Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación O ensino dos fundamentos de enfermagem O ENSINO DOS FUNDAMENTOS DE ENFERMAGEM NA ESCOLA ANNA NERY EM MEADOS DO SÉCULO XX MID-20TH CENTURY TEACHING OF FOUNDATIONS AT THE ANNA NERY SCHOOL OF NURSING LA ENSEÑANZA DE LOS FUNDAMENTOS DE ENFERMERÍA EN LA ESCUELA ANNA NERY EN MEADOS DEL SIGLO XX Raquel Monteiro MacielI Ieda de Alencar BarreiraII Suely de Souza BaptistaIII RESUMO: Estudo histórico-social sobre o ensino dos fundamentos de enfermagem na Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN), nos anos de 1950 a 1960. Os objetivos foram: descrever as características do ensino dos fundamentos de enfermagem ministrado às alunas do curso de enfermagem; analisar as percepções da professora, de enfermeiraschefes e de ex-alunas sobre o assunto; discutir a importância das relações administrativo-pedagógicas entre a EEAN e o Hospital Escola São Francisco de Assis. As fontes foram buscadas no Centro de Documentação, no Banco de Textos do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira e na Biblioteca Setorial de Pós-Graduação da EEAN/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Também foram construídas fontes orais. As características do ensino eram a hierarquia e a disciplina, o estudo pelo trabalho e o ensino pelo exemplo. Conclui-se que houve consenso entre as entrevistadas quanto à importância da articulação interinstitucional para o ensino e a assistência; o ensino dos fundamentos de enfermagem era decisivo para a formação de enfermeiras de alto padrão pela EEAN. Palavras-Chave Palavras-Chave: Fundamentos de enfermagem; história da enfermagem; ensino de enfermagem; ensino universitário. ABSTRACT ABSTRACT:: This historical-social study of the teaching of the Foundations of Nursing at the Anna Nery School of Nursing (EEAN) in the 1950s and 60s aimed to: characterize the teaching of foundations to student nurses; examine the related perceptions of the teacher, head nurses and former students involved; and discuss the importance of administrative-educational relations between the Anna Nery School and the St. Francis of Assis Teaching Hospital. Sources were sought at the Documentation Center, Brazilian Nursing History Research Unit Text Bank and Postgraduate Sector Library of the EEAN/Rio de Janeiro Federal University. Oral sources were also consulted. The teaching was characterized by hierarchy and discipline, by study by work and teaching by example; the interviewees agreed on the importance of inter-institutional relations for teaching and care; and the teaching of the Foundations of Nursing was decisive in EEAN’s educating nurses to high standards. Keywords Keywords: Nursing; history of nursing; nursing teaching; university teaching. RESUMEN RESUMEN: Estudio histórico y social sobre la enseñanza de los fundamentos de enfermería en la Escuela de Enfermería Anna Nery (EEAN), en los años 50/60. Los objetivos fueron: describir las características de la enseñanza de los fundamentos de enfermería a las estudiantes del curso de enfermería; analizar las percepciones de la maestra, de las enfermeras jefes y de ex alumnos sobre la temática; discutir la importância entre las relaciones de los órganos administrativos y de educación de la EEAN y del Hospital Escuela São Francisco de Assis. Se realizaron búsquedas en las fuentes del Centro de Documentación, del Banco de Textos del Núcleo de Investigación de Historia de la Enfermería Brasileña y de la Biblioteca del Sector de Posgrado de la EEAN/ Universidade Federal del Rio de Janeiro. También se construyeron fuentes orales. Las características de la enseñanza fueron la jerarquía y la asignatura, el estudio por el trabajo y la enseñanza por el ejemplo. Se concluye que hubo consenso entre las entrevistadas cuanto a la importancia de la articulación interinstitucional para la enseñanza y la asistencia; la enseñanza de los fundamentos de enfermería era decisiva para la formación de enfermeras de alto estándar por la EEAN. Palabras Clave Clave: Enfermería; historia de la enfermería; enseñanza de enfermería; enseñanza universitária. INTRODUÇÃO O objeto do presente estudo é o ensino teórico-prático dos fundamentos de enfermagem, ministrado na Escola Anna Nery (EAN) e no Hospital Escola São Francisco de Assis (HESFA), ambas instituições pertencentes à Universidade do Brasil (UB), atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no período de 1949 a 1968. O marco inicial do estudo é a Lei n° 775/1949, a primeira sobre o ensino de enfermagem no Brasil e o terminal é a revogação desta Lei, por força da Re- I Aluna do 8° período do Curso de Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira. Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. II Doutora em História da Enfermagem. Docente do corpo permanente do programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro Fundador do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. III Doutora em História da Enfermagem. Professora Visitante do Departamento de Fundamentos de Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro Fundador do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. p.344 • Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):344-9. Recebido em: 07.08.2008 – Aprovado em: 12.11.2008 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación forma Universitária (RU) - Lei n° 5.540, de 28/11/ 1968 – RU/68. As técnicas de enfermagem, ou arte de enfermagem, como eram denominadas, sempre estiveram presentes nos cuidados de enfermagem, mas seu surgimento, como estrutura do saber, ocorreu no início do século XX, nos Estados Unidos da América do Norte. No início da década de 50, o ensino de enfermagem ainda era voltado principalmente para os procedimentos técnicos, mas, a partir do final da década, surge a preocupação com os princípios científicos que fundamentassem, com base nas ciências naturais e também nas ciências sociais. As técnicas de enfermagem representam a primeira expressão do saber de enfermagem1. Os manuais de técnica apresentam a descrição dos procedimentos a serem executados, passo a passo, e especificam também a relação do material a ser usado; com o tempo, à descrição das técnicas acrescenta-se a razão de ser de tais procedimentos, com a busca de fundamentação em outras áreas do conhecimento. O contexto histórico e social do período é o do pós-guerra. O Rio de Janeiro era a capital federal, centro do poder da República e pólo de desenvolvimento econômico. A difusão cultural norte-americana teve grande impacto em nossa sociedade, na importação de padrões de comportamentos, hábitos e no consumo de bens, inclusive com uma intensa importação de tecnologias2. A década de 50 ficou marcada pelo conturbado governo de Getúlio Vargas, eleito pelo povo em 1950, mas que, envolvido em um mar de correntes contraditórias, encontrou como saída política o suicídio, ocorrido em 24 de agosto de 1954. A crise que se seguiu à sua morte só se resolveu com a posse do presidente Juscelino Kubitschek (JK), em 1956. Os anos de seu mandato podem ser considerados de estabilidade política, embalados pelo desenvolvimento econômico, tendo como slogan cinqüenta anos em cinco3. Em abril de 1960, a capital da República foi transferida para Brasília e o Rio de Janeiro começa a perder sua projeção nacional. A renúncia do presidente Jânio Quadros, sete meses após sua posse, desencadeou nova crise política. O vice-presidente João Goulart assume a presidência, prometendo reduzir as profundas desigualdades sociais do país. Em meio a intensas mobilizações e pressões sociais3, encerrou-se a experiência democrática do período de 1945-1964, com um golpe militar de Estado que se prolongaria por vinte e um anos3. No campo da educação, a RU/68 trouxe profundas modificações para o ensino superior no Brasil e para a EEAN em particular. Foram extintas as cátedras ou cadeiras, de onde emanavam a autoridade e o poder na universidade, as disciplinas afins foram reunidas em departamentos e foi adotado o sistema de créditos, visando a economia de recursos materiais e Maciel RM, Barreira IA, Baptista SS humanos4. As manifestações de descontentamento com a RU foram impedidas por força do Ato Institucional n° 5, promulgado em 13/12/1968, o qual retirou do cidadão brasileiro todas as garantias individuais, públicas ou privadas e concedeu ao Presidente da República poderes extraordinários. A relação da EEAN com o HESFA existiu desde o início do funcionamento das duas instituições, em 1922. Em meados dos anos 1940, o HESFA era um dos grandes hospitais da cidade do Rio de Janeiro, sendo adquirido da Prefeitura do Distrito Federal pela União e entregue à Universidade do Brasil5. No recorte temporal estudado, a diretora da EEAN era Waleska Paixão (1950-1966), e a professora de Fundamentos da Enfermagem era Elvira de Felice Souza, autora do Manual de Técnica de Enfermagem, publicado em 1957. O Cinquentenário do Manual de Técnicas é fato relevante para o ensino da enfermagem, devido às suas seis reedições e vinte e sete reimpressões da sexta edição e sua ampla difusão como livro texto nas escolas de enfermagem brasileiras6. O estudo teve os seguintes objetivos: descrever as características do ensino dos fundamentos de enfermagem ministrado às alunas iniciantes do curso de enfermagem, na EEAN e no HESFA; analisar as percepções da professora, de enfermeiras-chefes de enfermaria e de ex-alunas sobre o processo ensinoaprendizagem dos fundamentos da enfermagem; discutir a importância das relações administrativo-pedagógicas entre a EEAN e o HESFA, para a formação inicial da aluna. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO Trata-se de um estudo de natureza histórico-social. Os conceitos teóricos de apoio são os relacionados à vida cotidiana, como a imitação ou mimese e a entonação, segundo Agnes Heller7. Tais conceitos se aplicam ao presente estudo, na medida em que a professora Elvira de Felice Souza se constituía, ela mesma, no modelo a ser seguido por sucessivas turmas de alunas, uma vez que ela lecionou os fundamentos da enfermagem ao longo de vinte e sete anos (19461973). Além disso, era inquestionável seu talento para o ensino da Arte de Enfermagem; ela estudou Administração de Escolas de Enfermagem e Arte de Enfermagem, durante um ano, na Universidade de Siracusa, EUA. Seu conhecido Manual de Técnica de Enfermagem foi publicado em 1955, logo depois de sua primeira obra, qual seja, Administração de Medicamentos e Preparo de Soluções6. Ela viria a ser diretora da EEAN de 1971 a 1975. Na percepção de suas ex-alunas, a presença da professora Elvira produzia uma atmosfera peculiar. Em torno do leito, demonstrando procedimentos técnicos, ela realizava e expressava sua dança corporal, provocando um misto de encantamento e de perplexidaRev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):344-9. • p.345 O ensino dos fundamentos de enfermagem de em suas discípulas8. A ênfase na formação das alunas pelo exemplo de suas professoras se fazia sentir em todas as escolas de enfermagem, considerando-se como qualidades a serem imitadas a competência profissional, o prestígio e a educação social9. As fontes primárias foram: documentos escritos e orais, do acervo do Centro de Documentação (CEDOC) da EEAN/UFRJ. Foram também produzidas fontes orais, mediante a coleta de depoimentos, com vistas a obter informações e percepções de enfermeiras relativas ao objeto de estudo10. A tomada dos depoimentos foi feita mediante roteiros de entrevista com perguntas abertas, elaboradas após consultas aos dados biográficos, e com a utilização de gravador. As pessoas entrevistadas foram: Elvira de Felice Souza, que esteve à frente da disciplina Fundamentos de Enfermagem durante todo o período estudado e que marcou profundamente sucessivas turmas de alunas iniciantes do curso de enfermagem da EEAN; Conceição de Maria Pimenta Araújo Paz, ex-aluna da professora Elvira, enfermeira-chefe no HESFA; Edi Curvo Epaminondas, enfermeira-chefe no HESFA; Juliana Zenilda Figueira da Mota, também ex-aluna da professora Elvira. Após cada entrevista, as autoras deste trabalho fizeram a transcrição das fitas, a conferência e o copidesque do material. Em seguida foi enviada cópia do depoimento para a entrevistada, junto com um termo de cessão do mesmo para o Acervo de História Oral do Cedoc da EEAN, por elas assinados. Como fontes secundárias foram utilizados livros, artigos e teses. Os procedimentos de análise utilizados foram: ordenação, classificação cronológica e temática e categorização dos dados coletados, triangulação dos dados de várias naturezas, bem como a contextualização dos achados e sua interpretação à luz dos conceitos adotados. A pesquisa atendeu aos princípios éticos, conforme Resolução n° 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da EEAN/HESFA, em 31/10/07, sob o Protocolo n° 093/2007. RESULTADOS E DISCUSSÃO Características do Ensino de Fundamentos de Enfermagem Durante os anos 50 e 60, as alunas ingressantes na EEAN tinham de 16 a 38 anos e escolaridade mínima de nove anos (de 1949 a 1961) e de doze anos (de 1961 a 1968). Nessa época, além do exame vestibular para a aferição de conhecimentos, havia a entrevista pessoal, para julgar a aparência das alunas e suas maneiras, segundo as normas estabelecidas pela sociedade e pelas instituições de ensino para a educação de mulheres. Na EEAN, a extrema disciplina se fazia impor- p.346 • Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):344-9. Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación tante, até mesmo porque havia a necessidade de atender às expectativas das famílias, que confiavam suas filhas à diretora da Escola11. A imagem da boa professora era a de uma pessoa detentora de qualidades de liderança, de comunicação e de relacionamento, assiduidade e pontualidade, entusiasmo e gosto pela enfermagem, interesse pelas atividades e pelo progresso da associação de classe; e também “aquelas qualidades que adornam as personalidades bem formadas, adquiridas através da educação moral, social e estética”12:120. O curso tinha a duração de trinta e seis meses, compreendendo aulas teóricas, teórico-práticas e estágios. O primeiro período escolar, de seis meses de duração, era chamado preliminar. E era um desafio: [...] o período preliminar era o que mais havia repetições, exclusões ou dificuldades de adaptação ao regime disciplinar e de ter uma avaliação favorável nas matérias teóricas e na aprendizagem da prática [...]. (Juliana) As alunas nele aprovadas ingressavam no corpo discente da Escola e recebiam sua touca de organdi branco. Na grade curricular do período preliminar estavam presentes matérias como: anatomia, física e química, que complementavam o ensino dos fundamentos de enfermagem. [...] essas [matérias] eram intercaladas com fundamentos de enfermagem, nós aprendíamos e treinávamos aqui na EAN, para aplicar no HESFA [...]. (Edi) O aprendizado dos Fundamentos da Enfermagem era considerado decisivo para a promoção da aluna iniciante, mas também matéria relevante durante todo o curso, servindo de base para todas as disciplinas do currículo. A sala de técnica era uma réplica de uma enfermaria, com suas unidades compostas de cama, cadeira e mesinha de cabeceira; também havia escadinhas, banheira e biombos. Tudo preparado segundo requisitos nightingaleanos, como ventilação, limpeza, iluminação e silêncio. Após a demonstração, as alunas eram induzidas a repetir a técnica diversas vezes até chegar à perfeição8. Vale dizer que, durante o curso, o aspecto mais reforçado era a formação tecnicista, muitas vezes ficando em segundo plano o fortalecimento emocional dos futuros profissionais13. A avaliação das alunas incluía provas teóricas e práticas, estas feitas mediante sorteio dos pontos dados em sala de aula. Mas a avaliação também se fundamentava na disciplina e em princípios éticos. O valor da responsabilidade era assimilado no dia a dia e até nas horas de folga12, quando a aluna deveria retornar ao Internato até vinte e duas horas, sendo considerada falta grave um eventual atraso, podendo até mesmo ocorrer sua exclusão da instituição. No campo de estágio, era aplicado o ensino teórico-prático dos fundamentos de enfermagem. A avaliação era feita pela enfermeira-chefe responsável pela aluna14. Recebido em: 07.08.2008 – Aprovado em: 12.11.2008 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación As atividades diárias se iniciavam com a saída das alunas, perfeitamente uniformizadas, do internato da EEAN, situado na Praia de Botafogo, em ônibus próprio da Escola, em direção ao Pavilhão de Aulas, situado na Rua Afonso Cavalcanti, n° 275, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Após a recepção da touca, elas passavam a fazer estágios diários no HESFA, cobrindo as vinte quatro horas do dia, nos sete dias da semana. As alunas eram divididas em turnos. O primeiro horário era de oito da manhã às catorze horas, o segundo horário era das catorze às vinte horas e o serviço da noite das vinte horas às oito da manhã, em dias alternados. A escala das alunas era feita por ordem alfabética, mas todas passavam em todos os setores. À medida em que as alunas aprendiam em sala de aula, aplicavam esses ensinamentos nas enfermarias: [...] primeiro ficávamos quinze dias aprendendo e depois começávamos a ir para o HESFA, duas ou três vezes por semana[...]. (Edi) As atividades realizadas pelas alunas nas enfermarias cresciam em complexidade e responsabilidade, à medida em que se adiantavam no curso. A avaliação e supervisão dos estágios no HESFA eram feitas pela professora Elvira em conjunto com as chefes das enfermarias. A atuação das enfermeiras-chefes no acompanhamento das alunas comportava responsabilidades como: Tomar providências imediatas em caso de urgência ou se ocorresse erro por parte da aluna, supervisionar o controle do gasto de materiais, orientar as alunas quanto ao uso correto das técnicas, manter a disciplina, incentivar os comportamentos julgados desejáveis e avaliar o desempenho da aluna, incluindo suas relações pessoais, atitude profissional e apresentação do uniforme13:511. Percepções das Depoentes sobre o Processo Ensino-Aprendizagem O relacionamento entre professor e aluno deve estar intimamente vinculado aos direitos e deveres de cada um15. Contudo, a relação mantida entre professora e alunas era baseada na hierarquia e na disciplina: A distância e o respeito estavam presentes, professora e alunas não se juntavam de jeito nenhum, mantinham a hierarquia, durante o tempo todo [...]. (Juliana) Uma ex-aluna fala de suas dificuldades de adaptação à EEAN, mas reconsidera o passado: Disciplina rigorosa, não me adaptei bem... Mas hoje, se analisarmos, havia necessidade de ser rigorosa a disciplina... Quando você chega aqui, não tem sua personalidade formada, era preciso alguém que te mostrasse o caminho certo [...]. (Juliana) Para a professora Elvira, a disciplina de Fundamentos era a mais importante, por ser um divisor de águas: A primeira coisa que você aprende é o que vem a ser o paciente. São os cuidados primordiais, os cuidados do Maciel RM, Barreira IA, Baptista SS dia a dia. Ali você vai saber se você quer ser enfermeira ou não [...]. (Elvira) Fazia parte dos conteúdos da Arte de Enfermagem (depois denominada Fundamentos de Enfermagem): técnica, ataduras, drogas e soluções, economia hospitalar e higiene. A professora Elvira assim descreve o ensino dos Fundamentos de Enfermagem: [...] na sala de técnica, onde era feita a primeira demonstração, tinha quatro camas de um lado e quatro no lado oposto. Dessa forma era possível fazer o treinamento de oito alunas, enquanto as demais observavam. Na demonstração do banho no leito uma aluna servia de doente; na lavagem externa, era utilizado um boneco, de modo a não expor a aluna[...]. (Elvira) As primeiras técnicas aprendidas pelas alunas estavam ligadas ao bem-estar do paciente: [...] primeiro nós aprendíamos a cuidar do doente, cuidar da unidade, tudo que o doente precisava para ter conforto. Depois, a gente aprendia a dar injeção [intramuscular] na laranja [...]. (Edi) Quando o procedimento não comportava nem a demonstração em uma aluna, como o banho no leito, nem uma simulação, como a injeção, os conteúdos de anatomia e farmacologia, bem como o preparo do material eram dados, no Pavilhão de Aulas e a execução da técnica, pela primeira vez, teria que ser feita sob a supervisão direta da professora, como era o caso da injeção intravenosa. A distribuição das alunas nas enfermarias do HESFA era feita pela professora Elvira, conforme as necessidades do serviço e de acordo com o adiantamento das mesmas. Antes de iniciarem o estágio, EFS as apresentava às enfermeiras-chefes, que conheciam muito bem o funcionamento das enfermarias, pois, ao ingressar no HESFA, elas haviam passado por todas as clínicas. E a aluna já sabia sobre como se apresentar e como abordar os pacientes: [...] cada aluna falava seu nome; a aluna chamava o paciente pelo nome e não pelo número do leito [...]. (Elvira) Quando as alunas iniciavam as atividades de estágio, eram colocadas com os pacientes menos complexos, de acordo com o cuidado a ser prestado: [...] geralmente nós começamos com pacientes de clínica médica, que na maioria das vezes eram menos trabalhosos [...]. (Edi) A aluna iniciante poderia recorrer à aluna sênior, que cursava o último ano do curso de enfermagem, à qual de certo modo, estava subordinada: [...] abaixo da chefe de enfermaria tinha sempre a aluna sênior, era equivalente à pré-chefia ... Se a aluna não tinha segurança, não poderia executar a técnica, então recorria à aluna sênior, que lhe daria o suporte[...]. (Conceição) A avaliação das alunas era feita: [...] pelo que elas apresentavam no trabalho, pelas minhas anotações, de como elas se comportavam, quais as Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):344-9. • p.347 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación O ensino dos fundamentos de enfermagem dificuldades, (...) depois era feita uma reunião com ela [...]. (Elvira) A avaliação da aluna incluía a boa utilização do material hospitalar, ainda mais porque o hospital era carente de recursos. Uma característica relevante do trabalho da aluna seria evitar o desperdício. A economia não deveria ser somente de material, mas sim de tempo e esforço, evitar desperdício de movimentos; conservar o material limpo e arrumado e observar os princípios de boa postura, não só em relação ao doente, como ao enfermeiro16:13. A aparência da aluna era questão de muita observação, relevância e exemplo a ser seguido pelas outras alunas. O uniforme era motivo de orgulho tanto para as alunas como para a professora. A pontualidade e assiduidade eram questões sobre as quais não havia desculpas. A aluna era chamada pela Chefe da Divisão de Estágios da EEAN para assinar a ficha de avaliação feita pela enfermeira-chefe da enfermaria do HESFA, onde ela estagiara: [...] todo final do mês tinha uma avaliação, dependendo da enfermaria onde você estivesse estagiando. Dona Anna Nava [Chefe da Divisão de Ensino da EAN] nos chamava para assinar. (Juliana) Apesar da formalidade, havia espaço para a discordância: Quando eu cheguei lá, todos os conceitos eram bons, quando chegou em honestidade ela pôs mais ou menos, então eu disse que não assinava. (Juliana) Relações Administrativo-Pedagógicas entre a EEAN e o HESFA Os estágios oferecidos pelo HESFA às alunas da EEAN eram em enfermarias de clínica médica, cirurgia geral, urologia, ginecologia, oftalmologia; as alunas também faziam estágios nos serviços especializados, anexos ao Hospital, como o Pavilhão Carlos Chagas, de doenças tropicais, e a Maternidade Thompson Mota. A relação da professora de Fundamentos de Enfermagem com as enfermeiras-chefes do HESFA era de decisiva importância, pois as enfermeiras-chefes supervisionavam as alunas da EAN, com a ajuda das alunas seniores. A enfermeira-chefe do HESFA respondia tanto à Chefe do Serviço de Enfermagem do Hospital, sobre o bom andamento do serviço de enfermagem, quanto à diretora da EAN, sobre as condições do aprendizado das alunas nos campos de estágio12. Segundo as enfermeiras-chefes, havia muito respeito entre elas e a professora, até mesmo porque algumas delas haviam sido suas alunas. Se ocorresse um problema com alguma aluna na enfermaria, o assunto era levado à professora. Na avaliação das alunas, a enfermeira-chefe considerava seu desempenho, atitude, cuidado com uniforme, lealdade com as colegas e com a equipe; e p.348 • Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):344-9. esperavam principalmente que elas soubessem cuidar muito bem do doente. O HESFA não tinha clientela pagante. Assim, as atividades das alunas, mesmo as principiantes, revestia-se de um caráter social. O trabalho das alunas no HESFA tinha como contrapartida uma remuneração mensal pelos serviços prestados; os recursos eram oriundos de verba federal, como se pode comprovar nas pastas de documentos das ex-alunas. Essa circunstância lhes permitiu que o tempo de aluna viesse a ser computado como tempo de serviço, para efeito de aposentadoria. CONCLUSÕES O curso da EEAN e em particular o ensino dos fundamentos de enfermagem eram caracterizados pelos princípios da hierarquia e da disciplina e do aprendizado pelo trabalho. As aptidões da aluna para a profissão de enfermeira evidenciavam-se durante o processo ensino-aprendizagem da disciplina dos Fundamentos de Enfermagem, a qual era decisiva para a adesão da aluna à futura profissão. A professora da disciplina Fundamentos de Enfermagem, durante o período estudado, servia de modelo a ser imitado para as alunas iniciantes, muitas das quais guardaram esta marca durante o curso e após a formatura. As relações entre a professora da disciplina, as enfermeiras-chefes das enfermarias do HESFA e as alunas, apesar da distância hierárquica e da rígida disciplina, eram extremamente proveitosas, no que se refere à formação profissional e ao funcionamento do HESFA, na percepção de todas as entrevistadas. A articulação entre a EEAN e o HESFA, ao tempo em que garantia uma completa autonomia à Escola na direção do processo ensino-aprendizagem, assegurava também ao Hospital um alto padrão assistencial. REFERÊNCIAS 1. Almeida MCP, Rocha JSY. O saber de enfermagem e sua dimensão prática. São Paulo: Cortez; 1986. 2. Moura G. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana. 6a ed. São Paulo: Brasiliense; 1984. 3. Fausto B. História do Brasil. São Paulo: Ed. USP; 1999. 4. 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