POR UMA NOVA PERSPECTIVA DE ANÁLISE DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS: DA DESIGUALDADE AO DIREITO À DIFERENÇA Proponente: Miguel G. Arroyo Professor Titular Emérito da Faculdade de Educação da UFMG Doutor em Educação pela Stanford University O tema Política Educacional e Formação de Professores nos defronta com uma indagação prévia: Que lógicas, que concepções de Política e de Políticas tem predominado nas análises de políticas educativas? Esse painel pretende colocar em debate a lógica que organiza as análises sobre políticas educacionais, particularmente a que se remete ao arcabouço jurídico considerando os efeitos e limites da legislação. Partindo da clássica redução da política ao Estado, o painel focaliza o âmbito da sociedade e busca trazer à tona uma análise das políticas educacionais a partir dos coletivos sociais, dos diferentes feitos desiguais. O primeiro trabalho problematiza a forma como os coletivos sociais são admitidos nas análises tradicionais das políticas educativas. Propõe a reinvenção da política a partir da politização da naturalização da diferença em desigualdade e da problematização das políticas de inclusão. O segundo trabalho propõe uma análise crítica acerca dos limites do diagnóstico proposto no documento da CONAE 2010 para subsidiar a construção de alternativas no campo da política educacional, confrontando esse diagnóstico a outras dimensões de interpretação da questão social, com ênfase na dinâmica do mercado de trabalho e nas relações étnico-raciais. O terceiro trabalho interroga o entrelaçamento das políticas de identidade e o direito à educação. Seleciona para essa reflexão a política de escola intercultural diferenciada – educação indígena – e a política de educação do campo. Problematiza sua inserção na institucionalidade das políticas educacionais e os desafios para a formação de professores e professoras. Palavras-chave: Políticas Educacionais; Estado; Desigualdades Sociais; Direito à Diferença; Movimentos Sociais. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 1 REPOLITIZAR AS ANÁLISES DO ESTADO E DAS POLÍTICAS EDUCATIVAS Miguel G. Arroyo Professor Titular Emérito da Faculdade de Educação da UFMG Doutor em Educação pela Stanford University O tema Política Educacional e Formação de Professores nos defronta com uma indagação prévia: Que lógicas, que concepções de Política e de Políticas tem predominado nas análises de políticas educativas? O primeiro eixo é o papel do Estado, seu dever na organização e regulação da educação nacional, como garantia do direito à educação de qualidade, à democratização do acesso, permanência e sucesso escolar, garantia da formação e valorização dos profissionais da educação, garantia de recursos, financiamento e controle social da educação. Não há como não reconhecer os avanços analíticos, teóricos, políticos que esse equacionamento tem produzido nas últimas décadas, politizando as análises que reduziam os problemas da educação à sala de aula e seus agentes professor-alunos. O presente texto aponta alguns dos limites das análises persistentes de políticas educativas operadas na redução da política ao Estado. Focaliza o âmbito da sociedade, indica a forma como os coletivos sociais são concebidos e admitidos nas políticas educacionais. Destaca, nos processos históricos da produção da exclusão e da marginalização, da produção dos coletivos diversos em desiguais, as lutas dos coletivos sociais, étnicos, raciais, de gênero, do campo ou das periferias. Problematiza o silenciamento desses grupos nas análises de políticas públicas. Indica as pressões para a urgência de repolitizarmos as análises do Estado, da política e das políticas educativas a partir da desnaturalização dos diferentes em desiguais. Palavras-chave: política educacional, Estado, sociedade. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 2 O tema Política Educacional e Formação de Professores nos defronta com uma indagação prévia: Que lógicas, que concepções de Política e de Políticas tem predominado nas análises de políticas educativas? Comecemos por posturas e análises que nos são familiares. Para analisar a situação da educação em qualquer área, formação de professores, currículo, avaliação, qualidade da educação... partimos do Estado, de seus deveres, sobretudo dos deveres não cumpridos, da falta de políticas públicas, da omissão dos governos no cumprimento de seus deveres. Chamar à responsabilidade do Estado Durante as últimas décadas este tem sido o esquema simplificado, mas persistente da análise da realidade de nossa educação pública, sobretudo em documentos, fóruns, publicações e até em documentos oficiais que responsabilizam o descaso dos governos anteriores pela baixa qualidade total ou social de nossa educação publica. As boas intenções dessas análises “políticas” é chamar a responsabilidade do Estado, dos governos de plantão para outras políticas, para seu dever constitucional consagrado em tantos documentos legais para dar a devida e exigida prioridade política da garantia da educação pública de qualidade e da exigida formação pedagógica e docente. Essas análises tem o mérito histórico de ter inspirado e alimentado compromissos sérios nas lutas por escola pública, por educação de qualidade, por recursos, salários, condições de trabalho, enfim por políticas públicas que traduzam a responsabilidade social e o dever político do Estado com a educação. Tem o mérito de ter inspirado a concretização dessas políticas públicas em leis, normas, dispositivos legais que obriguem o Estado a cumprir seus deveres. Tem inspirado de maneira particular a lógica em que se estruturam os Planos Nacionais e as Conferências Nacionais de Educação e suas propostas de Sistema Nacional Articulado de Educação e o Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação. A produção científica e as entidades científicas no campo da política educacional têm nessas lutas e nesse equacionamento das Políticas e do Estado uma das bases teóricopolíticas de sua atuação, de suas ações e até de suas crises. Seus encontros, congressos, reuniões, programas, publicações, se alimentam e reproduzem essas lógicas, essas ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 3 análises e concepções da educação, suas propostas, tendo como foco o dever do Estado nunca cumprido, de novo denunciado e exigido para que com outras responsabilidades do Estado, outras políticas e outros compromissos de cooperação entre os entes federados tenhamos, até que enfim, outra educação, outros currículos, outra formação, outro padrão de qualidade, outra formação e valorização do magistério, outro financiamento e por via das conseqüências lógicas, lineares, teremos outra educação pública. Com outra responsabilidade do Estado acabaremos com as desigualdades. Como ainda não temos, como ainda as desigualdades sociais e educacionais persistem, como essa herança maldita ainda não foi superada, continuemos apelando ao dever do Estado. Os persistentes dados de analfabetismo, os milhões sem escola, defasados, reprovados, os resultados de desempenho das provinhas e provões mostram nossas frágeis políticas sociais e educativas. Mostram o não cumprimento do sagrado dever do Estado. Um exemplo forte da materialização dessa lógica persistente de análise de políticas está no documento da CONAE. Como está em tantas ementas de programas, cursos, concursos de gestão da educação, de políticas públicas, de avaliação e até de políticas curriculares e de formação, acesso e permanência. O primeiro eixo, ponto obrigatório, é o papel do Estado, seu dever na organização e regulação da educação nacional, como garantia do direito à educação de qualidade, à democratização do acesso, permanência e sucesso escolar, garantia da formação e valorização dos profissionais da educação, garantia de recursos, financiamento e controle social da educação. Se tudo isso acontecer teremos garantido o direito universal à educação para todos, ao menos um padrão mínimo de qualidade – cesta básica mínima para a educação e para as aprendizagens escolares mínimas dos coletivos diversos, feitos tão desiguais. Teremos garantida sua inclusão social, política, sua incorporação cultural. Teremos feito justiça com os injustiçados de nossa perversa e injusta história. E teremos uma sociedade feliz, por obra e graça de um Estado que enfim tem juízo e cumpre seu dever. O Estado revertendo nossa história de desigualdade em justiças? Não há como não reconhecer os avanços analíticos, teóricos, políticos que esse equacionamento do campo da análise de políticas tem produzido nas últimas décadas. Deslocamos as análises ingênuas despolitizadas que reduziam os problemas da educação à sala de aula e seus agentes professor-alunos, didáticas, técnicas de bem aprender porque de bem ensinar. Superamos uma visão neutra da produção teórica dos ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 4 cursos e programas de capacitação de professores no domínio do que e do como ensinar. Politizamos a produção teórica, os currículos, as avaliações, a formação e o trabalho docente. Politizamos o papel da pesquisa, dos produtores de análises, de teoria e de propostas de intervenção e de suas agências. Politizamos o próprio campo da formação, implementação, gestão, avaliação de políticas públicas. Politizamos a ação do Estado, dos governos e de seus corpos gerenciais no campo da educação. Fruto desses tensos processos de politização o campo da educação deixou, ao menos tem mais dificuldade, de ser tratado como um território neutro ou ocupado pela baixa politicagem, do reparto de favores. Afirmar a educação como dever do Estado é uma das mais ricas heranças das lutas pela educação pública das últimas décadas. A repolitização conservadora vem reagindo a esses avanços, sobretudo desobrigando o Estado, voltando a colocar os problemas na sala de aula e nos seus agentes, mestresalunos. Eles passam de novo a ser os vilões responsáveis pelos resultados nas provinhas e provões. A garantir resultados médios, se reduz o dever dos governos. Um reducionismo despolitizador na contramão de tantos avanços das últimas décadas. Mas também uma fácil repolitização ou despolitização conservadora que aponta os limites de nossa politização e de nossas análises. Apontemos alguns dos limites de nossas análises de políticas educativas. A redução da política ao Estado Nessa redução da política ao Estado esquecemos da sociedade. Nosso foco em conquistar e obrigar o Estado esqueceu que a sociedade também é campo de lutas, de estratégias, de conquista. Que os sujeitos e agentes políticos não estão apenas no Estado, nos governos, nas agências formuladoras de políticas e reguladoras do sistema escolar. A diversidade de agentes sociais não são passivos, pacientes e agradecidos destinatários de nossas lutas como agências científicas e como intelectuais, gestores e formuladores de políticas públicas para deixar de ser desiguais, marginalizados ou excluídos. Por mais cruel que tenham sido os processos históricos da produção da exclusão e da marginalização, da produção dos coletivos diversos em desiguais, eles estiveram presentes como coletivos sociais, étnicos, raciais, de gênero, do campo ou das periferias em nossa história. Tem sido sujeitos não apenas de sua história, mas da história social, econômica, política, cultural, educativa em nossas sociedades. Não ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 5 foram passivos à espera paciente de ser convidados a fazer parte de nossa história se educados. Este dado histórico não foi destacado, foi silenciado em nossas análises de políticas públicas. Na medida em que esses coletivos se fazem mais presentes, se revelam como sujeitos sociais, políticos, continuar ignorando-os em nossas análises de políticas mostra a fragilidade e até a despolitização intencionada ou ingênua de nossas análises repetitivas no campo das políticas educativas. Reconheçamos que insistir em ver o Estado como o único ator social e político e ver as agências científicas, seus intelectuais e analistas, suas lutas como os únicos atores políticos e ver os coletivos diversos desiguais como pobres, de pires na mão esperando por políticas de Estado, de governos e pelas lutas e pressões nossas em congressos, conferências, Planos Nacionais, é revelador da ignorância dos complexos processos políticos que se travam em nossas sociedades. É revelador da ignorância e do não reconhecimento da centralidade desses coletivos na arena política, na diversidade de fronteiras, nos campos e cidades, nas lutas pela terra, teto, território, saúde, orientação sexual, educação... É ignorar o papel político do movimento docente na repolitização do seu direito à formação, como é ignorar o papel da diversidade de movimentos sociais que lutam por políticas específicas e afirmativas de formação. Ignorar esta complexidade dos espaços e dos sujeitos políticos, das fronteiras e campos de luta política tem levado as análises de políticas públicas, educativas a um lamentável e empobrecedor reducionismo da própria concepção da política e das políticas. Inclusive tem levado a uma ingênua concepção de Estado. Quando se desperdiçam a pluralidade de experiências de lutas políticas e a diversidade de atores políticos, a redução do Estado à condição de único agente político empobrece a própria visão e papel do Estado e de suas políticas. Desse reducionismo tem sido vítimas as análises e propostas de políticas públicas educativas nas agências, CTs, fóruns, conferências e planos de educação. Em outros termos, ter ignorado, secundarizado essa pluralidade de sujeitos sociais e políticos e suas lutas e ações coletivas em nossas sociedades, tem representado uma gravíssima lacuna nas análises de políticas. Tê-los reduzido a meros destinatários dessas políticas, do dever do Estado tem empobrecido a visão dos coletivos, do Estado, das suas políticas e das nossas análises. Teria sido um esquecimento depois de noites de vigília pela escola pública de qualidade, para eles tão injustiçados? A simples análise de ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 6 documentos tão bem elaborados como a CONAE ou de programas de cursos de políticas ou de congressos e seminários revelam que não operam na lógica do esquecimento. O 1o. eixo nos traz o que é considerado como o ponto de partida, o Estado, seu dever na garantia do direito à educação. Nos seguintes eixos se priorizam as políticas de gestão, qualidade, acesso, permanência, formação e valorização do magistério, financiamento e no último eixo, no final, nos lembramos dos desiguais, dos diversos, dos injustiçados. Mas não como sujeitos de direitos e sim como os destinatários dos produtos desejados, das políticas e dos deveres do agente político único, o Estado e suas políticas. Por que essa lógica é tão persistente e tão cara às análises e aos analistas de políticas, a categoria mais prestigiada nas agências, ANPEd e outras, nos departamentos e nos órgãos gestores? Porque essa foi e continua tentando ser a análise da política tradicional, ingênua, já superada nas ciências políticas, mas persistente na análise de políticas educativas. A ciência política esteve e está mais aberta à complexidade de forças, atores, políticos na diversidade de campos e fronteiras. Esses avanços da ciência política não conseguiram questionar as visões ingênuas, despolitizadas com que continuamos fazendo análises de políticas educativas e com que formamos visões despolitizadas, parciais nos profissionais da escola, dos currículos, da avaliação, da formação docente etc. Com visões tão parciais da dinâmica política fica difícil avançarmos para análises politizadas de políticas educativas. Por onde avançar para a repolitização do campo da educação e especificamente da análise, formulação, gestão, avaliação de políticas educativas? Focalizo apenas dois campos: entender os processos atuais de reinvenção da política e politizar as concepções de Estado e de suas políticas. A idéia que poderia orientar-nos é que as concepções de Estado, de política e de políticas são inseparáveis do como pensamos os coletivos populares. Estes não podem ser vistos como destinatários agradecidos ou cooptados, mas como o referente histórico configurante do Estado que temos e pessoas políticas. A reinvenção da política A visão tradicional da política se expressa no método de análise das carências e desigualdades educativas. Se repetem dados quantificáveis para concluir pelo baixo padrão de qualidade de nossa educação. Uma postura positivista que se estende ao ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 7 número de leis, normas, índices, médias de sucesso-fracasso. Padrão de qualidade medido por resultados em domínios de competências mensuráveis. Dessa visão positivista à despolitização há um passo. Outro traço persistente é uma visão naturalizante das desigualdades sociais, educacionais. São vistas como um fardo do passado que pesa sobre o presente. Uma visão que incorpora a despolitizada separação entre passado e presente, entre história e atualidade. Dessa visão se passa a defesas de que ao Estado responsável cabe carregar esse fardo, essa herança maldita do passado, corrigir desigualdades. A essa correção se reduz o dever do Estado a ser cumprido com leis e políticas corretivas, distributivas, compensatórias de redução das desigualdades herdada do passado. Como ainda é presente essa visão nas análises e na formulação de políticas. Essas desigualdades são vistas até como conseqüências das desiguais condições de existência de que são responsáveis os próprios coletivos desiguais por não se submeterem a percursos exitosos, bem sucedidos no padrão de qualidade da educação. É significativo perceber como os Outros, os coletivos feitos desiguais, pensados como excluídos, como auto-responsáveis de sua condição, como um fardo do passado, não estão no final de nossas análises como meros destinatários das nossas lutas políticas e das ações do Estado; eles estão como referente constante para a compreensão que temos do Estado, da política e das políticas. Aquele e estas são pensados nas formas de pensar esses coletivos, de pensar sua condição de fardo, de desiguais, de excluídos. O Estado, seus deveres, a política e as políticas são pensados na medida estreita des-politizada em que são pensados os Outros, os diversos como desiguais, como herança a serem incluídos, igualizados e compensados pelo Estado e suas políticas. A visão simplificada dos Outros, dos processos de produção de suas desigualdades termina estando na origem inspiradora das visões simplificadas de Estado, de seus deveres, da política e das políticas, das leis e do corpo normativo. Como sair e ir além dessas visões simplificadas e simplificadoras? Radicalizando os processos históricos em que foi produzido o pensar e conformar os coletivos diferentes como desiguais. Reconhecer que por aí passa em nossa história o núcleo da política. Logo, não vê-los como um fardo a ser superado com políticas generosas do Estado, mas ver esses processos como uma produção histórica, atrelada à relação política do padrão de dominação-segregação conformante de nosso passado e do nosso presente. Reconhecer o aprofundamento atual das desigualdades em quantidade e “qualidade”. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 8 Hoje, ser pobre, segregado, como coletivo racial, étnico, sexual, do campo ou das periferias é qualitativamente mais brutal do que no passado. Essas configurações das desigualdades são na contemporaneidade mais insidiosas, mais perversas e colocam a produção dos diversos em desiguais em um outro patamar político onde resulta ingênuo reduzir o dever do Estado e de suas políticas educativas a remediar e corrigir heranças do passado. Se a produção dos coletivos diversos em desiguais, segregados, inferiorizados é hoje mais refinada e mais perversa, sua existência em nossas sociedades tem um significado político totalmente diferente do que pode ter tido no passado. Os processos políticos de sua produção-reprodução são hoje politicamente mais refinados e por isso mais perversos do que no passado. Mais ainda, a exposição das desigualdades está hoje mais exposta, mais difícil de ocultá-la sob paliativos de projetos sócio-educativos, assistenciais do que foi até agora. Consequentemente o alcance dos projetos, das políticas públicas, especificamente educativas perde força política. O papel do Estado teimando em limitar seu dever a esse tipo de políticas perde relevância e nossas pressões para que o Estado conforme políticas inclusivas, distributivas para minorar as desigualdades resultam desfocadas, sem a ressonância políticas que poderiam ter em passados recentes. Outro aspecto torna as desigualdades no presente com novas e insidiosas conotações políticas: a desigualdade dos coletivos sociais, étnicos, raciais, de gênero, campo ou periferias passou a ser um dos mecanismos políticos mais perversos de seu controle, sua regulação e manutenção no lugar em que a ordem social, os padrões de poder, de trabalho, de maneira particular, de exploração da terra e do espaço urbano, os jogou porque diferentes, inferiores, segregados, sobreviventes. Esses processos de conformação, alocação, desterritorialização dos Outros vem do passado, conformaram a relação de poder colonial e continuam mais refinados no padrão de poder republicano, democrático. Processos conformadores do padrão do Estado, de política e de formulação, implementação, conformantes do alcance e dos limites das políticas sócioeducativas. Aí e não nas boas intenções de gestores, formuladores, implementadores de políticas e menos de analistas, radicam os limites, as contradições entre os princípios afirmativos de direitos e dos deveres abstratos e os reais, concretos processos de regulação, controle das desigualdades, da incorporação lenta dos coletivos desiguais, segregados via ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 9 universalização do acesso à escola. O próprio processo capitalista, legitimado politicamente pelo Estado e suas políticas, aprofunda as desigualdades, deixando sem efeito as nossas políticas públicas, sócio-educativas, corretivas, inclusivas, compensatórias dos efeitos das desigualdades aprofundadas. Os processos políticos são mais refinados, mais contraditórios no próprio campo do Estado e de suas políticas porque se tornaram mais tensos e contraditórios no próprio campo da produçãosalvação-segregação-inclusão dos Outros, dos diversos, dos desiguais que as políticas educativas sentem-se responsáveis por salvar pela escolarização de qualidade. Diante dessa nova requalificação da política não há lugar para políticas ingênuas, de boavontade, inclusivas, salvadoras ou compensatórias tão caras aos debates sobre formulação de políticas sócio-educativas e de formulação de documentos da CONAE ou do PNE. A exigência se impõe: em vez de gastar tantas energias analíticas sobre leis, normas, políticas, projetos para ponderar até onde o dever do Estado e dos governos garantem ou se aproximam de padrões mínimos de qualidade, de custo-aluno ou sobre se o valor dos mestres sobe ou desce na bolsa de valorização do magistério pelos governos e suas leis, seria urgente dedicar maiores energias para pesquisar, entender como, em que processos e qual o papel do Estado e de suas políticas na produção refinada, de nova qualidade perversa dos coletivos diferentes em desiguais. Sem um conhecimento mais aprofundado desses perversos processos políticos não avançaremos para uma análise repolitizada do Estado, da política e das políticas sócioeducativas. Esses processos se justificam em segregações, polarizações, hierarquizações dos coletivos humanos por critérios sociais, de gênero, étnico, sobretudo raciais, que tem sido esquecidos, ocultados na maioria das análises de políticas educativas. Com esses bloqueios racistas será difícil sequer chegarmos a análises mais aprofundadas e politizadas das desigualdades, do dever do Estado, da política e das políticas que tanto defendemos. Como incorporar essa reinvenção da política? Como ter uma visão mais política de produção dos diferentes em desiguais? Politizar a produção dos diferentes em desiguais Realmente o problema não é de esquecimento dos coletivos diversos feitos desiguais, eles aparecem, são lembrados com a centralidade de destinatários das políticas públicas. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 10 Poderíamos levantar a hipótese de que essa presença dos desiguais não está apenas no final, como destinatários de nossas análises compromissadas, eles estão no início, ou a visão com que são pensados está na base das visões que temos de Estado, da política, das políticas, da gestão da educação e de nossa própria função social e educativa. A teoria educativa e curricular, assim como o perfil de educador que formamos, o ordenamento do sistema escolar foram pensados e conformados nas formas de pensar e de conformar em nossa história os coletivos diferentes, em classe, etnia, raça, gênero, campo, periferia. As formas como os temos pensado vem conformando as formas como nos pensamos e como conformamos o Estado, as políticas educativas e suas análises. O aparente esquecimento deles, ou jogá-los ao final como beneficiados é apenas uma das formas de segregá-los, de não reconhecer sua centralidade em nossa história, inclusive na história do pensamento político-educacional. A despolitização ingênua das análises do Estado, da política e das políticas tem como uma das causas a visão despolitizada da presença dos Outros, dos coletivos sociais diversos feitos tão desiguais, inferiorizados, segregados. Ao despolitizar os processos históricos, de pensá-los e conformá-los, inclusive pela educação, despolitizamos a política e as políticas. Despolitizamos a própria ação e as formas de pensar-se das agências científicas. A reinvenção da política nos processos de produção das desigualdades está sendo radicalizada pelas ações desses coletivos em diversas formas de organização e de movimentos, reagindo às formas de pensá-los, de alocá-los nas margens. Reagindo a tantas tentativas de ignorá-los, salvá-los através de projetos e políticas salvadoras especificamente sócio-educativas. Dos próprios destinatários de quem se esperavam aceitação, esforços e agradecimentos vem as reações ao acesso e permanência nas escolas, aos currículos, às condições de trabalho, às didáticas, ao projeto padrão de qualidade mínima que tanto lutamos por conquistar e roubar do Estado e de suas políticas públicas. Esses coletivos não se reconhecem pensados e conformados como destinatários agradecidos de políticas e deveres de Estado, reagem e se afirmam sujeitos de ações coletivas políticas. Se reinventam inclusive sujeitos de formulação-pressão de políticas agrária, urbana, educativa, de saúde, transporte, igualdade e justiça. Reinventam a política, o Estado e sua função. Suas políticas. Nos obrigam a repensar nossas análises, ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 11 avaliações, de políticas, de qualidade e de justiça social. Nos obrigam a repensar os critérios de gestão, regulação das desigualdades e das diferenças. Inclusive, a reinventar a concepção de direitos humanos, da relação entre educação para a cidadania. Nos obrigam a desconstruir as lógicas e os princípios universalistas tão caros e familiares em que equacionamos e defendemos as políticas sócio-educativas incorporadoras de inclusão subordinada e de cidadania condicionada ao acesso, à permanência e ao êxitosucesso escolar. Sem dúvida que é mais cômodo ignorar todo esse novo caldeirão político que vem dos próprios diferentes e desiguais destinatários de nossas políticas e continuarmos entretidos com novas normas, diretrizes, projetos e políticas assimilacionistas, inclusivas, distributivas. Até quando? A crise do Estado e das políticas Lembrávamos que a imagem do Estado, de seus deveres e de suas políticas sócioeducativas foi conformada na imagem com que foram pensados os diferentes e nos processos em que foram feitos desiguais. O pensamento educativo, as teorias e análises do Estado, das políticas tão caras ao pensamento educacional e especificamente as análises de políticas terão de ser desconstruidas na medida em que os Outros não se vem, nem se aceitam nessa imagem, nesses lugares sociais, humanos, políticos, em que foram pensados e alocados. A imagem de Estado previdente, de políticas de incorporação, de inclusão, de assimilação, para tirá-los da ignorância, da incultura e irracionalidade não se sustentam. Perdem sentido na medida em que os Outros não se aceitam excluídos, ignorantes, incultos, irracionais. Esse Estado previdente, compensador de deficiências perde sentido na medida em que os coletivos diferentes não se reconhecem deficientes. Por outro lado, essas políticas inclusivas mostraram sua incapacidade de se contrapor aos mecanismos de exclusão estrutural que vem do padrão de trabalho e de poder e de produção. As políticas sócio-educativas se empenham em processos de inclusão, acesso, permanência, sucesso, enquanto o padrão de trabalho escasso, segmentado, segregador opera por processos brutais estruturais de desemprego, sub-emprego, trabalho informal, sobrevivência, fome, pobreza extrema. Ou o padrão de poder opera por políticas de concentração da terra, de destruição da agricultura familiar, depreciação da moradia ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 12 popular, da reprodução indigna da vida cotidiana. Por aí passam os processos de conformação dos desiguais, processos brutais políticos ignorados nas análises. Um dos pontos que impressionam nas análises de políticas é a visão ingênua do Estado. Uma visão feita e cultuada de um Estado na medida exata da visão pedagogistica salvadora que se tem das suas políticas e deveres para salvar, educar, incorporar os diferentes feitos tão desiguais. Nessa visão ingênua, salvadora e neutra do Estado não cabem essas transformações que perpassam seu novo papel e sua nova configuração nos processos atuais sofisticados de regulação do trabalho, da terra, da propriedade, dos direitos e das desigualdades. No controle dos desiguais e na repressão a suas ações e movimentos aparece outro Estado nada imparcial nem incorporador, mas repressor dos coletivos desiguais que se afirmam existentes, sujeitos políticos e de políticas. Que virtualidades encontrar nas políticas sócio-educativas, nas leis, normas, projetos para se contrapor a essa outra imagem de Estado tão distante da imagem neutra, incorporadora, inclusiva que estão tão presentes nas análises de políticas educativas? Dos coletivos diferentes, dos desiguais, vem indagações desestabilizadoras das lógicas que vem predominando nas análises do Estado, das políticas e das políticas educativas, porque dos próprios coletivos produzidos e reproduzidos como desiguais, inferiores, segregados vem contestações políticas radicais às visões com que continuam pensados. Desses coletivos vem as pressões para a urgência de repolitizarmos nossas análises do Estado, da política e das políticas educativas. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 13 DESIGUALDADES SOCIAIS E A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO JOSÉ EUSTÁQUIO DE BRITO Professor Adjunto Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais Resumo Tomando-se por ponto de partida a formulação apresentada no documento referência da Conferência Nacional de Educação 2010 sobre a relação entre a política educacional e o quadro de desigualdades presente no país, o artigo propõe uma análise crítica acerca dos limites do diagnóstico proposto no documento para subsidiar a construção de alternativas no campo da política educacional, confrontando esse diagnóstico a referências que incorporam outras dimensões de interpretação da questão social, com ênfase na dinâmica do mercado de trabalho. Fundamenta-se nas reflexões que têm sido conduzidas por pesquisadores e graduandos do curso de Pedagogia no interior do Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Educação das Relações Étnico-Raciais, da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) no sentido de traduzir para o campo da formação de professores, questões que se integram ao cotidiano da escola pública brasileira. Em seguida, discute-se as várias formas de manifestação da questão social em nosso país, com ênfase na dinâmica do mercado de trabalho no contexto da flexibilização das relações de trabalho, das formas contratuais e de remuneração, acentuando a radicalização do quadro historicamente precário de inserção a que se encontra submetida a população negra a partir da reestruturação capitalista do final do século. Em seguida, valendo-se parcialmente do modelo de constituição de “capital social gerado pelo Estado”, proposto por Martin Carnoy, apresenta-se uma reflexão de modo a complementar os componentes desse modelo com a reflexão acerca da necessidade de reconhecimento da legitimidade dos movimentos sociais como sujeitos políticos, apontando alguns desafios para a consolidação de uma política educacional comprometida com o enfrentamento do quadro de desigualdades refletido. Palavras Chave: Desigualdade Social; Relações Étnico-Raciais; Política Educacional ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 14 Introdução “A política, por definição, é sempre ampla; supõe uma visão de conjunto. Quem não tem visão de conjunto, não chega a ser político. A política apenas se realiza quando existe a consideração de todos e de tudo”. (Milton Santos) Encontra-se em processo de constituição na Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), o Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Educação das Relações Étnico-Raciais. No contexto de reflexão acerca do alcance da política de ação afirmativa desenvolvida por essa instituição, visando ao ingresso da população negra nos diversos cursos mantidos pela universidade, trata-se de uma iniciativa que visa a articular um conjunto de reflexões desenvolvidas por diversos professores da instituição em seus trabalhos de pesquisa, bem como por estudantes em processo de escrita de trabalhos de conclusão de curso, no sentido de aportar, para a formação de professores, questões relativas à particularidade da formação histórico-social brasileira que resultaram na conformação de um quadro de desigualdades persistente em nossa sociedade e que por vezes são reforçados pela dinâmica de funcionamento do sistema escolar. A aprovação da lei 10.639/03, que introduziu nos currículos da educação básica o tema da História da África e da Cultura Afro-Brasileira, vem legitimando uma série de iniciativas, de norte a sul do país, cujo interesse de proporcionar uma compreensão mais exigente do sentido histórico da formação social brasileira vem contribuindo para a valorização de identidades historicamente negadas, bem como para o desvendamento de mecanismos presentes em nossa sociedade que corroboram para a perpetuação do quadro de desigualdades instalado em nosso país. Esse texto sintetiza, em linhas gerais, as opções que têm sido assumidas pelos integrantes do Núcleo em formação no sentido de constituir conhecimentos sobre os desafios postos pela situação de desigualdade, que se manifesta também na escola pública brasileira, de modo a articular a dinâmica do mundo do trabalho – sobretudo considerando os reflexos da reestruturação capitalista em curso – com a formação histórica brasileira, marcada pela inclusão precária da população negra na sociedade. Num primeiro momento, ressalta-se a importância do reconhecimento do quadro de desigualdades sociais como um desafio a ser enfrentado pela política educacional, ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 15 apontando os limites da análise proposta no documento referência da Conferência Nacional de Educação de 2010, de modo a propor um alargamento da situação refletida no referido documento. Em seguida, faz-se uma abordagem sintética sobre a dinâmica do mundo do trabalho no contexto pós-reestruturação capitalista, de modo a apontar as repercussões que tal situação apresenta para a perpetuação das desigualdades historicamente instaladas em nosso país. Conclui-se o texto apontando alguns desafios para o campo da política educacional, de modo a apontar os limites do paradigma da avaliação e discutir os desafios do financiamento da política no contexto da reestruturação capitalista. Política Educacional e Desigualdade Social Não obstante a identificação de vertentes teórico-conceituais distintas entre os autores que discutem aspectos da política educacional percebe-se que, quando se trata de analisar os desafios históricos apresentados para a organização e funcionamento do sistema educacional brasileiro, encontra-se presente a constatação das várias formas de manifestação da questão social no Brasil, traduzidas pelos indicadores da desigualdade como, por exemplo: raça, gênero, renda, analfabetismo, evasão escolar, desenvolvimento humano, homicídios entre adolescentes, população carcerária etc. É evidente que essa situação compõe um quadro cuja compreensão em seus aspectos determinantes apresenta-se como condição sine qua non para se projetar a configuração de um Sistema Nacional Articulado de Educação, desafio a que se propõem as conferências que, nas distintas regiões do país, mobilizam a comunidade escolar, trabalhadores da educação, acadêmicos, políticos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil, de norte a sul do país, na formulação do Plano Nacional de Educação que orientará as ações no campo da política educacional na próxima década. Por sua vez, o momento atual apresenta-se como uma oportunidade a mais para refletir sobre os desafios postos para a política educacional brasileira por assinalar a passagem do 122º aniversário do ato de abolição formal da escravidão em nosso país e por sabermos que ocasiões como essas impulsionam à auto-reflexão acerca do sentido da formação da sociedade brasileira, sua identidade sócio-cultural, de modo que esse esforço deva contribuir para a formulação de projetos e ações necessários à construção ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 16 de uma sociedade democrática, justa na repartição do poder e de suas riquezas, e que reconheça a sua diversidade étnico-cultural. Entretanto, como nos ensina o geógrafo Milton Santos, é preciso construir uma visão ampla, de conjunto, sobre essa dinâmica histórica de modo que a ação política seja capaz de enfrentar, em suas raízes, o quadro de desigualdades manifestado na dinâmica da sociedade brasileira e que se perpetua no sistema educacional. Esse me parece ser um ponto de partida indispensável para a problematização do compromisso histórico da política educacional com a construção de uma sociedade justa e democrática, capaz de oferecer a sua contribuição para a realização desse trabalho histórico de superação das desigualdades manifestadas a partir da dinâmica da sociedade brasileira. Para fundamentar essa premissa tomemos, a título de exemplo, a interpretação do quadro de desigualdades proposta pelo documento referência da Conferência Nacional de Educação (CONAE) para discutir seus alcance e limite: Historicamente, o Brasil tem se caracterizado como um país com frágeis políticas sociais, o que lhe imprimiu dois traços marcantes: uma das maiores desigualdades sociais em convívio com uma das mais altas concentrações de renda do mundo. Com 50% de sua população de 170 milhões de pessoas em situação de pobreza, é fácil constatar sua condição de país injusto por excelência. Além disso, relatório do IBGE (PNAD, 2003) indica que, dos trabalhadores brasileiros com mais de 10 anos, 65,2% recebem até 2 salários mínimos. Essas características, reflexo da ausência de políticas sociais mais efetivas, assumem formas cada vez mais perversas de exclusão social (BRASIL, 2009, p. 9). Não obstante a intenção do documento de propor uma análise crítica acerca da situação da desigualdade nota-se que o reconhecimento da fragilidade histórica na montagem do sistema de proteção social em nosso país explica, parcialmente, o quadro de desigualdade. Uma análise mais abrangente incorporaria, como determinantes estruturais da desigualdade, dimensões não refletidas pelo documento como, por exemplo, a forma como historicamente se organiza a estrutura fundiária brasileira, a composição heterogênea do mercado de trabalho e o encaminhamento político dado à questão racial pós abolição formal do trabalho escravo. Sem a pretensão de oferecer uma leitura exaustiva em torno dessas questões estruturais da desigualdade, a intenção do texto se limita a pontuar a insuficiência do ponto de ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 17 partida apresentado no documento referência da CONAE visando a oferecer outras possibilidades para a análise da questão que repercutem na arquitetura da política educacional. Tomando-se, a título de exemplo, a conformação do mercado de trabalho nacional a partir do momento em que assistimos à emergência da transição demográfica, no contexto de implantação da industrialização brasileira, ocorrida na segunda metade do século passado, nota-se que a estrutura fundiária, baseada no latifúndio e a organização seletiva do acesso a direitos sociais – “a cidadania regulada” – ratificada pelo regime corporativo de organização sindical, impulsionaram a conformação de um mercado de trabalho urbano com grande oferta de mão-de-obra para uma economia industrial com poucas possibilidades de inserção para o conjunto dos trabalhadores que migravam (ou eram expulsos) do campo. O projeto de desenvolvimento voltado para a substituição de importação não fora capaz de proporcionar a inclusão produtiva para grande parte dos trabalhadores, que em grande proporção não tinham acesso à educação básica, sobretudo a população negra. Esse quadro contribuiu para a configuração de uma economia integrada e de baixos salários que, atualmente, devido às restrições impostas pela reestruturação capitalista em curso, alimentada pelas inúmeras possibilidades abertas pela III revolução industrial, tendem a acentuar ainda mais a fragmentação do mercado de trabalho e perpetuar a situação de desigualdade apontada pelos autores no documento aqui referido. Reestruturação Capitalista e Desigualdades no Mundo do Trabalho Como nos ensina David Harvey (1992), a estrutura segmentada do mercado de trabalho concebe a presença de um núcleo central e estratégico para a acumulação capitalista, formado por trabalhadores altamente qualificados, com acesso a direitos, estabilidade no emprego e altos salários, que convive com setores periféricos compostos por trabalhadores parciais, terceirizados, subcontratados, caracterizados pela insegurança no emprego, pela possibilidade de mobilidade territorial, baixos salários e com escassas possibilidades de acesso à qualificação profissional e à educação básica, que sobrevivem como podem nos espaços periféricos de inserção precária no mercado de trabalho: ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 18 O centro – grupo que diminui cada vez mais (...) – se compõe de empregados em tempo integral, condição permanente e posição essencial para o futuro de longo prazo da organização. Gozando de maior segurança no emprego, boas perspectivas de promoção e de reciclagem, e de uma pensão, um seguro e outras vantagens indiretas relativamente generosas, esse grupo deve atender à expectativa de ser adaptável, flexível e, se necessário, geograficamente móvel. (...) A periferia abrange dois subgrupos bem distintos. O primeiro consiste em empregados em tempo integral com habilidades facilmente disponíveis no mercado de trabalho, como pessoal do setor financeiro, secretárias, pessoal das áreas de trabalho rotineiro e de trabalho manual menos especializado. Com menos acesso a oportunidades de carreira, esse grupo tende a se caracterizar por uma alta taxa de rotatividade, o que torna as reduções da força de trabalho relativamente fáceis por desgaste natural. O segundo grupo periférico oferece uma flexibilidade numérica ainda maior e inclui empregados em tempo parcial, empregados casuais, pessoal com contrato por tempo determinado, temporários, subcontratação e treinandos com subsídio público, tendo ainda menos segurança de emprego do que o primeiro grupo periférico. Todas as evidências apontam para um crescimento bastante significativo desta categoria de empregados nos últimos anos. (HARVEY, 1992: 143 - 144). Dada que a forma de inserção ocupacional é profundamente marcada pela situação econômico-social vivenciada pelas famílias, infere-se, por exemplo, que jovens provenientes de famílias com acesso restrito à renda, tendem a se inserir e permanecer vinculados aos espaços periféricos ou não organizados do mercado de trabalho, dispondo de poucas oportunidades para acessar os segmentos mais organizados e estáveis desse mercado. Os dados apurados pelos mais diversos institutos de pesquisa indicam que a participação na renda nacional das famílias negras as vinculam a esses setores periféricos do mercado de trabalho que, no contexto da reestruturação capitalista em curso tende a perpetuar a condição de inclusão marginal na sociedade. A análise das clivagens historicamente sedimentadas entre nós e aprofundadas pela lógica perversa da reestruturação capitalista tende a colocar em evidência, num novo plano, as desigualdades entre cidade e campo, negros e brancos, incluídos e marginalizados do mercado formal de trabalho. Essas clivagens são sustentadas por uma lógica de exercício do poder historicamente comprometida com a perpetuação do quadro de desigualdades e começam a aparecer com mais vigor nas formulações de autores vinculados à política educacional, de modo a propor o enfrentamento dos problemas estruturais com a devida radicalidade. Assim, por exemplo, uma premissa ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 19 básica para a configuração do regime de colaboração entre os entes federados deveria ser a consciência acerca do sentido de sua orientação estratégica. Essa consciência se faria presente à medida que o conjunto de ações possa envidar esforços visando ao enfrentamento das desigualdades em sintonia com outras políticas sociais. Em recente trabalho publicado no Brasil, o pesquisador norte-americano, Martin Carnoy, analisando o bom desempenho do sistema educacional cubano com base nos resultados de avaliações internacionais, aponta que esse pode ser um caminho a ser percorrido por Brasil e Chile. O modelo de análise proposto pelo autor, fundado numa concepção ampliada de “capital social”, incorpora nessa dimensão o papel ativo das políticas públicas: O modelo leva um passo adiante a influência possível do capital social. Incluímos na noção de capital social o que designamos capital social gerado pelo Estado, ou seja, as políticas governamentais nacionais que afetam o ambiente social mais amplo das crianças. Existem, portanto, efeitos da “vizinhança” ou do capital social nacional, incluindo intervenções que podem aumentar as expectativas educacionais para todas as crianças, principalmente as desfavorecidas em termos de educação. Assim, os governos podem gerar, em escala regional ou nacional, um ambiente educacional coeso e estimulante, criando benefícios de aprendizagem para todos os alunos (CARNOY, 2009, p. 36). Deve-se observar, na formulação do modelo de análise proposto pelo autor, a importância conferida à ação governamental no sentido de, com suas ações, contribuir para aumentar as possibilidades de inserção da população a condições de vida mais dignas. Entretanto, quando se trata de refletir sobre o desenho de alternativas, é preciso considerar o papel ativo e legítimo desempenhado pelos mais diversos movimentos sociais, a partir de seus mecanismos de mobilização e pressão sobre o poder público e a sociedade, de forma geral, de modo a reconhecer a legitimidade de suas ações no sentido de re-orientar as prioridades políticas e orçamentárias do poder público. Ou seja, não se pode pensar os efeitos redistributivos do “capital social gerado pelo Estado” sem considerar que esse “capital” se constrói a partir do reconhecimento e do respeito às reivindicações dos movimentos sociais enquanto sujeitos políticos. Desafios para a Política Educacional ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 20 Em alguns autores do campo da política educacional, como Saviani, por exemplo, a orientação de refletir essa dimensão da ação governamental à luz de um projeto de desenvolvimento é explicitada na análise feita da trajetória da política de formação de professores. O estabelecimento de competências específicas e complementares entre os entes federados na condução da política educacional, como o ratifica a Constituição e a LDBEN e outros instrumentos normativos é, sem dúvida, um passo importante no sentido da organização de um sistema nacionalmente articulado. Todavia, ao analisarmos os mecanismos de regulação estatal em curso no encaminhamento da política educacional, deve-se questionar acerca das possibilidades concretas de conferir a essas ações o sentido estratégico necessário ao enfrentamento da situação de desigualdade. Reconhecer, como o faz a atual Secretária de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC) que os sistemas de ensino têm ampla liberdade de organização (...), mas a União tem de se incumbir de prestar assistência técnica e financeira aos outros entes federados e assegurar processos nacionalmente de avaliação do rendimento escolar nos ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, definindo prioridades e a melhoria da qualidade de ensino (ALMEIDA E SILVA, 2007, p. 88), significa apontar para a centralidade dos controles acionados pela gestão no sentido de colocar em prática, com mais evidência, o paradigma do Estado Avaliador (PERONI, 2003). Essa tendência, impulsionada na década de 1990 por meio do aprimoramento de ferramentas estatísticas, tem sido ampliada pelo atual governo visando a servir de critério para a realização da passagem entre nos níveis de ensino. Dada, atualmente, a polêmica em torno da quebra do sigilo das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e os custos políticos e financeiros que vêm sendo contabilizados, talvez seja importante analisar esse ato de modo a considerar a possibilidade de outras hipóteses explicativas para além daquela que vincula o ato à possibilidade de obtenção de ganhos monetários pelos seus protagonistas. Sem considerar a hipótese de auferir vantagens econômicas com a possível comercialização ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 21 da prova, penso que o ato comportaria a manifestação política de contestação à hegemonia do “Estado Avaliador”, de modo a transmitir um sinal de alerta aos gestores do sistema de que, do Estado, se espera bem mais que a avaliação do rendimento escolar dos alunos. Considerando, por fim, o papel da estrutura de financiamento na organização do sistema, é importante destacar que a vinculação orçamentária das receitas dos governos para o financiamento da educação e a fixação de um parâmetro – o Custo Aluno Qualidade – é, sem dúvida, uma importante conquista da sociedade. Por outro lado, há que se ressaltar que, em termos percentuais de participação no Produto Interno Bruto (PIB) nacional, os investimentos alocados não se apresentam suficientes para enfrentar o quadro de desigualdades pontuado no início dessas reflexões. Ademais, há uma real dificuldade em fiscalizar o uso desses recursos devido às manobras contábeis feitas por vários gestores com a complacência dos tribunais de conta das respectivas esferas de governo. Emerge, como uma das proposições do documento da CONAE, a necessidade de ampliação do financiamento à educação pública em todos os níveis, sobretudo com maior participação da União nas etapas e modalidades da educação básica. As desigualdades assinaladas acima também se manifestam ao nível dos municípios por conta do comportamento dos territórios diante dos mecanismo da reestruturação capitalista. À medida que os investimentos produtivos a serem feitos nos municípios requerem um alto nível de concessão de privilégios ao capital por parte dos poderes públicos, esses acabam por ter poucos recursos para investir nas demandas sociais, o que tende a agravar ainda mais a histórica situação de desigualdade presente em nosso país. Referências ALMEIDA E SILVA, Maria do Pilar L. LDB e Plano de Desenvolvimento da Educação. In: ALVES DE SOUZA, João Valdir (org.). Formação de professores para a educação básica: dez anos da LDB. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 87 – 96. BRASIL. CONAE 2010. Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação. Brasília: MEC, 2009. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 22 CARNOY, Martin. A vantagem acadêmica de Cuba: por que seus alunos vão melhor na escola. São Paulo: Ediouro, 2009. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992. PERONI, Vera. Política educacional e papel do Estado: no Brasil dos anos 1990. São Paulo: Xamã, 2003. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 23 DIREITO À DIFERENÇA E AÇÕES AFIRMATIVAS: UMA INTERPELAÇÃO ÀS POLÍTICAS EDUCACIONAIS A PARTIR DA EDUCAÇÃO INDÍGENA E DO CAMPO SHIRLEY APARECIDA DE MIRANDA Professora Adjunta Faculdade de Educação/UFMG RESUMO Esse texto resulta da pesquisa realizada no doutorado em educação, acrescido da problemática que concerne ao projeto de pesquisa encaminhado ao Departamento de Administração Escolar (DAE/FaE/UFMG). A emergência de novos setores na configuração política do cenário brasileiro na década de 1980 instaurou uma forma de sociabilidade que, pressupondo a emergência de conflitos, extrapolou o limite dos direitos previamente definidos. Através de uma nova prática coletiva, os movimentos sociais demonstraram que é no interior da sociedade que a política se faz. Esse deslocamento do locus da ação política coloca como problema tratar o direito à educação a partir do direito à diferença. Seria possível um ângulo de análise da política educacional que ultrapassasse a fronteira da focalização e ação compensatória para uma configuração no campo das ações afirmativas? Esse trabalho interroga das políticas de identidade que se entrelaçam com o direito à educação e as relações, sempre conflitivas, que se adensam a partir desse direito. Para esse campo de reflexões selecionou-se a política de escola intercultural diferenciada – educação indígena – e a política de educação do campo. Essas foram destacadas por sua inserção na institucionalidade das políticas educacionais e pelos desafios que colocam para a formação de professores e professoras. Ao final, apresenta algumas reflexões sobre a forma como a instituição escolar é assumida no contexto das lutas sociais dos povos indígenas e do campo. Palavras-chave: movimentos sociais, políticas de identidade, ações afirmativas, escola diferenciada, educação do campo. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 24 1. MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS DE IDENTIDADE A emergência de novos setores na configuração política do cenário brasileiro na década de 1980 instaurou uma forma de sociabilidade que, pressupondo a emergência de conflitos, extrapolou o limite dos direitos previamente definidos. Através de uma nova prática coletiva, os movimentos sociais demonstraram que é no interior da sociedade que a política se faz, e quebraram a representação que via no Estado o início, o meio e o fim da política. Esse deslocamento do locus da ação política coloca como problema a compreensão das relações entre política e educação no interior da rede de conflitos e antagonismos produzidos pelas experiências desencadeadas por movimentos sociais. As análises sobre a ascendência dos movimentos sociais no Brasil no contexto dos anos 80 apreendem sua capacidade de desencadear ressignificações nas relações sociais do país, revelando definições alternativas de política. Assinalam a consciência da subalternidade dos grupos chamados “minoritários” e a elaboração de mecanismos de contraposição a essa situação como características definidoras desses movimentos. As lutas contínuas contra projetos dominantes expandiram as fronteiras da política institucional e denotaram a construção da democracia como processo descontínuo no qual se redefiniram as noções convencionais de cidadania e participação. No que se refere à cidadania destaca-se o caráter de “estratégia política”, expressão e resultado de “um conjunto de interesses, desejos e aspirações de uma parte significativa da sociedade”, como indica DAGNINO (1994, p. 103). Nessa conjugação estabelecida pelos movimentos sociais, a passagem do reconhecimento da carência para a formulação da reivindicação é mediada pela afirmação de um direito. A política de destituição de direitos desencadeada nos anos 90, juntamente com os efeitos perversos da reestruturação produtiva, agravada pela tradição excludente de nosso país, levam à indagação acerca do legado da ação dos movimentos sociais constituídos nos anos 80. Sobre esse aspecto, PAOLI e TELLES (2000) retomam a proposta de sociabilidade instaurada, pautada pela afirmação, sempre conflitiva, de direitos. Argumentam que a avaliação do alcance das lutas empreendidas pelos movimentos sociais não deve se restringir ao atendimento de demandas; precisa considerar os discursos e práticas desestabilizados. Enfatizando o enraizamento da cidadania nas malhas da sociabilidade cotidiana, as autoras concluem que a ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 25 sedimentação das formas atuais de exclusão social “estão a depender de um espaço de conflitos já públicos, mais que de padrões autoritários” (PAOLI e TELLES, 2000, p. 105). Outras análises constatam que os movimentos sociais contemporâneos contribuíram para o esgotamento da concepção do sujeito moderno pelo abalo das identidades coletivas unívocas. De acordo com HALL (1998), cada movimento invoca a identidade social de seus sustentadores, constituindo o que veio a ser conhecido como a política de identidade. Essa forma política confere visibilidade às várias modalidades de opressão explicitando como afetam os diferentes grupos. A identidade desloca-se de atributos universais fixos para a construção obtida por processos estruturais de diferenciação, desafiando assim as normas reguladoras da sociedade. Essa análise destitui tanto o saber como verdade quanto o sujeito de sua univocidade e constitui o que Judith BUTLER (1998, p. 14) trata como abalo da premissa política moderna, referenciada numa definição de sujeito estável e presumível. Essa destituição é especialmente importante na medida em que denuncia que as bases da política – universalidade, igualdade, direitos – foram construídas mediante silenciamentos e exclusões raciais e de gênero. Recusar a pressuposição de uma noção estável de sujeito, como destaca Butler (1998, p. 15), significa um modo de interrogar sobre sua construção ao invés de tomá-la como dado inexorável. No registro da filosofia da diferença, a identidade é contingente e produto de diferentes componentes que se interconectam: discursos políticos e culturais, sistemas de representação e histórias particulares. Seria possível tratar o problema do direito à educação focalizando as políticas educacionais a partir desse entrecruzamento de relações de saber-poder e direito à diferença? Em que medida uma concepção de poder que não restringe a política à ação do Estado e uma concepção de saber que não se circunscreve às bases de cientificidade instauradas na modernidade podem alimentar análises de políticas educacionais? Em que medida a articulação saber-poder e movimentos sociais colabora para a emergência de novas possibilidades políticas no campo da educação? 2. DIREITO À DIFERENÇA E AÇÕES AFIRMATIVAS As análises sobre políticas educacionais, em geral, remetem-se ao arcabouço jurídico considerando os efeitos e limites da legislação. Nesse quadro, os debates acerca do ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 26 acesso aos distintos níveis e modalidades de ensino problematizam o financiamento da educação e o regime de colaboração entre os entes federativos. Atualmente, esse quadro envolve as medidas desencadeadas na gestão governamental por meio do Pano de Desenvolvimento da Educação (PDE), pautado pelo Compromisso Todos pela Educação, que redireciona a aplicação de recursos voluntários da União a partir da dinâmica instaurada pela composição do Índice de Desenvolvimento da Educação (IDEB). Nesse escopo analítico mais persistente no âmbito das políticas educacionais, as políticas de inclusão demarcam o caráter ambíguo da legislação, no qual diferentes vozes repercutem compondo uma “polifonia díssona” (CURY, 1997, p. 95). Nesse enquadre considera-se que demandas dos movimentos sociais teriam sido acolhidas pela política educacional a partir de processos de luta de grupos específicos e sua participação em fóruns de debate da sociedade civil. Desse ponto de vista, a legislação pertinente – Parecer CNE-CBE Nº 14/99, sobre a educação indígena; os artigos da LDBEN 9394/96 referidos ao tema; as Diretrizes sobre a Educação do Campo; a Lei 10639/04 que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino de História da África e Cultura Afrobrasileira no ensino fundamental, acrescida da Lei 11645/08 que introduz a História e Cultura dos Povos Indígenas; bem como a legislação que trata da educação especial e educação de jovens e adultos (EJA) – comporia o conjunto de políticas inclusivas no cerne da política educacional. Por políticas inclusivas entendem-se “as estratégias voltadas para a universalização de direitos civis, políticos e sociais pela presença interventora do Estado, objetivando aproximar os valores formais dos valores reais em situações de desigualdade (CURY, 2005, p. 15). Seria possível rearticular elementos para análise das políticas educacionais? Seria possível ultrapassar a dinâmica da focalização em grupos marcados pela diferença transposta em vulnerabilidade? Note-se que no cerne da análise de políticas de inclusão situa-se a vulnerabilidade dos grupos. As políticas de focalização insistem no direito como carência de suplementação para se atingir um grau de universalidade. Nessa perspectiva, a diferença persiste como um atributo factual diante do pressuposto de uma igualdade essencial. O dilema igualdade/diferença não é recente na filosofia política e nos movimentos sociais. Se nos considerarmos a instauração da república a partir da Revolução Francesa (1789) para nos situarmos numa temporalidade mais próxima, observaremos o enigma ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 27 igualdade/diferença nas proposições feministas pré-sufrágio. A análise de Joan SCOTT (2002) é esclarecedora a esse respeito. Sua reflexão acerca das dificuldades em se estender às mulheres as premissas republicanas – liberdade, igualdade e direitos políticos – indica que foi no cerne dos discursos do individualismo liberal que as feministas denunciaram a precariedade do universalismo republicano. Os paradoxos da ação feminista – constituir-se no interior de uma política democrática que igualou individualismo e masculinidade; a necessidade de a um só tempo aceitar e recusar a diferença sexual – não são estratégias de oposição, mas elementos fundantes do próprio feminismo ocidental moderno. E, para Scott (2002, p. 277) é aí que se deve encontrar a história desse movimento político e epistêmico que abalou a construção do individualismo republicano fundado numa unidade irredutível e universal. A despeito da ação do feminismo, dos movimentos negro, indígena, LGBT e outros, a consideração da diferença como acidente que encobre uma essência humana universal persiste e pode ser observada em adágios do tipo: “eu sou da raça humana”, negando as diferenças etnicorraciais e o próprio racismo; “não me importo com a opção sexual das pessoas, desde que fiquem distantes de mim”, confinando a diferença ao silenciamento e encobrindo a homofobia. Essa lista poderia se estender por páginas, o que corrobora que suplementar a diferença para que atinja um universal – a humanidade – como uma substância encoberta consegue, no máximo, tratá-la na perspectiva da tolerância. Tolera-se a diferença desde que se mantenha distante; desde que reconheça sua inferioridade carente de auxílio; desde que não desestabilize a desigualdade naturalizada. Seria possível estabelecer um outro ângulo de análise? Qual seria o ponto de partida, o pressuposto de uma outra leitura possível? Análises do campo do multiculturalismo, dos estudos pós-coloniais, filosofia da diferença, pós-estruturalismo compartilham o pressuposto do esgotamento da concepção de sujeito genérico como referente para a política. Indicam que no cerne da concepção iluminista de direitos estava a exclusão daqueles e daquelas que não participavam do ideal de uma igualdade formal e abstrata. A destituição desse referente indica que o modelo humano genérico foi construído a partir de exclusões e silenciamentos – de gênero, raça, etnias. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 28 A política persiste como o campo do conflito no qual localizamos as dificuldades em se estender a todos as premissas republicanas – liberdade, igualdade e direitos políticos. Podemos considerar que a igualdade de direitos é uma abstração construída mediante exclusões raciais e de gênero. Basta citar a luta das mulheres para o reconhecimento civil e político que lhes garantia o direito ao voto e a ocupar cargos de poder. Consideremos também a desumanização dos povos no processo de colonização desencadeado pela Europa no século XIV. Naquele momento, ocorreram debates acirrados nos meios político, acadêmico e científico para se definir o reconhecimento das populações indígenas: poderiam ser considerados seres humanos? Teriam alma? A conclusão de que os povos indígenas poderiam ser considerados seres humanos desde que sua alma fosse libertada pela conversão religiosa foi o alicerce para a catequese, a destruição da cultura e da identidade, e por fim a dizimação das nações que resistiram ao domínio do colonizador. No caso da população africana a situação foi mais grave: considerados como coisa, ou seja, inumanos, justificou-se a escravidão, o abuso, a morte. A história da humanidade carrega vários arquétipos que nos levam a considerar que, sob a igualdade abstrata, operou-se um processo de diferenciação que produziu o mais e o menos humano – homens e mulheres; colonizadores e colonizados; europeus e grupos étnicos –, o inumano – populações africanas – e o humanamente impensável – homossexuais, pessoas com deficiência, pessoas acometidas por transtorno mental. Ao adotar o prisma histórico cabe realçar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) como um dos marcos da tentativa de concretizar a noção de igualdade. Como ressalta Flávia PIOVESAN (2005, p. 45), a partir da Declaração desencadeou-se um processo de universalização dos direitos que gerou a formação de um sistema internacional de proteção desses direitos. Esse sistema é integrado por tratados que “invocam o consenso internacional acerca de temas centrais dos direitos humanos, fixando parâmetros protetivos mínimos”. Cabe citar a Convenção contra a tortura, que conta com 132 Estados-parte; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que conta com 167 Estados-parte; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que conta com 170 Estados-parte, e a Convenção sobre os Direitos da Criança, que apresenta ampla adesão, com 191 Estados-parte. Contudo, é importante sinalizar que o cumprimento desses e de outros acordos entre os países fica a depender dos instrumentos da Organização das Nações Unidas – ONU – nem sempre eficazes em situações de conflito. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 29 Conforme análise de PIOVESAN (2005, p. 46), a Declaração Universal de 1948 e as medidas decorrentes compõem uma primeira fase de proteção dos direitos humanos, “marcada pela tônica da proteção geral, que expressava o temor da diferença (que no nazismo havia orientado o extermínio) com base na igualdade formal”. Entretanto, essas medidas tornam-se insuficientes quando não especificam o sujeito de direito, reconhecendo particularidades e vulnerabilidades de uma condição social produzida historicamente. É nesse campo que se coloca o direito à diferença como condição de acesso à igualdade de direitos. Na expressão de Boaventura Souza SANTOS (2003), ... temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. (SANTOS, 2003, p. 56), Uma primeira forma de reconhecimento da diferença é a erradicação da discriminação ilícita. Nesse caso é preciso considerar a forma direta ou intencional de discriminação, ou seja, uma conduta da qual se depreende facilmente a intenção discriminatória, o dolo, a vontade de violar o direito de alguém. No Brasil essa forma é extremamente comum e pode ser observada desde as blagues, piadas e ditos populares que desqualificam até as formas de abordagem, tratamento e exclusão explícita ou velada. Integram esse conjunto uma lista imensa de atitudes, como as formas de abordagem policial a pessoas negras; a exigência de “boa aparência” como critério de acesso ao emprego a esconder a preferência por pessoas brancas; a escolha das crianças que participarão dos números artísticos das festas escolares, em geral brancas; a estigmatização das pessoas. A neutralidade e a indiferença do aparato estatal com as vítimas de discriminação resultam em outra forma de discriminação ilícita. Nesse caso, não se oferece um tratamento diferenciado em razão de peculiaridades étnicas, culturais e sociais, o que pode comprometer o acesso a direitos. Transcrevemos a descrição de CRUZ (2009) sobre esse aspecto: Trabalhando, por quase 6 anos como Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, podemos exemplificar esta forma de discriminação por meio de um caso concreto com o qual nos deparamos. Na distribuição de cestas básicas pelo programa federal “Comunidade Solidária”, através de convênio entre a CONAB e a FUNAI, o ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 30 Conselho Missionário Indigenista, organização não governamental da Igreja Católica, noticiou que a remessa do feijão para a tribo dos Maxacalis, situada na nordeste mineiro, causava mais mal do que bem. Isso porque, em razão de hábitos alimentares peculiares, esses índios não aceitavam o feijão na dieta alimentar e, ao invés de comêlo ou plantá-lo, a mercadoria era empregada como meio de escambo por bebidas alcoólicas, alimentando um vício secular que aflige aquela população. Nossos apelos e recomendações, ao invés de surtirem efeito positivo, sensibilizando o Governo Federal, quase retiraram a referida comunidade indígena do programa, que, naquela ocasião, era a única alternativa de sobrevivência de um povo, circunscrito a pouco mais de 4.000 (quatro mil) hectares, numa região de seca constante. (CRUZ, 2009, p. 32-33) Esse fato evidencia os limites das políticas universalistas na garantia do direito de todos. Que costumes podem ser reconhecidos? Como garantir que as diferença culturais, como nesse caso, não resultem em formas de exclusão? É esse o campo de discussão e intervenção das políticas de ações afirmativas, que podem ser entendidas como medidas implementadas na promoção/integração de indivíduos e grupos sociais tradicionalmente discriminados em função de sua origem, raça, sexo, opção sexual, idade, religião, patogenia física/psicológica. Conforme ressalta CRUZ (2009, p. 63), as ações afirmativas não devem ser vistas como “esmolas” ou “clientelismo”, mas como um elemento essencial à conformação do Estado Democrático de Direito. No Brasil as ações afirmativas ficaram conhecidas pela política de cotas, ou reserva de vagas, o que restringe seu alcance aos grupos tradicionalmente discriminados, vulneráveis do ponto de vista do acesso a bens sociais e seu caráter à reparação e compensação. É importante demarcar que as ações afirmativas não se confundem exclusivamente com a política de cotas. Podemos classificar como ações afirmativas medidas estatais e privadas voltadas para a integração socioeconômica dos grupos discriminados, mantendo sua identidade sociocultural. As ações afirmativas estão pautadas pelo reconhecimento da identidade e o pertencimento cultural dos grupos sociais, o que significa partir das demandas que apresentam reconhecendo-as como direito e sobretudo, instaurar a correção de processos que não se reverteriam sem o reconhecimento de uma história de dominação criada e mantida por uma estrutura social. Daí, uma definição de ações afirmativas que precisa ser considerada refere-se às ações estabelecidas em diversos campos – na educação, na saúde, no mercado de trabalho, nos cargos políticos, entre outros – com vistas a sinalizar os setores onde a ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 31 discriminação se faz mais evidente e onde é constatado um quadro de desigualdade e de exclusão. Conforme GOMES e MUNANGA (2004) A sua implementação carrega uma intenção explícita de mudança nas relações sociais, nos lugares ocupados pelos sujeitos que vivem processos de discriminação no interior da sociedade, na educação e na formação de quadros intelectuais e políticos. As ações afirmativas implicam, também, uma mudança de postura, de concepção e de estratégia. (GOMES e MUNANGA, 2004, p. 186). Se tomarmos esse ângulo de análise para a política educacional poderíamos interrogar em que medida pode ultrapassar a fronteira da focalização e ação compensatória. Seria possível uma configuração de ação afirmativa no campo das políticas educacionais? Por esse ângulo seria preciso interrogar o contexto de lutas mais amplas que se entrelaçam com o direito à educação e as relações, sempre conflitivas, que se adensam a partir desse direito. Para esse campo de reflexões seleciono a política de escola intercultural diferenciada – educação indígena – e a política de educação do campo. Destaco-as por sua inserção na institucionalidade das políticas educacionais e pelos desafios que colocam para a formação de professores e professoras. 3. POLITICA DE EDUCAÇÃO INDÍGENA E EDUCAÇÃO DO CAMPO: DESAFIOS DO DIREITO À DIFERENÇA No caso da política de educação indígena LUCIANO–BANIWA (2006) adverte que a conquista da escola diferenciada é parte de um movimento de superação da autonegação identitária instaurada por séculos de repressão colonial que produziu o silenciamento e a negação de identidades por meio de diversos estratagemas, entre eles, a escolarização. Após o processo de dizimação, as relações entre os povos indígenas e o Estado constituíram-se fortemente marcadas pelo indigenismo governamental tutelar, cujo marco foi a criação da FUNAI em 1967. Esse cenário sofreu alterações a partir da ação de ONGs, pastorais e outras entidades ligadas aos movimentos sociais, que durante o final dos anos de 1970 promoveram o encontro de povos indígenas de diferentes etnias. Esse processo denominado indigenismo não-governamental, configurou uma agenda de lutas: terra, saúde, educação. Deriva desse período o fenômeno da etnogênese: populações dispersas e silenciadas passam a reclamar territorialidade. Deriva daí também o que lideranças indígenas caracterizam de movimento indígena: conjunto de estratégias e ações que comunidades e organizações indígenas desenvolvem em defesa ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 32 de seus direitos. É desse processo que emerge uma nova fase de relação dos povos indígenas com o Estado, pautada pela tentativa de superação do princípio da tutela pelo Estado e que tem como marco a transferência de ações centralizadas na FUNAI – entre elas a educação, que passa ao MEC. É nesse âmbito que a escola indígena diferenciada ganha sentido. A escola assume o lugar de apropriação estratégica de uma instituição da sociedade “branca”, lembrando aqui que a designação de brancos para as populações indígenas refere-se a todas as pessoas não-índias, incluindo afrodescendentes. A escola aparece como uma necessidade pós-contato. É vista como necessária para promover o desenvolvimento social e político, desencadear novas alternativas de sobrevivência e reforçar a identidade étnico-cultural. Assim, mantém-se as formas tradicionais de transmissão da cultura ao lado da inserção no interior da cultura indígena de um aparato que não nasceu de suas tradições. No caso da educação do campo, poderíamos iniciar a discussão interrogando: Por que educação do campo e não educação rural? Essa distinção propõe o reconhecimento do campo como espaço de relações singulares e conflitivas e não como lugar do atraso ao desenvolvimento do país. O campo congrega o Movimento Sem Terra – MST –, movimentos sindicais de trabalhadores rurais, assalariados e da agricultura familiar, movimentos dos atingidos por barragem, indígenas, povos da floresta e do serrado, quilombolas, entre outros. O campo é diverso e compreende-lo exige superar análises reducionistas dessa diversidade. A legislação foi forçada a assumir a diversidade que compõe o campo no Brasil. De que forma seria possível às políticas incorporar o fazer e o pensar da diversidade dos povos do campo? Uma primeira forma seria considerar o campo como território. Para os movimentos sociais do campo, o território é mais do que o espaço geográfico. É um espaço político por excelência, um campo de ação e de poder onde se realizam determinadas relações sociais que caracterizam identidades e a permanência na terra. Nesse sentido, “terra é mais do que terra”, adágio formulado na ação do MST. É um conjunto de relações produtivas, culturais, modo de vida, projeto de desenvolvimento econômico, social, cultural e ambiental. É nesse âmbito que se insere a escola. Poderíamos dizer que, desse ponto de vista, escola é mais do que escola: é território de conhecimentos e projetos. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 33 Nesse sentido seria possível aproximar a educação indígena da educação do campo. Figurando no interior da legislação educacional produzem desestabilizações que interpelam a própria política, dentre as quais podemos considerar a necessidade de formação de docentes para atuar nas escolas do campo ou escolas diferenciadas. As experiências de implantação das escolas indígenas diferenciadas e escolas do campo resultam da luta por políticas públicas que garantam a universalização do direito à educação. Nesse caso, acesso e permanência impulsionaram experiências de formação de professores/as indígenas e do campo caracterizados pela garantia de participação e autoria das populações indígenas e movimentos sociais do campo. As propostas de formação docente elaboradas pautam-se por uma análise conjuntural e estratégica da realidade dos territórios que perpassa dos currículos à organização de espaços e tempos de formação. Guardadas as especificidades de cada proposta, ambas tem como ponto de contato a origem em projetos alternativos gerados no âmbito de movimentos sociais e sua difusão “como paradigmas a serem testados em novos contextos, transformando muitas vezes em balizadores de políticas públicas” (Lúcia H A LEITE, 2008, P. 40). Lembra-nos Miguel ARROYO (2007, p. 165) que idênticas pressões por cursos específicos de formação docente vêm de outros movimentos, como o movimento negro que formula proposições para tratar da história da África e cultura e memória dos afrodescendentes. Outro pólo desestabilizador a interpelar as políticas educacionais refere-se a organização singular da escola, por vezes em choque com as proposições do sistema de ensino. Em muitos casos as escolas não se organizam num espaço físico fixo dentro do território e podem até ser itinerantes. Além disso, os questionamentos à salas multiseriadas são superados pela composição de outras proposições e não pela reedição da divisão de séries. Conforme destaca ARROYO (2006, P. 113), “as escolas do campo não são multiseriadas. São multiidades”. Com essa formulação o autor se refere às temporalidades culturais identitárias que engendram as formas de organização de agrupamentos de estudantes. Parte-se da infância e adolescência inseridas na produção da agricultura familiar, dos assentamentos, dos acampamentos, ou outros processos de produção para daí articular a organização dos tempo e espaços de aprender. A lógica temporal não é a cidade. É importante ressaltar também que na ação dos movimentos do campo e indígena, a política educacional não se reduz à escola. Articula-se com outras políticas. Ao que ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 34 parece, a política educacional entrelaça-se com a conquista da terra, a produção e reprodução da existência e a reconfiguração de relações sociais para a emergência de um outro projeto de desenvolvimento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Maria Isabel. Licenciatura em educação do campo: desafios e possibilidades da formação para a docência nas escolas do campo. In: DINIZ, Júlio Emílio, PEREIRA, Geraldo Leão (org). Quando a diversidade interroga a formação docente. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. ARROYO, Miguel Gonzáles. Políticas de formação de educadores(as) do campo. In: Caderno Cedes, Campinas, vol. 27, 2007 p.157-176. BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pósmoderno”. Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades, Campinas, v. 11, p. 11-43, 1998. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismos de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de deficiência. 3 ed. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2009. CURY, Carlos Roberto Jamil. Políticas inclusivas e compensatórias na educação básica. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 124,abr. 2005. p 92-106 DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: DAGNINO, Evelina. (org.) Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1994. 103 1115 p. GOMES, Nilma Lino e MUNANGA, Kabengele. Para entender o negro no Brasil de hoje: história, realidades, problemas e caminhos. São Paulo: Global: Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, 2004. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. LEITE, Lúcia Helena Alvarez. Os professores indígenas chegam à universidade: desafios para a construção de uma educação intercultural. In: DINIZ, Júlio Emílio, PEREIRA, Geraldo Leão (org). Quando a diversidade interroga a formação docente. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 35 LUCIANO–BANIWA, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. PAOLI, M. C.; TELLES, V. S. Direitos sociais; conflitos e negociações no Brasil contemporâneo. In: ALVAREZ, Sonia E.; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo (org.). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 103-148. PIOVESAN, Flavia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, v. 35, n. 124,abr. 2005. p 42-52 SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SCOTT Joan W. A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem. Trad. Élvio A. Funck. Florianópolis: Ed Mulheres, 2002. ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010 36