Universidade Federal da Bahia Programa de Pós-Graduação em Antropologia Mestrado em Antropologia Breno da Silva Carvalho USO SOCIAL DAS COISAS: BAHIA MARINA NA CONSTRUÇÃO DE AUTOIMAGENS Salvador 2010 Breno da Silva Carvalho Uso social das coisas: Bahia Marina na construção de autoimagens Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Caroso Soares Salvador 2010 ___________________________________________________________________________ __ Carvalho, Breno da Silva C331 Uso social das coisas: Bahia Marina na construção de autoimagens / Breno da Silva Carvalho. – Salvador, 2010. 100 f. : il. Orientador: prof. Dr. Carlos Alberto Caroso Soares. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas 2010. 1. Antropologia econômica – Estudo de casos. 2. Comportamento do consumidor – Salvador (BA). 3. Consumo (Economia). 4. Lazer. 5. Complexo cultural Bahia Marina – Salvador (BA). 5. Sociabilidade. I. Soares, Carlos Alberto Caroso. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. CDD – 658.834 AGRADECIMENTOS Fechar um projeto como este requer o auxílio de inúmeros profissionais, familiares e amigos. Portanto, gostaria de revelar minha gratidão a todas as pessoas que – direta ou indiretamente – contribuíram para que este trabalho fosse finalizado. Citarei alguns nomes, a saber: - Prof. Carlos Alberto Caroso Soares, pelo acompanhamento sempre objetivo e receptividade em administrar um objeto de pesquisa inédito no Programa; - Profª. Maria Rosário Gonçalves, pelo incentivo e preocupação quanto à exeqüibilidade do Projeto; - Profª. Elaine Norberto, pelo interesse no desenvolvimento de projetos de pesquisa, diálogo direto e sempre produtivo; - Luiza Carvalho, minha mãe, pela confiança e aposta neste processo vertiginoso e árduo; - Ava Carvalho, prima e afilhada, pelas discussões, trocas de experiências e (im)paciências; - Eth Carvalho, Socorro Carvalho e Stela Carvalho, por estarem ao meu lado; - Celso Jr., amigo querido, pelos insights e auxílio nas traduções, impressões e conexões; - LAMA S.A., por existir – seja no silêncio ou na presença excessiva e efusiva; - Henrique Celso, pelas memoráveis aulas de inglês e estímulo permanente; - Colegas e professores do PPGA, pelas conversas em sala e no pátio, em especial a Manuela Venâncio, pelas demonstrações de atenção, carinho e generosidade; Hildon Carade, pelos momentos de riso franco, quebra do protocolo e idéias novas; Profª. Núbia Rodrigues, pela oferta do novo nos prazerosos momentos de aula; - Funcionári@s da FFCH/UFBA, especialmente, Dilzaná Oliveira, “companheira” da Biblioteca; - Administração da Bahia Marina, pela permissão ao trabalho de pesquisa no local; - Interlocutores dos mais diversos circuitos e universos: grato pela realização da entrevista; - Agência Única, por respeitar meu diálogo com a esfera acadêmica; - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa fornecida. RESUMO Na presente dissertação, analiso as formas de consumo do equipamento náutico Bahia Marina, situado em Salvador/Bahia, a fim de compreender o uso social que os distintos grupos de consumidores – constituídos por locatários de vagas para embarcação, clientes dos restaurantes e públicos das festas de verão e de música eletrônica – realizam deste espaço. Assim, considero o lazer como atividade mediadora e integrada ao consumo, sendo ambos responsáveis e contribuintes para a construção da autoimagem do ator social moderno, o qual compreende a existência de espaços prévios e nítidos para sua ocupação em cada um dos estratos sociais. A Bahia Marina, por sua vez, reposiciona este sujeito frente à sua rede social, permitindo que ambos – coletivo e indivíduo – renegociem suas normas internas e seus campos de socialização, legitimando a autoimagem construída e permitindo que este indíviduo venha a ser mediante o outro. Palavras-chave: antropologia do consumo; lazer; Bahia Marina; sociabilidade; autoimagem. ABSTRACT In this dissertation, I examine critically the consumption at the Bahia Marina’s place, located in the city of Salvador, Bahia State, Brasil, to understand the social use that different consumer groups – such as the renters of ship lots, restaurant goers and the summer parties goers, as well as the people who attend to the electronic music parties – do at this area. Therefore, I assume that the amusement is an activity at the same time intermediary and integrated to the consumption, being both responsible and contribuitive to the construction of the modern social actor’s self-image, who is aware of the existence of clear and predesigned spaces to his occupation in each and every social stratus. The Bahia Marina, by its side, relocates this subject to its social network, allowing both – collectively and individually – renegotiate their intern rules and its socialization fields, legitimating the built self-image and allowing this individual being to become a being through the other. Keywords: consumption anthropology; amusement; Bahia Marina; sociability; self-image. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 1 2 A ABORDAGEM DO CONSUMO NA ANTROPOLOGIA 7 2.1 PANORAMA 7 2.2 UMA ORDEM CULTURAL PARA O CONSUMO 8 2.2.1 Consumo como sistema simbólico 8 2.2.2 Consumo como rede social 10 2.2.3 Consumo como diferenciação social 13 2.3 UM “SIGNIFICADO PÚBLICO” PARA O CONSUMO 15 2.4 NO RASTRO DAS MERCADORIAS 18 2.4.1 No rastro de uma antropologia do consumo brasileira 20 2.5 CONSUMO E LAZER EM ÁREA DE INTERFACE 22 3 CONSUMO E SOCIABILIDADE 28 3.1 SUJEITO E POSIÇÃO SOCIAL 28 3.2 SOCIABILIDADE E INTERAÇÃO SOCIAL 33 4 OS SUJEITOS DO CLUBE 39 4.1 MAPEAMENTO DOS FREQUENTADORES 39 4.1.1 Tu és manjar de reis: marina como pólo gastronômico 43 4.1.2 Baila comigo, como se baila na tribo: as festas na marina 52 4.1.3 Navegar é preciso: o equipamento náutico Bahia Marina 60 4.2 O QUE GASTAR QUER DIZER 64 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 74 REFERÊNCIAS 77 ANEXOS 84 LISTA DE QUADRO Quadro 1 Distribuição dos tipos de frequentadores da BM e indicativos de fatores que implicam na freqüência de visitas ao espaço 40 1 INTRODUÇÃO “A história da antropologia tem sido uma história de desembaraço contínuo dos campos teóricos da intromissão de suposições do senso comum”. Mary Douglas; Baron Isherwood Em maio de 1999, a Avenida Contorno – um dos meios de conexão entre as cidades alta e baixa de Salvador (Bahia) – ganhava um equipamento náutico de padrões diferenciados: a Bahia Marina – doravante designada BM. Próxima aos principais pontos turísticos soteropolitanos, como o Elevador Lacerda, o Solar do Unhão, o Mercado Modelo e o Forte de São Marcelo, a marina incrusta-se à borda leste da Baía de Todos os Santos tornando-se tão significativa quanto os demais atrativos das imediações. Vetor inicial do processo de revitalização urbana e valorização imobiliária da região, a BM é um espaço privado de 27.000m2 para atracação de embarcações (com 400 vagas molhadas em píeres flutuantes, sendo 36 para visitantes e 200 vagas secas em pátio) e dispõe de (01) posto flutuante para abastecimento das embarcações1. Hoje, 95% da ocupação da marina é de lanchas e o restante de jet-skis, veleiros, escunas entre outros. Para um visitante, o valor da diária é obtido a partir do tamanho de sua embarcação. O valor de um pé é de R$2,02 (dois reais e dois centavos)2. Assim, uma embarcação grande, com cerca de 100 pés – porte necessário para deslocar-se do Sudeste para Salvador – paga, por dia, em torno de R$202 (duzentos e dois reais) para aportar na BM; valor este que inclui apenas o uso de energia elétrica. Os demais serviços, como hidratante, abastecimento etc., são individualizados e pagos por fora. A necessidade de vaga seca ou molhada depende dos três tipos e características da embarcação: (a) tamanho; (b) motorização; (c) tipo de casco. Barcos de pequeno e médio porte têm, normalmente, cerca de 30 a 50 pés (1 pé compreende 30,48cm) e requerem ficar alguns períodos fora do água por dois fatores: (i) seus motores de popa e de rabeta podem ter suas juntas ressecadas; (ii) os cascos destas embarcações não recebem uma tinta específica denominada “venenosa”, a qual impede a fixação de corais e demais organismos vivos 1 2 Algumas imagens da BM podem ser vistas no Anexo A. Valor de agosto/2009. 2 (cracas, caracas ou bálanos), danificando os cascos. Estas embarcações, geralmente, “descem” (ir para o mar) no fim de semana e “sobem” (ficar na vaga seca) na segunda. Normalmente, um ingressante no lazer náutico investe em embarcações pequenas, precisando de vaga seca. Isto explica a escassez desse tipo de vaga: são as de menor custo, por isto mesmo, sob intensa demanda. Outros serviços náuticos são destacados, como, por exemplo: tomadas de energia e saída de água individualizadas; pátio de docagem com 2.800m2; estação de rádio SSB e VHF; vigilância 24 horas; sistema de controle de acesso às embarcações e píeres; sala de estar para clientes com TV a cabo e computadores para acesso a internet; o equipamento travel lift para movimentação de embarcações de até 40 toneladas, o que dispensa o uso de carretas e rampas, já que estas aumentam os danos ao casco do barco. Ao público em geral o equipamento náutico disponibiliza lojas comerciais e de conveniência com artigos náuticos à venda (12 estabelecimentos), restaurantes com alta demanda (07 estabelecimentos), vagas avulsas para automóveis, estacionamento privado, serviço de manobrista ou valet parking (02 quiosques). Além destes equipamentos, a animação da BM se faz através da realização de festas, algumas que já se tornaram regulares, tais como réveillon, Bonfim Light (dia do Senhor do Bonfim, celebrado na segunda quinafeira de janeiro, após o Dia de Reis, oferecendo uma alternativa aos que não querem percorrer os sete quilômetros que separam a Marina da Basílica do Bonfim e apreciar um ambiente mais seguro e sofisticado). Também ocorreram algumas edições da festa de 8 de dezembro (dia de Nossa Senhora da Conceição), assim como festas ocasionais por demanda e organização de outros agentes – clubes de gourmets ou associações profissionais. A área do estacionamento ganha, sazonalmente, cobertura com toldos e palco para apresentação de artistas e, atualmente, encontra-se em reforma para a construção de uma edificação, a fim de contemplar a instalação de novos pontos comerciais, a ampliação do número de vagas de estacionamento e a realização de eventos em sua cobertura, já que haverá maior visibilidade para o mar e um possível acesso futuro pela Avenida Contorno. A última etapa da ampliação deve ocorrer após em 2011. Frente ao oferecimento de tantos serviços, a BM acaba por atrair distintos perfis de clientes. Estes variam desde o público sazonal das festas, os usuários assíduos dos restaurantes, locatários de vagas ou clientes esporádicos em passagem pela cidade, entre outras combinações. Este mix e complexidade de usuários evidencia uma estruturação quanto às categorias de consumidores existentes, o que permite a BM posicionar-se como serviço de referência para o lazer náutico ou apreciação gastronômica, com amplo leque de opções. Usufruir dos serviços da BM sugere uma atividade de bom gosto, aprazível e confortável. 3 A importância deste estudo é representada pelo mapeamento dos perfis dos consumidores dos produtos e serviços disponibilizados no local, assim como pelo acesso a um melhor entendimento da gramática cultural, ou seja, os estilos, representações e valores filiados à experiência de consumo dos usuários e freqüentadores da marina, o que possibilita desvendar o universo simbólico das práticas de consumo realizadas neste contexto, as relações sociais envolvidas nestas imbricações e como este envolvimento com os artigos oferecidos pela BM é refletora da construção das imagens pessoais. Assim, no presente estudo, analiso as formas de consumo deste espaço, a fim de compreender o uso social que os distintos grupos de consumidores realizam. Tal tarefa exige o mapeamento e a caracterização dos diferentes grupos de consumidores da BM, aliado à identificação e análise das rotinas de consumo e lazer desempenhadas no local, e o entendimento sobre a significação atribuída à BM, focalizando, mais especificamente, como o consumo deste espaço contribui para a construção da autoimagem dos seus freqüentadores – o que está diretamente relacionado ao seu conjunto ideológico, suas visões de mundo, suas representações sociais e o papel da mídia e da informação para os mesmos. Rotineiramente, consumo e entretenimento são relacionados a atos que visam a expor as possibilidades financeiras e o prestígio social dos agentes envolvidos. Em algumas de suas demonstrações práticas podemos percebê-los ora como práticas rotineiras presentes no cotidiano do sujeito, ora como exercícios socialmente notáveis, manifestos através de um conjunto de ações ostentatórias, de modo a reafirmar a posição social – da capacidade econômica e financeira – dos envolvidos. Seria então a BM um local para a exibição pública destas ações ou consistiria em mais um dos espaços rotineiramente frequentados por estes indivíduos? Com a finalidade de buscar respostas para esta questão – entre outras –, a presente dissertação divide-se em cinco capítulos. No capítulo 2, apresento as considerações sobre o consumo à luz da antropologia. Ultrapassando o senso comum que vincula, inexoravelmente, consumo a bens materiais em excesso, proponho uma discussão na qual o associo ao estabelecimento de relações sociais. É este argumento que preenche e se estende ao capítulo 3, intitulado “Consumo e sociabilidade”, o que permite abordar as estratégias de distinção e identificação social manifestas por distintos estilos de vida, aliado à relação destes sujeitos com a BM. O capítulo 4 – “Os sujeitos do clube” – consiste na parte mais substancial do trabalho de campo e a interface desta experiência com o arrazoado teórico em discussão, o que ensejou novas perspectivas de análise. Por fim, apresento algumas considerações finais. 4 Para a realização deste estudo foi necessário o acesso e à permanência na área comum da BM, a fim de realizar observação participante da movimentação e da rotina do ambiente, conferindo mais consistência à prática etnográfica, fazendo-se indispensável a visita às áreas de espera dos restaurantes na condição de cliente. A obtenção e produção de dados para o desenvolvimento desta pesquisa deram-se por meio de instrumentos de produção de dados etnográficos, adaptados à situação específica, sendo estes: (a) Caderno de campo para os rotineiros registros pessoais das particularidades vivenciadas durante a coleta de dados e todo o processo de pesquisa em si. Tal caderno funciona como “diário de pesquisa”, no qual registro, por meio de observação sistemática, as regularidades identificadas, além de contatos, manifestações comportamentais, impressões subjetivas e novas conexões para análise etc.; enfim, informações que permitem ter uma visão global do “universo” investigado, expondo os saldos gerais que a presente pesquisa permitiu ofertar até o momento; (b) Observação sistemática com o intuito de se descrever, caracterizar e, após diversas investidas, analisar o material obtido. Esta observação complementa-se com registros fotográficos das várias cenas que se desenvolvem e se sucedem no local para posterior análise e interpretação; (c) Realização de entrevistas semi-estruturadas individuais com freqüentadores do equipamento náutico, de forma a identificar e incluir as distintas categorias de consumidores mapeados: locatários de vagas, clientes dos restaurantes, público de festas sazonais, executivos que trabalham nas proximidades etc. Um roteiro de entrevistas (vide Anexo B) foi utilizado para o registro dos dados, obtido com o uso de um gravador digital. Este roteiro constitui-se de 4 (quatro) blocos temáticos, contemplando, respectivamente, grupos de dados sobre (i) informações pessoais; (ii) referências sociais; (iii) entendimento sobre o consumo; (iv) entendimento sobre a marina. As seções “informações pessoais” e “referências sociais” são complementares por permitirem a composição de um perfil sócio-demográfico do entrevistado, como idade, local de moradia, tamanho da família, aliado à identificação do seu estilo de vida, mapeamento de sua rotina, opções de lazer, acesso aos meios de comunicação e delineamento de um amplo painel sobre suas práticas diárias e corriqueiras. No bloco “entendimento sobre o consumo” do roteiro de entrevista pode-se identificar as rotinas de consumo, a relação com o dinheiro, as formas de seleção das 5 mercadorias que são objeto do seu desejo e a noção do entrevistado sobre as distinções e agrupamentos sociais que o consumo opera. Por fim, por meio da seção “entendimento sobre a marina” do roteiro de entrevista, desvelam-se as práticas de consumo e entretenimento realizadas na BM e como são traçados os rotineiros processos de escolha e fidelidade ao espaço. Para a realização deste trabalho, a inserção no campo foi facilitada por contatos pessoais. Em carta de apresentação encaminhada à direção da BM, comprometia-me a não abordar os freqüentadores em seu momento de lazer para realização de entrevista ou menção ao desenvolvimento da pesquisa. Tal tipo de procedimento seria adotado apenas com determinados indivíduos, a partir de contatos estabelecidos através de minha rede social. A partir da permissão para realização da pesquisa pelos administradores do local, qualquer ida à BM foi marcada por uma relação de prazer – afinal, trata-se de um lugar agradável, bonito e que sempre se apresentou aliado a simpáticas companhias – e de desconforto – dada a necessidade antropológica em ver algo de novo ali por um prisma inusitado e original, além de se manter atento à ocorrência de algum fato significativo que sempre estaria na iminência de se realizar. Isto, certamente, gera tensão em qualquer pesquisador. No que concerne à natureza desta pesquisa, é clara a tentativa de integração entre a perspectiva que privilegia a teoria da ação com a que evidencia as representações. Ou seja, proponho através de uma perspectiva micro-sociológica, obter visões de mundo a partir da interpretação dos interlocutores, aliando questionamento e campo, vivência empírica e discursividades consistentes, dados provenientes da observação e da indagação, a partir de sequências de eventos que focalizam gente, tempo e lugar. [O que possibilita, dessa forma,] a realização de análises que levam conjuntamente em consideração ação e representação, no contexto de circunstâncias específicas que se desenvolvem através do tempo, [e que podem ainda] favorecer a operacionalização de pesquisas que têm por premissa entender como conjuntos de significados são transmitidos e desenvolvidos e como a ação humana é medida por um projeto cultural no contexto das complexidades dos processos sociais. (FELDMAN-BIANCO, 1987, p. 11, grifos do autor). A meu ver, é este recurso que permite conciliar um tratamento dos sujeitos como atores sociais, focando a observação do comportamento concreto – típico da teoria das ações – com o entendimento manifesto discursivamente por estes sujeitos – característico da análise sobre representações. Assim, creio ter a efetiva possibilidade de compreender como o citadino integrante do estrato médio desenvolve formas de consumo, entretenimento e filiação ao espaço privado em estudo e como o estabelecimento desta relação reflete princípios 6 particulares de sua história de vida, sua trajetória pessoal e sua constituição como sujeito moral, componente da sociedade complexa moderno-contemporânea ocidental. Logo, em paralelo às visitas ao equipamento náutico, entrevistei seus administradores, promotores de algumas das festas realizadas no local e categorias de consumidores com perfis dos mais diversos, como, por exemplo, proprietários de embarcação, sujeitos que participam das festas, executivos que trabalham nas redondezas, além de profissional atuante na esfera de comunicação – um colunista social, já que este exerce o papel de legitimador social, totalizando 15 (quinze) entrevistas. As visitas à BM constituem a parcela mais complexa do trabalho, especificamente no que se refere ao levantamento de informações relevantes. O acesso ao local é difícil para as pessoas que não dispõem de automóvel ou embarcação própria, pois existe apenas uma parada de ônibus próxima em um dos sentidos da via.3 A permanência alongada em restaurantes mostrou-se devida e de fundamental importância para se compreender, por exemplo: (i) quem são estes freqüentadores; (ii) quando freqüentam; (iii) como freqüentam; (iv) como vão ao local; (v) quanto tempo permanecem; (vi) o que consomem (comidas e bebidas). Aglutinar tais informações às falas e experiências relatadas pelos entrevistados correspondem ao ideal para a constituição de uma narrativa etnográfica de fôlego. 3 Só tomei consciência da complexidade de acesso ao local quando li em um dos jornais locais da cidade, uma pequena nota sobre o assalto a um dos funcionários do restaurante Viña Del Mar, quando este se dirigia ao trabalho, sofrendo ferimento à bala. Explicarei. Em agosto, durante o trabalho de campo, optei por jantar neste estabelecimento. Após a realização de alguns pedidos e já apreciando o espaço, questionei a um dos garçons sobre o ocorrido. Ele confirmou o fato e, para minha surpresa, apresentou-me ao garçom, apontando-o, enquanto ambos recolhiam pratos usados e serviam mais couverts. O garçom, vítima da violência, preocupou-se em descrever detalhadamente o ocorrido. Questionei-lhe se algum outro cliente do local deu-lhe esta atenção ou procurou informações sobre seu estado de saúde atual. O incidente ocorreu em 25 de maio, seu dia de folga, por volta das 12:30h, ao sair do cursinho para pegar um carregador de celular esquecido no trabalho. Como a marina não possui ponto de ônibus próximo, ele usou como atalho uma escadaria ao lado do Hotel Las Vegas no Largo 2 de Julho – caminho comumente usado pelos funcionários do local. Ao fim da escada, dois indivíduos o abordaram e anunciaram o assalto. Ao reagir, inesperadamente, dois disparos o atingiram. Hoje, uma das balas ainda está alojada em seu corpo e, segundo ele, dá para senti-la. Dediquei-lhe palavras de força, incentivo e sorte. Era o mínimo que podia fazer. 7 2 A ABORDAGEM DO CONSUMO NA ANTROPOLOGIA 2.1 PANORAMA Um estudo sobre a prática do consumo na contemporaneidade exige precisão e fôlego por parte do pesquisador. Isso se deve a uma diversidade de estudos teóricos e empíricos sobre o tema, ofertados por inúmeras áreas de conhecimento, que dialogam diretamente entre si: ciências sociais, economia, administração, marketing, publicidade, psicologia do consumidor entre outras. Do ponto de vista histórico, pressupõe-se que a lógica do consumo, como é observada contemporaneamente, inicia-se no século XVIII e acelera-se na segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento econômico em decorrência da Revolução Industrial. Como veremos nesta seção, alguns autores, como Appadurai (2008) e Bevilaqua (2000) propõem uma construção inversa. Já na primeira metade do século XX, o enfoque na cadeia de produção – própria de uma sociedade industrial – cede espaço a enfoque no consumo em decorrência das modificações suscitadas pelo capitalismo contemporâneo. Como exemplo, pode-se apontar a adoção de um modelo de acumulação flexível, tanto na produção como no consumo (RETONDAR, 2008), além do redesenho dos padrões de compra, acréscimo de renda por parte da população, queda de preços dos artigos produzidos e, subseqüentemente, inclusão de segmentos sociais marginalizados – os estratos médios e as classes populares. Indubitavelmente, o capitalismo industrial passava a instituir a lógica comercial em diversas instâncias sociais. Se, por um lado, tínhamos a prevalência da produção – como foco de estudo e como fonte geradora de bens –, do outro, a aceleração do consumo que esta mesma produção incitou, conduziu uma reflexão sobre o interesse e os modos de compras de mercadorias. Futuramente, no século XX, este processo de comercialização de bens e serviços será fortalecido por meio do denominado “processo de mercantilização do lazer” com um instrumental singular: meios de comunicação de massa, marketing e publicidade. (TASCHNER, 2003). O principal período para a transição na abordagem dada ao consumo é a década de 70 e o início dos anos 80. Inicialmente, o tema adquire relevância na Europa e nos Estados 8 Unidos, firmando-se no âmbito acadêmico brasileiro, nos primeiros anos no século XXI, como uma área propícia à manifestação de novas abordagens teóricas e metodológicas capazes de contemplar, por exemplo, a existência de uma ordem cultural que lhe é subjacente; a formação de redes sociais derivadas de aproximações e diferenciações sociais entre os sujeitos – o que lhe destitui da condição de instrumento de manipulação; a identificação do consumo como um sistema que apresenta práticas classificatórias por parte dos seus usuários. (FEATHERSTONE, 1997; BARBOSA, CAMPBELL, 2006; RETONDAR, 2008). Estas, entre outras abordagens, serão discutidas nas páginas seguintes. 2.2 UMA ORDEM CULTURAL PARA O CONSUMO 2.2.1 Consumo como sistema simbólico A utilização dos objetos por grupos humanos respondem e refletem o sistema simbólico no qual habitam e convivem: Sem o consumo, o objeto não se completa como um produto: uma casa desocupada não é uma casa. [...] Essa determinação de valores de uso, um tipo específico de construção habitacional como um tipo específico de lar, representa um processo contínuo de vida social na qual os homens reciprocamente definem os objetos em termos de si e definem-se em termos de objetos. (SAHLINS, 2003, p. 169). O consumo, neste caso, mantém relação direta com a rede social do indivíduo, além de apresentar completa sintonia com a ordem cultural implícita que permite o fluxo contínuo desta sociedade – o seu devir. (SAHLINS, 2003) A fim de melhor analisarmos as considerações deste antropólogo, acessemos um outro texto de sua autoria e uma entrevista concedida em 2006. No primeiro deles, Sahlins (2004) registra como o uso de valores monetários pela sociedade de mercado para a mensuração de bens e serviços encobre a real significação das coisas. Com isso, a relação dos sujeitos com estas mercadorias seria meramente econômica, o que implica, por conseqüência, na proposição de relações culturais mediadas pelo cálculo econômico. O alerta do autor incide sobre como este enfoque utilitarista – ou meramente econômico – oculta uma ordem simbólica subjacente à produção e ao consumo de objetos, já 9 que estes são demarcadores de categorias sociais. Trata-se, acima de tudo, de um raciocínio que almeja desenvolver a noção da atividade econômica como uma disposição funcional da ordem cultural (SAHLINS, 2006). Portanto, para Sahlins (2003) a produção de bens deriva da constituição do sistema cultural da sociedade e só possui significação social como “bem” a partir do momento em que os sujeitos constituintes desta sociedade o definem simbolicamente como tal. Nada melhor do que comprovar empiricamente esta compreensão por meio de um exemplo etnográfico que expõe os efeitos do tempo e da emoção na ligação entre homens e objetos. Para tanto, recorramos a Miller (2002). Miller (2002, 2007) norteia suas pesquisas em busca da associação entre consumo como cultura material e da defesa de estudos focados em questões como: (i) a corporificação de trabalho necessária para sua produção; (ii) a forma como os consumidores reconhecem os produtos que compram; (iii) as relações humanas, sociais e afetivas decorrentes de sua aquisição etc. Em estudos desta natureza consegue-se, através dos bens, apurar princípios de sociabilidade entre os indivíduos e, mais além, indícios da indissociabilidade entre materialidade e humanidade. Como bom antropólogo, o estudo seminal de Miller (2002) sobre os hábitos de compra na zona norte de Londres cumpre as diretrizes sugeridas aos novos estudos sobre consumo ao dar espaço à voz do consumidor e ilustra o debate aqui exposto sobre a relação entre consumo e sociabilidade. Sua etnografia evidencia claramente o envolvimento destes sujeitos com seus objetos de compra, perpassando ainda relações familiares que uma “simples” ida ao supermercado suscita na dona de casa. Sua pesquisa ilustra, por exemplo, como a menção a determinados produtos que possuem longevidade no mercado e sua utilização – normalmente introduzida nos atuais consumidores por gerações passadas – relacionam-se à sua memória sentimental. A constância e previsibilidade destas marcas respeitam uma estabilidade cultural e atendem ao indivíduo por projetar-lhe simbolicamente uma significação já sedimentada. De fato, torna-se nítido como a atividade econômica capitalista contemporânea caminha refletindo uma ordem cultural pré-existente, o que faz com que a produção, por conseguinte, possua uma explicação cultural para sua existência. Subjacente a esta produção, há o entendimento, por parte de alguns pesquisadores, de que a lógica do consumo manifestada na sociedade permite o desenvolvimento de redes sociais entre os indivíduos, como sugere Douglas (2006, 2007) e outros, além de operar mecanismos de diferenciação social, conforme apontam Baudrillard (2008) e Bourdieu (2007) – expoentes da tradição 10 francesa que endossam esta ótica com distintas nuances. Tais perspectivas serão abordadas, respectivamente, nas subseções seguintes. 2.2.2 Consumo como rede social Douglas e Isherwood (2006, p. 102) são alguns dos pioneiros a expressar uma conceituação própria sobre o consumo – “uso de posses materiais que está além do comércio e é livre dentro da lei” – e promover uma alteração na forma de tratamento dada ao tema ao superar o propósito da emulação como elemento motivacional. Na apresentação da edição brasileira, Rocha (2006a) ressalta a importância da obra e destaca como o consumo pode ser explicado de três formas distintas: a “hedonista”, por meio de uma associação entre sucesso, felicidade e acúmulo de bens suscitado pelo discurso publicitário; a “moralista”, conferindolhe a responsabilidade pelas mazelas sociais e, por fim, o “naturalista”, atribuindo sua existência à natureza, à biologia ou a universalidade humana. O cerne da obra de Douglas e Isherwood (2006) é, precisamente, reforçar esta crítica a uma abordagem do consumo restritiva em razão, normalmente, de uma análise econômica que concebe as escolhas dos indivíduos como estritamente racionais (teoria utilitarista) ou decorrentes da satisfação das necessidades físicas (teoria materialista ou higiênica). Em algumas situações, a insuficiência desta explicação é justificada pela teoria das necessidades por inveja, a qual imputa ao sujeito sentimentos de cobiça para a aquisição de novo objetos – é o princípio da emulação que conduz ao consumo conspícuo vebleniano (1965). A antropologia serve à economia na medida em que “introduz a dimensão social das necessidades” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006, p. 151) e compreende o consumo como um ritual, no qual os objetos assumem a condição de acessórios para a construção de um universo próprio por parte do consumidor. É neste universo que o sujeito desenvolverá sua rede de socialização: O consumo é um sistema de rituais recíprocos que envolvem gastos para a marcação apropriada da ocasião, seja dos visitantes e anfitriões, seja da comunidade em geral. [...] O que chamamos de rituais de consumo são as marcas normais da amizade. O fluxo padronizado de consumo mostra um mapa da integração social. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006, p. 40). A busca em responder a pergunta “por que as pessoas querem bens?” desloca-se do mero levantamento de bens ou do seu (excessivo) acúmulo para um olhar que os aponta como 11 instrumentos de socialização e integração social; olhar este que rastreie a necessidade de reciprocidade entre os agentes envolvidos no processo – amigos, parentes, chefes etc. – e a indispensabilidade de se pensar em seu círculo social como definidor e gerenciador destas relações, nas quais se entrelaçam consumo e convivência. Em um novo artigo, onde retoma sua reflexão sobre os bens, Douglas (2007) aponta como Mauss (2003) já focaliza as ditas “economias primitivas”, nas quais a dádiva é o principal método de distribuição de bens, o que contrasta com as economias monetarizadas atuais, espaço da ciência econômica. Para a antropóloga, Mauss (2003) compreende a lacuna entre a antropologia e a economia e não almeja firmar um elo entre ambas, mas, opostamente, deter-se e idealizar o caso primitivo, o que faz com que sua obra, aparentemente, não tenha relevância para a economia moderna, porém é nítida sua identificação da economia como um processo circular, legitimada com o sentido de “prestação total” que a teoria da dádiva constitui. Por sua vez, esta teoria mostrar-se-ia adequada à economia moderna se alterasse o modo como percebe o consumidor. No lugar de conceber a demanda deste consumidor como uma demanda por bens para consumo próprio, dever-se-ia vê-lo como um indivíduo social, que consome para si, como também para dividir e compartilhar. Decerto, a dádiva veio primeiramente, elementar e “primitiva” (MAUSS, 2003), mas coube ao dinheiro surgir com a civilização, redefinindo os laços familiares e re-estruturando a base moral da comunidade. Vejamos como Douglas e Isherwood (2006) analisam os desdobramentos da socialização ocasionados pelas relações sociais e a indispensabilidade de certo rendimento financeiro para sua realização: Mais do que provavelmente, a possibilidade de um homem não se tornar dispensável na próxima década e, certamente, a capacidade de levar seus filhos para cima dependem da escala de consumo que mantém. Ele deverá manter boas relações com os amigos de seu pai e seus antigos colegas de trabalho, e manter contato com seus irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas. O rendimento muitas vezes depende de amplas fontes de informação que só podem ser alcançadas pelo consumo compartilhado. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006, p. 144-145, grifo meu). É, sem dúvida, uma forma de analisar o consumo que o apresenta como uma prática social a partir da qual se irradiam outras atividades sociais, propiciadoras de novas perspectivas financeiras e profissionais aos sujeitos envolvidos. Isto justifica a importância do convívio com outros distintos grupos de indivíduos, como familiares ou profissionais. Segundo Douglas (2007), enquanto esta noção sobre “escala” e “compartilhamento” na prática de consumo passa despercebida, os economistas dedicam seus estudos a economias 12 de mercado e os antropólogos às economias de dádiva. O conceito de “escala” relaciona-se, diretamente, a esta rede social do indivíduo, ou seja, à importância das pessoas com quem se relaciona – o que permite compreender o consumo como um “investimento” social no estilo de vida que este sujeito nutre: “a educação, a orientação, os elos de comunicação, os elos de informação etc., tudo isso faz parte das considerações de escala.” (FARDON, 2004, p. 211). Portanto, é a dimensão desta escala que evidencia o nível de compartilhamento que o indivíduo e sua família gozam e lhes possibilitam outras redes e tramas de integração social. As posses materiais e suas formas de circulação e distribuição junto aos mais próximos são exercícios recorrentes e indispensáveis para o estabelecimento e a manutenção de relações sociais. A readequação de conceitos na interface dos campos disciplinares da antropologia e economia é realizada por alguns estudiosos da área, segundo Douglas (2007), como, por exemplo, o economista Dasgupta (1993). No entendimento da autora, para este autor, o consumo [...] produz o tipo de sociedade na qual o consumidor vive. Consumo é o processo de transformar mercadorias em bem-estar. Nem os bens, nem os objetos, mas a sociedade é o produto. As escolhas de consumo são em relação a quem vai comer em nossa casa, quem será excluído, com quem nossas crianças irão brincar, ir à escola, casar. Há aspectos importantes no trecho em destaque. Embasando discussão anterior, a formulação de uma sociedade por meio do consumo só se torna exeqüível com a préexistência de uma ordem cultural subjacente. A mesma que permite aos bens suscitarem conforto em determinadas modalidades de uso. Um segundo ponto de vista, no mesmo fragmento, consiste no entendimento da família como uma unidade produtiva – ponto de vista reforçado por Fardon (2004), biógrafo de Douglas, ao descrevê-la como grupo engajado em atividades de trabalho e detentor de um estilo de vida próprio para seus integrantes, o que incita a aquisição de bens e serviços capazes de tornar o ambiente familiar “ordenado, compreensível e habitável.” (p. 210). Como estes bens situam-se em categorias, seus usos em rituais de consumo demarcam-nas. De fato, o consumo cumpre uma função comunicativa, como aponta Fardon (2004), na medida em que caracteriza o estilo de vida da família e espelha nestes sujeitosconsumidores a conduta pessoal que criaram para viver e habitar. Como estas criações são particulares, as informações transmitidas e recebidas por estes indivíduos possuem natureza diversa, o que reforça o caráter marcador dos bens e a necessidade dos eventos de consumo como meios de provar ou testar a existência de uma denominação compartilhável entre estes sujeitos. 13 As escolhas referentes ao consumo são padronizadas, porque correspondem aos requisitos do convívio com outras pessoas num tipo definido de meio social. Em vez de criticar duramente as pessoas por sua maneira insensata de gastar dinheiro, os investigadores deveriam se perguntar que tipo de socialidade o consumo delas se destina a reproduzir. (FARDON, 2004, p. 215, grifos meus). Na medida em que estas escolhas seguem um padrão, é possível identificar através das mesmas certo ordenamento e regularidade no desenho de consumo realizados pelos indivíduos. Uma ação dissonante no que tange à seleção e compra de determinada mercadoria repercute na socialização que este bem é capaz de engendrar – seja aproximando indivíduos ou diferenciando-os, conforme veremos na próxima subseção – consideração esta que só vem a legitimar a função comunicativa dos bens. 2.2.3 Consumo como diferenciação social Na perspectiva de Baudrillard (2008), o sujeito é submetido à vilania do consumo e tragado pela sua espiral cíclica, permanente e fantasiosa por bens. Se os bens são signos, eles portam e revelam o status de quem os usa, o que leva a duas ocorrências: (a) os mass media sempre estimularão o apego e a imprescindibilidade do novo e (b) os consumidores sempre ansiarão por um bem-estar inalcançável. Estas ocorrências alinham-se aos denominados “processos de consumo” que Baudrillard (2008) aponta: o “processo de significação e de comunicação”, que observa a prática de consumo como um código e o “processo de classificação e de diferenciação”, no qual os objetos-signos assumem a condição de valores estatutários hierarquizáveis. Assim, “o consumo surge como conduta ativa e coletiva, como coação e moral, como instituição. Compõe todo um sistema de valores, com tudo o que este termo implica enquanto função de integração do grupo e de controle social.” (BAUDRILLARD, 2008, p. 95). Se, à época de sua publicação – 1970 –, sua análise refletia o consumo como prática única e exclusivamente destrutiva, hoje, ressalva-se seu estudo, justamente, por não contemplar o sentido de agência existente neste sujeito frente a uma determinação que se insinua massiva e acintosa. (LIMA, 2003; ORTNER, 2007). No fim dos anos 70, cabe a Bourdieu (2007) elaborar o delineamento de uma grade hierárquica por meio do consumo, operando o gosto como categoria objetiva de análise. Esta forma de conceber permite investigar como são compreendidos os bens simbólicos em 14 diferentes classes sociais, tendo como ponto de partida o entendimento de que a educação familiar e escolar permitem a “apuração” do indivíduo, dispondo-o a uma percepção estética mais refinada sobre os bens ofertados socialmente. Uma reflexão desta natureza torna-se possível em razão do conceito de “habitus” proposto pelo autor, o qual tende a refletir as disposições, formas de classificação e preferências pessoais do indivíduo frente à adequação e validade do seu próprio gosto em relação a determinadas práticas e bens culturais. Na relação entre as duas capacidades que definem o “habitus”, ou seja, capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gostos), é que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida. (BOURDIEU, 2007, p. 162). O “habitus”, portanto, assegura e orienta as ações na medida em que é produto das relações sociais e tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações objetivas que o engendraram. Assim, quando os sujeitos interiorizam valores, normas e princípios sociais encontra-se assegurada a adequação entre suas ações e a realidade objetiva da sociedade como um todo. Ter-se-á, com isso, clivagens específicas entre os estratos sociais através dos quais se definem campos delimitados de atuação dos sujeitos integrantes. Com isso, deve-se rechaçar um entendimento do gosto como pertencente ao campo da subjetividade e observá-lo como uma objetividade interiorizada, capaz de conduzir a escolha estética deste indivíduo. Atenta a esta configuração, a sociedade capitalista é hábil na produção, em volume e permanentemente, de novos bens que possam redefinir o status social dos seus possuidores, desenhando-se, com isso, uma hierarquia de consumidores a partir da gramática cultural articulada pelo sujeito. Afinal, como a distribuição de bens materiais e simbólicos é feita desigualmente, as escolhas, por partes dos sujeitos, refletem e reproduzem as relações de dominação existentes na sociedade. É interessante observar como a produção de Bourdieu (2007) articula-se com a de Baudrillard (2008) no que se refere ao caráter diferenciador que determinado bem confere ao sujeito que o ostenta. Obviamente, as reflexões particulares de cada um são claros desdobramentos de referenciais teóricas anteriores, como a teoria da prática proposta pelo primeiro e a compreensão sobre os signos deste último. Saliento, acima de tudo, como a temática do consumo, com as publicações até então apresentadas ganha novos contornos analíticos sem tangenciar o cerne da questão – o processo de compra de um bem ou serviço –, mas abarcando um conjunto de circunstâncias sociais e simbólicas que são imprescindíveis para a composição de um painel no qual estes 15 objetos dialogam entre si e com os homens a partir de uma ordem cultural que lhe é imanente. Porém, a seguir, trago problematizações, especificamente, sobre as análises de Douglas (2006, 2007) e proponho um “significado público” para o consumo, com base em novas abordagens sobre o tema. 2.3 UM “SIGNIFICADO PÚBLICO” PARA O CONSUMO Constato que os ecos de Miller (2007), Sahlins (2003) e Douglas (2006, 2007) foram ouvidos e renderam incursões das mais diversas e consistentes. Porém é pertinente destacar as críticas recebidas pela antropóloga britânica no que tange à sua tentativa de produção de uma “teoria universal e ahistórica do consumo”, segundo Retondar (2008, p. 156), a qual dispensaria o surgimento de novos padrões de valores que alicerçam o gosto, o que lhe faz olhar o consumo como uma imagem refletida da realidade social pré-existente, além de restringir o tratamento do mesmo às práticas rituais, desconsiderando que os significados públicos sobre o tema já integram o vocabulário dos profissionais que trabalham em áreas, como publicidade, design, marketing etc. (SLATER, 2002). É bem verdade que a proposta douglasiana sobre o consumo assume ares universalistas. Suponho que esta ocorrência decorre dos referenciais econômicos com os quais trava reflexão. Assim, na tentativa de oxigenar os princípios desta disciplina, acaba por construir um modelo acerca do consumo que julga universalmente adequado. Quanto à ressalva de Slater (2002), proponho a indispensabilidade de se acessar as considerações de Douglas (2007) em revisão à sua obra inicial. Neste artigo, a autora identifica que, possivelmente, os gostos provêm da relação entre padrões de trabalho e de convívio, respeitando o tempo e o lugar, além de declarar-se entusiasmada diante dos estudos sobre “convenção”, definida como um acordo a se fazer algo de uma certa maneira sem um motivo racional do porquê deve tal coisa ser feita de tal maneira, mas com um forte desejo de todos envolvidos de que alguma regra, seja qual for, deve ser usualmente observada. [...] A moda, e porque as pessoas escolhem o que elas escolhem, é certamente em grande parte uma questão de convenção. (DOUGLAS, 2007, p. 26). Respondo a Slater (2002) na medida em que vejo esta indicação de Douglas (2007) como um apontamento claro sobre sua suspeita de que, contemporaneamente, o consumo já manifesta um “significado público”, sendo absorvido e tratado por categorias específicas de 16 profissionais atentos à consonância existente entre a ordem cultural e as convenções exercidas na prática, a fim de organizar e dispor a permanente produção de bens que respeitem a manifestação dos novos gostos. De fato, o âmbito da moda é significativo para se mapear estas convenções na medida em que sua ocorrência é fruto de um processo caracterizado pelo culto ao presente em detrimento do peso da tradição e pela legitimação da noção do individualismo na sociedade ocidental. A partir do final do século XVI, já como um dos indícios do ingresso na era moderna, o culto da novidade ganha legitimidade, gerando um terreno propício para seu culto – mesmo que destinado a poucos. (TASCHNER, 2003). Para McCracken (2007), a moda, assim como a publicidade, são as instâncias responsáveis por transmitir o significado do mundo culturalmente constituído para os bens. Nessa última instância, o anúncio publicitário transfere as propriedades culturais conhecidas para as propriedades até então desconhecidas de uma mercadoria. Este processo cumpre seu objetivo quando o indivíduo/receptor da peça publicitária visualiza uma congruência entre mundo e bem material. É válido apontar a clara influência de Sahlins (2003) para a construção deste raciocínio pelo autor. No que concerne ao sistema da moda, esta transferência de significados se dá de três formas. A primeira delas consiste no deslocamento manifesto através de jornais, revistas e meios de comunicação especializados para os bens em questão. A segunda possibilidade repousa no papel desempenhado por formadores de opinião e legitimadores sociais na realização de refinamentos e reformas nas categorias culturais existentes. No entendimento de McCracken (2007), os realizadores destas tarefas são indivíduos imbuídos de prestígio e status social, como artistas e integrantes do show business. A terceira alternativa compreende a mais inventiva, pois se ampara em uma reforma radical dos significados culturais – exercício este comumente praticado em uma sociedade ocidental industrial. Para o autor, a alimentação de setores econômicos, sociais e culturais da sociedade ocidental requer, para seu funcionamento, a ocorrência destas mudanças mais ousadas e “o sistema de moda é um dos dutos que captam e movimentam significados culturais altamente inovadores.” (McCRACKEN, 2007, p. 106). Assim, os grupos de hippies, punks e gays, pertencentes ao coletivo social, assumem a responsabilidade pela invenção de um significado cultural mais inovador, justamente, por viverem à margem da sociedade e por violarem categorias culturais como idade, prestígio e gênero. É interessante atentar como McCracken (2007) articula estas transferências de significados culturais e rejeita um viés que subjugue o sujeito a esta engrenagem. 17 Opostamente, sua abordagem responsabiliza-o pela construção de seu campo pessoal e de sua autoimagem a partir da cultura material que agrega para si, conforme ressalto no seguinte trecho: Uma das maneiras pelas quais os indivíduos satisfazem sua liberdade e cumprem a responsabilidade da autodefinição é por meio da apropriação sistemática das propriedades significativas dos bens. [...] O indivíduo usa os bens de maneira livre de problemas para constituir partes cruciais de si mesmo e do mundo. (McCRACKEN, 2007, p. 110). Assim, como McCracken (2007), Featherstone (1995, 1997), Campbell (2001) e Canclini (2006) endossam a identificação do consumo como construtor de identidades e como um sistema que apresenta práticas classificatórias por parte dos seus usuários – discussão esta já mencionada com base na ótica francesa. Featherstone (1995, 1997) concentra suas discussões em questionamentos sobre a denominada pós-modernidade, seu intervalo temporal e reforça a noção do distintivo binômio estilo de vida versus bens de consumo. Para tanto, recorre aos autores clássicos da disciplina e avança quando analisa a relação entre o âmbito econômico e a esfera cultural, apontando o privilégio de especialistas econômicos e detentores de capital em detrimento de especialistas em produção simbólica (artistas, intelectuais e acadêmicos). Segundo o autor, a demanda por bens será desejada com a configuração de uma sociedade baseada no consumo e nas credenciais educacionais. Esta conclusão reforça o imaginário comumente ligado aos bens, fazendo com que consumidores recorram a associações simbólicas para construir modelos distintos de estilos de vida. O foco educacional também é mencionado por Campbell (2001), mas sua originalidade reside na indicação do caráter de experiência sensorial que o consumo manifesta, a partir do amor romântico, durante o século XVIII. Como isso, a prática de compra reveste-se de lazer na medida em que assume a condição de instrumento para a renovação da aparência do sujeito ou para o seu relaxamento, permitindo-o ingressar em contextos de profundo apelo imaginativo. Canclini (2006, p. 62), por sua vez, se abastece da literatura consagrada. Assim, compartilha com Douglas e Isherwood (2006) o entendimento dos bens como responsáveis pela integração e pelo diálogo entre os componentes de uma sociedade e com Bourdieu (2007) e outros, o caráter distintivo que a posse de alguns bens ocasiona devido à escassez ou impossibilidade de compartilhamento que o caracteriza e diferencia. 18 De forma original, o autor contempla o caráter ordenador que a posse de bens institui na sociedade contemporânea. Assim, consumir surge como um exercício estabilizador e facilitador nas relações sociais em curso: Comprar objetos, pendurá-los ou distribuí-los pela casa, assinalar-lhes um lugar em uma ordem, atribuir-lhes funções na comunicação com os outros, são os recursos para se pensar o próprio corpo, a instável ordem social e as interações incertas com os demais. Consumir é tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora. (CANCLINI, 2006, p. 65). Como se identifica, as mercadorias, na ótica de Canclini (2006) são úteis para o sujeito pensar sobre si mesmo e sobre o mundo no qual habita, constituindo um universo de bens materiais capazes de firmar comunicações, estreitar laços e impedir seu isolamento enquanto sujeito. Esta articulação torna-se possível e coerente na medida em que o autor compreende o mercado como um espaço para interações socioculturais mais complexas e o valor mercantil como resultante destas interações em que os indivíduos usam os objetos. O consumo serve, portanto, para enviar e receber mensagens. Um denominador comum presente nos estudos de McCracken (2007), Featherstone (1995, 1997), Campbell (2001) e Canclini (2006) é a produção de conexões que já contemplam o “significado público” suscitado pelo consumo, o que lhes fazem recorrer e mapear, respectivamente, o trabalho de publicitários e produtores de moda; a composição dos estilos de vida pelos sujeitos, sua relação com as experiências de consumo e os mercados de consumidores em comunidades transnacionais, detendo-se, inclusive, em países da América Latina, como o Brasil e o México. Portanto, a preocupação de Slater (2002) sobre questões desconsideradas por Douglas (2006) já ganharam enfoque e a devida análise necessária. Assim, dedico-me, agora, a analisar a vida social dos bens, conforme designa Appadurai (2008) e como este enfoque mostra-se compatível com a antropologia do consumo desenvolvida em nosso país. 2.4 NO RASTRO DAS MERCADORIAS Além destas reflexões sobre o culto ao presente no que tange, Appadurai (2008, p. 17) enuncia uma nova investida nos estudos sobre consumo ao defender que se siga “as coisas em si mesmas, pois seus significados estão inscritos em suas formas, seus usos, suas 19 trajetórias. Somente pela análise destas trajetórias podemos interpretar as transações e os cálculos humanos que dão vida às coisas.” Considero a proposta do antropólogo uma das mais inventivas ao propor uma investigação sobre o percurso destes bens, rastreando sua vida social. A originalidade do autor também repousa na argumentação construída e compartilhada com Mukerji (1983), para quem a cultura materialista e o formato do consumo de produtos visto contemporaneamente contribuíram para a revolução tecnológica do capitalismo industrial. Trata-se de uma inversão que solapa a tradicional perspectiva que atribui à sociedade capitalista a responsabilidade pela produção de artigos em série e seu estímulo ao consumo, perspectiva esta associada diretamente à existência de uma produção massiva canalizada em um consumo intenso e permanente. Segundo Appadurai (2008, p. 56), Mukerji (1983) “apresenta novas evidências e argumentos para colocar o gosto, a demanda e a moda no centro de uma explicação cultural das origens do capitalismo ocidental.” Ao dispor a demanda como fenômeno capaz de explicar culturalmente os desígnios capitalistas, o autor refuta os habituais conceitos que a mesma recebe, ora apontada como reveladora das necessidades humanas, decorrente da manipulação social, ora como expressão de um insaciável desejo humano. Sendo a demanda, para Appadurai (2008), uma expressão econômica da lógica política do consumo, seu surgimento se dá em função de práticas e classificações sociais. Assim, ela manifesta dois tipos distintos de relação entre consumo e produção, enviando e recebendo mensagens sociais. Ou seja, a demanda é determinada por forças sócio-econômicas e também pode manipular, dentro de determinadas circunstâncias, estas forças sociais e econômicas. Ilustra-se este conceito de demanda com os gostos da elite. Estes cumprem a função de “filtro” para que se selecionem possibilidades exógenas de consumo e, com isso, se construam modelos para os gostos e a produção interna. Portanto, “a demanda não é nem uma reação mecânica à estrutura e ao nível de produção, nem uma ânsia natural insondável. É um complexo mecanismo social que intermedeia padrões da circulação de mercadorias de longo e curto prazo.” (APPADURAI, 2008, p. 60). Um dos conceitos centrais para o entendimento da vida social das mercadorias é a noção de mitologia que as mesmas geram. Segundo o pesquisador, há (a) mitologias produzidas por comerciantes e produtores alheios à origem e destinação dos artigos; (b) mitologias criadas por consumidores indiferentes ao processo de produção e distribuição das 20 mercadorias e (c) mitologias geradas pelos trabalhadores comprometidos com a produção dos objetos, mas alienados diante da lógica de distribuição e consumo dos mesmos. É interessante observar como estas mitologias aliam-se aos percursos de investigação sugeridos por Miller (2007) e anteriormente mencionados. Este tipo de confluência revela como os principais articuladores da temática do consumo na antropologia desenvolvem seus estudos à luz de um denominador comum, amparado seja no discurso do fabricante, intermediários ou consumidores dos bens culturais disponíveis no mercado. Exemplificarei estes distintos pontos de vista através de alguns trabalhos realizados no Brasil. 2.4.1 No rastro de uma antropologia do consumo brasileira A antropologia do consumo, por exemplo, desenvolvida em âmbito brasileiro tem mapeado estes diferentes caminhos por meio de etnografias, as quais retratam, por diferentes prismas, as diversas estratégias de consumo operacionalizadas pelos indivíduos em contextos urbanos. Opto por esta divisão entre o enfoque clássico e a produção nacional, como um recurso para evidenciar como a literatura produzida no país, à luz das particularidades da nossa sociedade, produz um campo vasto de etnografias, as quais se enveredam pelos percursos mais diversos. Destaco, por exemplo, as considerações de Rocha (2000, 2005a, 2005b, 2006a, 2006b?, 2006c, 2007), pioneiro na área, acerca do papel da mídia na passagem dos bens da esfera da produção para a de consumo – um claro indício da influência de Sahlins (2003) e McCracken (2007) em sua argumentação. O antropólogo, por exemplo, recorre a anúncios publicitários, como os da Petrobras para o óleo “Lubrax” e para o combustível “Extra Diesel Aditivado” para ilustrar o processo de transferência de significados culturais, além de dedicar-se à construção de uma agenda sobre os estudos de consumo de inspiração etnográfica e suas possibilidades de confluência para a área de marketing (ROCHA, ROCHA, 2007). Barbosa (2003) avança este diálogo entre as áreas e propõe o “marketing etnográfico” como uma forma de fazer uso dos pressupostos teóricos e metodológicos definidos pela antropologia pela área organizacional. Como a etnografia exibe-se como um vantajoso instrumento para mapear o universo simbólico e as práticas de consumo dos 21 entrevistados, o desenvolvimento de trabalhos de campo de caráter qualitativo surge como uma opção frente à redução das pesquisas de mercado de cunho quantitativo e se fortalece na medida em que permite compreender a lógica e os valores atribuídos aos bens e serviços adquiridos e o manejo, por parte do consumidor, da gramática sociocultural na qual vive. A validação de um enfoque desta natureza requer, segundo a autora, um entendimento sobre consumo como um meio, iniciado antes da realização da compra propriamente dita e que prossegue até o descarte da mercadoria. Logo, esta cultura material é produtora de significados, o que demanda a necessidade de compreensão e análise dos processos de significação destes bens para os sujeitos e a identificação dos conjuntos ideológicos e discursivos que se ocultam nos distintos sistemas de consumo, segmentados a partir dos inúmeros estilos de vida existentes. Em outras obras, Barbosa (2004a, 2004b, 2006), assim como Retondar (2008, 2009), dedicam-se à exposição de um arrazoado sobre o consumo, contemplando, respectivamente, a formação do campo disciplinar e a inserção do sujeito contemporâneo neste contexto. Saliento ainda as significativas etnografias de Lima (2003, 2005, 2007a, 2007b, 2008) sobre a sociedade carioca e seu “ethos” particular e os estudos de Leitão (2004, 2006, 2007) sobre moda e corpo. Retomarei, mais a frente, as contribuições das pesquisas por elas realizadas. Concentro-me, agora, na compreensão de Bevilaqua (2000, 2003?) acerca do consumo. A antropóloga apresenta uma ótica que se assemelha a de Appadurai (2008) e Mukerji (1983), porém, para enunciá-la, a autora acessa as contribuições de Braudel (1995), para quem a cultura de consumo já é delineada no século XV, o que refutaria a hipótese de sua decorrência da industrialização acelerada do século XX. No entendimento de Bevilaqua (2000), a cultura ocidental passa a depender de novos bens para expressar suas transformações no tempo, no espaço, na sociedade e no próprio indivíduo. Assim, constituir sua existência e suas formas de comunicação incide, diretamente, na cultura material que produz para si. O consumo assume uma freqüência e passa a implicar em tempo e aprendizado pelos sujeitos para sua realização. Com isso, um repertório de consumo é construído na medida em que os objetos ingressam na vida cotidiana destes homens e são utilizados como mecanismos de diferenciação, aproximação e compartilhamento. Negar-se a esta tarefa é recusar-se a estabelecer relações sociais. Ao desenvolver trabalho de campo analisando as reivindicações formais realizadas no Programa de Orientação e Proteção ao Consumidor (PROCON) de Curitiba (PR), Bevilaqua (2000, 2003?) verifica a indissociabilidade entre o campo das relações pessoais e o 22 mundo das relações de mercado, o que refuta a suposta separação que o mercado capitalista acarretaria a estas instâncias, isto porque, uma vez que a organização da experiência e da ação por meios simbólicos, na sociedade contemporânea, envolve necessariamente os bens de consumo [...], um processo judicial envolvendo direitos do consumidor é também uma querela simbólica, em que podem estar em jogo concepções muito mais essenciais e as próprias identidades dos envolvidos. (BELIVAQUA, 2000, p. 87). Esta identidade é passível de manifestação, pois o princípio da reciprocidade entre as partes – o cliente e o vendedor/fabricante – mantém-se vivo frente à disputa legal. Afinal, para a autora, a emergência do conflito repousa na quebra de premissas que permitiram a troca inicial, ou seja, na ruptura de uma relação mútua de equivalência de papéis sociais entre os parceiros comerciais, relação esta que neutralizaria qualquer assimetria de posição ou poder. Neste estudo, como em outros já analisados, visualiza-se um consumidor como agente, como um ator/reprodutor e autor/criador de sua história, do seu universo e de si por meio da cultura material com a qual se abastece. O caráter volitivo que o caracteriza é denominador comum para as abordagens acerca do sujeito produzidas pela antropologia do consumo. Trata-se de um eixo analítico fundamental para se solapar em definitivo um ponto de vista que o vê como vítima da sociedade de mercado. Traçado este breve painel sobre a antropologia do consumo brasileira, considero prudente destacar reflexões mais aprofundadas sobre este tema e o lazer. É evidente a correlação entre ambos e a possibilidade de um diálogo profícuo, como proponho na seção subseqüente. 2.5 CONSUMO E LAZER EM ÁREA DE INTERFACE É impossível negar a existência de uma interseção entre consumo e lazer. Porém erro maior recai na identificação deste espaço como um constructo natural, dado como definitivo e característico da sociedade ocidental moderna capitalista contemporânea. A fim de dirimir equívocos, conceituarei lazer nas páginas seguintes e caracterizarei a área de interface entre os campos temáticos. Pondé (2007) torna compreensível o lazer a partir da construção de um painel histórico sobre o assunto, detectando, a princípio, como a visão corrente provém da Revolução Industrial, quando o trabalho restringia-se às atividades fabris, desassociando-se 23 das tarefas cotidianas. É na segunda metade do século XIX que surgem espaços específicos para o entretenimento, o que faz com que se redimensione a relação entre homens, tempo e espaço. É imprescindível observar como a autora mapeia conceituações a respeito do lazer em distintos campos disciplinares. Para a filosofia, o lazer era um dispositivo de alienação frente ao mercado capitalista; para a administração, um instrumento de recuperação do trabalhador, a fim de permitir o aumento de sua produtividade; para a sociologia, ferramenta útil para a educação e disciplina. No Brasil, a conveniente junção dos pontos de vista destes dois campos disciplinares enquadrou o lazer como atividade disciplinadora, propícia para o reavivamento dos trabalhadores e para a propensão a um desenvolvimento humano ordenado e correto. Pondé (2007) tece críticas às concepções aventadas pelos leisure studies, os quais restringem o lazer a atividades desempenhadas fora do trabalho e supõe a existência de “significados subjetivos que qualificam certas atividades como lazer ou não.” (p. 47). Porém os instrumentos construídos a fim de dimensionar o envolvimento do sujeito com estas atividades renunciam as concepções de lazer, restringindo-se a medir o desempenho dos indivíduos em práticas recreativas. Interessa à antropologia o entendimento do lazer como integrante de um amplo modelo cultural, desconsiderando qualquer julgamento acerca de sua utilidade ou perniciosidade, como enfatiza Pondé (2007, p. 54): “o que é fundamental [...] é que os seres humanos não vivem em um mundo puramente objetivo no qual os eventos possuem significados naturais, que lhes são inerentes.” A descoberta destes significados torna-se cabível quando se alia uma concepção de lazer mais abrangente a uma metodologia de pesquisa que incida sobre o sujeito, sem procurar enquadrá-lo em determinados perfis humanos ou mensurar sua capacidade recreativa – surveys ou etnografias rendem bons resultados, por exemplo. Recorramos, agora, a uma visão de lazer mais pertinente, como, por exemplo, a de Dumazedier (1999). Para Pondé (2007, p. 49), ele define lazer como um período de tempo livre de qualquer atividade compulsória seja profissional, familiar, espiritual ou obrigações políticas, usado para autosatisfação. [...] Para que uma atividade possa ser considerada como lazer ela deve ter sido escolhida livremente, opondo-se a obrigações primárias, não devendo ser relacionada com ganho de dinheiro, qualquer tipo de utilidade ou ideologia. O final único de tais atividades deve ser a autosatisfação pura. 24 No entendimento de Dumazedier (1999), o lazer corresponde a um estilo de comportamento, um tempo no qual o sujeito pode gozar e desenvolver as capacidades do seu gozo e espírito, a partir da diminuição da duração do trabalho e da eliminação das obrigações familiares, sócio-espirituais e sócio-políticas. Com fim em si mesmo, compreende, portanto, atividades físicas, artísticas, intelectuais e sociais, condicionadas aos limites sócioeconômicos, políticos e culturais de uma sociedade, através das quais o indivíduo exerce sua subjetividade. O autor atenta para o fato de que os equipamentos destinados à distração encontramse disponíveis, exclusivamente, como objetos de consumo: “os bens e serviços de lazer estão pois submetidos à mesmas leis do mercado que os outros bens e serviços.” (DUMAZEDIER, 1999, p. 93). Diferentemente de um ponto de vista que poderia subjugar o indivíduo à indústria de massa, vendo-o como elemento passível de manipulação, a compreensão deste cenário deve servir de estímulo para a elucidação de como o sujeito constrói e articula diferentes formas de entretenimento e, acima de tudo, o que define como tal prática. Decerto, algumas atividades de lazer exigem o consumo, mas que este as abrange em sua totalidade é uma consideração excessiva. Retomando Sahlins (2004), reduzir toda e qualquer prática social – seja um exercício de lazer, religioso etc. – como sujeita ao imperativo mercadológico na sociedade contemporânea reifica a própria atividade capitalista. Por outro lado, é errôneo desprezar completamente a existência de uma relação entre práticas de lazer e consumo, como identifica Arantes (1993). Este tipo de negligência impede, por exemplo, que se vislumbre nas atividades de lazer referenciais que lhes são característicos como o caráter desinteressado; libertatório, por ser uma livre escolha, sem qualquer obrigação institucional; hedonístico, já que almeja um estado de satisfação; e pessoal, por responder às necessidades particulares do sujeito. É a atenção nestes referenciais que permitem compreender a emersão da subjetividade do indivíduo. (DUMAZEDIER, 1999). Ainda segundo a ótica do sociólogo, confundir lazer com “tempo livre” mostra-se inadequado na medida em que este “significa apenas tempo liberado de um duplo trabalho, quer estes trabalhos permitam ou não o florescimento da personalidade, quer o tempo livre seja ou não limitado pelo condicionamento social.” (DUMAZEDIER, 1999, p. 90). Procuro, portanto, evitar esta expressão – exceto quando o autor do texto referenciado mencioná-la –, embora ela esteja presente em um dos primeiros textos de cunho antropológico dedicados à proposição de uma “antropologia do tempo livre” (ARANTES, 1993), o qual, além de ignorar 25 o clássico estudo sociológico, publicado, originalmente, em 1974, prega uma indistinguibilidade entre os termos. Além da constatação apontada pelo antropólogo, já anteriormente mencionada, este estudo torna-se valioso por defender que “pensar o lazer/uso do tempo livre como consumo, ou seja, como acesso (social), aquisição (material) e uso (prático e simbólico) diferenciado de recursos no contexto de sistemas de relações sociais e ordem moral é uma perspectiva de trabalho rica.” (ARANTES, 1993, p. 18). Esta riqueza é explorada pelo autor em estudo sobre a relação de gênero com a atividade de lazer, onde manifesta uma visão sobre o consumo como “ato de apropriação”, capaz de compelir ao relacionamento entre sujeitos e núcleos familiares – ótica esta bastante congruente a discutida na seção anterior.4 A aglutinação mais consistente sobre lazer e consumo é realizada por Taschner (2003). A autora pontua como, no século XIX, novos padrões de consumo atingem os segmentos sociais compostos por estratos médios e as classes populares. Ocorrência esta que se deve a fatores econômicos, como acréscimo de renda e queda de preços, em conseqüência da Revolução Industrial; ascensão da moda estimulada, por exemplo, pela reestruturação urbana de Paris e suas exposições e, por fim, às lojas de departamento, as quais, além de introduzirem o prazer no ato de compra – real ou imaginária –, redefinem a relação entre lazer e consumo. O surgimento destas lojas em Paris e em Londres ocorre na segunda metade do século XIX, chegando aos Estados Unidos logo em seguida. Em países de terceiro mundo e em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, apenas no século XX. Infelizmente, a autora prescinde em sua análise de autores como Appadurai (2008) e Bevilaqua (2000), embora recorra a Leach (1993) para apresentar as inovações trazidas por estas lojas: exposição diferenciada dos artigos; uso de cor, vidro e luz nas fachadas; remoção das barreiras entre consumidor e produto; múltiplos acessos, obtidos por portas-giratórias; amplidão interna e circulação facilitada por escadas rolantes; possibilidade de troca dos artigos, que deixaram de ficar escondidos para não se sujarem; etiquetas com preços visíveis nos produtos; segurança; possibilidade de percorrer o local, tocar nos artigos, experimentá-los e decidir sobre a possível compra. Se, segundo Taschner (2003, p. 252), “as lojas de departamento tiveram uma função pedagógica, agindo na socialização dos consumidores”, Gaillard (2008) ilustra esta sentença ao descrever a importância da loja “O paraíso das damas”, retratada no romance homônimo de 4 Arantes (1993), em outro artigo na mesma obra, analisa o consumo de bens culturais e “tempo livre” em São Paulo (capital), a partir de survey aplicado em 1989. Forjaz (1988) desenvolve estudo semelhante, porém de caráter qualitativo, sobre o lazer e consumo cultural das elites paulistas. 26 Émile Zola, para a Paris do século XIX. Segundo a historiadora, este espaço corresponde a um sonho comercial inimaginável para os citadinos. A renovação rápida das mercadorias, aliada ao amplo estoque, à seção infantil e à combinação entre arquitetura e decoração são algumas das estratégias para encantar a clientela e fazê-la experienciar algo inédito. Gaillard (2008) constata como este tipo de loja era incompreensível para parte da Europa até o momento, o que exigiu, em alguns países – Alemanha, por exemplo –, uma explicação descritiva aos leitores, a fim de tornar acessível o romance. Vejamos: A loja de departamentos prospera apenas em Paris até o final do século XIX porque Paris é então a única cidade da França a oferecer uma concentração burguesa e um apego às aparências suficientemente grandes para o comércio da moda se arriscar em tal escala. Nas capitais da Europa central e do sul, o obstáculo é o mesmo que no interior da França: uma burguesia pequena e uma mentalidade de resistência às despesas não rentáveis. A loja de departamentos não é portanto nem possível nem facilmente compreensível. (GAILLARD, 2008, p. 20). O trecho destacado, além de corroborar a identificação de Taschner (2003), reitera a ênfase nas aparências, típica da sociedade francesa, o que explica a ênfase analítica de autores como Bourdieu (2007) e Baudrillard (2008) na distinção e diferenciação social ao tratar do consumo. Outro aspecto refere-se a já discutida vertente defendida por Appadurai (2008) e Bevilaqua (2000): as mercadorias à venda impulsionariam, em outras localidades, a expansão do capitalismo e a adoção de prática de consumo, desde quando esta conduta seja coerente e compatível com a ordem cultural e simbólica (SAHLINS, 2003). Irmanados, o consumo carece da cultura para disseminar-se e, ao cumprir este feito, fomenta a produção de bens pela sociedade industrial. A menção ao estudo de Gaillard (2008) legitima-se como oportuna por delinear os primeiros contornos de uma interseção entre consumo e atividades de lazer e concatenar o arrazoado teórico da seção anterior com as explicações de Taschner (2003), além de ilustrar as referências trazidas por esta – a quem permaneceremos a discutir. Segundo a autora, prosseguindo em seu percurso histórico, o século XX estabelece novos paradigmas a partir do desenvolvimento da tríade meios de comunicação de massa, marketing e publicidade. Após a 2ª Guerra Mundial, o chamado “processo de mercantilização do lazer” faz com que esta atividade se torne objeto de uma indústria ou de um complexo de produtos ou serviços, sendo vendido em um mercado de massa, como ocorre, por exemplo, com parques temáticos, cinemas, automóveis, equipamentos de lazer doméstico etc. Tal conduta leva ao desenvolvimento de uma cultura de consumo nas sociedades ocidentais, 27 inicialmente, nos países de primeiro mundo e rapidamente se expandido aos demais. A zona de interface entre lazer e consumo ganha volume e espraiamento. Na opinião de Taschner (2003), as décadas de 70 e 80 promovem mudanças fundamentais para o convívio social. Enquanto a globalização promove uma reafirmação de identidades locais e regionais, os processos de padronização da produção e do consumo conduzem à informatização da base produtiva industrial, acelerando a velocidade dos fluxos de informação e tornando-a mais flexível. Com isso, há um redesenho no âmbito das relações profissionais: as típicas hierarquias burocráticas são substituídas por uma estrutura de redes, como também constata Barbosa (1999). Esta alteração no cenário interfere na articulação entre consumo e lazer de alguns modos para Taschner (2003). Há um nítido estreitamento dos laços entre estas esferas com o intuito de se desenvolver uma cultura material que seja sensível a diferenças culturais e ajustem-se às novas estruturas e relações profissionais e sociais – como, por exemplo, a oferta de equipamentos domésticos de entretenimento – e o espaço virtual, com o advento da internet e da televisão a cabo – espaços também destinados ao consumo e lazer. A área de interface torna-se nítida e irrevogável. De acordo com o referencial teórico adotado, a necessidade e o acesso a mercadorias sempre se reverterão ao sujeito como um modo de relacionar-se e compartilhar: o consumo é um meio. Por outro lado, a atividade de entretenimento esgota-se em sua própria realização: lazer é um fim em si mesmo. Considero pertinente, portanto, questionar: é possível apontar o lazer como um meio propiciador e gerador de novos exercícios de distração, relacionamento e de consumo para o sujeito? É com intuito de responder a esta questão – e aos objetivos a que este estudo se dedica – que este estudo avança. 28 3 CONSUMO E SOCIABILIDADE 3.1 SUJEITO E POSIÇÃO SOCIAL Atentemos para a fala do personagem Tchebutykin, da peça teatral “As três irmãs”, de Tchekhov (1976, p. 99): “Anteontem conversava-se no clube sobre Shakespeare e Voltaire... Jamais os li, mas fiz um ar de ter lido. E todos os outros eram como eu. Que vulgaridade! Que baixeza!” Ao decidir pesquisar estratos médios freqüentadores de uma marina da cidade – portanto, um espaço privado –, deparei-me com uma série de pré-noções que obstavam o entendimento completo da situação vivenciada: seriam estes sujeitos integrantes de uma elite da cidade? Comporiam uma parcela tradicional da sociedade ou uma classe emergente? A reprodução da fala de Tchebutykin da peça de Tchekhov (1976) ajusta-se a este contexto, pois desconsiderar estas questões é ratificar, homogeneamente, que todos, porventura, desconhecessem “Shakespeare e Voltaire” e agissem como se os compreendessem. Ora, que garantia se tem para a realização, por parte daqueles que “conversam no clube” – ou melhor, na marina –, de uma representação tão incongruente entre forma e conteúdo? Ou ainda: como assegurar-me que todos os freqüentadores da marina compõem sujeitos de uma mesma pertença social e capazes de se declarar como tais? No que tange à investigação de uma camada urbana freqüentadora de um espaço privado, sendo este espaço, reconhecidamente, um centro náutico desenvolvido para fins de lazer marítimo e festivo ou de apreciação gastronômica, é possível que se impute ao pesquisador a errônea noção de se tratar de um estudo etnográfico sobre a dita “elite” ou considerar que a totalidade dos seus visitantes integram a denominada “classe média” da sociedade em estudo. A fim de corrigir este erro, rechaço a denominação “elite” também em virtude da carga conceitual que o termo “elitista” contém, permitindo uma alusão às concepções teóricas manifestas pela Teoria das Elites, ao término do século XIX e início do XX. (GRYNSZPAN, 1996). São, justamente, os elos de diálogo e as possibilidades de cruzamento entre os indivíduos de distintos estratos sociais que tornam a divisão em classes um recurso limitador e exíguo para um contexto social tão dinâmico como o atual. Não se quer, com isso, 29 desconsiderar ou eliminar a existência de uma hierarquia dentro da sociedade brasileira, mas, sim, refutar o denominado “fatalismo sociológico”, o qual confere ao indivíduo – seja ele oriundo da classe média e/ou da classe trabalhadora – um desenvolvimento emocional e intelectual perpetuamente marcado por sua condição inicial. Decerto, ignora-se ainda a opção de mobilidade ocupacional e social. O contato com distintos grupos e círculos sociais e o acesso a meios de comunicação de massa como difusores de hábitos e informações podem vir a projetar neste indivíduo novas visões de mundo e estilos de vida, afetando, inclusive, o modo como o mesmo concebe e delineia seu papel social frente a este jogo de socializações e situações, de forma a ampliar seu “campo de possibilidades” frente aos “contextos individualizadores” nos quais se encontra inserido. (VELHO, 2008). Discutir sobre o indivíduo mostra-se necessário, a partir da condição e postura que o mesmo assume na sociedade complexa moderno-contemporânea. A dissolução da família extensa e das redes de sociabilidade mais amplas e diversas fizeram com que emergisse e se desenvolvesse a noção de família nuclear, aquela que se integra à sociedade em sua esfera produtiva e como mercado de consumo. (VELHO, 2008). Considero limitador uma possível associação direta dos sujeitos do presente estudo como pertencentes a famílias tradicionais, burguesas ou emergentes. Para tanto, recorro à análise de Nery (2008), na qual se evidencia como, no século XX, o casamento de integrantes de famílias aristocráticas com indivíduos pertencentes a famílias burguesas contribui para a disseminação dos ideais de refinamento, expandindo-se, por conseguinte, a segmentos da pequena burguesia e aos novos-ricos, os quais, por sua vez, após surgimento na década de 90, verão suas gerações subseqüentes direcionarem interesses ao cultivo de si – muito por conta da internalização de valores via educação formal – em detrimento do encanto ofertado pelas simples aquisições de bens (LIMA, 2005, 2007a, 2007b, 2008). A fim de melhor compreender a configuração e as particularidades do cenário da cidade, identifiquei a necessidade de entrevistar um jornalista, Renato5, reconhecido colunista social soteropolitano com mais de vinte anos de experiência. Além de cumprir a função de legitimador social pela atividade que exerce (BOURDIEU, 2008), pude ouvir o seu relato sobre as transformações ocorridas entre as famílias baianas: Não existe aquela coisa “a sociedade baiana”. [...] Apesar de ter as pessoas tradicionais, que estão lá, são de família. Mas os novos ricos, os artistas, eles foram tomando este espaço. Para sobreviver, a chamada “alta sociedade”, ela teve que se misturar, que fazer esta mesclagem com as pessoas que estavam surgindo, que são 5 Os entrevistados estão designados com nomes fictícios. 30 as pessoas que tinham dinheiro. [...] Porque os outros [da sociedade tradicional] tinham mais o nome, o dinheiro praticamente tinha acabado – vinha do sul da Bahia, com aquela história do cacau, que despencou tudo. Muita gente ficou pobre, outras ficaram mais ricas. [...] O círculo ficou pequeno. (RENATO). A fala do interlocutor abre espaço para a introdução de novas discussões. Recorramos, a princípio, ao estudo de Coelho (1999) para analisarmos as modificações vivenciadas na década de 90 pela sociedade baiana com o ingresso do grupo de novos ricos e dos artistas. Vejamos a visão da autora sobre a fama, que “pode ser entendida como um dos nichos resguardados por esse sistema baseado em um credo fundamentalmente igualitário para produzir diferenciação, ao mesmo tempo operando, juntamente com a riqueza e o poder, como possíveis estratégias de mobilidade social.” (COELHO, 1999, p. 32). É interessante constatar como, além de instrumento diferenciador, a fama articula mecanismos de mobilidade social, fazendo com que sujeitos galguem novas posições sociais, desde que sua legitimidade social seja validada publicamente pela mesma sociedade que a abriga e a produziu. Coelho (1999) destaca como a lógica da fama no mundo moderno no século XX sofre uma modificação na década de 40. Os meios de comunicação passam a biografar artistas e atletas, “ídolos do consumo”, em detrimento dos homens de negócios – “ídolos da produção”. A justificativa para esta modificação reside na insegurança sugerida pelo capitalismo com a quebra da bolsa em 1929, o que ocasiona uma prevalência aos exitosos do universo do show business, o que ratifica a necessidade de validação pelo coletivo de um espectro acerca da fama. Salvador enquadra-se neste cenário do star system com a construção, manutenção e fortalecimento de uma indústria musical apoiada no axé music. Nesta sociedade emergente, os artistas locais galgam posição de destaque em âmbito nacional e a área de entretenimento passa a constituir-se como geradora de receita e notícias, como se requer para o próprio funcionamento desta engrenagem. Com isso, a sociedade baiana sofre reconfigurações sociais similares as do Rio do 6 Janeiro , sejam elas decorrentes da constituição de novos núcleos familiares, envolvendo integrantes do “reduzido círculo tradicional” com novos-ricos, como também pela mobilidade social que a introdução deste capital acarreta. 6 É indispensável acessar os estudos de Lima (2005, 2007a, 2007b, 2008) sobre o universo carioca e artigo de Gottschall (1999) acerca dos hábitos de consumo soteropolitanos em distintos estratos sociais. Destaco ainda os estudos de Moura (1996) sobre o carnaval baiano e as considerações de Guimarães (1990) e Guimarães e Castro (1990) sobre as transformações sócio-econômicas do estado com a implantação do Pólo Petroquímico de Camaçari a partir de 1974. 31 Em paralelo, espaços considerados restritos à sociedade tradicional, como clubes para uso exclusivos de sócios, reviram suas estratégias de atuação, a fim de acompanhar a reposicionamento social em curso e absorver o capital em surgimento, sem, contudo, perder ou dispensar a aura social que lhe difere. Vejamos a fala do colunista social sobre um destes espaços: O Yatch [Clube da Bahia] está mantendo [sua posição]. [...] Semana na que vem, ele está fazendo um evento de moda de três dias. Isso, só os shoppings faziam. [Ele] abriu para a sociedade. Abriu como cerimonial, modernizou o restaurante, modernizou seus salões. Então, é um prazer você ir lá. A comida é boa, o ambiente é bom, o serviço é ótimo, faz uma revista legal. O Clube se mantém exatamente por causa disso. [...] Até o réveillon, que não existia mais, eles pegaram! No réveillon do ano passado, eu fiquei impressionado, a chamada “colunável” da sociedade estava todo mundo lá. (RENATO). Se a esfera empresarial entendeu a necessidade de acompanhar o fluxo em ação, os próprios sujeitos, enquanto profissionais, sentiram o mesmo. Com o advento da globalização, requer-se um novo executivo que privilegie o contato e o entendimento intercultural, instituindo uma reconfiguração do papel do ator na medida em que lhe expõe a novas situações e socializações. Conforme o entendimento de Barbosa (1999), a mobilidade individual tornou-se uma constante, exigindo intensa expatriação e repatriação, já que o atual executivo, ou melhor, o global manager, tem a autonomia necessária para realizar operações em escala mundial que atendam aos interesses estratégicos da organização. Obviamente, a descrição deste indivíduo no atual cenário da sociedade complexa moderno-contemporânea – cenário este delineado, anteriormente, com a Revolução Industrial, a acentuação da divisão social do trabalho, da produção e do consumo e o crescimento urbano – expõe como a grande metrópole constitui-se o lócus do novo modo de vida e a nuclearização da família representa uma nova forma para a socialização inicial do indivíduo. Estreitou-se a rede de relações sociais e houve uma alta densificação e concentração de interações sociais e afetivas no limitado âmbito da família nuclear. [...] As exigências e expectativas em relação aos filhos expressavam-se com muita clareza e explicitação. Obviamente a dependência entre os membros do grupo familiar tende a ficar maior à medida que se diluem e rareiam os contatos com outros parentes, vizinhos e com o enfraquecimento de laços de solidariedade mais diversificados. (VELHO, 2008, p. 73, grifo meu). O processo de ascensão da família nuclear confunde-se com as “exigências e expectativas” depositadas nos filhos. Em determinados casos, a saída deste indivíduo da residência familiar – seja por estudo, trabalho ou outro motivo qualquer desde que decorrente de uma decisão voluntária – é o indício para a existência do mesmo enquanto sujeito moral, 32 ou seja, como “unidade mínima significativa que se destaca para fazer a sua vida, lutar.” (ABREU Fº, 1980 apud VELHO, 2008, p. 50). Por outro lado, atenta-se ainda para fato de que a nuclerização das famílias não corresponde a um processo linear. É em decorrência destes contextos que emergem perguntas como “de que família você é?”, “é de boa família?”, “qual é a sua família?”, a fim de situar a aura social do agente empírico em núcleos de identificação. Afinal, “o domínio do parentesco é crucial para a constituição da identidade do agente empírico com todas as ambiguidades sugeridas” (VELHO, 2008, p. 47)7, embora esta seja uma complexa tarefa, como aponta a seguinte fala de Renato, ao evidenciar a alta rotatividade de entrantes no circuito social e a sua necessidade de exposição. Hoje, você chega em um evento social, você encontra tanta gente que fica perdido. Essas pessoas [da sociedade tradicional], às vezes, se queixam: “Nossa, a gente não conhece mais ninguém”. Porque são pessoas outras que têm dinheiro, que começaram a freqüentar e são conhecidas. Elas também estão sedentas de aparecer [...]. Tem pessoas que tem assessoria pessoal para divulgar o nome porque precisa também. (RENATO). Ao esclarecer este trânsito entre diferentes círculos sociais, procuro justificar porque considero indispensável, para o presente estudo, atentar para as particularidades na trajetória de vida do indivíduo e como estes delineiam seus “projetos” pessoais. Afinal, são os indivíduos desta “família nuclear brasileira de uma sociedade capitalista moderna” as principais vozes deste texto. É preciso, portanto, que compreendamos como a abertura da rede de relações de um indivíduo requer seu ingresso em um jogo de “socializações” e “situações” – denominações estas bastante refletidas pelos estudiosos da Escola de Chicago, a qual se assume como mola propulsora das principais referências para esta pesquisa, em consonância com as diretrizes antropológicas de Velho (2001, 2008) e com novos debates suscitados pelo mesmo, como veremos a seguir. 7 Manifesto um exemplo simples e decisivo: nesta pesquisa, o acesso a alguns entrevistados só foi possível a partir da mediação feita por amigos e por seus pais. Saliento ainda que a amizade que travo com estes indivíduos foi estabelecida por partilharmos o mesmo estabelecimento educacional (ambos particulares): a realização do ensino fundamental e médio no Colégio Antônio Vieira e/ou o curso de Comunicação Social na Universidade Católica do Salvador. 33 3.2 SOCIABILIDADE E INTERAÇÃO SOCIAL Com o claro intuito de institucionalização da sociologia em âmbito universitário, a Escola de Chicago, atuante no período de 1890 a 1940, emerge de um contexto de grandes alterações na sociedade americana da época. O quadro social redesenhava-se diante da industrialização e urbanização vivenciada; afluência de imigrantes provenientes de outras culturas; dissolução da estrutura política e econômica descentralizada, aliada a mudanças econômicas, o que acarretava modificações na estrutura de classes da sociedade, como, por exemplo, o surgimento de uma nova classe média profissional. É neste cenário que se tenta promover uma reforma social, a fim de preservar os ideais democráticos de autogoverno das comunidades locais das grandes corporações e do governo federal centralizado – ações que só se tornam possíveis por meio da adequação dos ideais das pequenas comunidades às novas comunidades urbanas emergentes – e Chicago, por sua vez, filia-se a este perfil empreendedor. As questões apresentadas pela Escola de Chicago eram os problemas da cidade moderna, ou seja, ela própria. Torna-se compreensível a assunção, por esta Escola, de uma orientação política reformista, objetivando transformar a sociologia em ciência empírica por meio da adoção de uma filosofia pragmática – uma “filosofia da ação” ou da “intervenção social”, revendo o problema da ação propriamente dita e da consciência humana. Até então, a sociologia desenvolvida era impregnada de moralismo e de um suposta “investigação científica” que mais se aproximava do “jornalismo investigativo”, como critica Coulon (1995). Dewey e Mead são os intelectuais da Escola de Chicago responsáveis pelo reembasamento do pragmatismo nas ciências sociais e biológicas. Ambos voltam-se contra as teorias que reduzem a ação como uma conduta determinada pelo meio, o que já exibe a adoção da psicologia funcionalista por parte destes pensadores – gesto que implica na interpretação de processos e operações psíquicas de acordo com sua eficácia para a dissolução de questões enfrentadas pelos indivíduos no curso de qualquer ação que se apresente. A recorrência à ação se dá porque é através dela que a imediaticidade qualitativa do mundo é revelada. Logo a relevância dos “habitus” para a noção pragmática é nítida, já que novos problemas implicam em novos saberes: As soluções para os problemas da ação não são armazenadas na consciência dos agentes, mas utilizadas para novas ações que, rotineiras no caráter, seguem seu curso fora da consciência deles. Somente os problemas novos é que tornam 34 ineficazes os hábitos e a rotina, exigindo novos conhecimentos. (JOAS, 1999, p. 138). Como percebemos no trecho destacado, nas situações sociais, compete ao agente ser a fonte de estímulo para aquele com quem irá interagir, o que requer atenção sobre os modos de ação praticados, já que os mesmos suscitam reações do parceiro e, por isso, oferecem condições para a continuidade da própria interação. Trata-se de uma análise da autoreflexividade, a qual, “nesse tipo de situação, não apenas a consciência, mas também a autoconsciência são funcionalmente requeridas.” (JOAS, 1999, p. 139). Assim, Mead permite o entendimento da ação como um “comportamento autocontrolado” na medida em que se estabelecem as condições de interação simbólica e da auto-reflexão. Tal corpus de pensamento do autor contribui para a expansão de novas frentes de conceitos, como, por exemplo, a adoção de papéis em diferentes contextos de situação social. Thomas (1918, 1923 apud BERGER, 1980, p. 107) compreendia “a situação social como uma realidade estabelecida por acordo ad hoc entre aqueles que dela participam ou, mais exatamente, entre aqueles que a definem.”. Se é nítido que o entendimento sobre a realidade repousa em uma compreensão particular de cada ator social, a existência da sociedade deriva, justamente, da existência de um padrão de definições dos indivíduos para a maioria dessas situações, as quais funcionam estimulando os indivíduos, a fim de fornecerem as respostas adequadas. No entendimento de Berger (1980, p. 97, grifo ao autor): “uma situação social é o que seus participantes crêem que ela seja.” É, precisamente, a crença na situação enquanto uma realidade que exige do indivíduo o desempenho de um papel específico para o enfrentamento da mesma, praticando uma “resposta tipificada” a uma “expectativa tipificada”, a qual advém de uma tipologia fundamental já previamente definida pela sociedade. Percebe-se nitidamente a confluência entre o conceito de “situação” e o de “papel”, o qual provém dos estudos de Goffman (1985), também integrante da Escola de Chicago, desenvolvidos na década de 60 nos EUA.8 As designações de “situação” e “papel” relacionam-se intimamente e, quiçá, permitem a indispensabilidade de um para a existência do outro: a situação espera e requer a 8 Contrapondo-se a Goffman (1980), Giddens (1989) destaca as lacunas temáticas deixadas pelo autor, como, por exemplo, a pressuposição da existência de agentes motivados, o que dispensaria a investigação dos aspectos motivacionais destes sujeitos, mas, exclusivamente, a compreensão do manejo da identidade social do indivíduo por meio da sua “representação do eu”. Já Sennett (1998) aponta o desprezo de Goffman pelas forças históricas, as quais originam e geram as inúmeras “cenas sociais” analisadas pelo sociólogo americano. Para Pais (1986), a metáfora teatral do autor resulta no encobrimento da real identidade do sujeito por máscaras, além de ter sua análise prejudicada pelo privilégio aos aspectos rotineiros e episódicos da vida social em momentos de interação. 35 emergência de um papel e este é acionado mediante a ocorrência de diferentes situações – o que se aproxima da identificação feita por Berger (1980, p. 111): “O papel dá forma e constrói tanto a ação quanto o ator. [...] Normalmente, uma pessoa incorpora o papel que desempenha.” Visto que este assunto articula um significativo feixe de distinções e aproximações identitárias, a possibilidade de visualização ou compreensão de convergências e disparidades se dá a partir do processo interacional entre os sujeitos, já que, segundo Goffman (1985, p. 21, grifo meu): “A sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada.” São estas “certas características sociais” que ensejam uma prática diferenciadora, um capital simbólico de distinção e vinculação a um determinado estrato social. Enriquecendo a conceituação, é importante considerar que a emergência destes papéis sociais se dá frente a um contexto de “privilégio” ou de “ascensão”, como diferencia Velho (2008). Segundo ele, o “privilégio” associa-se a uma situação mais tradicional, de estabilidade, onde as regras e valores estão claros e definidos, cabendo aos indivíduos serem avaliados e situados dentro de um modelo hierarquizante com categorias delineadas; já “ascensão” vincula-se com mudança e transformação – seja no que concerne a trajetórias individuais ou contextos sociais. A capacidade de Velho (2001, 2008) em expandir os horizontes teóricos ofertados pela Escola de Chicago é profícua. Decerto, há uma indiscutibilidade quanto às contribuições deste centro americano para as ciências humanas. Porém, no que concerne à antropologia brasileira, Velho (2001) amplia este escopo analítico ao manifestar sua relação com a Escola – o quê não convém aqui esmiuçar –, além de propor novas articulações em consonância com as particularidades nacionais9. Detenhamo-nos na noção de sociabilidade. O autor reconhece como este conceito foi explorado pela antropologia e como sua conceituação, para ele, encontra-se próxima da sociologia da vida cotidiana (VELHO, 2001; PAIS, 1986) em oposição à ótica de simmeliana sobre o assunto. A princípio, esclarecerei a visão deste autor para, em seguida, deter-me nas considerações do pesquisador brasileiro. Para Simmel, a sociabilidade consiste no “social puro”, na própria interação em si, dispensando qualquer razão de ordem política, econômica ou de outra natureza. Consistiria, portanto, um tipo ideal, uma “forma arquetípica de toda a socialização humana, sem quaisquer 9 Sugiro observar o enfoque de Frúgoli (2005; 2007) e Magnani (2003; 2008) sobre a Escola em debate. 36 propósitos, interesses ou objetivos que a interação em si mesma, vivida em espécies de jogos, nos quais uma das regras implícitas seria atuar como se todos fossem iguais.” (FRÚGOLI, 2007, p. 9).10 Apesar desta igualdade entre os sujeitos, o estudioso destaca como estas formas de sociabilidade podem ser vistas, paradoxalmente, como nichos intraclassistas, delimitados pela homogeneidade dos estratos sociais entre os envolvidos nas relações, já que estes comungam de valores similares, além de construírem uma significação para as coisas ou eventos a partir desta interação. Logo, para Simmel, inexiste um significado intrínseco ou fixo, como se poderia suspeitar. A sociedade, portanto, deriva da permanente interação dos seus membros, os quais se constituem como sujeitos da ação, cuja vida psíquica é abarcada neste fazer social incessante. Obviamente, este exercício para a manutenção da sociedade em seu pleno funcionamento exige, por parte do indivíduo, uma relação de proximidade com as práticas culturais em cursos e o ordenamento social e simbólico que a mesma suscita. Particularmente, vejo a noção de estilo de vida aventada pelo autor como uma forma de garantia dos exercícios de interação social por parte dos indivíduos com o intuito de que a sociedade prossiga seu fluxo contínuo. No entendimento de Waizbort (2006), o estilo de vida simmeliano expõe o trânsito entre cultura e sujeito, retratando a realidade momentânea que é vivida nas ações, manifestações e predisposições que o indivíduo oferta. Trata-se de equacionar como o longo processo cultural reflete-se na realidade momentânea dos indivíduos: estilo de vida é uma rubrica sob a qual se entende um arranjo histórico, ou melhor, uma configuração histórica, uma configuração sincrônica das relações entre indivíduos e sociedade, entre sujeito e objeto, entre cultura objetiva e cultura subjetiva. [...] Pois o estilo tem a ver com as qualidades, tendências, disposições, efeitos, atmosferas e afinidades fundamentais dos elementos históricos: o estilo é um fenômeno histórico. (WAIZBORT, 2006, p. 179, grifo do autor). De acordo este fragmento, é perceptível como a história perpassa e dialoga com a caracterização de um determinado estilo de vida. A manifestação deste efeito temporal tornase mais nítida quando recorremos à indumentária como forma de simbolizar uma época ou a prevalência da tradição em sociedades mais antigas. No universo contemporâneo, o estilo de vida funde-se com o instante do presente e tem sua configuração diretamente afetada pela divisão do trabalho. 10 Frúgoli (2007) atribui, em concordância com Waizbort (2006), esta visão de Simmel à vivência do mesmo em círculos burgueses, o que refletiria em sua produção teórica. 37 Para Waizbort (2006), é esta divisão do trabalho que faz com que as coisas articulem-se consigo mesmas, dispensando toda e qualquer interferência humana necessária e imprescindível à sua produção. Porém, é justamente este sentido – já sublimado – que o exercício etnográfico deseja recuperar, como ratifica Appadurai (2008) e Miller (2007). Vejamos o trecho a seguir: O sentido do objeto não é mais dado por sua relação com os envolvidos em seu processo de criação, senão que o sentido dos objetos provém da relação que eles estabelecem com outros objetos, provenientes de outras fontes. Há como que a idéia de um mundo das coisas, no qual as coisas atribuem sentido a elas mesmas. (WAIZBORT, 2006, p. 180). Há que se ponderar algumas coisas do ponto de visa de Simmel, apresentado por Waizbort. Decerto que os bens relacionam-se com outros bens, esta interação só torna-se possível a partir da intromissão do sujeito para executá-la. Portanto, a coisa estaria a se relacionar também com o próprio. Logo há uma dupla tarefa para a antropologia do consumo – tarefas estas que a disciplina tem plena consciência –, a saber: recuperar a cadeia de produção que a confecção de determinado bem engendra e reforçar o caráter relacional que as mercadorias travam com seus consumidores. Afinal, como sugere Miller (2007), se materialidade e humanidade são indissociáveis, há uma sociabilidade relacionada a esta comunhão. É precisamente esta defesa a praticada por Velho (2001) no que tange a um direcionamento do olhar para as particularidades que a daily life projeta na sociabilidade. Se você ficar preso exclusivamente à definição que o Simmel deu para sociabilidade no início do século XX, pode perder muita coisa interessante [...], e que acho que está muito mais próxima de uma discussão sobre interação, cotidiano e costumes. Acho que é o estudo do cotidiano, a preocupação com a etnografia, que vai ser uma das variáveis mais importantes para o diálogo entre antropologia e história. O que é a interação senão uma relação entre indivíduos que são diferentes uns dos outros? Se não existe diferença, não existe relação – isso é óbvio, mas nem sempre parece tão óbvio assim. São justamente essas diferenças entre os indivíduos, essas singularidades, que vão permitir que haja relação, porque é isso que possibilita algum tipo de troca, de reciprocidade. A interação é isso; se os indivíduos são iguais, não há sociedade. Portanto, não temos nem mônadas isoladas, pairando, nem uma sociedade homogênea em que todos os indivíduos são determinados, condicionados e produzidos por forças ou estruturas maiores. (VELHO, 2001, p. 22). Na compreensão do autor, o mérito da antropologia é retratar, através da etnografia, exercícios rotineiros de interação – sejam eles em respeito às normas de cordialidade e convívio ou conflituosos e dramáticos, os quais, através da observação devotada pelo pesquisador, poderão expor os gestuais; modos de conversação, relacionamento, aproximação ou rejeição; demonstração de afeto, antipatia ou recusa entre os envolvidos. 38 Para que estas relações ocorram há que se contemplar o envolvimento dos indivíduos com sua cultura material, o que reforça a necessidade de revisão e expansão do referencial de Simmel, o qual, além de compreender o sentido das coisas como atribuição das mesmas, deve incorporar a participação dos sujeitos neste processo, já que estes, para a realização de suas atividades cotidianas e o desempenho de seus exercícios rotineiros de interação, precisam atribuir um significado às mercadorias integrantes deste jogo. Afinal, é o caráter assimétrico e lacunar entre os sujeitos que garante a manutenção de fluxos de sociabilidade, com o intuito de que estes espaços sejam preenchidos mediante trocas de palavras, afagos, bens e cumplicidades. Instituir a um suposto macro-social a prevalência para a ocorrência destas interações arruína a própria condição humana de depositária de sua subjetividade e de consciente do seu maior exercício de realização e afirmação social: ser mediante o outro. 39 4 OS SUJEITOS DO CLUBE 4.1. MAPEAMENTO DOS FREQUENTADORES No período do verão, a procura pelos serviços da BM torna-se intensa. Ingressando no local a partir das dezenove horas, é comum identificar famílias e jovens amigos retornando do passeio náutico e dirigindo-se a restaurantes mais descontraídos, como o Acqua, por exemplo. Comumente, homens trajam bermuda, sandália e camisa de malha; mulheres, short, top ou camiseta e sandália rasteira ou com pequeno salto. A maioria destas peças é de marcas reconhecidas – nacionais ou internacionais. Não há sinal de areia e o clima é de descontração. A partir das vinte e uma horas, o fluxo de carros intensifica-se e, em certos restaurantes, filas de espera são formadas. Os trajes femininos ganham brilho, decotes e salto mais altos, enquanto os masculinos uniformizam-se em camisas de malha, calça jeans e tênis. Às vinte e duas horas, a demanda atinge o ápice. Os dois restaurantes mais concorridos – Soho e Lafayette –, com áreas de espera bastante próximas, apresentam grande concentração e movimentação de consumidores. Normalmente, a partir deste horário, as vagas gratuitas para carros esgotam-se, restando o estacionamento privado ou o serviço de manobrista (valet), que possui um dos stands situado próximo a estes dois restaurantes, o que confere a quem ingressa total visibilidade frente aos clientes já presentes. Neste momento, o movimento de carros é intenso e os manobristas têm urgência em atender a alta demanda da noite que se inicia. Esta é uma pequena descrição de alguns dos elementos presentes na BM. Em paralelo a estas visitas, pude compor um conjunto de entrevistados de perfis diversificados com idades entre 28 e 55 anos e atuação profissional em distintas áreas, a saber: o já mencionado jornalista (Renato); um jovem administrador formado em turismo (Wilton); uma executiva em atuação no segmento educacional (Tracy); um proprietário de três filiais de confecção unissex nacional com lojas situadas nos principais shoppings da cidade (Paul); uma jovem professora de marketing e moda (Gabriele); uma pesquisadora da área de história, mestranda da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Diana); empresários do ramo de entretenimento, os quais, além de utilizar a Marina como local de lazer, exploram-na comercialmente (Lúcio e Clara); um jovem ator e diretor teatral (Ricardo); executivos que 40 trabalham na proximidade da marina (Michael e Jack); uma arquiteta e um publicitário freqüentadores das festas e dos restaurantes (Solange e Júlio); uma proprietária de lancha, residente em São Paulo (Norma); um dos administradores do equipamento náutico pesquisado (José). O acesso a este público permitiu o delineamento dos seguintes perfis de públicos da marina: (a) clientes dos restaurantes; (b) frequentadores de festas de verão (réveillon e Bonfim Light); (c) público das festas de música eletrônica; (d) locatários de vagas para embarcação. A frequência com que as pessoas fazem uso deste espaço encontra-se relacionada com: (a) o local de residência (em Salvador ou em outra cidade fora do estado); (b) a proximidade do trabalho; (c) a existência de companhias (amigos e/ou familiares); (d) o intervalo da ocorrência das festas. O quadro abaixo apresenta estas categorias relacionando-as aos fatores que os levam a freqüentar a BM. Quadro 1 – Distribuição dos tipos de frequentadores da BM e indicativos de fatores que implicam na freqüência de visitas ao espaço Mapeamento de frequentadores Condicionantes para a frequência Proximidade do trabalho Proximidade da residência Companhia (amigos e/ou familiares) Público de festas de verão (réveillon e Bonfim Light) Seleção musical Divulgação das festas Público de festas de música eletrônica Seleção musical Férias ou feriados (residentes em outros Locatários de vagas para embarcação estados) Clientes dos restaurantes Embora distintos, estes agentes compartilham trajetórias pessoais e gozam de estilos de vida similares: estudaram em escolas particulares – alguns deles são portadores de qualificação de mestrado; ocupam cargo de chefia ou são profissionais liberais de sucesso, ou aposentados; têm empregada(s) doméstica; são proprietários de carro ou moto e trocam-no com frequência; residem em apartamentos próprios em bairros de classe alta de Salvador11; viajam, regularmente, a trabalho (roteiro nacional) e a lazer (roteiro internacional); tem ótimo acesso a meios de comunicação e à produção cultural apresentada no país. Na ótica de um dos administradores da BM, estas pessoas assemelham-se pela expectativa depositada com relação à forma de caracterização da marina: o funcionamento 11 Apenas dois entrevistados não residem em apartamento próprio, embora tenham ressaltado, entusiasmadamente, sobre a realização desta opção ainda enquanto jovem em decorrência de estável situação financeira familiar e como forma de comprovar o seu próprio sustento, validando-se enquanto “sujeito moral” (VELHO, 2008). Outros dois moram com os pais, tendo um deles já adquirido um imóvel ainda em construção e outro, sem plano de mudança, revelou que a conquista deste bem corresponde ao seu sonho atual. 41 ordenado é uma prerrogativa inerente ao tipo de serviço oferecido. Vejamos, abaixo, trechos das falas de José, um dos administradores do espaço e Norma, proprietária de lancha, residente em São Paulo: O cliente da Marina é exigente. Ele não está acostumado a pedir, ele está acostumado a mandar. Este cliente espera, como primeira coisa, não se preocupar com nada. Quando ele chega aqui é o lazer dele. Então, tem que estar tudo certinho. Não pode ter problema na hora de estacionar. Não pode ter problema na hora de tirar o barco dele da vaga. Não pode ter problema quando ele chega com o barco. Tem que tudo estar funcionando de uma forma perfeita para que não estrague este lazer dele. [...] Por isso que a gente tem que trabalhar de forma intensa para que, quem esteja curtindo, nem perceba nada. Para que a pessoa entre dando risada e saia dando risada, que não se aborreça com nada aqui dentro. (JOSÉ). Eu gosto de chegar lá e encontrar tudo arrumado, tudo direitinho, tudo funcionando, sabe? Encontrar o barco sem problema. Está lá na vaga, ninguém mexe. A segurança melhorou. A cordialidade das pessoas. Ela tem melhorado inclusive, tem construído mais coisas – [por exemplo,] para quem tem embarcação, armários para você guardar coisas. Então você não precisa estar carregando toda aquela tralha dentro do barco12. A tendência é, normalmente, melhorar. (NORMA). A congruência das falas entre administrador e consumidor reitera o ordenamento que o consumo oferta na perspectiva de Canclini (1996) e deixa rastros quanto à necessidade de permanente revisão e aprimoramento dos dispositivos de segurança e oferta de novos serviços visando o conforto. Em anos anteriores, houve, por exemplo, registros – nunca esclarecidos – de furto de combustível de embarcações. Recentemente, as câmeras filmadoras passaram de 24 para 36 unidades. Apesar desta confluência, é indevido imputar uma homogeneidade cultural ou financeira aos freqüentadores da marina. A amplitude de serviços e as opções gastronômicas disponíveis configuram um amplo painel de consumidores, com perfis e interesses dos mais diversos. Destaco, a seguir, duas menções importantes: a de Júlio, referindo-se ao sentido de pertencimento a um possível estrato social; a de Lúcio, promoter de festas no local, sobre a diversidade do público que atrai. [Sou] classe média, com pensamento de classe A. Tem pessoas que, às vezes, sai da favela, mas a favela não sai da pessoa. Meu pai sempre diz que eu tinha que estar ganhando dez vezes mais do que eu ganho, porque meu nível de pensamento e consumo é muito maior do que aquilo que eu tenho. (JÚLIO). No meio de meus amigos, alguns outros acabam namorando com pessoas que não seriam exatamente do mesmo círculo social; e elas são trabalhadoras e pagam suas contas da mesma forma e poderiam estar em qualquer lugar. Do mesmo ciclo social, eu digo em termos financeiramente, do habitué, mas não é de forma 12 O transporte destes objetos normalmente é feito com o auxílio de carros, semelhantes aos de supermercado. O usuário tem a opção de abastecê-lo e deixar, discretamente, na entrada do restaurante, caso deseje utilizar do seu serviço. Vide imagens no Anexo C. 42 pejorativa. [...] As mesmas pessoas que freqüentam a BM, as minhas festas, freqüentariam e freqüentam lugares populares, sejam de maneira oficial e freqüentam ainda lugares de baixaria – lugares de pegação13 –, que você jamais imaginaria. Você corre o risco de se bater com qualquer pessoa. Ou seja, as pessoas freqüentam todos os lugares. (LÚCIO). É interessante observar como Júlio apresenta consciência sobre sua real situação financeira, embora mesmo assim considere propício usufruir dos serviços da marina, freqüentando alguns dos restaurantes e comparecendo a eventuais festas promovidas por Lúcio. É por meio da fala do promoter que podemos retomar a discussão de Nery (2008) e o discurso de Renato no que concerne à configuração da sociedade contemporânea. De fato, o envolvimento de integrantes da denominada “sociedade tradicional” com a sociedade emergente também se entende à homossociabilidade masculina e feminina, quando, na observação de Lúcio, formam-se casais cuja parceria é marcada por uma relação sóciocultural assimétrica. Seja para o acesso a festas como estas ou outra atividade, é interessante observar como ir à BM requer companhia, seja de amigos ou familiares – quando se trata, mais especificamente, de visita aos restaurantes, festas de réveillon ou passeios marítimos. A possível prática de lazer solitária no local esteve ausente em todos os relatos. Destaco ainda a inexistência de uma fixidez no enquadramento do público mapeado: os sujeitos alternam idas a restaurantes com participações em festas ou passeios em embarcações – pessoais ou de amigos. Nas subseções seguintes, esclareço as formas de consumo do equipamento náutico pelos diferentes grupos de consumidores. Tal exercício possibilita identificar e analisar as rotinas de consumo e lazer desempenhadas no local em distintas situações, além de evidenciar o entendimento sobre a BM nestes contextos. O esclarecimento que esta subdivisão oferece nos conduz à outra seção integrante deste capítulo, na qual proponho considerar o lazer como meio propiciador e gerador de novos exercícios de distração, relacionamento e de consumo, o que se traduz, por exemplo, nas formas de contribuição da BM para a construção da autoimagem dos seus freqüentadores. 13 O termo “pegação” denomina locais destinados à paquera e conquista na rede de sociabilidade homossexual. Verificar MacRae (1983), Rios (2003) e Ferrari (2006). 43 4.1.1 Tu és manjar de reis: marina como pólo gastronômico A escolha de um restaurante é realizada consensualmente entre os amigos, mas alguns dos estabelecimentos são comumente destinados a ocasiões mais formais ou com a companhia dos pais. O Acqua, o Soho e o Lafayette são os lugares que eu frequento lá. O Acqua é mais com amigos e tal porque é mais barzinho, não é restaurante e não tem uma espera como tem no Soho. O Lafayette é mais família. Meu pai gosta de almoçar lá, então, às vezes, eu vou. E o Soho todo mundo vai. O Soho é o Soho, né? Vou com amigos, com todo mundo. (SOLANGE). A creperia Acqua é destinada a encontros no fim da tarde ou quando se retorna de um passeio de lancha; estabelecimentos como o de culinária francesa Oui, o de cardápio mediterrâneo Viña Del Mar, o internacional Gengibre e a pizzaria Fiona quase passam despercebidos pelos consumidores. Comparece-se aos mesmos, mas a lembrança do nome é pequena, assim como inexiste um interesse mais incisivo em freqüentá-los, muito possivelmente por situarem-se na região oposta ao mar. Possivelmente, a ausência deste apelo justifica a realização de festas pelo Gengibre, o emprego de música ao vivo pela Fiona e a realização de eventos gastronômicos diferenciados pelo Viña Del Mar. Em agosto, ao visitar este estabelecimento e conversar com garçom vítima de assalto, pude fazer esta constatação (vide Anexo D) e presenciar momentos de calmaria no restaurante, enquanto o estacionamento apresentava tráfego intenso. Cheguei à BM por volta das 21h30min, acompanhado por quatro amigos, sendo dois homens e duas mulheres. Tentamos ingressar no Acqua, mas a fila exigia uma espera de, aproximadamente, quarenta minutos; no Soho, este tempo chegava a uma hora. Enquanto isso, os outros restaurantes apresentavam mesas disponíveis. No percurso entre os restaurantes, dediquei-me a fotografar a movimentação das entradas dos restaurantes e do estacionamento. Desta “aventura”, obtive – com auxílio de um dos amigos – imagens inusitadas, como, por exemplo, um vídeo com o intenso trânsito dos carros e uma foto da cozinha do Lafayette, a qual, possivelmente, por um repentino descuido, teve sua porta deixada entreaberta, permitindo vislumbrar uma funcionária devidamente paramentada concentrada em seu trabalho. Sem dúvida, um raro momento de acesso aos bastidores de um conjunto de atividades empresariais que prima pela permanente organização e exclusão deste tipo de ação aos olhos dos seus clientes. 44 Às 21h45min, entramos no restaurante Viña Del Mar, onde nossos amigos já nos esperavam. Mais couverts foram acomodados à mesa e pedidos de bebida foram feitos. Travei o já relatado diálogo com o garçom sobre a nota veiculada no jornal. Meus amigos desconheciam o porquê de conversa tão entusiasmada. A um deles – o que me acompanhou na sessão de fotos –, mais próximo a mim à mesa, descrevi de forma breve o ocorrido. Ele surpreendeu-se e, para meu absoluto espanto, minutos após este diálogo, desconsiderou um erro no pedido de bebidas cometido por este garçom. Como justificativa pela compreensão do erro e dispensa de uma possível correção que nem fora cogitada, revelou-me que ficou sensibilizado com sua história. De fato, diante do descrito, trocar uma Coca-Cola Zero por uma tradicional perde a importância. Por volta das 22h15min, fizemos os pedidos. Algumas mesas permaneciam vagas na área interna (climatizada) e externa, onde me encontrava. Ao longo da noite, o número de freqüentadores estagnou-se, sem atingir a capacidade máxima. A freqüência era, predominantemente, de pessoas mais velhas em grupos de amigos – apenas um casal, na parte interna, na faixa dos 35 anos e outro, na área externa, na faixa dos 20, destoavam do conjunto. Os figurinos são mais casuais e sem o tom ostensível como é de praxe nos restaurantes mais concorridos. Aqui, a indumentária vigente rejeita brilhos ou marcas expostas. A ausência de barulho e a possibilidade de acesso imediato a uma das mesas fazem deste restaurante uma opção mais prática e tranqüila. É notório que alguns dos clientes da marina recusam-se a permanecer em fila de espera. Pela localização deste estabelecimento, a única perda é a impossibilidade de ver ou estar sob o mar. Logo após a realização dos pedidos, uma forte e inesperada chuva exigiu que trocássemos de mesa. Procedimento rapidamente executado pelos garçons, incluindo pelo que fora vítima do assalto. Mantivemo-nos na área externa, região que me favorecia por permitir visão total da movimentação no estabelecimento e entorno. A mesa em que fomos acomodados possibilitava, inclusive, observar a entrada do Gengibre, restaurante vizinho a este. Por voltas das 22h40min, a entrada de uma drag queen no estabelecimento ao lado despertou a atenção de todos. Nossos pratos foram servidos minutos depois. Um deles, errado. O garçom reconheceu o equívoco e solicitou alguns “minutinhos” para resolver a questão. Um dos amigos, vítima da situação, questionou a todos como, diante destas ocorrências, o emprego do diminutivo visa amenizar determinado problema. Rimos. Jantamos. Voltei a percorrer a marina solitariamente. Ao retornar, deparei-me com a drag queen a retirar-se do Gengibre. Esperava um táxi. Ao identificar o ingresso de um no local, 45 ainda com passageiros, rapidamente manifestou seu interesse com voz grave. O taxista dirigiu-se às imediações do Soho e Lafayette para deixar seus clientes e retornou para pegá-la. Neste momento, encontrava-me ao lado de um dos stands com manobristas, os quais se mantinham desatentos à situação. Conversavam calmamente entre si, como a compartilhar histórias entre amigos. Regressei à minha mesa, onde um dos amigos já se dedicava à sobremesa. Mais alguns minutos, já com o restaurante mais vazio, pagamos nossa conta e pedi que encaminhasse meu agradecimento particular ao garçom que dedicara alguns minutos de sua noite a relatar um episódio tão desagradável, mas comum aos habitantes de centros urbanos – sejam eles funcionários de marinas ou proprietários de lanchas. Em sentido oposto a este restaurante, o Lafayette, também de culinária internacional, beneficia-se da localização sob o mar. Um pequeno bar ocupa uma das extremidades da varanda, a qual se une com o espaço de espera ao ar livre, onde se tem vista privilegiada para o mar. Internamente, o restaurante é composto por dois ambientes climatizados – a varanda e o interno, com número menor de mesas, forradas com toalhas e mais formal – com conexão entre eles, além de possuir entradas independentes. Decoração em madeira e granito branco oferece suntuosidade extrema ao espaço em equilíbrio com o caráter marítimo que a região exala. Nas duas visitas que fiz ao estabelecimento, identifiquei um público acima dos 30 anos de idade, principalmente, composto por casais ou grupos de amigos – vide Anexo E. À tarde, é comum encontrarmos freqüentadores retornando do passeio náutico, deixando seus pertences na área externa do restaurante. Nestas ocasiões, optam por trajes mais frescos, como bermudas, sandálias, saias e batas; à noite, adotam trajes mais formais. Em ambas as situações, marcas estrangeiras de vestuário são facilmente percebidas e a descontração é nítida entre os clientes. Espécie de consenso, o Soho se estabelece como o preferido e mais referenciado em termos de serviço, localização, beleza, qualidade e atmosfera agradável. Situa-se, portanto, acima de todos os outros estabelecimentos, firmando-se como referência ou condição sine qua non para o efetivo aproveitamento da experiência que a marina suscita. Nele, goza-se de excelentes refeições e pode-se expor, enquanto sujeito, à vitrina, legitimando-se, via exposição pública, o caráter de “prestígio” ou “ascensão social” que lhe conferiu tal acesso (VELHO, 2008). O Soho é o Soho não tem outro aqui para bater nele assim. É o lugar que todo mundo adora ir. Você não vê uma pessoa que não goste. Beth Lagardère, aquela 46 milionária, eu fiquei amigo dela aqui, era só o que ela falava “vamos ao sohô” [imita sotaque francês]. Todo dia, ela só queria ir para lá. Ela dizia que adorava, que se sentia bem lá – mesmo que não comesse. (RENATO). Eu sinto que as pessoas estão lá no Soho, até naquele balcão, e nem vão comer de fato, mas acontece querer ser visto e ver as pessoas que estão ali. Eu sinto que o lugar tem um pouco isso. (GABRIELE). A comida é boa, a bebida é boa. Eu encontro muita gente conhecida. Lá, eu vejo e sou visto. (JÚLIO). Por outro lado, os entrevistados manifestaram recusa ao enfretamento de filas de espera para usufruir de uma mesa – ocorrência mais comum, quando se deseja ir ao Soho ou Lafayette. Submeter-se à fila contradiz com a trajetória de ascensão social que o indivíduo projeta para si e corrompe o sentido de ordenamento que a prática de consumo possibilita ao sujeito (VELHO, 2008; CANCLINI, 1996). Esperar é confrontar-se com um “inferno” ou “humilhar-se”. São, portanto, vivências e constatações que colidem com as perspectivas de reconhecimento e realização profissional que traçaram para si, reintroduzindo-os na seara da humanidade comum. Abaixo, destaco algumas menções ao mal-estar ocasionado por esta espera. A escolha está sempre atrelada a um momento bacana. Quero sair com meus amigos para comer uma boa comida e beber uma coisa gostosa, todos os caminhos levam para lá. [...] O que tiver mais vazio é geralmente o que eu fico. [...] A fila do Soho é um inferno. Dia de sábado é impossível você ir jantar lá. Se tiver, pelo menos, meia hora, eu fico, mais que isso, não. Eu não tenho paciência. Geralmente, eu estou com fome e com sede e não vou ficar esperando para pagar para ser servido. (JÚLIO). Eu já cheguei no Lafayette e esperei duas horas para entrar. Hoje, eu me recuso, mas eu já fiz. Ou eu reservo uma mesa, ou eu chego e entro, ou fico no bar. Porque parece que eu tô me humilhando na porta; todo mundo comendo e eu lá há uma hora e meia na porta. (GABRIELE). Os interlocutores destacam ainda como adotam certas estratégias para solucionar este desconforto. A situação é contornada, por exemplo, com a permanência restringindo-se ao bar do estabelecimento, como no Soho; a reserva com antecedência ou a companhia de um amigo com aura social distintiva (BOURDIEU, 2007) capaz de fazer com que o restaurante solucione a questão ou até mesmo providencie uma mesa e evite a espera. A seguir, destaco dois trechos com visões peculiares. O Soho e o Lafayette tem aquela coisa: o cara tem que te conhecer para você conseguir uma mesa para sentar. É assim: nove e meia da noite, vamos para o Soho só se [o amigo] Felipe14 estiver no grupo. [...] A gente brinca muito no grupo: “Ah, não! Felipe não está aqui hoje então a gente não vai porque – nove e meia – a gente 14 Nome também fictício. 47 não vai ficar duas horas esperando”. Isso me lembra muito que eu estou em Salvador. [...] Quando eu digo assim “eu me lembro que estou em Salvador” eu fui muito maldosa, mas eu me lembro que estou numa cidade com costumes provincianos, que é de passar na frente o cara que conhece, ou o cara que tem um nome, ou o cara que é alguma coisa na cidade que os outros não são. Acho isso o fim do mundo. [...] Aliás, no Soho, as últimas vezes que fui – todas – foram nessa situação porque senão... Eu não me predisponho a ficar uma hora num restaurante para sentar numa mesa, em nenhum, por mais que eu goste do restaurante ou da comida. (TRACY15). [O fato de não esperar na fila] é sempre quando alguém conhece alguém e você acaba tendo alguns privilégios – vamos dizer assim. Eu acho que isso faz o lugar ser mais atraente. Você acaba sendo mais fiel quando você tem algum relacionamento que lhe favorece nesse sentido. (PAUL). É interessante observar como o discurso de Tracy apresenta certo paradoxo, por mencionar uma crítica ao privilégio concedido a alguns de seus clientes, os quais não esperam filas, e por ela mesma conciliar sua visita a estes locais quando acompanha por tais sujeitos. Por outro lado, Paul acata estes mecanismos de acesso facilitado a alguma mesa e reconhece tais artifícios como uma forma do estabelecimento seduzir e fidelizar o cliente, retirando-o de uma situação de desconforto, mesmo que, para isso, se crie outra: o desrespeito ao ordenamento instituído pela ordem de chegada ao local. Este tipo de ação referencia a perspectiva goffmaniana (1985), na qual os indivíduos devem ter suas “certas características” diferenciadoras respeitadas. Assim, a marina se estabelece como local para “alguns”, evitando-se o excesso. Acompanhemos as falas subseqüentes de Tracy e Gabriele, respectivamente. [O que você espera encontrar na BM?] Gente. [O que não espera encontrar na BM?] Gente demais. [O que menos gosta na BM?] Aquela galerinha do Soho, que tem me afastado um pouco do Soho. Muita garotada, aquele barulho, aquele som bate-estaca, que o Soho tem agora botado dentro do restaurante. Aquilo tem me espantado. (TRACY). Quando eu estou com um grupo de amigas, eu vou mais para o Soho. [...] O Soho tem um lance mais de você circular em pé e tem aquele balcão – rola um clima mais jovem ali. [...] Fica uma galera em pé naquele balcão. Chega um momento ali [no] sábado que tá parecendo um barzinho de paquera. Tá todo mundo em pé, com bebida e circula. Aí, começa o dj, as pessoas já levantam para conversar um pouco naquela área. Eu gosto. É no caminho do banheiro. Aí rola aquele caminho apertadinho para você ir ao banheiro, aí você vai falando com as pessoas. E rola paquera, que eu sei que rola – sei até por minha amigas. (GABRIELE). Os divergentes estilos de vida ganham realce nesta passagem: Tracy, casada e com filho, desinteressa-se por um local com barulho e pautado pelo entusiasmo juvenil; Gabriele, 15 Ratificando como o próprio público mapeado consome a marina de diferentes maneiras, essa interlocutora revelou que foi apresentada ao atual marido em passeio de lancha – alocada neste espaço –, promovido por uma amiga comum a ambos. 48 por sua vez, jovem noiva, reconhece o terreno e sabe que ali se encena um exercício de sedução: seus amigos se reconhecem e fazem do balcão – e entorno – o palco destinado a jogos de olhares, flertes e insinuações de interesse. Embora o objetivo de ambas seja distinto, saliento como o mesmo espaço abriga, em momentos e regiões específicas do seu interior, um público diverso, cuja identificação comum repousa, simplesmente, no prazer em desfrutar do local, respeitando as particularidades de cada um. A seguir, detenho-me em uma explanação sobre o Soho com o claro intuito de identificar o que lhe difere por completo dos demais restaurantes da marina e orientais da cidade. Noite de sábado. Estava com mais dois amigos e um deles, proprietário do veículo, optou por ele mesmo estacionar o carro. Dirigimo-nos do estacionamento ao Soho. No caminho, pude observar que a espera do Lafayette estava vazia, o que não acontecia no Soho, ocupada por cerca de quatro casais. Um dos meus acompanhantes deixou o nome na fila de espera, com a atenta recepcionista do local, uniformizada com calça preta, blusa social marinho e cabelos cacheados soltos. Pela quantidade de anotações nas folhas em seu poder, a movimentação do local estava intensa. Ela nos sugeriu aguardarmos no balcão da grelha, onde poderíamos jantar, beber e aguardar pela mesa mais confortavelmente. Previsão de espera: uma hora. Acatamos. Outra jovem, também uniformizada com o mesmo traje padrão que se estendia até aos garçons, auxiliava-a na distribuição dos clientes. Portava um walkie-talkie e enfeitava-se com um comprido colar de pérolas. Um toque de delicadeza para um figurino tão austero. O balcão consiste em uma grande mesa de granito preto de, aproximadamente, 5m de comprimento, com duas frentes de trabalho (a partir da porta de entrada): do lado esquerdo, sushiman com cadeiras, semelhante a das mesas, dispostas à sua frente; do lado direito, barman e um balcão mais alto com bancos para os clientes, como em um bar. Acomodamo-nos na extremidade do balcão dos sushimen, onde podia observar o preparo dos alimentos em um ritmo alucinante e perfeitamente orquestrado: frascos com temperos dispunham-se ao rápido alcance das mãos, assim como grandes pratos brancos, maçaricos, algas e talheres dos mais diversos. Os peixes frescos acomodavam-se em uma vitrina, acondicionados à temperatura devida. Era minha primeira ida ao restaurante após a comentada reforma, com nova decoração assinada por Sig Bergamin. O ambiente anteriormente decorado com peças coloridas e claras ganhou iluminação amarela, mais baixa, azul marinho no forro do estofado e nas madeiras, além de mesas com tampões de vidro escuro. De fato, hoje demonstra mais 49 requinte e suntuosidade, bem diferente da imagem luminosa que tinha em mente de visitas anteriores. Já no balcão, fomos servidos de bebida e uma entrada. Adotei a mesma estratégia de idas anteriores: já havia jantando em casa e estava ali para fazer anotações e manter-me atento mais que os outros. Batemos as primeiras fotos (vide Anexo F). Ao meu lado esquerdo, a cabine com o DJ colocando música ambiente. Suponho que a nova atmosfera propiciada pela cores empregadas na decoração e a seleção musical mais amena reduziram a formação e permanência de grupos de jovens no balcão, embora este espaço permaneça preferencial para pessoas mais novas – atualmente, acomodadas nos bancos elevados e mais serenas nos diálogos. É nítido como os freqüentadores investem nas roupas para visitar o local. Os homens, normalmente de jeans e tênis ou sapato, adotam camisas de malha de reconhecidas marcas nacionais ou estrangeiras, porém não comercializadas em Salvador, como, por exemplo, Abercombrie Fitch. O vestuário feminino é mais diverso, variando em peças com e sem brilho, pequenas ou grandes bolsas, saias curtas e mais compostas, calças justas, coloridos ou completos trajes pretos. Porém, um denominador comum entre grande parte delas: o uso de salto e os cabelos lisos – natural ou artificialmente. De fato, a recepcionista diferenciava-se das demais. Varrendo o espaço com olhar, tentei identificar a denominada “sala vip” – um espaço mais restrito para alguns clientes. Optei por ligar para uma amiga bastante familiarizada com o local para obter tal informação. A orientação recebida parecia uma coordenada emitida por um GPS: precisa, rápida e didática. A sala situa-se em uma das extremidades da varanda. Ou seja, a partir da porta de entrada, siga em frente e dobre à direita. Era como se estivesse vasculhando a caixa de Pandora. Às 23h25min, fomos encaminhados a uma mesa na varanda pela jovem do colar. Neste momento, tive a convicção de que existe alguma entidade mágica ou poder fantástico a governar os desígnios do trabalho de campo. Nossa mesa situava-se ao lado da porta de acesso à sala vip. Rapidamente, as bebidas e a entrada deixadas no balcão foram trazidas à mesa – a última antes da sala. Atrás de mim, parede; à frente, dois casais de amigos e um extenso corredor; ao lado direito, mar; do esquerdo, a porta de acesso à área privada e, em seguida, perpendicularmente situada, uma ampla mesa com nove pessoas, mesa esta que apresentou gratas surpresas ao longo da noite. 50 Mais próximos a mim, encontrava-se o grupo de jovens: quatro meninas adolescentes e um rapaz. Todos com um frescor juvenil intenso, loiros e rosados do sol ou da maquiagem. A iluminação baixa impedia diferenciar com convicção. No outro extremo, seus pais e/ou responsáveis. De costas ao mar, situava-se uma senhora de blusa rosa, echarpe colorida e belos acessórios dourados. Ao seu lado, outra senhora trajava preto. Em frente a ambas, recostados à parede, possivelmente, seus maridos: um senhor com camisa pólo Lacoste e outro de cabelos brancos e camisa de malha azul claro. Este usava no punho direto, junto com o relógio, uma Fita do Senhor do Bonfim com coloração íntegra e grandes pontas pendentes após o nó. Um claro indício de que era um turista. Minha atenção foi despertada a partir do momento que o senhor de azul, a fim de ajudar o garçom e compor a mesa, o auxiliou no recolhimento dos pratos, entregando-lhe inúmeros itens já descartados. O pedido de sobremesa permitiu que todos comentassem sobre preferências pessoas. A senhora de rosa descrevia alguns dos doces, acompanhada por uma das jovens – possivelmente, sua filha ou namorada do rapaz. Nitidamente, as conversas respeitavam a divisão etária desenhada na organização da mesa. Os jovens alteravam momentos de diálogo entre si com algum movimento no celular para o envio e/ou recebimento de mensagem. Para minha surpresa, todos estes adolescentes portavam blackberrys e manejavam com facilidade. Em um momento, a conversa no grupo mais velho foi divida por gênero: os homens comentavam sobre passeios náuticos. O senhor de Lacoste descrevia para o outro as maravilhas de uma região com mar calmo e água até a altura do peito: “você só vê mar por todos os lados [balança a cabeça para a esquerda e direita] e a água bate aqui [coloca a mão horizontalmente no peito]”. Maravilhado, o senhor de azul a tudo escutava. Neste momento, a senhora de preto mostrava à amiga imagens contidas em seu blackberry. Mais tarde, os mesmos homens travaram algum comentário sobre Ilhabela. Em novo diálogo, o senhor de azul reagiu a um comentário do jovem, respondendo-lhe que “ali só tem cafona”. Infelizmente, não pude ouvir sobre qual local se referiam. No momento em que os dois casais da mesa defronte a minha saíram, o grupo mais velho da mesa ao lado dedicou-se a ver e comentar o figurino da jovem que partia: uma inusitada combinação de short com salto alto. Solicitada a conta, os senhores pagaram-na com cartão de crédito. Ao saírem, pude observar a bermuda de marca importada do rapaz, a beleza juvenil de duas das adolescentes – uma delas com uma imponente bolsa marrom caramelo de famosa marca estrangeira, reconhecidamente importante por ser difusora de tendências e, principalmente, por ser 51 identificada como a preferida do diabo, após famosa publicação de livro e realização de filme com Meryl Streep com seu nome no título. Sim, uma bolsa Prada. Ao longo desta observação, o jantar fora servido, uma Coca Cola Zero foi concedida ao grupo após um copo sujo de batom chegar à mesa. Interessante observar que este novo refrigerante, diferentemente dos demais, fora servido em taça. Iniciava uma torrencial chuva. Por volta de 00h, em uma ida ao banheiro, pude observar a movimentação do restaurante e constatar que a música ambiente também alcançava o local. As mesas permaneciam ocupadas e os balcões eram usados por pessoas mais jovens. A sala vip, antes ocupada, já estava vazia e limpa. Agora, recebia um novo grupo: uma família e mais integrantes. Questionei ao garçom que atendia minha mesa, como era o processo para utilizar o local. Ele disse que só por reserva com um grupo mínino de seis a oito pessoas, mas o local comportava de doze a quatorze indivíduos. Rapidamente, olhei para o interior da sala, cuja porta e cortina foram mantidas abertas e pude observar um senhor gordo a devorar avidamente uma costela de porco grelhada. Ainda havia uma porção no prato. Um dos amigos, com visão frontal privilegiada, relatava espantado os modos deste sujeito à mesa: partira o sushi com garfo e faca, retirava o acúmulo dos dentes com o dedo e fartava-se com estas costelas incessantemente. O trânsito de garçons para atendê-los era, de fato, intenso. Como estava de costas para o local, considerava invasivo dirigir constantemente o olhar, mas chamava-me a atenção o aparente silêncio que reinava no ambiente – eles não conversavam entre si. Situação oposta a do grupo que estava, anteriormente, em seu interior na mesma sala – jovens na faixa dos 30 anos – e na mesa à minha esquerda: em ambos os casos, havia uma comunhão e uma clara tentativa de entrosamento entre os presentes. É interessante notar como as iguarias do Soho situam-se no extremo oposto da alimentação brasileira. Pontuo ainda como nenhum dos estabelecimentos da BM oferece em seu cardápio a típica culinária baiana – apenas o Gengibre e o Lafayette apresentam versões próximas de uma moqueca de camarão. Usufruir de um dos sete serviços gastronômicos do local requer do freqüentador o apuro devido para apreciar o que lhe é ofertado, além da realização de estratégias para se ter acesso aos mesmos. 52 4.1.2 Baila comigo, como se baila na tribo: as festas na marina No que concerne às festas – shows de axé, réveillons ou de música eletrônica –, o entrosamento por parte do público é mais enfático e incisivo, pela própria natureza do evento, como descreve um dos freqüentadores: Essa festa [do Bonfim Light], normalmente, acontece em uma data comemorativa religiosa. Eu gosto muito da cultura popular, mas não gosto de me meter em uma festa de largo. Como lá tem segurança e boas atrações musicais, é minha preferência. Mil vezes prefiro ir para uma festa do Bonfim indoor, como é lá, do que na Colina Sagrada. Eu posso até assistir a procissão de manhã, mas o profano da Colina não me agrada. Eu prefiro pagar por uma coisa mais segura. [...] Geralmente, estas festas têm cinco atrações musicais, levando em conta que o convite é setenta reais. Você divide setenta por cinco, sim, condiz. Eu acho que é bom porque seleciona, nivela por cima. Se botar um preço muito baixo, vai acabar virando uma festa de largo. [...] Nas festas da BM, eu prefiro ficar na pista. (JÚLIO). A típica festa popular ganha uma versão diferenciada para atender aos freqüentadores da marina. Realizada na área do estacionamento, onde são montados palco e camarotes, o acesso se dá mediante a compra de camisa, equivalente a um ingresso, para se assistir às atrações do axé local. O consumidor ainda arcará com bebidas e alimentação. Desde a sua primeira edição, a banda Asa de Águia participa do evento, atraindo fãs, que, independente do local de apresentação, sempre comparecem ao show. Bonfim Light geralmente eu vou. Bom, eu fui esse ano até. Não é todo ano, mas eu vou quase todo ano. Porque eu adoro Asa de Águia. [Risos]. Esse ano eu fui com um grupo de cinco a seis pessoas, a gente foi em dois carros. [...] Na verdade, esse ano eu ganhei um camarote. Porque minha amiga conhece alguém [...], sobrou um camisa e eu fui de última hora. Mas no último ano que eu paguei [pela camisa], que foi ano retrasado – ano passado eu não fui –, o camarote estava R$150. [...] Eu acho que você recebe três a quatro fichas [para consumo de bebida] e o resto você tem que comprar. (SOLANGE). Devido à realização da festa em dia comercial – segunda quinta-feira de janeiro –, esta festa atrai um público bastante específico, composto por turistas, estudantes ou citadinos em férias e profissionais autônomos, capazes de gozar de folga. O valor do ingresso e a ocorrência da festa em dia útil restringem o número de freqüentadores, embora represente, mesmo assim, um evento de grandes proporções, como se pode ser visto no Anexo G. Este ano, pude observar um grande número de adolescentes, dedicados a beber antes do início do evento ou da grande apresentação – no caso, Asa de Águia – dispersos pela Avenida Contorno. No trecho que se estende do Largo do Aflitos – principal via de acesso, já com a presença de cambistas – até o Restaurante Amado, os grupos de adolescentes dedicam- 53 se a beber energético (Red Bull, Mad Dog) e vodca (Smirnoff e Sky) e a dançar a trilha sonora oferecida pelas barracas populares montadas na região, o que consiste em principalmente em pagode. Trata-se do momento da preparação ou, como mencionou um deles em conversa com um amigo: “Isso é o esquente, tá ligado?!”. O objetivo é ingressar na festa já tendo consumido algumas doses de álcool com o intuito de, em seu interior, dar continuidade à ingestão e poder explorar com maior prazer a festa. É interessante notar como a uniformização proporcionada pela camisa convite ganha diferenciações nas reduções, ajustes e cortes realizados pelas jovens. As blusas são recortadas e “customizadas”, com o intuito de oferecer maior visibilidade ao corpo. Os rapazes, por sua vez, antes de adentrarem a Marina, dispensam o uso da camisa. Suas camisas ganham recortes mais amplos nas laterais, seja como forma de aliviar o calor ou como meio de expor o corpo moldado em academia de ginástica. Atentos a estas modificações na vestimenta, os cambistas oferecem tesoura aos clientes, a fim de que os mesmos possam realizar sua intervenção e personalizar o convite de acesso. Estes mesmos cambistas são hábeis no entendimento da engrenagem social e usam de apelos dos mais diversos como forma de persuasão. Um deles bradava sobre a camisa que comercializava: “É camarote, não é fuleragem, não, viu?!”. O termo “fulêro” em Salvador relaciona-se a um bem ou serviço de qualidade ruim. Mesmo se tratando de um evento como o Bonfim Light, o “fulêro” manifesta-se em assistir o show da pista principal, sem ter acesso às regalias e privilégios que um camarote concede aos seus usuários, como algumas bebidas de graça ou alimentação diferenciada. Particularmente, em Salvador, a realização de uma festa privada, como esta, em meio à realização de evento de cunho popular pode ser encarada como uma compartimentagem semelhante a praticada no carnaval baiano, como identifica Risério (1981) ao analisar as segregações relativas às agremiações carnavalescas e músicas praticadas nos diferentes contextos: Historicamente, o carnaval baiano já nasceu dividido. De uma parte, o carnaval dos brancos, carnaval de salões, com bailes em clubes fechados, onde a dança girava entre quadrilhas e valsas. De outra parte, o carnaval dos pretos, carnaval de rua, nada europeu, ao som do samba dos batuques, em meio a búzios e ganzás. (RISÉRIO, 1981, p. 47). É este tipo de segregação e a segurança que a mesma oferta que permite a Júlio participar do Bonfim Light na pista, dispensando a compra de um ingresso para camarote – normalmente mais caro. Outro ponto interessante é como o acesso à festa pode ser obtido a 54 partir da própria relação social dos entrevistados: ganha-se a camisa a partir de um amigo, conhecido de alguém, que é próximo de outro sujeito. A rede social assume importância ímpar por um duplo aspecto: traduz-se como companhia para as festas e permite que o acesso a estas seja facilitado, dispensando-se, inclusive, a aquisição do ingresso – embora o valor do mesmo seja compatível com a realidade financeira destes sujeitos. A dispensa da compra, neste caso, valida o seu pertencimento a determinado círculo social e confere importância às relações de sociabilidade em jogo nesta convocação para a festa. O exercício de consumo estende-se a estes gestos de entrosamento e participação (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006). O relato de Júlio sobre sua participação nos réveillons da BM também evidencia o manejo deste tipo de jogo social. O interlocutor relata sua ida a este evento em virtude da aproximação que um amigo jornalista possui com a organizadora da festa. Assim, no último ano (réveillon de 2008-2009), Júlio acompanhou a passagem de ano no Clube Espanhol e, em seguida, dirigiu-se à marina, a fim de aproveitar o acesso livre e as maiores comodidades ofertadas pelo espaço. Especificamente, neste ano, o réveillon da marina foi realizado através de uma parceria entre a produtora local (Licia Fabio) e a revista Contigo!. Vendido por cerca de novecentos reais cada, os ingressos para as mesas rapidamente se esgotaram em virtude da atração musical: a banda Chiclete com Banana. Com este ingresso tem-se direito a tudo na festa, incluindo bebida (água, refrigerante, cerveja, uísque, vinho e champanhe) e vasta alimentação, ofertada por diferentes restaurantes, os quais firmam parcerias com os organizadores do evento. Assim, montam-se mesas com tipos específicos de alimentos: doces; culinária japonesa; culinária italiana (pizza e massas); culinária internacional; carnes de churrasco etc. No que se refere ao réveillon, há uma diversidade de opiniões. Entre os entrevistados que aprovam a participação em uma festa como a oferecida pela marina, a escolha decorre da combinação de elementos, como, por exemplo, presença de amigos, familiares – em alguns casos – e atração musical, como revela a fala de Wilton: Os últimos dois anos [de réveillon] foram na BM por causa dos amigos. As pessoas vão para lá e te convidam. Vão estar outras pessoas amigas, parentes, às vezes. E termina sendo um ponto de encontro. Para prestigiar os amigos. E as atrações também, eu acho que são boas atrações. O mix de atrações no caso. É um local agradável. É legal passar o final de ano ali. A marina tá próxima do mar e numa cidade dessa. 55 Em 2009, ocorreram algumas modificações. O evento promovido na área do estacionamento foi redimensionado para a região da área de espera entre os restaurantes Soho e Lafayette, sendo comercializadas mesas nestes estabelecimentos, além do convite individual para permanência exclusiva na área externa16. Apesar da presença de DJ, a ausência de uma atração musical fez o valor do ingresso reduzir para quatrocentos reais. Além deste evento, o restaurante Gengibre promoveu festa de réveillon tendo como atrações dois DJ’s e um grupo de samba. O acesso custava duzentos e cinqüenta reais, sendo esta a opção escolhida por mim para passar réveillon de modo solitário, mas certo de que teria acesso a bons dados, como apontam as imagens do Anexo H. Cheguei à BM por volta das 22 horas. A movimentação era intensa de pedestres e carros – com acesso bastante restrito. Permaneci na área do estacionamento, a fim de observar o trânsito e a freqüência dos convidados. Constatei, inclusive, a utilização de barcos, situados mais próximos ao píer, para a realização de pequenas festas. Nesta ocasião, tive acesso a uma das melhores frases, proferida por uma senhora para seu marido, ao cruzar com um jovem, quando se dirigiam à entrada da festa de Licia Fabio: “pode vir de bermuda, se é esporte fino?”. A indagação justificada pelo traje do rapaz é indicativa de um aspecto valioso e típico do local: a capacidade de alguns freqüentadores em alterar os códigos de vestuário normalmente sugeridos (a) pela compreensão de que a aura social que possuem dispensa esta exigência; (b) pela noção de que a escolha por marcas internacionalmente reconhecidas conferem-lhe a legitimidade necessária para ultrapassar as regras propostas; (c) pelo entendimento de que a marina dispensa tamanha formalidade, dada sua localização e descontração. O questionamento torna-se revelador da diversidade de clientes que esta festa agrega: desde habituais freqüentadores, capazes de subverter as regras vigentes, como também sujeitos inábeis no manejo dos códigos ali praticados, no qual a ruptura deve ser compreendida como uma proposição diferenciada que apenas os sujeitos integrantes deste círculo – ou campo, como sugeriria Bourdieu (2008) – podem traçar. Ao ingressar no Gengibre, ganhei uma pulseira auto-adesiva para ser fixada no punho, o que me permitia sair do estabelecimento quando desejasse. Inexistia áreas restritas em seu interior, onde famílias e grupos de amigos – em maior número – ocupavam algumas mesas e serviam-se de tira-gostos e bebidas. 16 Normalmente, o controle de acesso a áreas específicas se dá com uma pulseira auto-adesiva colorida, fornecida ao usuário no momento de ingresso à festa e apresentação do convite. 56 Por volta da meia-noite, a maioria dos participantes dirigiu-se à entrada do local, a fim de ver os fogos da outra festa. Neste momento, identifiquei alguns barcos nas imediações da marina, ouvindo som – pagode – extremamente alto. A música e o porte das embarcações impediam-me de associá-los a usuários do local. Decerto, eles pareciam fazer do mar e da marina sua paisagem, invertendo a lógica usual de ser este espaço o centro de observação em direção ao litoral. Constatei ainda, na área comum do estacionamento, veículos de emissoras de televisão e ambulância de suporte às festas. A festa transcorreu calmamente. Dividido em cinco ambientes, o fluxo dos participantes condiciona-se pelo interesse em acomodar-se na área para fumante (espaço aberto), descanso (com amplos sofás), alimentação (com mesas) e dança, já que havia uma pequena pista para apresentação de banda e performance de DJs. Após a primeira hora, casais já saiam de ambas as festas, sem indícios de embriaguez ou outros excessos. Outra festa realizada na BM, especificamente no mesmo restaurante Gengibre é a Sins. O térreo do restaurante é mantido para refeições de modo independente durante todo o evento, porém seus dois salões, localizados no segundo andar, são usados como pista e bar, onde há um som mais baixo, além da varanda – sem música. Destinada ao público homossexual, entre 23 a 40 anos de idade, interessado em música eletrônica, a periodicidade do evento é irregular – embora se respeite um intervalo mínimo de três meses entre as festas. A realização é sempre aos sábados a partir das 23h. A concretização do projeto foi possível, segundo seu idealizador – Lúcio, pelo interesse do Gengibre em abrigar uma festa voltada a este público, com garantia de alto consumo, já que as bebidas têm seu valor elevado, além da parceria deste empresário com um DJ, como ele mesmo elucida: O Gengibre, na verdade, a gente procurou. Não conhecia os donos e eles deram bastante abertura. A confiança se deu a partir da primeira festa, do primeiro público que a gente teve, que foi, justamente, um público que eles consideraram fenomenal em termos de consumo – um público bonito e que não havia briga nenhuma. Ou seja, a minha festa estava muito bem estruturada. Era uma festa perfeita para uma casa que queria ter um consumo alto. O acesso à festa custa quarenta reais ou vinte e cinco reais para aqueles com nome na lista de convidados ou que apresentem panfleto de divulgação – o chamado flyer (vide Anexo I). O pagamento desta entrada sempre deve ser feito em dinheiro, mas a consumação pode ser paga em cartão de crédito ou débito. 57 Uma vodca em lata custa dez reais e, em uma das últimas festas, repuseram energético três vezes ao longo da noite. Apesar da grande ingestão de álcool, Lúcio destaca a inexistência de brigas ou tumultos. A realização de um evento deste porte requer a contratação do seguinte número de empregados: (a) dois funcionários para som e iluminação; (b) hostess17; (c) dois funcionários para a bilheteria; (c) empresa para impressão das pulseiras; (d) seis funcionários do próprio Gengibre; (e) três DJs; (f) entre cinco e seis seguranças. Soube deste evento por meio do interlocutor Júlio, que a descreveu da seguinte forma: “são festas para o púbico GLS meio blasé. Fui a duas e não voltei mais”. A partir desta menção, senti-me na obrigação de entrevistar um freqüentador assíduo, além de marcar presença em uma delas. Surgiu a dúvida: quando iria ocorrer a próxima? Após alguns meses de espera, estive na (última) edição realizada no dia 04 de dezembro de 2009 – curiosamente, após esta data, suas ocorrências foram suspensas. Enquanto isso, identifiquei Roberto, ator baiano, habitué das Sins e próximo de um dos seus realizadores – responsável, inclusive, por meu contato com este profissional. Sua descrição da festa aproxima-se da feita por Júlio. Vejamos: Nunca fiz amizade com ninguém [no local]. [...] Muito menos no Soho e no Gengibre. Eu estava prestando atenção: foi a quarta vez que fui nessa festa, que tá completando um ano, e as pessoas se caracterizam por serem “bicudas”, que é uma gíria que diz que elas são metidas, com nariz empinado, difícil. (ROBERTO). A categoria “bicuda” aproxima-se da atitude “blasé” mencionada por Júlio, conferindo o distanciamento exigido entre os atores e a ocupação mental descrita por Simmel (VELHO, 1973). De fato, o imperativo do dinheiro mostra-se como divisor de águas para adesão e vinculação ao clube: Normalmente, você deve conhecer alguém [para ter acesso]: ou os DJs, ou o promoter, ou alguém de lá de dentro para que seu nome esteja na lista. Essa festa é interessante porque, para o círculo GLBT [gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros], Salvador conta somente com a Off Club18, que é considerada boate de primeira linha e mais algumas casas que são – digamos assim – de segunda linha, mais popular, com uma freqüência de pessoas com poder aquisitivo menor. E esse promoter dessa festa é uma tentativa dele de abrir um outro espaço para que as pessoas saiam desse círculo vicioso de somente ir à Off Club. Então, a Sins se caracteriza por não ter uma publicidade muito grande. São convidadas através de amigos e, segundo ele, se tenta fazer uma triagem. Só pessoas bonitas, de poder aquisitivo alto. Eu acho uma crueldade, que qualquer pessoa pode ir, basta ter grana para pagar e tal, cada um cobra o que quiser. Mas é uma das características 17 Funcionário(a) situado na porta do evento, a fim de recepcionar os convidados, fornecer eventuais orientações e administrar a formação de filas, facilitando o acesso de vips. 18 Situada na Barra, era, até setembro/2009, a única boate gay de renome da cidade. Após esta data, a San Sebastian, no Rio Vermelho, assumiu o posto. 58 desse mundo GLBT: essa crueldade de exigir estampa e classe social. Teve uma curiosidade no último sábado. Um amigo chegou para um menino e o menino perguntou onde ele morava, ele falou: “Ah, eu moro em Feira [de Santana19]. E você?”. “No Itaigara”. E reforçou a coisa “Itaigara” assim. [...] E você percebe isso. São pessoas que não estão muito no circuito e que aparecem porque sabem que vai ser uma festa exclusiva. (ROBERTO). A dicotomia centro e periferia ganha nova dimensão ao perpassar as relações travadas no próprio contexto urbano, algo que Vianna (1997) já mapeia muito bem. A fim de legitimar a fala acima, vejamos o quê o organizador da festa, Lúcio, declara sobre sua organização e composição da lista de convidados: É um público muito complicado de se trabalhar. Ao mesmo tempo que pode estar o final de semana aqui, pode estar em São Paulo. No mailling que a gente faz, [...] personalizado [...], faço questão de fazer um por um e digo: “Querido, estou lhe esperando no Gengibre. Vamos ter mais uma festinha”. E aí, as pessoas respondem, às vezes: “Ah, eu estou em Milão esse final de semana, estou na Espanha”. A gente dá muita risada com tudo isso. [E como você supre eventuais ausências?] O mailling da gente é grande. A gente tem hoje oito mil pessoas cadastradas. [...] A gente dá uma enxugada neste mailling, seleciona mesmo. E aí, incrivelmente, está em voga várias questões: beleza, postura, se a pessoa é conhecida, se tem uma roda de amigos bacanas ou se é indicada por pessoas influentes. Então, é uma festa meio escrota neste sentido. O que eu não impeço também que, às vezes, tem pessoas que não fazem aquele perfil, mas dá para dar um jeitinho. Eu não tenho problema nenhum com isso. Mas tem pessoas que chegam lá, às vezes, que não fazem parte e pode ter o dinheiro que for. As restrições de acesso ultrapassam o âmbito financeiro e abarcam questões como porte, rede social, trajes etc., ou seja, a própria polidez do ator (DHOQUOIS, 1993). O acesso pode ser impedido identificada a incongruência entre sujeito e a estruturação do social ali representada por regras que perpassam inclusive a contenção dos gestos reveladores de sua orientação sexual. É uma festa que permite você conversar. Você não vê pessoas se agarrando, se beijando. Uma vez ou outra e mesmo assim, você vai perceber que ela veio pela primeira vez. [...] É um perfil bem diferente de festa. Eu não compararia com boate porque com boate você fica bem à vontade para se beijar, se agarrar, fazer o quê quiser, embora, na primeira edição, quebraram o mármore do banheiro. Aí, agora, eu já coloco segurança no banheiro para evitar isso. Mas geralmente é assim um público mais comportado. (LÚCIO). De fato, no dia em que estive na festa, com entrada por volta da uma hora da manhã, o público parecia comportado, apesar do intenso consumo de álcool – precisamente, a combinação de vodca (Absolut) com energético – e do consumo de drogas, impressão suscitada pela saída de três jovens de uma mesma cabine do toalete, precedido pelo som de 19 Município situado a 107 km de Salvador/BA. 59 sucção nasal. O comentário “a comida não me fez bem” mencionado por um deles servia como menção inconveniente e blefe impróprio. Por volta de duas horas, a festa foi invadida por rapazes trajando apenas calça, sapato e gravata borboleta distribuindo panfletos para promoção de outro evento direcionado ao público GLBT. De fato, o fluxo de participantes coincidia com a descrição feita por Lúcio: As festas do Gengibre começam muito tarde. Se você chegar lá meia noite, meia noite e meia, você começa ver algumas pessoas chegando e passeando pela marina. Agora, uma hora, duas horas, é o horário em que a festa está “bombando”. [...] Incrivelmente, é uma festa que começa tarde e acaba cedo. [...] Vai até cinco e meia, seis horas no máximo. Por volta das duas horas e quarenta minutos, o espaço estava bem concorrido. Nos círculos de discussão, alguns grupos mencionavam a festa promovida pela grife de moda Ellus dias anteriores como bastante disputada; outros, já combinavam a ida para a barraca de praia Marguerita (Praia do Flamengo) no dia seguinte; enquanto alguns se articulavam em direção à boate Off Club, a fim de acabar a noite. Ao longo da noite, três DJs revezaram-se no aparelho de som, Lúcio percorria os espaços do restaurante e monitorava o funcionamento da casa noturna. A partir de três horas, o público deixava o local. É notória que todas as festas apresentadas – réveillons, shows de axé ou de música eletrônica – dedicam-se a públicos específicos e estabelecem estratégias para tornar o acesso restrito, conforme interesse dos seus realizadores. Restrição esta que pode se dá pela divulgação mínima de algumas festas, com informação circulando entre amigos, pelo valor do ingresso ou, até mesmo, por critérios subjetivos visando o impedimento do acesso. Alguns dos freqüentadores julgam-se inclusive sujeitos potenciais dos eventos, recusando-se a desembolsar qualquer quantia pelo ingresso, delegando aos contatos estabelecidos por sua rede social a tarefa de prover um meio de acesso. Amizades, contatos profissionais e amorosos são alguns dos instrumentos de que se servem estes sujeitos para obtenção de convites, legitimando seu status e o círculo social a que pertencem, se inserem e trocam referências. Trata-se de um jogo mútuo e permanente, regulado pela troca de dádivas entre os integrantes, dada a importância das festas para todos os estratos sociais como forma de socialização e comunhão coletiva em vista a celebrações: A comida, a bebida e a dança são componentes universais da noção de “festa”, que por sua vez é uma categoria muito próxima da idéia de lazer, prazer, fruição e gozo. Nas mais diversas culturas, ao longo da evolução histórica, desde a civilização grega até às tribos indígenas brasileiras, as festas, os ritos, as liturgias configuravam uma combinação do dançar, do comer e do beber. Na sociedade industrial moderna, embora quase totalmente dessacralizadas e laicizadas, essas 60 práticas continuam tendo, para todas as classes da sociedade, a conotação de formas de produção do prazer, do entretenimento e da sociabilidade. (FORJAZ, 1988). Por mais que estes eventos desenvolvam formas de segregação, avalio como é possível, por parte do ator, traçar estratégias de ruptura, tendo a possibilidade de ingressar nestas festividades. É por meio destas aberturas que os sujeitos de outras classes sociais ingressam no suposto clube restritivo e, com isso, estabelecem novas socializações e possibilidades de convívio. Obviamente, nem todas as festas e situações são receptivas a estes novos entrantes, assim como é exigido dos mesmos o respeito e a adequação às normas sociais praticadas. Trata-se, portanto, de um manejo dialético entre as partes envolvidas, o que se dá pela disposição do ator social em adentrar neste âmbito e a própria estrutura do campo em mostrar receptiva e maleável frente à sua presença. A teoria praxiológica de Bourdieu (ORTIZ, 1983) e os apontamentos de Nery (2008) fazem-se presentes. 4.1.3 Navegar é preciso: o equipamento náutico BM No que concerne ao uso da marina como espaço náutico, é possível identificar em alguns discursos a noção de melhoria para o entorno, acompanhada da instalação de serviços que fazem do espaço muito mais do que um simples centro náutico, como revela o executivo Michael, que trabalha na região do Comércio – bairro próximo à marina –, utilizando-a para refeições e para eventuais passeios, já que não dispõe de embarcação: “É um espaço que vai muito além dos barcos. [...] É um lugar que, pela beleza, é muito mais do que para você parar um barco. Vai além disso.” O fato de “ir além disso” está diretamente associado à experiência que seu consumo incita como descreve Norma, proprietária de lancha no local, juntamente com o marido, e residente em São Paulo, mas com parcela da família morando aqui: “[Sensação de] bem estar. É um lugar que tem um bom astral. Você se sente bem, você não se sente deslocado.” A noção de “deslocamento” por ela mencionada é relativa, uma vez que traduz os valores praticados por sua esfera social e neste espaço validados. O “deslocamento” pode sim ser vivenciado por parte de um sujeito inábil no cometimento das ações devidas e esperadas pelos freqüentadores da marina. 61 A fim de melhor entender o pertencimento de Norma a este universo, vejamos como se deu seu ingresso à marina em questão. Sua família passou a usar os serviços náuticos em 2007, após a aquisição de uma casa em Buraquinho 20 e o interesse do marido por lanchas. Ambos já são aposentados e residem em São Paulo com os dois filhos de 25 e 28 anos. Normalmente, passam o período de dezembro a abril em Salvador, usando a embarcação, em média, de duas a três vezes por semana durante estes meses. Algumas vezes os filhos visitam a cidade e usam-na. A lancha só é usada por eles quatro, apesar de sempre convidarem amigos e familiares para passeios náuticos. O equipamento é pilotado por um marinheiro, residente em Salvador, o qual possui o curso de arrais – indispensável para este tipo de condução. A lancha ocupa hoje uma vaga molhada, em virtude da indisponibilidade de vaga seca. Trata-se de uma embarcação média de trinta e oito pés (cerca de doze metros) com capacidade para catorze pessoas (incluindo o marinheiro) e bom porte: duas camas, banheiros, cozinha completa e dois motores. O destino mais distante já freqüentado foi Barra Grande21. No que se refere à forma de aquisição da lancha, destaco como a escala social (FARDON, 2004) contribui para esta ação. O casal normalmente freqüentava a marina devido ao Soho. O marido de Norma tornou-se conhecido de um representante de embarcações com escritório sediado na marina. Isso o motivou a comprar uma lancha, aliado sem dúvida ao seu desejo pessoal. A escolha da marina foi estimulada pelo próprio representante. A organização e a segurança do equipamento náutico são diferenciais, segundo ela, apesar de considerar um valor alto o requerido para a manutenção do barco no local: mensalmente, cerca de dois mil reais. Este valor permite retirar o barco da água durante duas vezes por mês, permanecendo quatro dias na área seca para revisão e consertos. Todo este serviço é programado com bastante antecedência e funciona de forma exemplar. Eles costumam resolver todos os serviços de manutenção da embarcação na própria marina e com os estabelecimentos situados no espaço. Destaca como a loja Náutica, por exemplo, vende desde pratos a roupas, como também utensílios mais específicos. Segundo ela, na marina há a certeza do tratamento zeloso com a embarcação. Norma registra ainda como a ida freqüente aos restaurantes do local. Normalmente, quando voltam de passeios, optam pelo Acqua, devido à sua maior informalidade. 20 21 Praia no município de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador. Praia situada na Península de Maraú, sul da Bahia. 62 Outro usuário dos serviços náuticos da BM é Jack, jovem administrador. Morador da Graça, costuma ir ao local cerca de duas vezes na semana. Seu pai possui três barcos, mantendo duas delas no Yatchy Clube da Bahia (Barra) e a outra no Saveiro Clube (Ribeira). Jack integra as tripulações de embarcações que ficam na BM, logo conhece bem o funcionamento do serviço náutico sempre na condição de tripulante ou passageiro, além de explorar o espaço como centro gastronômico e realizar compras nas lojas náuticas, como a Regatta. Quando questionado sobre o público usuário do equipamento náutico, Jack acaba por descrever atores como Norma – residente em outro estado, mas com posse de capital econômico necessário para manutenção da lancha neste centro, dada algumas vantagens climatológicas e do próprio diferencial do negócio aqui existente: Aqui na BM, muitas das lanchas que estão aí são de paulistas, que preferem pegar um avião e vir para Salvador e curtir a Baía de Todos os Santos ou pegar a estrada para descer no feriado, pegar engarrafamento, para o litoral paulista. [A BM] é um local muito bem planejado numa cidade muito boa para a prática da náutica, onde a gente tem clima quente e água quente, sol 360 dias no ano. [...] Ainda com chuva, a Baía de Todos os Santos é uma baía extremamente agradável de velejar, de se utilizar e segura. O fato de a marina ser “muito bem planejada”, como Jack destaca, é uma constatação que se complementa ao seu descritivo sobre a grande variedade de serviços que a esfera náutica requer. É preciso compor um quadro de funcionários segmentado, “desde o mais caro – do nível maior – ao mecânico de motor ou o cara que vai mergulhar para limpar o fundo do seu casco.” (JACK). Estruturar um organograma como este tem um custo operacional para a empresa e para seus usuários. Loureiro (2004) discute os fatores determinantes para o desenvolvimento da náutica em uma cidade, sendo eles os naturais, o que envolve clima, correntes marítimas favoráveis, posição geográfica próxima aos centros emissores do turismo, como também os fatores institucionais, que abarca facilidade de acesso, infra-estrutura, marketing, comunicação, incentivos governamentais, desburocratização do controle da imigração, além de variáveis sócio-econômicas da localidade. Ou seja, trata-se de uma série de esforços conjugados entre iniciativa privada e condições climatológicas. A própria escolha da área do Comércio para instalação do empreendimento é vista como benéfica por José, funcionário da administração do local: [O que é a BM para você?] Desenvolvimento. Eu acho que a marina trouxe desenvolvimento para uma área que era degradada, que hoje é vista com outros olhos – essa área da [Avenida] Contorno. Outros empreendimentos já estão previstos. [...] A marina trouxe desenvolvimento para a área náutica, trouxe 63 emprego, resgatou a autoestima das comunidades vizinhas – muitos até trabalham aqui dentro. Nossos marinheiros, metade dos que trabalham aqui dentro, são moradores da região – até por conhecerem o mar, serem criados aqui. A maioria dos prestadores de serviço são moradores do [Largo] 2 de Julho, Gamboa, Unhão Conceição também. Todo esse pessoal do entorno, que foi criado aqui na região pescando, brincando. [...] Hoje, um mergulhador é marinheiro, presta serviço de fibra porque a gente acabou absorvendo este pessoal. Então trouxe desenvolvimento para o mercado náutico, para a região e para a própria Salvador. A marina é só um start neste processo todo de turismo do mercado náutico de Salvador. Tem muita coisa a se fazer ainda. (JOSÉ). O exercício de convivência pacífica com as comunidades vizinhas é um recurso fundamental e conveniente ao funcionamento do negócio, já que a mesma detém conhecimento sobre a maré, suas variações e informações sobre navegabilidade. Isto, sem dúvida, confere a BM um funcionamento exemplar, aliado ao permanente desenvolvimento de atividades visando a consolidação da náutica na cidade (vide Anexo J). Por outro lado, ainda há uma estrutura subjacente segregacionista que é reflexo da própria condição sócioeconômica soteropolitana. É devido retornarmos ao discurso de Jack para esclarecer mais sobre este tema. Ao ser indagado sobre seu entendimento da marina como um espaço de sociabilidade, Jack comenta as assimetrias financeiras entre os proprietários de embarcação e como isso interfere na formação e consolidação de um mercado náutico em Salvador: A gente tem muito velejador de poder aquisitivo baixo. Por mais que se tenha a idéia de que a pessoa que tem um veleiro é uma pessoa rica, não é necessariamente dessa forma. A gente tem muitos veleiros baratos, pequenos, muita gente que veleja e que faz das tripas coração para ter o barco e muita economia por aquilo. E tem barcos velhos e barcos até, de certa forma, com problema de manutenção, mas [mesmo assim] tem, utiliza e faz daquilo seu lazer, [mas] não utiliza essa estrutura, que é uma estrutura mais cara mesmo, de serviços mais caros, de uma garagem mais cara. Aqui seria o top da pessoa mais abonada guardar o barco aqui. A gente tem, na sequência, o Aratu Yatchy Clube, que fica no CIA [Centro Industrial Aratu, Simões Filho, região metropolitana de Salvador], que é bem voltado para veleiros mesmo, muito menos lancha – aqui a gente tem mais lancha. Depois a gente tem a Ribeira, que é um lugar bem mais barato, bem mais acessível. A cidade é segmentada. O que acontece hoje – e aí eu vou entrar num assunto, eu vou tomar essa liberdade aqui: hoje, em Salvador, a gente não tem mais espaço para transformar em marina. A oferta de locais que podem ser usados como marina é bastante escassa. Quem já tem, tem e não tem mais onde construir marinas. Isso é um problema e, provavelmente, as marinas serão, cada vez mais, valorizadas por isso. Agora, essa marina aqui [a BM] foi eleita, há alguns anos, a melhor marina do Brasil. Ela é um ponto especial para a náutica. Não se engane: é um público muito restrito que freqüenta aqui, que pode guardar seu barco aqui, que pode usar os serviços que são oferecidos aqui. Eu acho que a grande maioria do público náutico tá em outras marinas, mais acessíveis, mais baratas. [...] Agora, com certeza, as embarcações mais caras estão aqui. 64 Estas segmentações relacionam-se, inclusive, aos distintos papéis atribuídos aos praticantes da náutica. Segundo o interlocutor, o lancheiro utiliza a lancha para apreciar a paisagem, enquanto o velejador integra-a. Reveladora da distinção entre os integrantes da náutica – possivelmente, clientes da marina em questão – esta menção é significativa na medida em que exibe uma lógica hierárquica interna entre seus usuários, informação esta que poderia manter-se em silêncio e que, quando manifesta, adiciona ao campo a certeza de que suas descobertas são inesgotáveis. 4.2 O QUE GASTAR QUER DIZER A lógica do lazer marca presença de distintas formas no entendimento manifesto pelos freqüentadores mapeados. Ao cumprir suas funções de centro gastronômico, palco para festas e equipamento náutico, a marina articula e serve de exemplificação para muitos debates teóricos apresentados nas seções anteriores. Inicialmente, ao instalar-se pioneiramente em área social defasada, a marina coaduna-se ao pensamento de Appadurai (2008) na medida em que este defende a cultura materialista como propulsora para a revolução tecnológica capitalista. Ou seja, instalado o equipamento e sua materialidade, a esfera capitalista – em consonância com a ordem cultural vigente (SAHLINS, 2006) – prontifica-se a responder as demandas suscitadas. O suposto automatismo com que estas respostas são engendradas deve-se a alocação da atividade econômica como uma disposição funcional da ordem cultural (SAHLINS, 2006). Constatação esta que ratifica a natureza indissociável entre humanidade e materialidade (MILLER, 2002). Homem e consumo travam um jogo dialético, no qual se deve recusar um submisso condicionamento humano ao jogo mercadológico, como também dissuadir a absoluta determinação deste aparato ao livre processo de escolha praticado pelo ator. A análise deve ser multidimensional. A sugerida multidimensionalidade perpassa inclusive o fundamental debate entre consumo e lazer, como sugere Taschner (2003). É precisamente na interface analítica entre estas duas esferas que proponho considerar o lazer como meio propiciador e gerador de novos exercícios de distração, relacionamento e – propriamente – de consumo, o que se traduz, por 65 exemplo, nas formas de contribuição da BM para a construção da autoimagem dos seus freqüentadores. Ao advogar o lazer como propiciador do consumo, vejo-o como um exercício prático que, quando compreendido como um fim em si mesmo, mostra-se limitado. A discordância frente à proposição de Dumazedier (1999) pode ser argumentada pelo fluxo de sentido subjetivo que o exercício de consumo – mesmo quando inserido nas práticas de lazer – incita e faz com que as atividades destinadas ao gozo e ao espírito sejam um meio de articulação deste sujeito junto à sua rede social, com o claro intuito de legitimar sua autoimagem – este, sim, o fim das ações desempenhadas. A respeito desta questão, avaliemos como os interlocutores relacionam suas práticas de consumo e lazer. O consumo está diretamente relacionado com o meu lazer. Por exemplo, ir a bares ou restaurantes significa consumir alguma coisa, ir ao shopping passear significa consumir alguma coisa, ir ao teatro ou ao cinema é também um consumo de cultura, mas é consumo, a gente paga para ter acesso. Então eu acho que, dentro do que eu classifico como lazer para mim, o consumo está diretamente envolvido. (DIANA). O consumo torna-se uma forma de lazer na medida em que assume a condição de instrumento para a renovação da aparência do sujeito ou para o seu relaxamento, permitindo-o ingressar em contextos de profundo apelo imaginativo (CAMPBELL, 2001; LEITÃO, 2007). Nas entrevistas realizadas, o longo tempo de permanência em lojas para a compra de vestuário – cerca de duas horas ou mais – ou nos restaurantes da própria BM – aproximadamente, de três a cinco horas – exemplificam estas ações. Eu tive um problema no trabalho. Aí, eu fui no shopping para comprar. [...] Para mim, é uma válvula de escape experimentar um monte de roupa. [...] Para mim é um lazer, sem dúvida. [...] É o processo [de consumo]. Não é só o comprar, é o processo de entrar na loja, separar um monte de coisa... É aquele momento. Este caso específico que eu tive problema e que fui [ao shopping], eu passei mais de duas horas dentro do provador. [...] Comprei. (GABRIELE). Eu me divirto comprando. Eu adoro olhar, olhar, olhar. [...] Adoro garimpar. Adoro garimpar na C&A e pegar uma peça que é massa, a última moda. Eu não faço isso há muito tempo. No meio de muita coisa de baixa qualidade, você encontra uma peça super incrível: é uma cor bonita, uma estampa bonita. Eu adoro. Eu me divirto fazendo isso e tem muito tempo que eu não faço. E me divirto também olhando textura de tecido, cor, olhando vitrine. Para mim é um lazer. (TRACY). É interessante observar na fala anterior como a loja de departamento C&A é apontada como um magazine com peças de qualidade duvidosa, requerendo um sujeito com um olhar apropriado para a conquista de itens com boas características. Aponto ainda como nas entrevistas, os interlocutores, ao serem questionados sobre a forma como selecionam bens, constroem uma argumentação que revela um trânsito entre a 66 ótica racional e o aspecto subjetivo/valorativo que o bem em questão pode lhe ofertar. É possível que haja racionalidade nesta escolha na medida em que a marca funciona como um selo de garantia – uma forma de comprar sem duvidar, mas, a princípio, esta marca deve estar em consonância e em sintonia com o modo de vida que o sujeito possui: Primeiro [motivo para selecionar um bem], a identificação com o meu estilo de vida. Um produto que eu me enxergue nele facilmente já tem uma grande chance de ser adquirido. E eu tenho muito do momento [...], eu posso passar pela coisa mais linda ou mais necessária, mas se naquela hora eu não tiver com aquela coisa de comprar, eu não compro. Eu tenho aquela coisa de “ah, agora eu vou dar uma saída para comprar uma coisa para mim”, aí eu compro é naquela hora. Mas se eu tiver em outra sintonia, eu nem vejo. (TRACY). Rocha (2000) problematiza esta reflexão na medida em que delega à mídia o papel de órgão responsável pela introdução de significados na esfera da produção, a fim de que se crie um código próprio e passível de decodificação por parte dos sujeitos para que nasça o consumo: “A mídia faz com que a produção possa ter sentido e, portanto, possa ser percebida como consumo.” (ROCHA, 2000, p. 26). Codificação esta que deve ser passível de compreensão pelo ator, de modo que o mesmo reflita-se na mercadoria e posicione-a como artigo consumível dentro de sua grade hierárquica de prioridades de desejo e compra. A satisfação das necessidades que aparece como corolário do consumo nos leva a pensar, portanto, que essas necessidades não dizem respeito à função do produto, mas ao posicionamento que o consumo de certas marcas atribui ao indivíduo na hierarquia social por meio da ordem econômica. (BRANDINI, 2007, p. 163, grifo do autor). Munidos de uma gama de informação que provém de canais e circuitos de comunicação diversos, estes agentes constroem e remodelam seus referenciais simbólicos de forma a atender e corresponder às transformações em andamento globalmente – até porque a sociedade ocidental fomenta mudanças permanentes (McCRACKEN, 2007). Trata-se de um processo caracterizado pelo culto ao presente, ou melhor, por um senso de atualização instantâneo, típico da sociedade informacional (PINTO, 2002). Ao proporcionar uma constante renovação dos componentes de uma cultura material, a lógica do consumo tende a ser analisada pelo prisma da determinação materialista no sujeito, despertando-lhe uma obsessão por novos artigos ou ainda uma ou pelo ponto de vista hedonista na medida em que a posse constituir-se-ia como uma forma auto-indulgente de lazer e prazer. A lógica é outra. Se o consumo é um exercício constitutivo para sua identidade e manejado conforme o sentido pessoal que seu estilo de vida lhe faz representar, o 67 condicionante temporal é um fator decisivo para a permanente atualização e acompanhamento do fluxo das coisas. Assim, faz-se preciso o acesso criterioso aos meios de comunicação. E podemos problematizar ainda mais este tópico. Sigamos. Além da já discutida noção de escala, manifesta por Fardon (2004), o mesmo apresenta o conceito douglasiano de temporalidade do consumo extremamente adequado a presente discussão e cabível de uma pequena revisão. Segundo ele, esta temporalidade se dá por meio de uma (a) periodicidade e de um (b) horizonte temporal. O primeiro deles consiste na dimensão em que um consumidor pode tornar-se autônomo da coerção da rotina e venha a usufruir do uso flexível do tempo. Como ilustração, podemos recorrer à produtora doméstica: quanto menor a renda ou sua vinculação tecnológica, mais acentuada é a demanda por tempo, o que reduz o espaço para autonomia. O horizonte temporal vincula-se ao entendimento que os indivíduos e grupos manifestam sobre a decisão de dever e quanto poupar, obtida a partir de noções sobre o futuro e prevista de acordo com o meio social no qual se encontram. Tratando-se especificamente dos interlocutores do presente estudo, temos a consciência de que são agentes com capacidade de flexibilização do tempo, dada sua autonomia frente à rotina – basta, por exemplo, acessarmos as falas de Solange sobre sua participação no Bonfim Light e a liberdade gozada por Norma e seu marido na permanência em Salvador por cinco meses consecutivos – e com possibilidades de traçar previsões acerca do futuro que descomprometem qualquer preocupação sobre o usufruto de bens e serviços no tempo presente. Porém há certa vigilância, por parte destes atores, no que tange à conquista de mercadorias diferenciais e exclusivas. Tem esse lance de você usar uma coisa que quase ninguém tem. Isso é bacana porque... Eu não sei. Eu me sinto bem quando eu uso algo que quase nem todo mundo tem. Não por ser um produto caro, mas por você estar descobrindo uma coisa que é bacana e que as outras pessoas possam até querer ou usam, mas você está usando. (PAUL). O discurso de Paul introduz um aspecto distintivo, no sentido de se ter acesso a algo que poucos possuem – seja por sua raridade, seja pelo desconhecimento coletivo e midiático. Isso faz pensar sobre a necessidade de acompanhamento, por parte destes sujeitos, das inovações e produções que a cultura material elabora, dada a condição de se manterem à frente do seu tempo. Assim, complemento o propósito do tempo douglasiano sobre o consumo e proponho a introdução de uma dimensão relativa à verticalidade temporal, a qual confere ao ator o exercício voluntário, despretensioso, lúdico e sinérgico de identificação das chamadas 68 tendências antes da sua massificação para outros estratos – como fazem os hippies, punks e gays. (MCCRACKEN, 2007). Ou seja, em um eixo temporal verticalizado, alguns indivíduos devem se posicionar à frente dos demais, antecipando e inventando categorias culturais antes de que as mesmas tornem-se “convenções” (DOUGLAS, 2007) aceitas e validades pelo grande coletivo. A constante oferta de bens, desejáveis e na moda, ou a usurpação de bens requintados por uma camada mais baixa leva aqueles que pertencem a uma camada superior a ter de investir em novos bens (informacionais) a fim de restabelecer a distância social original. (FEATHERSTONE, 1997, p. 42). A pretendida manutenção de uma “distância social original” é uma conduta que, apesar das novas configurações das constelações familiares e esfacelamento da nobiliarquia tradicional, (LIMA, 2005; NERY, 2008), se ampara na quantificação bourdieusiana de capital que este sujeito desfruta (ORTIZ, 1983, THIRY-CHERQUES, 2006) e que perpassa, inclusive, o caráter visionário que indivíduo pode manifestar, prevendo comportamentos e novas regras de conduta. O realizador de festas Lúcio ilustra a existência deste distanciamento de forma bastante explícita, recorrendo a um exemplo de como pode vir a ter sua aura profissional combalida: A aparência, no mundo em que eu vivo, é extremamente importante. [...] Isso vai do cheiro, de tudo. [...] Por exemplo, se algum público meu me visse pegando ônibus – eu pego ônibus –, se isso chegasse a ser visto propriamente dito, eu acabo perdendo credibilidade. Para sair [à noite], eu nunca peguei ônibus. Prefiro ficar em casa, se for o caso ou é táxi. Mas, geralmente, eu sou um ingresso ambulante. Então, qualquer amigo meu, qualquer pessoa vai querer vir me pegar em casa porque sabe que vai ter a entrada free em qualquer lugar. Há mesclas sociais, sim, mas há espaços prévios e nítidos para ocupação de cada um dos estratos e um contínuo esforço de estabelecimento de novas demarcações espaciais e temporais com o objetivo de que áreas restritas sejam novamente delineadas e o acesso a tais campos requeiram o cumprimento de certas obrigações que alguns indivíduos desconhecem ou estão impedidos de praticar – seja por ausência de capital econômico, social e ou cultural. Pressupõe-se que, integrando o estrato social que demonstra pertencer, o sujeito terá as habilidades devidas, o conhecimento preciso e a receita necessária para que as ações possam vir a ser cometidas sem prejuízo, desajuste ou descrédito de sua imagem. Para um promotor de festas, utilizar o serviço de transporte público da cidade confronta-se com as “certas características sociais” (GOFFMAN, 1985) que sua profissão sugere validar, as quais levariam a crer na posse de um veículo particular. 69 Solange, outra interlocutora, ao ser questionada sobre o quê espera encontrar na BM, ri da sua própria resposta, embora venha a reforçar o nível de expectativa que se traça sobre os eventuais e potenciais freqüentadores do local: “[Quem você esperar encontrar na BM?] Gente bonita. Isso é horrível, mas... [Risos] Quando o povo fala que a festa teve gente bonita, eu acho isso ridículo, mas é, mais ou menos, as pessoas do mesmo meio social, mesmo meio cultural também. Eu acho que é isso. Um bom atendimento.” (SOLANGE, grifo meu). Jack elabora uma justificativa mais completa sobre o uso social que realiza da BM, circunscrevendo familiares, amigos e eventualmente clientes potenciais. Profissionalmente, eu utilizo em almoços e, à noite, em lazer com minha família, mulher, amigos. Mas é sempre essa estrutura gastronômica. [...] Eu tenho amigos que trabalham aqui [na BM] em empresas daqui de dentro. Eu tenho outros amigos que utilizam a marina, o serviço da marina, como marina mesmo e guardam seus barcos aqui. [...] Fim de semana, às vezes, as pessoas estão utilizando os barcos quando tem regata. É um ponto de encontro de saída e de chegada. [...] Quando eu venho aqui eu já sei exatamente o que vou encontrar: os amigos. [...] Não crio uma expectativa. Eu acho que aqui, certamente, eu encontro clientes potenciais para o meu negócio, captação de investidores. Aqui é um lugar que essas pessoas freqüentam. Estes dois trechos de entrevistas são bastante ilustrativos das expectativas criadas por seus usuários sobre quem faz uso da marina e com quem se irá interagir. Antever esta situação social faz com que o sujeito reflita sobre traje, companhia, condução (transporte), seleção do local, escolha de refeição entre outros pequenos exercícios corriqueiros que estruturam seu universo social, conferindo-lhe segurança, reconhecimento e traquejo para o convívio: “O comportamento de cuidados pessoais é literalmente uma linguagem corporal, comunicando mensagens específicas sobre status social, a maturidade, as aspirações, a conformidade e até a moralidade do indivíduo.” (ROOK, 2007, p. 90). São estes cuidados prévios que se mostram imprescindíveis. Ao se cogitar os outros agentes sociais potencialmente presentes no contexto, a marina firma-se como um palco para o desempenho de práticas de consumo estabilizadoras e facilitadoras das relações sociais (CANCLINI, 2007; DOUGLAS, 2007). É por tal motivo que alguns de seus usuários já relevam “[a BM] não pode chegar ao ponto de crescer demais e deixar de se sentir confortável em um lugar.” (MICHAEL). Mais do que desconforto, este “crescimento” suscita uma subversão da ordem já instaurada e validada pela marina. Funcionamento este tão bem engendrado, que alguns dos interlocutores desconfortam-se com a seguinte indagação: “[Quem você espera encontrar na BM?] Você agora me pegou com uma pergunta estranha. Eu não penso muito em qual tipo de gente vou encontrar [na marina].” (NORMA). 70 Desconsidero uma letargia subjacente capaz de conferir automatismo às ações destes agentes. Contrariamente, pleiteio absoluto entendimento sobre a construção da realidade social por partes dos mesmos, aptos e inteligíveis o suficiente para esboçar as ações e condutas ratificadoras da minha proposição acerca do lazer como elemento mediador, rechaçando sua concepção como atividade-fim. O lazer medeia as práticas dos agentes na medida em que desdobra o fluxo de intenções e ações, requerendo um prévio planejamento sobre as possíveis situações com que irá se confrontar no momento de gozo e relaxamento, garantindo-lhe, com isso, a possibilidade de aproveitamento destas oportunidades, que poderiam ser desperdiçadas ou passar desapercebidas se o nosso sujeito se mantivesse encapsulado ou alheio ao ambiente social que o circunda. Quando eu vou para o Soho, eu vou com um grupo de amigos para me divertir, conversar e para justamente fidelizar. Os meus amigos é que freqüentam as minhas festas. Então, eu tenho obrigação, praticamente, não é só diversão de sair e de tá com eles. Eu tenho a obrigação de fazer essa social sempre, mas, claro, são meus amigos e está além de negócios. (LÚCIO). As menções de Jack e Lúcio são representativas por explicitarem como o exercício de lazer, perpassado pelo consumo, é redimensionado para a condição de uma atividade mediadora, na qual a ociosidade demanda uma permanente vigilância e o adequado preparo do sujeito em saber articular na mesma situação social o âmbito privado do seu relaxamento pessoal com pequenas demandas e gracejos que a profissão enseja praticar. Tarefa fácil tratando-se de um global manager. (BARBOSA, 1999). A meu ver, todos os distintos usos sociais da BM apresentados anteriormente – uso dos restaurantes, ida a festas, prática da náutica – funcionam como “índices de confiabilidade da saúde social do sujeito” (BOSSARD, BOLL, 1950 apud ROOK, 2007), além de reforçarem concepções bourdieusianas: Os sujeitos sociais percebem uns aos outros e se comparam. Ver é fazer comparações, é fazer diferenças, é distinguir formas em relação a fundos. A partir do momento em que os sujeitos sociais percebem uns aos outros, as diferenças entre eles entram em sistemas simbólicos e temos um espaço de distinções. Minha tese central é que esse espaço de distinções simbólicas exprime e reproduz o espaço das diferenças materiais. (BOURDIEU, 2000, p. 30). Ser visto na marina e mostrar interesse na participação de algumas de suas festividades ou torneios náuticos é uma declaração pública de pertencimento àquele estrato, reafirmando vínculos e conferindo importância e valorização à rede social que lhe abriga emocionalmente e profissionalmente. 71 Consiste em um “índice” de natureza qualitativa, no qual a mensuração ampara-se na qualidade das relações humanas firmadas – sejam elas licitamente pautadas pela irmandade ou apenas pelo profissionalismo, ou ainda um jogo mútuo entre ambas. Relações estas que são hábeis em sinalizar aos parceiros as ocorrências mais atuais: oportunidades de negócio, chegada ou partida de amigos, constituição de novas famílias, conquistas na carreira profissional, rupturas de casamento, enlaces afetivos firmados e toda uma série de pequenos eventos que, apesar de corriqueiros e banais, são formados e constituintes dos agentes na moderna sociedade capitalista ocidental. Se alguns dos interlocutores queixam-se da impossibilidade de sociabilização no local, é válido lembrar que sua própria ida à marina já prediz sobre sua integração a uma escala social (FARDON, 2004) que elege este local e sua presença como conciliáveis. O conseqüente estabelecimento de aproximações sociais neste espaço é possível de ocorrência, desde que os atores mostrem-se suscetíveis e desejosos do conhecimento mútuo. Considero inadequado entender tal prática de conhecimento do outro como impossível de ser vista ou realizada. O mencionado “índice de confiabilidade da saúde social do sujeito” cumpre precisamente esta função: verificada a recorrência do sujeito naquele espaço, com determinado grupo de amigos tem-se a garantia do estabelecimento de vínculo social, sem que o mesmo lhe constranja. No rastro das explicações de Velho (2001, 2008) sobre sociabilidade, identifico que o “índice de confiabilidade” conferiria ao sujeito o cumprimento dos seus “projetos pessoais” e o reconhecimento, por parte dos outros, da “saúde social” conquistada ou desfrutada. Manejar a marina e seus eventos como recursos de demonstração e exibição do seu posicionamento social inverte a usual lógica de submissão do sujeito aos grilhões organizacionais e excludentes do equipamento náutico. Por outro lado, valida a defendida indissociabilidade entre homens e cultura material, na perspectiva de Miller (2002, 2007). Se esta é uma associação defendida pela antropologia do consumo, considero pertinente complementar a presente reflexão com as contribuições trazidas pela incipiente antropologia das marcas, a qual almeja “administrar significados, bem como a detecção de seus antecedentes e conseqüências [...], movidos por uma visão narrativa da marca.” (SHERRY Jr., 2006, p. 41). A administração destes significados pauta-se na confluência de três domínios específicos, a saber: (a) a imagem da marca, a qual consiste na expressão externa que a mesma possui, determinada e operada por quem a detém – no caso, seus administradores; (b) 72 a essência da marca, que se relaciona com as interpretações produzidas pelos clientes sobre as marcas, como, por exemplo, a significação atribuída pelo jornalista Renato sobre a marina: A BM é um luxo. [...] Virou uma coisa de Europa. Aquele conglomerado de restaurantes maravilhosos, o espaço para festas... Isso foi uma coisa fantástica porque ninguém poderia acreditar que, há uns dez anos passados, um espaço poderia abrigar tantos restaurantes em um lugar só. E todos dando certo. Cada um de um jeito diferente. [...] A BM é uma coisa forte de Salvador. [...] A BM é uma coisa assim de nível internacional. O terceiro e último domínio consiste no (c) cenário da marca, o que engloba o conjunto de relacionamentos travados entre todas as marcas com o intuito de associarem-se e ilustrarem a vida do indivíduo. Se a antropologia do consumo detém sua análise nas dimensões denominadas “essência” e “cenário”, a antropologia das marcas torna-se valiosa por introduzir o sentido e interesse orquestrado pelos proprietários da marca na elaboração desta imagem. Operação esta que poderá vir a ser validada conforme a interpretação dos sujeitos consumidores venha a ser tecida. Ao, particularmente, considerar o lazer como atividade mediadora e integrada ao consumo, sendo ambos responsáveis e contribuintes para a construção da autoimagem do ator social moderno, identifico a antropologia das marcas como um segmento disciplinar capaz de preencher preocupações até então minimizadas pela antropologia do consumo – muito possivelmente por depositar e incidir sua reflexão na parte da cadeia de compra responsável pela aquisição: os consumidores. O discurso de José, funcionário da BM, mencionado em seções anteriores, fornece alguns indícios de como um escrutínio sobre a imagem da marca pode potencializar o entendimento que seus administradores manifestam sobre seu próprio negócio, suprindo uma carência analítica já destacada por Miller (2007) e Appadurai (2008). A composição deste arrazoado teórico e a defesa do acréscimo das preocupações aventadas pelo âmbito das marcas revelam muito da complexidade que a análise sobre o quê gastar quer dizer suscita. Mais do que a mera análise materialista ou hedônica, o ser mediante o outro, constitutivo do agente social moderno, conforme explicitado anteriormente, posiciona a BM como integrante do glamour system (LIMA, 2005) soteropolitano, e, em efeito dialético, reposiciona este sujeito frente à sua rede social, permitindo que ambos – coletivo e indivíduo – renegociem suas normas internas e seus campos de vigência e recusa. O mapeamento dos usos sociais da BM é significativo para compreender como o repertório de ações destinadas às compras dos atores insere-se em construtos particulares e 73 subjetivos, estando sujeito a amplificações e problematizações a partir do momento em que o agente é convocado para novas situações e socializações. A antropologia do consumo prossegue suas pesquisas, na medida em que novas justificativas e perspectivas para a aquisição de bens e escolhas de formas de lazer por parte destes atores surgem e legitimam-se culturalmente, sejam elas encenadas na BM ou em qualquer outro reduto que permita a este sujeito compartilhar com os seus iguais e reconhecer-se diante da autoimagem que elabora, para si mesmo e para os outros. 74 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para a elaboração do presente estudo, optei por uma construção didática da temática, concentrando-me, inicialmente, na manifestação de um entendimento sobre o consumo na ótica antropológica. Este arrazoado teórico estrutura-se em eixos que focalizam uma ordem cultural para o consumo; a formulação de um “significado público” para o mesmo, mostrando-se presente em distintos campos disciplinares e contextos de análise; o percurso das mercadorias até fazer-se presente em situações de compra e, por fim, a esfera de interface entre o consumo e lazer. É no seu entendimento enquanto proponente de um ordenamento cultural que o consumo enseja discussões relativas à congruência entre os bens e o sistema simbólico a que integram, atreladas ainda à capacidade dos mesmos em tecer redes de interação social, seja em práticas de aproximação ou de distanciamento, já que cumprem a função de diferenciadores. O capítulo seguinte insere o sujeito no campo de análise, abordando especificidades da sociedade baiana e das condutas de distinção e identificação social entre os mesmos, aliado à relação destes sujeitos com a BM. Introduzido o equipamento náutico na discussão, delineio o mapeamento dos freqüentadores do local, o qual compreende locatários de vagas para embarcação, clientes dos restaurantes e públicos das festas de verão e de música eletrônica e apresento como se dá a articulação entre as estratégias de consumo desempenhadas por estes sujeitos no local com o processo de construção de sua autoimagem. Evidentemente, este estudo opta por imergir nas interações entre distintas classes sociais e nas suas reconfigurações. Logo, acaba por tangenciar uma crítica à sociedade de consumo de serviços e à sua plasticidade, mas, sim, compreender suas estratégias de funcionamento e articulação com os sujeitos que nela vivem. Em rota oposta, Baudrillard (2008) desenvolve uma análise crítica e recorre a Playtime, filme de Jacques Tati (1967), ambientado em uma Paris planejada, correta e asséptica. O funcionamento da cidade é integrado, conjugado e harmônico, por maior desarmonia que algumas situações possam transparecer. Exala-se ironia. A menção ao longa-metragem torna-se aqui conveniente no momento de aparar arestas deste arrazoado. Poderia aludir-se a BM como uma espécie de Playtime soteropolitana, dada a inobservância de conflitos e a constatação de uma operação plena e 75 vigorosa. Porém se, por um lado, esta equação mostra-se tão precisa e exata, por outro, no campo destinado aos agentes, suas ações atendem a uma série de anseios, considerações valorativas e projeções passadas, presentes e futuras. A diversidade destes vetores influenciam nos modos como estes agentes firmam estratégias de consumo na BM, já que as significações atribuídas pelos mesmos a estas ações são contribuintes na construção de sua autoimagem. Significações estas que hierarquizam os estabelecimentos gastronômicos contidos no equipamento náutico, formulam explicações para a participação em festas realizadas em suas instalações, delineiam justificativas para a atracação de embarcações no local. A autoimagem é assim construída na medida em que se estes significados acerca das ações de consumo e lazer são elaborados por meio de um jogo dialético entre agente e estrato social ao qual pertence, o que invalida uma submissão ao coletivo, mas, opostamente, um jogo sinérgico no qual estas partes acordam mutuamente sobre a legitimidade e o desacordo sobre uma conduta de consumo, amparada pela ordem simbólica. Para tanto, é devida sua atenção e interesse por indícios e práticas culturais inovadoras capazes de apresentar-lhe a novidade, a ruptura, antes que esta se firme como comportamento padrão. A manutenção de uma distância social é pré-condição para uma diferenciação entre os atores e o entendimento, por parte dos mesmos, de que instantes de tangência entre suas esferas são passíveis de ocorrência. Evita-se, contudo, a cristalização ou perpetuação destes momentos. Daí, a imprescindibilidade de novos distanciamentos operados pelas práticas de consumo. A BM, por sua vez, cumpre duplo papel na reprodução destas distinções: (a) desenvolvendo estratégias mais exclusivas para seus usuários; (b) permitindo que nestes campos mais restritos os atores negociem entre si, troquem informações e tracem formas de delimitação espacial, sem que isso represente um convívio segregado. Validar ou fortalecer uma segregação representaria um exercício contraditório e ineficaz para estes sujeitos, já que a forma de consumo opera como dispositivo formador de identidade, a qual se firma frente à comparação com o outro no estabelecimento de pontos de semelhança e discordância. Contemporaneamente, com a área de interface entre consumo e lazer cada vez mais próxima, é devido analisá-lo multidimensionalmente, levando em consideração o operativo do consumo nas atividades destinadas ao relaxamento. Observar o lazer com um fim em si mesmo é minimizar sua potência analítica, já que, em sua configuração atual, encapsulado pelo consumo nas situações mais usuais realizadas pelo indivíduo, o mesmo deve ser visto 76 como uma ação mediadora em prol do gozo, mas que, de antemão, reserva-se ao direito de um cumprimento econômico para sua materialização: o lazer precisa ser adquirido. Na contracorrente da perspectiva que observa o indivíduo como subsumido ao imperativo da lógica do consumo, vê-se a antropologia do consumo na tentativa de identificação dos repertórios pessoais que os agentes articulam e produzem para o enfrentamento de distintas situações em que o consumo se faz presente. A antropologia da marca pode ser significativa para gerar novos desdobramentos e conferir perspectivas até então inéditas para este campo de estudo. Se a BM é cenário destinado ao lazer e às atividades de consumo, nada mais pertinente do que analisá-la como um representativo microcosmo social, onde se mesclam atores de distintos estratos com usos sociais dos mais diversos. Uniformizar estes agentes e seu repertório de consumo é abatê-los com uma perspectiva reducionista e minimizar uma complexa lógica identitária construída, contemporaneamente, por meio de um complexo e dialético equacionamento de relações, situações e projetos de vida. 77 REFERÊNCIAS ABREU Fº, Ovídio. Raça, sangue e luta: identidade e parentesco em uma cidade do interior. 1980. Dissertação (Mestrado em antropologia social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1980. APPADURAI, Arjun. Introdução: mercadorias e a política de valor. In: ______ (Org.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Tradução de Agatha Barcelar. 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Deck com posto para abastecimento. Fonte: Site BM. 88 Área de entrada com fila de espera na creperia Acqua. Fonte: Trabalho de campo. Pizzaria Fiona. Fonte: Trabalho de campo. Embarcação à venda, situada em vaga molhada. Fonte: Trabalho de campo. 89 Embarcação aportando com usuários da BM. Fonte: Trabalho de campo. Saída de freqüentadores pelo deck. Fonte: Trabalho de campo. Saída de freqüentadores pelo deck. Fonte: Trabalho de campo. 90 Anexo B – Roteiro de entrevista Informações pessoais 01. Nome ou referência. 02. Qual sua cor/etnia? (As categorias são, segundo o IBGE, negro, branco, pardo, indígena e amarelo). (03. Qual sua idade? Se necessário, estabelecer períodos: 20 a 30 anos, 31 a 40 anos etc). 04. Em qual bairro reside? 05. Situação conjugal? 06. Tem filhos? Quantos? 07. Tem empregados em sua residência? Quantos? Referências sociais 08. Qual sua formação? Em qual instituição? Por que a escolheu? 09. Fala alguma língua estrangeira? Qual? Como aprendeu? Por que a escolheu esta língua? 10. Pratica algum esporte ou condicionamento físico? Onde? Com que freqüência? Por que escolheu este local? 11. Segue alguma alimentação especial? Por quê? 12. Você acha que é possível se classificar financeiramente em algum estrato? Como você se classificaria? Por quê? 13. O que você faz (estuda, trabalha, o quê ou em que)? 14. Qual seu sonho? 15. Qual sua maior conquista pessoal? 16. Como você se vê daqui a 10 anos? 17. O que falta em sua vida? 18. Como é sua rotina? 19. O que costuma fazer em seus finais de semana? 20. O que é lazer para você? Como é o seu? 21. Costuma sair com amigos/as? Em que ocasiões? Para onde vai? Como escolhe os locais? Porque escolhe estes locais? 22. O que costuma fazer nas férias? 23. Costuma viajar? Para onde? Com quem? Por quê? Qual foi sua última viagem? Como escolhe os lugares que viaja? 24. Você viaja para o exterior? Com que freqüência? Quando foi a última? Para onde? Como viajou? Com quem foi? Você fez compras (citar)? 91 25. Qual a próxima viagem que pretende fazer? Por quê? 26. Você segue tendências de moda? Por quê? 27. Você cuida de sua aparência? Por quê? Como cuida? Com que regularidade? Em que locais? 28. O que você lê (jornais, revistas, livros)? Compra ou tem assinatura? 29. Você vê TV? Que programas prefere? 30. Tem TV por assinatura? 31. Freqüenta cinema? Qual circuito prefere? Por quê? 32. Aluga DVDs? Em qual locadora? Quais seus critérios de escolha? 33. Você tem carro próprio? Qual é seu carro? Quanto tempo tem de uso? Com que freqüência troca carros? Qual é seu critério para adquirir um carro? Sobre o consumo 34. Que critérios você usa para adquirir um serviço ou produto? 35. Você tem marcas favoritas de produtos? Por quê? 36. Quais marcas você não gosta? Por quê? 37. Você já fez reclamação de algum produto ou serviço? De que você reclamou e por quê? 38. O que você mais consome? Por quê? Com qual freqüência? Em qual local costuma realizar estas compras? Por quê? 39. Algo influencia sua decisão de compra (amigos, famílias, celebridade e meios de comunicação)? Por quê? 40. Você influencia na decisão de compra de amigos e/ou da família? Pode exemplificar? 41. Qual foi a última compra que você fez? 42. O consumo é uma forma de lazer? Por quê? 43. O que você não dispensa ou não deixa de comprar – independente do valor? 44. O que é caro e barato para você? 45. Há algum produto ou serviço que você prefira comprar mesmo sendo mais caro? Qual? Por quê? 46. Há algum produto ou serviço que você prefira comprar por ser mais barato? Qual? Por quê? 47. O que é brega para você? E o que é chique? 48. O que é o consumo para você? 49. O que é ser consumista? 50. Você se considera consumista? Por quê? 92 Sobre a BM 51. Desde quando faz uso dos serviços náuticos da BM (BM)? Por que a escolheu? 52. Faz uso de outros serviços da BM? Quando? Quais? Por quê? Com qual freqüência? Sendo um restaurante, quanto tempo permanece? Perguntas para usuários dos serviços náuticos 53. Com que freqüência visita a BM? O que determina esta periodicidade? O que traz a este lugar? Em média, quanto tempo permanece no local? 54. O que significa a BM para você? 55. Você se recorda da 1ª vez que esteve na BM? 56. Já vivenciou alguma experiência marcante na BM? Poderia contá-la? 57. O que você espera encontrar na BM? O que você espera nunca achar? 58. O que você mais gosta na BM? O que você menos gosta? 59. Costuma freqüentar os restaurantes? Quais? Por quê? O que determina a escolha? 60. Qual dos estabelecimentos vc mais gosta? Por quê? 61. Já conheceu pessoas na BM? Poderia contar este fato? 62. O que acha dos serviços oferecidos? Crê na necessidade de algo novo? De que tipo? 63. Costuma usar o serviço de manobrista? Quando? Por quê? 64. Alguma situação ou presença de pessoas na BM em algum momento lhe causou incômodo? (Já se sentiu incomoda(o) com a presença de outras pessoas na BM?) 65. Costuma freqüentar eventos como o Reveillon, o Bonfim Light e demais festas promovidas na BM? Por quê? 66. Como você sintetizaria a BM em uma só palavra ou expressão? Qual? 93 Anexo C – Fotos do carrinho para objetos (vazio e no Lafayette) Carrinho com bagagens dos usuários da BM. Fonte: Trabalho de campo. Carrinho de bagagem da BM. Fonte: Trabalho de campo. 94 Anexo D – Evento gastronômico do Viña Del Mar Cardápio de festival gastronômico do Viña Del Mar. Fonte: E-mail pessoal. Vista do Viña Del Mar durante o festival gastronômico. Fonte: Trabalho de campo. 95 Anexo E – Fotos do Lafayette Vista interna do Lafayette. Fonte: Trabalho de campo. Área externa do Lafayette. Fonte: Trabalho de campo. Área externa do Lafayette. Fonte: Trabalho de campo. 96 Anexo F – Fotos do Soho Área interna do Soho. Fonte: Trabalho de campo. Área interna do Soho. Trabalho do sushiman. Fonte: Trabalho de campo. Balcão do sushiman no Soho. Fonte: Trabalho de campo. 97 Anexo G – Fotos do Bonfim Light Vista aérea do Bonfim Light. Fonte: Site BM. Vista aérea do Bonfim Light. Fonte: Site BM. 98 Anexo H – Fotos do réveillon Área de entrada para a festa de Licia Fabio. Fonte: Trabalho de campo. Área interna da festa no Gengibre. Fonte: Trabalho de campo. Saída do público do Gengibre para ver fogos de artifício. Fonte: Trabalho de campo. Público do Gengibre ainda na área externa após a queima de fogos. Fonte: Trabalho de campo. 99 Anexo I – Flyers da Sins Panfleto de divulgação (flyer) para festa (jul/2009). Fonte: Acervo do realizador. Panfleto de divulgação (flyer) para festa (dez/2009). Fonte: Acervo do realizador. 100 Anexo J – Fotos do banner do Torneio Náutico Banner de divulgação do torneio náutico. Fonte: Trabalho de campo.