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Participação popular nas políticas públicas: a
trajetória dos conselhos de saúde do Sistema
Único de Saúde no Brasil.
Ilse Gomes Silva1
.
No Brasil, o final da década de 1970 se constituiu em marco histórico para os
estudos sobre a democracia e a participação popular. Nesse período, surgiram uma
série de movimentos sociais ou, nas palavras de Sader (1988), “novos personagens
entraram em cena”, questionando as formas tradicionais de organização e prática
política, as estruturas sociais e o regime político do país.
Os movimentos populares2 dessa época foram identificados como os “novos
movimentos socais”3 por romperem com a forma de organização e prática política
1
Professora Dra. da Universidade Federal do Maranhão (Departamento de Sociologia e Antropologia e do
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas) e da Universidade Estadual do Maranhão (Departamento de
Educação e Filosogia).
2
dos movimentos do período populista de 1945. Apresentavam como novidade a
politização do cotidiano, num processo de recriação dos espaços públicos. Eram
heterogêneos na base social dos sujeitos envolvidos, bem como nas respectivas
concepções políticas. Havia uma diversidade nas manifestações de luta e nas formas
de organização de base. Se desenvolveram por fora da institucionalidade,
reivindicando direitos sociais e a democratização do Estado. Responsabilizavam o
Estado autoritário pela situação de precariedade em que viviam, exigindo a
participação direta nas decisões que lhes afetavam.
Na luta esses “novos personagens” se constituíram em sujeito coletivo,
no sentido de uma coletividade onde se elabora uma identidade e se
organizam práticas através das quais seus membros pretendem
defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se
nessas lutas (Sader, 1988:55).
Nessa mesma década, o movimento sindical volta a se constituir em
importante força política, num processo de ruptura com o sindicalismo atrelado ao
Estado, propondo também novas formas de organização interna e manifestações de
luta contra o governo militar. O longo processo de luta para reconquistar a direção
dos sindicatos sob intervenção do governo militar e exigir o atendimento de suas
reivindicações salariais e políticas fortaleceu a luta pela democratização do Estado.
Esse sindicalismo que surgiu a partir da década de 1970 ficou conhecido
como “novo movimento sindical” e as inovações na organização interna e na prática
política foram importantes para a criação de uma das principais centrais sindicais da
América Latina, a Central Única dos Trabalhadores –CUT4, em 1983 e do Partido dos
Trabalhadores, em 1980.
2
Muitos autores brasileiros já publicaram trabalhos acerca dos movimentos sociais, num esforço de conceituação
e de compreensão de suas dinâmicas. Sobre os movimentos populares pode-se citar, dentre outros: Ammann
(1991), Andrade (1993), Cardoso (1985, 1984, 1985, 1994), Doimo (1995), Gohn (1989, 1991, 1997), Jacobi
(1989), Kowarick (1988, 1987), Sader (1988).
3
Embora os movimentos populares tenham sido identificados pela expressão “novos movimentos sociais” numa
analogia com os novos movimentos sociais europeus, alguns dos estudos que surgiram a partir da década 1990
alertaram para a necessidade de se fazer as devidas distinções entre as experiências brasileiras e européia, visto
que possuem especificidades que não podem ser desconsideradas, em razão dos contextos políticos, econômicos e
da história diferenciada de luta dos sujeitos políticos. Oportuno consultar Santos (1999), Silva (2001), Gohn
(1997), Doimo (1995).
4
Representando diferentes correntes políticas presentes no sindicalismo brasileiro, surgiu em 1985 a Central
Geral dos Trabalhadores – CGT, e em 1991 a Força Sindical.
3
Fatores políticos, econômicos e culturais se entrelaçaram no surgimento dos
“novos movimentos sociais”, nomeadamente os movimentos populares, dentre os
quais podemos destacar o desencanto com o sistema de representação políticopartidário do governo militar, a insatisfação com as políticas estatais e os efeitos da
crise econômica na capacidade do Estado capitalista em manter todos os “cidadãos”
incluídos no mercado de trabalho.
Para os interesses do nosso trabalho, pode-se destacar que as experiências
desses “novos movimentos sociais”
foram fundamentais para o alargamento da
concepção de participação política para além do sistema eleitoral. Doimo caracteriza
essa experiência de “participação movimentalista” em oposição a “participação
institucional” pautada na lógica racional-competititiva. A “participação movimentalista
se
orienta
pela
lógica
consensual-solidarística,
mais
apropriada
às
necessidades de mobilização e de pressão. A representação é definida por
regras não universalistas, mas valorativas e particulares, o que dificulta a
interlocução com o Estado e os tornam "vulneráveis ao agenciamento de
grupos e instituições fundamentados em valores morais e culturais estranhos
ao mundo da política" (Doimo, 1995: 221).
Esse tipo de participação apresentou contradições, oscilando entre a
postura anti-institucional, a defesa do estatismo e o namoro com o mercado,
de modo que podemos observar que
a)ora o Estado é contestado em razão das dificuldades de acesso ao
sistema de decisões, ora é legitimado porque dele se espera função
provedora; b) ora a acumulação privada e o mercado são
contestados por seu perfil excludente, ora são requeridos para que
irriguem o fundo público, do qual dependem para o atendimento de
suas carências (Doimo, 1995: 62).
A autora demonstra que o contexto político é fundamental na definição da
prática política dos movimentos populares. Em contextos democráticos há uma
tendência de apresentarem uma “face integrativo-corporativa pela qual se buscam
conquistar maiores níveis de integração social pelo acesso a bens e serviços, não
sem disputas intergrupos e a interpelação direta aos oponentes”, enquanto em
sistemas políticos autoritários se expressa a
“face expressivo-disruptiva, pela qual
4
se manifestam valores morais ou apelos ético-políticos tendentes a deslegitimar a
autoridade pública e a estabelecer fronteiras intergrupos” (Doimo, 1995: 69). Essa
dupla face aparece como contradições da trajetória político-organizativa dos
movimentos populares.
Os novos movimentos sociais ao mesmo tempo em que se apresentaram
como importante força política no processo de democratização do país, provocaram
polêmicas no meio acadêmico. A polêmica no campo teórico-metodológico ocorreu
sobretudo em torno da conceituação da categoria movimento social, da identificação
da base social, da caracterização de sua prática política em relação ao Estado e do
seu potencial de luta e ruptura com o sistema capitalista.
A partir de meados da década de 1980 a maioria dos movimentos populares
se integrou à dinâmica do processo de transição da ditadura militar para um governo
civil, perdendo parte
da radicalidade de suas manifestações contra o Estado.
Enquanto
de
no
início
sua
trajetória
organizativa
ensejaram
críticas
à
institucionalidade, requerendo autonomia frente ao Estado e aos partidos, a partir do
governo da Nova República (1985) foram incorporados ao aparelho estatal.
Na academia, essa mudança de rumo estimulou ainda mais as polarizações
nas matrizes interpretativas dos movimentos populares. Até o início dos anos 1980
as análises se referenciaram, principalmente, na teoria marxista, realçando a
autonomia dos movimentos populares frente ao Estado, as contradições sociais que
determinavam o seu surgimento e o papel transformador desses movimentos. No
decorrer da década de 1980 se inicia uma crítica ao paradigma marxista em um
processo de valorização do viés culturalista e institucionalista. Na década de 1990,
mesmo permanecendo a polêmica teórico-metodológica, entretanto os estudos
apontaram que a maior novidade desses movimentos foi “se originarem fora da
esfera produtiva e dos canais convencionais de mediação política, em espaços
fortemente marcados por carências referidas ao vertiginoso crescimento e crise do
Estado capitalista” (Doimo, 1995: 50).
Acrescentaria que, a despeito de se originarem fora da esfera produtiva, esses
movimentos populares mantinham estreita relação com ela. Podemos recorrer a uma
rica produção teórica que destaca o papel do Estado na viabilização das condições
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de acumulação do capital e da reprodução da força de trabalho. Essas “carências”
são decorrentes de políticas estatais que não atingem os interesses imediatos das
classes populares e estão muito mais voltadas para a reprodução do processo de
acumulação. (Offe, 1984; Almeida, 1996; Alves, 1984; Antunes, 1999; Anderson,
1995).
Enquanto a década de 1980 foi palco da reorganização dos movimentos
popular e sindical, a de 1990 não se apresenta muito favorável a esses movimentos.
A crise econômica e os novos processos de trabalho aumentaram as estatísticas do
desemprego enfraquecendo o movimento sindical, que entra na defensiva diante das
políticas neoliberais e, em alguns casos, passa até a apoiar a implementação dessas
políticas. No que se refere ao movimento popular, embora em 1991 tenha sido criada
a Central dos Movimentos Populares (CMP) e as péssimas condições de vida não
tenham sido amenizadas, as manifestações populares são redefinidas, se
aproximando da forma de campanhas cujos principais protagonistas são as ONGS.
Prioriza-se as questões de caráter ético-moral e de solidariedade individual, em que
a sociedade civil é convocada para assumir responsabilidades e buscar alternativas
à pobreza, à violência, à corrupção, etc. (Gohn, 1997)5.
Vale destacar que escapa dessa tendência o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST). O MST tem se constituído como único movimento político
que consegue mobilizar parte significativa dos explorados brasileiros para lutarem
pela reforma agrária e contra as políticas neoliberais.
O MST conseguiu avanços significativos numa conjuntura de refluxo
das lutas sociais por ter conseguido inserir profundamente sua ação
no questionamento da lógica espacial do capitalismo brasileiro. Sua
constituição representa, sob vários aspectos, a construção e a
conquista de um espaço de socialização política, de elaboração de
um projeto societário alternativo ao projeto hegemônico (Almeida e
Sànchez 1998: 88/9).
Os movimentos sociais na área da saúde.
5
São expressões dessas mobilizações populares o Movimento Ética na Política, a Ação da Cidadania contra a
Miséria e pela Vida e o Movimento Viva Rio.
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Os movimentos sociais na área da saúde surgiram no final da década de
1970, principalmente em São Paulo, como parte constitutiva dos “novos movimentos
sociais”. Dentre eles, podemos destacar os movimentos populares em saúde, que se
originaram nos bairros da periferia, motivados pela ausência de serviços básicos de
saneamento e saúde e o movimento médico, de caráter sindical e técnico-científico,
preocupado com a precariedade do exercício profissional e dos serviços de saúde.
Apesar das muitas diferenciações quanto à composição, formas de luta e
problematização da questão, esses movimentos possuíam como elemento de
unificação a crítica às condições de saúde e a necessidade de democratização
do país (Greschman, 1995; Coutinho, 1996, Silva, 2001).
Na opinião de Greschman (1995), esses movimentos atravessaram três
fases distintas. A primeira, definida como "reivindicativa", foi caracterizada por
exigências pontuais e por responsabilizar o Estado pela ausência dos
serviços, creditando-se às mobilizações um grande poder de resolução dos
respectivos problemas. No segundo momento, considerado de "politização",
se percebe que não basta apenas pressionar o Estado por serviços, mas é
necessário participar do processo decisório das políticas, ampliar o movimento
para além do bairro e unificar a intervenção política. A terceira fase foi definida
como de "acesso a formas orgânicas de política" ou de "institucionalização",
coincidindo com o momento em que é formada a Plenária Nacional de Saúde.
Até 1986, o movimento teve um percurso ascendente de mobilização,
declinando em seguida com a perda das expectativas frente à Nova República
(Greschman, 1995).
A unificação do movimento ocorreu no espaço de organização do
Movimento Sanitário no final de 1970, a partir da crítica à concepção
hegemônica do processo saúde/doença, ao sistema de saúde e ao regime
autoritário. Embora inicialmente tenha tido uma composição majoritariamente
de profissionais da saúde, com o avançar da luta foi tomando uma nova
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configuração, ao incorporar os setores populares dos movimentos pela saúde
da periferia.
A mobilização de maior destaque do Movimento Sanitário foi a luta pela
Reforma Sanitária, em cujo escopo estava incluído a democratização do
sistema de saúde através da descentralização e da participação da sociedade
em todas as etapas do processo de elaboração da política de saúde. Em
contraposição ao projeto neoliberal, apontava para a necessidade de alterar a
predominância dos mecanismos de mercado na determinação das políticas de
saúde.
Nesse processo de luta foram utilizadas diversas formas de mobilização
como greves, passeatas e a organização de plenárias de saúde nas unidades
subnacionais, através das quais se unificou a participação na Constituinte, em
1986, transformando a luta pela saúde pública e gratuita em uma questão
nacional e articulada aos problemas estruturais da sociedade brasileira
(Dâmaso, 1989; Greschman 1995; Coutinho, 1996; Silva, 1996 e 2001).
Em 1986, na VIII Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS), os debates
em torno da participação de representantes das classes populares nos centros
decisórios da política de saúde percorreram toda a pauta dos trabalhos. Com
efeito, a VIII CNS expressou o avanço do processo organizativo e a
capacidade de intervenção do Movimento Sanitário, visto que, pela primeira
vez, as classes populares garantiram, na luta, a participação em um evento
convocado pelo Executivo para discutir as diretrizes da política de saúde.
A maciça participação das entidades ligadas ao Movimento Sanitário
criou as condições para que a proposta de saúde como direito de todos e
dever do Estado, bem como a criação dos conselhos de saúde com caráter
deliberativo e composição paritária, hegemonizasse a conferência e
alcançasse o respaldo social e político. A partir daí, foi possível unificar uma
estratégia de ampliação do debate e de mobilização, no sentido de acumular
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forças para viabilizar a proposta de criação do Sistema Único de Saúde. (VIII
Conferência Nacional de Saúde, 1987; Silva, 1996).
Um dos mais importantes resultados da VIII Conferência foi a
criação
do
Grupo
Executivo
da
Reforma
Sanitária,
composto
por
representantes dos mais variados movimentos sociais da saúde, inclusive os
representantes da medicina privada. Os seus objetivos foram a unificação de
todos os setores ligados a questão da saúde, com o intuito de apresentar uma
proposta única de modelo de sistema de saúde à Constituinte e estabelecer os
contatos institucionais para a implantação da Reforma Sanitária.
Em decorrência dos impasses criados pelas ações do governo
federal, a arena de embate da luta pela Reforma Sanitária foi deslocada da
esfera do Executivo para o Legislativo, na medida em que se passou a
privilegiar as intervenções na Constituinte de 1986. Os esforços do Movimento
Sanitário e os respectivos embates com o setor privatista resultaram na
inscrição do Sistema Único de Saúde no texto constitucional de 1988, com a
previsão da "participação da comunidade" na gestão, para ser efetivada
através dos Conselhos de Saúde do SUS e das Conferências de Saúde,
sendo posteriormente regulamentados pela Lei 8.142/90.
O modelo de participação inscrito na Constituição Federal de 1988, a
despeito de representar uma vitória, não significa que tenha contemplado
todas as expectativas do movimento social de saúde dessa época. Vale
resgatar que os movimentos sociais que se organizaram no final da década de
1970 tinham como bandeira a autonomia frente ao Estado e a participação
figurava como uma alternativa de pressão, fiscalização, controle e deliberação
nas políticas estatais. Ao ser institucionalizada, a bandeira de participação foi
modificada, assumindo um conteúdo ideológico essencialmente burguês. Esse
é um processo através do qual ocorre
9
a 'recuperação' pelo Estado capitalista, de elementos da luta dos
dominados, elementos que, desta forma, são depurados de seus
aspectos antagonísticos, inseridos na 'lógica política do homogêneo'
e articulados à matriz ideológica dominante, a qual nesse processo se
redefine (Almeida, 1995: 65).
Em outras palavras, a ideologia dominante, sob as imposições da
luta de classes, imprimiu novo conteúdo à bandeira de participação originada
no seio das classes populares.
Do ponto de vista dos representantes dos movimentos sociais da
área da saúde, a defesa do Sistema Único de Saúde representou,
institucionalmente, uma tentativa em busca dos meios necessários para a
recuperação do setor público voltado para a construção de melhores
condições de vida, apesar das limitações legais e da ação das classes
dominantes. O Sistema Único de Saúde tem como princípios a unificação, a
descentralização, a hierarquização e a "participação da comunidade" na
definição da política de saúde em cada esfera da federação. Com esse
sistema pretendeu-se criar as condições para as mudanças no que diz
respeito às práticas sanitárias, às relações profissionais, às relações
médico/paciente e às relações com o setor privado.
No que concerne aos conselhos de saúde, eles são instâncias do
Executivo, com caráter permanente e deliberativo, onde estão representados
os segmentos dos gestores públicos e privados, trabalhadores da saúde e
usuários. Não são, portanto, homogêneos quanto à representação de
interesses, embora tenham sido concebidos para serem espaços de
institucionalização, organização e delimitação dos conflitos, com vistas a se
estabelecer um consenso em torno da política de saúde.
Os conselhos de saúde são instâncias resultantes do processo de
embate e negociação entre os diversos sujeitos sociais para a construção de
uma política de saúde. Constituíram-se num dos pilares sobre os quais foi
edificada a nova relação entre Estado e classes populares, como instância de
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materialização de uma parceria criada para definir, executar e controlar a
política de saúde. Entretanto, essa configuração dos conselhos permite que o
Estado repasse para as classes populares grande parte da responsabilidade
pelos serviços oferecidos, retirando-se, assim, do centro das pressões
políticas pela melhoria dos respectivos serviços. Essa estratégia criou as
condições para que, no final da década de 1990, a retirada do Estado da
prestação de serviços básicos de saúde não sofresse uma resistência maior.
O processo de criação dos conselhos deslanchou a partir de 1991, e
principalmente após a XIX Conferência Nacional de Saúde em 1993, momento
em que os movimentos popular e sindical exigiram do Ministério da Saúde
medidas para acelerar a formação dos conselhos e a municipalização em todo
o país. Porém, o fator determinante nesse processo foi a necessidade de
recursos financeiros para o funcionamento do sistema de saúde nos estados e
nos municípios, uma vez que a criação dos conselhos se constitui em prérequisito para que ocorra as transferências de recursos entre as esferas
administrativas.
De acordo com os dados apresentados no II Encontro Nacional de
Conselheiros de Saúde, em 1998, pelo Conselho Nacional de Saúde, existiam
27 conselhos estaduais de saúde com aproximadamente 600 participantes e
3.000 conselhos municipais com cerca de 45.000 integrantes. Portanto, em
todo o país, eram aproximadamente 45.632 conselheiros, sem computar os
suplentes. Atualmente, em todos os estados e municípios brasileiros existem
conselhos de saúde.
O
diagnóstico
do
funcionamento
dos
conselhos
municipais,
resultante desses estudos e dos documentos oficiais, demonstra que, na
maioria das vezes, sofrem dos mesmos problemas, indicando que não se trata
de uma prática política localizada, mas estrutural das relações entre o Estado
e as classes sociais.
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Dentre estes problemas, os principais são: a formação dos
conselhos nos gabinetes dos prefeitos; a falta de transparência na distribuição
de recursos, posto que o orçamento da saúde não é apresentado no plenário
do conselho ou quando o apresentam é numa linguagem técnica que dificulta
o entendimento dos conselheiros; a falta de verbas e de infra-estrutura para o
seu funcionamento. Os pontos da pauta tratam, na maioria das vezes, de
questões administrativas e dificilmente se delibera sobre eles; o processo
decisório é dependente da vontade do Secretário, bem como a agenda de
discussão; nem todo conselheiro tem acesso as informações sobre a política
de saúde; falta de mecanismos de intercâmbio com a população. Esses
problemas se repetem ano após ano, de tal forma que fazem parte das
recomendações ou deliberações de conferências nacionais, estaduais e
municipais, bem como dos encontros de conselheiros (Silva, 1996; Silva,
1996; Coutinho, 1996; Conferência Nacional de Saúde, 1996; Conselho
Nacional Saúde, 1998; Fonseca, 2000).
Embora concorde com o diagnóstico, alguns desses estudos
apresentam uma fragilidade analítica ao atribuir somente à conjuntura local os
limites impostos à atuação dos conselhos ou às tentativas de mudanças na
política de saúde. Da mesma forma, associam as debilidades da intervenção
dos representantes dos "usuários" à falta de "capacitação técnica" sobre a
política de saúde e ao seu papel de conselheiro. Esses elementos, embora se
apresentem como conjunturais, são manifestações do modo estrutural como
são edificadas as relações entre o Estado e as classes sociais no sistema
capitalista. É claro que a conjuntura local pode apresentá-los com outras cores
ou concorrer para limitar o alcance da ação do conselho, mas não é
determinante, embora possa ser dominante.
O caráter deliberativo dos conselhos de saúde é, constantemente,
questionado pela prática do governante. Segundo a Lei 8.142, artigo 1, § 2, o
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conselho de saúde é uma instância colegiada "em caráter permanente e
deliberativo (...), atua na formulação de estratégias e no controle da execução
de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e
financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder
legalmente constituído em cada esfera do governo". Porém, essa exigência da
homologação pelo "chefe do poder constituído" torna o caráter deliberativo do
conselho dependente da vontade política do governante.6
Nos casos em que se garante a criação dos conselhos a partir de
uma ampla discussão e a composição resultante é favorável aos movimentos
popular e sindical, freqüentemente, são introduzidas no regimento interno
medidas para democratizar as relações entre os diversos segmentos. Por
exemplo: a autonomia das entidades em determinar a escolha de seus
representantes; a exigência das reuniões serem públicas; a paridade em
qualquer comissão; o acesso às informações; a divulgação das deliberações;
o plenário como instância de deliberação e a necessidade de infra-estrutura
para o funcionamento dos respectivos conselhos.
Todavia, a divisão de competências entre as esferas nacional,
estadual e municipal, conforme está definido na legislação, estabelece o grau
de flexibilidade que a política de saúde pode suportar em cada nível
administrativo. Os esforços de democratização da política de saúde
encontram-se, assim, fragmentados e diluídos pelos diversos conselhos,
sujeitos à vontade política do governante e à capacidade de intervenção e
mobilização dos movimentos popular e sindical. Desse modo, o Estado pode
6
Sobre o caráter deliberativo dos canais de participação e sua dependência da vontade política dos governantes,
são importantes os estudos de Coutinho (1996) e Pinheiro (2000).
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suportar momentos de maior tensão em alguma das esferas administrativas
enquanto mantém a coerência do modelo como um todo.
Os estudos citados demonstram que muitas dessas medidas se
transformam em letra morta mediante a postura do governante de não
respeitar aquele que seria, supostamente, o princípio básico da democracia
burguesa: o respeito às regras do jogo. A institucionalização das regras de
participação não foi suficiente para fazer cumprir o preceito de "saúde direito
de todos e dever do Estado". É plausível afirmar, também a partir dos exames
dessas experiências, que
a democracia capitalista se encontra cruzada por tensões e ... suas
conquistas são sempre provisórias, susceptíveis de ser canceladas
na medida em que o curso dos antagonismos provisórios precipite a
restauração de uma coalizão autoritária na cúpula do Estado (Boron,
1994: 18).
Ao lado dos elementos referentes às relações Estado/classes
populares, há aqueles concernentes à organização política dessas classes
que, de modo particular, atribuem significados à participação popular e
definem os limites a serem ultrapassados. Infelizmente, esse quadro não é
muito animador. As entidades ainda não superaram as debilidades
organizativas que se manifestam em sua democracia interna, de modo que
nem sempre a ação dos conselheiros é alimentada por um debate em suas
entidades. Isso mina o aprofundamento das questões que envolvem a política
de saúde, no sentido de identificar o projeto político embutido nas diversas
propostas dos planos de saúde e as suas conexões com a macropolítica do
país.
Concorre também contra o acompanhamento crítico das ações do
governo a ausência de um projeto societário alternativo ao hegemônico e que
sirva de referência para a atuação política. Isto se expressa no fato de não
adotarem como parâmetro de avaliação da política a concepção de saúde
como resultante das condições de vida. O resultado prático de todas essas
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debilidades é uma atuação desarticulada dos movimentos populares. Restrita
às fronteiras do conselho e incapaz de proporcionar a elaboração de
propostas com caráter estratégico e de luta contra a política neoliberal.
Os longos anos de luta dos movimentos sociais em saúde ainda não
foram suficientes para se contrapor à hegemonia da concepção liberal de
saúde que a encara como uma responsabilidade individual ou, inclusive,
considera que os serviços devem ser adquiridos conforme os recursos
financeiros disponíveis. Do mesmo modo, ainda prevalece a concepção liberal
de que o controle deve ser feito pelos indivíduos enquanto consumidores de
bens e serviços públicos.
Os conselhos de saúde e a redefinição da participação popular nos anos
1990
Na década de 1990, com a ofensiva neoliberal, o debate em torno da
participação é redefinido novamente no Brasil. A exaltação pelos governos
brasileiros da liberdade do mercado e da "eficiência" do Estado como condição
para a realização da democracia, contrasta com a exclusão de milhares de
pessoas do acesso aos bens como saúde, educação e transporte, provocada
pela política de privatização. Nesse processo, a sociedade é convocada para
participar dos esforços de inserção do Brasil na chamada economia
globalizada.
A proposta de participação que surge no Plano Diretor da Reforma
do Aparelho de Estado, vai na contra-mão das experiências originadas a partir
da Constituição Federal de 1988. As mudanças ocorreram no discurso
ideológico, no formato institucional dos canais e nos supostos convidados.
Saem de cena os "usuários" e entram as ONGs, uma vez que as agências
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governamentais exigem organizações institucionalizadas e estruturadas para
firmarem as parceiras.
Em que pesem os limites e as contradições, as experiências de
participação via conselhos de saúde encontram-se ameaçadas pela Reforma
do Aparelho do Estado no âmbito nacional e estadual. No Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado a participação aparece sob a forma de
Conselho Administrativo das Organizações Sociais, cuja composição e
competências já vêm previamente definidas pelo Plano Diretor, sem que esteja
prevista qualquer alteração em algum fórum mais amplo ou alguma relação
com os conselhos de saúde. São órgãos consultivos cuja competência está
restrita a cada organização social, sem nenhuma exigência de prestação de
contas com a sociedade,.
Nesse processo, chama atenção a estratégia utilizada pelos
governos federal e estadual, uma vez que não ousaram modificar a
Constituição Federal ou as leis 8.080/907 e 8.142/90. Pelo contrário,
intensificaram o discurso participacionista de modo a evitar a reação imediata
dos movimentos popular e sindical, enquanto criavam novos canais de
participação, sem a paridade entre os segmentos e com atribuições que, na
prática, esvazia o poder os conselhos de saúde. Em outros termos, o
arcabouço institucional anterior não impediu que fossem criados outros canais
mais apropriados para o novo discurso de participação e para o novo contexto
econômico.
Como se pode observar, o processo está em pleno vigor. Chegou-se
ao final do ano 2000 com mudanças institucionais e políticas que alteraram
significativamente o projeto de participação pensado pelos movimentos
popular e sindical na década de 1980. Ademais, o formato de participação
presente no Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado ao mesmo
7
Lei Orgânica da Saúde.
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tempo em que se choca, convive com o arcabouço institucional criado a partir
da Constituição de 1988.
Elementos para uma conclusão
Como se pode observar pelo exposto, no interior das práticas
políticas dos "novos movimentos sociais" a proposta de participação popular
foi fecundada como sinônimo de autonomia, de realização da democracia, de
reconhecimento de que os membros das classes populares podem ser
"sujeitos de sua própria história" devendo, portanto, participar das decisões
que lhes afetam.
Por esses motivos, nas décadas de 1970 e 1980, a participação
popular ganhou tamanha significação que parecia não haver mais lugar para
outro tipo de experiência democrática que não fosse pautada por um processo
com assegurada participação dos indivíduos envolvidos. Todavia, a noção de
participação popular como parte constituinte da democracia perdeu sua
centralidade no decorrer das décadas seguintes.
Na década de 1990 as experiências de participação dos movimentos
populares sofreram mutações sob os impactos das transformações políticas e
econômicas e, ao entrarem em contato com a institucionalidade, perderam
muito de sua proposta inicial, de tal maneira que se chegou ao ano 2000 com
formatos de participação que pouco têm a ver com as experiências dos
movimentos sociais do final da década de 1970.
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Ilse Gomes Silva - Centro de Estudos Sociais