ISSN 2183-4237
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Rita Viegas
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Equipa de Revisão
Adriana Correia, Bruno Marques, Moisés Moreira, Rita Viegas, Sofia
Dias, Andreia Fernandes
Director de Marketing
Frederico Borges
Gráfica
NOZZLE
ISSN 2183-4237
EDITORIAL
Vivemos num mundo em mudança, não só a nível
tecnológico mas também biológico.
Não são só os smartphones, tablets e afins que evoluem,
também a cooperação entre estas duas áreas é cada
vez mais forte e consegue satisfazer grande parte das
necessidades da nossa sociedade a nível fisiológico.
É aqui que entra a biomédica: uma vertente que tenta
estabelecer a cooperação entre a biologia, a medicina
e os avanços tecnológicos de modo a proporcionar à
sociedade uma melhor qualidade de vida.
No 13º Número da Resistance Magazine pretendemos
dar a conhecer aos nossos leitores um pouco da história
desta área científica mas também os seus usos no
dia-a-dia que passam como que despercebidos ao
leitor menos atento.
Também nesta edição contamos com alguns artigos
de opinião, como é habitual, que nos dão a conhecer
a “outra face da moeda” em assuntos controversos da
actualidade.
Rita Viegas
2014, Sports Feature, 1st prize stories, Peter Holgersson
Engenharia
Biomédica
Limito-me a referir que a UC diplomou já 264 Engenheiros
Biomédicos (até ao final de 2012/2013) pelo que o número
total de Mestres em Engenharia Biomédica formados em
Portugal deverá ser já superior a mil. No entanto, os mestrados
integrados continuam a preencher todas as vagas que oferecem
(as licenciaturas já não…) não se sentido ainda na Engenharia
Biomédica a actual crise na procura dos cursos de engenharia.
Obtive ainda dados relativos aos cursos do IST e da UM.
Os dados do curso do IST foram obtidos no estudo de
empregabilidade dos diplomados do IST em Engenharia
Biomédica, realizado pelo Observatório de Empregabilidade
do IST [4]. Os dados referem-se aos diplomados de 2009 e
foram recolhidos no início de 2011 (N=18) [Fig. 3].
Investigadores /
Bolseiros de Investigação
Bolseiros de Doutoramento
Analista / Programador
Engenheiro Químico
Consultor / Auditor
Engenheiro de Software /
Desenvolvimento
Outros
Havia necessidade de graduados
em Engenharia Biomédica?
O Ensino da Engenharia Biomédica
em Portugal
Fig. 3 Empregabilidade do IST
Também usei alguns dados apresentados em 2011 / 2012 pela
Profª. Patrícia Figueiredo, nas aulas de Introdução à Engenharia
Biomédica [5]. Os dados relativos ao curso da UM são do
estudo de empregabilidade dos seus ex-alunos desde o ano
lectivo 2006 / 2007 até ao ano lectivo 2011 / 2012, realizado
pelo Gabinete de Alunos de Engenharia Biomédica (N=133)
[6] [Fig.4].
Fig. 1 Taxa de distribuição geográfica de graduados em Engenharia Biomédica.
A Engenharia Biomédica consiste na aplicação dos princípios
das ciências exactas e das ciências aplicadas à resolução de
problemas na área da biologia, da medicina e da saúde.
Em Portugal, e contrariamente ao que vem escrito na Wikipedia
[1], o ensino da Engenharia Biomédica começou em Coimbra
em 1992, com a entrada em funcionamento do mestrado em
Engenharia Biomédica, um curso coordenado pela Faculdade
de Medicina da Universidade de Coimbra, em colaboração
com a Faculdade de Ciências e Tecnologia. Estávamos na era
pré-Bolonha. Os cursos de mestrado eram então cursos de
especialização frequentados após a conclusão de uma licenciatura
de 4 ou 5 anos. Este mestrado em Engenharia Biomédica tinha
ainda a particularidade de começar com um curso preparatório
de 3 meses propedêutico em que os alunos vindos das Ciências
Exactas e das Engenharias frequentavam disciplinas de ciências
biomédicas, enquanto alunos com licenciaturas em Bioquímica,
Medicina e outras áreas Biomédicas ou Biologia tinham formação
na área da Engenharia.
A primeira licenciatura em Engenharia surgiu em 2000 na
Universidade Católica Portuguesa. Nos anos seguintes abriram
outros cursos: em 2001 no Instituto Superior Técnico (IST);
em 2002 nas Universidades de Coimbra (UC), do Minho (UM)
e Universidade Nova de Lisboa (UNL). Com a adequação dos
cursos superiores ao estipulado na Declaração de Bolonha, a
grande maioria das universidades públicas optaram, a partir de
2007, pelo formato de mestrado integrado. Hoje a oferta pública
de ensino superior na área da Engenharia Biomédica consiste
em 5 Mestrados Integrados e 4 Licenciaturas (uma no ensino
superior e 3 no ensino politécnico). Foram 328 os alunos que
entraram nestes cursos em 2014 / 2015, através da 1ª fase do
Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior. Para além dos
cursos atrás referidos, há ainda a considerar a existência de 1
mestrado de especialização no ensino superior e um mestrado
de continuidade no ensino politécnico.
Das 5 Licenciaturas em Engenharia Biomédica criadas entre 2000
e 2002, 3 eram coordenadas por Departamentos de Física (IST,
UC e UNL). Tal não sucedeu por acaso. Por um lado, existiam
competências tecnológicas nestes departamentos, principalmente
nas áreas da física médica (radiações, imagem médica) e da
instrumentação. Por outro lado, os cursos destes departamentos
(Física e Engenharia Física) não conseguiam preencher as suas
vagas, o que começava a ter impacto no financiamento destes
departamentos. Face a esta situação, e havendo um “mercado”
constituído por alunos com médias elevadas e apetência pelas
Ciências Biomédicas (os alunos que se candidatavam e não
entravam em Medicina), é fácil compreender o impulso para a
criação das Licenciaturas em Engenharia Biomédica.
Com isto não quero dizer que a criação das licenciaturas em
Engenharia Biomédica foi apenas uma questão de oportunidade. A
necessidade existia. As sociedades modernas enfrentam custos de
saúde cada vez mais elevados, situação em que o envelhecimento
da população desempenha um papel relevante. A tecnologia surge
como ferramenta importante no controlo desses custos.
Um exemplo são as soluções de monitorização remota, que
permitem diminuir o número de consultas e os tempos de
internamento, bem como verificar a adesão às terapêuticas. Mas
podia também falar das soluções de inteligência computacional
para processar a informação gerada pelos testes de genómica ou
pela imagiologia médica. Os exemplos são abundantes e explicam
porque é que Engenheiro Biomédico é a carreira profissional com
maior taxa de crescimento nos EUA (dados de 2011 [2][Fig.1]).
O que se pode questionar é se o país precisava de tantos cursos
de Engenharia Biomédica. Não pude verificar mas há 10 anos
falava-se num estudo, feito pela UM em preparação para a criação
do seu curso, em que se mencionava uma necessidade de cerca
de 200 Engenheiros Biomédicos.
Não sei qual o horizonte temporal em que se inseria esta
necessidade.
4
E a empregabilidade?
Mas há empregos para os Engenheiros Biomédicos?
Ou estão todos em bolsas e a fazer doutoramento?
Quantos tiveram que sair de Portugal?
E quantos têm profissões ligadas ao curso?
Doutoramento
Bolsa de Investigação
Procuro aqui responder a estas perguntas. Relativamente aos
diplomados da UC, utilizei os meus dados obtidos quer a partir
da informação contida no grupo dedicado aos antigos alunos do
curso de Engenharia Biomédica da rede profissional LinkedIn
[3], quer a partir de informações recolhidas junto dos antigos
alunos.
Abrangem os diplomados até 2012 / 2013 (N=264) [Fig. 2].
Entidade / Empresa
Fig. 3 Empregabilidade da UM
Consultadoria
A comparação entre os três cursos não é imediata nem fácil, devido às
diferenças nas amostras e no tratamento dos dados.
Pode-se verificar que a percentagem de diplomados fora de Portugal é
relativamente baixa. No caso da UC é possível detalhar as actividades
destes ex-alunos: 22 são estudantes de doutoramento, 5 estão a fazer
post-doc, 2 são investigadores em laboratórios e 18 trabalham em
empresas.
As percentagens de ex-alunos no sistema científico não diferem muito:
IST: 34%; UM: 56.3% (os dados sugerem que 15% são investigadores
em entidades/empresas); UC: 35%. Mais importante, a evolução
temporal dos dados mostra uma maturação da empregabilidade dos
cursos e a crescente aceitação dos Engenheiros Biomédicos no sector
empresarial. No caso da UC, a percentagem de ex-alunos dentro do
sistema científico chegou a ser superior a 50%.
Especialista de aplicação / produto
Hospitais: Gestão de Projectos
e Equipamentos
I&D: Empresas
Outros
Bolsas de Investigação
Estudantes de Doutoramento
Post-Doc
Desempregados e
situação desconhecida
Fig. 2 Empregabilidade da UC
5
Há a questão de saber se os Engenheiros Biomédicos estão
a realizar tarefas de Engenharia Biomédica. No caso dos
diplomados da UC é fácil de responder: 39% não estão. A
grande maioria trabalha em diversas de consultadoria. Já a
consulta dos dados relativos ao curso da UM mostra que apenas
17,3% da amostra de ex-alunos não está ligado à área da
Engenharia Biomédica. Não foi possível obter esta informação
para os diplomados do IST.
Podemos ver estes dados de duas formas. Por um lado
a constatação que não existem em Portugal empregos
relacionados com a Engenharia Biomédica para todos os
diplomados. Esta situação agudizou-se com a crise económica
que, entre outras consequências, terminou com as contratações
no sector público da saúde e adiou muitos investimentos
privados nesta área. Por outro lado, verifica-se que a formação e
as competências adquiridas pelos diplomados em Engenharia
Biomédica permitem-lhes desempenhar funções noutras
áreas da Engenharia. Isto é um dado muito relevante para um
mercado de trabalho em que a flexibilidade e a adaptabilidade
são qualidades procuradas e reconhecidas.
O que os dados mostram é que os cursos de Engenharia
Biomédica têm boa empregabilidade.
Importa referir que os estudantes de Engenharia Biomédica
podem estabelecer “Student Branches” da IEEE-EMBS nos
seus estabelecimentos de ensino [9]. Na realidade basta um
estudante para estabelecer um “Branch”! Os benefícios para os
estudantes incluem vários recuros relacionados com a Engenharia
Biomédica e a possibilidade de receberem suporte financeiro
da IEEE-EMBS para a realização de eventos.
Miguel Morgado
Doutorado em Física e Coordenador do Mestrado em
Engenharia Biomédica da Universidade de Coimbra
Associações Profissionais
A existência de associações profissionais capazes de promover
a profissão, apoiar o desenvolvimento profissional e reconhecer
a excelência é particularmente importante para os novos
cursos. Um curso novo enfrenta sempre o desafio de obter o
reconhecimento do mercado de trabalho. Muitos empregadores
não conhecem as capacidades e competências dos Engenheiros
Biomédicos.
Nos últimos anos, a associação mais activa na promoção dos
Engenheiros Biomédicos foi o Capítulo Português da IEEE-EMBS
[7]. O IEEE é a maior associação profissional do mundo dedicada
ao desenvolvimento e inovação tecnológica. A IEEE Engineering
in Medicine and Biology Society (EMBS) é a maior sociedade
internacional de Engenheiros Biomédicos, congregando 9100
membros em 97 países [8]. O Capítulo Português desta associação organizou em 2011, 2012 e 2013 o Encontro Nacional de
Bioengenharia, tendo já anunciado a realização do 4º encontro
no Porto, de 26 a 28 de Fevereiro de 2015.
Estes eventos têm congregado pessoas e entidades do tecido
académico, empresarial e clínico, ligadas às disciplinas da
Engenharia Biomédica e sido um espaço para a divulgação e
promoção das suas actividades. Têm ainda sido um fórum para
a apresentação de trabalhos realizados por estudantes finalistas
e recém-graduados dos cursos de Engenharia Biomédica.
Referências
[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Engenharia_biom%C3%A9dica.
[2] http://www.nytimes.com/2011/04/17/education/edlife/edl-17conted-t.html?_
r=3&
[3]https://www.linkedin.com/groups?home=&gid=4706248&trk=my_groups-tilegrp
[4] http://oe.tecnico.ulisboa.pt/files/sites/24/JEBIOMED_2012_OEIST.pdf
[5] nebm.ist.utl.pt/repositorio/download/2230/1
[6] http://www.gaeb.pt/uploads/1/8/8/0/18802844/estudo_de_empregabilidade_
de_engenharia_biomdica.pdf
[7] www.facebook.com/embspt
[8] http://www.embs.org/
[9] http://www.embs.org/member-communities/students
Todas as referências web foram consultadas em 16-09-2014.
6
AFINAL O QUE
É O ÉBOLA?
O surgimento do vírus Ébola remonta ao ano de 1976 no
Zaire (actual República Democrática do Congo). Na altura,
o vírus vitimou cerca de 318 pessoas no Zaire e 284 no
Sudão. O vírus ressurgiu recentemente atingindo países
como a Libéria, Serra Leoa e Guiné-Conacri ganhando assim
destaque na imprensa nacional e internacional.
Taxonomicamente o Ébola é um vírus da família Filoviridae
do género Ebolavirus. Actualmente são conhecidas cinco
estirpes do vírus Ébola. O Ebola virus (Zaire ebolavirus);
Sudan virus (Sudan ebolavirus); Taï Forest virus (Taï Forest
ebolavirus, designado Côte d’Ivoire ebolavirus); Bundibugyo
virus (Bundibugyo ebolavirus) enquanto o Reston virus
(Reston ebolavirus), é infeccioso apenas em primatas não
humanos.
Morfologicamente é considerado um vírus pleomórfico.
Apresenta formas em “6”,“U” ou círculo. Relativamente ao
comprimento este pode medir cerca de 14000 nanómetros
tendo um diâmetro de 80 nanómetros.
Geneticamente o vírus é composto por uma cadeia simples
de RNA negativo. O vírus é replicado em células hospedeiras
através da maquinaria celular da mesma. No entanto as
estratégias de replicação não são inteiramente conhecidas.
A transmissão do Ébola pode ser considerada unidireccional,
ou seja, prolifera-se de animais para humanos e nunca o
contrário, sendo este tipo de transmissão designado por
zoonose. O agente patogénico hospeda-se no animal,
raramente infetando o mesmo, podendo permanecer
indetectável durante anos. Os morcegos são considerados
verdadeiros hospedeiros de organismos patogénicos, vistos
que são suspeitos de estarem ligados a inúmeras zoonoses,
inclusive a do Ébola. Entre estes, merecem destaque o
vírus Nipah que infectou cerca de 100 pessoas na Malásia,
enquanto a síndrome de respiração aguda, em 2003 declarou
o óbito a 774 pessoas.
Além destes, os morcegos são suspeitos de hospedar o
vírus Hendra cujos casos surgiram na Australia em 1994,
bem como o síndrome respiratório do Médio Oriente em
2012 que assinou a certidão de óbito a 298 pessoas, de um
total de 721 infectadas.
Recentemente, estas duas espécies têm tendência a partilhar
o mesmo habitat, fruto da desflorestação de florestas na zona
oeste de África para a construção de fazendas ou complexos
habitacionais, existindo assim uma maior predisposição para
o contacto e consequente infecção.
O contágio e consequente infecção em humanos só se
verifica quando o vírus entra em contacto directo com o
sangue ou fluídos corporais como a urina, saliva, fezes,
vómito e sémen de uma pessoa infectada com o vírus Ébola.
Objectos como seringas ou agulhas não esterilizadas e que
estejam contaminadas também podem ser um veículo de
infecção. Animais selvagens infectados que sejam usados
com propósitos alimentares também são veículos de
propagação do Ébola. No entanto, o vírus não é transmissível
por via aérea. Os sintomas associados ao Ébola assentam
em estados febris elevados, dor de cabeça acentuada,
dor muscular, fraqueza, diarreia, vómitos, dor abdominal,
hemorragia.
Actualmente não existe uma vacina que combata o
vírus Ébola, estando algumas vacinas ainda em fase
de investigação e desenvolvimento como é o caso da
ZMapp. No entanto, de acordo com algumas opiniões
a vacina mais eficaz é a aplicação de medidas simples
como uma boa higiene, alimentação e vitaminas C e D nas
doses recomendadas, bem como infraestruturas médicas
adequadas. Contudo, embora sejam medidas simples, são
difíceis de aplicar nos países assolados pelo vírus em parte
fruto das dificuldades e desigualdades socioeconómicas,
dos mesmos.
Bruno Marques
7
Tomar um comprimido e ficar um génio. Por que não?
Seremos nós bons o suficiente, ou podemos
ainda melhorar?
Será que temos nos de restringir a métodos
tradicionais, como estudar ou treinar, ou
podemos usar a ciência para aumentar as
nossas capacidades mentais e físicas mais
directamente?
Mais, não é o caso que não existe interesse em técnicas que
melhorem o desempenho da mente humana. É sabido que uma
boa dieta, fazer exercício físico e dormir bem é benéfico para o
bom funcionamento mental. Pode-se argumentar que qualquer
método educativo é uma forma de aumentar a capacidade de
aprendizagem do cérebro, ajudando a que os alunos sejam
capazes de compreender mais facilmente assuntos complexos.
Se a cultura actual não se opõe à introdução de melhorias da
capacidade mental humana, qual será a razão pela qual não
vemos um interesse significativo nesta área?
O possível argumento libertário diz que os governos mundiais
regulam em demasia a acção humana, pondo uma forca no pescoço
daqueles que querem trazer ao mundo as suas invenções. Esta
própria regulamentação excessiva poderá dever-se a uma
cultura adversa ao risco, preferindo incrementações
de tecnologias conhecidas àquelas que alterem
o paradigma actual. Como libertário tenho a
tendência para acreditar neste argumento,
mas, como em todas as perguntas que
valem a pena responder, a resposta
nunca é tão simples e poderá
depender de uma multitude de
factores.
As questões éticas que este
tipo de produtos levanta são
extensas, de facto, todo o
tipo de melhoramentos
aplicáveis à espécie
humana, e.g., modificação
genética, mas muitas
não sobrevivem ao
escrutínio. Grande
parte das objecções
levantadas giram à
volta de visões sobre
qual a relação entre o
Homem e a natureza,
onde são levantadas
preocupações sobre
O interesse em ética aplicada a questões de melhoramento
humano tem vindo a aumentar na última década devido a avanços
biomédicos que sugerem a grande possibilidade de utilizar a
medicina e a tecnologia para moldar, manipular, e melhorar muitos
aspectos da biologia humana. Uma das áreas na qual este debate
se centra é a questão da utilização de agentes farmacêuticos para
aumentar a capacidade cognitiva em pessoas saudáveis. Tendo em
conta as possíveis consequências sociais, económicas e pessoais,
que a utilização destes agentes, chamados de nootropics, poderá
trazer, é de notar a falta de interesse académico e empresarial
no desenvolvimento e estudo de novos e melhores produtos.
Actualmente existem apenas três categorias de nootropics:
estimulantes, utilizados medicamente para tratar casos de deficiência
de atenção; inibidores de acetylcolinesterase, utilizados para
combater os efeitos nefários de doenças como o Alzheimer; e o
Modafinil, um único medicamento bastante eficaz na luta contra a
narcolepsia. No entanto, de acordo com o estado actual do estudo
sobre a sua eficácia quando usados em indivíduos saudáveis,
todas as provas apontam para que o seu efeito seja negligivel,
mas que nenhuma conclusão pode ser tomada, uma vez que a
população utilizada em muitos dos estudos é demasiado pequena
para que alguma conclusão possa ser chegada.
São à partida óbvias as extensas consequências positivas que
o desenvolvimento de nootropics eficazes e baratos podem
trazer, mas por que razão não existe maior interesse no seu
desenvolvimento? A incubadora de startups mais conceituada do
mundo, o YCombinator, nota esse desinteresse num artigo onde
explora em que tipo de startups procura investir, notando que o
desenvolvimento de novas drogas tem-se tornado mais lento e caro.
8
a alteração do que é chamado de 'natureza humana', ignorando
que todos os avanços tecnológicos alcançados pela nossa
espécie são tentativas de nos libertar das correntes impostas
pela própria natureza.
Nesta visão, a invenção da agricultura é vista como não desejada.
Também são levantadas preocupações sobre o que é chamado
de 'fazer de deus', não pela sua conotação teológica, mas pela
excessiva confiança colocada no conhecimento, mostrando
ceticismo sobre o que seria feito com o acesso a estas capacidades.
Esta objecção é mais uma crítica a uma atitude do que ao próprio
assunto, uma vez que é também regularmente levantada em
questões de alteração ambiental. No entanto, não é suficiente,
uma vez que como crítica pode ser utilizada em qualquer questão
levantada sem qualquer alteração. Questões de segurança
são talvez as mais pertinentes, já que o risco de
consequências malignas é uma possibilidade
presente em grande parte das modificações,
sejam estas médicas ou não, apesar de
não inerente.
O sistema de avaliação de risco
médico é baseado na comparação
do risco do tratamento em relação
ao possível benefício na redução
do risco de morbidade
alcançado pelo sucesso do
tratamento. Este modelo
é adverso aos produtos
aqui discutidos, uma vez
que estes não reduzem
o risco de morbidade
e, visto que os seus
benefícios podem
ser não-terapêuticos,
s u b j e c t ivo s, e
dependentes do
contexto.
Dentro deste sistema,
as pessoas para as
quais os medicamentos
existentes se encontram disponíveis são aquelas que se encontram
doentes; o resto vê vedado o seu acesso. Uma pessoa saudável
terá pouco uso para medicamentos contra o cancro, mas porque
razão não pode esta pessoa obter medicamentos com possíveis
efeitos benéficos como o Modafinil, mencionado anteriormente,
ou toda a classe dos racetams? A pergunta fica por responder.
No entanto, exemplos de outros modelos de avaliação existem. Na
cirurgia cosmética, a autonomia do paciente suplanta os possíveis
riscos, mesmo quando o procedimento não reduz morbidade.
Um modelo similar poderá ser usado no contexto dos produtos
de melhoramento cognitivo, com o utilizador a ter o poder de
decidir se os benefícios valem a pena, tendo em conta os possíveis
riscos, baseando-se nos conselhos de médicos profissionais e na
sua própria estimativa de como a intervenção poderá afectar os
seus objectivos pessoais.
Vivemos numa sociedade de conhecimento. Nesta nossa era, uma
pessoa sobrevive e floresce pelo conhecimento que possui e, por
consequência de um mundo nunca parado, pela capacidade de
se adaptar a novos desafios. Não é necessária uma imaginação
fértil para perceber a importância de vitalizar o interesse em
produtos e terapias que sejam capazes de melhorar a cognição
humana. O retorno exponencial do possível conhecimento e
inovação libertado pelo poder racional que ficaria disponível seria
tal que talvez fosse possível inverter a estagnação tecnológica
das últimas décadas.
Mais importante, e a razão pela qual é importante apoiar as
mudanças que tornem possível o desenvolvimento destas
invenções, é o impacto positivo que teria na vida das pessoas.
Talvez não será o caso que ao tomar um comprimido será possível
resolver equações diferenciais mentalmente, mas, com acesso a
um melhor cérebro, talvez não será tão complicado resolvê-las e
continuar a usar essa nova maquinaria para perceber problemas
cada vez mais complicados e importantes.
João Eira
9
psicomotricidade:
uma visão holística
do ser humano
O desenvolvimento humano não é unifatorial, pelo que
está dependente da conjugação de diversos fatores, entre
eles os cognitivos, afetivos, motores e psicossociais, num
processo que se caracteriza pela sua continuidade e pela
sua duração durante toda a vida.
Neto, Almeida, Caon, Ribeiro, Caram & Piucco, 2007
Partindo deste pressuposto, surge a Psicomotricidade
que tem sido área de convergência de vários campos e
conhecimentos que levaram a diversas teorias e práticas
de intervir com o corpo (Machado & Tavares, 2010).
O corpo é visto, no seu âmago, como a identidade de cada
um que se manifesta e expressa através das emoções,
sentimentos e movimento que permite a compreensão do
exterior através da ação e do movimento (Magalhães, 2008;
Fontoura, 2011; Silva, 2012). De acordo com a conceção
de Merleau-Ponty, mais do que ter um corpo, a pessoa
é o seu corpo. E o corpo, na materialidade orgânica de
que se faz, é a pessoa corporeamente sujeito dum tempo
e dum espaço (…)
Silva, 2012, p. 207
10
Na sua génese, o termo psicomotricidade nasce do
campo médico, mais precisamente neurológico, quando
surgiu a necessidade de nomear as várias áreas do
córtex cerebral que ultrapassavam as regiões motoras.
Este avanço permitiu constatar que existiam disfunções
graves, mesmo sem que o cérebro estivesse lesionado,
ou sem uma lesão completamente localizada, doravante
interpretados como distúrbios psicomotores (Lussac, 2008).
A psicomotricidade pode ser definida como o campo
transdisciplinar que estuda e investiga as relações e
influências, recíprocas e sistemáticas, entre o psiquismo e
a motricidade do ser humano.
Fonseca 2004
O psiquismo é entendido como o conjunto do funcionamento
mental, ou seja, integra as sensações, perceções,
as emoções, os afetos, as aspirações, os medos, as
simbolizações, entre outros; e, ainda, a complexidade
dos processos cognitivos, relacionais e sociais.
Por sua vez, a motricidade é entendida como o conjunto
de expressões mentais e corporais que envolvem funções
tónicas, posturais, somatognósicas e práxica.
A terapia psicomotora tem preferencialmente duas
direções. Por um lado, pretende a procura de significado
na profundidade da expressividade corporal, ou seja, a
desconstrução da significação inerente e inconsciente à
expressão corporal e, por outro lado, pretende a elaboração
de princípios de ação, favorecendo o desenvolvimento
harmonioso da pessoa (Aucouturier, 1990). A intervenção
psicomotora tem como preocupação nuclear a criação
de condições que permitam fazer emergir, facilitar e
enriquecer o potencial de aprendizagem e adaptação do
indivíduo (Fonseca, 2001). Por isso, constitui-se como uma
intervenção por mediação corporal, que aborda sistémica
e holisticamente o ser humano, proporcionando uma
resposta indispensável em situações onde a adaptação
se encontre comprometida e onde é fundamental uma
compreensão dinâmica do funcionamento do sujeito nos
seus vários domínios (Fonseca & Martins, 2001).
Tendo em conta esta visão, importa referir que o raciocínio
tecnológico tem vindo a marcar um importante avanço em
algumas das áreas mais importantes da atividade humana,
procurando superar os condicionalismos colocados pela
natureza
Rodrigues, 2008, p. 12
Desta forma, a superação do corpo foi (e é) realizada em
larga medida pelo uso de diferentes técnicas que permitirão
a criação de extensões, prolongamentos e ampliações de
suas funções
Rodrigues, 2008, p. 23
Isto permitirá o melhoramento do papel da Psicomotricidade,
proporcionando-lhe ferramentas cada vez mais completas
e integradas da compreensão do ser humano, i. e.,
contribuindo cada vez mais para a compreensão de que
o corpo e o movimento são inseparáveis da pessoa como
ser holístico, premissa base da psicomotricidade como
ponto de partida para o desenvolvimento das estruturas
emocional, psíquica, mental e espiritual (Santos, s/d cit
in Branco, 2010).
Em suma, numa perspectiva holística e integradora de
várias áreas de conhecimento, a Psicomotricidade surge
como forma de consciência que fornece ao sujeito uma
organização, diminuindo disfunções que têm na sua maioria
origem psíquica e permitindo aumentar o seu grau de
participação e adaptação ao envolvimento (Thurin, 2010).
ana inês silva
ana sofia barradas
Reabilitadoras Psicomotoras
Licenciatura em reabilitação psicomotora
pela Faculdade de Motricidade Humana
“(...) pensar, analisar, compreender, agir, tratar, enfim, encarar
o corpo com ou sem deficiência, são coisas que devem ser
feitas da mesma maneira, acreditando nos seres corporais que
somos e respeitando-os. Todos somos movimento em potencial,
apaixonamo-nos e vivemos no mundo das relações, afinal somos
todos corporeidade viva e existencializada.”
Moreira, Porto, Carbinatto & Simões, 2008, p. 134
11
Dos ganchos
às próteses biónicas…
Desde os tempos gregos e romanos que existem inúmeras
referências históricas de próteses. Por exemplo, existe a
referência histórica de Marcus Sergius, um general romano
que perdeu a mão direita na segunda Punic War. Segundo
consta, este substituiu a mão por uma prótese de ferro,
com o propósito de ser capaz de segurar o seu escudo
e poder voltar ao campo de batalha. Existem ainda os
piratas retratados sempre com ganchos de madeira ou
mãos de metal no lugar onde se deveria encontrar a sua
mão. Este acabou por se tornar o standart das próteses
durante grande parte da nossa história.
Contudo, com o avanço da tecnologia e da sociedade, as
próteses e a sua necessidade também sofreram grandes
evoluções. Até há relativamente pouco tempo, estas eram
constituídas por plásticos avançados e compostos de
fibra de carbono. Tais materiais tornam as próteses mais
leves, mais fortes e mais realistas.
Apesar dos avanços tecnológicos ao longo do tempo,
as próteses ao longo do tempo têm mantido a mesma
estrutura base: o pylon - o esqueleto que fornece suporte
estrutural; a meia - porção da prótese que fica em contacto
com o membro residual do sujeito, e é responsável
por transmitir a força da prótese para o corpo; e o
sistema de suspensão mantém a prótese ligada ao corpo,
normalmente por sucção.
12
Apesar dos componentes básicos, por norma, serem
iguais, cada prótese tem um design único e específico
para um determinado indivíduo, de modo a adaptar-se
às necessidades anatómicas do sujeito.
As próteses prestam bastante atenção à ligação entre
o membro residual e a meia. Após uma amputação, o
membro residual de um paciente encolhe ao longo dos
meses, uma vez que a inflamação diminui e os músculos
começam a atrofiar. Deste modo é preciso, não só uma
grande precisão aquando das medições para a produção
do aparelho, mas também uma monotorização cuidada
ao longo da vida do sujeito.
Apesar de todos os recentes avanços tecnológicos,
a maior par te das próteses fabricadas hoje em dia
são passivas, ou seja, não têm a capacidade de gerar
activamente propulsão durante a marcha. Devido a este
facto, sujeitos amputados gastam, por norma, 30% mais
energia durante a marcha do que o normal. Houve então
a necessidade de desenvolver novas próteses anatómicas
e fisiologicamente mais próximas de um membro real.
Estas novas próteses inspiraram-se, então, na maneira
em como o pé e o tornozelo trabalham em conjunto.
Quando andamos, os ligamentos e os tendões guardam
a energia que é produzida quando o pé atinge o solo.
Essa energia é depois usada para impulsionar o pé
para a frente.
Investigadores reproduziram esta estratégia fisiológica
com uma série de molas e um pequeno motor a bateria.
A energia cinética da marcha do sujeito é armazenada na
mola assistida pelo motor e é posteriormente libertada
para ajudar a impulsionar o pé para a frente enquanto
empurra o chão. Surgem então as próteses biónicas
(cujo nome surge da aplicação de métodos biológicos
e sistemas encontrados na natureza à engenharia e
tecnologia modernas).
Um dos seus propulsores é Hugh Herr, um professor e
investigador do MIT que perdeu ambos os membros
inferiores aos 17 anos durante uma escalada ao Mount
Washington, dedicando assim a sua vida profissional
ao desenvolvimento de próteses cada vez mais reais
e funcionais.
No entanto, este novo tipo de tecnologia traz consigo
questões éticas que dividem a sociedade. Muitos
questionam: Até que ponto é que um ser humano pode
ser modificado e ainda ser considerado humano? Para a
maioria o critério baseia-se no facto de a modificação
melhorar ou interferir com a capacidade do sujeito se
relacionar com outros. No entanto, esta é uma questão
ainda bastante recente, não havendo por isso um consenso
geral a nível moral, ético e científico.
Rita Viegas
13
tamera - um exemplo a ter em conta?
Tamera pode considerar-se a terra do amor livre e do estilo de vida
simples, mas não só. Ainda há pouco tempo um mero terreno árido
e inabitável, esta larga propriedade de 136 hectares é hoje a base da
sustentação de 150 pessoas que agora lá habitam, tanto a nível alimentar
como energético.
A atmosfera de tranquilidade e bem-estar presente convidam-nos a
questionar o nosso estilo de vida. Numa sociedade tão apegada aos
bens materiais e ao sentido de carreira profissional, será que ainda é
possível viver sem estas directrizes?
Iniciado em 1995, este pequeno exemplo de sociedade guia-se por
noções como o equilíbrio com a natureza e auto descoberta, recorrendo
à tecnologia sempre que necessário.
Estando a água intimamente ligada à vida, o seu ciclo e armazenamento
foi o primeiro a ser tomado em conta: com a ajuda de máquinas, foram
construídos canais e reservatórios de água que fazem com que a
população tenha acesso a água potável durante todo ano. Esta água
permitiu também a criação de plantações, algo que parecia impossível
para um terreno seco em pleno Alentejo. Hoje, dominada pelo verde,
a região produz grande parte do que consome, permitindo autosustentabilidade a nível alimentar.
Este desejo por uma pegada ecológica baixa não se fica por aqui. Em
termos energéticos, o aproveitamento da luz solar é o grande pilar,
14
aproveitando o facto de que o Alentejo é uma das zonas com mais sol
da Europa. Os exemplos deste aproveitamento são inúmeros. Desde
um grande espelho parabólico que acompanha o movimento do sol
e redirecciona os raios solares para um depósito de água, fervendo-a
em menos de dois minutos, até a um motor Stirling, que utiliza as
diferenças térmicas de um fluido para fazer mover um êmbolo para criar
electricidade ou bombear água, dependendo do propósito que se quer. É certo que várias sociedades, se não todas, apresentam indícios de mal
estar, cenas de violência e opressão, mas qual a causa destes mesmos
comportamentos?
Em Tamera acredita-se que estes residem na mente humana, e que
sem se eliminarem é inútil tentar melhorar a sociedade pois não se
conseguirão vencer estes obstáculos. Para esse aperfeiçoamento ao
nível social e pessoal, os assuntos não poderiam deixar de ser discutidos
abertamente, seja qual for a natureza do problema.
A verdade é que quando partilhados, se os problemas não desaparecerem,
pelo menos parecem ficar mais leves.
Este local não é apenas uma experiência a nível social e tecnológico,
um possível protótipo para o mundo, é também um espaço de procura
e aperfeiçoamento interior.
diniz sá
15
Efeito de Leidenfrost
Calma, calma! Não fiquem já assustados com o nome deste efeito, pois certamente já lidaram com ele, mais do que uma vez. O efeito de
Leidenfrost é nada mais do que o reboliço de uma gota de água num tacho muito quente onde a gota facilmente desliza.
Foi isso que o médico alemão Johann Gottlob Leidenfrost observou e publicou num artigo intitulado “A Tract About Some Qualities of
Common Water”, em 1756.
Mas em superfícies não
planas, o que acontece?
Até à entrada deste milénio conhecia-se o comportamento
sob superfícies planas deslocando-se basicamente como um
Hovercraft. A camada de vapor debaixo da gota permitia-lhe
deslocar-se rapidamente em qualquer direção e sentido, desde
que fossem garantidas as mesmas condições da superfície do
sítio de onde partira.
O fator temperatura
Porém, só acontece a uma gama de temperaturas muito precisa,
acima do chamado ponto de ebulição de filme ou ponto de
Leidenfrost. Mas até chegarmos a esta temperatura a gota de
água passa três etapas principais: Núcleos de ebulição, Transição
da ebulição e Ebulição de filme.
Nada de especial, é o que devem estar a pensar, porém, em
2006 foi publicado um artigo na Physical Review Letters de certa
forma revelador. O artigo intitulado “Self Propelled Leidenfrost
Droplets” (em português, Gotas auto propelidas sob o efeito de
Leidenfrost) expunha que diferentes líquidos desempenhavam
um movimento auto propelido quando postos em contacto com
superfícies quentes com uma topologia assimétrica.
No estudo foi observado que as gotas adquiriam uma aceleração
até 1 - 2 m/s2, subiam planos inclinados e mantinham uma
velocidade de 5 cm/s sob distâncias até 1 m.
Na primeira etapa temos o aparecimento de algumas bolhas
de vapor isoladas que se vão organizando depois em colunas
de vapor mais concisas. Continuando a aumentar a temperatura
da placa de aquecimento, a gota entra na etapa da transição da
ebulição. Esta apresenta uma curva da relação fluxo de calor em
função da temperatura da superfície da placa um pouco paradoxal,
isto porque apesar da temperatura da placa de aquecimento
continuar a aumentar, o fluxo de calor diminui.
Tal facto deve-se principalmente às bolhas de vapor que vão
atravessando e surgindo pela gota de água. Como o vapor
de água possui uma capacidade térmica mássica menor do
que a água no estado líquido, este irá atuar como um isolador
retardando assim a troca de energia entre a placa de aquecimento
e a gota de água.
A última fase inicia-se no ponto em que a própria superfície onde
está a gota possui uma temperatura tão elevada que põe em
ebulição a camada de água que está imediatamente em contacto
com ela. Fazendo assim com que esta camada de vapor, que
surge na base da gota, a eleve e ponha o resto da gota num estado
de flutuação. Tal como já foi dito, o vapor de água isola a gota
da superfície que está a altas temperaturas (aproximadamente
acima dos 200ºC), portanto irá aumentar dessa forma o tempo
de vaporização da gota.
Agora sim, temos uma gota sob o efeito de Leidenfrost!
Ilustração 1 Transferência de calor para a água (1atm)
À medida que o líquido se evapora na base da gota a pressão,
que faz com que a gota levite, expele o vapor lateralmente. Este
grupo de cientistas teorizou então que a superfície corrige
parcialmente este fluxo de vapor, exercendo assim uma força de
viscosidade na gota.
Para quem não é muito familiar com forças de viscosidade pode
pensar, de forma mais simplificada, que como vai haver um maior
espaçamento entre a gota e a superfície no ponto A ao invés do
ponto B, irá escapar-se mais vapor por A e, consequentemente,
por conservação do momento linear, a gota irá deslocar-se neste
caso no sentido esquerda-direita. Basicamente funciona como
o recuo de uma arma ou canhão depois de disparado, sendo
que aqui o que está a ser libertado no sentido contrário ao do
movimento é o vapor de água.
Este efeito é independente do material da superfície e da sua
geometria precisa, sendo que estudos mais recentes afirmam
haver uma correlação entre a profundidade dos cumes da
superfície, o tamanho da gota e o impulso dado a esta para se
deslocar.
Gotas que desafiam
a gravidade
Devido então, à força de viscosidade exercida pelo fluxo de
vapor da gota, esta consegue com facilidade contrariar a força
gravítica, subindo planos inclinados. Contudo esta característica
não está disponível para qualquer gama de temperaturas, pois
um aumento da temperatura da superfície aumenta também a
espessura da camada de vapor e consequentemente a gota perde
a aderência necessária à superfície para conseguir “trepar” estes
cumes [Fig.1]. Mas atenção, a força da gravidade nunca poderá
ser desprezada, pois é ela que garante que haja um contacto
permanente entre a gota e o serrilhado da superfície. Caso isto
não se verifique também não iremos ter uma força de viscosidade
aplicada.
Desde a publicação deste artigo já surgiram muitos outros, é caso
disso, um artigo que relaciona o som emitido pela gota durante a
ebulição de filme e o tempo de vida da mesma.
É esperado que continuem a surgir novos artigos neste campo
científico que abarca tanto a mecânica de fluídos e como a
termodinâmica.
O efeito de
Leidenfrost aplicado
Porém, o entendimento desta matéria por si só não basta e já há
ideias de algumas aplicações, nomeadamente no arrefecimento
de microchips. Nestes pequenos aparelhos, os sistemas de
arrefecimento atuais podem ser demasiado complexos ou
grandes demais em comparação com a estrutura do chip. Bastaria
integrar um circuito fechado com um líquido refrigerante bastando
apenas uma superfície serrilhada no local onde exista o calor
residual e um condensador para reutilizar o vapor do líquido.
Seria um sistema muito eficaz pois não haveria peças móveis,
tudo o que bastava era que os canais do circuito atingissem o
ponto de Leidenfrost por acumulamento da temperatura residual
do chip. Esse líquido refrigerante é que iria tratar de começar a
mover-se e arrefecendo o circuito.
E agora?
Um perfil peculiar
Esta gota possui um formato muito específico que lhe dá propriedades
ainda mais curiosas. Ela apresenta um perfil convexo no seu topo e
côncavo na sua base. A camada de vapor possui uma espessura que
varia entre 1mm na extremidade da gota e 2mm no seu centro.
Esta camada de vapor está em constante fuga para a atmosfera sendo
“recarregada” pela massa de água que está imediatamente acima.
16
Ilustração 2 Perfil de uma gota sob o efeito de Leidenfrost
H. Linke, B. J. Alemán, L. D. Melling, M. J. Taormina, M. J.
Francis, C. C. Dow- Hygelund, V. Narayanan, R. P. Taylor,
and A. Stout. Self-propelled leidenfrost droplets. Phys.
Rev. Lett., 96:154502, Apr 2006.
Fig.1 - Vídeo
Agora podem ir treinando a vossa pronúncia alemã, para quando
virem alguém a cozinhar com algum tacho a temperaturas muito
elevadas possam expressar: “Esse é o efeito de Leidenfrost!”.
Tiago Leal
Estudante de Física da FEUP
17
A INACREDITÁVEL “AVALIAÇÃO”
DA CIÊNCIA
A “avaliação” das unidades de investigação científica nacionais
encomendada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia
(FCT) à European Science Foundation (ESF) revelou-se uma
fraude. Perdeu-se a confiança num processo que devia ser
um pilar do sistema científico nacional, confiança essa que
vai demorar a restaurar. Custa a acreditar como é que uma
agência que devia velar pela quantidade e qualidade do
sistema científico nacional tenha mostrado um tão grande
desinteresse pelo destino da ciência, ao colocar em prática
um processo que prejudica inequivocamente a investigação
nacional. Os Reitores de todas as Universidades já apontaram a
falta de crédito da “avaliação”. Escreveram uma carta pública
ao ministro Nuno Crato, que não lhes respondeu publicamente.
Crato não podia aliás dizer grande coisa, pois contra factos
não há argumentos. Ao permanecer silencioso, o ministro fugiu
às suas responsabilidades. Quando saírem os resultados da
segunda fase (para a qual foram já anunciadas quotas), veremos
qual vai ser a reacção dos Reitores. Alguns desses resultados
são desde já bastante previsíveis: o financiamento avultado
de sectores da biomedicina da área de Lisboa.
O processo da “avaliação” foi desde o início mal conduzido,
em resultado de pre-concepções erradas dos actuais gestores
da FCT a respeito do sistema científico português. Eles acham
que esse sistema cresceu demais nas últimas duas décadas
e que agora é preciso reduzi-lo (“podando-o” como disse o
principal guru do processo de cortes em curso). De facto, o
sistema cresceu – e tal era preciso pois estávamos na cauda
da Europa – mas não cresceu ainda o suficiente, pois ainda
estamos distantes dos padrões médios europeus. Estávamos,
na área da ciência, num processo de convergência e a FCT
decidiu interromper esse caminho de aproximação ao pelotão
da frente. Era preciso envolver mais gente - em particular
atribuindo mais bolsas a estudantes - em vez de menos.
Fig.1 Ordenação relativa dos centros do país de acordo
com os parametros da fct e o resultado da avaliação
18
Sem qualquer lógica (numa atitude não científica, pois foi
mantida secreta por muito tempo) a FCT mandou a ESF cortar
metade das unidades de investigação portuguesas, com base
apenas em documentação. Impôs a priori uma quota de 50%
das unidades a passar à 2.ª fase, a única que garantia acesso
a um financiamento mínimo.
A FCT, a meio do processo, decidiu, sem mais nem porquê,
diminuir o número de avaliadores, fazendo com que a selecção
dos centros (selecção, esclareça-se, entre a vida ou a morte!) se
tornasse nas várias áreas e subáreas perfeitamente aleatória.
Hoje sabe-se que alguns membros de painéis de avaliação, sem
serem especialistas nos domínios em causa, decidiram sobre
a extinção de centros, por vezes contra o parecer expresso de
especialistas nas ciências em causa. Como se a destemperada
1.ª fase não chegasse, na 2.ª fase tudo piorou: houve de novo
falsos especialistas e violação das normas da própria FCT
quanto ao número de avaliadores. Eis aqui a mais completa
negação da ciência: apontados erros grosseiros, esses erros
não só continuaram como se tornaram ainda mais grosseiros.
Um dos critérios da “avaliação” – devia ser o principal… - foi
a produtividade científica, apurada pela Elsevier. Pois bem: os
cortes cegos de 50% da 1.ª fase da “avaliação” contrariaram a
imagem clara de boa produtividade nalgumas áreas, fornecida
pelas tabelas da Elsevier. Quer dizer, a produtividade não foi
levada em conta de maneira efectiva. Já depois de fechada essa
fase – isto é, já depois de haver decisões - a FCT decidiu, sem
qualquer explicação, mudar uma entrada importante nesses
dados, designadamente o número de investigadores a tempo
inteiro. A FCT nem sequer pediu desculpa pelo erro. E números
que em muitos casos já eram muito bons, dados os escassos
financiamentos disponíveis, passaram a ser excelentes. Mas
as notas não mudaram para ninguém. É como se os resultados
de uma experiência tivessem sido corrigidos de um factor de
dois e as conclusões continuassem as mesmas.
A Física é, entre todas as áreas científicas, um dos casos mais
estranhos. Olha-se para os dados da produtividade e para os
resultados e a conclusão só pode ser que não se percebe qual
foi a lógica, se é que houve alguma, ao escolher 8 entre os 16
centros que se apresentaram à avaliação. A tabela ilustra esse
facto ao mostrar a ordenação relativa (a escala na vertical não
indica a pontuação absoluta, mas apenas a ordem) dos centros
do país de acordo com os parâmetros da FCT (número de artigos
publicados e respectivas citações, por exemplo) e o resultado
da avaliação. As linhas a cheio indicam os centros que passaram,
e as linhas a tracejado e a pontilhado aqueles que chumbaram,
19
sendo a nota dos que estão a tracejado “Bom” e os que estão
a pontilhado “Razoável”. Um simples olhar mostra que não há
relação alguma entre a produtividade científica e passagem
à 2.ª fase. Centros mais produtivos chumbaram, enquanto
centros menos produtivos passaram. Em consequência, se essa
avaliação se mantiver, a Física em Portugal vai ficar praticamente
acantonada em algumas instituições lisboetas. O Centro de
Física das Universidades do Porto e Minho foi chumbado. Dois
centros de Coimbra, o Centro de Física da Universidade de
Coimbra (que resultou da fusão de dois centros de Coimbra,
na lógica de anteriores avaliações da FCT) e o Centro de
Instrumentação, Engenharia Biomédica e Física da Radiação,
ficaram pelo caminho. Esses cortes arbitrários, entre outros, são
maus para todos: para os estudantes, que vêem diminuídas as
suas capacidades de escolha (serão obrigados a deslocar-se
para Lisboa para fazerem pós-graduações em Física), para as
Universidades, que se vêem privadas da acção de alguns dos
seus cientistas mais produtivos, e são maus sobretudo para o
país, que se torna ainda mais desigual.
Há, como não podia deixar de ser, possibilidade de recurso. Muitas
decisões estão retidas nessa sede, vendo-se agora a ESF (que,
pasme-se, ameaçou com um processo legal uma investigadora
espanhola que apontou defeitos na “avaliação” portuguesa!)
impedida de participar na reavaliação. Desconhece-se qual é
a nova entidade que a FCT contratou para a reavaliação nem
qual é o teor do contrato. Se a via do recurso não funcionar, os
tribunais serão chamados a repor a justiça, o que não será nada
difícil dado o número e o teor das irregularidades administrativas
já detectadas, que acrescem aos erros científicos. Vivemos num
estado de Direito e uma denúncia ao Ministério Público foi
apresentada por uma associação de docentes e investigadores.
Vivemos também num estado democrático: os cidadãos podem
intervir e os governantes podem ser mudados.
Carlos Fiolhais
Professor catedrático no Departamento de Física,
Universidade de Coimbra
trivialidades
economia
Qual é a diferença química entre
o cabelo encaracolado e o liso?
portugal e o futuro
Todos nós sabemos que são inúmeras as diferenças entre o
cabelo encaracolado e o liso. A sua maior diferença encontrase, no entanto, a nível químico, particularmente na estrutura
das proteínas que o compõem. A queratina é a principal destas
proteínas, sendo constituída por 18 aminoácidos, tendo a cisteína
um papel especial devido à sua riqueza em enxofre. Os átomos
de enxofre por vezes agrupam-se formando pontes de dissulfeto
[Fig.1], causando a curvatura das fibras. Logo, quantas mais
pontes de dissulfeto existirem mais encaracolado será o cabelo.
Esqueleto
polipeptidico
CH2
Ponte de
Hidrogénio
O cabelo cresce a partir dos folículos, sendo que pessoas com
o cabelo encaracolado tendem a ter os folículos em forma de
gancho, em vez de folículos direitos, como acontece no cabelo
liso. Pensa-se que a forma do folículo força a que as moléculas de
queratina se juntem cada vez mais aumentando a probabilidade
de se formarem pontes de dissulfeto. Ao contrário daquele, no
cabelo liso as ligações são formadas entre os átomos que se
localizam aproximadamente na mesma posição em cadeias de
queratina vizinhas.
O
H.
..
O
C
CH2
OH
CH2
S
S
CH2
Ponte de
dissulfeto
No entanto, nem todo o cabelo encaracolado é natural. Para o
encaracolar artificialmente usam-se rolos quentes no cabelo
enquanto este se encontra molhado causando a formação de
pontes de hidrogénio entre as moléculas de queratina. Contudo,
as pontes de hidrogénio são, de longe, mais fracas do que as
ligações de dissulfeto, e por isso o efeito é perdido quando o
cabelo é exposto a água.
Contudo, para se fazer uma permanente (encaracolar o cabelo
a longo prazo) é necessário aplicar-se uma solução que contém
ácido tioglicólico que tem a função de quebrar as pontes de
dissulfeto, soltando os fios de proteinas. [Fig.2]
Fig. 1 Cabelo
De seguida, o cabelo é enrolado em peças cilíndricas e é
aplicada uma solução de água oxigenada (H2O2) que ajuda a
formar novas pontes de dissulfeto mas desta vez com posições
novas. O mesmo pode ser aplicado para alisar o cabelo sendo
que neste caso a segunda solução deve ser aplicada com o
cabelo alisado.
Rita Viegas
Fig. 2 Solução Química que ocorre numa permanente
20
Presumindo que o António, estudante do ensino superior, acaba o curso
com 23 anos, irá reformar-se aos 61 e morrer aos 80.
Isto significa que o António vai trabalhar, e descontar para o Estado, durante
38 anos, disfrutando da sua reforma durante cerca de 19 primaveras. Ora, o
futuro de Portugal reside na sustentabilidade económica do País.
A maioria da população portuguesa aparenta estar descontente com o
presente de Portugal, mas eu estou preocupado com o futuro desta nação
como um todo, o agora é irrisório.
Será que o António vai descontar o suficiente durante os 38 anos de
trabalho para poder usufruir da reforma a seu tempo?
Pois bem, o António recebe um salário médio de 2.500€ brutos ao longo
dos seus anos de atividade profissional. Isto significa que recebe 30.000€
brutos anuais, excluindo a redução remuneratória de 3.600€ acrescidos
de 4.400€ de subsídio de férias, o que dará cerca de 30.800€. No entanto,
por uma questão de justiça e colocando as coisas em pratos limpos, temos
que excluir os impostos. Temos de retirar a Retenção na Fonte de IRS,
os descontos para a Segurança Social e a Retenção na Fonte Sobretaxa.
A Retenção na fonte de IRS corresponde a cerca de 4.488€; a Segurança
Social a 3.880€; a ADSE a 910€ e a Retenção na Fonte Sobretaxa a 504€,
tudo isto dizendo respeito a valores anuais. Tirando este valor de impostos
aos 35.000€, ficamos com 24.220€ líquidos anuais.
O António paga anualmente 10.038€ de impostos. Pois bem, multiplicando
este valor pelos seus 38 anos de trabalho, ficamos com 381.444€ referentes
apenas a impostos.
Com um salário de 2.500€ brutos mensais, a previsão de reforma é de
1.378€ líquidos [2]. Esta reforma multiplicada por 12 meses e 19 anos
corresponderá a 314.184€. Este valor claramente mostra que o António
vai receber mais de reforma do que alguma vez pagou de impostos, com
uma diferença positiva de 67.260€.
Neste estudo [3], o António, que trabalha no setor público, é casado e com 2
filhos, pagaria mais em impostos do que receberia na reforma. De salientar
que o valor da reforma inclui uma inflação de 3%.
pagar estes apoios sociais.
Fazendo contas como se a Pensão de Invalidez fosse 374,10€ [4] e o
rendimento social mínimo e o rendimento social de inserção fosse de
239,43€, podemos calcular que seriam necessários 9 e 6 meses de
impostos da Maria para pagar uma pensão de invalidez e o rendimento
social mínimo, respetivamente. Analogamente, seriam necessários 0,44
meses e 0,29 meses de impostos do António.
Acrescidos a este valor estão os custos da Educação e Saúde Pública para
os 23,1% da população não ativa.
Sabendo que a população não ativa em idade ativa é 1.587.441[1],
e presumindo que a população ativa é composta por Antónios, são
necessários 13,37% e 85,6% dos ordenados da população ativa para pagar
a Pensão de Invalidez e o Rendimento Social Mínimo, respetivamente. Se
a população ativa fosse composta por Marias era necessário 259,53% e
166,1%, respetivamente, ou seja, a população portuguesa teria de ser
maior do que realmente é.
Uma vez que o ordenado médio português é 1212,3€ [1] brutos, a
percentagem seria de 33,25% e 21,29%, respetivamente, da população
portuguesa. O que significa que de 1/5 a 1/3 dos nossos impostos são
alocados para o estado social.
Frederico Borges
Referências:
[1] - www.pordata.pt
[2] - www.bpipensoes.pt
[3] - http://www.pwc.pt/pt/fiscalidade/simulador-irs.jhtml
[4] - www.seg-social.pt/
De forma análoga, a Maria, em tudo igual ao António, exceto em salário:
de 800€, iria descontar 520€ anuais em impostos. Fazendo um raciocínio
análogo, descontaria 19.760€ ao longo dos 38 anos de trabalho. Recebendo
uma reforma de 500€, receberia do estado 9.500€ durante os supostos
19 anos de vida de pensionista, donde retiramos, que a Maria paga mais
10.260€ de impostos ao longo da sua vida do que receberá em reforma.
Mais ainda, note-se que, anualmente, o António paga 910€ de ADSE e a
Maria 312€. Será que estes valores são suficientes para cobrir as despesas
que o Estado tem com o António e a Maria?
Aparentemente sim, porque além destes impostos pagos, o António e a
Maria também pagam IVA de 23% em todas as transações que realizam.
No entanto, sabemos existe 76,9% [1] de população ativa em idade ativa,
que suportam financeiramente os restantes 23,1% da população que vivem
através de pensões de invalidez, rendimento social mínimo ou rendimento
social de inserção. Ou seja, os impostos do António e da Maria têm que
21
O Meu Corpo, os Meus Direitos
MY LIFE
MY HEALTH
MY EDUCATION
MY CHOICE
MY FUTURE
MY BODY
MY RIGHTS
A Amnistia Internacional, no início da campanha “O Meu Corpo,
os Meus Direitos”, aquando da celebração do Dia Internacional da
Mulher, destacou quatro casos que merecem a nossa atenção dentro
da temática desta campanha, mostrando ser essencial agirmos
imediatamente para que situações como as que seguidamente vamos
descrever, não voltem a acontecer.
Sahar Gul, do Afeganistão, contou-nos como com apenas 11 anos foi
levada de casa, vendida e obrigada a casar com o que viria a ser o
seu futuro marido, Ghulam Saki de 30 anos.
“Casei-me com apenas 11 anos. Era muito pequena e não fazia ideia
nenhuma do que era a vida de casada e o que acontecia depois de
uma pessoa se casar. Quando as mulheres chegaram a minha casa para
me levar, comecei a chorar. Não queria ir com elas. Mas ninguém se
preocupou com as minhas lágrimas, ninguém me ouviu. Eu não queria
ir viver noutro sítio, com outras pessoas. Estava tão assustada”, lembra.
Algum tempo depois do casamento, Sahar desapareceu durante
alguns meses, o que levou, após muita insistência por parte dos
seus pais e dos seus vizinhos, a que a polícia local investigasse o seu
desaparecimento, acabando por a encontrar na cave dos seus sogros,
às escuras e quase inconsciente.
Os seu sogros espancavam-na, queimavam-na com cigarros ou ferros
em brasa e arrancavam-lhe as unhas e os cabelos, tudo isto porque
Sahar se recusou a ter sexo com outros homens.
O seu marido e cunhado fugiram e ainda se encontram em fuga. Por
outro lado, os seus sogros foram detidos, acusados de tentativa de
homicídio e condenados a dez anos de prisão. Porém, houve recurso
por parte dos condenados que aquando da decisão de instância
superior, no Tribunal de Cabul, viram a sua pena ser anulada. Apesar de um novo recurso os ter condenado a 5 anos de prisão,
são histórias como esta, em que a violação de um direito humano é
completamente banalizada e as autoridades pouco ou nada fazem para
intervir, fundamentando a sua inacção por se tratarem de questões
familiares, que a nossa intervenção é fundamental para mudarmos esta
negra realidade.
Sahar tem agora 16 anos e vive com a mãe num abrigo para mulheres.
O seu objectivo de vida passa por se tornar activista dos direitos das
mulheres, acabar com a violência no Afeganistão e pretende seguir a
carreira política no seu país.
Outro assunto urgente de direitos sexuais e reprodutivos é a realidade
dura, cruel e injusta que as mulheres nepalesas vivem no seu país. Ora,
no Nepal há uma generalizada discriminação de género que limita a
capacidade das mulheres tomarem decisões sobre a sua saúde sexual
22
e reprodutiva e as impede de aceder aos cuidados básicos de saúde,
como, por exemplo, ir simplesmente a um posto médico.
Também há uma outra situação terrível com a qual as mulheres deste
país se vêm confrontadas ainda muito jovens. Falamos do prolapso
uterino (útero descaído), uma condição extremamente debilitante
que impossibilita a execução das árduas tarefas diárias a que estão
obrigadas.
É o caso de Kopila, 30 anos, uma mulher brahmin que casou aos 17 e
tem neste momento 4 filhos e alguns abortos feitos a mando do marido.
Após 10 a 12 dias do nascimento dos seus filhos, Kopila já estava de
novo a trabalhar, carregando muitos pesos, desde troncos de madeira
a fardos de erva ou estrume e, assim, como resultado destas práticas,
Kopila começou a sentir os primeiros sintomas de prolapso uterino.
“
Doze dias após o parto, eu já estava a cortar madeira com um machado.
O meu marido pediu-me água e tivemos uma discussão. Ele bateu-me
com toda a foça. Não sei se o meu útero descaiu enquanto estava a cortar
madeira ou se foi quando ele me bateu. Mas foi nesse dia que o problema
apareceu. Isto foi há seis anos”, conta.
Embora quisesse consultar um médico, Kopila só o pode fazer com
a autorização do marido. Como não a obtém, vai secretamente com
o seu irmão ao posto médico, onde o seu útero é colocado de novo
no sitio e lhe é recomendado que descanse. Apesar de resolvida a
situação temporariamente, o mais provável é o útero voltar a descer
devido às condições a que está sujeita, sem a hipótese de descanso,
sob pena de ser criticada e ostracizada pela própria família.
Ora, se por um lado o prolapso uterino está normalmente associado
a pessoas com mais idade, no país em questão a incidência é em
mulheres muitos jovens, a maior parte das vezes ainda com 20 e
poucos anos, como é o caso de Kopila.
O Nepal precisa urgentemente de um plano de acção para erradicar
o mais depressa possível estas violações dos direitos sexuais
e reprodutivos, sendo para isso necessário, uma vez mais, uma
consciencialização dos governos para a gravidade e urgência da
situação.
E, bem mais perto de nós, passa-se a próxima história que vamos
contar.
Em 2012, Savita Halappanavar foi hospitalizada com uma gravidez
em risco de perda do feto. Por isso pediu nessa altura que lhe fosse
permitido abortar, mas tal foi-lhe negado. Acabou por entrar em
choque séptico e morreu ao fim de poucos dias depois de ter dado
entrada no hospital.
Apesar de uma investigação ter concluído que a morte de Savita se
deveu a negligência médica, não tendo os médicos reconhecido que
o seu estado clínico se estava a deteriorar, este caso voltou a chamar
as atenções para as restritivas leis contra o aborto que estão em vigor
na Irlanda.
O aborto é ilegal na Irlanda, com exceção única nos casos em que
exista um risco “real e substancial” para a vida – em vez de para a
saúde – da mulher. Esta exceção foi regulada por um acórdão do
Supremo Tribunal Irlandês, em 1992, emitido no caso de uma rapariga
de 14 anos que ficou grávida em resultado de uma violação e à qual
foi diagnosticado risco de suicídio.
A interrupção voluntária da gravidez continua a ser ilegal para as
mulheres que engravidam na sequência de violação ou incesto; caso
a sua saúde esteja em risco ou ainda quando são detectadas más
formações fetais. A lei consagra penas que podem ir até aos 14 anos
de prisão pelo crime de aborto ilegal.
Devido a este quadro legislativo, mais de 150 mil mulheres foram ao
Reino Unido, entre 1980 e 2012, para fazerem um aborto – esta é uma
média de 12 por dia. Só em 2012, o Ministério da Saúde britânico
registou 3.982 mulheres que viajaram para o Reino Unido para
interromper voluntariamente uma gravidez.
A julho de 2013, no parlamento irlandês, foi aprovada uma lei do
partido trabalhista que descriminalizava o aborto caso o nascimento
representasse uma ameaça para a saúde ou vida da mãe. Infelizmente,
a lei fundamental irlandesa atribui o mesmo valor à vida da mãe e do
feto não vivo.
Em Portugal o aborto foi despenalizado em 2007, no entanto este
assunto ainda não é totalmente claro. O médico pode-se declarar
objector de consciência, e não realizar o aborto. Este é um tema que
tem muitos adeptos de ambos os lados e portanto gera discórdias
acesas, no entanto julgamos que há uma questão fulcral. Uma mulher
quando não quer ter um filho, não o tem, seja com ou sem ajuda
médica. Esta é uma prática ancestral, que existe, sempre existiu,
entre portas fechadas, mãos sujas e sangue. Quantas mulheres já não
morreram porque decidiram não querer ter um filho?
Não se tratará portanto de sermos contra ou a favor do aborto em si,
pois não é por sermos contra ou a favor que ele deixará de existir…
Trata-se essencialmente de sermos contra ou a favor da saúde feminina,
sermos contra ou a favor da liberdade da mulher em ser dona do seu
próprio corpo.
(Próximo número da revista)
Ana Filipa Santos e Ana Bastos
Núcleo Amnistia Internacional de Coimbra
23
direito
Bioética
da
Entre uma qualquer forma de sociedade e uma
sociedade política distingue-se a organização
de um Estado cujo escopo assenta na proteção e
garantia dos seus indivíduos.
Entre um Estado tirano e um Estado de Direito
democrático releva a interpretação do conceito de
bem comum. Naturalmente sujeito a subjectividade, o
entendimento de bem comum pode ser simplificado,
bifurcando-se da seguinte forma: bem comum
utilizado como meio para atingir interesses
particulares, ou bem comum enquanto fim em si
mesmo. Esta última é a conceção em que radica
um Estado cujo propósito termina e se inicia na
dignidade da pessoa humana.
A vida, valor jurídico absoluto e inviolável, é a pedra
angular que fundamenta o complexo de normas
que se articulam e conjugam a ordem juridical. O
Direito é, portanto, indispensável à ordem juridical
que, por sua vez, é indispensável à harmonia da
vida em comunidade de homens.
De entre múltiplos princípios-base a ter em conta,
poderemos enumerar o do livre consentimento do
paciente, da plenitude na informação que lhe é
fornecida, a boa fé ou o da proporcionalidade na
intervenção. Proponho uma reflexão quanto a este
último; no domínio da justiça é a proporcionalidade
entendida como máxima aberta, o que pressupõe a
formulação de um juízo, que deverá englobar uma
ponderação dos valores em conflito, atendendo ao
seu circunstancialismo.
Mas quais são mesmo os valores a levar à colação
em cada caso?
O imperativo categórico de Kant firmou o
valor intrínseco da vida humana, que constitui
indubitavelmente o epicentro a partir do qual se
desdobram as estruturas lógicas do pensar em
sociedade. Questiono, no entanto, se não podemos
e devemos considerar também o valor intrínseco
de outras formas de vida.
Não será o planeta Terra, anterior e posterior à
nossa existência, digno de enfoque?
Não terão as montanhas e os mares, os insetos e
as aves uma importância tão fundamental quanto
indispensável ao equilíbrio do ecossistema?
Desvanecer-se-á a infinitude do pensamento do
Homem (naturalmente também a evolução da
ciência), se se desvanecer a Natureza e os seus
recursos. De forma a contornar uma indesejável
sobre-exploração industrial, cumpre talvez
determinar, tendo sempre como matriz a melhoria
do bem-estar individualizado e a qualidade de
vida em geral, quais os momentos em que é
estritamente necessária a intervenção científica e
em que situações se resvala para o que é conotado
indispensável na nossa sociedade ocidental mas
que, considerando sensatamente, é luxo.
Emprego a palavra luxo no sentido daquilo que,
para além de comportar irresponsabilidade pelos
vindouros, não se traduz no puro acesso à felicidade
do Homem, antes o empurra para a idealização de
objectivos inalcançáveis, para um rolo de consumo
que não termina nem se pretende que termine.
Partindo da tutela da vida humana e da propriedade,
o Direito tem vindo a constituir-se ao longo da
história, expandindo-se em crescendo. É seu intento
acompanhar as tendências e mundividências de
cada era. O progresso da biociência e da tecnologia
levanta novas fronteiras porquanto conflui com um
valor indivisível como é o da vida. Por um lado, não
pretende o Direito olvidar o progresso científico.
Por outro, qual é a via? O que é mesmo o progresso?
Requer-se que o Direito intervenha, que auxilie
na tremenda tarefa de delimitação do conceito.
Van Rensselaer Potter utilizou pela primeira vez
a expressão “bioética”, em 1971, com referência
ao estudo sistemático da conduta humana, do
seu comportamento observado à luz de valores
e princípios morais, quando colocado no domínio
das ciências da vida e dos cuidados de saúde.
Por se considerar indivisível a unidade física e
psico-somática do indivíduo, urge, por motivos de
justiça interjecional (que legado queremos deixar
às gerações futuras?) ponderar qual a barreira
limítrofe que a ciência não deverá transpor de forma
a salvaguardar a complexidade de elementos que
compõem a existência humana.
Clarifico que jamais tomarei posição a favor de um retrocesso ou pacto tecnológico. A minha perspetiva
subsume-se antes a uma ética científica criteriosa, estudada para que funcione verdadeiramente ao
serviço do Homem e da humanidade, e nunca o inverso.
Sofia Dias
2014, Sports Feature, 1st prize stories, Peter Holgersson
25
empreendedorismo
NIS-Negócios de Impacto Social
Solucionar problemas sociais durante muito tempo foi uma tarefa
delegada aos governos e organizações da sociedade civil, no entanto,
nos últimos anos temos observado o surgimento crescente de negócios
dedicados a ocuparem esse papel. Cada vez mais empreendedores
estão buscando desenvolver soluções para questões que afligem
principalmente a população de baixa renda, e ao contrário do que
se pode pensar, esses empreendedores não buscam unicamente o
lucro, mas estão movidos pelo desejo de promover uma transformação
social relevante buscando ir além de qualquer externalidade positiva
que um negócio tradicional poderia proporcionar.
Esses empreendedores são na verdade criadores de “Negócios de
Impacto Social - NIS”, que nada mais são empresas que oferecem,
de forma intencional, soluções escaláveis para problemas sociais
da população de baixa renda.
Conceito este cunhado pela ARTEMISIA www.artemisia.org.br/, uma
organização fundada em 2004 com sede em São Paulo e Recife, que
é pioneira na disseminação e no fomento de negócios de impacto
social no Brasil.
Em 2011, Michael Porter respeitado pesquisador da Harvard Business
School, articulou o conceito de criação de valor compartilhado,
no qual um negócio não deve gerar apenas valor económico, mas
também valor social, para a sociedade na qual está inserido.
Este conceito vai de encontro ao que se propõem os negócios de
impacto social, uma vez que a criação de valor compartilhado não
significa simplesmente responsabilidade social ou filantropia, mas
sim uma nova forma de obter sucesso económico, no qual o papel
de atender as reais necessidades da sociedade deixa de orbitar a
periferia do que a empresa faz e passa a ser o centro do negócio.
Porter chega a afirmar que este pode ser o momento para uma nova
concepção de capitalismo.
26
A criação de negócios de impacto social, envolve vários aspectos
chave, tais como o foco na baixa renda: no qual os produtos e serviços
são desenhados de acordo com as necessidades e características
da população de baixa renda, a intencionalidade: no qual possuem
missão explícita de causar impacto social, o potencial de escala:
que podem ampliar seu alcance por meio de expansão do próprio
negócio; de sua replicação em outras regiões por outros atores; ou
pela disseminação de elementos inerentes ao negócio por outros
empreendedores, organizações e políticas públicas, a rentabilidade:
que possuem um modelo robusto que garante a rentabilidade e não
dependem de doações ou subsídios, o impacto social relacionado
à atividade principal: no qual o produto e/ou serviço oferecido
diretamente gera impacto social, ou seja, não se trata de um projeto
ou iniciativa separada do negócio, e sim de sua atividade principal
(core business), e por último a distribuição ou não de dividendos:
pois em um negócio pode ou não haver distribuição de dividendos
a acionistas, não sendo, porém, esse um critério para definir um NIS.
A ARTEMISIA trabalha com o conceito de pobreza definido por
Amartya Sem, nobel em economia, o qual a definiu como sendo a
privação das capacidades básicas de um indivíduo, e não apenas
o fato de possuir renda inferior a um patamar preestabelecido.
A partir dessa perspectiva, os negócios podem gerar impacto
social em cinco principais dimensões: diminuição do custo de
transação; redução das condições de vulnerabilidade; ampliação das
possibilidades de aumento de renda; promoção das oportunidades
de desenvolvimento;e fortalecimento da cidadania e dos direitos
individuais.
Exemplos de negócios de impacto social, já são encontrados em
várias partes do mundo, tais como o Grameen Bank em Bangladesh
que tornou-se no primeiro banco especializado em microcrédito, cujo
foco é gerar impacto social a partir da redução da pobreza, ao criar
oportunidades de negócios para a parcela mais pobre da população,
sobretudo mulheres, através do acesso ao crédito; a Nuru Energy na
África, que através de um designer inovador desenvolveu lâmpadas
LED portáteis, modular e recarregáveis, capazes de reduzir até 85%
os gastos das famílias com iluminação; as Clinicas del Azucar no
México, que são uma rede de clínicas de cuidados para diabetes
de baixo custo, que proporcionam cuidados médicos preventivos
e de apoio para mexicanos de baixa renda; a Vivenda no Brasil,
que é uma empresa que fornece kits de reformas habitacionais
para moradores de favelas urbanas, de forma simples, rápida e
acessível, o que gera um impacto na diminuição da insalubridade
dos moradores; e até mesmo a SPEAK Social em Portugal, uma
escola de línguas e culturas de baixo custo, que tem por objetivo
possibilitar que qualquer pessoa aprenda uma nova língua além
de promover a integração de imigrantes nas cidades onde vivem,
enfim são inúmeros os exemplos que podem ser citados.
Escolas de negócio e tecnologia em todo o mundo como Harvard,
Stanford, Columbia, Berkeley e INSEAD, já estão engajadas com o tema
de negócios de impacto social. No Brasil, há 10 anos a ARTEMISIA
trabalha na disseminação e no fomento dessa nova forma de fazer
negócios e desde 2011 tem alcançado as principais universidades
através do “Movimento CHOICE”, que é a maior rede de universitários
engajados em negócios de impacto social do Brasil, e tem por objetivo
disseminar a discussão sobre o tema nas universidades.
Os “Embaixadores”, como são chamados os membros da rede
27
atuam na organização de workshops, palestras, cases e games a
fim de estimular o perfil empreendedor do estudante através da
disseminação de NIS.
O Antonio Oliveira, ex-aluno da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e do Instituto Militar de Engenharia (IME) estuda atualmente
na Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra
(FCTUC) participa do Movimento CHOICE como Embaixador, e
está incumbido do desafio de disseminar a temática em Coimbra.
A ARTEMISIA, tem atuado também como Aceleradora, selecionando
empreendedores em potencial, e oferecendo-lhes suporte intensivo na
busca de soluções para a consolidação de seus modelos de negócio,
tendo acelerado mais de 40 negócios de impacto social, além de
já ter capacitado 523 Embaixadores e mobilizado mais de 50 mil
universitários, contribuindo para a construção de um ecossistema
cada vez mais pulsante de atores engajados nessa nova causa. Afinal,
entre ganhar dinheiro e mudar o mundo, é possível ficar com os dois!
ANTONIO OLIVEIRA
Embaixador do Movimento CHOICE.
Estudou na UFRJ e no IME e atualmente é estudante na FCTUC
RED
ITALIAN
HUNTER
entrevista
por RAFAEL SILVA
28
Resistance: Antes de mais, como surgiu a ideia para o vosso
nome?
RIH: O nome surge da grande obra cinematográfica “The Deer
Hunter”.
Neste filme existe aquela mítica cena em que o De Niro e o Sr.
Walken estão a jogar à roleta russa com os vietnamitas.
A origem do revolver, utilizado no jogo, é debatida por muitos e
numa obra de fan-fiction este é de origem italiana onde o escritor lhe
dá o cognome de “Italian Hunter”. Acrescentámos a palavra 'Red'
como forma de ilustrar a prevalência de sangue nessa mesma cena.
R: Que tipo de banda são os RIH?
R: A vossa música é toda instrumental. Como surgiu esta
ideia? É algo com que se identificam?
RIH: Antes de mais o instrumental é a nossa verdadeira raíz porque
quando nos juntámos não tínhamos voz. Isto resultou num grande
trabalho na parte da conceção instrumental das músicas, tendo-se
demonstrado algo cativante para todos, dado o desafio que é passar
uma mensagem sem usar palavras.
R: Como decorre o vosso processo criativo?
RIH: Todas as músicas são desenvolvidas e estruturadas em conjunto.
As ideias de base surgem geralmente de jams ou são malhas
concebidas em casa, individualmente, e trazidas para o ensaio.
R: Quais têm sido as críticas e a recepção do público em
geral ao vosso primeiro trabalho?
RIH: Podemos dizer que o nosso público se tem vindo a afirmar
e que a receção do nosso trabalho tem sido mais positiva do que
imaginávamos. Há um certo feedback do público que se reflete
na intensidade das nossas atuações, que acabam por se estender
para além do previsto.
R: Por que razão optaram por disponibilizar o vosso EP para
download gratuito?
RIH: A ideia da distribuição livre online tem o propósito de chegar
a um público maior e mais diversificado. No entanto, deixamos em
aberto a possibilidade de as pessoas contribuírem para o nosso
projeto (no download do álbum pelo bandcamp).
R: Que futuro acham que bandas que estão neste momento
a dar os primeiros passos no mundo da música, terão?
RIH: Nos dias de hoje há uma parafernália tecnológica, referimonos aqui a redes sociais e a instrumentos de gravação, que veio
beneficiar em muito a criação e difusão de novos projetos. Apesar
disso, é muito difícil ser-se músico a tempo inteiro, sendo por isso
necessário ter um emprego paralelo para garantir a subsistência.
RIH: A nossa música revela o grande apreço que temos pelo rock
progressivo / psicadélico. Como intérpretes sentimos também
afinidade pela música instrumental e pela improvisação. Ao vivo
procuramos passar a intensidade idealizada nos ensaios e a criação
espontânea em jams.
R: Como se decidiram a juntar e a formar a banda?
RIH: Apresentámo-nos ao vivo pela primeira vez a convite de Luís
Quintais, em 2012, embora tenhamos começado a ensaiar em
finais de 2011. Nessa altura estudávamos na faculdade, embora
nos tivéssemos conhecido ainda no secundário. Seguiram-se dois
anos de ensaios e concertos, até que finalmente decidimos compilar
o material composto e amadurecido durante esse período no EP
“Foreign City Lights”.
R: Vocês são apenas três. Sentem que a “química” existente
se estragaria com a junção de outro elemento?
RIH: Não acreditamos, de todo, que se estragaria a química que
foi construída até agora, mas antes que a entrada de um novo
membro daria origem a uma nova química. Pretendemos mesmo,
num futuro próximo, alterar a formação da banda, passando o nosso
baixista à sua função de origem, a de guitarrista, deixando vago
o seu lugar no baixo.
R: Coimbra tem uma tradição muito grande musicalmente.
EM que medida esse facto vos influenciou?
RIH: Tivemos oportunidade de ver ao vivo e conhecer pessoalmente
grandes artistas de Coimbra, que em muito contribuíram para a
nossa formação enquanto músicos e que nos motivaram a criar
um projeto musical.
R: Quais as vossas influências no mundo da música?
O que nos juntou foi o som de Doors, Led Zeppelin e Pink Floyd.
Tiago: Tenho grandes influências em King Crimson devido à
composição musical que na altura era bastante inédita e ainda
hoje o é. (...)
Fred: Os Beach Boys terão sido a primeira banda a cativar-me
para o mundo da música. Ainda antes da adolescência já ouvia
muito rock dos anos 60 e 70 e penso que, em particular os
Rolling Stones me motivaram imenso a querer aprender a tocar
guitarra elétrica e a dedicar-me ao Rock. No plano da atualidade
gostava de destacar artistas como Anna Calvi ou os Tame Impala
do “Innerspeaker”. Gosto também de estar a par da música que
se faz em Portugal.
Gonçalo: Fora os já referidos fui beber alguma inspiração aos
Delta Blues, ao Hendrix e mais recentemente ao Waits. Nesta
nova geração, dos 90’s para a frente, posso referir alguns
individuais como Pj Harvey, Dan Auerbach, Jack White, M. Ward
e ainda algumas bandas como Radiohead, BRMC , aJigsaw e os
incontornáveis Dead Combo.
R: Na vossa opinião, quais os maiores obstáculos que uma
banda encontra no início da carreira?
RIH: Acima de tudo uma das principais dificuldades é conquistar
um público. Salientamos também os custos de início quer
em material, quer em deslocações e ainda a necessidade de
estabelecer uma grande rede de contactos para se chegar a
sítios mais concorridos. Falando de Coimbra, pensamos que
há falta de um circuito de espaços com condições adequadas
para concertos. Não basta haver duas ou três entidades que
dinamizem a atividade musical numa cidade, é necessário criar
um hábito junto do público.
R: E em termos de concertos, estão em grande actividade?
Expectativas para o futuro?
RIH: Este ano a nossa prioridade é apresentar o nosso EP ao vivo.
Em paralelo, quando não estamos a preparar os concertos vamos
esboçando a alteração do alinhamento da banda e compondo
novas músicas.
R: Alguma dica que queiram deixar aos possíveis leitores
que estejam a formar uma banda?
Tiago – Não o façam!!
Fred – Desistam da faculdade ou preparem-se para chumbar a
muitas cadeiras!
Gonçalo – O país precisa de bandas!
29
RESISTANCE
FEST
Na noite de 29 de Novembro, o Resistance Fest
voltou para mais uma noite no Salão Brazil. Depois
da primeira edição, que se realizou com sucesso,
voltamos agora com a nossa própria editora,
a Resistance Records (criada com o intuito de
trabalhar com as bandas emergentes da cidade de
Coimbra). Assim, com o retorno ao mesmo espaço
e novas bandas, ansiosas por atuar, podemos contar
com estilos variados como o Rock, Indie e até Pop.
Realizou-se ainda a Febrada Resistance no Pátio das
Químicas, onde se pode conviver com as bandas,
partindo mais tarde para o Salão Brazil. Com todas as
condições reunidas, o relógio marcava 22h quando se
deu o inicio do espetáculo.
Por último, e não menos importantes, foi a vez de
Strange Coats, compostos por José Mano (bateria),
André Martins (baixo), André Ventura (guitarra) e
Miguel Menano (guitarra/voz), que nos surpreenderam
com a sua sonoridade instrumental. Originalmente
iniciaram com o vocalista e o guitarrista principal
que são velhos amigos, aos quais rapidamente se
juntou o baterista, e após alguns meses encontraram
o baixista ideal. Deslumbraram-nos com novos temas
do seu novo EP, com lançamento previsto para este
mês de Dezembro, no qual se pode esperar uma
evolução positiva com uma sonoridade mais coesa.
Para terminar, o baterista brilhou-nos com um solo.
Composta por Rui Pedro Martins (bateria), Bernardo
Franco (baixo) que teve um inicio de carreia no
coro, Francisco Frutuoso (guitarra) e Zé Maria
Costa (guitarra/voz), Flying Cages abriram a noite
e com as suas músicas de sonoridade bem robusta
conseguiram colocar o público ao rubro.
Um grande concerto vindo de uma banda que,
apesar da tenra idade, já demonstra uma maturidade
aprazível, em palco, deixa boas previsões do seu
futuro.
Para o inicio do ano de 2015 pervê-se o lançamento
de um novo álbum.
reportagem
De seguida subiram ao palco, já quase a festejar o
seus 5 anos de existência, no seu formato original,
Joana Corker e Ricardo Jerónimo que davam voz a
Birds Are Indie. Mesmo sem o Henrique Toscano,
terceiro elemento da banda, readaptaram os seus
temas e apesar de alguns percalços apresentaram-nos
as suas músicas. Com a sua simplicidade, energia e
ritmos caraterísticos conseguiram contagiar o público.
Estes ainda nos apresentaram dois novos temas, onde
Jerónimo se estreou no piano. Comprovaram assim
que o que mais persiste, ainda, é o amor.
Por último, e em nome da Resistance, gostaria de agradecer a todos os presentes e participantes neste evento. Aproveito
para agradecer aos Flying Cages, aos Birds Are Indie e aos Strange Coats pelos grandes espetáculos que proporcionaram e
pela grande disponibilidade e cooperação que demonstraram ao longo da preparação do evento, aos Santos da Casa pela
informação prestada, pela divulgação e apoio ao evento, aos que ajudaram na organização da Febrada da Resistance e, por
último, mas não menos importante, ao Salão Brazil, pela disponibilidade do espaço e pela paciência e empenho que os seus
técnicos tiveram na preparação deste evento.
Tiago Aryan
Texto & Fotografia
30
31
reportagem
Cinema
Música
Literatura
Banda Desenhada
Crónicas
2014, Sports Feature, 1st prize stories, Peter Holgersson
Millennium 1.The Girl with the Dragon
Tattoo
Depois do enorme sucesso do filme de Niels
Arden Oplev em 2009, o “thriller” de David
Fincher, The Girl with the Dragon Tattoo é a
adaptação americana do primeiro volume
da trilogia “Millenium” de Stieg Larsson.
A história centra-se em Mikael Blomqvist
(Daniel Craig), jornalista e fundador da revista
Millennium. Este dedica a sua vida a revelar
o crime e a corrupção que contaminam
a sociedade sueca, e como consequência
ganha vários inimigos, sendo até dado como
culpado num caso de difamação.
Parenthood
As séries viciam pelas emoções que
despertam. Parenthood, que agora inicia
a sua sexta e última temporada, retrata a
vida da família Braverman, um casal idoso,
Zeek and Camille, e os seus quatro filhos
de meia idade (por ordem decrescente
de idades: Adam, o pai de família e o
mais sensato de todos; Sarah, a mãe
solteira; Crosby, o solteirão inveterado;
e Julia, a advogada que ganha para a
24 Frames / s
A verdadeira história começa quando Mikael é
procurado por Henrik Vanger (Christopher Plummer),
empresário de renome obcecado em compreender
as razões que levaram ao desaparecimento da sua
sobrinha, há mais de 40 anos.
Vanger acredita que alguém da família poderá estar
relacionado com o desaparecimento de Harriet,
cujo corpo nunca foi encontrado.
O poderoso empresário faz então uma proposta
irrecusável ao jornalista: dá-lhe acesso total à sua
vida, documentação pessoal e dados familiares
em troca da solução para o caso.
Com a ajuda de Lisbeth Salander (Rooney Mara),
uma hacker profissional com um passado misterioso,
Mikael vai encontrar a história da sua vida.
Com uma sucessão de acontecimentos
empolgantes que prendem o espectador
à tela, Daniel Craig despe o fato de James
Bond e contracena com Rooney Mara
(nomeada para o Oscar de melhor atriz
no papel principal), com uma representação
digna de registo.
Para os amantes de thrillers misteriosos e
da badalada lista de sucessos do realizador
David Fincher (“Fight Club”, “Seven”, “The
Social Network”), estamos na presença de
mais um belo exemplar da sétima arte, tendo
até ganho o Oscar para melhor montagem.
família), que entre várias voltas na vida enfrentam
eles próprios os vários desafios de serem pais.
Nestas três gerações encontramos problemas,
soluções, derrotas e vitórias com que todos nós
nos conseguimos de alguma maneira identificar.
São abordados temas como cancro, adopção,
divórcio, homosexualidade, relações inter-raciais,
choque de gerações, autismo, guerra, entre outros,
e o impacto que os vários obstáculos têm na
família. Com uma representação de se lhe tirar
o chapéu e diálogos tão bons como em poucos
lados se encontram, esta é uma série da NBC que
num episódio nos faz passar de lágrimas
de tristeza a sorrisos de alegria, tal é a
envolvência que cria, apresentanto uma
abordagem realista mas sobretudo
positiva da vida. Geralmente de tom
leve mas nada supérfluo, Parenthood
apresenta um retrato fiel da essência
humana nos tempos modernos.
34
Liliana Rebelo
Adriana Correia
The Grand Budapest Hotel
Deparamo-nos com mais uma nobre
jogada de Wes Anderson. The Grand
Budapest Hotel satisfaz-nos se estivermos
à espera de encontrar, na sala de cinema,
mais um filme que não foge ao insólito
estilo do realizador contemporâneo;
surpreende-nos se não estivermos a
contar com a nebulosa narrativa que nos
aguarda na grande tela.
O luxuoso Hotel de Budapeste é, no
presente da história, local de paragem
obrigatória para Zero - Mr. Moustafa
(Tony Revolori - F. Murray Abraham)
La Haine
Datado de 1995, La Haine é um filme
francês realizado por Mathieu Kassovitz,
cujos protagonistas são três jovens
adolescentes de origens étnicas distintas.
Vince, Hubert e Saïd residem num bairro
social na periferia de Paris, que ressaca
dos confrontos policiais que surgiram após
Abdel ter sido espancado durante um
interrogatório policial, ficando em coma.
que, em modo flashback, conta, em conversa de
jantar com um jovem escritor (Jude Law) - que
acreditamos ser o próprio Stefan Zweig, a quem
Wes agradece o argumento -, como chegou a
proprietário do maior hotel que a capital Húngara
já deteve.
Acontecimento sobre acontecimento, andamos
para trás e para a frente no tempo e ficamos a
saber que M. Gustave (Ralph Fiennes) deseja,
acima de tudo, honrar o Grand Budapest Hotel
pois é este mesmo que alberga o seu passado e
presente. O futuro talvez, mas apenas na memória
de quem lhe é fiel. Um quadro é roubado e tornase protagonista causando conflitos de morte e
paixões que não jazem com as personagens.
O filme retrata a sede de justiça, bem como a
sensação de impotência sentida pelos habitantes
do conjunto habitacional, representada pelos
três jovens, onde a instabilidade e a sensação de
uma falsa segurança imperam, podendo o caos
despoletar a qualquer momento.
La Haine, é um filme de contrastes que relega o
espectador para um estado retrospectivo onde
reanalisa a estrutura da sociedade e onde demonstra
o verdadeiro Eu que é camuflado pelo status social,
profissão ou o local onde habita.
35
Confessemos que são 100 minutos que
podem demorar a passar. Estamos a
reter demasiados pormenores em cada
frame. Tal pode-se tornar desconfortável
para quem procura puro e célere
entretenimento ou, pelo contrário,
complexo e reconfortante para quem
anda por aí a tentar entender a raciocínio
de Wes Anderson. The Grand Budapeste
Hotel abre alas no Berlin International Film
Festival deste ano e sai a vencer o Urso de
Prata, deixando-nos a nós, espectadores,
à espera de grandes feitos para 2015.
Margarida Jacinto
Exponenciado pela rebeldia e necessidade
de afirmação, o ódio e a revolta trilham o
percurso dos três adolescentes que culmina
com uma simplicidade, no mínimo cruel.
La Haine, é um filme a ver e rever. Bruno Marques
24 Frames / s
LAZARETTO
(2014) - Jack
White
No passado dia 10 de Junho, Jack White
presentou-nos com o seu mais recente
trabalho, “Lazaretto”, um LP com 11 faixas.
Desde o seu lançamento que o disco tem
vindo a recolher boas críticas de quem o
ouve (alcançando a quinta posição no top
português), vendendo algo como 138 mil
cópias apenas na primeira semana. A par
do lançamento do CD, foi feita também a
distribuição em vinil, tendo vendido cerca
de 40 mil discos, marca que chegou para
bater o anterior recorde da Billboard, fixado
em 1991 pelos Pearl Jam com “Vitallogy”
(34 mil discos).
O som possante e revigorante do blues-rock
característico de White está bem presente
neste trabalho, iniciando-se com duas
faixas que encaixam bem nesse perfil,
“Three Women” e “Lazaretto”, música que
empresta o nome ao álbum. Depressa o
estilo muda com a melodiosa “Temporary
Ground”, num registo mais calmo. Segue-se
a faixa “Would You Fight For My Love”, faixa
SYRO (2014) Aphex Twin
Nos últimos anos houve vários retornos
históricos em diferentes géneros musicais.
Depois do aclamado regresso por parte
de fãs de post rock e shoegaze dos
Godspeed You! Black Emperor em 2012
e dos My Bloody Valentine no ano passado,
respectivamente, este ano é a altura de fãs
do rock alternativo dos Pixies, da electrónica
de Aphex Twin e do rock progressivo dos
Pink Floyd poderem ouvir algo novo de
antigos heróis. Enquanto que o regresso
dos Pixies aos álbuns de estúdio intitulado
Indie Cindy foi infelizmente desapontante
comparado com os seus antecessores,
Aphex Twin não manchou o legado.
Embora o último álbum de Aphex Twin
fosse já de 2001, Richard D. James, o
músico por detrás do projecto, na verdade
tem lançado material sob outros nomes
nos últimos anos. E isso nota-se. Aphex
Twin deixou-nos pouco mais de uma
hora de electrónica muito variada e bem
78 rotações / min
36
esta que teve o seu videocplip gravado e
lançado recentemente.
Sensivelmente a meio do álbum podemos
ouvir “High Ball Stepper”, uma invulgar
composição rock instrumental, com várias
transições e mudanças que marcam o estilo
do artista. O trio de músicas seguintes,
“Just One Drink”, “Alone In My home” e
“Entitlement”, leva-nos de novo de volta ao
imaginário do rock mais clássico.
As duas últimas são bonitas canções num
registo mais suave e sereno. “That Black Bat
Licorice” dá-nos o click que nos relembra
que isto é um álbum de Jack White, numa
música que convida ao ligeiro abanar
de cabeça.
Terminamos o álbum com duas músicas,
“I Think I Found The Culprit” e “Want And
Able”, que vêm no seguimento da onda
mais melodiosa do blues rock experimental
do artista.
Foi com este conjunto de canções que Jack
White matou a fome aos seus fãs, que desde
2012, com “Blunderbuss”, não ouviam
material novo. White dirigiu assim os seus
esforços para fazer um álbum consistente
e imprevisível, deixando-se notar a sua
vontade de inovar na composição e na
exploração de novos caminhos.
Rafael Silva
misturada com Syro, levando-nos de volta
à música que ele lançou nos anos 80 e
90 que marcou fortemente a electrónica
ambiente na altura, mas igualmente
com um certo amadurecimento e maior
complexidade. Destaque para o fecho do
álbum com uns belos 5 minutos de piano
em “aisatsana[102]” (uma das críticas a
fazer ao álbum são os títulos das músicas
que são, ou parecem ser, horrendos e
completamente sem sentido).
Richard D. James afirma que há mais música
por lançar, sendo por isso de esperar novos
álbuns de estúdio nos próximos anos. E,
pelo que se observa por esta amostra,
ainda bem.
FElipe Trenk
EL PINTOR
(2014) - Interpol
Em Setembro de 2014, os Interpol
regressam oficialmente aos LP’s com
El Pintor (anagrama de Interpol), cerca
de 4 anos depois do lançamento do
seu predecessor, que coincidiu com
a saída do carismático baixista Carlos
Dengler. Por isso mesmo, a expectativa
para saber como é que essa mudança se
iria reflectir no processo de elaboração
do novo álbum era significativa.
All The Rage Back Home é o primeiro
single do álbum: rock directo e eficaz,
liderado pela característica guitarra de
Daniel Kessler, agora acompanhada
por um baixo simples composto pelo
vocalista Paul Banks.
A melancolia de My Desire e a energia
de Anywhere (talvez o melhor momento
deste álbum) são uma lembrança viva
de tempos passados.
Em sentido oposto, Same Town, New Story
e Breaker 1 não devem ficar muito tempo
na memória dos ouvintes, revelando-se
algo ocas. My Blue Supreme e Everything
is Wrong sobrevivem à custa dos seus
S T R E E T- H O P
(2014) - Sacik
Brow
Sacik Brow, rapper oriundo do Algarve,
disponibilizou o seu projecto a solo
intitulado Street-Hop, para download
gratuito. O Ep é composto por 6 temas
dos quais destaco: Aparências, O Início
e O Assalto onde o rapper demonstra
capacidades descritivas inegáveis.
O rapper de Quarteira apresenta um
flow rápido e balançante à medida
que dribla pelos instrumentais. Um
verdadeiro storyteller que relata de
forma crua, transparente e sem censura
o seu íntimo tal como o quotidiano que
respira.
O street rapper conta ainda com a
presença de produtores de renome,
nacional e internacional no seu recente
Ep. Destaco Madkutz e LG Experience
que produziram para NGA e Nas,
respectivamente.
37
refrões de fácil memorização, sem
passar disso mesmo.
Mais coerente é Ancient Ways, em que
Banks despreza costumes antigos, algo
irónico já que El Pintor é o retrato de
um grupo em busca da sua identidade,
desvanecida algures pelo seu caminho.
A penúltima faixa do álbum é Tidal
Wave, de agradável simplicidade, e
finalmente Twice As Hard marca a
despedida de El Pintor sem causar
grande impacto, uma despedida privada
de emoção.
O grupo de Nova Iorque ressurge
rejuvenescido, com uma energia que
parecia apagada nas suas últimas
aparições.
Não se espere o baixo pulsante e
tantas vezes disfuncionalmente genial
de Carlos D. (ainda recentemente Sam
Fogarino admitiu ao NME que Carlos
D. era parte fundamental do som de
Interpol), mas El Pintor acaba por ser
melhor que o seu antecessor.
O lado menos positivo é que soa a
uma tentativa dos Interpol voltarem
a ser Interpol.
Gonçalo Louzada
Sacik, recolhe agora os frutos de uma
árvore próspera que semeou no ano
de 2002, altura da gravação do seu
primeiro tema.
Após participar no Festival Electric
Waves no Ser Humano – Hip-Hop
por uma causa e actuar com Dillaz
no BlackJack em Faro, Sacik Brow
prepara agora o lançamento da sua
segunda mixtape Made in Ghetto
vol.2
Street-Hop de Sacik Brow é um
projecto a reter.
Bruno Marques
78 rotações / min
the three-body problem
2008, Liu CixiN-.
Existe uma razão pela qual a história e a mitologia chinesas
são território especulativo para muitos de nós, por isso, quando
Cixin Liu abre The Three-Body Problem no meio da miséria que
caracterizou a Revolução Cultural Chinesa, é como se fossemos
logo transportados para um mundo estrangeiro.
Um fenómeno na China, Cixin Liu pretende explorar a maneira
pela qual a humanidade tende a trabalhar em maneiras que
garantam a sua própria destruição. No seio da Revolução
Cultural, Ye Wenjie vê-se obrigada a trabalhar numa instalação
científica secreta cujo objectivo é estabelecer contacto com
outras espécies inteligentes que possam existir no Universo,
ou arriscar a pena de prisão. Num dia como muitos outros, Ye
Wenjie, sem nenhuma outra pessoa se aperceber, estabelece
contacto com uma civilização que se encontra à procura de
planetas viáveis para se expandir. Tendo perdido a fé na
raça humana depois de assistir em primeira mão ao que ela
consegue fazer no seu pior, Ye Wenjie responde à mensagem e
transmite as coordenadas exactas do planeta Terra.
saga
#1
2012, Brian K. Vaughan , Fiona Staples
Saga, é um graphic novel que tem tudo para dar errado: uma história cliché de
guerra entre um planeta e uma lua, e de dois soldados que se apaixonam contra
todas as probabilidades. No entanto, Brian K. Vaughan consegue pegar em tal
história e torná-la em algo espetacular.
Este primeiro volume introduz-nos a guerra entre uma planeta e uma das suas
luas, que devastou ambos e acabou por se desenvolver noutros planetas desta
galáxia, envolvendo deste modo todo o tipo de alienígenas nesta guerra.
Alana e Marko, dois soldados, um do planeta e um da lua, apresentam-nos
ambas as culturas e discrepâncias entre estas duas frentes, combatendo todas
as probabilidades e apaixonando-se no meio do que se assemelha a devastação.
Contudo, a sua história é contada por uma terceira pessoa, a sua filha, que surge
como que um símbolo de resistência. É com esta premissa que seguimos toda a
acção ao longo do volume, cuja acção se desenrola rapidamente mas de maneira
muito bem conseguida.
Sem dúvida uma série a seguir
rita viegas
Quando não se comporta como um típico livro de ficção
científica, The Three-Body Problem lê-se como se de um
thriller se tratasse. A acção é rápida, e o mistério faz querer
virar página atrás de página, mas The Three-Body Problem peca
em ter personagens pouco desenvolvidas, fazendo com que
seja necessário voltar atrás para perceber quem é quem. Peca
também na parte final do livro, em ter uma secção inteira onde
são abandonadas as leis cientificais que foram tão bem seguidas
inicialmente pelas leis imaginárias onde civilizações inteiras
vivem em 11 dimensões e um espelho capaz de englobar um
planeta é construído a partir de um protão e acaba por ganhar
inteligência.
transmetropolitan
1997-2002, Warren Ellis
Num futuro mais ou menos distante, Spider Jerusalem, repórter renegado em
reforma perseguido pelo editor irado que lhe exige um contrato não cumprido
e sem dinheiro para drogas, volta à sua metrópole de origem, onde usará o
poder das palavras e da javardice hardcore para combater políticos corruptos
e a complacência de um povo feito manso pela satisfação de todos os prazeres
básicos.
A história nunca se torna aborrecida, o escritor ultrapassa os limites que
julgávamos ver na issue anterior. Spider Jerusalem, baseado no jornalista Hunter
S Thompson, é um dos melhores anti-heróis da idade moderna, sendo a voz da
razão enquanto persegue a auto destruição a passos apressados, retratando o
seu extremamente exagerado consumo de drogas.
Warren Ellis traz-nos aqui uma obra prima de ficção cientifica, uma critica social
sem igual. Na cidade todos os problemas actuais são hiperbolizados ao máximo.
Há uma cura para todos os efeitos secundários de todas as drogas levando ao
consumo constante da maior parte dos cidadãos, um fetiche mais estranho que
o anterior a cada canto, uma literal feira de religiões e cultos (que vai dar no
mesmo) onde cada um pode escolher uma fé como quem vai comprar enchidos.
Mostrando-nos os nossos problemas exagerados no futuro, Ellis reflecte-nos
a sua essência como a temos hoje em dia. A nossa preguiça de agir, a nossa
incessante procura por mais e mais, pegas alienígenas, etc.
Se não tiverem mais nada que fazer, (e mesmo que tenham, duvido que seja
assim tão importante quanto isso), façam um favor a vocês mesmos e leiam
Transmetropolitan.
Consegue-se perceber a razão de este ser o fenómeno que é na
China, muitos livros piores são eles também fenómenos noutros
países, mas os problemas de The Three-Body Problem são tais
que classificações de novo clássico de ficção científica parecem
prematuras. Fica por ver a qualidade das sequelas.
João eira
manuel garrido
literatura
38
39
banda desenhada
A Invenção mais perigosa
do mundo
Quando pensamos em tecnologias com o
potencial de destruir facilmente a nossa
espécie, rapidamente nos surgem na cabeça
as imagens icónicas dos cogumelos de fumo
criados por uma bomba nuclear. Mas e se a
tecnologia com o maior potencial de retirar
a nossa espécie deste universo for vista hoje
como benéfica?
A tecnologia de que aqui falo é a Inteligência
Artificial, ou I.A. Apesar de regularmente
romantizada em trabalhos artísticos, grandes
perigos emergem da criação de uma máquina
capaz de pensar. Imaginemos a seguinte
situação: algures no futuro, um grupo de
investigadores cria uma I.A. capaz de criar
uma I.A. mais inteligente.
Essa nova I.A. por sua vez é capaz de criar outra
ainda mais inteligente, assim sucessivamente.
Esta 'explosão de inteligência', o nome deste
evento teórico, é problemática, já que o seu
resultado poderá não ter os melhores interesses
da humanidade em mente.
Uma boa analogia seria pensar no diferencial
cognitivo entre um ser humano e uma formiga.
Nenhuma formiga entra na consideração das
nossas decisões, e não é certo que uma I.A.
terá alguma por nós. Também não é automático
que a solução se encontre em programar a
I.A inicial de forma a que esta tenha o nosso
melhor interesse em mente, uma vez que é
bastante difícil definir ao certo qual é esse
interesse.
Será que o objectivo final é maximizar a
felicidade humana?
Então o que impede dessa I.A. de enfiar
pequenos objectos nos pontos de prazer do
nosso cérebro?
Embora vários grupos científicos se dediquem
a encontrar a solução a este problema, ela
é difícil de encontrar, e não é certo que
exista. Terá de nos servir de consolação o
facto de que a produção de uma I.A. com essa
capacidade está longe de acontecer, mas,
sendo ela possível, o mero passar do tempo
resolverá os problemas que impedem a sua
construção.
João Eira
O “LADO B” da aprendizagem
O acto de aprender, hoje em dia está
indissociável da obtenção de um emprego,
sendo aparentemente, única e exclusivamente
necessário para tal.
Aprender é um estímulo constante, visto que
promove o desenvolvimente do espírito crítico,
bem como a reflexão sobre determinado
tema que poderá resultar na reestruturação
ou fortificação de uma linha de pensamento
Embora nos últimos anos tenha ocorrido uma ou até na formação de uma nova. Além de
massificação no acesso ao ensino superior, o incutir, ou pelo menos potenciar, valores
acto de aprender tem sido desvalorizado e como o respeito, tolerância e compreensão,
relegado para posições não prioritárias. Em assim como uma maior consciencialização
parte, culpa da crise financeira actual, uma das inúmeras realidades existentes, o acto de
vez que, actualmente, ter formação superior aprender é o principal precursor para uma
não é sinónimo de emprego.
alteração de mentalidades.
Embora concorde com a necessidade de formar Desta forma haverá uma maior predisposição
pessoas qualificadas para desempenharem para compreender o porquê e as respectivas
determinada função no mercado laboral, motivações de diferentes realidades tanto a
discordo quando esta formação qualificada nível social, cultural, religioso, político, sexual,
se assume como o principal factor motivacional ideológico e/ou económico. Sendo quase
para a aprendizagem. Ou seja, a obtenção de imperativo perceber as raízes de determinada
conhecimento não se cinge apenas à valorização realidade, embora nem sempre se partilhe
da relação mercado laboral - pessoa mas essa perspectiva.
também da relação pessoa - pessoa bem como
a nível pessoal. Sendo, para mim, o verdadeiro É através da aprendizagem, deste “lado B”
benefício da educação tal como o principal da aprendizagem, mais humanístico e menos
motivo para que se ambicione uma.
corporativo, que reside a arma mais eficaz
para tentar destronar a perpetuação de certos
40
preconceitos e desigualdades que abraçam
a sociedade actual. É também, através deste
“lado B” da aprendizagem, que é possível
incutir um senso de igualdade, aceitação e
compreensão em relação ao que consideramos
diferente, desconhecido.
Embora seja uma mais valia, não quero
sobrevalorizar o saber académico, até porque
o vejo como um complemento de outras formas
de saber. A intersecção e transversalidade
de e entre “saberes” reflecte-se numa mais
valia que é superior à soma dos mesmos, isto
é, o total é mais do que a soma das partes.
Independentemente da origem da educação,
institucional ou auto-didacta, a aprendizagem
apresenta regalias inegáveis e inigualáveis, além
de que aumenta a probabilidade de adquirir
um emprego com um salário apelativo e boas
condições laborais.
No fundo,o acto de aprender e o que deste resulta,
ajuda a pintar um quadro onde a miscelânea
de “cores” e respectiva co-existência possa
ser vista como a regra ao invés da excepção.
Onde nenhuma “cor” destoa.
Bruno Marques
Aquele saber que não
vem nos livros
Antes de mais bom início de ano para os meus amigos, para os meus
colegas, para aqueles que eu insisto em chamar de meus colegas
mesmo sabendo que já abandonei o Departamento de Física há 3
anos e para todos os caloiros mesmo os de Antropologia.
Adiante, é um facto que as pessoas estão mais dispostas a ler
qualquer coisa que esteja organizada por tópicos: toda a gente
adora listas. Eu nem estou preocupado convosco, recebo o mesmo
independentemente do que escreva (a saber, duas sandes de fiambre,
um Sucol e uma maçã – o chamado lanche de corta-mato), o que me
importa é que também me é mais fácil debitar por tópicos porque,
com a minha idade, se tento formular ideias muito longas funde logo
um fusível e
Ora, começar logo a aldrabar já se tornou recorrente nos meus artigos
(ver “Abrir cervejas no tampo da mesa”, um artigo sobre sair por cima,
à homem (!) em qualquer situação), mas pessoas desinteressantes não
contam histórias interessantes, a menos que sejas o Forrest Gump,
portanto mais vale soltar umas petas e seguir sem olhar para trás.
No seguimento das matérias que realmente importam sobre as quais
já aqui dissequei (o hino à masculinidade acima referido, uma análise
sobre diferentes tipos de parvoíce e até um texto sobre a dificuldade
em escrever textos) vou passar de seguida a enumerar uma série de
dicas úteis para evitar a abordagem por parte de qualquer tipo de
pessoas que te querem impingir coisas, pedintes, turistas, caloiros a
recolher dinheiro para os seus “doutores”, etc.
Estratégia (E.) nº1 – Finge que não falas português. Não te ponhas
a falar inglês também, a menos que tenhas uma pronúncia mesmo
horrível. Caso tenhas de improvisar uma língua verdadeiramente
estranha experimenta declamar uns versos de Psy, esse poeta.
E. nº2 – Táctica do urso: deita-te no chão e finge-te de morto. Nota: em
alguns casos podem limpar-te os bolsos e fugir.
E. nº3 – O tédio: responde à abordagem com discursos do género “Em
mil nove e setenta e cinco, eu tinha acabado de chegar à aldeia vindo
das províncias ultramarinas. Trazia na mala uma caixa robusta que
me havia sido ofertada por um ancião que durante vinte dias e vinte
noites abrigara o meu batalhão debaixo do seu tecto. Minto! Foi no mês
passado e era um tupperware que a minha mãe me tinha colocado
no saco de viagem. Esta minha cabeça já não é o que era, etc etc..”
E. nº4 – Finge que falas ao telemóvel. Se a pessoa que te está a abordar
insistir em esperar, simula uma discussão das feias.
E. nº5 – Procura tralhas nos bolsos e tenta tu também impingir-lhes as
tuas coisas. Qualquer coisa vale: talões de multibanco, canetas com a
tampa roída, invólucros de rebuçados ou cotão.
E. nº6 – Foge a correr.
João Pedro Ferreira
41
a súplica das horas vãs
Parte I
Lembro-me muitas vezes daquela casinha para onde fomos morar
quando o pai nos deixou. Ficava no primeiro andar de um prédio muito
antigo, mesmo por cima da mercearia do Sr. Osvaldo, na Rua da Alegria.
Era bem pequenina, mas muito bonita, toda emersa numa atmosfera
dourada onde sobressaiam os vasinhos pendurados nas janelas como
se fossem cair a cada instante. Os móveis que a habitavam quando
chegámos eram apenas uma escrivaninha velha e uma pequena cama de
ferro esmaltado onde dormíamos todos: a Aninha e a Paula atravessadas
ao fundo da cama e eu e a mãe para a cabeceira. De vez em quando
resmungávamos uns com os outros entre coices e empurrões, mas aquele
calor humano, tão terno e protector, depressa nos amolecia e não tardava
a deixarmo-nos cair no sono.
A mãe era sempre a primeira a acordar. Levantava-se cuidadosamente
e, aprontando-se num ápice, ia depois acordar serenamente a Paula e
a Aninha, que já tinham as suas canecas de leite à espera em cima da
mesa. A dose que me tocava ia sempre encontrar-me à cama, onde,
ainda sonambulamente, sorvia o leite açucarado de um biberão velho
cuja tetina desfeita potenciava um caudal assinalável.
A mãe era uma mulher bonita e ainda jovem - magra, mas muito bem
apresentada – com aqueles cabelos dourados que costumava trazer
soltos. Os seus olhos pareciam umas enormes avelãs com um furo
de minhoca no meio, as fartas pestanas eram longas e negras e os
lábios pálidos, mas sempre quentes e suaves. Às vezes ouvia-se vozes
de homens na rua e percebia-se que eram para ela, mas ela nem se
aproximava da janela e não lhes ligava nenhuma. Chegou a haver
falatório por causa de um Alberto, que foi para a botica gabar-se de que
«já falou para a Lurdes durante uns tempos, depois de o Antunes ter dado
à sola», mas a mãe nunca ligou a isso. Na escola os colegas diziam-me
muitas vezes que o pai tinha fugido, que ouviam os pais deles dizerem
que era um covarde e que um homem a sério não teria feito o que ele
fez, muito menos tendo os filhos pequenos para criar.
Tenho poucas recordações do meu pai. Lembro-me dele como um
homem alto e espirituoso, de rosto vincado e pose séria, porém, de trato
muito afável e bem-disposto.
Na casa grande onde vivíamos antes, tínhamos cada um o seu quarto,
menos eu e o Luís, que tínhamos um beliche - a cama dele era a de cima
– e o pai ia todas as noites ler-nos uma história. E lia durante horas a fio,
pois a tanto o solicitávamos. Mais o Luís, porque às vezes eu adormecia,
mas o pai não parava de ler, pois sabia que enquanto houvesse leitura
o Luís não pregava olho e também não se contentava só com algumas
páginas. Era especialmente por ele que o pai tinha o cuidado de
comprar novos livros sempre que possível e de todas as noites ler para
nós. Foi graças a esta insaciável avidez do Luís que eu aprendi a gostar
dos livros - e especialmente daqueles ternos momentos.
O pai tinha sempre muitos livros, arrumados numa estante que enchia a
parede do escritório até ao tecto e já estava lotada com livros enfileirados
ao alto e uns por cima dos outros. A colecção crescia a cada dia, pois nós
não aceitávamos cá repetições. Daí que ele tivesse que comprar muitos
livros que, apesar de velhos no aspecto e no uso, para nós eram sempre
novos, pois são sempre novos os livros que ainda não lemos.
Todavia, uma noite a mãe mandou-nos ir para a cama mais cedo do que
o habitual. Pressentia-se o seu ar de consternação, ainda mais evidente
pelo esforço que fazia para o esconder. Estranhamente, nessa noite não
houve leituras e o Luís ainda não tinha regressado. A meio da noite ouvi a
voz do pai, no sussurrar intenso de quem deseja fazer-se ouvir gritando
baixinho, e a mãe ia soluçando num choro abafado. Percebi que havia
pessoas a andar pela casa e que alguns amigos do meu pai entravam e
saiam apressadamente, com ar aflito. Eram amigos que eu conhecia das
visitas que nos faziam aos domingos de manhã e de quando lhe levavam
uma garrafa de vinho fino ou uns doces nas quadras festivas. A mãe não
parava de tentar engolir o choro e a mulher de um dos compinchas
estava sempre agarrada ao braço dela e a passar-lhe a mão pela cabeça,
como a mãe fazia à Aninha quando ela não queria pentear-se. Não sei
por quê, intuí que a mãe estava deitada no quarto e que o pai ainda não
tinha chegado. E nem sinais do Luís. A partir de então já não houve mais
leituras. Nem Luís.
Era a Paula quem aconchegava os irmãos à noite e ela tinha pouca
paciência para nós. Penso que isso acontecia por a mãe a ter saturado
da nossa presença ao impor-lhe a obrigação de cuidar dos irmãos mais
novos, pelo que ela nos ganhou um visível asco, inflamado sobremaneira
quando as amigas da mesma idade iam lá para casa fechar-se no quarto
dela para passarem o dia a darem risinhos muito agudos que só elas
podiam saber a que se deviam. Eu e o Luís tentávamos deslindar aquele
mistério a todo o custo, munindo-nos para o efeito de arregalados
esgares através de quaisquer brechas ou orifícios que nos concedessem
sequer um vislumbre daquela dimensão incompreendida, com tanto
de apetecível como de inaudito, e que nos deixava progressivamente
eufóricos e perplexos.
Desde então o pai só ia a casa trocar de roupa, depois comia à pressa e
saía a correr. Vi-o muitas vezes da janela a entrar para um carro que ia
buscá-lo à porta de casa.
O tempo foi passando, o pai nunca estava, a mãe só chorava e o Luís
não aparecia. A Paula continuava a receber as amiguinhas no quarto
trancado, mas o ruído das reuniões, apesar de ainda se fazer sentir, tinhase tornado surdo, quase inaudível, e a partir de certa altura a Aninha
foi autorizada a entrar em algumas. O que lá se passava nunca soube e
encontrando-me sozinho também não voltei a ter interesse em saber.
Aquelas aparições do pai, com tanto de súbito na chegada como na
partida, eram cada vez menos frequentes. Tudo do que me recordo da
última noite em que vi o pai é da chuva copiosa de um fim de Outono
exigente e de o ver galopar pelas escadas abaixo carregando consigo a
mesma mala de couro castanho que levava das vezes em que a mãe nos
mandava para a cama muito cedo e ia para o quarto chorar.
Quando ele saiu batendo firmemente a porta houve um silêncio fatal,
lancinante, imediatamente transformado num coro admiravelmente
sincronizado de prantos e berraria.
(Continua na próxima edição.)
42
43
Pedro Archer Barbosa
Coimbra, Agosto de 2014
O nosso mundo como
o conhecemos
Muito se tem falado e muito se fala sobre tecnologia.
Desde dos últimos dispositivos “tcha-ram” presentes
no mercado, aos avanços da mesma nas mais diversas
áreas, até ao impacto desta nas nossas vidas.
No passado dia seis de Novembro o jornal Público
divulgou dados estatísticos, apurados pelo Eurostat,
que indicam que Portugal está muito à frente da União
Europeia no que toca à utilização das redes sociais.
Ainda, segundo dados revelados pelo mesmo, 65%
dos agregados familiares têm atualmente Internet em
casa. De ter em consideração ainda é a utilização desta
fora das “quatro paredes”. Quer seja na rua, nos cafés,
nos parques, nos ginásios, nas escolas, em concertos
(e a lista goes on and on), a utilização da Internet e dos
dispositivos móveis é constante e abrange todas as
faixas etárias.
O que muitas pessoas não percepcionam é o quão
dependentes estão deste mundo e quais as implicações
que isso acarreta. O relógio despertador deixou de
existir, o papel com a lista das compras também, o
hábito de comprar o jornal também foi substituído,
tudo em prol da utilização de um único dispositivo que
contém estas e muitas outras funcionalidades.
O ter “à mão” uma panóplia de aparelhos digitais que
respondem às nossas questões rapidamente, tenham
elas qualquer teor, não é necessariamente positivo se
as aceitarmos tal com o são. Economiza algum tempo, é
de reconhecer, mas daí a tomar a resposta como exata
e correta vai um longo caminho.
Pensemos por exemplo nos sistemas GPS, quantas vezes
não levaram um condutor para caminhos e estradas que
nada tinham a ver com o seu destino?
44
Pensemos ainda nos sistemas inteligentes que permitem
a comunicação homem-máquina, via áudio, em que
a pessoa não necessita de digitar o que quer que
seja, basta falar para o sistema e este devolve uma
resposta (ou lista, ou playlist, entre um rol de outras
possibilidades). A facilidade de interação neste caso
quase que torna o dispositivo “transparente”, no sentido
em que a sua utilização não recorre ao método, sentar,
digitar, analisar e selecionar. Ele está lá e devolve o
que pretendemos sem qualquer trabalho minucioso da
nossa parte.
Nos dias de hoje é ainda absolutamente tolerável
partilhar o que quer seja, seja um prato de comida, seja
uma ida à casa de banho. É também “completamente
normal” uma pessoa apaixonar-se virtualmente ou ter
inclusive uma consulta médica em casa, sem qualquer
contacto paciente-médico.
Deve ser realmente alvo de reflecção - a tecnologia
transforma-nos seres melhores, ou mais estúpidos?
Com isto não quero dizer de todo que os recursos
tecnológicos trazem apenas efeitos colaterais negativos,
pelo contrário. Quero apenas deixar a mensagem de
que deve existir um equilíbrio e acima de tudo uma
consciência assertiva em relação à sua utilização.
É fundamental pensar e agir por si e acima de tudo
considerar os tão esquecidos métodos “tradicionais”
de pesquisa, trabalho, leitura e diversão.
Já dizia Sam The Kid em uma das suas músicas: “Não te
esqueças de onde vens ou és esquecido”.
Sempre quiseste ver um artigo teu
publicado mas não sabias como?
Agora já sabes!
[email protected]
Márcia Tavares
Se estiver interessado em colaborar com a Resistance Magazine,
teríamos todo o gosto em publicar um artigo seu! Submissão em
magazine.resistance.pt
45
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Resistance Maganize #13