Sobre a Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro
Felipe Silva
No Brasil, as experiências em museologia social e ecomuseus, conscientes de si e
autodeclaradas, remontam ao ano de 1992, quando surgiu o Ecomuseu de Santa Cruz.
Pelo menos desde então, está em pauta a função social e política dos museus e, de forma
mais geral, da memória. Entre grupos de ativistas, movimentos sociais, agentes
governamentais e professores universitários, vem se tornando geral a percepção de que
a história oficial e os museus tem sido ocupados com considerável sucesso pelas elites,
que reverter esse quadro é possível e desejável, e que é preciso garantir o direito à
memória coletiva de grupos invisibilizados pela história oficial. Esse movimento possui
paralelos em diversos países e cidades. A contribuição do Rio de Janeiro neste processo
não foi pequena – daqui, vieram museus inovadores que logo se tornaram referência e
inspiração para o resto do país, como o Museu da Maré e o Museu da Favela,
carinhosamente conhecido como MuF, nos morros do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho,
entre Copacabana e Ipanema.
Ao mesmo tempo, no restante do Brasil, uma constelação de trabalhos em memória
social vem ganhando consistência ao longo dos anos, o que em diversos estados
assumiu a forma de redes, ainda que incipientes. Em junho de 2012, o Instituto
Brasileiro de Museus, que executa o Programa Pontos de Memória, organizou o I
Encontro de Articulação de Pontos de Memória e Museus Comunitários, em Brasília.
Além das redes estaduais ativas, também vem se formando articulações temáticas, como
a rede de museus indígenas e a rede de memória LGBT. A difusão dessa forma de
organização permite maior capilaridade às (propostas de) políticas públicas, bem como
cria novos desafios para a gestão burocrática.
No Rio de Janerio, já houve uma tentativa anterior de articulação entre diversos
atores do setor, na época chamada de Rede Museus, Memória e Movimentos Sociais.
Foram realizadas três reuniões, no início de 2007 (a memória de todas elas pode ser
acessada na íntegra em http://redemuseusmemoriaemovimentossociais.blogspot.com.br/
). Embora, na época, a rede não tenha se estabilizado enquanto tal, aquela breve
convergência deu impulso a vários desdobramentos autônomos.
Desde o ano passado, uma nova convergência de atores ligados ao campo começa a
tomar forma, agora com o nome de Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro.
Trata-se de uma rede de abrangência estadual, que tem o objetivo de conectar
comunidades populares, movimentos sociais e instituições que atuam no campo da
memória, patrimônio e cultura. A estrutura organizacional tem como base os princípios
da horizontalidade, autonomia, descentralização e cooperação em rede, buscando criar
um espaço de articulação política e mobilização social constituído para potencializar
esforços, ampliar ações e fortalecer atores sociais unidos em torno da apropriação
comunitária do patrimônio e da memória local como ferramentas de afirmação,
preservação e defesa de territórios, ecossistemas e referências culturais.
A rede é composta por pontos de memória, museus comunitários, ecomuseus e
iniciativas afins. Alguns já se consolidaram como instituições de renome e de excelência
técnica, enquanto outras iniciativas ainda se encontram em estágio embrionário. Não há,
contudo, espaço para qualquer relação hierárquica dentro da rede. Cada grupo ou
instituição conduz seus trabalhos de forma totalmente autônoma e independente, a Rede
é apenas um espaço de convergência. Dentre seus integrantes, os trabalhos versam sobre
uma grande variedade de temas, como a história de diversas favelas e bairros urbanos –
capazes de dar uma contribuição substancial a estudos históricos sobre processos de
ocupação do solo, de expansão da malha urbana, sobre a intrincada história de
migrações, remoções e despejos que compõe a geografia da metrópole contemporânea–,
a cultura rural no interior do estado, o conhecimento tradicional de plantas medicinais,
as religiões afro-brasileiras, além das histórias dos mestres e seus conhecimentos em
diversas manifestações artísticas, como a capoeira, o samba, a cultura circense, as folias
de reis, o jongo e o funk. Em meio a uma diversidade cultural inesgotável, a gama
daquilo que pode ser trabalhado pelo viés da memória é, também, infinita. No
reconhecimento ao caráter aberto do conjunto, estamos próximos, tanto de um ponto de
vista institucional quanto existencial, da concepção de uma cultura viva comunitária,
que deve ser acolhida em suas diversas manifestações. Assim, a rede é um espaço
político, que pode e deve ajudar a pautar as diversas instâncias do governo federal,
estadual e municipais que estão ou deveriam estar envolvidas na construção de uma
política pública voltada para a memória.
A função da rede é, portanto, alimentar o diálogo, o compartilhamento e a
disseminação de experiências, técnicas e saberes entre os diferentes grupos e
instituições, com o intuito de gerar o fortalecimento mútuo dos integrantes. A rede tem,
ainda, a função de estimular projetos de extensão (em contato com universidades), de
intercâmbio e de residência entre seus integrantes.
Nosso intuito é potencializar a memória, não apenas como registro do passado, mas
como o desenrolar de uma história que vive e pulsa hoje, um caminho que, ao ser
pesquisado, reconhecido e divulgado, aponta para um conjunto de futuros possíveis
entre os quais é possível fazer escolhas, propor rumos e organizar resistências.
Acreditamos na memória como ferramenta de transformação social, e no trabalho com a
memória como um poderoso estopim para fomentar um diálogo significativo entre as
gerações mais antigas e as mais novas, e para fortalecer projetos de construção de
identidades coletivas, compartilhadas, negociadas.
Por muito tempo, a história oficial foi contada a partir da perspectiva dos poderosos,
das classes altas, dos patronos da elite. Nosso passado é hoje, como sempre foi, um
terreno sob disputa. Entendemos que a integração de múltiplas perspectivas é necessária
para amplificar a diversidade de narrativas históricas que compõe o Rio de Janeiro. Para
não permitir que multidões inteiras sejam absorvidas e tenham seu trabalho e seu suor
convertido em moeda usada para capitalizar terceiros. Para que a história não seja mais
contada de cima para baixo, mas em muitas direções e por muitas vozes.
Autor: Felipe Silva | E-mail: [email protected]
E-mail da Rede RJ: [email protected]
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