Os corpos da escrita: um ponto de partida para
reflexões sobre a criação tipográfica
The boddies of writing: a starting point to think about typography creation
Miyashiro, Rafael Tadashi; Ms; UNICAMP e UPM
[email protected]
Gouveia, Anna Paula Silva; PhD; UNICAMP
[email protected]
Resumo
Este artigo se propõe a refletir sobre a criação de tipos. Partindo das definições de Harry
Pross, consideramos que a tipografia é decorrente da primeira mídia, início e fim de toda a
comunicação: o corpo. Esse corpo, dentro da criação da tipografia, está além da dicotomia
cartesiana, o que propõe pensá-lo em vários níveis. Ao colocar o corpo como centro da
criação da tipografia, parece haver um deslocamento importante: às questões técnicas e
metodológicas do projeto tipográfico, juntam-se outras instancias, como os tempos e espaços
da criação; é a passagem do projeto tipográfico ao processo, que envolve questões próprias da
ação criativa, como a vida e a complexidade da criação.
Palavras Chave: tipografia; subjetividade; corpo.
Abstract
This article intends to reflect about type design. Through Harry Pross’ concepts, we consider
typography as this media that is the beginning and the ending of all communication: the body.
This body, within type creation, is beyond the Cartesian dichotomy, which allows us to think
about it on several levels. As we place the body at the center of type creation, it seems to have
an important displacement in this discussion: beyond Type Design Project’s methodology and
technician questions, other instances come to light, like creation times and spaces; this is the
passage from the Type Design Project to the process – which involves life and the complexity
of creation.
Keywords: type design; subjectivity; body.
Os corpos da escrita: um ponto de partida para reflexões sobre a criação tipográfica
Introdução
Os homens viveram com muito sucesso na Terra – e, até onde sabemos, foram
bastante felizes – durante cem mil anos sem o benefício da escrita. Por outro lado,
até onde nosso conhecimento alcança, os homens nunca viveram, e também jamais
foram felizes, na ausência da linguagem. (BRINGHURST, 2006).
O que Robert Bringhurst comenta acima é resultado de uma breve reflexão entre os
limites da linguagem oral e da escrita: a escrita pode superar a linguagem na medida em que
ela pode se transformar em formas gráficas ricas e distintas; ao mesmo tempo, diz o autor
(ibidem), no entanto, como num paradoxo, a linguagem oral se mostra muito mais soberana e
essencial que a escrita – prova disso é a distância temporal que separa a vida do homem na
terra do surgimento da escrita – e a história comprova esse fato.
Tal embate, embora extremamente poético, pode ser, ao mesmo tempo, redutor. Por
isso, propomos que ele seja transcendido por uma palavra, que as sobrepõe e as antecede: a
expressão. O que significa que linguagem oral, formas gráficas, e quaisquer outras
manifestações da escrita partem de uma necessidade e um desejo de se expressar, e que
posteriormente se transforma em comunicação.
Uma importante contribuição nesse sentido é a proposta de Harry Pross (Baitello, 2001), que
apresenta uma classificação dos sistemas de mediação, divididos em mídia primária,
secundária e terciária. A mídia primária se encontra naquilo que origina toda comunicação: o
corpo. Como Pross (ibidem) cita, os recursos dessa mídia são vastos, incluindo as
possibilidades expressivas dos olhos, testa, nariz, movimentos e posturas corporais, os sons e
odores corporais, e as próprias línguas naturais (verbal e falada).
Já a mídia secundária é constituída por aqueles meios de comunicação que
transportam a mensagem ao receptor, sem que este necessite de um aparato para
captar seu significado, portanto são mídias secundárias a imagem, a escrita, o
impresso, a gravura, a fotografia, também em seus desdobramentos enquanto carta,
panfleto, livro, revista, jornal (...)” (PROSS, 1971: 128 citado por BAITELLO,
2001: 2).
Norval Baitello Jr. lembra que nessa mídia acontece uma apropriação do emissor para
aumentar a comunicação:
Assim, podemos dizer que, na mídia secundária, apenas o emissor se utiliza de
prolongamentos para aumentar ou seu tempo de emissão, ou seu espaço de alcance,
ou seu impacto sobre o receptor, valendo-se de aparatos, objetos ou suportes
materiais que transportam sua mensagem (BAITELLO, 2001).
Por fim, na mídia terciária há uma dependência de aparelhos que permitam a
concretização da comunicação, tanto do lado do receptor quanto do emissor. São exemplos
dessa mídia os dvd’s, cd’s, a televisão, o cinema, a telefonia, entre outros.
Uma característica interessante desse sistema é a sua “cumulatividade” a partir da
mídia primária, ou seja: é a partir do corpo que as outras mídias se sobrepõem. E Pross
(ibidem) lembra que é ao corpo (ou seja, à pessoa) que a comunicação, volta, inevitavelmente.
O interessante de se pensar a partir desses conceitos é que se coloca em evidência o
corpo como origem de toda escrita, ou seja: é nele que se encontram as possibilidades e as
potencialidades criativas que desencadeiam uma poesia, um projeto tipográfico, uma
caligrafia.
Mas, nesse caso, de que corpo estamos falando? Sem dúvida, a primeira reação é
pensar no corpo físico. Na caligrafia japonesa, por exemplo, isso fica mais evidente,
especialmente quando se vê uma demonstração de caligrafia moderna, em estilos como
zen’ei’sho (vanguarda da caligrafia moderna) e daijisho (caligrafia de grande formato). Outro
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exemplo é a pixação, presente na paisagem urbana de São Paulo, na qual, como lembra
Gustavo Lassalai, há uma relação direta entre a dimensão material do pixo com o corpo de
quem a escreveu.
No caso da criação tipográfica, especialmente a ocidental, acrescentar o vocábulo
“corpo” em meio a palavras como “linha de base”, “altura de x” e “serifa”, a princípio, parece
algo distante e fora de contexto. Mas pelo contrario.
O corpo, menciona Christine Greiner (2002), vai muito além da dicotomia cartesiana
corpo-mente tão difundida no mundo ocidental. No Oriente, por exemplo, essa dualidade
nunca existiu: corpo e mente são considerados como algo único, que também não existe
separado do seu ambiente. Já no Ocidente, foi apenas no século XX, a princípio, segundo a
autora (ibidem), que reflexões parecidas surgiram. Maurice Merleau-Ponty e seguidores do
pensamento fenomenológico, a partir de Edmund Husserl, disseminaram
a proposta do corpo como estrutura física e vivida ao mesmo tempo. Isto significou
um reconhecimento importante do fluxo de informação entre o interior e o exterior,
entre informações biológicas e fenomenológicas, compreendendo que não se
tratavam de aspectos opostos. Merleau-Ponty [...] já havia percebido que para
compreender este fluxo era necessário um estudo detalhado da corporeidade do
conhecimento, da cognição e da experiência vivida. Assim, a noção de corporeidade
possuiria um sentido duplo, designando ao mesmo tempo estrutura vivida e contexto
ou lugar de mecanismos cognitivos (IBIDEM, 2002: 23).
Esse corpo, com um sentido mais amplo, foi importante em pesquisa anterior sobre a
criação na caligrafia japonesa (Miyashiro, 2009; Miyashiro, Gouveia, Lara, 2010). Nela, viuse, entre outras coisas, que o corpo é o elemento centralizador e o local do acontecimento da
criação antes de tudo – para isso foram consideradas suas várias instancias, bem como os seus
entornos.
No caso da tipografia, refletir sobre sua criação parece ser possível pelo mesmo viés, o
corpo – corpo considerado como um todo, um organismo vivo, de múltiplas camadas, em que
acontecem ações psico-físicas das mais diversas, mas que é, também, subjetividade. Além
disso, ele não está isolado em si mesmo, mas age e se relaciona sob determinadas condições
numa cultura, num determinado ambiente.
Essa reflexão através do corpo parece provocar, a princípio, um deslocamento
essencial para se entender mais sobre a criação tipográficaii. Em discussões sobre a criação no
design de tipos, é muito comum que prevaleçam questões de ordem técnica ou metodológica
(que são importantíssimas, sem dúvida), como pensar o projeto a partir da função da fonte, ou
quais são as letras-chave, que podem servir de modelo às demais. Entretanto, quando a
criação tipográfica passa a ser vista sob a ótica do corpo a discussão, no entanto, se amplia: há
um novo contexto, que coloca em seu centro a pessoa, e não mais o projeto – novos espaços,
tempos e instancias, portanto, devem ser considerados.
Deslocamentos: Do projeto ao processo
Muito antes do uso do termo “design gráfico” pelo americano William Addison
Dwiggins, em 1922, a tipografia, hoje considerada uma subárea do design gráfico, já
carregava consigo séculos de história. Desde o aprimoramento – mais do que propriamente a
invenção – do sistema de impressão de tipos móveis por Gutenberg, no século XIV, o que se
viu foi um grande desenvolvimento da escrita ocidental e também a própria organização dela
no suporte do papel.
Libertando-se do peso das góticas medievais, a escrita do início do Renascimento se
renovou, criou estilos e aprimorou o que já tinha sido feito anteriormente. Desde então, a
história da tipografia tem rendido inúmeros exemplos de fontes cujo projeto leva em conta
detalhes pouco perceptíveis a olhos leigos, mas que revelam harmonia, contraste e ritmo.
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Alguns destes exemplos permanecem pouco alterados até hoje, o que demonstra a vivacidade
e a relevância das suas formas.
A criação da tipografia, no entanto, está longe de ser simples. Primeiro, o tipógrafo ou
designer de tipos parte de um desejo interno ou é motivado por algo. Desde essa fase, ele tem
várias opções à frente. Com serifa? Sem serifa? Caso haja serifas, serão elas mais evidentes
ou mais sutis? A letra será humanista ou racional? Em qual contexto ela será usada? Será um
revival? É de texto ou experimental? Se é para texto, será uma fonte para chamadas ou para
textos mais longos? Para qual linguagem ela está sendo projetada? Ela terá uma altura de x
baixa ou mais generosa? Será uma fonte de alto ou baixo contraste?
Essas são apenas algumas das questões que surgem e que indicam caminhos a serem
percorridos no projeto tipográfico, o que certamente não é algo fácil. Todos os tipógrafos
dirão que é uma tarefa árdua e demorada.
Mesmo que o designer ou tipógrafo consiga terminar todo o alfabeto (depois vem os
números e os caracteres especiais, complementando todo o conjunto de glifos), em seguida há
uma fase de ajustes técnicos a serem feitos, como o kerning. O kerning lida com o
espaçamento entre pares de caracteres, que também é como uma prova de fogo para um novo
tipo. Com exceção das fontes mono-espaçadas, em geral, por causa das formas tão distintas
dos caracteres, diferentes combinações de letras devem ser compensadas visualmente no
espaço. Ou elas se aproximam, ou elas se afastam. O kerning recorda que a tipografia, além
de preocupar-se com as formas individuais dos caracteres, deve buscar a unidade visual da
palavra, seja ela uma junção de poucas letras, como a palavra “rio”, uma frase, ou mesmo a
página inteira de um livro.
Diante da complexidade envolvida na tipografia, como se pode ver acima, corre-se o
risco de considerá-la algo por demais técnico. Seria a criação de tipos uma tarefa que
demanda mais habilidades exatas que algo próximo de um contexto autoral e subjetivo do
design?
Na cultura oriental a escrita tem um valor único e há até um ditado que diz “A escrita é
como a pessoa”. Uma caligrafia japonesa é capaz não apenas de revelar, mas carregar em si,
nas suas linhas e nos seus espaços, a pessoa que a escreveu – suas dúvidas, anseios,
qualidades e potencialidades. Já na cultura ocidental, se não se pode chegar a tanto, pois há
um contexto cultural e histórico completamente diferente, os tipos podem, ainda sim, mostrar
um outro lado da tipografia, mais subjetivo e/ou mais pessoal, para além dos parâmetros
técnicos ou metodológicos. A paixão pelos tipos, por exemplo, é algo essencial para o
tipógrafo holandês Gerard Unguer:
Seja o que for, designers de tipos são inquestionavelmente dirigidos por uma afeição
de alguma forma auto-contida para tipos de impressão, e isso gera muita satisfação.
Ou, para deixar mais claro: você não começa a desenhar tipos de impressão a menos
que já seja louco por eles. (UNGUER, 2007: 103).
Karen Cheng (2005) comenta que, para alguns, a inspiração por trás de uma fonte é
puramente visual e o prazer de ver e utilizar designs novos se equivale ao prazer que um
compositor ou condutor tem frente a novos instrumentos; mas a autora também cita o caso de
tipógrafos que partem de conceitos narrativos, como no caso de Kent Lew: “Para mim, as
idéias geralmente vem de cenários de ‘e se?...’. E se Joanna tivesse sido projetada por W. A.
Dwiggins, ao invés de Eric Gill? E se Mozart tivesse sido um puncionista – mais do que um
compositor?” (CHENG, 2005: 8).
Seja como for, o designer/tipógrafoiii está inserido no contexto do seu espaço e tempo
social, o que afeta sua produção, e se relaciona a idéia do corpo que está inserido no ambiente,
citada no início desse artigo:
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Cada artista luta com uma determinação dupla para refletir sua personalidade e seu
tempo. [...] A tipografia é uma expressão artística, e não é presunção elevar essas
duas demandas também para o compositor designer.
Personalidade e tipografia não podem ser separadas. O trabalho de design revela o
ser interior do criador, reflete sua maturidade.
Não há livros de design, nem receitas ou regras que levem a um trabalho maduro;
eles servem a maior parte do tempo para abrigar o vazio do ser interior. Eles levam a
uma frieza e logo, no fim, a um trabalho de fábrica sem alma [...] Qualquer
impressor [tipógrafo] que ame sua profissão estará insatisfeito com tamanho
resultado (RUDER, 2009:38).
O que se vê na citação de Emil Ruder, um dos responsáveis pelo desenvolvimento do
que é conhecido como Estilo Internacional, é que – embora tal estilo seja racionalista e esteja,
em geral, relacionado à idéia de um design “frio” –, por trás de todo o design tipográfico, diz
Ruder, é o próprio ser – e seu tempo – que se revelam.
Gerard Unger segue a mesma linha:
A primeira coisa que o designer traz é a sua personalidade, influenciada pelo seu
background, educação e a sociedade na qual vive. Um design de tipos
inevitavelmente reflete o caráter do seu criador, e, freqüentemente, é difícil detectar
o que vem de dentro e o que é de fora (UNGUER, 2007: 103).
Essa idéia de trocas entre o ambiente externo e interno lembra o conceito de produção
de subjetividade, termo bastante utilizado por filósofos e pesquisadores ligados à obra dos
filósofos Félix Guatari e Gilles Deleuze. Contra a idéia de um sujeito já moldado, “pronto”,
Peter Pelbart (2001:14) lembra do “descolamento progressivo da idéia de subjetividade da
consagrada noção de sujeito, da qual ela deriva”. Ao contrário do termo “sujeito”, que se
apresenta como algo estático e pronto, a subjetividade tem uma extensão e um contexto
maior. As subjetividades, lembram Félix Guatarri e Suely Rolnik (1986), são moldadas e
construídas através e por várias instâncias. Gerard Unger já citou algumas delas: a sociedade,
a educação e a formação pessoal. É diante desse quadro difuso e múltiplo de construção da
subjetividade é que decisões e interesses são criados e estimulados – o que influencia não
apenas a motivação na criação tipográfica, mas também o modo como elas são produzidas.
Jonatan Barnbrook, por exemplo, designer gráfico e designer de fontes, é conhecido
pelo tom político no seu trabalho. Essa opção certamente tem a ver com seu background e seu
modo de ver e sentir. Seu trabalho com fontes é constante e várias delas tem uma leitura
política. A possibilidade de expressão através da tipografia tem a ver não apenas com sua
posição não-conformista com o que via ao seu redor, mas também com o fortalecimento do
design mais autoral, em oposição ao design gráfico funcionalista, nos anos 80 e 90,
principalmente.
[...] Quando eu era mais jovem, eu me sentia mal pela influência cultural americana
que parecia infiltrar minha cultura. Sabemos que todas as culturas são influenciadas
pelas outras, mas parecia que essa cultura de massa americana não tinha
consideração pela minha própria, só queria achatá-la. Eu queria voltar à idéia do que
era único de onde eu vinha. Isso era expresso de modos diferentes – um amor pela
música britânica pop, onde as pessoas cantavam sobre lugares e acontecimentos que
eu entendia. Outra coisa era fazer algo bem simples, como andar ao redor de uma
área e olhar o ambiente – tentar entender a atmosfera histórica e emocional de onde
eu tinha nascido (RICHARDSON, 2002)
… frequentemente me perguntam: Porque você continua a desenhar fontes? Já não
há em número suficiente? A essas pessoas eu digo: porque o design de tipos é um
meio de expressão tão válido que eu/nós continuamos a fazê-las. De alguma forma,
naquelas 26 formas engraçadas você pode expressar o espírito da era, o estado
intercambiante da linguagem, subverter o todo da indústria do design […] ou fazer
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uma atitude política. O mais importante é que desenhar e lançar um tipo significa
que você moldou uma nova voz que é unicamente sua, com a qual você fala ao
mundo nos seus próprios termos. (BARNBROOK, 2006).
Nesse sentido, o projeto tipográfico de um designer/tipógrafo nunca está isolado e nem
pode ser visto fora do contexto em que ele vive. E é aí que parece haver uma passagem, no
contexto da criação da tipografia, do projeto tipográfico ao processo.
Cecília Almeida Salles (2006) propõe ver a criação dentro de uma perspectiva de rede,
complexa, onde várias instancias estão envolvidas – e é no cruzamento delas que a obra de
arte se constrói. Essa autora aponta um caminho interessante para esse olhar “em rede”:
lançando um olhar do “macro” para o “micro”, a autora observa as relações do artista com a
cultura, e, aos pouco, se aproxima “do sujeito em seu espaço e tempo, e das questões relativas
à memória, à percepção e recursos de criação” (ibidem, 2006: 18).
No centro dessa rede, no caso da criação tipográfica, está o corpo do
tipógrafo/designer – e é importante ressaltarmos que é nele, antes de tudo, que a criação
“acontece”, pois é o corpo da mídia primária. É o corpo onde as instâncias se cruzam, se
chocam, se comunicam; é onde ocorrem as decisões e as ligações, as junções e os desvios
ligados ao projeto tipográfico; é o local que materializa a criação, bem como onde há encontro
de subjetividades; é, também, espaço de fronteira e comunicação com o ambiente circundante.
Nessa perspectiva, o projeto é mais uma pequena rede dentro de outra rede, maior, a
do processo em que essa criação está envolvida. E os espaços e tempos desse processo são
mais amplos que o do projeto, pois podem remeter a coisas anteriores a ele, como a
memórias, que são atualizadas; ou a coisas que ainda estão a serem geradas e descobertas no
processo.
Dischinger, Marques e Kindlein (2006) ressaltam a importância da memória no
processo criativo, e de como ela é “responsável pela aquisição, seleção, fixação e evocação
das imagens e experiências que compõem a essência do imaginário, influenciando na
criatividade do sujeito”(ibidem: 9).
Explicam os autores:
O processo criativo está extremamente relacionado com as experiências de cada
pessoa, com imagens que são armazenadas na memória. Estas imagens vão
alimentar a capacidade de imaginação. O referencial imagístico de cada designer
está estritamente vinculado às suas memórias. Dentro do processo de projetação é
possível encontrar o apoio das memórias de trabalho, curta duração e longa duração.
As experiências de cada pessoa ao longo do tempo formam um depósito de
informações guardadas como memórias. Estas memórias tanto conscientes como
inconscientes serão acessadas e estarão no cerne do processo de incubação, onde
várias informações serão entrecruzadas e produzirão através destas combinações
aleatórias novos sentidos os quais virão à tona no momento oportuno. Conseguindo
ampliar o acervo de memórias, fortalecendo-a, é possível ter a capacidade imagística
ampliada. Ampliando a imaginação, tem-se mais liberdade e qualidade nas criações,
produzindo produtos com mais inovação e qualidade. (IBIDEM:8).
As memórias, como se viu, acionam relações em rede, que acabam por auxiliar no
processo criativo, mas sabe-se que tais relações nem sempre acontecem imediatamente.
Tipógrafos comentam que às vezes parecem estar estagnados no meio do processo, como
comenta Zuzana Licko (RUBINSTEIN, 2002): “Às vezes eu deixo um design de lado, quando
eu atinjo um obstáculo, e pode levar meses ou até anos para resolver alguns desses problemas
de design”.
O relato abaixo, de Xavier Dupré, reforça que a tipografia se tece em meio à rede
criativa – onde estão envolvidos diversos tempos e espaços:
O conceito da [fonte] Vista começou em julho de 2002, quando fiz sketches de
alguns caracteres num caderno, enquanto estava em Sumatra, durante as férias de
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um mês. A maior parte das lojas ali apresenta letterings idiossincraticamente
decorativos [...] e outras formas incomuns.
Em reação a isso, eu pretendia fazer um tipo semi-serifado para texto e display, que
manteria algumas dessas características, mas fosse ao mesmo tempo séria o bastante
para aplicações gerais [...].
Quando cheguei em casa, eu fiz essas idéias iniciais numa família chamada Bagus,
mas o resultado foi desapontador. Eu estava preso; precisava achar um modo de
melhorar o design.
Então dois anos depois, eu revi esta família incompleta e redesenhei todos os
caracteres. Eu joguei fora a serifa para fazer a família mais simples, estreita e útil.
Achei as proporções certas para uma fonte de texto. [...].
Os caracteres mais difíceis [...] foram a caixa-baixa “a” e “g”. Mas eles também são
os mais interessantes de se desenhar, porque eles podem ditar o tom da fonte. Em
Vista, o “a” se tornou a letra com mais características. É a alma da Vista. O “a” tem
um apelo especial para mim. Quando eu era estudante, eu aprendi a reconhecer e
identificar fontes observando esse caractere.
O “a” na Vista é inspirado nas góticas. Eu queria incorporar o ritmo delas; grande
contraste, ênfase na vertical, uma aparência forte e gráfica. Eu combinei isso com
formas humanistas para fazer uma fonte que funcionasse bem com textos. Assim, a
forma e o ritmo da Vista são uma mistura de escrita gótica e humanista.
Há muitos detalhes sutis na Vista que se tornam interessantes em corpos grandes;
por exemplo, as bordas levemente inchadas de alguns arremates. Quando eu aprendi
design de tipos no Scriptorium de Toulouse, eu desenhava caracteres com caligrafia
à mão, traçados no papel sem uma régua. Dessa forma, meus caracteres sempre
foram muito curvos e suaves, provavelmente demais.
Hoje eu tento fazer formas mais úteis simplificando-as, mas eu ainda gosto de
formas curvadas. Não é fácil adicionar curvas sutis a um design sem serifa porque,
sem as serifas, há poucas áreas onde se pode colocar detalhes com curva. Então eu
experimentei adicionar as curvas em lugares um pouco incomuns, como nos
acabamentos de alguns traços. (DUPRÉ, 2005).
No design da fonte Vista, por exemplo, o designer fala de um processo demorado, que
envolveu idas e voltas, desenhos e redesenhos – e percebe-se uma insistência em finalizá-la.
Os tempos e espaços não incluem apenas aqueles restritos à viagem que o inspirou, ou aos do
próprio projeto, mas também a tempos e espaços outros, que reverberaram na sua execução,
como no caso da menção dos tempos de estudante, do trabalho em Tolouse e do
conhecimento acumulado (que levou, entre outras coisas, à releitura e à apropriação das
góticas). Dupré também deixa uma dica de marcas concretas da sua subjetividade no próprio
design, quando fala das letras “a” e “g”. Para o tipógrafo, elas têm um papel crucial no
estabelecimento da identidade da tipografia, que se espalha e dá harmonia a todo conjunto. É
curioso também que, depois de 5 anos do lançamento da fonte, esse designer tenha
apresentado uma versão da Vista com serifa, o que remete a sua idéia original.
Uma instancia em geral ignorada na criação tipográfica diz respeito à dimensão física
do corpo, que, na verdade, no contexto do corpo visto como unidade, se refere a ações psicofísicas. Por exemplo, nos roughs, através de instrumentos manuais, ou na produção digital,
através do computador e dos periféricos digitais, o corpo se manifesta fisicamente dando
forma aos caracteres desenhados. São ações físicas interiorizadas, incorporadas no processo.
Na caligrafia ocidental, a postura é considerada um elemento importante para uma boa
caligrafia, e um exemplo extremo seria aquele em que se amarravam as pernas do praticante,
há décadas atrás, visando disciplina e postura, que influenciariam a forma escrita. Já na
caligrafia japonesa é comum a prática do rinshoiv, que tem, em geral, três estágios:
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primeiramente, o praticante deve captar os aspectos técnicos do trabalho; em seguida, é
instigado a procurar “o espírito da letra” (sua essência); e, por fim, no terceiro, é convidado a
realizar a sua interpretação pessoal (Nakamura, 2006; Sato, 2001). É interessante que todo o
conhecimento adquirido/incorporado/corporificado pelo calígrafo é, depois, devolvido no
desenvolvimento de trabalhos mais pessoais.
Essa corporificação na caligrafia tem um paralelo na tipografia: os roughs, os estudos
e quaisquer manifestações gráficas feitas por ações motoras internalizam conhecimentos, que
poderão ser devolvidos e desenvolvidos, de diferentes formas, no projeto. Estão envolvidas
não apenas as memórias (visuais e físicas) mas também as respostas do gesto frente à criação.
Quanto maior a prática gestual, seja nos desenhos à mão, seja no manuseio do mouse e de
uma mesa digitalizadora tablet em desenhos vetoriais, melhor será a correspondência entre
aquilo que se imagina e aquilo que se concretiza em termos formais na construção de uma
tipografia. Essas práticas, é interessante, propõe pensamento e ação física como um gesto
contínuo – o que remete novamente a idéia do estabelecimento de um corpo integrado, em
todas as suas instancias, na criação tipográfica.
Considerações finais
Ao usarmos o corpo como viés para uma investigação inicial sobre a criação
tipográfica, observamos que a discussão, em geral centralizada muito mais em questões de
projeto, ganha novas dimensões.
Essa visão além do projeto é relevante, pois há entornos da criação tipográfica que vão
além dos domínios diretos do projeto de tipografia. Estimular para que a rede da criação
tipográfica, o processo, aconteça de forma mais efetiva significa adentrar em outras áreas, que
envolvem memórias, fortalecimento de repertório, práticas ligadas ao gesto, etc.
No contexto educacional, nos casos dos cursos de design, é necessário que se estimule
a reflexão e a valorização das singularidades – e essa discussão nunca deve se desviar do seu
caráter ético.
Luciana Lobo Miranda (2000:43) explica a relação da produção de subjetividade e da
singularização em termos que se aplicam perfeitamente à criação tipográfica e seu processo:
Por outro lado, Deleuze e Guattari apontam a existência de processos heterogêneos
no seio do assujeitamento da subjetividade. Processos criativos que produzem um
desvio, uma diferença na mesquinharia, priorizando os vetores de subjetivação que
privilegiam a heterogeneidade, a criação – cristais frágeis, microscópicos, precarios
(Guattari, 1994) – ao invés da laminação homogeneizante que subsume os desejos:
“Estamos diante de uma escolha ética crucial, ou se objetiva, se reifica, se
‘cientificiza’ a subjetividade ou, ao contrario, tenta-se apreendê-la em sua dimensão
de criatividade processual”(Guattari, 1992, p. 24). Trata-se de criar condições de
possibilidade para a abertura de novos valores para além do capital, de pautar a
polifonia não só na linguagem, mas na subjetividade e à finitude. Nesta
predisposição à heterogeneidade, à processualidade e à criação de novos “modos de
subjetivação”, circunscreve-se uma dimensão estético-ético-política.
Nesse sentido, é importante promover subjetividades positivas, num ambiente que
possibilite discussões, reflexões e ações concretas. Ao mesmo tempo, é no fortalecimento das
diversas instancias envolvidas no processo da criação da tipografia, que surgirão tipos
contemporâneos que falem do seu tempo e sejam, ao mesmo tempo, reflexo verdadeiro dos
seus autores.
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9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design
Os corpos da escrita: um ponto de partida para reflexões sobre a criação tipográfica
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UNGER, G. While you’re reading. New York: Mark Batty Publisher, 2007.
iNotas
i Gustavo Lassala, em palestra no DiaTipo 2010, 16 de dezembro de 2009, organizado por
Henrique Nardi (Tipocracia).
ii
Embora a palavra “tipografia” tenha vários sentidos, aqui a consideramos principalmente
como sinônimo de design de tipos.
iii
Hoje é cada vez mais comum designers também atuarem no campo da criação de tipografia,
num domínio que antes era, quase que exclusivamente, do tipógrafo.
iv
Estudo, aperfeiçoamento e interpretação pessoal dos textos clássicos de caligrafia.
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