Universidade
Católica de
Brasília
Virtual
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
LATO SENSU EM DIREITOS HUMANOS: PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA
A VÍTIMAS E A COLABORADORES DA JUSTIÇA
Especialização
PROTEÇÃO AOS RÉUS COLABORADORES:
UMA LEITURA CRÍTICA DO ESTIGMA DE “CRIMINOSOS”.
Autor: Eduardo Paysan Gomes
Orientador: Prof. Erich Méier Junior
BRASÍLIA
2009
EDUARDO PAYSAN GOMES
PROTEÇÃO AOS RÉUS COLABORADORES:
UMA LEITURA CRÍTICA DO ESTIGMA DE “CRIMINOSOS”
Monografia apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Lato Sensu em Direitos
Humanos: Proteção e Assistência a
Vítimas e a Colaboradores da Justiça da
Universidade Católica de Brasília, como
requisito parcial para obtenção do
certificado de Especialista em Direitos
Humanos.
Orientador: Erich Méier Junior
Brasília
2009
Monografia de autoria de Eduardo Paysan Gomes, intitulada “Proteção aos
réus colaboradores: uma leitura crítica do estigma de ‘criminosos’”, apresentada
como requisito parcial para obtenção do certificado de Especialista em Direitos
Humanos: Proteção e Assistência a Vítimas e Colaboradores da Justiça da
Universidade Católica de Brasília, em 2009, defendida e/ou aprovada pela banca
examinadora abaixo assinada:
_____________________________________
Prof. Erich Méier Junior
Orientador
Especialização em Direitos Humanos – UCB
_____________________________________
Prof. Mestre Carlos Daniel Dell’Santo Seidel
Especialização em Direitos Humanos – UCB
Brasília
2009
Ao Francisco, meu companheiro de
caminhada, que viveu comigo cada
momento deste curso, compartilhando
todos os desafios, sofrimentos e vitórias,
pelas horas a fio de compreensão,
dedicação e atenção.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, a Deus, por me dar saúde e sede de justiça, que me
movem no meu fazer profissional.
À minha família, que faz parte de minha história e me auxiliou, em todos os
momentos, na minha formação pessoal e profissional, incentivando-me e
contribuindo para me tornar a pessoa que sou hoje.
Agradeço à minha mãe (Delva), meu pai (Ildeu), meu irmão (Walace), minha
cunhada (Cíntia), minha sobrinha e afilhada (Júlia), minhas avós (Lizete e Ondina) e
meus/minhas demais parentes queridos(as) (em especial: Sabrina Paysan, Lorena
Paysan, Caroline Paysan, Anália e Franciane Araújo) pelos ensinamentos e pelo
amor compartilhado e por servirem de referência na minha vida.
Às amigas, que, mesmo à distância, permanecem em meu coração: Caroline
Menezes, Bianca Tinoco, Maria Lúcia, Milena Malheiros, Giselle Malheiros, Raquel
Borba, Cristiane Cordeiro, Ana Paula Erthal, Diana Christovam, Fernanda Caldeira,
Eutalia Lobo, Malu Lodi, Tatiane Albino, Ludmila Gopfert, Elaine Blum, Talía
Machado, Luciana Matos, Luciana Monteiro, Fernanda Felisberto, Cristiane Ducos,
Carla Moura, Andressa Prevot, Sheila, Keith Fabíola, Marli Silva, Esther Kosoviski,
Selma Aragão, Dinha, Mônica, Neusa, Conceição Gomes, Jussara, Alessandra
Kieling, Adriana Lins, Cátia Fraga, Cátia Alencar, Helena Lúcia, Rosimere de Souza,
Cristiane Oliveira, Carla, Soneide, Marilene, Luciene, Jacira, Margarida, Kátia
Vasques, Adélia Alves, Priscila Baltor, Daniela Gontijo, Simone Araújo, Adriana
Dutra, Roselene Souza, Maria da Glória Gerra, Paula Kapp, Alba Valéria, Sheila
Frederico, Thereza Diehl, Ariana Ferreira, Graziela Sereno, Alessandra Saldanha,
Mônica, Solange, Selma Santos, Marilene Barbosa, Márcia Conceição, Rosângela
Prado, Ludmila Corrêa, Andréia Donxeva, Maira Lorenzoni, Sílvia Marques, Priscilla
Leite, Adriana Tie e Rosane Jangada.
Aos amigos, que, da mesma forma, mesmo à distância, permanecem em meu
coração: Roberto Basílio (in memoriam), Thiago Mesquita, José Raphael Ramos,
Fernando Souza, Marcos Paulo Teixeira, Flávio Lira, Luiz Cláudio Freitas, Marco
Aurélio, Antônio Carlos Berenhauser, Heitor Piedade Jr., Mauro Dias, Leandro
Amora, André Hespanhol, Manoel de Jesus, Fábio Simas, Paulo Sérgio, Romel
Grazinoli, Sérgio Hammes, Márcio Negócio, Rodrigo Moraes e Márcio Fabrício.
À minha família “pernambucana”, grandes amigos(as) que me acolheram e
auxiliam na minha jornada, contribuindo para o meu bem-estar e equilíbrio, além do
meu crescimento pessoal: Daniela Rodrigues (e família), minha afilhada Iramaia,
Veridiana Araújo, Cássia Rosato, Alexandre Pacheco, Ana Cecília Gonzalez,
Giovanna Araújo, Manoela Poliana, Rosane Albuquerque, Kátia Cilene, Ana Lígia,
Mércia Assunção, Sueli, Mércia Alves, Marcelo Agra, Flávia Clemente, Edna Jatobá,
Mercês, Paulo Moraes, Ana Elizabeth Monteiro, Ana Elisabete Godinho, Hamilton
Mendes, Cristina Carvalho, Ana Paula Almeida, Maria Carolina Costa, Conceição
Costa, Maria Aparecida Costa, Laudicena Barreto, Lary Fagundes, Carlos Lima,
Arthur Cristiano, Célia Regina, Neide, Luís e Felipinho.
Destaco meu agradecimento a Veridiana Araújo e Manoela Poliana, pelo
grande incentivo à conclusão deste trabalho. E à primeira, pelo período de grande
companheirismo e lealdade, na partilha da condução do nosso trabalho de Equipe.
Às Instituições: UNI-RIO, Cândido Mendes (UCAM), INPI, DPGE,
CDHAJ/OAB-RJ, ODH-Projeto Legal, FIA/SOBEPI, CMAS/RJ, CDDH-Petrópolis,
UPFE, UCB e, em especial, o GAJOP, por ter me proporcionado a chance e as
condições objetivas para realizar esse curso, contribuindo sobremaneira para o meu
aperfeiçoamento profissional, além de todas as pessoas com as quais convivi e
contribuíram para o meu aprendizado (destacando-se aquelas que compuseram
comigo as Equipes do PROVITA RJ e da Central Nacional do PROVITA).
De qualquer forma, as palavras não são suficientes para expressar os
sentimentos que nutro por cada um(a) e pela importância que possuem em minha
vida, mesmo os(as) que não foram citados(as) nominalmente.
Essa violência policial inscreve-se em uma tradição nacional
multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição
oriunda da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu
fortalecida por duas décadas de ditadura militar, quando a luta
contra a “subversão interna” se disfarçou em repressão aos
delinqüentes. Ela apóia-se numa concepção hierárquica e
paternalista da cidadania, fundada na oposição cultural entre
feras e doutores, os “selvagens” e os “cultos”, que tende a
assimilar marginais, trabalhadores e criminosos, de modo que a
manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem
pública se confundem. (WACQUANT, 2001).
RESUMO
PAYSAN GOMES, Eduardo. Proteção aos réus colaboradores: uma leitura crítica
do estigma de “criminosos”. 2009. 76 fls. Monografia do Curso de Especialização em
Direitos Humanos: Proteção e Assistência a Vítimas e Colaboradores da Justiça. –
Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2009.
O presente trabalho se propõe a discutir sobre a inserção de pessoas com
envolvimento criminoso no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas
Ameaçadas (PROVITA), o qual é executado em parceria entre a Sociedade Civil e o
Estado. Aborda acerca dos desafios profissionais da prática interdisciplinar em favor
de uma perspectiva de intervenção pedagógica, com vistas à construção da
cidadania ativa dos usuários deste Programa de Proteção, que tem como objetivo
contribuir com a superação da impunidade e da corrupção. O trabalho retrata a
marca desse Programa de Proteção, que é pautado pela concepção contemporânea
de Direitos Humanos. Traz elementos sobre a influência da normativa internacional
dos Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro, dentre elas: mecanismos
de combate à criminalidade organizada. Propicia, ainda, a análise do instituto
jurídico da delação premiada, em função da inovação trazida pela Lei 9.807/99, com
a possibilidade da concessão do perdão judicial ou diminuição de pena aos réus
colaboradores. Chama a atenção para a importância de uma leitura crítica da
realidade, a partir da contribuição de diversos saberes, de forma a desvelar a
manipulação da mídia de massa em relação à produção do medo social e do
processo de criminalização da pobreza, mediante a repressão do aparelho policial
estatal. Constata a importância de aprofundar o estudo do tema, propondo a
utilização de outros instrumentos metodológicos.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Interdisciplinaridade. Proteção. Vítima.
Testemunha. Réu Colaborador. Delação Premiada. Perdão Judicial. Diminuição da
Pena. Justiça Criminal. Sociedade Civil. Democracia. Dignidade Humana.
Desigualdade. Discriminação social. Mídia de massa. Criminalização da pobreza.
Estigma. Criminoso. Bandido.
ABSTRACT
PAYSAN GOMES, Eduardo. Proteção aos réus colaboradores: uma leitura crítica
do estigma de “criminosos”. 2009. 76 fls. Monografia do Curso de Especialização em
Direitos Humanos: Proteção e Assistência a Vítimas e Colaboradores da Justiça. –
Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2009.
This paper aims to discuss the integration of people with criminal involvement in the
Program to Protect Victims and Threatened Witnesses (PROVITA), which is run in
partnership between civil society and the state. Discusses about the professional
challenges of interdisciplinary practice in favor of a perspective of educational
intervention, in order to build active citizenship of users of the Protection Program,
which aims to contribute to overcoming impunity and corruption. The work shows that
brand protection program, which is guided by the contemporary conception of human
rights. Brings data on the influence of international norms of human rights in the
Brazilian legal system, including: mechanisms for combating organized crime. It
provides also an analysis of the legal institution of denunciation award, depending on
the innovation introduced by Law 9807/99, with the possibility of granting judicial
pardon or reduction of penalty to the accused employees. Draws attention to the
importance of a critical reading of reality, from the contributions of many knowledge
in order to reveal the manipulation of mass media for the production of fear and
social process of criminalization of poverty, through the repression of police state
apparatus. Notes the importance of further study of the topic, proposing the use of
other methodological tools.
Keywords: Human Rights. Interdisciplinarity. Protection. Victim. Witness. Respondent
Employee. Awarded denunciation. Judicial forgiveness. Decreased Pena. Criminal
Justice. Society. Democracy. Dignity. Inequality. Discrimination. Mass media.
Criminalization of poverty. Stigma. Criminal. Bandido.
SIGLAS
CEAV – Centro de Atendimento à Vítima
CGPT - Coordenação Geral de Proteção a Testemunhas
GAJOP - Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares.
PPCAAM – Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte.
PPDDH – Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos
PR – Presidência da República
PROTEGE - Programa Estadual de Proteção, Auxílio e Assistência a Testemunhas
Ameaçadas do Rio Grande do Sul
PROVITA – Programa de Proteção a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas.
SEDH – Secretaria Especial de Direitos Humanos
SPDDH – Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos
SPDE - Serviço de Proteção ao Depoente Especial.
UEA – Unidade de Ensino e Aprendizagem
UCB – Universidade Católica de Brasília
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................12
2. O PROGRAMA NACIONAL DE PROTEÇÃO A VÍTIMAS E TESTEMUNHAS
AMEAÇADAS – O MODELO PROVITA....................................................................16
3. O DESAFIO DA PRÁTICA PROFISSIONAL A PARTIR DO OLHAR DA
COMPLEXIDADE.......................................................................................................21
4. ASPECTOS LEGAIS INTERNACIONAIS.............................................................31
5. ASPECTOS LEGAIS NACIONAIS........................................................................37
6. A POLÊMICA EM TORNO DO INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA.............50
7. RÉUS COLABORADORES: DEFESA DOS DIREITOS DE “BANDIDOS”?.......60
8. CONCLUSÃO........................................................................................................69
12
1. INTRODUÇÃO
Em relação à temática abordada, quer-se situar o contexto do surgimento da
alternativa de proteção a vítimas e testemunhas e réus colaboradores no Brasil na
ética dos Direitos Humanos, retomando as questões engendradas na militância da
Sociedade Civil comprometida com as reivindicações de um processo democrático
que é educativo e inclusivo, na medida em que pretende despertar a participação de
cada cidadão na construção dessa mudança, superando a tradição autoritária e
elitista e buscando afastar as condições sociais que permitem a reprodução da
corrupção e da impunidade.
A abordagem deste enquanto tema para a discussão no âmbito dos atores
componentes da Rede Nacional do PROVITA leva em consideração a percepção do
lugar específico da Central Nacional1 acerca de diferentes concepções deste
assunto, que sempre tem mobilizado a muitas Equipes, a partir dos desafios de seu
fazer profissional.
Na Oficina Nacional de 2006 (ocorrida em Brasília), foi recorrente o
comentário sobre a suposta “mudança do ‘perfil’ dos usuários” do PROVITA,
referindo-se ao aumento de usuários com envolvimento criminoso, ao invés do que
muitos costumam chamar de “testemunha clássica” – identificada como alguém que
tomou conhecimento de um fato criminoso por razões alheias à sua vontade.2
A grande diversidade de concepções a respeito, em determinados momentos,
vem sendo objeto de nossas preocupações, redundando nesse esforço de retomar
nossos referenciais nos princípios de direitos humanos para nortear nossas
reflexões. Sem esquecer que, também, a noção de direitos humanos assume
diversas
1
ideologias,
devemos
reforçar
os
princípios
da
indivisibilidade
e
A Central Nacional do PROVITA é (dizendo de forma sintética) responsável pela
"operacionalização" dos casos do Programa Federal (aquele que atende aos Estados onde não estão
implantados ainda o Programa de Proteção) - em conjunto com a Coordenação-Geral de Proteção a
Testemunhas (CGPT) - e também dos casos de Permuta entre os Programas Estaduais. Trata-se de
um espaço que mantém contato com cada Equipe Técnica e a CGPT (Entidade Gestora do Programa
Federal e Órgão responsável, nacionalmente, pela Política de Proteção a Vítimas e Testemunhas).
2
Tal informação foi resgatada a partir de registros pessoais durante a Oficina citada.
13
interdependência entre os direitos fundamentais e, além disso, clarificar que nossa
concepção se forja no lugar social de Sociedade Civil Organizada, a qual se atribui
responsabilidade específica na construção de uma sociedade justa e igualitária, que
busca a efetividade dos direitos, ultrapassando o reconhecimento formal – que se
propõe a enfrentar as desigualdades da dinâmica social brasileira, de frágil tradição
democrática.
Esse mesmo núcleo ideológico é que dá sustentação ao lugar da Sociedade
Civil na construção do Programa Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas
Ameaçadas, ao longo de 13 anos de existência3.
Sobre o enfrentamento do tema central, creio ser nosso papel o de levantar
algumas provocações sobre o mesmo, na medida em que não existem respostas
prontas, diante do dinamismo do nosso dia-a-dia. Meu propósito é de abordar alguns
pontos desse complexo tema, a fim de fomentar a discussão/reflexão tanto das
Equipes Técnicas como das Entidades Gestoras e demais atores envolvidos
diretamente na proteção.
De início, podemos salientar – o que não é novidade – que a contribuição
efetiva por parte do que se convenciona chamar de réu colaborador é de grande
importância para o Ministério Público e a Justiça Criminal, na medida em que este é,
normalmente, detentor de informações privilegiadas, sobre as quais pessoas
estranhas às organizações criminosas, via de regra, teriam total desconhecimento.
A partir de tal reconhecimento é que a própria Lei Federal que institui o
PROVITA4 também traz em seu bojo medidas protetivas dirigidas ao réu
colaborador, inclusive, prevendo o instituto da delação premiada, que resulta na
diminuição da pena ou extinção da punibilidade, caso seja concedido o perdão
judicial ao réu colaborador.
3
Para informações a respeito da história, estrutura e funcionamento do PROVITA, visitar o endereço:
<http://www.gajop.org.br/provita/provita.htm>
ou
<http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/protecao/Id_prot_testemunha/>
4
Para consultar a Lei 9.807/99, visite: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9807.htm>
14
A partir do efeito jurídico do perdão judicial, caso o colaborador não possua
outra restrição à liberdade, não terá impedimento para o ingresso no PROVITA por
este requisito.
Para melhor contextualizar nosso estudo, recorremos à polêmica discussão
da delação premiada, a qual já vem sendo objeto de várias produções científicas no
campo do Direito, que, no nosso entender, muitas vezes, assumem um viés
moralista.
Como tentaremos demonstrar, este instituto jurídico acaba sendo um aliado
para uma das grandes finalidades de existência do Programa de Proteção no Brasil,
o combate à impunidade, na medida em que incentiva ao fornecimento de
informações relevantes quanto aos meandros da corrupção que viceja nitidamente
em diversas esferas institucionais do País.
Esse estudo tem por objetivo geral: discutir sobre a inserção de usuários
com envolvimento criminoso anterior no Programa de Proteção brasileiro. Enquanto
objetivos específicos, apontamos:
a) Identificar como os temas de delação premiada e réu colaborador são
tratados na legislação;
b) Analisar qual a representação social daqueles que compõem as Equipes
Técnicas Interdisciplinares do Programa de Proteção acerca de “criminoso”;
c) Examinar o rebatimento das implicações subjetivas de um contexto social
de violência e criminalidade no atendimento aos usuários;
d) Avaliar em que medida o nível de relação entre as Equipes Técnicas
Interdisciplinares e as demais instâncias (Entidade Gestora, Polícias Civil e Militar,
Ministério Público, Judiciário, Conselho Deliberativo...) interfere no desempenho de
seu atendimento aos usuários;
15
e) Levantar elementos da discussão acerca da necessidade ou não de
criação de um Programa específico para atendimento a rés(us) colaboras(es) e qual
seria o diferencial proposto em relação ao formato de proteção do PROVITA.
1.1. METODOLOGIA DA PESQUISA
Considerando o que SORIANO (2004) expõe sobre o processo de pesquisa,
ele nunca se encerra numa etapa, mas sempre está sendo realimentado enquanto
um processo dinâmico, dialético, resgatando as relações entre o objeto de pesquisa
e a totalidade social.
A fixação do tema, desde o início, foi fundamental para permitir um constante
estudo exploratório do tema, consistindo no levantamento bibliográfico.
Dado o curto tempo para a finalização do presente trabalho, não foi possível o
nível de aprofundamento que gostaríamos, de forma que entendemos como
importante realizar pesquisas mediante outros instrumentos, que não foram
possíveis de serem aplicados nesse momento, como estruturar e aplicar
questionários junto a diversas instâncias do Programa, a fim de trazer elementos
subjetivos e objetivos do seu entendimento acerca do trabalho com réus
colaboradores e indagar, fundamentalmente, se realmente necessitamos de um
Programa específico para o atendimento de pessoas com envolvimento criminoso
anterior.
Como já dito, a opção por realizar um estudo exploratório apenas mediante
fontes bibliográficas se deveu, fundamentalmente, à exigüidade de tempo.
Nesse levantamento (constante) de estudos acadêmicos sobre o tema,
constatamos que existe muito material centrado no estudo da delação premiada, por
parte de profissionais do Direito, porém, há uma gama enorme de aspectos a serem
explorados em torno do tema, em função de sua complexidade.
16
2. O PROGRAMA NACIONAL DE PROTEÇÃO A VÍTIMAS E TESTEMUNHAS
AMEAÇADAS – O MODELO DO PROVITA
A construção do PROVITA, dentro de uma perspectiva, inicialmente,
multidisciplinar e que, hoje, aspira à metodologia interdisciplinar, entrelaçando ao
saber do Direito, as contribuições da Psicologia e do Serviço Social, significou a
adesão a uma perspectiva teórica e política que nega uma postura de encarar aos
usuários como simples instrumento de garantia da produção da prova no processo
penal e passa a valorizá-lo como sujeito de direitos, visando proporcioná-lo
condições efetivas para a superação da grande ruptura que sofreu, a partir do
contexto de violência que gerou sua inclusão no Programa, com vistas a inserir-se,
de forma segura, em outra comunidade.
Como nos ensinou o conteúdo da aula 07, da UEA 05 (Serviço Social):
Fundamental, ainda, é lembrar que o usuário para o qual são direcionadas as
intervenções e propostas deve ser envolvido em todo o processo de
(re)inserção, posto que a idéia não é a de apresentar-lhe o “pacote pronto”,
como algumas equipes fazem, na ânsia de que o sujeito retome ou construa
o mais rápido possível novos projetos no novo local de moradia. É necessário
que ele esteja efetivamente implicado nessa construção, sob pena de todo o
esforço empreendido acabar por gerar frustração na equipe e no próprio
protegido, o qual pode não ter condições de atender às expectativas que
foram depositadas nele pelos técnicos.
A experiência brasileira de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas e
seus familiares [em função de ser, historicamente, o Estado, um grande violador de
direitos humanos, através de seus agentes públicos (parlamentares, chefes do
Poder Executivo, integrantes das forças policiais)], difere dos modelos adotados por
outros países. Desde o momento em que a Sociedade Civil passou a ser legitimada
para a execução desta política pública, em parceria com o Estado, ressurge, com
maior vigor, a importância de fortalecimento da esfera pública, com vistas à
superação da impunidade.
O Serviço Social, na medida em que se processa uma troca efetiva de
saberes entre aqueles que atuam no Programa e, tendo como condição uma prática
profissional com clareza de seus propósitos políticos e comprometimento concreto,
17
pode enriquecer a ação do Programa, enquanto política pública, tomando por base
os princípios norteadores de seu projeto ético-político, os quais citamos abaixo:
- Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas
políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos
indivíduos sociais;
- Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do
autoritarismo;
- Posicionamento em favor da equidade e justiça social que assegure
universalização de acesso a bens e serviços relativos aos programas e
políticas sociais, bem como sua gestão democrática;
- Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o
respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e
à discussão das diferenças;
- Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de
uma nova ordem societária, sem dominação/exploração de classe, etnia e
gênero.
Em relação aos Programas de Proteção, acredito que, enquanto afirmamos a
base conceitual de nossas intervenções na perspectiva contemporânea de Direitos
Humanos, tenderemos a assimilar, principalmente, o valor superior – o princípio
da dignidade da pessoa humana. Existe todo um conjunto de valores que gravitam
em torno da afirmação dos Direitos Humanos que podem nos favorecer um
pensar/agir mais voltado para o respeito ao outro e uma postura mais tendente aos
interesses da coletividade. (Porém, mesmo em se falando de Direitos Humanos, se
tomarmos pelo viés dos liberais, vão estar muito próximos do ideário de garantir os
direitos individuais e basta.)
Como pontuou Sueli Almeida (2004, pp. 2-3):
A intervenção nesta realidade requer que questionemos e revisitemos
constantemente nossas visões de mundo: representações sobre justiça,
direitos humanos, sobre os valores que defendemos e partilhamos ou que
nos dividem e, sobretudo, a respeito dos sujeitos com os quais trabalhamos:
Quem são? Que lugar ocupam na sociedade? E neste Programa? Que lugar
tentamos lhes atribuir? Qual a sua história? Quais os seus projetos?
A visão crítica do profissional com formação em Serviço Social pode e deve
contribuir para que a Equipe Técnica tenha clareza de que estamos diante de um
momento histórico em que, embora tenhamos garantido a previsão legal de diversos
direitos sociais e econômicos na nossa Constituição Federal de 1988 e em outros
18
diplomas legais, enfrentamos um desmonte neoliberal do Estado que interviria em
favor da promoção do bem-estar social.
A Democracia pode ser pensada/vivida a partir de várias concepções
distintas. Encontramos muitos desafios para buscar a participação popular efetiva.
Neste sentido, temos elaborado aquilo que denominamos de Democracia
Participativa, enquanto um conceito que traria uma alternativa ao contexto sóciopolítico que já temos instituído.
Neste cenário, assume destaque o acúmulo dos profissionais do Serviço
Social, através da sua inserção na luta pela democratização da esfera pública, em
diversos Conselhos de Direitos.
Como salientou Raquel Raichelis (2000):
As diferentes experiências de organização dos Conselhos atualmente em
curso nas áreas de saúde, criança e adolescente, assistência social, cidade,
meio ambiente, cultura e tantas outras, são expressões da busca de novos
canais de participação da sociedade civil na coisa pública, rumo à
constituição de esferas públicas democráticas, embora estejam na contracorrente da reforma neoliberal que tende a deslocar os espaços de
representação coletiva e de controle socializado sobre o Estado para a ação
dos grupos de pressão e de lobbies, desqualificando e despolitizando a força
da organização coletiva.
Esta mesma autora, assinala que:
Neste processo, a sociedade civil também é interpelada a modificar-se, a
construir alianças em torno de pautas coletivas, a transcender a realização
de interesses particularistas e corporativistas, convocada ao exercício das
mediações sociais e políticas para o atendimento de demandas populares.
Quando falamos dos usuários do Programa, grandes transformações são
promovidas quando pautamos junto ao Estado a necessidade de garantia dos
direitos básicos: à saúde, educação, moradia, geração de renda, de forma digna.
Estamos interferindo em toda a estrutura de um Estado que, tradicionalmente, se
voltou para os interesses das elites.
19
Notamos que, embora se pregue uma parceria entre Sociedade Civil e
Estado, devemos estar atentos para que a ação da primeira não signifique uma
desresponsabilização do segundo.
Como bem observou o conteúdo da aula 03, da UEA 05 (Serviço Social):
O Estado, historicamente refratário ao controle da sociedade civil, sempre
impôs limites muito precisos no que se refere à participação desta sobre suas
decisões. Somente à medida que ela se organiza, considerada a conjuntura
sócio-econômica e política, passa a ter maior poder de pressão e de controle
sobre o Estado, que, perpassado por interesses contraditórios, embora
privilegie o atendimento das demandas da elite dominante, para se legitimar,
responde também a requisições e necessidades das classes populares,
passando a produzir direta ou indiretamente os serviços fundamentais.
Ao se tratar do Programa de Proteção brasileiro, este possui uma instância
onde o trato dessas questões é estratégico, pois os Conselhos Deliberativos do
PROVITA possuem atribuição para além da simples deliberação por inclusão ou
exclusão dos usuários, de forma que este órgão é encarregado de se engajar com a
promoção da construção e do aperfeiçoamento desta política pública, de forma
ampla.
No entanto, devemos registrar que o viés, ainda, eminentemente, jurídico, na
maioria dos Conselhos Deliberativos dos PROVITA’s, emperra a perspectiva dessa
atuação ampliada, mormente em relação à articulação com outras políticas públicas
e esferas governamentais.
Em função disso, vem sendo incentivada a alteração da composição dos
CONDEL‘s, de forma a se efetivar uma paridade entre órgãos governamentais e
Sociedade Civil Organizada. Esta perspectiva pode contribuir sobremaneira para
alterar os rumos desta política pública, que, apesar da necessidade dos devidos
ajustes, tem sido considerada uma experiência exitosa.
É preciso realizar articulações macropolíticas, acompanhando as discussões
e proposições havidas nos diversos Conselhos de Direitos. Deveremos buscar a
articulação com as demais políticas setoriais: trabalho e renda; saúde; educação;
moradia; etc., especialmente se consideramos que grande parte dos usuários
20
atendidos pelos Programas são advindos de camadas populares, histórica e
fortemente impactadas pela negação de direitos, esta tem em vista pensar a
garantia de cada um desses direitos a partir das especificidades dos Programas de
Proteção.
21
3. O DESAFIO DA PRÁTICA PROFISSIONAL A PARTIR DO OLHAR DA
COMPLEXIDADE
3.1. INTRODUÇÃO
O olhar da complexidade ainda nos escapa, é certo, porque estamos muito
distante dele, mas algo de intuitivo nos leva a perceber essa fragmentação, que
não dá conta do todo, da realidade concreta.
Por "definição", já percebemos que o conhecimento é sempre parcial, a
descrição que adoto de um objeto jamais será o próprio objeto e sempre será a partir
da minha própria visão, alimentada por meus valores, preocupações, a riqueza do
acúmulo de cada ser humano.
No fundo, "tudo está ligado a tudo", nós "separamos" para poder compreender
melhor, mas, em alguns casos, esse processo não nos favorece e acabamos
"compreendendo pior", porque perdemos a perspectiva da relação.
É preciso construirmos, a todo tempo, um movimento de "ida e retorno",
porque precisamos partir de um referencial, porém sabendo que ele é insuficiente,
por si só.
Penso que uma importante contribuição que podemos dar é instalar essa
perspectiva da "dúvida", tanto para nós quanto para os outros que nos cercam, não
simplesmente desconsiderando o que é posto, mas tentando agregar algo mais.
Por exemplo, dentro do Direito, eu sempre fiquei procurando trabalhar com o
que há de mais essencial, não somente com "Doutrinas". Ou seja, em sociedade,
precisamos encontrar certas regras de convivência e o fato de termos essas regras
por escrito, confere maior "segurança" às nossas relações, mas nem todas as regras
estão escritas e mesmo as escritas não são justas por si só, mas devem ser
encontrados instrumentos para submeter ao coletivo essas regras, publicizá-las.
22
A validade dessas regras se dá na medida em que reconhecemos as mesmas
e estabelecemos que todos devem respeitá-las e, por isso, estabelecemos sanções
aos que não respeitam, de forma a manter a "ordem social".
Acontece que “dominar” a "técnica jurídica" não é garantia de compreender
esses processos sociais de forma ampla, muito pelo contrário, porque a visão que
vem sendo apresentada na academia, na maioria das vezes, tem sido extremamente
particularista, individualista, fragmentadora, até absurda, na medida em que
chegamos a partir de premissas de uma suposta "neutralidade/imparcialidade" do
Direito.
Quem “produz” esse Direito, está colocado em uma dada realidade, num
contexto político específico, onde existem correlações de força. A compreensão
disso não é e nem deve ser exclusiva do Direito, mas também da Sociologia e outros
saberes correlatos.
Costumo dizer que o "casamento" do Direito com o Serviço Social é ótimo, na
medida em que sai do nível da abstração e parte para o concreto, resgatando uma
visão crítica pouco utilizada no Direito, politizando as discussões. Assim, para tornar
efetivo um direito, só é possível através de Políticas Públicas e essas são "mais
públicas", se assim se pode dizer, se submetidas ao controle social.
Nada
é
por
autoritários/hierárquicos,
acaso.
que
Precisamos
marcam
resistir
nossa
a
esses
sociedade,
processos
compreendendo,
historicamente, a formação do nosso país, dentro de um contexto mundial.
3.2.
DISCUSSÃO
TEÓRICA
MULTIDISCIPLINAR,
SOBRE
AS
PLURIDISCIPLINAR,
PERSPECTIVAS
DISCIPLINAR,
INTERDISCIPLINAR
E
TRANSDISCIPLINAR.
Nesse tópico, sem descartar as importantes contribuições expostas através
do conteúdo das aulas da UEA 05 (Serviço Social), optaremos por agregar
considerações que julgamos importantes, que foram trazidas por Vasconcelos
(2002, pp. 108-112).
23
Ao tratar de uma resistência às abordagens dentro do paradigma da
complexidade e da interdisciplinaridade, pontua o seguinte:
O autor [Carlos Nelson Coutinho], sabiamente, retoma o postulado de que
não há ciência que esgote o real, pois ela é sempre aproximativa. Também
nos alerta que o pluralismo não significa ecletismo ou relativismo moral, ou
seja, a conciliação de pontos de vista teóricos e éticos inconciliáveis.
Pluralismo, nesse sentido, “é sinônimo de abertura para o diferente, de
respeito pela posição alheia, considerando que essa posição, ao nos
advertir para os nossos erros e limites, e ao fornecer sugestões, é
necessária ao próprio desenvolvimento de nossa posição e, de modo geral,
da ciência” (op. cit.: 14). Coutinho ainda nos chama a atenção para o fato
de que a produção de verdades nas ciências sociais é sempre atravessada
pelos valores e concepções de mundo, que são objetivados ao serem
compartilhados intersubjetivamente por conjuntos substantivos de pessoas.
Os projetos históricos hegemônicos e o conhecimento científico em
ciências sociais implicam, assim a formação de vontades e saberes
coletivos com níveis diferenciados de consenso e pactuação, o que requer
uma unidade interna dinâmica baseada na diversidade: “Nesse sentido,
não é ecletismo, no mau sentido da palavra, levar em conta o ponto de
vista do outro e se empenhar para elaborar uma consciência coletiva que
implique em muitos casos, a conciliação com o ponto de vista contrário”
(idem: 16). (VASCONCELOS, 2002, pp. 108-109)
Ainda, registra:
Assim, as diferenças não emergem apenas através das fronteiras entre
disciplinas (mesmo que entendidas como sedimentadas historicamente,
através da associação com os mais diversos interesses sociais), mas
também entre teorias, paradigmas, campos epistemológicos,
profissões e campos de saber/fazer. Desta forma, creio que é muito mais
correto falarmos de práticas “multi-“, “pluri-“, “inter-“ e “trans-“,
acompanhadas por esses complementos diversificados, como quando
falamos em práticas multiprofissionais, pluridisciplinares, interteóricas,
interparadigmáticas, etc. (VASCONCELOS, 2002, pp. 110-111, grifos
nossos)
Por fim, nos confere uma sistematização, que nos auxiliará a delimitar, de
forma sintética, diferentes abordagens metodológicas:
•
Práticas multi-: gama de campos de saber que propomos simultaneamente,
mas sem fazer aparecer as relações existentes entre eles. – Sistema de um
só nível e de objetivos únicos; nenhuma cooperação;
•
Práticas pluri-: justaposição de diversos campos de saber situados
geralmente no mesmo nível hierárquico e agrupadas de modo a fazer
24
aparecer as relações existentes entre elas. – Sistema de um só nível e de
objetivos múltiplos; cooperação, mas sem coordenação;
•
Práticas pluri-auxiliares: utilização de contribuições de um ou mais campos
do saber para o domínio de um deles já existente, que se posiciona como
campo receptor e coordenador dos demais; tendência ao imperialismo
epistemológico. – Sistema de dois níveis; coordenação e objetivos
hegemonizados pelo campo de saber encampador;
•
Práticas inter-: práticas de interação participativa que inclui a construção e
pactuação de uma axiomática comum a um grupo de campos de saber
conexos, definida no nível hierarquicamente superior, introduzindo a noção de
finalidade maior que redefine os elementos internos dos campos originais. –
Sistema de dois níveis e objetivos múltiplos; coordenação procedendo do
nível superior; tendência à horizontalização das relações de poder;
•
Campos trans-: campos de interação de médio e longo prazo que pactuam
uma coordenação de todos os campos de saberes individuais e inter- de um
campo mais amplo, sobre a base de uma axiomática geral compartilhada;
tendência à estabilização e criação de campo de saber com autonomia
teórica e operativa própria. – Sistema de níveis e objetivos múltiplos;
coordenação com vistas a uma finalidade comum dos sistemas; tendência a
horizontalização das relações de poder.
3.3. OS DESAFIOS DA ATUAÇÃO DE EQUIPES INTERDISCIPLINARES NAS
PRÁTICAS QUE ENVOLVEM OS PROGRAMAS.
O processo de Triagem5 (que não precisa e nem deveria se limitar a uma
entrevista), dá as bases para essa aproximação inicial de cada sujeito que pleiteia a
proteção e a forma como vamos nos colocar indicará os limites dessa relação. Serão
5
Procedimento mediante o qual a Equipe Técnica Interdisciplinar do PROVITA construirá o Parecer
Técnico Interdisciplinar que embasará a deliberação do Conselho Deliberativo acerca do ingresso ou
não dos usuários no PROVITA, com fulcro nos requisitos legais da Lei 9.807/99.
25
diferentes visões de mundo implicadas no processo de assistência-proteção: dos
técnicos, dos usuários, de ambos entre si e com outras instâncias do Programa.
Fazer a análise de cada um desses aspectos (condições de risco, sócioeconômicas, sócio-jurídicas e fisico-emocionais) requer de nós sempre buscar
uma contextualização e uma atitude que evite o determinismo, na medida em que
acreditamos na capacidade do ser humano de mudar, estabelecer novas relações,
superar barreiras, dentro de seu modo particular.
Buscamos compreender cada um desses fatores dentro do detalhamento que
o próprio conteúdo da UEA 06 (Equipes Interdisciplinares) nos assinalou, não
ficando, necessariamente, adstrito a esses exemplos, mas, quem sabe, inaugurando
novas possibilidades.
Por exemplo, relacionado ao risco, temos algumas variáveis a considerar: as
localizações geográficas da situação criminosa; os potenciais ofensivos dos agentes
envolvidos; níveis de envolvimento da testemunha; níveis de envolvimento dos
familiares da testemunha; envolvimento de agentes do Estado na situação
criminosa; consciência da testemunha em relação à situação de risco; tipo de
criminalidade envolvida...
O grande desafio é apreender em que medida esses fatores se
interrelacionam com os aspectos outros, por exemplo: que tipo de situação sócioeconômica, físico-emocional ou sócio-jurídica pode se constituir num fator de maior
vulnerabilidade?
Uma hipótese concreta é a de algum jovem que tenha envolvimento criminoso
anterior e tenha um grande nível de desagregação familiar, com fragilidade dos
vínculos e vai precisar constituir novos vínculos no local de proteção. O desafio
posto para a Equipe é, frente a uma realidade de privação, criar instrumentos junto a
esse usuário para fortalecê-lo no exercício da cidadania e de sua autonomia, que
criem a possibilidade da chamada ressignificação por parte desse sujeito em relação
a sua história de vida, construindo novos referenciais.
26
É preciso estar próximo desse sujeito, buscando apreender como vem
assimilando a grande mudança em sua vida, se esse processo vem gerando
sofrimento, se possui o desejo ou não de se implicar em construir um novo projeto
de vida, como vem se comportando diante da necessidade de cumprir regras tão
rígidas, se os fatos deixaram traumas, como esses vêm interferindo na sua vida,
como está a parte emocional-afetiva, se existe perspectiva de agilização ou não dos
procedimentos em que vá depor e de responsabilização dos denunciados...
São situações extremamente complexas e o resgate das interrelações serão
fundamentais para uma compreensão menos "mutilada".
Todo esse universo, conforme expresso no conteúdo a UEA 06 (Equipes
Interdisciplinares), nos desafia a partir, de certa forma, ao encontro do, até então,
desconhecido, privando-nos de nossas "certezas científicas". O novo paradigma
científico nos põe a tarefa de reaprender, desconstruindo muitos dos nossos
"alicerces", frente à enorme e inquestionável influência cartesiano-positivista
(mormente em se tratando do Direito).
É importante assinalarmos uma parte fundamental do seu conteúdo:
[...] o modo como nós nos concebemos, nos leva à necessária percepção
de que esse processo também passa por nossa própria ressignificação. O
sujeito cognoscente, ao ter de redescobrir e reinventar os objetos se
redescobre e se reinventa nesse processo.
Tal panorama ilustra as insuficiências a que estamos relegados quando não
observamos essas nuances. É muito comum haver uma certa disputa de poder entre
técnicos de Equipes, em função de uma tendência à hierarquização dos saberes.
Além do mais, é como se houvesse uma "ameaça de invasão" de um campo
particular e “exclusivo” de determinada área do saber, desqualificando intervenções
que parecem transpor os limites de cada disciplina, academicamente.
Há, portanto, uma tentativa de deslegitimar uma visão que se contraponha à
de determinado(a) profissional pelo fato de não ter aquela formação profissional
específica.
27
Ademais, esse tipo de postura se expressa isolando "Técnicos de cada área
da Equipe" dos "Apoios Técnicos" (sentindo-se necessidade de delimitar funções
distintas), que, muitas vezes, por não possuírem formação universitária, podem ser
“menosprezados” em suas contribuições para o grupo. Ou melhor: podem opinar,
desde que não "ameacem" ou contestem nada. Por isso, é preciso construir,
conforme assinalou o conteúdo a UEA 06 (Equipes Interdisciplinares), vias através
da ética e não somente de conteúdos teóricos.
Conforme se expôs no texto da UEA aludida acima:
Isso se reflete claramente nos desafios permanentes na realização das
tarefas dos programas de proteção. Desde as dificuldades na articulação
de saberes até aquelas que envolvem as relações intersubjetivas entre
seus atores, não somente os técnicos, mas também os próprios usuários,
os integrantes dos Conselhos e das Entidades Gestoras. Reflete-se,
também, nas relações com os responsáveis institucionais por essa
política, em cada estado e na União, bem como nas múltiplas formas de
organização dos atores sociais e das instituições. (grifos nossos)
Daí porque seremos desafiados a construir coletivamente as condições para
a superação dessa realidade de imensa fragmentação.
3.4. CONCLUSÃO (APONTAMENTO DE PRÁTICAS POSSÍVEIS QUE PODEM
CONTRIBUIR PARA A ATUAÇÃO DAS EQUIPES SOB A PERSPECTIVA
INTERDISCIPLINAR).
Uma prática interdisciplinar é possível em cada uma de nossas atividades
enquanto Equipe Técnica nos Programas de Proteção e Assistência a Vítimas,
Testemunhas e seus Familiares.
A Reunião de Equipe é o espaço privilegiado do nivelamento de informações
e trocas de impressões para a construção de um encaminhamento adequado.
Outros momentos/instrumentos fundamentais são as Triagens, construções dos
Pareceres Técnicos Interdisciplinares e Estudos de Caso.
Porém, há uma necessidade constante de pautar a discussão sobre
construção da metodologia interdisciplinar, que não pode ser tomada como um dado
28
a priori. É preciso investir na construção do conhecimento em comum, trazendo a
contribuição de cada membro da Equipe, o que é um grande e constante desafio.
A exemplo disso, pela interação entre diversos profissionais, conseguimos
construir conhecimentos mais abrangentes de problemas complexos, como: a
questão da dependência química, situações de violência intrafamiliar, sofrimento
mental, inserção no mercado de trabalho, quebras de normas...
Existem caminhos a serem trilhados, principalmente dentro do próprio
"Sistema", criando "pontes" entre Equipes, Entidades e Conselhos Deliberativos e
trazendo para a deliberação coletiva, questões que emergem do nosso cotidiano.
Posso dizer que é estratégico trazer o olhar dos técnicos para dialogar com
outras instâncias do Programa, que acabam muito afastadas de um cotidiano tão
desafiante e tão rico, ao mesmo tempo que tão gerador de angústias.
Somente essa aproximação poderá alterar a dinâmica atual de nosso
trabalho, buscando respostas para os desafios enormes a que estamos adstritos,
mediante a implicação de cada sujeito/instância.
Esse tem que deixar de ser um problema "do outro" e passar a ser um
problema "meu". E, se nos comportarmos dessa forma, poderemos não somente
"cobrar" respostas, mas "construir coletivamente" essas respostas.
Ademais, eu também considero importante refletir se, dentro da nossa
perspectiva de trabalho interdisciplinar, existiria algum campo em que somente cada
profissional pudesse intervir.
Há uma dimensão do humano que escapa ao técnico. Não quer dizer que
um(a) psicólogo(a) ou advogado(a) ou assistente social, em determinada situação,
interviria melhor. Talvez nem fosse... É preciso ter sensibilidade para reagir e intervir
em cada ocasião. Muitas vezes, nem é preciso ter uma formação técnicouniversitária para intervir em certas situações. Por isso que eu ponho em dúvida,
dentro da nossa perspectiva interdisciplinar, um suposto "exercício ilegal da
29
profissão", na medida em que vai se constituindo um campo de comum, que não
invalida aquele saber específico, mas não fica amarrado a ele.
Não estou querendo invalidar a importância de cada saber, mas tentar
transitar um pouco com essa fronteira da demarcação dos saberes, dentro de uma
perspectiva que se pretende interdisciplinar. É preciso que saibamos que nenhum de
nós sabe tudo, ninguém é infalível, nem mesmo dentro da sua própria área, porque
existem lacunas.
Qual é o nosso papel? Inicialmente, é preciso nos perguntarmos: "A quem
serve o que eu estou fazendo/produzindo?" Está de acordo com um projeto éticopolítico definido?
Felizmente, seres humanos politizados, com consciência de si e do mundo
que os cerca, "ameaçam" a "ordem estabelecida", que, tradicionalmente, é
dominada por um determinado grupo social, da elite (por que não dizer, capitalista).
Não devemos “questionar por questionar”, mas com firmeza de argumentos.
Pra mim, essa é a perspectiva que nos dá segurança para desestabilizar um
"saber já constituído" e me colocar uma postura de "sujeito aprendente", com
humildade para aprender algo com os/as meus/minhas colegas e isso implica saber
ouvir, mesmo que eu não concorde, mas devo refletir sobre o que está sendo
colocado. É preciso eliminar algumas barreiras.
Nesse sentido, costumo afirmar a importância de garantir algum tipo de
supervisão para as Equipes, com o objetivo de trabalhar todas essas dimensões,
especialmente por estarmos tratando de um trabalho que se insere em um contexto
permeado pela violência, que traz sérios rebatimentos pessoais e profissionais para
cada um(a) dos(as) envolvidos(as).
Considerando, ainda, a necessidade de (re)pensar o Programa, de forma
coletiva, seria importante oportunizar momentos, quando formuladas e realizadas as
chamadas "Oficinas e Seminários Nacionais ou Internacionais", de maneira a
favorecer uma interação entre os diversos atores sociais do Programa e a
30
construção comum do conhecimento, com vistas a buscar respostas para nossos
desafios cotidianos.
Além disso, é preciso que tenhamos a preocupação de uma sistematização
daquilo que foi discutido, com vistas a obtermos, ao final desse processo, novas
discussões
ou
consensos
(ou
mesmo
retomando
nossos pactos
coletivamente) acerca dos nossos procedimentos técnico-operacionais.
Já com relação à construção/consolidação de um Sistema de Proteção, mais
amplo, o qual integraria o PROVITA/PROTEGE, PPCAAM, CEAV, PPDDH, resta o
desafio de colocar em funcionamento uma Instância que permita uma participação
mais ampla para construir a interação entre esses. Seria um Conselho Nacional, de
competência ampliada? Decerto, esse teria como missão, além de pensar a Política
de Proteção, concebê-la dentro do ponto de vista acenado pelo conteúdo da Aula
04, da UEA 06 (Equipes Interdisciplinares), integrado ao Sistema Nacional de
Direitos Humanos, propiciando a interação desse Sistema com as diferentes
políticas públicas de Direitos Humanos.
31
4. ASPECTOS LEGAIS INTERNACIONAIS
Cumpre salientar que a construção do modelo de proteção do PROVITA se
baseou no estudo anterior dos Programas de Proteção desenvolvidos em outros
países, já consolidados, como dos Estados Unidos da América, da Itália, do Canadá
e da Inglaterra. Uma abordagem do Direito Comparado mais aprofundada em
relação ao funcionamento de tais Programas e a legislação relativa ao combate ao
crime organizado de outros países pode ser encontrada em vários trabalhos já
publicados, dentre os quais destacamos José Braz da Silveira (2004) e Marcelo
Batlouni Mendroni (2009).6
O PROVITA representa um modelo de segurança dentro dos moldes dos
Direitos Humanos, atendendo aos compromissos assumidos em escala internacional
por nosso Estado, numa tentativa de preparar o caminho para uma mudança cultural
- conclamando a sociedade ao exercício da cidadania, superando o medo imposto,
para conquistar maior justiça social e combater a impunidade e a corrupção.
Esse movimento está entrelaçado a um processo de luta e afirmação dos
direitos humanos no contexto internacional, sendo que, conforme revelou Gustavo
Ungaro (2001, p. 43): “Entre as décadas de 80 e 90, foram ratificados diversos
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos”.
Esse mesmo autor registra que, por ocasião da Conferência Mundial de
Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, passou a ser estimulada a
elaboração, pelos países, de Programas de Direitos Humanos, com o compromisso
formal com a defesa e promoção dos direitos de todos. E assevera:
Assim, em 1996, publicou-se o Programa Nacional de Direitos Humanos,
singular diretriz cidadã para as políticas públicas, compreendendo um
extenso rol de ações a serem desenvolvidas pelo Estado e pela sociedade
civil em prazos variáveis, implicando inovações legislativas, transformações
administrativas e judiciárias, impulso à organização e participação social,
6
Apontamos, outrossim, Kobren (2006) e Daniela Serafini Machado (2006), sendo que a primeira, ao
retratar o instituto da delação premiada e a segunda, ao abordar especificamente o Programa
brasileiro de Proteção, resgatam tal apanhado em relação ao Direito Comparado.
32
prevendo, também, formas de aprimorar o acesso à justiça no Brasil. (grifos
nossos).
Uma situação que mereceu enfoque específico foi o combate à
impunidade, a partir de uma ótica de preocupação com os direitos
humanos, importando aqui centrar o foco na vítima sobrevivente a um
crime e na testemunha ameaçada. (grifos nossos).
Os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro em matéria de Direitos
Humanos através de Tratados Internacionais, segundo Flávia Piovesan (s/d), por
força da interpretação do Art. 5º, § 2º, da CF 88, eram incorporados em nosso
ordenamento jurídico pátrio, alçando-os ao status constitucional.
Essa construção doutrinária passou a prevalecer com o texto da Emenda
Constitucional n.º 45, de 30/12/2004, através da qual foi acrescentando o § 3º ao Art.
5º, da CF 88, que dispõe, in verbis:
Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais. (grifos nossos)
Observa-se, no texto constitucional de 1988, a prevalência dos princípios de
direitos humanos, com destaque para o valor da dignidade humana, que se estatui
como princípio fundamental, nos termos do Art. 1º, inc. III.
A respeito da evolução dos meios de proteção aos direitos humanos,
integração no Direito interno dos diversos Estados e o tratamento dos direitos
fundamentais na Constituição Federal de 1988, fazemos referência a Antônio Milton
de Barros (2003), o qual se utiliza de tal instrumental para assinalar o contexto onde
se insere o Programa Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas.
Dentre os instrumentos internacionais de proteção e promoção dos Direitos
Humanos, é fundamental fazermos referência à Declaração dos Princípios Básicos
de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, adotada pela
Assembléia Geral das Nações Unidas na sua Resolução n.º 40/34, de 29 de
Novembro de 1985.
33
Resolução n.º 40/34 da ONU
A Assembléia Geral,
[...]
4. Solicita aos Estados membros que tomem as medidas necessárias para
tornar efectivas as disposições da Declaração e que, a fim de reduzir a
vitimização, a que se faz referência daqui em diante, se empenhem em:
a) Aplicar medidas nos domínios da assistência social, da saúde,
incluindo a saúde mental, da educação e da economia, bem como
medidas especiais de prevenção criminal para reduzir a vitimização e
promover a ajuda às vítimas em situação de carência;
[...]
c) Examinar regularmente a legislação e as práticas existentes, a fim de
assegurar a respectiva adaptação à evolução das situações, e adoptar e
aplicar legislação que proíba actos contrários às normas
internacionalmente reconhecidas no âmbito dos direitos do homem, do
comportamento das empresas e de outros actos de abuso de poder;
d) Estabelecer e reforçar os meios necessários à investigação, à
prossecução e à condenação dos culpados da prática de crimes;
(grifos nossos)
[...]
ANEXO
Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às
Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder
A. Vítimas da criminalidade
1. Entendem-se por "vítimas" as pessoas que, individual ou
colectivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um
atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de
ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus
direitos fundamentais, como consequência de actos ou de omissões
violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo
as que proíbem o abuso de poder.
2. Uma pessoa pode ser considerada como "vítima", no quadro da presente
Declaração, quer o autor seja ou não identificado, preso, processado ou
declarado culpado, e quaisquer que sejam os laços de parentesco deste
com a vítima. O termo "vítima" inclui também, conforme o caso, a
família próxima ou as pessoas a cargo da vítima directa e as
pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar
assistência às vítimas em situação de carência ou para impedir a
vitimização.
(grifos nossos)
[...]
B. Vítimas de abuso de poder
18. Entendem-se por vítimas as pessoas que [...] ou de omissões que, não
constituindo ainda uma violação da legislação penal nacional, representam
violações das normas internacionalmente reconhecidas em matéria de
direitos do homem.
Ao abordar o tema do combate aos crimes transnacionais, Juliana Kobren
(2006) nos presta sua importante contribuição:
34
O crime organizado transnacional inclui ameaças como o narcotráfico
internacional, o contrabando de armas, a lavagem de dinheiro, a evasão
fiscal internacional, a corrupção administrativa, os seqüestros, os
assassinatos, a violência, a violação de direitos humanos e os crimes
ambientais, entre outras (BRINDEIRO, 2000, p. p. A-3)
É de suma relevância destacar, ainda, a Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional – a qual foi produto da Convenção da
ONU, em Palermo (Itália), em 12/12/2000. A referida Convenção foi promulgada, no
Brasil, através do Decreto n.º 5.015, de 12/03/2004.
Esta, em seus Arts. 24 e 25, tratou da proteção a vítimas e testemunhas e
também, no Art. 26, estimulou a criação de instrumentos legais que incentivassem a
colaboração de pessoas que houvessem feito parte de organizações criminosas com
as autoridades competentes, com fins investigativos e probatórios.
Art. 24 – Proteção das testemunhas
1. Cada Estado Parte, dentro das suas possibilidades, adotará medidas
apropriadas para assegurar uma proteção eficaz contra eventuais
atos de represália ou de intimidação das testemunhas que, no
âmbito dos processos penais, deponham sobre infrações previstas
na presente Convenção e, quando necessário, aos seus familiares
ou outras pessoas que lhes sejam próximas.
2. Sem prejuízo dos direitos do argüido, incluindo o direito a um julgamento
regular, as medidas referidas no parágrafo 1 do presente Artigo poderão
incluir, entre outras:
a) Desenvolver, para a proteção física destas pessoas, procedimentos que
visem, consoante as necessidades e na medida do possível,
nomeadamente, fornecer-lhes um novo domicílio e impedir ou
restringir a divulgação de informações relativas à sua identidade e
paradeiro;
b) Estabelecer normas em matéria de prova que permitam às
testemunhas depor de forma a garantir a sua segurança,
nomeadamente autorizando-as a depor com recurso de meios
técnicos de comunicação, como ligações de vídeo ou outros meios
adequados.
3. Os Estados Partes considerarão a possibilidade de celebrar acordos com
outros Estados para facultar um novo domicílio às pessoas referidas no
parágrafo 1 do presente Artigo.
4. As disposições do presente Artigo aplicam-se igualmente às
vítimas, quando forem testemunhas. (grifos nossos)
Art. 25 – Assistência e proteção às vítimas
1. Cada Estado Parte adotará, segundo as suas possibilidades, medidas
apropriadas para prestar assistência e assegurar a proteção às
vítimas de infrações previstas na presente Convenção,
especialmente em caso de ameaça de represálias ou de intimidação.
2. Cada Estado Parte estabelecerá procedimentos adequados para que as
vítimas de infrações previstas na presente Convenção possam obter
reparação.
35
3. Cada Estado Parte, sem prejuízo do seu direito interno, assegurará que
as opiniões e preocupações das vítimas sejam apresentadas e
tomadas em consideração nas fases adequadas do processo penal
aberto contra os autores de infrações, por forma que não prejudique
os direitos de defesa. (grifos nossos)
Art. 26 – Medidas para intensificar a cooperação com as autoridades
competentes para a aplicação da lei
1. Cada Estado Parte tomará as medidas adequadas para encorajar as
pessoas que participem ou tenham participado em grupos
criminosos organizados:
a) A fornecerem informações úteis às autoridades competentes para
efeitos de investigação e produção de provas, nomeadamente;
i)
A identidade, natureza, composição, estrutura, localização ou
atividades dos grupos criminosos organizados;
ii)
As conexões, inclusive conexões internacionais, com outros
grupos criminosos organizados;
iii)
As infrações que os grupos criminosos organizados praticaram
ou poderão vir a praticar;
b) A prestarem ajuda efetiva e concreta às autoridades competentes,
susceptível de contribuir para privar os grupos criminosos
organizados dos seus recursos ou do produto do crime.
2. Cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, nos casos
pertinentes, de reduzir a pena de que é passível um argüido que
coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos
autores de uma infração prevista na presente Convenção.
3. Cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, em conformidade
com os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico interno, de
conceder imunidade a uma pessoa que coopere de forma
substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma
infração prevista na presente Convenção.
4. A proteção destas pessoas será assegurada nos termos do Artigo
24 da presente Convenção.
5. Quando uma das pessoas referidas no parágrafo 1 do presente Artigo se
encontre num Estado Parte e possa prestar uma cooperação substancial
às autoridades competentes de outro Estado Parte, os Estados Partes
em questão poderão considerar a celebração de acordos, em
conformidade com o seu direito interno, relativos à eventual concessão,
pelo outro Estado Parte, do tratamento descrito nos parágrafos 2 e 3 do
presente Artigo. (grifos nossos)
Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC)7:
Programas de proteção a testemunhas são considerados instrumentos
fundamentais para o desmantelamento das redes de tráfico humano, bem
como outras formas contra o crime organizado. A Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e seus protocolos
associados ao Tráfico Humano e Contrabando de Migrantes são marcos
jurídicos para que os Estados tomem medidas para proteger as vítimas e
testemunhas de ameaças, intimidação, de chantagem ou de lesões
corporais. (grifos nossos)
7
Dada a importância do tema, foi lançado um manual de boas práticas relativas à proteção de
testemunhas, somente disponível em inglês, o qual se encontra divulgado na página da web:
www.unodc.org/brazil/pt/pressrelease_20080214.html
36
Conforme veremos no capítulo seguinte, grande parte das disposições
internacionais examinadas neste, foi incorporada ao nosso ordenamento jurídico
pátrio, refletindo-se nas disposições da Lei 9.807/99.
37
5. ASPECTOS LEGAIS NACIONAIS
Enquanto Política Pública, o Programa de Proteção a Vítimas e
Testemunhas Ameaçadas (PROVITA), veio a preencher uma lacuna existente em
nosso ordenamento jurídico, em termos de uma alternativa para avançar no combate
à corrupção e à impunidade, uma vez que, garantindo a proteção à testemunha,
poder-se-á chegar ao resultado pretendido pelo nosso sistema criminal.
A partir de criterioso estudo, foram construídas as bases do nosso Programa,
sendo certo que se fez necessário fazer uma adequação à realidade nacional, onde,
conforme já mencionamos, podemos destacar o fato da proteção ser procedida em
parceria com entidades da Sociedade Civil com atuação em Direitos Humanos e não
diretamente por agentes do Estado, tendo em vista que, em grande parte, existe
associação com ou participação exclusiva de agente(s) público(s) nos crimes e
ameaças às vítimas e testemunhas dos mesmos.
O PROVITA representa um modelo de segurança dentro dos moldes dos
Direitos Humanos, atendendo aos compromissos assumidos em escala internacional
por nosso Estado, numa tentativa de preparar o caminho para uma mudança cultural
- conclamando a sociedade ao exercício da cidadania, superando o medo imposto
para conquistar maior justiça social e combater a impunidade e a corrupção.
Além dos direitos e garantias fundamentais, consubstanciados nos princípios
constitucionais na esfera penal e processual penal, nossa Constituição Federal de
1988, em seu Art. 144, dispõe que:
A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de
todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade
das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I – polícia federal;
II – polícia rodoviária federal;
III – polícia ferroviária;
IV – polícias civis;
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.
38
É importante salientar que, por meio da iniciativa da Sociedade Civil, no
Brasil, se chegou a um modelo diferenciado de proteção, onde os órgãos de
segurança pública cumprem o papel de parceiro na execução desse serviço.
Conforme assinalou o conteúdo da Unidade de Ensino e Aprendizagem “O
Direito em Programas de Proteção” (UEA 03), do presente curso de Pós-Graduação,
poderíamos desenhar o modelo brasileiro analisando os papéis desempenhados
pelos atores dessa política pública8: o Estado e a Sociedade Civil. Então vejamos:
O papel do Estado
•
garantir e disponibilizar os recursos financeiros e logísticos para o efetivo
funcionamento do Programa;
•
garantir um processo de capacitação constante entre e para os agentes do
Sistema e colaboradores;
•
supervisionar e monitorar o desenvolvimento e as metas dos convênios;
•
controlar e fiscalizar o desempenho administrativo e financeiro do Programa;
•
articular nos estados e com os atores públicos e sociais, nos âmbitos de suas
competências, relacionando-os com outras políticas públicas sociais (para
educação, saúde, habitação, previdência etc.);
•
articular, por meio dos órgãos de polícia, a colaboração e o apoio necessários
à execução de cada programa;
•
executar os Serviços de Proteção ao Depoente Especial (SPDE).
O papel da Sociedade Civil
•
fomentar, criando, mantendo e aprimorando a rede solidária e sigilosa, já que
existe em muitos casos uma descrença e descrédito nas instituições públicas,
principalmente as corporações policiais que também em alguns casos são
violadoras e ameaçadoras da integridade da Justiça, com a conivência de
instituições e autoridades governamentais;
8
Podemos asseverar que a deficiência no desenvolvimento quaisquer dessas atribuições, causa um
rebatimento significativo sobre o funcionamento da Política de Proteção, recaindo diretamente sobre
aqueles que estão encarregados de sua execução e, principalmente, sobre os usuários da mesma
(vítimas, testemunhas e seus familiares).
39
•
trabalhar a reinserção social dos usuários – por meio do protagonismo de
testemunhas, vítimas e familiares – visando ao resgate de sua cidadania e à
difusão de valores solidários;
•
garantir o acesso dos usuários a todas as políticas públicas necessárias e
pertinentes com sua reinserção social;
•
executar o monitoramento do Sistema, de forma compartilhada com a
Coordenação-Geral de Proteção a Testemunhas (CGPT).
Esse Programa foi idealizado com base no conceito contemporâneo de
Direitos Humanos, valorizando, sobretudo, a dignidade da pessoa humana. A
testemunha não fica mais submetida, exclusivamente, ao contexto do processo
criminal, vista como um meio de prova que deve ser protegido, mas passa a
participar da construção do sentido da justiça, onde vem a ser protagonista, peça
fundamental.
Mediante a reafirmação desses significados, esses valores são difundidos
socialmente e, quando assimilados por cada um de nós, vai sendo conquistada a
implicação de mais um sujeito nesse processo.
O diferencial brasileiro na proteção a vítimas e testemunhas é considerado,
em relação aos Programas internacionais, a Rede Solidária. O desenho dessa rede
aponta para a Sociedade Civil enquanto força política, em parceira com o Estado, no
sentido de promover espaços públicos de discussão de Direitos Humanos - ação
crítica e inovadora, enquanto dispositivo de combate à impunidade e fortalecimento
dessa Política Pública, conforme prelecionou Suely Almeida (2001, p. 11).
Quanto ao tópico em referência, cabe realizar uma ressalva, na medida em
que percebemos que a Rede Solidária, deve não somente envolver a participação
da Sociedade Civil, sendo extremamente importante, para assegurar o caráter
público desta Política, implicar o Estado na garantia do atendimento às vítimas,
testemunhas e seus familiares, dentro dos critérios de sigilo e segurança, visto que,
dentre outros motivos, muitos dos atendimentos fornecidos através da Rede
40
Particular não poderão ser mantidos pelos próprios usuários após seu desligamento
do Programa.
Nesse sentido, cabe, primordialmente, à Sociedade Civil Organizada pautar,
publicamente, a reivindicação de que o Estado assuma o seu papel de garantir o
acesso aos direitos sociais, econômicos e culturais dos usuários deste Programa, de
acordo com as particularidades do mesmo, especialmente: moradia, saúde,
educação, trabalho e segurança.
A inovação trazida vai na contramão da tradição colonialista, que veio a
influenciar toda a vida política do nosso país, desigual e elitista. (Basta observar que
o pouco investimento em gastos sociais contrasta com o investimento no aparelho
repressivo).
Tratamos de uma ampliação da esfera pública, posto que, além de se
entender o papel da Sociedade Civil no controle social/monitoramento das atividades
do Governo, se considera a importância de estar-se envolvido no processo de
tomada de decisões e implementação das Políticas Públicas, como garantia de que
os interesses sociais sejam realmente contemplados.
Assim sendo, são convocados os diversos grupos sociais a promover a tão
propalada justiça social, através de mecanismos concretos, com referenciais
igualitários, que permitem vislumbrarmos maior credibilidade nas instituições, tais
como o aparato policial e judiciário.
Por meio da ampla mobilização, através do Movimento Nacional de Direitos
Humanos (MNDH) e de outros agentes, junto ao Poder Público, com base nas
disposições do Plano Nacional de Direitos Humanos, foi que se conquistou o
marco legal do PROVITA, que passou, então, a se consolidar enquanto uma política
pública de âmbito nacional, a partir da experiência piloto, desenvolvida, a partir de
1996, pelo Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP).
A Lei 9.807/99 estabeleceu as regras para o funcionamento deste Programa,
organizado em nível federal, com a participação dos Estados da Federação onde o
41
mesmo está implementado. O Decreto 3.518/2000 regulamentou o Programa
Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, também criou o
Serviço de Proteção ao Depoente Especial (SPDE) e estabeleceu normas de sigilo e
segurança para ambos.
Consoante as normas previstas na Lei 9.807/99, especialmente, em seu Art.
2º, caput, desenvolveremos, preliminarmente, a previsão material que fundamenta o
objeto principal dos requisitos de inclusão dos interessados na proteção. Tais são as
disposições legais:
ART. 2º - A proteção concedida pelos programas e as medidas dela
decorrentes levarão em conta a gravidade da coação ou da ameaça à
integridade física ou psicológica, a dificuldade de previni-las pelos meios
convencionais e a sua importância para a produção da prova.
[...]
§ 2º - Estão excluídos da proteção os indivíduos cuja personalidade ou
conduta seja incompatível com as restrições de comportamento exigidas
pelo programa, os condenados que estejam cumprindo pela e os
indiciados ou acusados sob prisão cautelar em qualquer de suas
modalidades. Tal exclusão não trará prejuízo a eventual prestação de
medidas de preservação da integridade física desses indivíduos por
parte dos órgãos de segurança pública.
§ 3º - O ingresso no programa, as restrições de segurança e demais medidas
por eles adotadas terão sempre a anuência da pessoa protegida, ou de seu
representante legal. (grifos nossos)
E, ainda, pelo disposto no Art. 3º, da mencionada Lei, o legislador determina a
consulta prévia ao Ministério Público, para que o encaminhamento do interessado se
dê sob a égide de quem tem a atribuição para deflagrar os procedimentos judiciais
e/ou administrativos necessários à apuração de ilícitos, tendo em vista ser a
testemunha prova fundamental nesses intentos. Senão vejamos:
ART. 3º - Toda admissão no programa ou exclusão dele será precedida de
consulta ao Ministério Público sobre o disposto no art. 2º e deverá ser
subseqüentemente comunicada à autoridade policial ou ao juiz competente.
(grifos nossos)
Sua manifestação se dará mediante a emissão de um Parecer, versando
sobre os requisitos legais de inclusão no Programa, que será encaminhado ao
Órgão Executor, com vistas a subsidiar a análise do caso por parte da Equipe
Técnica Interdisciplinar.
42
Dentro desse contexto, é que chegamos, especificamente, no ponto de tratar
do tema deste estudo, que se debruça nas questões atinentes à inserção de
usuários com envolvimento criminoso anterior no Sistema Nacional do Programa de
Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas.
Nesse sentido, é imperioso fazer referência a duas categorias básicas, que
são tratadas pela Lei 9.807/99, quais sejam: delação premiada e réu colaborador.
Em função de sua importância para esse estudo, cada uma dessas categorias
contará com um capítulo específico, de forma que nos dedicaremos, neste, aos
aspectos legais que possui o tema.
Em relação à delação premiada, devemos asseverar a importância de que
esta seja formalizada, possivelmente perante o Ministério Público, mediante um
“Acordo de Delação Premiada”, com vistas a garantir maior segurança àquele(a) que
se dispôs a se colocar em risco e colaborar com a responsabilização criminal dos
seus comparsas. Esse ponto será abordado no próximo capítulo com mais detalhes,
mediante o tratamento dado pela Doutrina jurídica.
Inicialmente, convém esclarecer alguns aspectos da Lei 9.807/99, que é
dividida em dois capítulos. O primeiro capítulo, além de trazer normas de conteúdo
programático, estabelece normas para a proteção a vítimas e testemunhas
ameaçadas. O Capítulo II, por sua vez, sob a rubrica “Da Proteção aos Réus
Colaboradores”, é um estímulo para o réu confessar, que advém da norma de
natureza penal material de cunho atenuatório da responsabilidade criminal, que
permite a redução da pena ou então o perdão judicial, que, segundo a Lei, é
causa de extinção da punibilidade.
No que se refere à proteção prevista para o réu colaborador, na dicção da
Lei, se restringiria à adoção de medidas especiais de segurança e proteção à
integridade física do réu, enquanto estiver preso ou mesmo fora da prisão (Art. 15, §
2º c/c 8º, da Lei 9.807/99).
Pontes (1999) adverte:
43
Como é público e notório, as nossas penitenciárias, cadeias públicas,
colônias agrícolas, industriais ou similares, casa de albegado, centro de
observação, hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e cadeias
públicas, quando existem realmente, estão em condições animalescas, sem
nenhuma atenção séria, de modo geral, do Poder Executivo, havendo
inúmeras fugas e crimes cometidos pelos fugitivos ou por aqueles que
conseguiram progressão de regime ou estão em liberdade condicional.
Assim, seria até ilusão pensar em tratamento diferenciado a presos em
Cadeias Públicas ou em Penitenciárias, como lembra o art. 15 da lei em
análise.
Por outro lado, propõe:
A falta de estrutura, obviamente, impedirá a realização da intenção da Lei, o
que é uma lástima, mas com a previsão legal, os operadores jurídicos, com
criatividade e até com muita sabedoria, saberão manter afastados os
colaboradores dos demais presos (certamente taxados de “traidores”, o que
para o “Código Penal Informal” dos presos merece até a morte), até mesmo
porque interessará à autoridade policial e à judicial a preservação do
colaborador, para desvendar o crime.
Vale mencionar, nesse contexto, que carecemos de um Programa
específico para proteção dos réus colaboradores, enquanto os condenados se
encontram sob o cumprimento de pena privativa de liberdade e também os
indiciados ou
acusados
sob prisão
cautelar, em
qualquer de suas
modalidades.
O dispositivo legal em comento, em seu Art. 1º, preceitua que as medidas de
proteção dos Programas devem ser requeridas por vítimas e testemunhas de crimes
que estejam coagidas ou expostas a grave ameaça em razão de colaborarem com a
investigação ou processo criminal.
O conceito de vítimas adotado, conforme lecionou Valdênia Brito (2001, p.
17), advém da Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Delitos
e de Abuso de Poder, resolução da Assembléia Geral da ONU n.º 40/34 de
novembro de 1985, a qual reconhece que no vocábulo ‘vítima’ estão incluídos,
também, quando apropriado, os familiares ou pessoas dependentes que tenham
relação imediata com a vítima e as pessoas que tenham sofrido danos ao intervir
para dar assistência à vítima em perigo ou para prevenir a ação danosa.
44
Por outro lado, em seu Art. 2º, § 2º, a mesma Lei apenas exclui da proteção
do Programa os indivíduos cuja personalidade ou conduta sejam incompatíveis9
com as restrições de comportamento exigidas pelo Programa, os condenados que
estejam cumprindo pena e os indiciados ou acusados sob prisão cautelar, em
qualquer de suas modalidades.
Com relação aos requisitos personalidade e conduta compatíveis com as
restrições de comportamento exigidas pelo Programa, o sentido é o de preservar a
própria rede de proteção, que, nos moldes do PROVITA, se garante a segurança de
todos os seus integrantes (membros das Entidades Gestoras, Equipes Técnicas,
Conselhos Deliberativos e os próprios usuários) mediante o sigilo.
Entendemos que havemos de nos cercar de cautela maior quando lidamos
com casos de pessoas que participaram ativamente de uma organização criminosa,
anteriormente à admissão na proteção. O sentido desse cuidado é o de entender
qual sua participação nos crimes denunciados e qual sua relação com os co-autores
e partícipes neste(s) crime(s), vez que não podemos olvidar a importância de
resguardar a rede protetiva, que, no modelo brasileiro, se baseia principalmente no
sigilo acerca das informações relevantes. Cabe esclarecer, outrossim, que não
podemos excluir a possibilidade de alguma organização criminosa tentar “infiltrar”
um de seus participantes, visando obter informações sobre o funcionamento do
Programa, na tentativa de localizar um outro delator do grupo!
Costumo pontuar que não há possibilidade de proteger nenhuma pessoa se
não houver implicação efetiva por parte dessa própria, na medida em que se ela não
adere à proposta do Programa, se colocará em situações de risco, podendo expor
não somente a si, mas a outras pessoas que dependem do Programa para garantir a
sua integridade física e psicológica.
9
Nesse sentido, cabe trazer à baila a lição de Suely Almeida: “Um dos aspectos problemáticos da Lei
9.807/99 diz respeito ao artigo 2º, parágrafo 2º, que afirma: [...], o que dá margem ao enquadramento
(por parte das equipes) das diferenças (concernentes aos ‘beneficiários’) em esteriótipos que são
constitutivos das desigualdades sociais, o que, no limite, pode aprisionar ainda mais – aqueles que já
vivem presos a normas, vigilâncias e disciplinamentos às visões de mundo dos jovens profissionais
engajados na luta pelos direitos humanos.” (ALMEIDA, 2001, p. 13)
45
É preciso, portanto, que o sujeito que requer proteção tenha consciência do
risco a que está exposto e adote uma postura coerente com essa situação, evitando
situações de exposição.
As regras do Programa são trabalhadas junto aos usuários pelas Equipes
Técnicas, desde o primeiro momento em que entram em contato, através do
procedimento de Triagem e, após sua manifestação de vontade favorável ao
ingresso no Programa, é assinado um Termo de Compromisso, onde constam as
cláusulas mútuas do “contrato” estabelecido entre a Entidade Gestora do Programa
e os usuários.
Assim, devemos registrar que a permanência no Programa é voluntária, ou
seja, a qualquer momento, pode haver desistência por parte do protegido, o qual
será advertido de que não será comportada uma nova solicitação de inclusão no
PROVITA, após seu desligamento voluntário (o que exporia o Programa a uma
grande instabilidade).
Por outro lado, caso haja uma sistemática violação das regras presentes no
Termo de Compromisso, abre-se o indicativo de exclusão por quebra de normas
do(s) usuário(s) em questão, que será apreciado, mediante um cuidadoso estudo,
pelo Conselho Deliberativo.
Vale repisar, contudo, que:
[...] Tal exclusão não trará prejuízo a eventual prestação de medidas de
preservação da integridade física desses indivíduos por parte dos órgãos de
segurança pública.
Isto significa que o Estado é provocado a criar outras alternativas10 para a
proteção dos(as) que não se dispõem a assumir o comportamento exigido
daqueles(as) que vêm a fazer parte da Proteção especial, a qual é cercada de
10
A título de contribuição, podemos citar: a destinação de recursos para abrigamento/moradia em
locais seguros, de acordo com a especificidade de cada caso; fornecimento de suporte psicológico e
social; acompanhamento de equipes especializadas; ajuda financeira para o deslocamento para
outros locais indicados pelo(a) próprio(a) requerente.
46
regras bastante rígidas, que somente podem ser “flexibilizadas”, mediante um
rigoroso estudo das instâncias do Programa, caso a caso.
Nesse passo, a Lei 9.807/99, mesmo delimitando a proteção do Programa a
vítimas e testemunhas, deixou, em seu Art. 2º, § 2º, digamos, parâmetros de
ordem objetiva e subjetiva para o ingresso no Programa, que não ficam adstritos a
tais “categorias”, até mesmo porque, no bojo desse mesmo diploma legal, no
capítulo seguinte, tratar-se-á da figura do réu colaborador.
Assim, com relação ao réu colaborador agraciado com o perdão judicial, por
um lado já beneficiado com a concessão da extinção da sua punibilidade, pelo outro
não deve ficar desamparado das medidas previstas no Art. 7º, não havendo óbice,
inclusive, em pleitear o seu ingresso no próprio Programa, evidentemente, dentro
dos critérios legalmente estabelecidos.
Fernando Capez (2002, p. 502) conceitua perdão judicial como: “causa
extintiva da punibilidade, consistente em uma faculdade do juiz de, nos casos
previstos em lei, deixar de aplicar a pena, em face de justificadas circunstâncias
excepcionais”.
Conforme se pode notar:
Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o
perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que,
sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a
investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha
resultado:
I – a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa;
II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada;
III – a recuperação total ou parcial do produto do crime.
Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a
personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e
repercussão social do fato criminoso.
Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a
investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na
recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação,
terá pena reduzida de um a dois terços.
47
Ao comentar o Art. 13, caput e incisos I, II e III, Pontes (1999), esclarece:
Deste dispositivo legal, podemos tirar algumas conclusões. A primeira é a
que diz respeito à primariedade. Primariedade não se confunde com bons
antecedentes, é bom dizer. Primário é quem, apesar de estar sendo
processado criminalmente, não tem qualquer sentença penal condenatória
transitada em julgado contra si. Relaciona-se com a reincidência que, ao
contrário, só existe quando transita em julgado a sentença penal
condenatória. Pessoa com bons antecedentes é aquela que, além de inexistir
indiciamento ou processamento, tem uma conduta social imaculada, cujo
comportamento demonstre que sua responsabilidade, honestidade e
comportamento são aceitos moralmente. Para receber o perdão judicial,
não é preciso ter bons antecedentes, mas deve ter o co-autor
personalidade adequada, além dos outros requisitos subjetivos adiante
mencionados. (grifos nossos)
O mesmo autor (PONTES, 1999) nos alerta para o fato de que a letra da lei,
ao se mencionar a localização da vítima com sua integridade física preservada se
referiria à recuperação da vítima, “que não tenha sofrido tortura, que não esteja
correndo risco de vida, que não tenha sido machucada significativamente etc.”, até
mesmo porque o legislador não chegou a fazer menção à preservação da
integridade psicológica, posto que, presume-se, estaria, abalada.
Arremata o lúcido advogado:
Portanto, para haver o perdão judicial, não é necessária apenas a
colaboração. Para a extinção da punibilidade é preciso que realmente seja
efetiva a colaboração e desde que tenha resultados significativos, além de
merecimento pessoal diante dos requisitos subjetivos. Para a redução da
pena, é necessária apenas a colaboração voluntária do co-autor, e nem
mesmo foi exigido [sic] requisitos subjetivos. (PONTES, 1999)
É prudente, ademais, destacar um trecho significativo de Pontes (1999):
Evidentemente que maior atenção exigirá das autoridades quando existirem
indícios de que o co-autor, na verdade, está blefando em alguma informação.
Poderá, claro, haver casos em que o participante indica local, nomes e
indícios falsos, com a intenção predeterminada de alcançar redução, sem,
contudo, a vontade efetiva de colaborar. Para autoridades experientes, talvez
seja fácil saber da má-fé dos co-autores, mas será sempre necessária uma
atenção especial, principalmente quando o co-autor já foi devidamente
esclarecido pelo advogado no que tange às benesses da Lei.
Em relação ao réu colaborador que tenha obtido redução da pena, mediante
colaboração voluntária com a Justiça, cabem algumas considerações, em face do
que já foi exposto, uma vez que, se forem submetidos à prisão, como já dito, estarão
48
condenados, isso sim, à pena de morte “extrajudicial”, caso não tenham acesso à
proteção efetiva.
Nesse sentido, cabe trazer à colação o comentário de Kobren (2006):
[...] seria interessante que o réu fosse condenado a cumprir a pena reduzida
em regime aberto, pois, desse modo, a proteção dar-se-á de maneira similar
à do que recebeu benesse do perdão judicial.
O que queremos chamar a atenção em relação a esse ponto é que já se vem
admitindo inclusões de usuários no PROVITA com envolvimento criminoso anterior,
que possuam pendências judiciais, mas que não estejam adstritos ao cumprimento
em regime de prisão, ou seja, admitem-se casos onde a execução da pena seja em
sistema aberto, livramento condicional, medidas restritivas de direito (excetuada a de
limitação de finais de semana) etc., mesmo que não seja o processo criminal que
ensejou sua inclusão no Programa, na qualidade de réu colaborador. Assim,
mediante essa interpretação legal, podem ingressar vítimas, testemunhas, réus
colaboradores que possuam pendências jurídicas de execução penal.
É preciso advertir, entretanto, que isso não significará colaborar com a
impunidade desses usuários, posto que vimos sendo desafiados a proporcionar o
cumprimento destas medidas, mesmo sendo inseridos no Programa, de forma que a
orientação tem sido de se dirigir às autoridades judiciárias do local aonde estiverem
alocados, mediante procedimento que garanta o sigilo.
Ademais, cabe outra ressalva em relação aos réus colaboradores presos,
posto que não existe impedimento para que suas famílias sejam, desde já, incluídas
no Programa, a fim de garantir sua proteção, enquanto não se viabiliza a inclusão
dos próprios.
Finalmente, em relação a integrantes do próprio aparelho coercitivo do
Estado, isto é, policiais civis, militares, bombeiros militares, militares das Forças
Armadas etc. não existe óbice para a sua inclusão no PROVITA, desde que
cumpridos os requisitos legais, como qualquer cidadão.
49
De outro giro, com a criação do Programa de Proteção aos Defensores de
Direitos Humanos (PPDDH), existe a possibilidade de que estes sejam direcionados
a esse Programa específico, a depender do caso.
Por derradeiro, a respeito do tratamento legal do tema, também, podemos
fazer referência ao Capítulo III, que se refere ao Interrogatório do Acusado, bem
como aos Capítulos IV e VI, respectivamente, atinentes à Confissão e às
Testemunhas, todos estes do Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689/41).11
A
respeito
da
conceituação
em
relação
à
prova
testemunhal,
à
obrigatoriedade de depor e à importância de sua preservação, indicamos a leitura de
Machado (2006, pp. 7-17).
Frize-se, oportunamente, que, a despeito das questões formais do processo
penal, há que se alcançar o propósito constitucional maior, de resguardo à dignidade
da pessoa humana. Buscamos, desse modo, como já dito, transpor uma tradição
que enxerga a testemunha como um mero meio de prova, assumindo o árduo
desafio de trabalhar, concomitantemente, na proteção, as questões atinentes à
cidadania, junto a esse sujeito de direitos, que, em outro momento, participou de
atos tidos como reprováveis perante a sociedade. Trata-se do sentido pedagógico
da atuação da Equipe Técnica Interdisciplinar do Programa, junto aos usuários.
De qualquer sorte, a rigor, entendemos que o propósito principal da Lei
9.807/99 vem se concretizando, gradativamente, qual seja a superação da
impunidade em casos, em sua maioria, de crimes de elevado potencial ofensivo
contra a sociedade.
11
Para evitar maiores digressões, consubstanciados no objetivo desse estudo, optamos por apenas
citar alguns dispositivos da fonte processualista penal que se referem diretamente ao tema ora
tratado.
50
6. A POLÊMICA EM TORNO DO INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA
6.1.
CONTEXTUALIZAÇÃO
DA
ABORDAGEM
DO
TEMA
DA
DELAÇÃO
PREMIADA
Diversos autores discorrem sobre a delação premiada, no Direito brasileiro,
dentre os quais destacamos: Pontes (1999), Jesus (2005) e Kobren (2006).
Damásio de Jesus (2005) conceitua da seguinte forma:
Delação é a incriminação de terceiro, realizada por um suspeito, investigado,
indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório (ou em outro ato). ‘Delação
premiada’ configura aquela incentivada pelo legislador, que premia o delator,
concedendo-lhe benefícios (redução de pena, perdão judicial, aplicação de
regime penitenciário brando etc.).
Gimenez (2003) aborda a previsão legal desse instituto jurídico, em diversos
diplomas legais, no Brasil. Senão vejamos:
No sistema penal codificado brasileiro, tendo como fundamento o “estímulo à
verdade processual” (Exposição de Motivos da Lei 7.209/84), está prevista a
“confissão espontânea” (CP, art. 65, III, “d”) como circunstância atenuante.
Com a evolução dos tempos e aumento da criminalidade, cada vez mais
sofisticada, aos poucos se foi introduzindo “delação premiada” como forma
de estímulo à elucidação e punição de crimes praticados em concurso de
agentes, de forma eventual ou organizada, como se vê em diversos textos,
como § 4º, do art. 159, do Código Penal, com redação dada pelas Leis n.ºs
8.072/90 e 9.269/96; § 2º, do art. 24, da Lei n.º 7.492/86, acrescentado pela
Lei 9.080/95; par. Único do art. 16, da Lei 8.137/90, acrescentado pela Lei n.º
9.080/95; art. 6º, da Lei n.º 9.034/95 e § 5º, do art. 1º, da Lei n.º 9.613/98).
Inicialmente, chegamos a entender que seria dispensável abordarmos acerca
do instituto da delação premiada, em função de que vem sendo tratado de forma
exaustiva por parte de vários doutrinadores e acadêmicos na área do Direito.
No entanto, em seguida, percebemos que seria apropriado tratar desse tema
em um capítulo específico, em função de sua abrangência e das contribuições que
traria em relação à discussão que ora propomos. Existem alguns aspectos do
referido instituto e sua operacionalização no sistema jurídico brasileiro que serão
importantes para chegarmos à abordagem central deste trabalho, de forma que se
51
associa a concessão de qualquer tipo de “benefício” aos réus colaboradores ao
estabelecimento de privilégios/regalias aos mesmos.
Assim, como poderemos notar, muitos dos discursos produzidos em torno do
instituto da delação premiada parecem nos revelar, de forma bastante contundente,
uma linha que afirma não ser ético ou moral que o Estado conceda diminuição de
pena e, muito menos, perdão judicial àquele que tenha participado ativamente de
uma empreitada criminosa e tenha decidido colaborar com a justiça, fornecendo
informações que propiciem a desarticulação da organização criminosa da qual fazia
parte.
Neste norte, seria interessante traçarmos um breve paralelo entre algumas
posições favoráveis e outras contrárias ao instituto da delação premiada, com a
finalidade de analisar, em seguida, seu conteúdo e os rebatimentos das mesmas.
6.2. POSICIONAMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS À APLICAÇÃO DO
INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA NO DIREITO BRASILEIRO
Um dos primeiros artigos encontrados a tratar do tema, tem como título: “Lei
de proteção: às testemunhas ou aos criminosos?”. Nele, Pereira (1999) propõe um
tópico “Da proteção aos criminosos”, onde, após abordar alguns dispositivos da Lei
9.807/99, argumenta que se trata de uma situação iníqua, em função de que o
Estado
teria
reconhecido
sua
“incompetência
para
investigar
e
punir
a
criminalidade”.
Expressa , ainda, sua discordância ao afirmar que, se houver vontade do
“criminoso” de delatar seus comparsas, indentificando-os e indicando a localização
da vítima ou do produto do crime, “receberá a clemência do Estado, ficando
impune”.
Quanto à
apreciação
discricionária
do
juiz acerca
dos
termos
personalidade do beneficiado, natureza das circunstâncias, gravidade e repercussão
social do fato criminoso, comenta:
[...] deixar à apreciação de uma única pessoa um critério que poderá deixar
impune criminoso tão perigoso à já indefesa sociedade é critério dos mais
temerários. Vemos, aliás, nos dias de hoje, uma escalada de doutrinadores,
52
jurisprudência e demais aplicadores do Direito Penal, de cunho
extremamente legalista e absenteísta, que parecem viver de controvérsias
doutrinárias surgidas dos novos diplomas legais e de elaboração de teses
“pro reu”, ou talvez melhor “pro crimine” ou “anti societate”. (grifos nossos)
Fazem isso talvez, sem pensar que amanhã poderão ser as próximas
vítimas. (grifos nossos)
E o referido autor termina seu texto a dizer: “[...] uma coisa há de se
reconhecer na lei que se comenta: logo que for conhecida no ramo criminoso,
teremos uma nação de colaboradores.”
Em “Delação premiada: o dilema ético”, Boldt (2005) reserva um tópico
denominado “Traição e sociedade” para discorrer sobre o assunto, onde faz
referência ao que seria um dos maiores atos de traição da história: o de Judas
Escariotes, que seria, no seu discurso, “uma das figuras mais desprezíveis”. E
propala: “Somente nós, seres humanos, temos a capacidade de estabelecer
relações com base na confiança, demonstração que é de segurança íntima, crédito,
esperança em alguém ou em algo”. Nesse diapasão, sem confiança, “toda a
estrutura social poderia ruir, pois, não obstante a manutenção de interesses
pessoais e do medo, estes não seriam suficientes para a manutenção de uma
sociedade coesa e harmômica”.
Para Raphael Boldt (idem):
Mais do que um instrumento de desintegração social, a delação – e, por
conseguinte, a traição – é, sob a perspectiva da ética, um desvalor, contrário
em sua essência à concepção de vida moral fundada na dignidade da pessoa
humana.
Aduz, outrossim:
Qualquer tipo de apologia à perfídia é, ao nosso ver, uma agressão aos
objetivos expostos no preâmbulo de nossa própria Constituição Federal, isto
é, um atentado à construção de um Estado democrático, destinado à
consolidação de uma sociedade fraterna, fundada na harmonia social e
pautada em valores como a justiça, a segurança e o bem-estar.
Em outro trecho, questiona:
53
[...] Ao oferecer ao delator criminoso a faculdade de obter uma pena extinta,
mediante a “traição” de seus convivas, não estaríamos institucionalizando a
perfídia e gerando uma sensação de insegurança? (grifos nossos)
Já Moreira (2005), comenta:
Diante dessa sombria constatação, como se pode exigir do governado um
comportamento cotidiano decente, se a própria lei estabelecida pelos
governantes, permite e galardoa um procedimento indecoroso? Como fica
o homem de pouca ou nenhuma cultura, ou mesmo aquele desprovido de
maiores princípios, diante dessa permissividade imoral ditada pela própria
lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeitada e cumprida, sob
pena de sanção? Estamos ou não estamos diante de um paradoxo? (grifos
nossos)
Esse mesmo autor pontua:
Entendemos que o aparelho policial do Estado deve se revestir de toda uma
estrutura e autonomia, a fim de poder realizar o seu trabalho a contento, sem
necessitar de expedientes excusos na elucidação dos delitos. O aparato
policial tem a obrigação de, por si próprio, valer-se de meios legítimos para a
consecução satisfatória dos seus fins, não sendo necessário, portanto, que
uma lei ordinária use do prêmio ao delator (crownwitness), como expediente
facilitador da averiguação policial e da efetividade da punição. (grifos nossos)
Por derradeiro, acentua:
Não podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer que
seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos à
promiscuidade da ordem jurídica corrompida, pelo que procuramos,
sucintamente, neste trabalho, condenar [!!!] a delatio premiada introduzida
em nosso Direito Positivo. (grifos do original)
Segundo Marcão (2005), a delação premiada é um “mal necessário”,
justificando que, “embora a legislação esteja sujeita a críticas variadas, a intenção
revelada é positiva”. E registra:
Em si mesma, premiada ou não, a delação dá mostras da ausência de freios
éticos; pode apresentar-se como verdadeira traição em busca de benefícios
que satisfaçam necessidades próprias em detrimento do(s) delatado(s),
conduta nada recomendável tampouco digna de aplausos.
Renato Marcão (2005) preleciona, ainda:
Em relação à delação premiada, o que se vê é seu surgimento quando há
desajuste entre os envolvidos; quando um se sente prejudicado pela
persecução penal (em sentido amplo) e desamparado pelo(s) comparsa(s). O
54
desespero, a simples intenção de beneficiar-se, ou ambos, constitui o mote
da delação. Não há qualquer interesse primário em colaborar com a Justiça;
não há qualquer conversão do espírito e do caráter para o bem; não há
preocupação com o que é realmente justo e verdadeiro; não há, enfim,
motivo de relevante valor moral para a conduta egoísta. Porém, dela se vale
o Estado na busca da verdade real, dela se utiliza a Justiça na busca de sua
finalidade mediata: a paz social.
Aduz, outrossim:
Com suas vantagens e desvantagens, a delação premiada vem sendo usada
largamente, e muitas vezes com pouco ou nenhum critério técnico, tanto que
se tem notícia de vários casos em que houve delação premiada, porém nada
ficou documentado visando a “segurança do delator”, e exatamente por isso
nada foi comunicado nos autos do processo criminal a que se vê submetido,
apesar do êxito das investigações realizadas a partir da delação. Em
conseqüência, muitos delatores acabam colaborando com as
investigações e depois não recebem os benefícios inicialmente
apresentados na barganha que envolve a pretensão punitiva, a revelar,
mais uma vez, condenável violação ética patrocinada pelo Estado, verdadeiro
estelionato. De tal situação também decorre a necessidade de se pensar
sobre a incidência dos efeitos da delação premiada em sede de execução
penal. (grifos nossos)
[...]
A propósito do tema é interessante frisar ainda que muitos dos envolvidos em
investigações que passam por delitos extremamente graves, se dizendo
inocentes, postulam a delação premiada, situação que está por impor
profunda reflexão.
No entendimento de Santos (2005):
[...] a atual aplicação e eficácia deste instituto passam por questionamentos
próprios de uma sociedade cada vez mais complexa, principalmente
quando se lida com pessoas que, naturalmente, não são clientes do
Direito Penal e as condições as quais essas informações são obtidas
pelo Estado. (grifos nossos)
Citando Habermas, nos ensina:
[...] para não perder de vista que “... uma nação lida com a criminalidade em
massa de seu regime anterior diferentemente da outra. Conforme a
experiência histórica e a autocompreensão coletiva, elas optam pela
estratégia do perdão e do esquecimento ou pelo processo de punição e
recuperação da memória (...) considerando essas questões ético-políticas,
vale a sentença ‘outras culturas, outros costumes”. (HABERMAS, Jüngen. O
futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannisi. São Paulo: Martins Fontes,
2004, pp. 55).
Pontes (1999) reflete:
55
O Brasil tem algo de especial que necessita efetivamente de um programa
sério como está explícito na “mens legis”. O povo brasileiro, apesar de
pacífico, tem grande potencialidade de colaborar com a Justiça Penal, e só
não colabora por razões óbvias (medo, pavor, constrangimento, falta de
segurança, presença do “Estado-bandido” ao invés do Estado de Direito em
algumas localidades, poder do crime organizado etc.). Não é à toa que
percebemos que existe uma maior conscientização (apesar de ainda
pequena, é bem verdade) de que o Estado não conseguirá, sozinho realizar o
bem comum, necessitando da ajuda da população. Os “braços cruzados” do
membro da sociedade estão cada vez mais sendo considerados com
símbolos de co-autoria pelas misérias, de co-responsabilização pela falta do
bem comum.
Defende, com ênfase:
Não há argumentos para a não efetivação da novel legislação. Até o
argumento, absurdo, de que o investimento na investigação criminal “não dá
voto”, não tem um mínimo de base política. A sociedade, em função da
grandiosidade da criminalidade, quer e está atenta para os governantes que,
mesmo não se esquecendo de que se deve instruir as crianças para não
punir os homens, não guardam esforços para que a impunidade não seja um
sentimento incorporado na consciência popular brasileira. Dá voto sim, e
como dá. Mais que voto, dá também coragem ao povo de confiar no sistema
burocrático estatal para buscar a punição dos culpados e, assim, acaba por
se firmar, na mesma consciência popular, a valorização do crime em
detrimento da sua banalização, e a impor freios psicológicos e materiais à
atividade criminosa. (destaques do original)
Azevedo (1999 apud KOBREN, 2006), em seu preclaro comentário, registra:
Oportuna, portanto, a legislação brasileira, que se põe na linha de frente da
política criminal orientada de um lado na proteção dos direitos da vítima e de
outro no âmbito da efetividade da persecução penal na prevenção e
repressão de graves formas delituosas, cujo deslinde depende, e em muito,
da efetiva colaboração da vítima, do destemor das testemunhas e, também,
da eficaz e eficiente colaboração dos co-autores e partícipes. (1999, p. 05/06)
[...]
O perdão judicial e a diminuição da pena previstos na nova legislação
embebem-se de eticidade, não se constituindo num desprestígio ao direito
punitivo, nem numa barganha sombria do Estado com o criminoso para a
busca e soluções fáceis para a investigação penal e para o processo penal à
custa e sacrifícios de princípios morais.
Kobren (2006) recomenda cautela no recebimento da delação, alertando para
alguns critérios citados por Silva (1999) e consagrados na jurisprudência para a
validade das palavras do co-réu delator:
a) verdade da confissão; b) inexistência de ódio, em qualquer das
manifestações e c) inexistência de atenuação ou mesmo eliminação da
própria responsabilidade (SILVA, 1999, p. 05)
56
Damásio de Jesus (2005) indica:
O mesmo raciocínio deve ser aplicado à “delação premiada”: não se pode dar
a ela valor probatório absoluto, ainda que produzida em juízo. É mister que
esteja em consonância com as outras provas existentes nos autos para
lastrear uma condenação, de modo a se extrair do conjunto a convicção
necessária para a imposição de uma pena.
Juliana Kobren (2006), em seu trabalho, defende:
Realmente, o Direito Penal, é imprescindível ao controle social, mas é
verídico que atualmente as penas não mais satisfazem suas razões e,
por isso, tem que ser reconhecida a relevância da doutrina da
intervenção mínima, para a qual o Direito Penal só deve intervir nas
questões socialmente mais relevantes. (grifos nossos)
Conclui a cuidadosa autora:
[...] mesmo diante das imperfeições ainda existentes, o Programa de
Proteção tem surtido os efeitos almejados, ou seja, vem encorajando, de
maneira tímida, os indiciados, acusados ou sentenciados, a delatar e
colaborar no desmantelamento das organizações criminosas, garantindo,
assim, a segurança de pessoas ameaçadas ou coagidas por colaborar em
processos criminais.
Feito esse recorte dos debates doutrinários a respeito dos usos da delação
premiada e suas repercussões, temos a oportunidade de partir para uma breve
análise a respeito dos mesmos.
6.3. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DAS DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS EM
TORNO DO INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA E SUAS REPERCUSSÕES
Muitos dos autores que se colocam de maneira contrária ao referido instituto
parecem fazê-lo de maneira “apaixonada”, indignada, sob um discurso carregado de
um viés que consideramos demasiado moralista e, nesse sentido, cabe, nesse
momento, expormos alguns contra-argumentos em relação a tais posicionamentos.
Logo de início, nos perguntamos se não é ético propor meios para que se
alcance a responsabilização penal em relação à criminalidade organizada, de forma
que
nos
parece
contraditório
defender
que
o
Estado
“premiaria”
o
“delator”, contribuindo com sua impunidade, quando, na verdade, sem lançar mão
57
desse expediente, em muitos casos, estaríamos negligenciando que a verdade real
venha a emergir na persecução criminal.
Para ser mais claro, recorreremos às referências teóricas de Kobren (2006),
quando assinala que:
Muitas vezes, devido à estrutura hierárquico-piramidal das organizações
criminosas, o investigado ou acusado detido não sabe quem é o chefe, o que
mor das vezes está bem situado na sociedade e não “suja as mãos” (BLAT,
2003, p. 31), mas tem conhecimento de quem são seus superiores imediatos.
Assim, pela colaboração do criminoso, o Estado poderá romper a
estrutura de maneira gradativa, coisa que não conseguiria sem o auxílio
face à estrutura de teia apresentada pelas organizações criminosas.
(grifos nossos)
Nesse contexto, nos afiliamos ao entendimento citado por Santos (2005), na
medida em que o mecanismo da delação premiada, associado à proteção efetiva ao
réu colaborador tem permitido que o Estado venha a incidir sobre crimes, antes,
quase insolúveis, em função da complexidade das organizações criminosas, que
envolvem pessoas de alto poder aquisitivo.
Daí porque entendemos que a reação de diversos setores da sociedade não
se cinge, simplesmente, a uma possível idéia preconceituosa em torno do “criminoso
delator”, mas vai além disso, pois se configura efetivamente em uma defesa das
elites que, historicamente, se apropriaram do aparelho estatal em benefício próprio,
cometendo toda sorte de ilícitos, num cenário já muito conhecido pelos cidadãos e
que, até então, não dava sinais de poder ser superado.
Ao falar de regimes de “traição” e “perfídia” em regimes autoritários ou
totalitários, parecem querer desnaturar a legitimidade do uso deste instituto em uma
sociedade democrática, que se encontra na busca de instrumentos eficazes para o
combate à impunidade e à corrupção, mecanismos esses, como já tratado em
capítulo anterior, que são utilizados por outros países e recomendados a todos
aqueles que são signatários da Convenção de Palermo (já vigente no ordenamento
jurídico brasileiro, desde 2004).
58
Perquirimos, ademais: de que ética podemos falar entre integrantes de um
grupo criminoso, de forma que revelar os “segredos internos” de seus “convivas”
pudesse ser condenável e ser considerado enquanto quebra da “confiança”
estabelecida entre os participantes de empreitadas criminosas? Que lei se
estabelece entre esses a não ser a barbárie?
Ao falar de que esse mecanismo traria “insegurança” para a sociedade, nos
questionamos: para que grupo da sociedade? Ao que responderíamos: àqueles que
estivessem envolvidos com a prática de crimes, mediante associação.
Como expõem alguns autores, ao tratar do tema, de forma clara, a proteção
ao réu colaborador e a sua família e seu incentivo à colaboração, mediante a
formalização de um acordo de delação premiada, se constituem em instrumentos
eficazes de quebrar a “lei do silêncio” vigente entre aqueles que possuem
participação em crimes.
Justamente por isso, cremos cair por terra o argumento recorrente de que,
dessa forma, o Estado estaria demonstrando a sua incapacidade de utilizar outros
meios para garantir a responsabilização criminal dos que comentem crimes em
associação.
Como reforça Kobren (2006):
Ademais, a colaboração premial não demonstra a inutilidade do Estado
brasileiro no combate ao crime, pois constitui uma tendência atual em
matéria de investigação e repressão criminal. Importante, porém, citar que
devido à estrutura complexa apresentada pelas organizações criminosas, a
delação premiada trata-se de instrumento de altíssima relevância na
identificação dos membros da organizações, de sua maneira de atuar, enfim,
no desmantelamento das associações delituosas.
Algo muito recorrente nos autores estudados, que não citamos aqui, diz
respeito ao entendimento de que o Programa de Proteção, regrado pela Lei
9.807/99, destinaria-se somente a vítimas e testemunhas, excetuando-se os réus
colaboradores, aos quais se destinariam apenas as medidas para garantir sua
segurança no cárcere e não haver possibilidade de proteção aos seus familiares.
59
Esse ponto já foi esclarecido anteriormente, ao tratarmos, especificamente, dos
aspectos legais nacionais, sendo certo que não procede, concretamente.
60
7. RÉUS COLABORADORES: DEFESA DOS DIREITOS DE “BANDIDOS”?
7.1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA ABORDAGEM DO TEMA
Como percebemos, através da abordagem dos dois capítulos anteriores, a
figura do “réu colaborador” da justiça, com o advento da Lei 9.807/99, vem sendo
utilizada como meio mais eficaz no combate à criminalidade, devido ao fato de que,
freqüentemente, é a “testemunha” mais eficaz no conjunto probatório, pois dispõe,
na maior parte das vezes, de informações privilegiadas em relação às demais
testemunhas arroladas.
Vimos, também, que, ao proteger aquele que se propõe a colaborar com a
justiça - o qual evidencia os meandros do grupo criminoso do qual participou –
estamos contribuindo para a modificação da crença na impunidade, não deixando de
perceber que se trata de uma realidade histórica complexa, que também só será
superada através de diversas alternativas para privilegiar a construção de um
verdadeiro Estado Democrático de Direito, ao longo dos anos.
Neste momento, creio ser oportuno recorrer a análises mais gerais acerca do
imaginário social em torno da figura do “bandido”, “criminoso” e o discurso que
pulula no senso comum, associando a defesa dos direitos humanos ao
estabelecimento de privilégios para esse grupo social, para entender de que
estamos tratando.
Dedicaremos, portanto, especial atenção a esse capítulo, onde pretendemos
discutir, mesmo que de forma, ainda, superficial, algumas das representações
sociais que surgem a partir da associação do cometimento de um crime a
qualidades pessoais que significariam um/a risco/ameaça para a sociedade.
Nesse sentido, é preciso mencionar que, ainda, é comum notarmos grande
resistência (manifesta ou velada) despertada, principalmente, nas Equipes Técnicas,
em certos casos, a respeito do trabalho com réus colaboradores.
Percebemos, muitas das vezes, que as Equipes Técnicas se sentem
61
desprotegidas, desamparadas ou despreparadas – no sentido de não possuírem
instrumentos para sua defesa, por não trabalharem com o uso de armamento, o que,
muitas vezes, coloca em discussão a necessidade ou não da adoção de um modelo
diferenciado de proteção para réus colaboradores.
7.2. INFLUÊNCIA DO MEIO NA FORMAÇÃO DO SUJEITO.
Partindo-se de uma interpretação pela qual o indivíduo e a sua subjetividade
resultam de relações coletivas marcado por inúmeros fatores, sejam eles sociais,
econômicos, culturais, ambientais, antropológicos, há a definição de uma relação
estreita entre a construção de um sujeito não passivo, que se constrói e é construído
pelas relações com o outro e por tudo o que existe para as determinações de valores
sociais, principalmente, pelos ordenamentos normativos que orientam a noção de
bem/mal, justo/injusto, certo/errado, etc. Entretanto, essa influência não se dá
uniforme e nem de maneira homogênea pelo fato de que recebemos influências, em
diversos níveis, de nosso contexto social, o qual se constitui como uma realidade
dinâmica.
De tal forma, devemos perceber que, como expusemos no capítulo que trata
do desafio da atuação profissional, a partir do paradigma da complexidade, também,
nós sofremos diversas influências do meio social que nos cerca, atuando,
fundamentalmente, baseados em nossos princípios, valores, medos e visões
pessoais.
Devemos atentar, essencialmente, para o fato de que:
A política de segurança hoje pode ser entendida como política simbólica que,
através de conceitos como “erradicação da violência”, “medo da
criminalidade” e “luta contra o crime”, tenta produzir dentro da sociedade
insegurança e legitimar a repressão por parte do Estado. (SABADELL, 2000
apud LEAL, 2005)
Yvana Barreiros (2006), recorrendo às lições de Alessandro Baratta (s/d), nos
fala, de forma reveladora, sobre os papéis sociais e a aplicação da pena:
62
[07]
Segundo Alessandro Baratta
, as relações sociais guardam ampla
complexidade, porque apresentam dimensões diferentes, uma de natureza
material e outra simbólica. Os papéis sociais (elementos simbólicos das
relações sociais) condicionam os elementos materiais da aplicação do direito
penal. Há critérios valorativos que se posicionam na esfera do simbólico, e há
características etiológicas determinantes para a atuação do direito. São
critérios que condicionam um maior ou menor rigor na aplicação do direito.
Esses critérios podem ser entendidos como meta-regras que conduzem a
aplicação das regras, aumentando ou diminuindo a carga ideológica de que a
regra já é originariamente imbuída. Essas meta-regras têm uma essência
transversal, fundando-se em certos valores socialmente aceitos ou
rejeitados. São valores que povoam o imaginário social e se fazem
representar nos vários discursos formadores da concepção de mundo
em um certo contexto histórico-social. Esses valores situam-se em várias
esferas, atuando de um modo tão implícito que, por vezes, chegam a parecer
inerentes à própria natureza humana. Por exemplo, ser negro e pobre é algo
que se apresenta como um desvalor social na concepção ideológica
dominante, enquanto ser um jovem com bom poder aquisitivo divertindo-se
na praia com um som em alto volume é visto como um leve excesso da
juventude, tanto mais aceitável quanto mais abastada a classe à qual
pertença esse jovem. Essa valoração está implícita em todo o corpo social
(vale ressaltar: inclusive entre as classes economicamente “inferiores”, posto
que elas também estão imbuídas da ideologia dominante), refletindo-se no
rigor maior ou menor com que a lei é aplicada em cada caso. (grifos nossos)
Cabe a nós chamar a atenção para a predominância, como no dizer de César
Barros Leal (2005, p. 42), de ações fomentadas pelo medo social, que se traduzem
em:
[...] um direito penal simbólico, retórico, desprovido de legitimidade, acolhedor
de propostas demagógicas antilibertárias (como, por exemplo, a pena de
morte, a prisão perpétua, a ampliação da lei dos crimes hediondos e a
redução da idade de responsabilização penal), que criam uma expectativa
fraudulosa [sic] de tranqüilidade e de segurança jurídica.
Esse mesmo autor reforça sua proposição, no trecho a seguir:
[...] é a [sic] execução da pena onde a seletividade do sistema se expõe sem
pejo em toda a sua exuberância, visto que – salvo casos excepcionais – tão
só os marginalizados, os miseráveis, os que não podem arcar com as
despesas de uma advocacia particular ou simplesmente pagar uma fiança,
ingressam e permanecem no cárcere, no qual não se recolhem “quase nunca
os agentes da criminalidade não convencional”, como proclama o insigne
professor Miguel Reale Jr., eis que a justiça, no mais das vezes, é “uma fera
faminta e discriminatória que morde o fraco, porém o poderoso sequer
arranha.” (LEAL, 2005, p. 43)
Teresa Caldeira (1991, p. 172) nos fornece uma leitura da realidade, através
dos resultados de sua pesquisa, que será crucial para nós. Dessa forma, poderemos
refletir sobre a costumeira associação entre a defesa dos direitos humanos a
“privilégios de bandidos” e seus efeitos na nossa sociedade. Senão vejamos:
63
A oposição aos direitos humanos, associada a um diagnóstico sobre a
desordem social, acaba originando sugestões de como recuperar essa
ordem ameaçada. Essas sugestões, defendidas com a mesma paixão
com que se afirma que bandidos são menos que humanos, vão hoje em
dia basicamente por dois caminhos não excludentes. De um lado, voltam-se
as costas ao Estado, visto como incompetente e defensor de
criminosos, e privilegia-se a privatização dos meios de prevenção da
violência. De um lado, defende-se cada vez mais com maior veemência o
uso da força física contra os prisioneiros e criminosos [...], ou seja,
exatamente o contrário da idéia de respeito aos direitos humanos e às
práticas democráticas. Argumenta-se que essa brutalidade é apenas
equivalente à brutalidade dos que passaram dos limites da humanidade. É
por aí que, além de ser contra o que se chama de “bons tratos” aos
criminosos, parcela considerável da população exige a pena de morte,
fecha os olhos para os abusos da polícia e o desrespeito aos direitos
humanos e apóia a Rota12, requer “dureza” contra os bandidos ou a sua
eliminação pura e simples, num discurso também altamente difundido. É
ainda nesse contexto que são apoiados os “justiceiros” que agem nos bairros
populares. Em suma, nesse processo parece que os criminosos são cada
vez mais colocados fora da humanidade e da sociedade, privatiza-se a
questão da segurança, e volta-se a legitimar o uso da força contra os
“desordeiros”. (grifos nossos)
Ao tematizar a violência urbana, Jorge Coelho Soares (2005, p. 122) nos dá
uma importante contribuição:
Superficialidade emocional, falta de empatia e compaixão, narcisismo
exacerbado, e grande capacidade de manipulação, deixam de ser defeitos e
passam a definir o perfil do “bem sucedido”, do self-made man, transformado
em objeto de identificação e inveja. Talvez se possa afirmar que hoje, como
nunca antes, o homem comum pode ser levado a se identificar com um
sociopata. No seu desengajamento emocional, na sua desumanização
crescente pela degradação de seus valores morais, na dissociação
fragmentada do seu corpo e de sua alma. (grifos nossos)
Nesse ponto, devemos partir para a reflexão central em torno do tema a que
nos propusemos: que tipo de construção sobre o sujeito temos quando falamos em
um tal “perfil criminoso”? Será que é necessário outro tipo de aparato de segurança
para se lidar com réus colaboradores? Que concepção temos de segurança e risco?
Essa expressão – “perfil criminoso” - seguramente acaba associada a uma
visão de que o “delinqüente” tem algo de patológico no seu comportamento, sendo o
delito algo anormal e atribuindo-se ao “condenado” a posição irremediável de errado,
nos dizeres de Miguel Reale Jr. (1985 apud LEAL, 2005, p. 46). As ironias de Reale
12
“Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar”, destacamento da Polícia Militar paulista.
64
Jr. podem nos abrir os olhos para as armadilhas que essa visão nos traz. O jurista,
nesse ponto, apresenta uma crítica relevante:
[...] mas o errado que filantropicamente o Estado recolhe e retira da liberdade
para lhe devolver depois ao seio social acomodado, transformado no bom
moço que será útil a todos nós que vivemos numa sociedade homogênea,
perfeita, coerente, desfeita de males, porque o mal, o mal está sendo desfeito
ao se transformar o condenado, que é o único mal.
É importante ir além, atentando para o fato de que esse tipo de aparato
ideológico é produzido, de forma velada, através dos meios de comunicação de
massa, em nossa sociedade. É o que nos alerta Sylvio Lourenço da Silveira Filho
(s/d), fazendo referência a Guareschi (2001):
A manifestação mais cruel dessa violência simbólica dos mass media é
identificada no processo de etiquetamento, de rotulação e na criação do
“esteriótipo criminoso”, pois os que detêm a comunicação chegam até a
definir os outros, definir determinados grupos sociais como sendo melhores
ou piores, confiáveis ou não confiáveis (...). Quem tem a palavra [e o domínio
da imagem] contrói identidades pessoais ou sociais.
E, ainda:
Os meios de comunicação de massa se encarrega(ra)m de introjetar na
consciência da população que a criminalidade é o problema mais significativo
da sociedade contemporânea ofuscando, assim, o paradoxo da política penal
neoliberal que pretende remediar com um “mais Estado” policial e
penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da
escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva dos países reféns
dessa política econômica. (WACQUANT, 2001 apud SILVEIRA FILHO, s/d)
Os teóricos citados acima nos fazem perceber a importância de um olhar
atento para a complexidade deste fenômeno social da criminalidade e produção de
violência,
renegando
afirmações
excessivamente
apressadas,
assim
como
leituras/explicações unidimensionais/simplistas.
7.3. DESAFIOS PARA A ATUAÇÃO PROFISSIONAL FRENTE A SITUAÇÕES DE
VIOLÊNCIA E AS ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO.
Mediante a abordagem teórica do ponto anterior, podemos ter maior clareza
das questões de fundo que permeiam nossa atuação profissional, de forma que
65
seremos capazes de, iluminados por esse conteúdo, nos debruçar sobre as formas
pelas quais esses mecanismos se expressam na mesma.
Ao abordar sobre a prática do modelo brasileiro, Márcia Conceição, Cibele
Silva e Nilda Turra (2001, p. 26) nos trouxeram um importante registro:
É importante ressaltar que a testemunha, ameaçada, naquele momento,
mais que relatar um acontecimento isolado de violência, é porta voz e
denuncia, de forma escancarada, um contexto social e político, onde a
violação dos direitos humanos é cotidiana. (grifos nossos)
Vale resgatar outro importante trecho da contribuição prestada pela reflexão
empreendida pelas aludidas profissionais:
A inserção da testemunha na rede de proteção supõe o acompanhamento
psicossocial e jurídico que possibilite a reconstrução de sua vida, e a
inserção em um outro espaço e rede social. Deverá a equipe multidisciplinar
[hoje, com a perspectiva interdisciplinar], além de minimizar as
conseqüências traumáticas da experiência vivenciada de violência, além de
promover a tranqüilidade e equilíbrio emocional garantidor de um testemunho
qualificado, com credibilidade e força suficiente para influir na decisão de um
processo, com conseqüências óbvias para o combate à impunidade, e uma
justiça mais eficiente, deverão ainda os profissionais possibilitar a adesão às
normas de segurança e uma intervenção minimizadora da dor das perdas e
das vivências de vítima.
Das exposições estudadas e analisadas que direcionam para reescrever a
história de pessoas protegidas (cuja essencialidade transita pela construção de
novos projetos de vida), suas possibilidades de efetivação passam pela necessária
existência de uma rede, de forma que consideramos como desafios:
a) entender o contexto de violência de forma não individualizada;
b) auxiliar na ressignificação da violência para a superação dos traumas
vivenciados;
c) favorecer o fortalecimento do indivíduo para o equilíbrio emocional, resgate
de auto-estima, superação do medo, adaptação ao novo ambiente,
assegurando-se a auto-confiança e confiabilidade no novo projeto de vida.
Tais desafios trazem para a prática e para o cotidiano dos Programas de
Proteção a necessidade de procedimentos permeados por uma escuta respeitosa,
66
receptiva e acolhedora, ante o processo e momento de angústia, confusão e
ansiedade dos/das interessados/as na proteção.
Além disso, a observância de tais pontos serve para que a Equipe Técnica
Interdisciplinar
do
PROVITA
tenha
clareza
acerca
das
dimensões
subjetivas/emocionais envolvidas no processo de análise de um potencial
acolhimento e, em outro momento, dá suporte no seu papel de promover e facilitar a
“adaptação” dos/as usuários às condições do Programa, bem como de auxílio na
construção de um novo projeto de vida com aquele(s) sujeito(s).
Na atitude de “sujeito aprendente” é que podemos estabelecer uma relação
essencialmente pedagógica com o usuário, na medida em que a transformação só é
produzida a partir de um “verdadeiro encontro”, é preciso se fazer permeável à
troca.
Nosso desafio é não se colocar numa postura de detentor do saber absoluto,
aquele que vai se pôr em relação ao usuário como o que ensina, sem nada buscar
aprender com o contato com aquele ser humano diante de si. Nessa sutileza das
relações, somos convidados a nos despir do poder do cientificismo e a adotarmos
uma atitude de maior humildade.
Em se tratando da transgressão das normas de segurança, uma coisa é
fundamental: de que adianta simplesmente proibir? Nossos pactos devem ser
firmados conhecendo a condição de cada um em lidar com as regras.
Todo o esforço que fazemos é no sentido de tentar tornar essa realidade
"mais humana", evitando assumir essa perspectiva dos dispositivos de controle. É
preciso desenvolver uma postura crítica, a partir de tantos dispositivos dessa
natureza que são encontrados na nossa sociedade e nas nossas instituições e
relações.
Contudo, não podemos abandonar a nossa "missão", que deve ter uma
intencionalidade, no trabalho técnico a ser desenvolvido junto ao(s) usuário(s), com
vistas à construção de um processo exitoso. E, nisso, devemos considerar o que já
67
comentamos, sobre não nos utilizarmos de um planejamento pré-definido, mas
levarmos em consideração a subjetividade de cada pessoa com a qual lidamos,
inclusive, tentando discernir qual o momento correto para uma intervenção mais
contundente, porém pedagógica.
As contribuições da Psicologia podem se destacar pela formatação dessa
política pública, que deve levar em consideração a realidade de seus/suas
usuários/as, de forma a serem vistos como sujeitos de direitos, a partir do papel na
investigação do psiquismo e suas imbricações com a conduta humana,
possibilitando maior conhecimento dos problemas para melhor identificação de uma
intervenção capaz de realizar a comunicação entre os diferentes elementos de
realidade de pessoas protegidas.
Nossa proposta de trabalho é pautada pelo princípio de que todo cidadão é
igual em direitos e não deve sofrer discriminação por qualquer condição que ostente
pessoalmente.
Nesse diapasão, cabe à Equipe Técnica Interdisciplinar trabalhar junto aos
usuários as questões relativas à cidadania e à subjetividade, de forma pedagógica,
realizando uma construção que é propiciada pela aproximação desse sujeito, com
sua história de vida, processo esse dinâmico e constante, do início ao fim da
inserção no Programa.
Tais abordagens assumem algo de mais concreto em se tratando do
acompanhamento com relação aos gastos públicos, na co-construção de um projeto
de autonomia com os usuários, da mesma forma com relação ao trabalho concreto
com as regras de segurança no cotidiano dos usuários, dando suporte para sua
adaptação.
Em meio a tais processos surgem diversos desafios, o primeiro deles é
desconstruir certas visões que formamos acerca das pessoas com as quais
trabalhamos, que se modifica sobremaneira quando partimos do estudo/avaliação da
documentação do caso para o contato direto com o sujeito, o qual, para além de
68
qualquer outra característica, carrega o fato de ser humano – em sua complexidade
subjetiva.
Essencialmente, atuar na área de Direitos Humanos, intimamente, requer que
nos alicercemos na possibilidade de transformação do ser humano, de forma que, só
assim, faz sentido nossa atuação junto aos usuários, buscando a re-significação dos
papéis sociais a que ficaram relegados, até então, com o fito de potencializar
mudanças na sua história de vida – fortemente marcada por um contexto de grandes
perdas, ausências, que redundam em dor/sofrimento. É preciso avançar do lugar de
vítima/credor(a) do Estado, que requer apenas reparação/compensação e partir para
a identificação dos recursos pessoais disponíveis para novos saltos de qualidade de
vida, ao seu tempo particular, sem esquecer que o período de proteção é limitado.
É preciso que a Coordenação da Equipe e a própria Entidade Gestora
forneçam o aparato necessário para que as Equipes Técnicas Interdisciplinares
desenvolvam essa tarefa desafiadora (buscando equalizar os conflitos surgidos nas
relações), que terá como destinatários de suas ações os usuários do Programa.
A fim de dar conta das questões próprias do trabalho com situações de
violência e stress vimos pensando sobre a importância do grupo contar com algum
tipo de supervisão, para dar suporte na canalização dos seus afetos/desafetos, com
vistas à superação desses sutis obstáculos do nosso cotidiano.
69
8. CONCLUSÃO
A institucionalização do PROVITA tem permitido garantir as condições
necessárias para nossa Justiça Criminal conseguir, através do resguardo a
testemunhas, a responsabilização de envolvidos em organizações criminosas de alta
letalidade, agentes públicos e outras pessoas a eles associadas, o que seria inviável
anteriormente, dado o grande poder de articulação, conjugado à gravidade da
ameaça sobre seus desafetos.
De qualquer sorte, é sabido por nós que as Unidades Prisionais, em sua
maioria, não dispõem de espaço em condições adequadas para oferecer a proteção
que dispõe a Lei 9.807/99 aos réus colaboradores. (THOMPSON e BATISTA apud
NUNES, 2005) Dessa forma, caso seja descoberto que algum custodiado ou
apenado está colaborando com a justiça, mor das vezes, isso poderá significar sua
eliminação física, como “queima de arquivo”. No entanto, caso se tenha clareza da
importância de sua proteção, como procuramos demonstrar neste trabalho, o Estado
poderá lançar mão de mecanismos para propiciar sua inclusão no PROVITA ou
mesmo garantir essa proteção por outros meios.
Ao assumir tarefa de tamanha envergadura, a Sociedade Civil não tem em
vista a substituição do papel do Estado, mas garantir a segurança daqueles que se
dispuseram a colaborar com a elucidação de crimes de grande repercussão e
buscar oferecer aos mesmos condições para a reconstrução de suas vidas, longe do
ambiente hostil que forçou sua saída do local de origem.
Considerando que não desejávamos fazer um estudo puramente formal dos
aspectos jurídicos que cercam o tema, o estudo da Interdisciplinaridade no presente
curso de pós-graduação foi fundamental para embasar o nosso entendimento acerca
da importância desse aspecto teórico-metodológico para nossa intervenção num
Programa, que é forjado sob a base teórica dos Direitos Humanos.
Ainda, nesse mesmo sentido, recorremos a estudos que vêm sendo
desenvolvidos em torno do processo de criminalização da pobreza e dos defensores
70
de Direitos Humanos, de forma que, aí, obtivemos subsídios que, mediante um
delineamento histórico da problemática, confirmaram nossas hipóteses.
Assim, chegamos à conclusão de que existe um longo processo histórico no
Brasil, mediante a constituição enquanto uma sociedade capitalista e, portanto, de
classes, que nega a efetivação dos direitos das camadas populares subalternas.
Além disso, por todo um mecanismo ideológico, que é conduzido pela mídia
de massa, fundamentalmente, o discurso produzido em torno do combate à violência
e à criminalidade tem sido assimilado pela esmagadora maioria da população como
justificativa para o desrespeito aos direitos dos pobres. (WACQUANT, 2001 apud
SILVEIRA FILHO, s/d)
Estudos nos mostram que esses mesmos pobres, não por acaso, acabam
sendo a “clientela preferida” dos aparelhos repressores do Estado, resultando em
seu encarceramento. (THOMPSON, 1983 apud TAVARES, 2004)
Já se avançou, inclusive, em perceber que esse controle não é aleatório, mas
é incutido, cotidianamente, na sociedade, principalmente naqueles que são
responsáveis por essa repressão, ou seja, os policiais associam pobreza a perigo e
criminalidade. (TAVARES, 2004)
Considerando todo esse contexto que tivemos que recorrer àqueles que vêm
se debruçando sobre a criminologia crítica, dentre os quais destacamos: Augusto
Thompson (1983). Muitos teóricos dessa corrente doutrinária, hoje, se inspiram, em
suas análises, no sociólogo Loïc Wacquant (2001), que nos fornece importantes
estudos em relação ao tema tratado.
Essa opção reforça nosso entendimento de que o Direito não pode ser
enxergado como um aparato onde vige a neutralidade e a imparcialidade, na medida
em que essa perspectiva encobriria todo o conteúdo ideológico que fundamenta o
seu uso, muitas vezes, em dissonância do que a própria Constituição Federal e as
Leis Ordinárias prevêem, causando-nos a nítida percepção (generalizada) de que
muitas de nossas Leis “não saem do papel” (não são cumpridas).
71
Ou seja, para a concretização dos Direitos Humanos será preciso mais do
que leis, mas a apropriação pela sociedade do seu conteúdo político emancipatório,
de forma que, somente construindo esferas de efetivo controle democrático do
Estado pela sociedade, poderemos avançar na direção da construção de uma
sociedade, concretamente, mais igualitária e justa. (CARDIA, 1995)
Esse estudo nos permitiu, portanto, não alcançar um de nossos objetivos
iniciais, diretamente, vislumbrando qual representação social os técnicos do
Programa possuem acerca de pessoas com envolvimento criminoso anterior, mas
atingir esse eixo de forma mais geral, pelo processo de formação das mentalidades,
principalmente, pela mídia de massa, que associa Direitos Humanos a privilégios de
bandidos (CALDEIRA, 1991).
Porém, essa percepção é empírica, no cotidiano do Programa, mediante a
reação dos técnicos e Equipes do Programa a respeito do acolhimento de usuários
com envolvimento criminoso anterior. Existe uma clara resistência, pelo menos
inicial, que se fundamenta nos argumentos de que o Programa não é
suficientemente aparelhado para lidar com a “criminalidade organizada”, de forma
que esses se sentem expostos ao perigo iminente, o que não deixa de ser real.
Porém, o que nos interessa sobremaneira é: que instrumentos subjetivos e
materiais temos para nos dar garantia de segurança?
Não podemos esquecer que as estruturas da criminalidade têm sua
funcionalidade no próprio sistema capitalista, fazendo girar altíssimo montante de
recursos financeiros, provindos de atividades ilícitas como: tráfico nacional e
internacional de drogas, armas, órgãos, pessoas e da “lavagem de capitais”.
72
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uma leitura crítica do estigma de (criminosos)