uma
proposta versando sobre educação bilíngue para surdos seja a
negação da língua portuguesa só pode ser uma característica de
um enunciador equivocado.
A seguir, identificamos um enunciador desinformado, que
demonstra não ter acesso a informações referentes ao universo
da surdez e às implicações psicossociais que esta pode acarretar.
Exemplo: do enunciado negativo “O surdo não pode aprender
a língua oral espontaneamente”, depreende-se o ponto de vista
afirmativo segundo o qual o surdo pode aprender a língua oral
espontaneamente, o que constitui, sem dúvida, uma desinformação.
Um outro enunciador depreendido em nossas análises foi o
enunciador reacionário, isto é, aquele que mantém valores e visões
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Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha
de mundo que podem ser considerados obsoletos, levando-se
em conta outros posicionamentos sociais contemporâneos. Um
exemplo: ao enunciado negativo “Em nosso multidimensionado
mundo atual, não se estabelecem mais certezas”, depreendemos
a seguinte afirmativa (reacionária): Em nosso multidimensionado
mundo atual, ainda se estabelecem certezas.
A definição dessas categorias e suas designações foram
feitas com base num dado juízo que o locutor estaria revelando
sobre os enunciadores ao negar seus pontos de vista. E dizer isso
significa apenas que a atitude de “recusar” um ponto de vista
remete certamente a um “valor” que atribuímos a esse ponto
de vista. Cabe aqui retomar as considerações de Ducrot – com
as quais, pela presente análise, concordamos – quando chama
atenção para o seguinte fato do fenômeno da negação polêmica:
quem nega desqualifica. Assim, reducionismo, equívoco, desinformação e reacionarismo, em que pesem as motivações de cada
um, são atitudes rejeitadas.
Ainda sobre as designações, é preciso fazer três justificativas. A primeira, bastante objetiva, é que nossa organização, tanto
quanto possível, privilegiou uma economia na caracterização – o
que significou reunir o máximo de enunciados num único perfil.
A segunda, referente à metodologia do trabalho, é que procuramos considerar a imagem de destinatário da revista, construída
pelo gênero do qual participa o corpus, durante a escolha das
designações. Isto é, reducionista, equivocado, desinformado, reacionário, da forma como foram descritos, são atribuições possíveis
à imagem de coenunciador da revista, no caso, profissionais da
área da surdez. A terceira, de ordem mais subjetiva, é que, entre
várias designações possíveis, nossa organização acaba, e disso é
difícil escapar, por refletir uma compreensão sobre o assunto que
é a dos pesquisadores, sobre a imagem do coenunciador e sobre
as próprias designações.
7. Alguns impasses teórico-metodológicos
frente à produtividade do corpus
Durante o recorte do corpus, quando estávamos identificando os enunciados de caráter polêmico, deparamo-nos com
dois impasses para os quais não encontramos respostas na descrição proposta por Ducrot. Esses impasses, de natureza teóricometodológica, pareciam se apresentar pela própria natureza da
pesquisa – uma pesquisa de corpus.
Ambos os impasses diziam respeito à relação entre o
enunciado negativo e seu respectivo ponto de vista afirmativo
subjacente. Para alguns dos enunciados negativos, no lugar de
pontos de vista afirmativos, o que conseguíamos depreender eram
interrogativas subjacentes, que nos pareciam questões antecipadas
pelo locutor e que obtinham como resposta a negação do que era
indagado. Um exemplo disso, vemos no enunciado “Não se sabe
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Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras
se algum dia conseguiremos ter crianças suficientemente bem
oralizadas para que se possa dar um curso em língua oral.”, que
parece responder à pergunta: você sabe se algum dia conseguiremos ter crianças suficientemente bem oralizadas para que se
possa dar um curso em língua oral?
Propor a depreensão de questões subjacentes nesses casos
seria admitir a possibilidade de a polêmica de enunciados negativos se manifestar também com um enunciador que assumiria
o caráter de interlocutor. Não que os outros enunciadores não
tenham esse caráter – de uma forma ou de outra, são “vozes”
com as quais o gênero “dialoga”. Quando denominamos esse
enunciador de “interlocutor”, o que estamos querendo salientar
é sua característica de parecer estar no meio do caminho “entre”
um ponto de vista – remetendo para o conceito de enunciador de
Ducrot – e uma voz real – como num diálogo face a face. De fato,
apenas um dos enunciados desse tipo não fazia parte do único
artigo de Espaço que transcrevia uma palestra – gênero que mais
facilmente simula uma interação verbal do tipo diálogo.
O outro impasse diz respeito ao teor da afirmativa subjacente. Para apenas três enunciados negativos do corpus, foi possível
depreender afirmativas cujos pontos de vista eram qualificados,
diferentemente das demais afirmativas, que tinham em comum
o fato de apresentarem pontos de vista rejeitados pelo locutor.
Um desses enunciados é: “quem não resiste à tentação de vê-los
[os surdos], algum dia, serem como os ouvintes não encontrará
na educação bilíngue uma tábua de salvação”. O problema apontado aqui não está na segunda negação, mas no sujeito oracional
– “quem não resiste à tentação de vê-los [os surdos], algum dia,
serem como os ouvintes” – cuja afirmativa subjacente indica que
há quem resista à tentação de ver os surdos, algum dia, serem como
ouvintes. Ora, o teor dessa afirmativa possui o mesmo caráter crítico que os demais enunciados negativos do locutor, que polemiza
com os enunciadores reducionista, equivocado, desinformado e
reacionário.
Essas três ocorrências de afirmativas qualificadas possuem
em comum o fato de estarem na posição de sujeito oracional, mas
sua produtividade limitada nos permite apenas apontar para um
desdobramento em futuras pesquisas que possam avaliar sua
recorrência. De qualquer modo, registre-se desde já o interesse de
pesquisas que retomem a questão, tendo em vista que a atualização de um enunciador que assume um ponto de vista afirmativo
qualificado, que ora chamamos de “enunciador crítico”, é um
caso que não está previsto no tratamento da negação polêmica
em Ducrot.
8. (In)conclusões
Neste artigo, pretendemos reafirmar que a metodologia que
norteia uma pesquisa assentada em bases de ordem discursiva
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Gragoatá
Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha
encontra-se em ininterrupta interlocução com o quadro teórico e
com o tipo de práticas linguageiras que se deseja investigar. No
caso da pesquisa que deu origem ao presente artigo, pudemos
depreender algumas das ressonâncias da metodologia construída
como sucessivas tomadas de decisão do pesquisador. Com efeito,
a pesquisa relatada permitiu-nos explicitar as inter-relações entre
o plano metodológico e minimamente os seguintes itens:
• delimitação do corpus, tendo em vista os sucessivos passos
que foram dados, em função dos saberes que detinha o
pesquisador acerca do universo pesquisado: relevância
de uma instituição (o INES) no campo da educação de
surdos, quantidade de revistas acadêmicas publicadas
na área, conhecimentos implícitos presentes no debate
sobre a educação de surdos na atualidade, etc.;
• eleição de marcas linguísticas de apoio à delimitação
do corpus, conforme se verificou na escolha de títulos de
artigos em que figurassem vocábulos como “bilíngue” e
“bilinguismo”, assim como na eleição de enunciados em
que se atualizasse a negação polêmica;
• especificação do quadro teórico adotado para o tratamento dos enunciados negativos, uma vez que, se todos
os tipos de negação são igualmente marcados linguisticamente pela presença de não, também foi uma decisão
metodológica considerar como polêmicas as negações em
relação às quais o pesquisador poderia identificar como
plausível um ponto de vista afirmativo subjacente;
• finalmente, problematização do quadro teórico adotado,
considerando que o corpus analisado mostrava evidência
de situações não previstas, como o atesta a captação dos
enunciadores interlocutor e crítico.
Uma última observação importante acerca das bases metodológicas de toda investigação de caráter discursivo diz respeito
à atualização do princípio de alteridade, que parece funcionar
necessariamente como horizonte teórico:
... seja qual for a natureza dos elos que dão consistência ao
conjunto de textos escolhidos como corpus de uma investigação
em Análise do Discurso, a saber, relação de maior ou menor
afrontamento, de alianças mais ou menos explícitas, etc., algo
que sempre se mantém como imperativo metodológico é uma
certa concepção de corpus que privilegie a perspectiva do não
uno, do múltiplo. (ROCHA, 2003, p. 207)
Em outras palavras, dando suporte ao ponto de vista apresentado, o que mais uma vez se reitera ao se conceder ênfase à
perspectiva da alteridade é a certeza de que a noção de discurso
só faz sentido se interligada à de interdiscurso (MAINGUENEAU, 2005).
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Implicações de uma perspectiva discursiva para a construção de uma metodologia de análise das práticas linguageiras
Abstract
This paper presents the construction of a methodological approach in order to investigate in which
extent debates on bilingual education for deaf
people throughout the nineties in Brazil reproduce
classical controversies in studies on deafness. The
theoretical approach was Discourse Analysis on
an enunciative basis, with a special emphasis
on the contributions of Maingueneau. The paper highlights the fact that such a methodology
keeps a productive dialogue with the theoretical
framework, as well as with the kind of language
practices put under analysis. It is pointed out
as main results of our research: the existence of
a relation between the corpus delimitation and
the researcher’s knowledge about the universe
investigated; the choice of linguistic features supporting corpus delimitation; specification of the
theoretical framework adopted in the analysis of
negative utterances which are seen as polemical
ones (DUCROT); problematization of the theoretical framework adopted.
Keywords: Discourse Analysis; polemical negation; language practices; theoretico-methodological implications; deaf people education.
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Gragoatá
Isabel Cristina Rodrigues e Décio Rocha
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Veridicção e paixão na práxis
enunciativa
Arnaldo Cortina
Resumo
O propósito deste trabalho consiste em mostrar a
perspectiva metodológica da teoria semiótica para
o tratamento da questão do discurso. Focalizando
especificamente os conceitos de veridicção e de
paixão, procura observar como fazem parte do
processo de constituição da práxis enunciativa.
Para o exame desses dois procedimentos discursivos serão comentados, a título de exemplo da
metodologia de análise, dois textos distintos, um
conto de Machado de Assis intitulado “O cônego
ou a metafísica do estilo” e um texto publicitário
da cerveja Nova Schin, publicado em revista semanal de notícias.
Palavras-chave: Enunciação. Paixão. Práxis
enunciativa. Texto. Veridicção.
Gragoatá
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Gragoatá
Arnaldo Cortina
Texto e discurso na teoria semiótica: construção do método
Dentre as várias acepções atribuídas ao termo texto, Greimas e Courtés (2008) consideram que, segundo Hjelmslev (1975),
o texto designa “a totalidade de uma cadeia linguística, ilimitada
em decorrência da produtividade do sistema” (p.503). Por outro
lado, o termo texto pode ser empregado em sentido restritivo:
“isso se dá quando a natureza do objeto escolhido (a obra de um
escritor, um conjunto de documentos conhecidos ou de depoimentos recolhidos) marca-lhe os limites; nesse sentido, texto se
torna sinônimo de corpus” (p.503). Tanto num sentido quanto no
outro, o texto designa uma grandeza considerada anteriormente
à sua análise. Assim, pode-se perceber que “o texto se constitui
apenas de elementos semióticos conformes ao projeto teórico da
descrição” (p. 503), isto é, dependente do foco a partir do qual se
observa o material textual.
Para muitas teorias, o discurso pode ser considerado equivalente ao texto, mas quando se observa a proposta teórico-metodológica da semiótica, o discurso deve ser entendido como uma
instância do percurso gerativo de sentido, correspondente ao
enunciado, em que se manifestam o enunciador e o enunciatário,
num tempo e num espaço, quando se aborda a sua organização
sintática, em que aparecem temas e figuras, no componente
semântico.
Falar, portanto, do texto e do discurso segundo a perspectiva
semiótica significa observar um objeto a partir do ponto de vista
de uma teoria que se preocupa com a apreensão do sentido do
texto e que, a partir do exame desse objeto, descreve seu sentido,
geralmente elegendo-se um ponto de vista específico, na medida
em que considera impossível a descrição global do sentido, sem
que se possa, a partir de determinada posição, reexaminá-lo e
perceber outras variações.
É interessante observar que, no decorrer das investigações
da questão da significação, mais especificamente no caso dos
trabalhos de pesquisadores franceses, a semiótica distingue-se da
semiologia. Enquanto esta última adota uma interpretação linguística do signo, nas suas mais diferentes formas de manifestação
(o que é realizado por Barthes e Jakobson), aquela, a semiótica,
opta por examinar, uma por uma, as diferentes formas de manifestação do signo (quer verbais, quer não-verbais) sem tratá-los
metaforicamente como espécies de linguísticas.
Nesse sentido, portanto, tomo partido neste trabalho da
visão da semiótica que parte de um objeto, o texto, qualquer que
seja sua materialidade, para examiná-lo, por meio da aplicação
de um método em que se apresentam tensões, contradições,
continuidades e descontinuidades e um percurso de geração de
seu sentido.
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Veridicção e paixão na práxis enunciativas
Assim, a semiótica define-se como uma teoria geral da
significação, como uma teoria da linguagem. Não uma teoria
particularmente linguística, embora sua herança o seja. Ao propor
uma descrição da significação em níveis, constitui um modelo de
previsibilidade comum a textos verbais, não-verbais e sincréticos,
que têm seu processo de textualização descrito por semióticas
específicas.
Originalmente a semiótica preocupa-se com a delimitação
de um objeto homogêneo, com a construção de um modelo de
análise de cunho hipotético-dedutivo, com a construção de um
modelo para descrever a universalidade da significação, sempre
visando a um rigor metodológico. Entretanto, com seus diferentes
desdobramentos, deve ser considerada como uma teoria não acabada, um projeto teórico que vai, na sua trajetória, desenvolver
seu corpo de conceitos e estender os domínios de sua reflexão de
modo a abranger, sucessivamente, aspectos da significação a que
renunciou, inicialmente, em nome de um princípio de homogeneidade.
As mudanças teóricas mais acentuadas dos últimos anos
têm levado à consideração de fases da Semiótica. Hénault (2006)
fala de três períodos de síntese da transformação dos estudos em
semiótica. O primeiro inicia-se com a publicação de Semântica
estrutural, de Greimas, obra fortemente influenciada pelos traba­
lhos de Hjelmslev e BrØndäl, cujas abundantes análises sêmicas
apresentadas abriram amplas perspectivas para os estudos literários e para as pesquisas em lexicologia. A segunda síntese diz
respeito a uma série de artigos publicados por Greimas entre 1966
e 1979. Esse período, segundo a autora, foi de intensa reavaliação
epistemológica, pois a descoberta da proposta de análise narrativa
de Propp é investigada e transformada segundo a perspectiva de
uma semiótica que assumia a dimensão transfrástica. Além disso,
o “desenvolvimento da problemática das modalidades marca época
na história da semiótica, uma vez que ela, por sua vez, permitia
fragmentar em percursos actantes mais precisos, os programas de
fazer ou de ser que tinham permitido articular e decompor as
grandes unidades que eram as provas do esquema canônico” (p.
141). A terceira síntese, segundo a autora, consiste na publicação
do Dicionário de Semiótica em 1979, que parecia fixar e definir mais
claramente todos os conceitos até então utilizados pelos pesquisadores em semiótica e se estende até 1991, ano de publicação do
livro Semiótica das paixões, em co-autoria de Greimas e Fontanille.
Hénault (2006) termina seu texto com a constatação de que,
a partir de certo momento, a pretensa estabilidade almejada com
a publicação do dicionário deu lugar a uma série de insatisfações
tendo em vista os diferentes trabalhos que então estavam sendo
desenvolvidos por diferentes semioticistas reunidos em torno
de Greimas nas sessões dos “Seminários de semiótica”, de Paris.
Esse período das três sínteses apontadas pela autora costuma ser
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Gragoatá
Arnaldo Cortina
designado então como período da semiótica clássica. A partir
da morte de Greimas, em 1992, as novas tendências dos estudos
em semiótica disputam um lugar na sucessão de seus trabalhos.
Zilberberg desenvolve sua proposta de uma semiótica tensiva;
Fontanille, a semiótica da práxis enunciativa; Landowski, a
sociossemiótica; Coquet, a semiótica subjetal; Petitot, a semiótica
morfodinâmica, entre outras. Essas diferentes formas de abordagem da significação em alguns momentos parecem desagregar e
fracionar uma postura teórica mais coesa; por outro lado, porém,
são também sua força, porque permitem observar a complexidade
do processo de constituição da significação em múltiplos objetos.
Primeira abordagem dos procedimentos enunciativos
Na década de 1970, quando Greimas veio ao Brasil para
ministrar um curso de semiótica a um grupo de pesquisadores
engajados em compreender suas propostas metodológicas e interessados em contribuir para seu desenvolvimento, houve, em certo
dia, uma pergunta a ele dirigida por Edward Lopes e Ignácio Assis
Silva a propósito da enunciação. A resposta de Greimas acabou
sendo publicada na forma de um artigo, com título “A enunciação (uma postura epistemológica)”, no número um, de 1974, da
revista Significação, editada pelo Grupo de Estudos Semióticos
“Algirdas Julien Greimas”, que foi fundado exatamente durante
aquele curso em Ribeirão Preto, no interior paulista. Como afirma
Greimas em seu texto, não se tratava de uma pergunta, mas de
um conjunto de perguntas que indagava sobre a relação entre
enunciado e enunciação.
Não é meu propósito aqui retomar toda a problemática
então tratada, mas destacar um dos aspectos desse conjunto de
questões. Ele diz respeito à indagação proposta por Lopes e Silva a
respeito da possibilidade de interpretar a relação entre enunciação
e enunciado como um processo metalinguístico. De fato, Greimas
afirma essa possibilidade ao dizer que a enunciação é o próprio
enunciado, pois, mesmo que não aponte marcas mais explícitas,
é sempre pressuposta, isto é, não se pode conceber o enunciado
sem se reportar à enunciação.
E por que começar então com essa lembrança? Por que ao
me deparar com essa temática reporto-me à questão da metalinguagem? A razão está no fato de que, para falar de veridicção e
de paixão, é necessário fazer referência à instância da enunciação
no discurso. E na medida em que proponho refletir sobre essa
questão, estarei tratando de um mecanismo que é intrínseco ao
próprio texto que produzo.
Para iniciar, portanto, a discussão, partirei de duas citações
de dois diferentes textos que apresentam uma definição para veridicção e outra para a paixão, a partir do ponto de vista designado
por Hénault (2006), acima referido, como semiótica clássica.
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Veridicção e paixão na práxis enunciativas
Segundo Greimas e Courtés (2008), no que se refere ao ato
comunicativo, o que interessa observar, do ponto de vista semiótico, não é o problema da verdade, mas o do dizer verdadeiro,
isto é, o da veridicção. Assim, entre destinador e destinatário ou
entre enunciador e enunciatário do processo comunicativo “um
crer-verdadeiro deve ser instalado [...] e é esse equilíbrio, mais ou
menos estável, esse entendimento tácito entre dois cúmplices mais
ou menos consciente que nós denominamos contrato de veridicção
(ou contrato enunciativo)” (p. 530). Dessa forma, portanto, o que
os autores apontam é que a semiótica deve estar atenta para a
maneira como o discurso constrói seu efeito de verdade.
Em outro texto, Greimas afirmava o seguinte:
[...] o discurso é esse lugar frágil em que se inscrevem e em
que se leem a verdade e a falsidade, a mentira e o segredo;
esses modos de veridicção resultam da dupla contribuição
do enunciador e do enunciatário, essas diferentes posições
fixam-se apenas sob a forma de um equilíbrio mais ou menos
estável, proveniente de um acordo implícito entre dois actantes
da estrutura da comunicação. É esse entendimento tácito que
é designado pelo nome de contrato de veridicção. (GREIMAS,
1983, p.105. Tradução nossa e grifo do autor).
Para a semiótica, portanto, todo discurso é o resultado da
negociação de um sentido entre sujeitos, o que se estabelece por
meio da veridicção.
Com relação às paixões, Greimas e Fontanille irão afirmar
que elas aparecem no discurso como portadoras de efeitos de
sentido muito particulares. Esses efeitos constituem-se num “perfume” difícil de determinar, mas que emana da organização discursiva das estruturas modais. Segundo os autores, compreender
as paixões como perfume remete a duas constatações.
Uma primeira constatação impõe-se: a sensibilização passional
do discurso e sua modalização narrativa são co-ocorrentes, não
se compreende uma sem a outra, e, no entanto, são autônomas, submissas, provavelmente, ao menos em parte, a lógicas
diferentes. [...] Em segundo lugar, captar os efeitos de sentido
globalmente como ‘cheiro’ dos dispositivos semionarrativos
postos em discurso é reconhecer, de certa maneira, que as
paixões não são propriedades exclusivas dos sujeitos (ou do sujeito), mas propriedades do discurso inteiro, e que elas emanam
das estruturas discursivas pelo efeito de um ‘estilo semiótico’
que pode projetar-se seja sobre os sujeitos, seja sobre os objetos,
seja sobre sua junção. (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p.21)
O que se pode observar nessas citações, portanto, é que tanto
a veridicção quanto a paixão correspondem a efeitos de sentido do
discurso. Por outro lado, porém, ao mesmo tempo em que essas
relações são estabelecidas na superfície discursiva, podem ser
identificadas no nível das estruturas narrativas – e foi desse nível
que Greimas e seus seguidores partiram inicialmente. Embora o
conceito de veridicção tenha emanado do exame das modalidades
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Gragoatá
Trata-se aqui de
referência ao quad rado sem iót ico
proposto por Greimas com o objetivo
de tornar operatória a representação da estrutura
elementar da significação. Os dois
eixos da contrariedade são constituídos por dois termos
positivos contrários
e dois termos negativos subcontrários. Além disso,
representam-se no
quadrado as relações de contradição, que é elaborada
por um esquema
positivo e por um
esquema negativo,
e ainda a de complementariedade,
que se estabelece
por meio de uma
dêixis positiva e outra negativa.
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Arnaldo Cortina
veridictórias observadas no nível narrativo em que, por exemplo,
o destinador, para manipular seu destinatário, vale-se da mentira
(parecer + não-ser), do segredo (não-parecer + ser), da falsidade
(não-parecer + não-ser) ou da verdade (parecer + ser) e, por
desdobramento, alçado ao nível discursivo, o conceito de paixão
levou um certo tempo para se incorporar às análises discursivas
no desenrolar das propostas metodológicas da semiótica.
Embora Greimas e Fontanille (1993) abram o capítulo “A
epistemologia das paixões” com o trecho acima reproduzido,
as análises da avareza e do ciúme desenvolvidas nos capítulos
seguintes centram-se nas paixões de papel, isto é, na maneira
como a avareza ou o ciúme manifesta-se no enunciado.
Com relação ao capítulo sobre a avareza, dois textos são
citados para discutir essas paixões: a fábula de La Fontaine, “A
leiteira e a bilha de leite”, e um trecho do romance de Balzac, As
ilusões perdidas, que focaliza a atitude avara de Mme. Bargeton
quando se vê obrigada a sobreviver com o dinheiro que havia
trazido consigo para viver em Paris.
No caso da fábula de La Fontaine, o que se pergunta é se a
narrativa trata do “investimento” ou da “dissipação”, duas dêixis
do quadrado1 que representam a oposição entre “tomar” e “dar”,
correspondentes às ações decorrentes das paixões da “avareza” e
da “dissipação”. Na realidade, o que o discurso manifesto nessa
história aponta é o fazer do sujeito central, a menina. Ao se distrair
com seus pensamentos que consistiam no acúmulo de valor, de
bens, e consequente enriquecimento, a garota não realiza adequadamente o percurso do transporte da bilha de leite. Ao tropeçar,
deixa cair a bilha, o que significa a impossibilidade de realizar
tudo o que imaginara fazer com a venda do leite. A moral que
encerra a fábula chama a atenção para a distração da menina: ao
invés de ficar sonhando com o que poderia ser, deveria ter mais
atenção com o que tinha de fazer. Essa contraposição modal é
dirigida ao enunciatário e a narrativa corresponde à figurativização do não-dever-fazer.
No caso do texto de Balzac, aponta-se uma oposição de
valores. A parcimônia de Mme. Bargeton com seus gastos em Paris
é interpretada como avareza pelas pessoas que vivem naquela
cidade, pois elas são caracterizadas pela dissipação. Já na cidade do
interior francês de onde tinha vindo, Angoulême, sua atitude era
comum à de todos os nobres da região, que consistia na moderação
dos gastos. Enquanto exame da manifestação passional do texto
de Balzac, o que essas observações de Greimas e Fontanille (1993)
apontam é que a caracterização da paixão depende do contexto
em que se manifesta, pois é uma questão de valor.
Em Cortina (2004) procurei mostrar a análise de dois textos
tipologicamente distintos com o objetivo de discutir duas perspectivas para o tratamento da paixão. No conto “A desejada das
gentes”, de Machado de Assis, ela é vista como elemento constiNiterói, n. 29, p. 223-238, 2. sem. 2010
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Veridicção e paixão na práxis enunciativas
tuinte da narrativa e na crônica jornalística “Ereção permanente”,
de Mario Vargas Llosa, como manifestação retórica da organização
discursiva. A principal preocupação desse trabalho consistiu em
contrapor o exame de uma paixão de papel, a obsessão do narrador pela bela Quintília, presente no conto machadiano, à análise
da enunciação apaixonada do enunciador da crônica de Llosa, ao
relatar sua experiência de conhecer o carnaval brasileiro.
No caso do texto de Machado, verifica-se que a paixão é o
que move a narrativa que é contada por um sujeito a outro, em
segundo plano. A técnica do narrador consiste em diluir sua
presença para dar voz a duas personagens que conversam, o que
vem a ser a debreagem de segundo grau. Uma delas, o conse­
lheiro, conta a seu amigo o que se passou em determinada época
de sua vida, constituindo-se, assim, num narrador de segunda
instância, pois sua narrativa se dá no interior da debreagem de
segundo grau. O conto de Machado simula a situação de uma peça
de teatro em que as personagens falam. O leitor é um espectador
que assiste ao drama.
No caso do texto da crônica jornalística, a dimensão passional pode ser identificada na maneira a partir da qual o enunciador
se relaciona com o tema do discurso que produz. Ao relatar sua
experiência de presenciar as festividades do carnaval carioca o
enunciador demonstra estar envolvido com aquilo que narra,
pois sua visão sobre o acontecimento é eufórica. Nesse sentido,
seu fazer argumentativo consiste em despertar no leitor a mesma
paixão, isto é, modalizá-lo pelo querer. As marcas de subjetividade presentes no discurso de Llosa são também uma forma de
aproximação de seu leitor, o que corrobora o princípio passional
de sua construção.
Quanto ao aspecto do valor que adquire a dimensão passional, o que se pode constatar por meio do exame dos dois textos
acima referidos é que eles se projetam de forma diferenciada.
Enquanto o de Machado constrói um cenário em que a relação
entre sujeito e objeto reflete uma tensão entre um querer e um
não-poder, que delimitam e confrontam o desejo, pois o narrador
da história interna do conto não consegue obter a aceitação de
seu amor por Quintília, o de Llosa descreve um cenário em que o
desejo não tem limites, é distenso, e em que o querer e o poder não
se opõem, pois a relação verdadeira é a da complementaridade.
Não se pode deixar de notar, porém, que no texto machadiano há uma transformação do querer que move os sujeitos da
história. Inicialmente o interesse do herói por Quintília decorre
de uma aposta, pois ela era objeto de interesse de vários homens
que cobiçavam suas posses, mas, com a aproximação entre os dois
ocorre uma transformação de estados: ao invés de ser movido pelo
interesse, ele passa a ser movido pela paixão. De acordo com a
análise proposta, a transformação do estado de relaxamento para
o de tensão na trama amorosa do conto machadiano se dá em
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função do apagamento do valor econômico do objeto do desejo,
isto é, os dois amigos que haviam feito a aposta deixam de caracterizar Quintília como objeto da riqueza e passam a valorizá-la
enquanto sujeito.
O que é possível dizer ainda sobre esses textos, do ponto de
vista da veridicção, é que cada um deles se vale de um recurso
distinto para criar o efeito de sentido de verdade. O conto de
Machado, como já apontamos acima, vale-se da manifestação
do diálogo como forma de representação do fato narrado. O
conselheiro e seu amigo encontram-se e o primeiro conta para o
segundo como conheceu e como se apaixonou pela bela Quintília.
A reconstituição dessa situação de interlocução é responsável pela
manutenção da impressão da realidade do relato. A crônica de
Llosa, por sua vez, mantém o efeito de verdade, porque euforicamente o enunciador afirma que viveu a situação que narra ao vir
ao Rio de Janeiro para conhecer o carnaval e que isso tinha sido
uma experiência inusitada.
Partindo, portanto, da visão clássica da semiótica sobre
veridicção e paixão, procurei contrapor à manifestação da paixão
de papel, que faz parte da estratégia veridictória de um texto no
nível de seu enunciado, como é o caso do conto de Machado acima
referido, a manifestação da paixão como estratégia veridictória
de outro texto, o de Llosa, no nível da enunciação. Resta então
examinar como essa mesma questão pode ser observada a partir
dos desenvolvimentos mais recentes da semiótica oriunda da
obra greimasiana.
Segunda abordagem dos procedimentos enunciativos
Diferentemente da concepção estrutural de que se originou a semiótica, a questão da enunciação passa a ser observada
a partir de uma outra perspectiva. A significação deixa de ser
pura e simplesmente um artefato resultante de uma série de
combinações do sistema da língua e é compreendida como o
reflexo da movimentação desse sistema com o contexto em que
é produzida. Nesse sentido, o ideológico é reconhecido como
intrínseco à significação, porque determina e é determinado pelo
uso da língua. Retomando Hjelsmlev (1975), a interdependência
entre uma forma do conteúdo e uma forma da expressão é o que
constitui exatamente a linguagem e é isso que fará com que ela
construa sentidos.
Dessa maneira, portanto, é que os estudos mais recentes da
semiótica irão pensar uma práxis da enunciação. Não se trata,
portanto, de descrever o mecanismo dos elementos do discurso no
percurso gerativo do sentido, mas de entender de forma dinâmica
as interligações entre os diferentes patamares que o constituem.
Assim, a enunciação não está simplesmente acoplada às instâncias
sêmio-narrativas, mas determina-as e, por elas, é determinada.
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Veridicção e paixão na práxis enunciativas
Reconhecer, porém, a inter-relação entre o enunciado e
suas condições de produção não significa afirmar o primado da
verdade sobre o dizer. Um texto nunca será a expressão de uma
realidade concreta, porque a linguagem é a mediadora entre o real
e uma forma de apreendê-lo, ela não é uma instância reprodutora,
mas criadora. Assim, quando se pensa na constituição do sentido
pela linguagem, pensa-se na veridicção e não na verdade. A interpretabilidade do texto está assentada na forma como ele se faz
parecer verdadeiro, isto é, como entre enunciador e enunciatário
é negociado o dizer verdadeiro. Além disso, nessa relação entre
enunciador e enunciatário está sempre pressuposta a ideia de um
contrato, de uma adesão, o que implica que o primeiro age sobre
o segundo por meio de um procedimento retórico-discursivo que
é a passionalização.
Para procurar tornar mais clara essa questão dos
procedimentos veridictórios e passionais na constituição da
práxis enunciativa, examinemos dois diferentes textos, que se
constroem a partir de duas diferentes semióticas: a verbal e a
visual. O primeiro deles é o conto machadiano intitulado “O
cônego ou a metafísica do estilo” (ASSIS, 1997, p. 570-3), publicado
originalmente no livro de contos intitulado Várias histórias.
Em primeiro lugar, o que se deve considerar quando se
examina a constituição significativa do texto de Machado é que
ele, primeiramente, obedece às injunções da linguagem escrita e,
além disso, corresponde a um tipo específico de texto, o conto, que
é uma das formas da manifestação da linguagem literária. Nesse
sentido, a práxis enunciativa está condicionada a um conceito que
Fontanille (2007) retoma de Iuri Lotman e procura incorporá-lo à
semiótica, qual seja, o de semiosfera. Assim, a forma de construção
do enunciado reflete uma concepção cultural do tipo de texto a
ser produzido.
Uma característica central da narrativa machadiana é
o diálogo entre o narrador e seu narratário. Toda a história é
contada como se o narrador estivesse diante de seu narratário e
a ele contasse um caso. E o conto cria um efeito tão verídico desse
diálogo que é um dos poucos textos em que o leitor tem voz,
pois a ele são atribuídos três enunciados: “Sexual?”; “Mas, então,
amam-se umas às outras?”; “Confesso que não.” (ASSIS, 1997,
p. 571). O próprio título sugere esse caráter dialógico, ao coordenar
dois sintagmas por meio da conjunção alternativa “ou”, pois sugere
que o leitor pode escolher um deles para direcionar a leitura da
narrativa. O conto pode chamar-se “o cônego” ou “metafísica do
estilo”, porque, ao contar a história de um cônego que escreve um
sermão, faz uma discussão sobre o estilo de sua escrita. Cada um
desses títulos corresponde a uma narrativa distinta. A primeira é
aquela que conta como o cônego recebeu o convite para escrever
seu sermão e como se pôs a produzi-lo. A segunda é a que narra
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a história de uma palavra que procura por outra para construir
o discurso. O recurso utilizado pelo enunciador para construir a
narrativa da produção do sermão é o da intertextualidade.
O conto inicia-se por meio da reprodução de um diálogo
entre um casal apaixonado, duas palavras que se procuram, um
substantivo e um adjetivo. Ocorre, porém, que o dizer atribuído a
cada um dos apaixonados é a reprodução do enunciado do “Cântico dos cânticos”, do Velho Testamento. Por meio do emprego das
aspas, o que caracteriza, na perspectiva dos trabalhos de AuthierRevuz (1998), um procedimento de heterogeneidade mostrada
marcada, o dizer de um (“Vem do Líbano, esposa minha, vem
do Líbano” – reprodução de dois versos do 3º canto) é seguido
pelo dizer do outro (“Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se
encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma
de amor...” – reprodução de três versos do 4º canto).
Na realidade, a narrativa do conto machadiano simula o ato
de produção do discurso. A estrutura que dá suporte à narração
é bastante simples. O cônego Matias (S1) fora convidado por algumas pessoas (S2) a escrever o sermão para uma festa. Inicialmente
recusa o convite, mas é convencido a realizar a tarefa quando
S2 alude a sua competência para compor o sermão (faria aquilo
brincando). Assim, seduzido pelo Destinador-manipulador, S1
põe-se a executar a tarefa. O narrador da história dirige-se, então,
ao leitor e convida-o a entrar na mente do cônego para ver como
ele elaborava seu sermão. Percebe-se, portanto, que a um procedimento de manipulação manifestado no enunciado há outro
correlato na enunciação.
Porque não tinha muita disposição para escrever, Matias
inicia seu sermão com má vontade, mas começa a tomar gosto pelo
trabalho e mergulha na construção do texto. Ora escrevendo com
mais velocidade, à medida que as palavras fluem na continuidade
do discurso, ora diminuindo o ritmo, quando precisa escolher com
mais vagar as palavras que irá empregar, Matias, de repente, cai
num estado de falta: precisa escolher um adjetivo adequado para
combinar com um substantivo, mas o termo apropriado não lhe
vem à mente. Essa tensão desencadeada pela ausência do termo
que combinaria com outro é narrada de forma alegórica pelo
narrador que toma o leitor pelas mãos e convida-o a penetrar no
cérebro do cônego. Em verdade o substantivo (Sílvio) que habita o
lado direito do cérebro sai à procura de seu par, o adjetivo (Sílvia),
que habita o lado esquerdo. A intensidade da procura é marcada
pela extensão da busca de um pelo outro. Pode-se ainda fazer
uma inferência interpretativa, que a cena narrada sustentaria,
em relação ao nome do amado e da amada. Sílvio, na mitologia
latina, é o filho de Enéas e Lavínia, que nascera em um bosque;
consequentemente, Sílvia é sua forma feminina e significa aquela
que é nascida na floresta. A mata, ou o bosque, ou a floresta, cor232
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responde à figurativização do cérebro de Matias, lugar do qual
surgem Sílvio e Sílvia que buscam um encontro.
O procedimento da intertextualidade, então, já anunciado
anteriormente, consiste em que os dizeres dos sujeitos apaixonados
trazem para o texto de Machado trechos do texto do “Cântico dos
cânticos” bíblico. Em contraposição a esse texto há referência ao
texto shakespeariano, também pelo procedimento da intertextualidade (“Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol”). Essa oposição marcada pelo enunciador aponta para o caráter do interdiscurso. No
cérebro de Matias, um eclesiástico, o diálogo amoroso só poderia
manifestar-se por meio da reprodução do discurso bíblico, pois
sua visão do amor entre dois seres só pode ser mediada pela visão
bíblica da paixão, por isso “Cântico dos cânticos” e não “Romeu
e Julieta”, de Shakespeare, que fala do amor mundano.
Observa-se, portanto, no nível da manifestação, um diálogo
entre diferentes posições de discursos, que são invocadas por meio
da instância da enunciação, para caracterizar o dizer do sujeito
responsável pela transformação narrada, qual seja, a produção
de um sermão em comemoração a uma festividade. E essa voz
enunciativa, num afirmar metalinguístico reiterado, considera o
casamento entre as palavras, fruto da união entre Sílvio e Sílvia
que se procuram, a própria definição do estilo. Ao responder a
uma pergunta do leitor que se admira pela revelação de que as
palavras nutrem um sentimento amoroso entre elas, o narrador
responde: “Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento
delas é o que chamamos estilo.” Assim, no dizer do enunciador,
ao construir seu texto, cônego Matias realiza um encontro entre
duas palavras que estão em seu cérebro e a possibilidade desse
encontro aí realizado será responsável pela configuração individual do seu dizer, uma maneira de tornar particular a forma de
reproduzir um discurso outro, no caso, o religioso.
De qualquer forma é preciso também observar que a instauração da práxis enunciativa no texto machadiano é decorrente
de uma circunstância da semiosfera, uma vez que se deve levar
em consideração que se trata de um texto literário e, dentre os
diferentes tipos de textos dessa modalidade, é um conto. Partindo
desse dado é possível observar que a relação entre o enunciador
e seu enunciatário é marcada por um movimento de tensão crescente que sustenta o jogo entre essência e aparência em que se
assenta o contrato veridictório. Entre a narrativa da busca de Sílvio
por Sílvia que ocorre na mente do cônego há uma diferença de
aceleração em relação àquela que conta o ato da escrita do sermão.
Enquanto a primeira segue um movimento frenético, que é a busca
do amado e da amada, a segunda é lenta, pois, para escrever, o
cônego se põe a pensar e seu estado de reflexão é marcado pela
distensão, pela acomodação.
Ao mesmo tempo em que esses dois percursos desenvolvemse, há ainda a constituição da narrativa englobante, responsável
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pelo desenvolvimento das duas anteriores. Ela é a conversa entre
dois interlocutores, o sujeito que enuncia e o sujeito para quem se
dirige. Essa complexidade discursiva configura a práxis enunciativa do texto machadiano. Seu valor literário reside no fato de que
há um efeito estético criado pelo jogo entre um conteúdo e uma
forma responsável pelo acabamento do texto. Além disso, o fato
de ser uma história mais curta e mais centrada em um único foco
(a escrita de um sermão realizada por um cônego), o que a caracteriza como conto, é o que determina a manutenção da tensão da
significação no texto.
A configuração enunciativa do conto de Machado, portanto,
compõe-se por meio do jogo entre o contrato veridictório instaurado entre enunciador e enunciatário e a manifestação passional.
Ao mesmo tempo em que há uma paixão enunciada, revela-se
uma paixão na enunciação.
Examinemos agora outro texto, constituído a partir de outra
semiótica, a visual. Na verdade, o texto em questão estabelece uma
inter-relação entre a semiótica visual e a verbal, o que o caracteriza
como um texto sincrético. Trata-se de uma propaganda da cerveja
Nova Schin, veiculada em uma revista semanal.
Figura 1 - Propaganda da Nova Schin veiculada
na revista Veja, edição 2135, de 21/10/2009, p. 164
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Ao observar a propaganda publicitária, o leitor identifica um
modelo masculino sentado em uma poltrona com os pés estendidos sobre uma mesinha, segurando na mão esquerda um copo
de cerveja e, na mão direita, o controle remoto de um aparelho de
áudio e/ou de vídeo. As duas mãos estão simetricamente dispostas, à esquerda e à direita, de tal forma que o foco em plongée da
câmera que enquadra a cena faz crer que elas estão à mesma altura,
como se estivessem segurando o volante de carro imaginário.
Essa imagem ocupa a parte central de um campo de enquadramento retangular e a direção do olhar do homem sentado incide
sobre o canto superior direito do retângulo, donde emana uma
luminosidade mais intensa que vai se perdendo exatamente em
direção ao canto oposto, qual seja, o esquerdo da parte inferior.
A cena captada pela foto constrói a imagem de um carro de
fórmula 1. A mesinha dianteira sobre a qual o homem apoia os pés
descalços é ladeada por duas caixas pretas que simulam os pneus
do carro. Exatamente no mesmo ângulo e na mesma direção, duas
outras caixas de som pretas estão dispostas na parte traseira da
poltrona sobre a qual o homem está sentado, aparentando os
outros dois pneus do carro. Entre a poltrona e outra mesinha
localizada logo atrás dela há um tapete. A cor dessas três peças,
a poltrona, o tapete e a mesinha traseira é a vermelha, o que dá
forma a um conjunto monocromático. A disposição do modelo
masculino, sentado sobre a poltrona vermelha com as pernas
cruzadas e estendidas sobre a mesinha dianteira, configura o
eixo do carro de corrida. Seu corpo é a representação do corpo do
piloto e do corpo do carro de fórmula 1. Homem e máquina estão
em simbiose, tal como é característico do esporte de fórmula 1.
A imagem descrita no parágrafo acima, num primeiro momento, pode parecer marcada pela estaticidade, pois os sentidos a
ela agregados (poltrona, pés estendidos, contemplação) reforçam
o estado de repouso. Ocorre, porém, que o foco em plongée da
câmera fotográfica remete à captação das câmeras de televisão que
filmam uma corrida de carros. E, nessa situação, os carros estão
em movimento, pois estão em ação numa corrida. Os elementos
que quebram essa estaticidade e dão movimento à foto são o
isolamento dos objetos visualizados, pois eles não são ladeados
por absolutamente nada, como se estivessem numa ampla sala
vazia, e, principalmente, a imagem do assoalho sobre o qual os
objetos estão dispostos. Trata-se de um assoalho de madeira, com
tábuas em diagonal, na mesma direção em que estão os objetos
que simulam o carro de fórmula 1, que cria o efeito da velocidade
de uma carro deslizando em uma pista de corrida.
O efeito estético da foto é o reflexo de uma práxis enunciativa que compõe um texto antitético. Ela retrata a confluência
do estático e do dinâmico, do esporte de corrida de carros e do
relaxamento do final de semana. É exatamente isso o que afirma
o texto reproduzido em amarelo no canto superior esquerdo da
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foto: “nova schin, a cerveja oficial do GP Brasil de
fórmula 1 e do seu fim de semana”. O modelo masculino
que aparece na foto veste calça jeans, camiseta e está descalço,
representando, dessa forma, a descontração, o lazer. Ele segura
um copo de cerveja e, na mesa em que coloca seus pés, estão a
lata aberta de Nova Schin e dois pratinhos de aperitivos; é a posição de relaxamento para ver a corrida que passa no aparelho de
televisão, identificado pelo leitor da propaganda ao observar o
ângulo superior direito iluminado da foto.
Nesse mesmo canto superior direito há a advertência para
os riscos da ingestão de álcool quando se está conduzindo um
veículo: “SE BEBER, NÃO DIRIJA”. Disposta em linha vertical,
oposta à da mensagem veiculada no canto superior esquerdo, a
frase condicional imperativa, além de cumprir a lei que dispõe
sobre as restrições ao uso e à propaganda de bebidas alcoólicas,
reforça a antítese da foto. Embora o motorista esteja ingerindo
bebida alcoólica, ele está em repouso, pois o movimento é uma
ilusão.
A relação entre o enunciador e o enunciatário da propaganda é mediada pelo contrato veridictório da cena narrada, ao
mesmo tempo em que o aspecto passional revela-se no apelo ao
consumo, que é característico dos textos de propaganda. Nesse
sentido, pode-se dizer que a práxis enunciativa constrói-se da
mesma forma que no texto literário anteriormente examinado,
embora o propósito do texto de propagada seja distinto do literário. A depreensão do sentido revelado pelo texto da propaganda
está associada à identificação de um contexto que por ele é acionado. As corridas de carro normalmente acontecem nos finais
de semana e é esse momento de descontração, de lazer, que está
sendo reforçado pelo texto.
A prática semiótica revela que a veridicção e a paixão são
elementos intrínsecos à constituição argumentativa dos textos.
A mediação dos sentidos entre o enunciador e o enunciatário é
sempre realizada por meio de uma negociação em que o aspecto
tensivo é inerente. A instituição do parecer verdadeiro, próprio
da veridicção, e a modalização do ser, própria da paixão, estão
em constante movimento para que o ato de apreensão e de interpretação do texto se realize.
Os recursos veridictórios e passionais acionados pelo conto
de Machado e pela propaganda da cerveja Nova Schin são idênticos, embora com propósitos distintos. Enquanto o primeiro se
vale do recurso estético para manipular um leitor que valoriza
positivamente o caráter literário do texto que lê, o segundo também se vale de uma estética visual para levar o leitor ao consumo
do produto que é anunciado. A construção de uma representação
de verdade tem o apelo passional como seu aliado. O conto ironiza
uma paixão representada e aciona o dispositivo passional para
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Veridicção e paixão na práxis enunciativas
conquistar seu leitor; a propaganda não encena a paixão, mas se
vale do dispositivo passional para levar seu leitor à ação.
Considerações finais
O propósito deste texto consistiu, portanto, em mostrar os
procedimentos da veridicção e da paixão presentes no discurso,
enquanto resultado de um ato de enunciação, entendido como
uma práxis. Retomando a referência a Hjelmslev inicialmente
apresentada, é importante destacar que, tal como aponta Bertrand
(2003), quando o autor dinamarquês propõe alterar a oposição
saussuriana língua/fala para esquema/uso, ressalta o caráter estrutural do aparelho linguístico (língua) ao mesmo tempo em que
chama atenção para as práticas envolvidas pelo uso dessa mesma
língua, que são determinadas por “hábitos das comunidades
linguísticas e culturais ao longo da história” (BERTRAND, 2003,
p.86). Bertrand afirma ainda o seguinte sobre esse caráter social
do discurso:
[...] É portanto a utilização da estrutura de significação que define o uso. Quer esta definição seja vista positivamente – quer
negativamente – a partir das coerções e incompatibilidades
semânticas impostas – em qualquer dos casos o uso ‘designa
a estrutura fechada pela história’. É assim que seus produtos
resultam da práxis enunciativa. Podemos, pois, dizer que ‘o
cerceamento de nossa condição de homo loquens’ se fundamenta
em duas ordens de restrições que determinam a realização do
discurso, as imposições a priori das categorias morfossintáxicas
e os limites, de ordem sociocultural, impostos pelo hábito,
pelas ritualizações, pelos esquemas, pelos gêneros, e até pela
fraseologia, que moldam e modelam, sem que o saibamos, a
previsibilidade e as expectativas de sentido. (BERTRAND,
2003, p. 86-7. grifos do autor)
Ao focalizar, portanto, a questão da enunciação, os conceitos
de veridicção e de paixão têm importância uma vez que essa
coerção histórica do discurso não anula o fato de que o ato comunicativo realizado por meio da linguagem é uma representação
e que e que a linguagem age sobre o sujeito para quem esse ato
comunicativo é dirigido. O que é historicamente determinante no
discurso, como foi apontado acima, são os hábitos linguísticos e
culturais de uma determinada comunidade linguística, mas isso
não significa que seja possível uma relação transparente entre a
verdade e o dizer.
O ato interpretativo apreende os sentidos veiculados pelo
texto e ele constrói-se a partir de uma negociação instaurada entre
o sujeito que o produz e o sujeito a quem se dirige. Mais do que
isso, essas posições de subjetividade são também constructos do
texto, uma vez que o enunciador e o enunciatário são instâncias
constituintes da linguagem que entra em uso durante o processo
comunicativo. A semiótica originária dos trabalhos de Greimas é
uma perspectiva teórica que vem ao longo do tempo, desde que
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foi inicialmente proposta, procurando aprofundar o exame da
constituição do sentido na linguagem.
Abstract
The aim of this paper is to show how the methodological apparatus of Greimasian semiotics is
applied to tackle discourse issues. In particular, focusing on the concepts of veridiction and passion,
two specific discourse procedures, it is examined
how these concepts are included in the enunciative praxis by analyzing two distinct texts: the
short story “O cônego ou a metafísica do estilo”,
by Machado de Assis, and the Nova Schin beer ad
published in a Brazilian weekly magazine.
Keywords: Enunciation. Enunciative praxis.
Passion. Text. Veridiction.
Referências
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da UNICAMP, 1998.
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Reflexões metodológicas
para a análise sociocultural
de redatores em corpora históricos
Célia Regina dos Santos Lopes
Leonardo Lennertz Marcotulio
Márcia Cristina de Brito Rumeu
Alexandre Xavier Lima
Resumo
Este artigo expõe em discussão procedimentos metodológicos produtivos no processo de reconstrução dos perfis socioculturais de redatores de sincronias passadas
da língua portuguesa. Pretende-se pensar
a questão da aplicação de categorias sociais
(gênero, faixa etária, grau de escolaridade,
nacionalidade/naturalidade do autor) aos redatores de missivas manuscritas e de textos
impressos, apontando os percalços e os
caminhos metodológicos implementados no
desenvolvimento de uma sociolinguística
histórica do português.
Palavras-chave: categorias sociolinguísticas; o método na sociolinguística histórica;
os corpora históricos.
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Gragoatá
Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier
Considerações iniciais
No âmbito dos estudos sociolinguísticos de orientação laboviana (WEINREICH et alii, 1968; LABOV, 1972), a identificação de
categorias sociais como gênero, idade, região e grau de escolaridade
dos informantes, por exemplo, se justifica em função da relação
estabelecida entre o social e o linguístico. O agrupamento dessas
categorias constitui, assim, o perfil sociocultural dos agentes, o que
proporciona ao linguista um melhor entendimento dos condicionamentos sociais de um fenômeno linguístico variável.
Quando se coloca o foco em textos escritos em sincronias
passadas, o direcionamento teórico-metodológico pode ser mantido, desde que se façam as devidas ressalvas, tendo em vista,
em alguns casos, a escassez de informações disponíveis para
dimensionar as condições de produção destas fontes históricas.
Caso o objetivo da investigação histórica, numa perspectiva
sociolinguística, seja o de descrever a produção linguística de
redatores de um determinado local do Brasil, a categoria social
região parece ser satisfatória, contanto que se faça um levantamento
do local de nascimento desses informantes. O mesmo tipo de
estudo geralmente é feito com outras categorias sociais que são
reconhecidas através do próprio documento ou de fontes secundárias sobre seus redatores.
Por outro lado, essas categorias sociais, tal qual comumente
as conhecemos, podem ser insuficientes em estudos que adotem
uma perspectiva que considere a reconstituição da sócio-história
do português no Brasil e do português brasileiro, inserida num
contexto de discussão sobre a História Social da Escrita, razão
pela qual torna-se pertinente repensá-las.
Não queremos dizer, contudo, que a concepção de perfil
como conjunto de categorias sociais utilizadas por diversos
estudos atuais esteja equivocada. No nosso modo de entender, a
questão que aqui se coloca é que, de acordo com a maneira como
se operacionaliza a ideia de perfil, esta pode responder apenas
parcialmente aos objetivos almejados. Em nosso caso, em função
das necessidades que se apresentam em trabalhos empíricos que
buscam tratar da reconstituição sócio-histórica do português, é
cabível o questionamento sobre o que estamos entendendo por
perfil sociocultural. Em que medida falar em gênero e região, por
exemplo, é dar conta da descrição de um perfil? O problema que
queremos evidenciar, e que nos preocupa, é o de tomar o perfil
como uma mera combinação de variáveis sociais, recortadas e
concebidas como realidades estanques e com sentidos prévios ao
contexto em que ocorrem.
O entendimento do perfil para a análise de corpora históricos sugere um foco privilegiado sobre o indivíduo, o que conduz
obrigatoriamente a uma decisão teórica. Por que não realizar uma
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Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos
leitura da produção linguística (texto) em termos de seu contexto de
produção? Por que insistir em fazê-la somente a partir do indivíduo?
Se assumirmos que indivíduo e sociedade são dois conceitos que
estão intimamente imbricados, não sendo, portanto, dissociáveis,
até que ponto faz sentido investigar os redatores apenas em termos
de seus perfis? Em outras palavras, até que ponto a caracterização
individual de um informante não é simultaneamente a caracterização do grupo do qual faz parte?
Devemos ter o cuidado necessário para não tratar do indivíduo desconectado do todo. Repensar, assim, o conceito de perfil
torna-se necessário, levando-se em consideração que o nosso
propósito é entender a escrita a partir de quem a escreveu em um
determinado contexto sócio-histórico.
Pelo que vemos, até o momento, a discussão maior que se
necessita fazer é acerca dos conceitos de individual e social, de indivíduo e sociedade. Nesse sentido, nosso objetivo, aqui, é levantar
questionamentos iniciais que nos permitam pensar que, para
trabalhos que busquem reconstituir uma sócio-história do português, devemos pensar, em um primeiro momento, nas formas de
abordagens sobre este indivíduo, as vantagens do procedimento de
caracterização de seu perfil e sua pertinência para os propósitos de
nossos estudos sócio-históricos. Acreditamos no potencial analítico de um cruzamento de perspectivas, que relacione a trajetória
de vida dos sujeitos (que vai mais além das categorias tradicionais
de perfil), o contexto de produção dos textos (em que momento foi
escrito, o que foi escrito, para quem foi escrito, em que condições
e com que finalidades foi escrito) e o mapeamento e descrição das
redes de escrita (diálogos estabelecidos e possíveis interlocutores).
Isto seguramente nos permitirá localizar a produção escrita de
um indivíduo num contexto de produção mais amplo, o que, por
sua vez, nos garante a possibilidade de uma conceituação alterna
de perfil sociocultural.
Nesse sentido, este trabalho busca apresentar e justificar alguns procedimentos metodológicos que temos adotado em nossas
pesquisas, no que se refere à identificação de perfis socioculturais
de redatores de sincronias pretéritas. Relataremos as dificuldades
encontradas e as decisões tomadas para a aplicação de categorias
sociais aos redatores tanto de textos manuscritos, quanto de textos
impressos, assim como a relevância de proceder tais abordagens
para o objetivo maior da investigação na temática mencionada.
A seguir, apresentaremos notícias de diferentes experiências metodológicas que têm sido desenvolvidas mais afins com
a perspectiva aqui discutida. Estamos conscientes de que a não
homogeneidade de nosso texto é uma prova de que essa discussão
deve ser realizada.
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Notícias de metodologias utilizadas para a identificação
de perfis socioculturais de redatores de textos manuscritos
No que se refere às metodologias que aqui serão descritas
para os textos manuscritos, constamos de dois estudos específicos que versam sobre a análise das formas de tratamento. Tais
estudos foram realizados a partir de cartas, o que nos exige que,
em função do fenômeno linguístico escolhido e do gênero textual
em questão, se proceda não só à identificação dos perfis socioculturais dos redatores (missivistas), assim como dos destinatários
das trocas interativas.
A opção pelo estudo diacrônico a partir de um corpus constituído por cartas não é gratuita. A carta, como gênero discursivo
primário (BAKHTIN, 1997), configura-se como uma circunstância espontânea de comunicação verbal. Estruturada em um eixo
que pressupõe um autor, um destinatário e um tema-íntimo, a
carta-missiva segue um padrão composicional reconhecido há
muito no mundo ocidental. Em geral, o local, a data, a saudação
inicial, o corpo do texto, a despedida e a assinatura estão sempre
presentes. São essas propriedades características da carta que
permitem a identificação do perfil sociocultural do remetente na
sua relação com o destinatário. Apesar das aparentes vantagens
desse gênero, as cartas não reproduzem dados de fala. Este é,
sem dúvida, um problema fundamental que se tem procurado
minimizar nos estudos de linguística histórica, perpetuado na
máxima laboviana da “arte de fazer o melhor uso de maus dados”
(LABOV, 1994, p.11) ou, melhor dizendo, “fazer um bom uso dos
dados disponíveis”.
A carta é um tipo de fonte documental que permite mais
facilmente identificar as categorias sociais tradicionalmente
conhecidas pelos que levam em conta o modelo sociolinguístico
laboviano. A partir dela e com as informações composicionais do
próprio gênero inicia-se o trabalho de garimpo para a identificação da origem do remetente, sua idade, seu nível sociocultural e
papel social assumido em determinado contexto histórico. Além
disso, a carta pessoal, por exemplo, pelo seu caráter mais íntimo
ou espontâneo, pode facilitar a identificação de fatos linguísticos
em processos de mudança. É preciso ter mente, entretanto, que se,
por um lado, a carta transmite a inovação e mudança linguísticas,
por outro, conserva fórmulas fixas em que se perpetuam “tipos
relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 1997, p. 279
apud SOTO, 2007, p. 100).
Apesar de apresentar algumas variações em sua estrutura
composicional ao longo do tempo, as cartas se caracterizam por
alguns traços prototípicos que podem interferir, sobremaneira, na
análise de fenômenos linguísticos quando se parte desse gênero
como fonte para o estudo da mudança linguística. Em termos
da estrutura textual, o gênero epistolar, no geral, apresenta uma
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Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos
1
Obviamente que as
partes constitutivas do
gênero epistolar apresentam variações de nomenclatura em função
do tempo, dos autores e
dos inúmeros manuais
que ga n ha ra m força
no Ocidente a partir
da ars dictaminis (disciplina retórica centrada
na redação de cartas e
documentos). Há diversos tratados da história
da epistolografia (o tratado de Anônimo de
Bolonha, de 1135; o de
Erasmo de Rotterdam,
de 1520; e o de Justo
Lípsio, escrito em 1590).
Os tratados epistolares
se multiplicaram nos
séculos XVI e XVI. Para
maiores detalhes ver as
obras citadas em Koch
(2008), Simões (2007),
Marcotulio (2008) entre
outros estudos que fazem menção à história
do gênero.
2
SÁ, José d’Almeida
Correia de. Vice-reinado de D. Luiz d’Almeida
Portugal, 2º Marquês do
Lavradio, 3º Vice-rei do
Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.
macroestrutura constituída pelas seguintes partes: a seção de
contato inicial (em que costuma figurar a saudação e a captação
da benevolência), o núcleo da carta (o corpo do texto, a razão pela
qual a carta está sendo escrita, predominando um pedido de algo
concreto, notícias ou uma ordem a ser cumprida etc.) e a seção
de despedida. Nessas partes constitutivas1, principalmente na
saudação houve desde a origem do gênero grande preocupação
de conferir respeito aos papéis sociais e às posições de emissor
e receptor, construindo laços de boa vontade com o receptor e
estimulando sua cooperação (BAZERMAN, 2005 apud MARCOTULIO, 2008).
É preciso ter em mente, nesse sentido, as dificuldades de
interpretação de fenômenos tipicamente “textuais” que podem
mascarar qualquer descrição diacrônica. Certos usos linguísticos podem estar correlacionados ao tipo de texto em que foram
localizados, uma vez que existem fórmulas fixas, estruturas relativamente estáveis ou propriedades convencionalizadas que se
repetem em determinado gênero particular (LOUREDA LAMAS,
2004). Este é mais um desafio do pesquisador que se aventura
na análise de fontes documentais o passado: observar até que
ponto a identificação de um dado mais conservador ou inovador
localizado no documento realmente evidencia uma etapa de um
processo de mudança sistêmica da língua ou se trata apenas de
uma peculiaridade daquele tipo de texto.
Marcotulio (2008) trabalhou com cartas do Marquês do
Lavradio, português e vice-rei do Brasil, escritas no Rio de Janeiro
no terceiro quartel do século XVIII a diferentes destinatários. As
cartas de Lavradio, que se encontram no Arquivo Nacional do
Rio de Janeiro, chamam a atenção não só pela quantidade, mas
também pelo grande número de relações sociais existentes. Além
de ser um rico material para análises linguísticas, estas cartas
também despertam o interesse de historiadores e outros pesquisadores interessados no Brasil Colônia, pelas valiosas informações
veiculadas.
Quanto à metodologia utilizada para a identificação e
caracterização do perfil sociocultural do remetente das cartas,
como se trata de um personagem ilustre, os dados biográficos
não resultaram de difícil alcance. Além de dicionários de famílias
portuguesas, dicionários sobre personagens e momentos importantes do Brasil Colônia e de grandes enciclopédias portuguesas
e brasileiras, o autor ainda contou com diversos títulos da historiografia luso-brasileira que retratam o período em questão, assim
como uma biografia do Marquês do Lavradio produzida por um
de seus descendentes, o 6° Marquês do mesmo título2. Assim,
informações como idade, grau de instrução, data de nascimento, local
de nascimento, razão pela qual foi escolhido para o posto de vice-rei e
informações relativas ao recebimento do título de Marquês do Lavradio
foram facilmente obtidas.
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Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier
A consulta às fontes secundárias permitiu que Marcotulio
(2008) percebesse a existência de uma problemática histórica
sobre a questão das hierarquias político-administrativas no Brasil
Colônia, na qual as cartas encontradas apresentavam-se como
mediadoras de conflitos estabelecidos. Desde uma perspectiva
teórica, o rei de Portugal tinha o vice-rei do Brasil como uma
figura que representava a extensão do poder régio na Colônia e,
por essa razão, esse seria o poder máximo na América Portuguesa.
O vice-rei do Estado do Brasil estaria, assim, subordinado somente
à Coroa, ao passo que todos os governadores e capitães-generais
das capitanias do Brasil estariam, por sua vez, subordinados ao
vice-rei. Entretanto, na prática, não era assim que o sistema funcionava. Com o intuito de garantir que o poder predominasse no
lado europeu do Atlântico, o rei D. José I, através das atuações do
Marquês de Pombal, não deixava claros os limites da atuação de
Lavradio. Essa indefinição em torno do poder que detinha o vicerei permitia a leitura de que o vice-rei somente seria responsável
por sua capitania, no caso o Rio de Janeiro, por essa ser a nova sede
da Colônia a partir de 1763, e pelas capitanias subordinadas a essa,
e não toda a extensão da Colônia. Dessa forma, o rei não perdia
totalmente o controle da situação, uma vez que não depositava o
poder em únicas mãos. Tanto o vice-rei, quanto os governadores
e capitães-generais ficavam, assim, subordinados à Coroa.
Nesse sentido, ocupar a posição de vice-rei no Brasil Colônia não isentava o seu titular de relações perenes marcadas pela
tensão e pelos conflitos, o que representaria uma possível posição
de desconforto. Ser detentor de um título que teoricamente conferia
poderes, sem, contudo, exercê-los de fato, representava estar em
uma constante zona de conflitos, em que todos os atos deveriam
ser criteriosamente medidos para que os interesses fossem garantidos. Essa era a situação vivenciada pelo Marquês do Lavradio em
sua gestão como representante da Corte na América Portuguesa.
Esse quadro subjacente de relações e de tencionamento político circunscreve o eixo central do trabalho de Marcotulio (2008).
Na busca de evidências linguísticas que permitissem um melhor
entendimento dessa problemática, o autor optou por estudar as
formas de tratamento que eram utilizadas por Lavradio, em cartas
a diferentes destinatários da esfera pública, por acreditar que elas
fornecem indícios de como as relações entre formas linguísticas
e papéis sociais se construíram ao longo dos tempos. Para tanto,
de modo a obter resultados mais confiáveis, Marcotulio (2008)
decidiu analisar, também, as formas de tratamento encontradas
nas cartas familiares, de modo a atestar se haveria a presença, no
âmbito privado, de um personagem político.
Essas informações permitiram que o autor realizasse um
recorte histórico a partir do qual foram selecionados os destinatários
que participassem da cena, isto é, que ocupassem algum posto político-administrativo no Império luso-brasileiro. A caracterização
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Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos
Carta destinada ao
Conde de São Vicente,
em 23 de junho de 1770.
3
social dos destinatários também foi possível através da consulta
a fontes secundárias. As cartas foram escolhidas sob a condição
de que veiculassem alguma informação relativa à política/modo
de governar no Brasil Colônia, para que estivessem evidentes os
limites do poder do vice-rei no trato com seus interlocutores. A
partir daí, o autor analisou, desde uma perspectiva sociopragmática (BROWN & LEVINSON, 1987), como as formas de tratamento
poderiam atuar, nos diferentes eixos hierárquicos sociais, como
estratégias de atenuação a favor da polidez linguística, contribuindo para o trabalho de construção das faces dos participantes
da interação.
Quanto ao âmbito privado, não foi tarefa fácil a seleção
dos destinatários. Em princípio, através de uma rápida consulta
às cartas pessoais do Marquês do Lavradio, pareceu simples a
escolha de alguns dos membros de sua rede familiar, uma vez que
o grau de parentesco encontrava-se explícito na seção de contato
inicial de cada carta, como em: “Meu Irmaõ, eSenhor domeuCoração”3. Dessa forma, aparentemente, se poderia saber qual era a
relação familiar estabelecida entre o remetente e o destinatário.
Entretanto, analisando outras cartas, Marcotulio (2008) verificou
que as relações de parentesco indicadas pelos rótulos usados por
remetente e destinatários, em muitos casos, não correspondiam
à realidade histórica, uma vez que subvertiam / ampliavam os
limites dos laços familiares tais como são conhecidos hoje, como
o fato de chamar os genros de “filhos”, a sogra de “mãe” etc.,
observado no seguinte excerto da carta do Marquês do Lavradio
destinada ao seu tio D. Tomás de Almeida, em 20 de fevereiro de
1770: “eultimamente euRecomendo aVossaExcelência | este negoçio
com aquelle ardor comque VossaExcelência deve supor | eu meintereço hoje por huns genroz, ó para melhor dizer filhos | que
asestimaveis Serconstançias, que atodoz ouso Repetir dellez, |
os fazem ser inseparaveis domeuCoraçaõ.”
Nesse sentido, foi necessário que o conceito de família fosse
lido não somente como um grupo ligado ao casamento, à consanguinidade e à coabitação, mas, como sugere Moraes Silva, em
seu dicionário de 1789, como núcleo familiar, parentes e aliados,
uma vez que, durante o século XVIII, “o sentimento de pertencer
a uma família ultrapassava, portanto, os laços consanguíneos e
se manifestava entre os parentes rituais e aliados” (VAINFAS,
2000, p. 216). Mais do que família, as relações de Lavradio com os
“parentes” tinham ligação com as questões da Casa Nobiliárquica,
muito mais pertinentes do que o conceito de família. Os próprios
casamentos de suas filhas, comentados em algumas cartas, eram
estratégias para se garantir prestígio e riquezas para a Casa
Lavradio perante os nobres da Corte.
Tornou-se necessária, assim, a elaboração da genealogia dos
destinatários do Marquês do Lavradio, para que houvesse uma
maior fidedignidade na análise das relações. Remontou-se, então,
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Dr. João Pedreira do
Couto Ferraz e Zélia
Pedreira de Abreu
5
O patriarca da família
Pedreira Ferraz – Magalhães é o informante
do gênero masculino,
João Pedreira do Couto
Ferraz, nascido no Rio de
Janeiro, a 10 de agosto de
1826. Filho do casal Guilhermina Amália Correia de Lima Pedreira e
Luís Pedreira do Couto
Ferraz que, servindo
como Desembargador
Afranista da Relação,
residiu na Corte, onde
constituiu família composta por sete filhos. Um
dos seus filhos é o missivista João Pedreira do
Couto Ferraz que iniciou
a sua carreira política
a partir da advocacia,
bacharelando-se, em
1848, na Academia de
Olinda. Foi nomeado,
ainda jovem, pelo Imperador Dom Pedro II,
Moço da Câmara, promovido Veador da Casa
Imperial e, por mais de 50
anos, exerceu a função
de Secretário do Supremo
Tribunal Federal. Difundiram-se, em família,
formas específicas de
tratamento do Conselheiro Dr. João Pedreira
do Couto Ferraz como
Conselheiro Pedreira, Dr.
Pedreira ou Pai Pedreira.
4
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a sua estrutura social familiar, de modo a estabelecer o condicionamento das formas linguísticas a partir dos diferentes graus de
parentesco. Assim sendo, considerou-se como pertencente à esfera
privada somente aqueles que tivessem alguma ligação familiar
com o Marquês do Lavradio, direta ou indiretamente, sendo a
relação formada por laços consanguíneos ou por laços afetivos.
A questão da identificação de categorias sociais, como a
idade, o gênero, o grau de parentesco, o nível cultural e o tipo de relação
estabelecida entre os informantes, também é uma preocupação de
Rumeu (2008) que fornece, entre outros aspectos, passos metodológicos para a identificação dos perfis socioculturais dos redatores
brasileiros das epístolas familiares trocadas entre os entes da
família Pedreira Ferraz-Magalhães na realidade sócio-histórica
de fins do Oitocentos e na 1ª metade do Novecentos.
Idas constantes ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
propiciaram-lhe o contato com um conjunto de cartas familiares produzidas por integrantes das ilustres famílias Pedreira
Ferraz-Magalhães. A relevância desse material reside na real
possibilidade de reconhecimento da história da vida privada de
uma família brasileira nascida no Rio de Janeiro que circulou da
capital carioca para outros espaços sociogeográficos dentro e fora
do Brasil. Uma família religiosa que, apesar dos deslocamentos
advindos da pressão social da vida adulta, se manteve unida
pelas cartas ativas e passivas trocadas entre seus membros ao
longo das suas vidas.
Em termos metodológicos, foi possível o meticuloso resgate
das categorias sociais de cada um dos autores dos documentos,
bem como o dos destinatários das cartas, tendo em vista a idade,
o gênero, o grau de parentesco, o nível cultural e o tipo de relação familiar estabelecida entre os “informantes”, detectando, pois, as redes
sociais engendradas nesse jogo discursivo de intimidade familiar.
A reconstrução da história privada da família Pedreira Ferraz –
Magalhães se deu basicamente a partir da consulta a dois livros
escritos por um dos filhos do casal progenitor da família Pedreira
Ferraz – Magalhães (PEDREIRA DE CASTRO, 1943; PEDREIRA
DE CASTRO, 1960) e aos registros escritos nos quais havia referências às datas de nascimento e falecimento dos membros da família
em análise, mais especificamente dos filhos do casal4. Ainda em
relação às fontes secundárias, mostrou-se muito útil a consulta ao
Dicionário das Famílias Brasileiras (BUENO & BARATA, 2001) para
checar as informações sobre as datas de nascimento e falecimento
do progenitor da família (o Dr. João Pedreira do Couto Ferraz5),
assim como para averiguar informações sobre a história de vida
deste informante (BLAKE, 1902): grau de escolarização e atividades
profissionais por ele exercidas no Brasil Império.
Esse grau de refinamento de amostras de textos produzidos
por informantes seguramente identificados em relação à sua origem
brasileira e ao seu nível de escolaridade (culto) permitiu a confecção
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Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos
de um estudo de painel (LABOV, 1994) para sincronias passadas
em que foi possível resgatar a progressão da mudança linguística
(a implementação de Você no sistema pronominal do Português
Brasil) em função da análise do comportamento linguístico do
indivíduo, através da sua produção escrita, em distintas faixas
etárias da sua vida (juventude, adultez e velhice). A opção pela
análise de cartas familiares é justificada por se tratar de um gênero
textual cujo grau de formalismo é menor, visando à estruturação
de uma investigação com uma maior probabilidade de expressão
dos contextos linguísticos favoráveis ao aparecimento de formas
nominais e pronominais de tratamento no Português Brasileiro.
Rumeu (2008) confeccionou um estudo de painel, nos moldes
Labovianos (1994), em virtude do conjunto de textos que tinha
em mãos: cartas familiares produzidas por brasileiros cultos de
uma mesma família no decorrer de suas vidas cujos perfis socioculturais foram identificados. Foram as amostras de cartas que
apontaram para o tipo de estudo sociolinguístico mais produtivo:
estudo de painel voltado para a diacronia. Ficou-se à mercê do
que resistiu à ação do tempo no interior dos arquivos públicos,
confirmando a argumentação de Labov (1994) em relação a esse
ser um dos percalços na vida do linguista-pesquisador que se
volta para estudos sociolinguísticos diacrônicos.
A construção de uma sociolinguística histórica do Português
Brasil, nos moldes de Lobo (2001), com base na reconstituição da
história de vida dos informantes (missivistas), corrobora o controle
das díades que sustentam a dinâmica das cartas pessoais trocadas no seio da família Pedreira Ferraz – Magalhães. As díades
controladas evidenciam as relações familiares travadas entre pais
e filhos, entre avô e netos, entre irmãos, entre tia e sobrinhos e entre
amigos como remetentes e destinatários das missivas da família
Pedreira Ferraz – Magalhães.
Ainda em relação aos procedimentos metodológicos adotados para o trabalho com textos de sincronias passadas, algumas
questões suscitadas pela análise dessas cartas se mostraram
relevantes: O que é ser um informante culto, em fins do séc. XIX e
na 1ª metade do séc. XX? O que é ser um padre ou uma freira nesse
contexto sócio-histórico do Brasil? Quais são os seus papéis sociais
vinculados a ordens religiosas engajadas em trabalhos voltados
para a educação no Brasil e no exterior? Qual é a função social da
mulher (mãe e esposa) e também da mulher religiosa, na sociedade
brasileira oitocentista e novecentista?
No que se refere à íntima relação entre as categorias gênero
e faixa etária dos informantes conjecturadas por Labov (1994, 1972
[2008]), o foco metodológico do estudo de painel voltou-se para as
seguintes questões: a variável gênero poderia representar um fator
de progressão (avanço) ou de regressão (retrocesso) na direção da
implementação de uma nova variante (Você) no sistema linguístico? A opção por Tu ou por Você na trajetória linguística da vida
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Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier
dos informantes estaria correlacionada ao papel social assumido
por homens e mulheres na realidade sócio-histórica e linguística
do Português Brasileiro oitocentista e novecentista? A discussão
dessas questões sociais guiou a interpretação dos resultados
quantitativos da análise de painel para sincronias passadas do
PB. Nesse sentido, Rumeu (2008) pensa ter esclarecido, com base
em Lavov (1972 [2008, p. 326]), o seguinte: (“(...) uma compreensão
plena da mudança linguística exigirá várias investigações que não
estão intimamente ligadas ao quadro social, assim como outros
estudos que mergulhem na rede dos fatos sociais. (...)”).
Esse mergulho na rede de fatos sociais a que Labov se refere é
justamente a análise linguística com base na confecção de uma
metodologia de pesquisa que conduza à depreensão do perfil
sociocultural dos informantes.
Notícias de metodologias utilizadas para a identificação
de perfis socioculturais de redatores de textos impressos
Os textos impressos vinculados aos periódicos também
impõem desafios para a construção de corpora, não apenas pelas
condições de transcrição, mas, sobretudo, na identificação dos
perfis dos informantes. A complexidade da estrutura está intimamente associada à complexidade da sociedade. Se grupos sociais,
por meio de categorias sociais, instituem uma língua, poderíamos
identificar estruturas linguísticas ou epilinguísticas que revelam
esses perfis. Com o testemunho que nos restou, o registro escrito,
surgem algumas questões que norteiam os trabalhos com corpora
diacrônicos: Quais são as pertinentes categorias sociais presentes
em outras sincronias? Qual a forma que tomam na língua? O que
revelam sobre o falante?
Justifica-se o trabalho histórico com impressos ao lado dos
manuscritos pelo fato de terem servido de modelo de erudição
para o século XIX. Como Lima (2010) procurou ratificar, os impressos em periódicos faziam parte do cotidiano do carioca. Jornais,
como a Gazeta de Noticias, publicavam cerca de 17 mil cópias e
ainda circulavam em saraus da sociedade do Rio de Janeiro. As
diversas seções nos jornais (Folhetins, Avisos, Publicações a Pedido
etc.) entretinham, informavam e formavam os redatores/leitores
da época.
Um esforço diferenciado é necessário, a começar pela
tarefa de localização dos periódicos. Não são muitos acervos que
guardam periódicos antigos e, às vezes, por condições naturais,
o material encontra-se deteriorado. No Rio de Janeiro, contamos
com o acervo da Biblioteca Nacional que reúne periódicos antigos
de todo Brasil.
Localizado o material, os principais desafios para a caracterização dos perfis dos informantes são a identificação da autoria, da
escolaridade e da origem do redator, a ausência de original preservado e de
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Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos
informações sobre o alcance dos textos, condições essenciais para realizar qualquer afirmação sobre a norma pertencente àquele grupo.
Na etapa de levantamento de textos para a formação dos
corpora, longas listas de material se formam devido à quantidade
de periódicos que surgiram a partir das primeiras décadas do
século XIX. Os periódicos surgiam rapidamente, como também
desapareciam, acompanhando as ideologias em um momento de
extrema instabilidade política. Jornais diários, de tema geral, com
ampla circulação, são sempre candidatos ideais para compor os
corpora. Contudo, além do veículo, deve-se optar por um gênero
vinculado ao periódico.
Lima (2010) optou pelas crônicas folhetinescas de França Junior.
Tais crônicas são um importante testemunho da vida da nascente
burguesia carioca dos oitocentos. Descrevem e ditam costumes,
como também servem de modelo para outros redatores/leitores
que faziam parte das redes de leitura e escrita daquele período. A
localização desse informante é o resultado de um longo exercício
filológico, em que foram necessárias visitas a diversos acervos,
levantamento no acervo geral e busca na seção de periódicos
da Biblioteca Nacional. Desse expediente, localizou-se o livro
Folhetins (1878) de França Junior, coletânea de folhetins (crônicas)
publicados na Gazeta de Noticias. Até chegar a esse informante e
a esse jornal, tateou-se em cada periódico, identificando folhetins
e, o mais difícil, identificando os autores desses textos.
No século XIX, era comum os autores não se identificarem
nos seus trabalhos, ou lançarem mão de codinome ou pseudônimo. No periódico Gazeta de Noticias (1877), além de França Junior,
havia outros colaboradores da seção Folhetim. Quase todos usavam
codinome, como, Tralgadabas, Nemo, Prouhdome, Varuna; ou abreviavam algum nome importante para a identificação, como, Luiza B.,
S. Saraiva etc. Alguns ainda usavam pseudônimos, dificultando
ainda mais a identificação. O que provavelmente era sabido por
todos, como J.X.F.S., ocultou-se com o tempo. A saída para esses
casos tem sido observar se há alguma publicação com o mesmo
nome, ou se há algum outro testemunho (anúncio de venda de
livro, comentário de outro cronista, notícia) no periódico que
permita identificar o autor. Quando não encontramos nenhuma
outra referência, somos obrigados a descartar os informantes.
Embora encontrar outra publicação de um redator não seja
condição para identificarmos sua origem, sua escolaridade e outras
informações sociais, geralmente, encontram-se dados biográficos
de redatores justamente naqueles redatores que foram expoentes
em seu tempo e deixaram uma contribuição significativa para a
sociedade que faziam parte. É o caso de França Junior. O autor tem
uma extensa colaboração nos jornais, exerceu funções públicas,
escreveu peças de teatro e conta com várias edições de seus textos
folhetinescos ainda em seu tempo, tanto em outros jornais, como
também em livro (LIMA, 2010), prova de que seu texto alcançou
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Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier
uma considerável repercussão na época. Se o texto fez sucesso,
era sinal de que poderia servir de modelo para outros redatores.
Contudo, o que se tem hoje é o periódico. Não se têm as provas dos jornais, muito menos os manuscritos. Não se sabe como
realmente França Junior escreveu. A ausência do original faz com
que se estabeleça a diferença do autor França Junior e do redator
França Junior, que podem ser a mesma pessoa, como podem ser
entidades diferentes. O autor é o criador da obra manuscrita,
enquanto o redator é o responsável pela sua apresentação final
vinculada a algum suporte. Assim, o informante em questão é o
redator França Junior, pois só se tem o produto final de sua criação,
o que também é importante, uma vez que o leitor só tinha acesso a
esse produto. A distinção entre autor e redator poderia ser desfeita
com a comparação de impressos e manuscritos. No entanto, ainda
não foram localizados manuscritos de França Junior.
Barbosa (2005) parece ter encontrado uma maneira de aproveitar os testemunhos desses informantes cujos perfis socioculturais desconhecemos. Primeiro é necessário criar corpora com o
maior número possível de informantes reconhecidamente eruditos. Depois, identificar um critério objetivo de erudição e conseguir mensurá-lo. A seguir, usar esse material como parâmetro
de erudição. Para isso, Barbosa pensou na latinização da grafia,
uma vez que havia, no século XIX, uma exacerbação desse modelo
de escrita. Quanto mais latinizada a escrita, mais erudito seria o
redator. Se também fosse possível, seria pertinente encontrarmos
um fenômeno sintático em que pudéssemos contrapor oralidade
versus escrituralidade – neste caso, as formas sintética e analítica
do gerúndio. Lima (2010) colabora e ratifica a metodologia, quando
levanta mais um informante (França Junior) para compor o parâmetro de erudição e testa a metodologia nos folhetins desse autor.
Os resultados acenam positivamente para esse recurso
que tenta superar a aparente escassez de fontes confiáveis para a
reconstrução histórica da norma carioca em sincronias passadas.
Considerações finais
A discussão sobre a relevância da composição do perfil
sociocultural de redatores de sincronias passadas permite tecer
duas breves reflexões:
1ª)Tanto nas cartas produzidas pelo marquês do Lavradio,
subsidiando a análise do condicionamento das formas
nominais de tratamento a partir dos diferentes níveis
hierárquicos e dos graus de parentesco dos informantes,
quanto nas cartas pessoais da família Pedreira FerrazMagalhães, fundamentando o estudo da variação das
formas pronominais Tu e Você, voltou-se o foco para a
conexão entre as formas linguísticas e a função social
do informante. É claro que esse encaminhamento não
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foi ingênuo, uma vez que se queria defender a ideia de
que a língua é movida pelo social. Nesse sentido, se faz
necessário repensar a validade da aplicação exclusiva das
categorias sociais para a depreensão do perfil sociocultural dos redatores em sincronias passadas do português,
sem que se leve em conta o cenário sócio-histórico do
qual os indivíduos participavam.
2ª)Por outro lado, acredita-se que as marcas linguísticas
oferecidas pelo próprio texto, como a latinização da
grafia, conforme constatado por Lima (2010) em relação
aos folhetins de França Júnior, podem contribuir para a
identificação de perfis socioculturais de redatores através da constituição de um parâmetro objetivo para a
caracterização da norma culta oitocentista, tomando-se
os folhetins cariocas do século XIX como referencial de
expressão dos escritores cultos.
A proposta de Barbosa (2005) de identificar um critério
objetivo de erudição (a latinização da grafia) e mensurá-lo para a
análise das fontes documentais se mostrou um excelente caminho
de investigação. A partir desse princípio norteador definido por
Barbosa (2005), podem-se utilizar, quem sabe em um futuro
próximo, outros critérios (talvez não tão objetivos) como é o caso
das próprias características linguísticas dos textos. Partindo do
que se conhece do português brasileiro hoje, é possível organizar
taxinomicamente os documentos em função da presença mais
incisiva ou ausência total de traços linguísticos que apareçam
como prenúncios ou vestígios do que agora sabemos configurar o
português brasileiro ou uma de suas variedades (o uso do futuro
perifrástico com ir + infinitivo, a presença de a gente no lugar de
nós, pronome reto depois de verbos causativos, pronome tu com
verbo na terceira pessoa do singular, entre outros fenômenos).
Abstract
This article presents a discussion on the methodological procedures in the productive process of reconstruction of socio-cultural profiles of writers from the
past synchronicities Portuguese. It is intended to reflect
about the implementation of social categories (gender,
age, educational level, nationality, place of birth of the
author) to writers of handwritten letters and printed
texts, pointing out the struggles and methodological
approaches implemented in the development of a
Portuguese Historical Sociolinguistic.
Keywords: sociolinguistic categories; sociolinguistic method in history; historical corpora.
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Gragoatá
Célia Regina dos Santos Lopes, Leonardo Lennertz Marcotulio, Márcia Cristina de Brito Rumeu e Alexandre Xavier
Referências:
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Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Curso de PósGraduação em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2008.
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Reflexões metodológicas para a análise sociocultural de redatores em corpora históricos
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TATIT, Luiz. Semiótica à luz de Guimarães Rosa. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2010.
Sílvia Maria de Sousa
Diante da obra de Guimarães Rosa muitos são os estudos
quase sempre unânimes em destacar a sua extrema qualidade
literária. O uso singular da linguagem, os enredos de contornos
fluidos e os enigmas desenvolvidos pelo escritor alimentam os
olhos de seus leitores, ao mesmo tempo em que se tornam farta
matéria-prima aos exegetas. A arte transborda na escrita de Rosa
pelos temas que elege e, sobretudo, pelo modo como trata deles.
O livro Semiótica à luz de Guimarães Rosa, de Luiz Tatit –
compositor e Professor Titular do Departamento de Linguística
da FFLCH da USP – conecta-se a essa rede de diálogos em torno
da obra rosiana. Tatit, entretanto, diferencia-se dos críticos e estudiosos do escritor mineiro, pois o elege não para falar sobre sua
obra, mas antes sob ela. Nos escritos de Rosa, Luiz Tatit percebe “a
existência de uma intenção teórica por trás das soluções literárias”
(p.12) e, assim, realiza uma aproximação entre tais “soluções” e
as proposições teóricas da semiótica discursiva. A obra de Guimarães Rosa funciona como o filtro através do qual Tatit focaliza
os tópicos que a seu ver “não podem mais ser ignorados por uma
semiótica que sempre teve como horizonte prioritário a pesquisa
de método para a abordagem da construção do sentido” (p. 16).
Por meio da análise de seis dos contos presentes no livro Primeiras
Estórias, lançado em 1962, Luiz Tatit descortina de maneira bem
sucedida o que há de “pura semiótica” e está envolto “sob o véu
fino do tratamento literário” tecido pelo romancista (p. 14).
A semiótica discursiva retoma a formulação de Hjelmeslev,
para o qual a significação se dá na relação entre as formas do
plano da expressão e do plano do conteúdo das linguagens. Os
estudos semióticos pretendem entender quais são os mecanismos
responsáveis pela produção de sentido nos textos. Para isso, foi
concebido um aparato metodológico que permite observar a produção da significação como um percurso constituído de etapas que
se superpõem, indo de um nível profundo e abstrato até um mais
superficial e concreto. A análise semiótica realiza uma espécie de
desconstrução do texto que visa a reconstituir e recuperar o modo
de produção da significação. A partir do exame das regularidades,
o analista observa o processo crescente de complexificação nas
diferentes etapas do percurso gerativo.
Luiz Tatit parte da formulação de que as propostas desenvolvidas pela semiótica discursiva, tais como as funções sujeito/
objeto, os processos persuasivos e avaliatórios, as ideias de continuidade (conteúdos sensíveis) e descontinuidade (conteúdos inteligíveis), entre várias outras, foram antecipadas por Guimarães
Rosa, numa obra que ganha “contornos de um tratado geral sobre
as principais categorias empregadas na análise do sentido” (p. 12).
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Gragoatá
Sílvia Maria de Sousa Lima
Atendo-se principalmente às facetas desenvolvidas pelo escritor
brasileiro, no que diz respeito ao desenvolvimento de uma sintaxe
de cunho narrativo e tensivo, Tatit desvela, ao longo de seis capítulos, questões ainda não totalmente resolvidas pela semiótica, teoria
fundada por Greimas e reconhecida pelo gosto do rigor analítico
e por análises que buscam o avanço metodológico da teoria.
O primeiro capítulo “O destinador transcendente – ‘Nada
e a nossa condição’” discute o estatuto profundo do actante
destinador, entendido como aquele que determina toda e qualquer manifestação na narrativa. Tatit considera que a noção de
“destinador transcendente” adotada por Greimas e Courtés foi
abordada por Guimarães Rosa através da figura do fazendeiro
Tio Man’Antônio. O fazendeiro teve uma vida marcada por experiências de perda: a morte da mulher, o casamento das filhas, a
emancipação dos próprios empregados, chegando finalmente
ao episódio de sua morte. Nesse percurso, o personagem só não
perde a função de destinador transcendente, já que é ele quem
emancipa os funcionários e planeja detalhadamente a própria
morte. No episódio do falecimento da esposa, Man’Antônio não
se paralisa no luto e não se rende às forças antagonistas, mas pelo
contrário empreende uma grandiosa reforma em sua fazenda. A
morte “desperta no destinador o ímpeto da continuidade” (p. 27).
A busca pela conservação da continuidade garante o progresso
narrativo e, assim, Tatit nos mostra que Guimarães Rosa, através
desse fazendeiro com “seus projetos mais sintáxicos que semânticos” (p.26), caracteriza “uma narrativa pura, aquela que representa um fazer, uma transformação ou um processo transitivo,
independentemente das razões e dos investimentos discursivos”
(p. 29). A análise de Tatit revela um determinado ritmo no conto,
responsável pela continuidade do texto “independentemente dos
conteúdos investidos” (p.27).
Ao observar o ritmo dos textos, os coeficientes tensivos dos
protagonistas, como no quinto capítulo “Quando o Ser é Substância – ‘Substância’”, as relações entre continuidades e descontinuidades, entre rotina e acontecimento, Tatit vai dissecando os textos
de Rosa, enquanto discute e aprofunda questões semióticas. Não
se trata de realizar uma paráfrase da obra, ou de contextualizála social e historicamente, mas a opção do analista é perceber as
cifras tensivas que regem os personagens e o estatuto das relações
estabelecidas entre sujeitos e entre sujeitos e objetos. Busca-se
captar o movimento impresso na escrita rosiana, marcada por
aberturas e fechamentos, fraturas e escapatórias. Tais recursos
garantem a espetacular progressão das narrativas. “Substância”,
por exemplo, conta a história de amor entre o fazendeiro Sionésio e
a funcionária Maria Exita, que, depois de abandonada pela família,
passa a residir na propriedade do fazendeiro. Tatit mostra que
no conto é possível perceber quanto os coeficientes tensivos dos
protagonistas são bem delimitados. A personagem Maria Exita,
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TATIT, Luiz. Semiótica à luz de Guimarães Rosa. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010.
absorvida pela matéria do polvilho, cuja brancura serve de tom
e cenário ao encontro amoroso com Sionésio, é caracterizada por
um andamento desacelerado e por uma temporalidade alongada,
refletida na sua paciência e em seu estado de espera. Sionésio,
pelo contrário, carateriza-se pela alta velocidade, por uma “recusa
da duração” (p. 131). Para que a aproximação entre os dois se
consolide são, então, necessários diversos ajustes, os quais Tatit
denomina de “ajustes musicais” (p. 141). Observar o ritmo que
dá conta desse encontro amoroso é um dos objetivos da análise
semiótica empreendida por Luiz Tatit, para quem a riqueza da
obra de Rosa reside justamente no tratamento dado a esse tipo de
questão. A presença de Maria Exita na fazenda, durante muito
tempo despercebida, torna-se um acontecimento, quando Sionésio
é tomado pela paixão. Entretanto, como isso ocorre de maneira
paulatina, Tatit arrisca-se a desenvolver a noção de “acontecimento
extenso”, definido como “aquele que só se realiza plenamente ao
cabo de numerosas ocorrências do mesmo gesto ou do mesmo
fenômeno” (p.117). Esse mesmo “acontecimento extenso” está
presente no famoso conto “A terceira margem do rio”, analisado
por Tatit no quarto capítulo “Práticas impregnantes – ‘A Terceira
Margem do Rio’”, no qual “as aparições longíquas do homem na
canoa representam etapas do mesmo fenômeno que vão impregnando a mente do filho” (p. 117). Ao comparar os dois contos,
do ponto de vista tensivo, Tatit percebe ainda que em ambos a
“espera paciente” de Maria Exita e do personagem “nosso pai”
resulta em respostas imediatas. A resposta de Maria Exita “só se
for já...” e a pronta saudação do “nosso pai” que rema em direção à
margem “surpreende as previsões dos proponentes” (p. 145). Vale
ressaltar que as relações entre rotina e acontecimento, surpresa
e espera são questões postas em pauta pela teoria semiótica. O
tratamento minucioso dado a elas por Tatit se revela como grande
contribuição aos estudos semióticos.
Os capítulos dois e três “A verdade extraordinária – ‘As Margens da Alegria’” e “O Encontro do Ritmo – ‘Os Cimos’” tratam
respectivamente do primeiro e do último conto do volume Primeiras Estórias. O conto que fecha o livro é composto por Guimarães
Rosa como uma continuação das mesmas reflexões, personagens
e cenários do conto de abertura. Ambos retratam a viagem de
um menino com seus tios, a fim de conhecer o local onde será
construída uma grande cidade. No primeiro, “tudo parece significar ruptura do cotidiano e encantamento com a nova experiência”
(p.47), por ser uma viagem – nas palavras de Rosa – “inventada no
feliz”. Já no segundo, a grave enfermidade da mãe do menino é o
motivo da viagem, que se torna sombria e triste para ele. O exame
desses dois contos leva Luiz Tatit a recuperar a noção de estética,
introduzida por Greimas no livro Da Imperfeição (2002). Segundo
essa teoria “o irrompimento de um acontecimento extraordinário
tem o poder de retirar o sujeito do seu cotidiano e de deixá-lo
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Sílvia Maria de Sousa Lima
exposto e vulnerável aos encantos do objeto” (p.45). No caso de
“As margens da alegria”, apesar de toda a novidade apresentada
ao menino com a construção da nova cidade, sua vivência epifânica se dá num encontro com um peru no quintal da casa. Em
“Os cimos” há o surgimento de um tucano, que exerce sobre o
menino um fascínio próximo ao da primeira ave. A partir desses
encontros (in)esperados e dos valores postos nesses objetos, Tatit
analisa a instauração de relações entre continuidades e intervalos.
No primeiro conto, percebe-se “essas experiências excepcionais
eufóricas como pequenos segmentos englobados por demarcações
ao mesmo tempo recentes e iminentes: nem bem começam já
estão prestes a terminar” (p. 69). Do último conto, Tatit depreende
uma “teoria sobre os acontecimentos”, através de cinco razões de
natureza tensiva, que são trabalhadas por Rosa com o intuito de
explicar os motivos pelos quais “não chegamos a apreciar plenamente os bons acontecimentos” (p.81). Isso se dá pelo fato de os
acontecimentos ocorrerem depressa e inesperadamente demais,
ou, ao contrário, por serem exaustivamente esperados e acabarem
diluindo “o traço impactante próprio de todo acontecimento” (p.
82). À teoria desenvolvida por Guimarães Rosa, Luiz Tatit acrescenta as reflexões de Zilberberg (2006) e de Valéry (1973).
Ainda no capítulo “O Encontro dos Ritmos – Os Cimos”,
Luiz Tatit apresenta a belíssima “teoria do faz de conta”, também
presente na análise do conto “Nada e a nossa condição”. Em “Os
Cimos”, o menino não tem o poder de restabelecer a saúde da
mãe, nem de voltar ao tempo em que podia conviver com ela
ainda saudável. Contudo, ele “faz de conta” que sua mãe está
presente e, então, “constrói uma narrativa de mão dupla” (p. 92).
Segundo Tatit:
‘fazer de conta’ reflete a epistemologia rosiana que concebe
as essências da vida como resultados de pequenas narrativas,
em geral intermitentes, destinadas a manter o ser humano
em atividade mesmo que o Sentido da vida lhe seja sempre
nebuloso. (p.93)
No último capítulo do livro, “A Extinção Que Não se Acaba
– ‘Nenhum, Nenhuma’”, Luiz Tatit analisa as relações entre proximidade e distanciamento, que retratam, através de categorias
espaciais, as uniões e separações do plano afetivo. O enunciador do conto tenta rememorar fatos marcantes de sua infância,
entretanto “as lembranças se confundem com as distâncias, de
maneira que não há certeza nem do tempo, nem do espaço em
que se deram os episódios” (p. 153). Para Tatit, Guimarães Rosa
trabalha com o valor da imutabilidade que é o ponto em comum
das noções denominadas o “nunca mais” e o “para sempre”. Tatit,
ao analisar a distribuição aspectual dos personagens, reunidos
sem uma justa razão numa mansão rural não localizada, nota
que o “Menino” está no início da vida, a “Moça” e o “Moço”, no
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TATIT, Luiz. Semiótica à luz de Guimarães Rosa. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010.
meio da vida, o “Homem velho” é um doente em estado terminal
e “Nenha” está num “além da vida”, já que há muito ultrapassou
os limites da vida humana. Com isso, o espaço tensivo criado
por Rosa vai de uma “demarcação incoativa” do menino até uma
“extensão incoativa-durativa” da personagem Nenha (p.161). Luiz
Tatit demonstra também que o “percurso antagonista” possui uma
força muito grande nesse conto, pois “lança alguns de seus atores
num campo de desconhecimento, apaga importantes traços de
memória que poderiam esclarecer seus episódios” (p. 175). É esse
percurso, entretanto, que possibilita “o trabalho do enunciador de
combate ao esquecimento e de recuperação de um saber relevante
cujo registro ficará para sempre nas linhas desse conto” (p. 185).
Com esse laborioso trabalho, Tatit brinda a todos os semioticistas, pois apresenta uma reflexão apurada sobre temas
importantes e que careciam de um melhor tratamento teórico.
Por outro lado, convida os leitores de Guimarães Rosa, sejam
eles semioticistas ou não, a se deleitarem com a perspicácia das
análises escritas num estilo cativante, já conhecido pelos leitores
de outras obras de Luiz Tatit. O livro Semiótica à luz de Guimarães
Rosa endereça-se também a todos os interessados pelas questões
da linguagem e da produção do sentido e, ao mesmo tempo, torna-se leitura fundamental para os que pretendem realizar um
encontro ou um reencontro com a obra de Guimarães Rosa, agora
iluminada por outros e inesperados sentidos.
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OSTERMANN, Ana Cristina & FONTANA, Beatriz (org.). Linguagem. gênero. sexualidade: clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola
Editorial, 2010.
Alexandre José Cadilhe
“Os estudos sobre linguagem e gênero, na realidade, demandam uma comunidade de prática acadêmica interdisciplinar.
Indivíduos isolados que tentam abarcar os dois podem com
frequência propiciar intervenções interessantes, mas um real
avanço depende da reunião de pessoas de áreas variadas em
torno de uma empreitada colaborativa para a construção de
compreensões que tenham ampla base comum.”
Eckert & McConnel-Ginet ([1992]2010)
Como sujeitos que se constroem como mulheres e homens
interagem em situações específicas? Que significados e efeitos de
sentido essas interações podem ter nas práticas sociais contemporâneas? Como as relações de gênero e poder, em uma perspectiva
não-essencialista, podem ser construídas quando há um encontro
social entre participantes de diferentes sexos? Possibilidades de
respostas a essas e outras questões são propostas pela coletânea
de artigos produzidos por clássicos pesquisadores anglo-americanos, organizados pelas linguistas Ana Cristina Ostermann e
Beatriz Fontana, e traduzidos por uma equipe de pesquisadoras
e pesquisadores, incluindo as organizadoras, com tradicional
inserção no campo de estudos de linguagem e gênero.
A obra retrata, em perspectiva macro e microssocial, as
relações que são estabelecidas e construídas por sujeitos de
diferentes gêneros em contextos de interação social – temática
que tem se apresentado recorrente nas produções acadêmicas
em estudos da linguagem no Brasil, principalmente a partir dos
anos 90. Nestes últimos anos, algumas das produções foram
apresentadas ao público através de coletâneas de artigos de pesquisadores brasileiros, com base em dados gerados em diversos
contextos, incluindo a educação, a saúde e a justiça. Contudo, parte
significativa do referencial utilizado em estudos nesta linha foi
constituída por produções de origem anglo-americana. Uma das
contribuições desta obra está em justamente trazer à leitora e ao
leitor sete artigos que deram início e ainda influenciam a produção
de analistas do discurso que se engajam nas investigações sobre
gênero e identidade social.
O artigo introdutório da obra, produzido pelas organizadoras Ostermann e Fontana, busca situar a leitora e o leitor no
contexto dos estudos sobre interação, sexualidade e gênero. As autoras apontam a possibilidade de três perspectivas teóricas sobre
o tema: déficit, dominância e diferença. Na primeira, propõe-se
que o estilo cunhado nas falas de mulheres seria inferior ao estilo
dos homens. No segundo, e talvez em decorrência do primeiro,
Gragoatá
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Gragoatá
Alexandre José Cadilhe
impera a ideia de que tal diferença viria, antes, do suposto status
inferior da mulher em relação ao homem. Por fim, a perspectiva
da diferença advém da ideia de que a diferença entre gêneros é
uma questão de diferença cultural, devido a diferentes formas de
socialização a qual homens e mulheres estão dispostos durante
a infância. Esta última, ainda, pode correr o risco de mascarar
as relações de poder que aí estão também presentes. As três
perspectivas teóricas descritas pelas autoras são ilustradas pelos
primeiros quatro artigos traduzidos na obra.
Contemporaneamente, outra perspectiva vem sendo cunhada pelas pesquisadoras e pesquisadores em linguagem e gênero:
a da diversidade. Analisar a interação e o discurso, focando a
construção social de gênero, significaria compreender a fala como
uma prática situada em comunidades que podem ser diversas,
o que ocasiona diferentes possibilidades de performances na
construção das identidades sociais de gênero. Esta perspectiva
é também ilustrada pelos últimos quatro artigos traduzidos na
coletânea.
Os artigos que seguem compõem as traduções, e foram organizados cronologicamente, sendo o primeiro de 1975, e o último,
de 1998. Tal organização não é aleatória: às leitoras e aos leitores
que buscam uma introdução ao tema, a leitura cronológica pode
ser indicada, dado que alguns artigos fazem referencia entre si,
e nem sempre em concordância, dadas as perspectivas teóricas
descritas no penúltimo parágrafo.
O primeiro artigo traduzido, “Linguagem e lugar da mulher”, de Robin Lakoff (1975), é apontado como o estudo que inaugura a pesquisa sobre linguagem e gênero. A linguista americana,
a partir de uma compreensão da relação entre gêneros feminino
e masculino como uma relação de déficit, constrói dados a partir
da sua própria fala, da de conhecidos e de dados da mídia. Em
sua análise, busca compreender como se constrói a linguagem
das mulheres, ainda que de modo generalizado – ou, em outros
termos, o “falar como uma dama” – analisando itens lexicais,
construções sintáticas e entoação presente nas falas de mulheres
e homens. Lakoff conclui haver uma discrepância na fala entre
homens e mulheres que se relacionariam também a diferenças
nas posições sociais em que ambos se encontram. A autora ainda
indica que “mudanças sociais geram mudanças linguísticas, e não
o contrário” (p.29), e que tal diferenciação nos estilos das falas de
homens e mulheres não pode ser negligenciada em contextos de
ensino e aprendizagem de língua, pois tal discrepância leva a
diferentes níveis de fluência.
O artigo seguinte, “O trabalho que as mulheres realizam
nas interações”, de Pamela Fishman (1978), discute a relação hierárquica entre homens e mulheres, examinando a conversa diária
de três casais heterossexuais, através de gravadores alocados em
suas respectivas residências. Fishman, compreendendo poder
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como “uma realização humana, situado na interação diária”, faz
uso de categorias da análise da conversa, como proposto por Sacks,
Schegloff e Jefferson (1974), para compreender as diferentes estratégias lançadas nas interações de modos diferentes entre homens
e mulheres. Os modos de fazer perguntas, abrir uma conversa,
responder e fazer afirmações constituem diferentes mecanismos
que, com a análise dos dados, permitiram com que a linguista
concluísse que as mulheres fazem uso de diferentes estratégias
para executar a interação. Entre elas, fazem perguntas, abrem
conversas (fazendo uso de expressões como “você sabia?”), respondem para “dar apoio”; contudo, são os homens que “controlam
o que será produzido como realidade na interação” (p.47).
Seguindo a mesma perspectiva teórico-analítica – a Análise
da Conversa – o terceiro artigo “Pequenos insultos: estudo sobre
interrupções em conversas entre pessoas desconhecidas e de
diferentes sexos” (1987), de Candace West e Don H. Zimmerman,
focaliza como a relação de poder é construída em contextos de fala
através do mecanismo de “interrupção”. Os autores comparam
dados de um estudo anterior, em contexto naturalístico, com os de
um contexto não naturalístico, através da conversa entre pessoas
que não se conheciam, de diferentes sexos, em um laboratório de
linguagem, onde as conversas foram gravadas. Os resultados, em
ambos os contextos, apontam a prática de os homens interromperem as mulheres em suas falas, em uma frequência muito maior
do que o oposto – o que vai de encontro a uma pressuposição
estereotipada que as mulheres “não deixam os homens falar”.
Concluem as autoras que tal prática constitui um modo de “fazer”
poder nas interações face a face, num reflexo da relação assimétrica
entre homens e mulheres, em diferentes contextos interacionais,
conforme os tipos de dados analisados.
Em uma mesma linha teórica de análise, mas com diferente interpretação, Deborah Tannen, no quarto artigo– “Quem
está interrompendo? Questões de dominação e controle” (1990)
– propõe uma releitura sobre a interrupção na fala em interação
entre sujeitos de diferentes gêneros. A autora analisa diferentes
eventos de fala, como um encontro de crianças ou um jantar
de dois homens e uma mulher (a própria linguista), e propõe
uma leitura de que, na interação, diferentes estilos podem ser
utilizados. Como exemplos, Tannen apresenta dois: estilo de alta
consideração – marcado, por exemplo, pelas poucas intromissões
do interlocutor, de modo a preservar a participação do outro – e
estilo de alto envolvimento, marcado pela participação incisiva,
de modo a indicar um grau de interesse na conversa. Tais estilos
podem compreender diferentes estratégias, como a sobreposição de vozes. Contudo, o efeito desta a partir das relações entre
os partipantes é que incidirá diferentes estilos. Tannen conclui,
então, diferentemente de West e Zimmerman, que são os estilos
que definem as interrupções, e não as sobreposições de fala, pois
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estas podem ter diferentes efeitos, dependendo da relação e do
encontro entre os participantes. Em suma, seria uma diferença
cultural – ainda que a autora não problematize tal diferença.
O quinto artigo, “Comunidades de Práticas: lugar onde cohabitam linguagem, gênero e poder” (1992), de Penelope Eckert e
Sally McConnel-Ginet, apresenta uma reflexão de cunho teórico
sobre o tipo de pesquisa produzida sobre gêneros. As autoras
criticam as excessivas abstrações que alguns estudos fazem a
respeito de gêneros, desconsiderando outras identidades sociais.
Uma possibilidade de não cair neste risco seria justamente pensar
“praticamente” e observar “localmente”: em outros termos, ao
estudar as relações de gêneros, deveria se levar em consideração
a “comunidade de prática” em que tais relações são construídas.
Comunidade de prática, conceito cunhado por Lave e Wenger
(1991), refere-se a “um conjunto de pessoas agregadas em razão do
engajamento mútuo em um empreendimento em comum” (p.102).
Partindo do pressuposto de que as comunidades de práticas são
múltiplas, tornam-se múltiplos também os modos de construção
das relações de gênero. E finalizam as autoras apontando a necessidade da constituição de uma comunidade de prática acadêmica
interdisciplinar que se engaje, em conjunto, ainda que com posicionamentos diversos, sobre os diferentes modos de se construir
ou pesquisar linguagem e gênero.
O penúltimo artigo, “‘É uma menina’: a volta da performatividade à linguística!” (1997), de Ana Livia e Kira Hall, também
de cunho teórico, discute perspectivas linguísticas, com foco na
contribuição de Searle, e a Teoria Queer, a partir de Butler, para
a construção da perspectiva de “performatividade de gênero”,
“afastando-nos da construção social da sexualidade para nos
direcionarmos à construção discursiva de gênero” (p.121). Livia e
Hall salientam a função e a força que os atos de falas tem ao serem
enunciados, e que a performatividade constituiria um elemento
fundamental para compreensão da construção do gênero, ainda
por levar em consideração o contexto de convenções culturais
em que é enunciado para que seja ratificado pelos participantes,
constituindo um “performativo feliz”, para usar um termo de
Searle (1969).
Por fim, Deborah Cameron, com o artigo “Desempenhando
identidade de gênero: conversa entre rapazes e construção da
masculinidade heterossexual” (1998), fecha o ciclo de traduções,
apontando uma perspectiva que se alinha a estudos contemporâneos sobre linguagem e gênero. A linguista parte, assim como
Livia e Hall, do conceito de performatividade de gênero, compreendendo que “‘feminino’ e ‘masculino’ não são características
que nós possuímos, mas efeitos que produzimos por meio de coisas
específicas que fazemos” (p.131, grifos da autora). Assim, a construção da identidade de gênero passa a ser uma prática que precisa
ser constantemente reafirmada e publicamente exibida, através
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de ações específicas em grupos culturais situados. As estratégias
e mecanismos para isso, por sua vez, podem variar em relação
ao grupo e aos objetivos. A autora exemplifica com a análise da
fala-em-interação de um grupo de rapazes universitários, que se
constroem como heterossexuais, e fazem isso através da fala cooperativa por meio da “fofoca”, estilo atribuído de forma estereotipada a mulheres. Contudo, isso ocorreu em um evento específico
– um encontro informal na residência dos participantes, enquanto
assistiam a um jogo de basquete na televisão. A autora aponta que,
provavelmente, os participantes fariam uso de outras estratégias
que não a fofoca para reforçar sua heterossexualidade, quando
num encontro público e com suas namoradas. Contudo, essa
análise indica, de antemão, que seria inútil considerar determinados modos de falar como naturalmente masculinos e femininos,
pois se trata de diferentes performances que podem corresponder
– e também subverter – a padrões culturais específicos.
A coletânea de artigos, portanto, é bastante diversificada:
as autoras e os autores apresentam diferentes perspectivas de
compreensão de gêneros e lançam diferentes estratégias para
defenderem seus posicionamentos. A obra também é de interesse
a estudiosas e estudiosos da linguagem em geral, ainda que não
contemplem, em seus objetos, questões de gênero. Os artigos
que analisam dados ilustram diferentes categorias dos estudos
da fala-em-interação, a partir de metodologias etnográficas ou
experimentais; os de cunho teórico, por sua vez, desenvolvem
conceitos também de grande valia aos que analisam o discurso
de modo situado, como o de “comunidade de práticas”, “atos de
fala”, “performativos.” Além disso, sua significativa contribuição
está também em alinhar diferentes produções em uma coletânea bem traduzida e acessível à leitora e ao leitor, de diferentes
níveis e especialidades. Tal passo constitui-se fundamental para
a construção de uma comunidade de prática acadêmica efetiva,
como proposto por Eckert e McConnel-Ginet em seu artigo. O
acesso desta obra a diferentes pesquisadoras e pesquisadores de
diferentes áreas poderá proporcionar a estudiosas e estudiosos
sobre linguagem, gênero e sexualidade no Brasil uma maior
possibilidade de diálogo a partir de fundamentos em comum; ou,
ainda que sejam diferentes em suas escolhas conceituais e metodológicas, que o diálogo seja construído com um reconhecimento
da tradição e legitimidade dos estudos de seus parceiros.
Às organizadoras e às tradutoras e tradutores, fica a expectativa do público leitor de uma continuidade com a tradução de
outros artigos contemporâneos, bem como a produção de pesquisas que possibilitem vislumbrar a construção de uma comunidade
de prática acadêmica de forma interdisciplinar.
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Colaboradores
deste número
ALEXANDRE JOSÉ CADILHE
Doutorando em Estudos da Linguagem pela UFF e mestre em Linguística
Aplicada pela UFRJ. É docente da FES0 – Fundação Educacional Serra dos
Órgãos, em Teresópolis, Rio de Janeiro, em cursos de graduação da área de
Ciências Humanas, da Saúde e Tecnológicas. Suas pesquisas voltam-se para
a interação, o discurso e identidade social em práticas profissionais, através
da Microetnografia como metodologia e da Sociolinguística Interacional
como fundamento para análise do discurso.
ALEXANDRE XAVIER LIMA
Doutorando em Língua Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professor de Língua Portuguesa do
Município do Rio de Janeiro. Em 2010, defendeu Dissertação de Mestrado
intitulada Crítica Textual e Corpora para a Linguística Histórica: Padrões
Ortográficos Oitocentistas em Folhetins (crônicas) e França Junior. Em 2006,
publicou, pela editora da UERJ, o texto A edição de folhetins oitocentistas
cariocas: o caso França Junior e, em 2005, publicou, em coautoria com Rosane
Manhães da Rocha, o artigo Diferentes usos para o rótulo folhetim e a construção
do público leitor no século XIX, também pela editora da UERJ.
ARNALDO CORTINA
Livre-docente pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
- UNESP – Campus Araraquara e bolsista do CNPq. É docente da UNESP
– Campus Araraquara desde 1997. Realizou, de 2000 a 2001, pós-doutorado
na Université de Limoges, em Limoges, na França. Sua principal área de
atuação é a dos estudos discursivos, com ênfase para a Semiótica, ao mesmo
tempo que dialoga com a Análise do Discurso francesa e com os estudos
sobre Bakhtin. É coordenador do GELE – Grupo de Estudos sobre Leitura
– e vice-coordenador dos CASA – Cadernos de Semiótica Aplicada –,
ambos grupos de pesquisa cadastrados no CNPq. Tem diversos trabalhos
divulgados em livros e periódicos e, atualmente, tem desenvolvido pesquisa
sobre o perfil do leitor brasileiro contemporâneo.
CÁSSIO FLORÊNCIO RUBIO
Mestre e Doutorando em Linguística (Área de Concentração: Sociolinguística)
pela UNESP/S.J.Rio Preto. Tem artigos publicados em vários periódicos de
circulação nacional, como Estudos Linguísticos, Revista de Letras e Delta, além
de capítulo de livro. É membro do Projeto PHPP/PHPB.
CÉLIA REGINA DOS SANTOS LOPES
Professora associada de língua portuguesa na UFRJ e bolsista do CNPq.
Desenvolve pesquisa em gramaticalização, sistema pronominal do
português na sincronia e diacronia. Em 2010, publicou “A persistência e a
decategorização nos processos de gramaticalização”(in: Vitral, Lorenzo e
COELHO, Sueli (orgs), Estudos de processos de gramaticalização em português:
metodologias e aplicações). Em 2009, organizou com Uli Reich (FU Berlin)
uma edição especial para a revista Neue Romania sobre Processos Urbanos I:
Variação Linguística em Megalópoles Latino-Americanas.
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DAVI ANDRADE PIMENTEL
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários
(Literatura Comparada) na Universidade Federal Fluminense (UFF).
É Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (Mestrado em
Letras) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem experiência na
área de Literatura, com ênfase em Literatura Brasileira Contemporânea
e Literaturas Estrangeiras Modernas, Literatura Francesa. É bolsista da
CAPES. Desenvolve no Doutorado a análise das narrativas ficcionais do
escritor francês Maurice Blanchot na perspectiva teórico-crítica do próprio
escritor, com o objetivo de investigar se há ou não uma convergência entre a
concepção de espaço literário proposta por Blanchot em sua obra teórica e o
espaço literário de seus romances.
DÉCIO ROCHA
Professor adjunto do Instituto de Letras e do Instituto de Aplicação da UERJ,
onde ministra as disciplinas Linguística e Língua Francesa, respectivamente.
Membro do GT Linguagem, Enunciação e Trabalho (ANPOLL) e também
dos grupos de pesquisa Atelier e PraLinS (CNPq), atua como docente da
área de Linguística do Mestrado em Letras da UERJ. Doutor em Linguística
Aplicada pela PUC-SP, é pesquisador nas áreas de linguagem/trabalho e
discursos midiáticos. É bolsista do CNPq e da FAPERJ.
EDSON DOMINGOS FAGUNDES
Possui graduação em Letras (Português-Alemão) pela Universidade Federal
do Paraná (1989), mestrado em Letras pela UFPR (1997) e doutorado em
Letras/Estudos Linguísticos pela UFPR (2007). É professor de Língua Alemã
e da disciplina de Sociolinguística do Curso de Letras da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR. Integra a equipe de pesquisadores
do Projeto VARSUL.
ISABEL CRISTINA RODRIGUES
Professora assistente de Língua Portuguesa do Instituto de Aplicação
da UERJ, mestre em Linguística pela UERJ e doutoranda em Estudos de
Linguagem pela UFF. Organizou, com Del Carmen Daher e Maria Cristina
Giorgi, o livro Trajetórias em enunciação e discurso: práticas de formação
docente (Claraluz, 2009). Publicou, entre outros, o artigo “Discurso jurídico,
argumentação e construção de um direito” (Cadernos do CNLF, 2008). É
membro do grupo de pesquisa PraLinS (CNPq).
LEONARDO DAVINO DE OLIVEIRA
Doutorando em Estudos Literários na Universidade Federal Fluminense.
Publicou dois capítulos no livro Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (2010)
e um capítulo no livro Caetano e a filosofia (2009), além de resenhas, artigos e
ensaios publicados em revistas acadêmicas. Mantém uma coluna quinzenal
no Caderno de Cultura do Jornal A União, da Paraíba, e desenvolve o projeto
365 canções, disponível no blog: http://www.365cancoes.blogspot.com
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LEONARDO LENNERTZ MARCOTULIO
Doutorando em Língua Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Desenvolve trabalhos na área de Línguística
Histórica e Crítica Textual, atuando principalmente na análise das formas
de tratamento do latim ao português assim como na edição digital de
documentos antigos. Em 2010, publicou o livro Língua e História: o marquês
do Lavradio e as estratégias linguísticas da escrita no Brasil Colonial. Em 2009,
publicou, em coautoria com Célia Lopes, Aline Silva e Viviane Santos, no
volume 39 da revista Neue Romania, o artigo intitulado “Quem está do outro
lado do túnel? Tu ou você na cena urbana carioca”.
LILIANE PEREIRA BARBOSA
Doutoranda na UFMG, é professora na UNIMONTES (Universidade
Estadual de Montes Claros). Publicou, entre outros: Influência do Contexto
Fonológico no Uso dos Types Você, Ocê e Cê no Dialeto Norte-Mineiro
(in: Vínculo (Unimontes), v.07, 2006). Atualmente, co-coordena o Grupo
de Pesquisa em Estudos Linguísticos (GESLIN) do Departamento de
Comunicação e Letras da Unimontes e desenvolve pesquisa na área de
Fonologia. Seus interesses de pesquisa referem-se às seguintes questões:
Sociolinguística, Dialetologia e Estrutura Sonora da Linguagem.
LOREMI LOREGIAN-PENKAL
Possui graduação em Letras Português/Italiano pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (1993), mestrado em Linguística pela UFSC (1996) e doutorado em Linguística pela Universidade
Federal do Paraná - UFPR (2004). Atualmente é professor Adjunto da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná, UNICENTRO. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Sociolinguística, atuando principalmente nos seguintes temas: variação e mudança linguística, sistema
pronominal, tempo verbal e ensino/aprendizagem de língua portuguesa. É
líder do grupo de pesquisa: Língua, história e literatura ucraniana, na Unicentro, além de integrar a equipe de pesquisadores do Projeto VARSUL. É,
também, membro do Comitê Assessor de Linguística e Letras da Fundação
Araucária, no estado do Paraná.
LUIZ COSTA LIMA
Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela
Universidade de São Paulo (1972). É professor titular da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro e bolsista do CNPq, com atuação
nas áreas de Teoria da Literatura e Filosofia da História. Recebeu o Prêmio
Alexander von Humboldt como pesquisador em Humanidades para o
ano de 1993. Publicou, entre outros: Mímesis e Modernidade (1980), Mímesis:
Desafio ao Pensamento (2000), O Controle do Imaginário e a Formação do Romance
(2009).
MAITÊ GIL
Graduada em Letras pela UFRGS, é mestranda em Linguística Aplicada
na mesma Universidade. Publicou Metáfora e cultura: uma interface entre a
Linguística e a Antropologia (Antares, v.2, 2009), em coautoria com Siqueira e
Parente.
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Rev Gragoata n 29.indb 271
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MAITY SIQUEIRA
Psicóloga, mestre e doutora em Letras. Professora adjunta da UFRGS,
onde atua no Programa de Pós-graduação em Letras. Publicou Metaphor
identification in a terminological dictionary (Iberica, v.17, 2009), em coautoria
com Almeida, Brangel e Hubert, e A especificidade semântica como fator
determinante na aquisição de verbos (Psico, v.39, 2008), em coautoria com
Tonietto, Villavicencio, Parente e Sperb.
MÁRCIA CRISTINA DE BRITO RUMEU
Professora adjunta da área de língua portuguesa da Faculdade de Letras
da UFMG. Desenvolve trabalhos na área de Letras, com ênfase em Língua
Portuguesa, voltada principalmente para os seguintes temas: rearranjo
do sistema pronominal do português brasileiro, gramaticalização e crítica
textual. Em 2008, publicou, na Revista da ABRALIN, Volume 7, o artigo
intitulado “A categoria Pronome na construção da metalinguagem do português”.
Publicou, em coautoria com Célia Regina dos Santos Lopes, o capítulo
intitulado “O quadro de pronomes pessoais do português: as mudanças
na especificação dos traços intrínsecos” (in: CASTILHO, Ataliba; MORAIS,
Maria Aparecida Torres; LOPES, Ruth Vasconcellos; CYRINO, Sônia (orgs.),
Descrição, História e Aquisição do Português Brasileiro, 2006).
ODETE PEREIRA DA SILVA MENON
Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Paraná (1975),
mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1984)
e doutorado em Linguistique Théorique et Formelle - Université de Paris
VII - Université Denis Diderot (1994). Atualmente é coordenadora regional
do Projeto Varsul, membro do GT de Sociolinguística da ANPOLL, membro
do conselho editorial da revista Intercâmbio (PUCSP) e professor sênior da
Universidade Federal do Paraná. Tem experiência na área de Linguística, com
ênfase em Sistema Pronominal do Português, atuando principalmente nos
seguintes temas: português do Brasil, variação e mudança, gramaticalização,
projeto varsul e variação linguística.
OLGA GUERIZOLI-KEMPINSKA
Possui graduação e mestrado em Filologia Românica pela Uniwersytet
Jagiellonski de Cracóvia, Polônia. Doutorou-se em História Social da
Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 2008.
É professora adjunta de Teoria da Literatura no Departamento de Ciências
da Linguagem da Universidade Federal Fluminense. Tem experiência nas
áreas de Letras e Teoria da Arte, com ênfase nas relações entre literatura e
pintura.
PAULO CESAR DUQUE-ESTRADA
Professor do Departamento de Filosofia da Puc-RJ, onde ministra cursos
de Filosofia Contemporânea. Doutor em Filosofia pelo Boston College, com
pós-doutorado na New School for Social Research. É fundador do Núcleo
de Estudos em Ética e Desconstrução (NEED) e membro do GT Heidegger
(ANPOF) e da Sociedade Brasileira de Fenomenologia.
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SEBASTIÃO CARLOS LEITE GONÇALVES
Mestre e Doutor em Linguística (Área de Concentração: Sociolinguística)
pelo IEL/UNICAMP. Bolsista do CNPq, é professor na graduação e pósgraduação da UNESP de São José do Rio Preto, ex-coordenador do Curso de
Licenciatura em Letras, ex-chefe do Departamento de Estudos Linguísticos
e Literários, ex-presidente do GEL-SP e Coordenador do Projeto ALIP
(Amostra Linguística do Interior Paulista), financiado pela FAPESP. Tem
artigos publicados em vários periódicos de circulação nacional, como ALFA,
Estudos Linguísticos, Sínteses, Scripta, Veredas, Cadernos de Estudos Linguísticos,
Delta, Gragoatá.
SERGIO RICARDO LIMA DE SANTANA
Doutor em Letras pela UFBA, é bolsista do Programa Nacional de PósDoutorado (CAPES), atuando junto ao Núcleo de Pós-Graduação em
Letras da UFS no projeto ‘Formação docente e inovação tecnológica para
o ensino-aprendizagem de Português como Língua Estrangeira (PLE)’. Sua
tese de doutorado trata da adaptação cinematográfica sob a perspectiva da
tradução intersemiótica. Publicou, entre outros: Film im Sprachunterricht: eine
semiotische Annäherung (Dafbrücke, Caracas, 2009); Metrópoles em movimento:
a crítica à globalização pelas imagens e narrativas cinematográficas (Salvador,
Goethe-Institut, 2010).
SÍLVIA MARIA DE SOUSA
Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal Fluminense e
professora de Linguística no Departamento de Ciências da Linguagem da
mesma instituição. Publicou o capítulo “Nem rei, nem majestade: estratégias
de sincretização na TV” (in: OLIVEIRA e TEIXEIRA (orgs.), Linguagens na
comunicação: desenvolvimentos de semiótica sincrética, 2009) e vários artigos
em periódicos, entre os quais “Apontamentos sobre o gênero programa de
auditório” (em Revista Universitária do Audiovisual, v. 6, 2009), “Que rei sou
eu? - estratégias enunciativas na TV” (em Caderno de Discussão do Centro
de Pesquisas Sociossemioticas, v. 1, 2006) e “Luz, câmera e movimentação:
Estratégias enunciativas de construção do sincretismo no Programa Silvio
Santos” (em CASA. Cadernos de Semiótica Aplicada, São Paulo, v. 03, 2005).
SÍRIO POSSENTI
Professor associado no Departamento de Linguística do Instituto de Estudos
da Linguagem da Unicamp, onde fez mestrado e doutorado. Leciona
disciplinas introdutórias à linguística e à análise do discurso, campo no qual
realiza pesquisas e orienta estudantes de Iniciação Científica, Mestrado e
Doutorado. Estuda os discursos humorístico, jornalístico e publicitário.
Publicou Discurso, estilo e subjetividade (S. Paulo: Martins Fontes), Os humores
da língua (Campinas: Mercado de Letras) e Os limites do discurso e Questões
para analistas do discurso (São Paulo: Parábola) e Humor, Língua e Discurso
(São Paulo: Contexto). Co-organizou coletâneas de trabalhos em análise do
discurso e traduziu Gênese dos discursos, de Dominique Maingueneau.
TAMARA MELO
Graduada em Letras pela UFRGS e mestranda em Teoria e Análise
Linguística na mesma universidade. Tem no prelo a comunicação Controle
de variáveis em um teste psicolinguístico, a ser publicada nos Anais do III
Congresso Internacional sobre Metáfora na Linguagem e no Pensamento (Fortaleza,
Universidade Federal do Ceará), em coautoria com Siqueira.
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TONY SARDINHA
Professor associado do Departamento de Linguística e do PPG em
Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUCSP. Pesquisador
do CNPq, fez doutorado na Universidade de Liverpool (Reino
Unido) e pós-doutorado na Northern Arizona University (EUA).
É o responsável pelo Corpus Brasileiro, coletânea de um bilhão de
palavras de português brasileiro (corpusbrasileiro.pucsp.br; Fapesp).
Coordenador do GELC (Grupo de Estudos de Linguística de Corpus;
http://corpuslg.org/gelc), desenvolve pesquisa com corpora
em Linguística Aplicada, ensino de língua, metáfora, tradução e
linguística forense, além de desenvolver corpora e programas online
para análise de dados no CEPRIL (Centro de Pesquisa, Recursos e
Informação em Linguagem). Seus projetos atuais são “As metáforas
ao nosso redor: Identificação, em corpus eletrônico, de metáforas em
uso” e “Dimensões de Variação do Português Brasileiro” (ambos com
financiamento pelo CNPq).
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Niterói, n. 29, p. 269-274, 2. sem. 2010
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UNIVERSIDADE
FEDERAL FLUMINENSE
Instituto de Letras
Revista Gragoatá
Rua Professor
Marcos Waldemar
de Freitas Reis, s/nº
Campus do Gragoatá Bloco C - Sala 518
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Normas de apresentação de trabalhos
1 A Revista Gragoatá, dos Programas de Pós-Graduação em Letras
da UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas
de interesse para estudos de língua e literatura, em língua portuguesa, inglêsa, francesa e espanhola.
2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que
poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo.
3 Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e
8 páginas, no caso de resenhas. Devem ser apresentados em duas
cópias impressas sem identificação do autor, bem como em CD,
com título do artigo em português e em inglês, indicação do autor,
sua filiação acadêmica completa e endereço eletrônico no programa
Word for Windows 7.0, em fonte Times New Roman (corpo 12, espaço duplo), sem qualquer tipo de formatação, a não ser:
3.1 Indicação de caracteres (negrito e itálico).
3.2 Margens de 3 cm.
3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo.
3.4 Recuo de 2 cm nas citações.
3.5 Uso de sublinhas ou aspas duplas (não usar CAIXA ALTA).
3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e
períodicos.
4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre
parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em
caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e
o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23).
5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão
ser apresentadas no final do texto.
6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do
texto, obedecendo às normas a seguir:
Livro: sobrenome do autor, maiúscula inicial do(s) prenome(s), título
do livro (itálico), local de publicação, editora,data.
Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
Artigo: sobrenome do autor, maiúscula inicial do(s) prenome(s), título
do artigo, nome do periódico (itálico), volume e nº do periódico, data.
Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódicos
biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1,
p. 81-104, jan./abr. 1989.
Gragoatá
Rev Gragoata n 29.indb 275
Niterói, n. 29, p. 275-278, 2. sem. 2010
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Normas
Gragoatá
7 As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa
reprodução gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda, e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1,
Fig. 2 etc).
8Os originais serão avaliados a partir dos seguintes quesitos:
8.1 adequação ao tema;
8.2 originalidade da reflexão;
8.3 relevância para a área de estudo;
8.4 atualização bibliográfica;
8.5 objetividade e clareza;
8.6 linguagem técnico-científica.
9 A responsabilidade pelo conteúdo dos artigos publicados pela Revista Gragoatá caberá, exclusivamente, aos seus respectivos autores.
10 Os colaboradores terão direito a dois exemplares da revista. Os
originais não aprovados não serão devolvidos.
Próximos números
Número 30
Tema: Aquisição da linguagem
Organizadores: Jussara Abraçado e Eduardo Kenedy
Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2011
Ementa: Aquisição da linguagem: universalidade e variação. A cognição linguística no
processo de aquisição. O papel do input e da interação. Aquisição e aprendizado.
Estudos de caso. Bilinguismo e plurilinguismo. Análise de aquisição/aprendizado
de fenômenos gramaticais.
Número 31
Tema: Cruzamentos interculturais
Organizadores: Paula Glenadel e Angela Dias
Prazo para entrega dos originais: 15 de julho de 2011
Ementa: Tradução, mercado global e literaturas nacionais. A tarefa do tradutor. Traduzibilidade das formas contemporâneas de arte; mistura e reescritura de gêneros
narrativos; diálogos e interrelações de códigos diversos. Interseções entre o público e o privado; política e produção de subjetividades nas artes e na literatura
comtemporânea.
276
Rev Gragoata n 29.indb 276
Niterói, n. 29, p. 275-278, 2. sem. 2010
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Normas
UNIVERSIDADE
FEDERAL FLUMINENSE
Instituto de Letras
Revista Gragoatá
Rua Professor
Marcos Waldemar
de Freitas Reis, s/nº
Campus do Gragoatá Bloco C - Sala 518
24210-201 - Niterói - RJ
e-mail: [email protected]
Telefone: 21-2629-2608
General Instructions for Submission of Papers
1. The Editorial Board will consider both articles and reviews in the
areas of language and literature studies, in Portuguese, English,
French and Spanish.
2. In considering the submitted papers, the Editorial Board may
suggest changes in their structure or content. Papers should be
submitted in CD, with the title both in Portuguese and English,
author’s identification, academic affiliation and electronic address,
together with two printed copies, without author’s identification,
typed in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman
font 12, without any other formatting except for:
2.1 bold and italics indication;
2.1 3cm margins;
2.3 1cm indentation for paragraph beginning;
2.4 2cm indentation for long quotations;
2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE)
for emphasis;
2.6 italics for foreign words and book or journal titles.
3. Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no
more than 8 pages.
4. Authors are required to resort to as few footnotes as possible,
which are to be placed at the end of the text. As for references in
the body of the article, they should contain the author’s surname
in uppercase as well as date of publication and page number in
parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47).
5. Bibliographical references should be placed at the end of the text
according to the following general format:
Book: initial’s author’s pre name(s) in uppercase, author’s surname,
title of book (italics), place of publication, publisher and date.
(eg.: ELLIS, Rod. Understanding second language acquisition. Oxford:
Oxford University Press, 1994).
Article: author’s surname, initial’s author’s pre name(s) in uppercase,
title of article, name of journal (italics), volume, number and date.
(eg.: HINKEL, Eli. Native and nonnative speakers’ pragmatic
interpretations of English texts. TESOL Quarterly, v. 28, n° 2, p. 353376, 1994).
6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title
or legend, and referred to in the body of the work as figure, in
abbreviated form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.)
Niterói, n. 29, p. 275-278, 2. sem. 2010
Rev Gragoata n 29.indb 277
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Normas
Gragoatá
7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English
version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to 5
keywords, also in Portuguese and in English, are required.
8. Originals will be evaluated from the following items:
8.1 appropriateness to the theme;
8.2 originality of thought;
8.3 relevance for the study area;
8.4 bibliographic update;
8.5 objectivity and clarity;
8.6 technical-scientific language
9. The responsibility for the content of articles published in the
journal Gragoatá sole discretion of their respective authors.
10. Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled
to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned.
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Rev Gragoata n 29.indb 278
Niterói, n. 29, p. 275-278, 2. sem. 2010
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Rev Gragoata n 29.indb 279
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PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL
Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br)
após a implementação de um Programa Socioambiental
com vistas à ecoeficiência e ao plantio de árvores referentes
à neutralização das emissões dos GEE´s – Gases do Efeito Estufa.
Este livro foi composto na fonte Book antiqua.12
Impresso na Globalprint Editora e Gráfica,
em papel Pólen Soft 80g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa)
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edição foi impressa em julho de 2011.
Rev Gragoata n 29.indb 280
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revista gragoatá 29 - Universidade Federal Fluminense