A idéia de igualdade e o imaginário social contemporâneo. Marcus Vinícius de Oliveira Silva1 [email protected] I – Introdução Como problematiza Louis Dumont (1997), nas páginas iniciais do Homo Hierachicus, a existência de alguns dos nossos valores políticos ocidentais fundamentais, tal como o igualitarismo, se coloca como um obstáculo epistemológico para a nossa percepção, quando da análise de certos fenômenos sociais, impedindo-nos o acesso a tudo aquilo que dele se desvia. Assim, parte da falta de compreensão analítica dos ocidentais em relação ao sistema de castas da Índia, por exemplo, seria para ele, derivada do escândalo moral que isto provoca nas nossas consciências igualitárias ocidentais. A condenação moral substituiria, desse modo, mais facilmente, no plano do pensamento, as possibilidades do aprofundamento da análise sociológica. Pedra do tropeço, lugar do embaraço, nossa indissociabilidade em relação à "questão da igualdade" coloca-se, para nós ocidentais, talvez então, da mesma forma que ao peixe seria difícil pensar o meio aquático em que vive, ou que, em nossa condição de mamíferos, coloca-se como impossível se pensar como somos distintos do ambiente atmosférico em que nos encontramos imersos. A imersão nos valores, quando estes se constituem como vitais para a existência mesma de nossa sociedade, nos moldes do que nos é dado, vivê-la e pensá-la, ao se fazer obstáculo analítico, mais aprofunda o nosso desafio e convoca ao risco intelectual para o empreendimento da tarefa. 1 Psicólogo, Prof. Depto de Psicologia FFCH/UFBA, Doutor em Saúde coletiva IMS/UERJ. 1 Filho dileto da modernidade iluminista ocidental, esse ideal da igualdade, tomado como valor fundamental do edifício político do Ocidente, exige para ser incorporado ao pensamento, que nos disponhamos a nos debruçar sobre este outro campo enigmático maior, no qual nos encontramos igualmente imersos,e que se constitui na própria experiência social e histórica da Modernidade. Como comenta Roszack (1970, p10), na introdução do seu clássico estudo sobre o nascimento da contracultura, a tomada de amplos eventos tais como "O Renascimento" ou "Movimento Romântico" como categorizações que pretendem medir amplos conjuntos de fenômenos sociais, colocam muitas dificuldades e são muito vulneráveis enquanto empreendimentos intelectuais. Principalmente, se, como no caso do seu estudo à época sobre a "Contracultura", além do caráter amplo do fenômeno a ser estudado, a proposta incorpora ainda a intenção de agrupar e organizar os elementos soltos de uma tormentosa cena contemporânea. E principalmente interpretá-los. Tomar “a Modernidade” como um evento a ser analisado, compreendem ambos desafios: o da amplitude e o da necessidade de um certo posicionamento sobre a contemporaneidade. Como se não bastassem as dificuldades próprias do pressuposto caráter histórico cumulativo que a constituí e nos remete às teias densas dos últimos três ou quatro séculos da história e da experiência social do Ocidente, onde ela se gesta e desenvolve. Isso se não objetivamos as suas origens e fecundações mais anteriores, o que nos faria recuar mais alguns séculos atrás - as dúvidas existentes se, no momento presente, estaríamos diante da sua terminalidade ou da sua continuidade, incluem mais um inquietante elemento na apreciação do seu enigma. De certa maneira, o caráter tributário da experiência social contemporânea à Modernidade não se coloca de forma tão consensual. A adoção da noção de “pós-modernidade”, por parte de alguns, parece, às vezes, querer denotar rupturas com a Modernidade, ou mesmo que estaríamos nos encaminhando para uma ‘nova’ fase, levados por uma trajetória do desenvolvimento social que estaria nos tirando das instituições da Modernidade, em direção a um novo e diferente tipo de ordem social. 2 Para Giddens (1991) tal disposição não encontra justificativas, nem existiriam razões para tal proposição. Segundo ele, apesar do sentimento de se estar vivendo um período de nítida disparidade em relação ao passado, quase todos os elementos justificadores utilizados pelos proponentes da idéia da "pós-modernidade", tais como, a crise dos fundamentos das certezas e o advento do niilismo; a destituição teleológica da história ; a nova agenda social e política; o império das tecnologias frias mas; a globalização e etc, poderiam ser concebidos, muito mais, como uma radicalização da Modernidade, do que como uma ruptura com ela. Ou seja, a Modernidade sempre esteve prenhe destes elementos, desde as suas origens e tal ordem de produção social da experiência contemporânea seria apenas um movimento de "entender-se a si mesma" ou "entender-se consigo mesma". Esta distinção entre a superação da Modernidade pela Pós-Modernidade versus uma compreensão do contemporâneo como o seu "esticamento" tem conseqüências e marca uma diferença na apreciação feita pelos desdobramentos teóricos e movimentos filosóficos que têm buscado analisar uma série de fenômenos sociais em curso. Concordando com este autor, tenderíamos a ver na intensidade dos esforços teóricos "desconstruintes", propostos por certas leituras que intensificam a denuncia das ilusões iluministas presentes nas idéias da fundamentação lógica e racional, no ideal de progresso, no universalismo, no racionalismo, etc, como uma espécie de "efeito da curvatura da vara". Ou seja, numa forma de exorcismo no âmbito da racionalidade das expectativas excessivas que foram debitadas na conta da razão. E não raramente, elas nos parecem marcadas por uma espécie de ressentimento, de frustração em relação à impossibilidade do cumprimento do que se supunha ser uma promessa infalível. Afinal, como comenta Giddens, o "desacreditar", o "colocar em questão" foi a mola mestra propulsora da constituição da Modernidade no afrontamento das verdades preestabelecidas e dos dogmas, mas é perfeitamente compreensível que a defesa do total desagrilhoamento da razão, feita pelo iluminismo, apenas "remodelasse" a idéia do "divino providencial" enquanto fonte das certezas, ao invés de removê-la completamente e que, de certa maneira, 3 um tipo de certeza (divina) fosse substituída por outra (dos sentidos, da observação empírica), mas deixando, entretanto, inoculado neste projeto, desde as suas origens, o germe do "niilismo" que ora teria encontrado as condições do seu mais completo afloramento e seria tomado como indício de uma outra coisa que ele não é... Na busca de um pensamento que evitasse este tipo de "ressentimento" e que, ao mesmo tempo, pudesse ser potente para orientar uma ação é que pensamos ser interessante, numa reflexão sobre os "valores-suportes" da nossa sociabilidade, empreendermos uma aproximação monográfica em direção ao autor de "A Instituição Imaginária da Sociedade". Para Castoriadis(1986) nada do que é "social", escapa a essa condição de criação humana, principalmente os sistemas filosóficos e os seus conteúdos do pensamento que, segundo ele, são meras instituições sociais com o seu poder de "verdade" estabelecido relativamente às demais instituições sociais que constituem uma dada sociedade como tal. Também Castoriadis (1992) parte da recusa da designação da "pós-modernidade" - ao seu ver um verdadeiro "disparate" - para, problematizando a própria noção de Modernidade e as leituras interpretativas que dela fazem Foucault (a Modernidade como referência a Kant) e Habermas (a Modernidade como referência a Hegel ), propor uma periodização "alternativa" do processo de "desenvolvimento" do ocidente. Tal periodização seria baseada na distinção das especificidades "das significações imaginárias, que o dominam (o período) e que por ele foram criadas", bem como, nas suas vinculações com as significações relativas ao projeto da autonomia (social e individual), noção esta central para o autor como o elemento mais caráterístico e definidor da especificidade fundadora do ocidente. Nesta periodização, que aqui será caricaturalmente apresentada, a emergência (e constituição) do ocidente, enquanto tal (ou seja, a especificação cultural do projeto do ocidente) compreenderia os séculos XII até ao começo do século XVIII, período que seria marcado principalmente pelo ressurgimento desse projeto da autonomia social e individual, após um eclipse de cerca de quinze séculos no qual ele teria ficado sufocado pela "verdadeira" Idade Média. 4 Como período seguinte, definido como "crítico" ou Moderno, ele propõe considerar a virada do século XVIII até aos anos 50 no pós-guerra, caráterizando-o principalmente pelo advento do Capitalismo - nova realidade social-econômica, em si mesma um ''fato social total"- que encarnaria a significação imaginária social da expansão ilimitada da "maestria racional" ou do domínio da razão. Este período seria marcado também pelo encontro e pela complexificação derivada do mesmo - o autor prefere dizer pela contaminação mútua e pelo emaranhamento - das duas significações imaginárias : a da autonomia social e individual de um lado, e do outro, a significação da expansão ilimitada do "domínio racional”. Dos anos 50 até aos os fins dos anos 80 - momento de elaboração do texto que ora tomamos como referência mas que, presumivelmente, poderíamos dizer até o presente momento - o autor designaria como o período da "retração no conformismo" caráterizado pelo acerto de contas com as ilusões destiladas no período anterior, representado principalmente pela guerra, pela derrocada do movimento operário e pelo declínio da mitologia do progresso. A atrofia da imaginação política, a glorificação do "pensamento fraco" (pensiero debole), da impotência e da impossibilidade; as colagens, teóricas e artísticas recicladoras da produção do período anterior atestam, na sua visão, caráterísticas derivadas de uma certa pusilanimidade política e intelectual que, de um lado, recusa e ignora o desafio do enfrentamento do agravamento da crise social que mantém a fartura e a riqueza do bloco dos países desenvolvidos e das suas elites ao preço da miséria de dois terços da humanidade, e, de outro lado, no plano do pensamento, mantém fidelidades ao "intelectualmente instituído" e se recusa a enfrentar a ruptura com "a clausura da metafísica greco-ocidental". A evocação desta periodização proposta por Castoriadis faz pouco sentido aqui como um debate acerca das interpretações canônicas sobre a melhor denominação para designar a experiência social contemporânea e tem como seu maior sentido a busca da identificação de uma linha de pensamento possível que compreenda as nossas produções contemporâneas, como derivadas do projeto específico da modernidade ocidental A Modernidade, enquanto experiência social temporal, conforme já comentamos, esteve marcada pelo encontro e pela complexificação derivada do mesmo, entre as significações imaginárias da autonomia social 5 e individual e da expansão ilimitada do "domínio racional" . Não temos espaço para reproduzirmos aqui toda a análise castoriadiana, desenvolvemos a potencialidade analítica resultante desta simples (apenas na aparência) indicação acerca dos efeitos das "contaminações recíprocas" operadas entre estes dois traços. Entretanto, chamando à atenção para o fato da sua importância e fundamentalidade e, crendo serem esses dois traços imediatamente reconhecíveis como capazes de representar um registro do caráter essencial da época, gostaríamos de reter apenas o caráter de tensão e oposição que marca o seu relacionamento no quadro do advento e desenvolvimento do capitalismo. De certo modo, esta tensão e oposição foram os responsáveis pelo sabor e pela dinâmica social imprimida à Modernidade. Como comenta Castoriadis (1992 p.22/23), "a expressão efetiva dessa tensão acha-se na manifestação e na persistência do conflito social e ideológico... e esse conflito foi, em si mesmo, a força motriz central do desenvolvimento dinâmico da sociedade ocidental durante essa época, e a condição sine qua non da expansão do capitalismo e da limitação das irracionalidades da "racionalização" capitalista. Foi uma sociedade turbulenta - turbulenta realmente, intelectual e espiritualmente, - que constituiu o meio favorável à febril criação cultural e artística da época "moderna". Como desenvolveremos melhor na segunda parte deste texto quando tratarmos da análise específica da questão da "igualdade e o imaginário social", a "auto-contestação" da sociedade", a sua condição de unidade sempre dilacerada pela oposição interna, a admissibilidade de um espaço ilimitado para a crítica de toda e qualquer das/entre as instituições sociais, possibilita na Modernidade a produção de instituições sistematicamente relativas em seu poder e sua autoridade, sobretudo se comparadas às sociedades que lhe antecederam. Como conseqüência, o efeito coletivizador das instituições na conformação dos modos de ser, dos modos de relacionamento entre os sujeitos, pela primeira vez na história das sociedades humanas terão a sua força e preponderância relativizadas em beneficio destes enquanto uma categoria, a dos indivíduos. Nenhuma instituição prevalecerá para sempre sobre a "opinião pública" que acerca dela se construa, e a opinião pública é algo 6 que poderá ser constituída numa ordem de variância que comportará, legitimamente, como o seu máximo limite a sua auto-destituição, a sua destruição. O fim da existência das instituições, enquanto tais, está inscrito como uma possibilidade política legítima, o que as leva sempre a serem tomadas como relativas, colocando-se sempre em questão os interesses que sustentam a sua existência como tal. Tal panorama viabilizaria um lugar e uma possibilidade até então inimagináveis para o desenvolvimento da "autonomia" individual e social, o qual, a partir da sua conjugação com o paradigma da racionalização como meio idôneo para definição dos enquadres institucionais, funda e refunda, do ponto de vista prático, insistentemente, os padrões de sociabilidade e a ética que deveria regulá-los. Mas, mesmo se estranha e problemática para a experiência dos sujeitos sociais concretos, se tal possibilidade ocorre, ela é fruto de um certo querer político dessa sociedade. Tal como pensa Castoriadis, e vamos explorar mais adiante neste texto, a elisão de que a nossa sociedade é fruto de um querer político (interno a ela) e de que, as suas dificuldades, enquanto sociedade específica, decorrem deste querer político que a especifica como esta sociedade e não outra qualquer, ao assinalá-la com um caráter heteronômico, a faz buscar alhures os sentidos e significações dos seus problemas, buscar em bases que se colocam num lugar de exterioridade a essa própria sociedade, de exterioridade em relação a esse próprio querer político. Este poderia ser o caso das "complicações" derivativas relacionadas àquelas significações imaginárias sociais que se especificaram como elementos dos mais focais da produção ocidental da Modernidade - ao mesmo tempo em que a tornaram possível (a Modernidade como tal). E que, por seu intermédio, se reificaram em "institutos" e valores, fazendo-se acompanhar de novas atitudes psíquicas, mentais, intelectuais, artísticas, de uma nova concepção da política - que, autonomizadas e naturalizadas como lugar comum, filosófico e político dessa mesma sociedade, orientam, ainda hoje, com intenso vigor, a nossa instituição da sociedade. Estamos nos referindo à centralidade das noções, das significações imaginárias 7 sociais, da Igualdade, Liberdade e Fraternidade, enquanto uma produção gestada e parida nesta conjuntura, bem como, ao seu caráter totalizador. E também, por conseqüência, às profundas contradições que a sua adoção concomitante - as três tomadas a um só tempo como uma espécie de trindade indivisível - nos coloca enquanto um desafio para a edificação social. De certa maneira, entendemos que todo o pensamento em torno da questão da produção contemporânea da sociabilidade, da fatría , da filía, e toda a questão que envolve também por conseqüência o seu contrário, (a violência, o ódio, o racismo) só poderá encontrar linha de desenvolvimento elucidador se analisado o caráter contraditório, e de certo modo aprisionador, que resulta deste tipo da herança totalizadora e contraditória, com a qual esta trindade nos constitui originariamente, a partir da sua condição de significações imaginárias* - originárias, mas ainda plenamente vigentes - como a sociedade e a cultura ocidental que somos. Cultura e sociedade ocidental que somos, que fica muito aquém dos "ideais de ser" que ela mesma se colocou, mas em tomo dos quais ela "gosta", "prefere", se imaginar "sendo"... Uma sociedade que se colocou objetivos que são, de certa maneira, muito improváveis, senão impossíveis, dado a qualidade de contradição que ela fez introduzir como projeto de sua existência mesma, na construção interior destes seus ideais. Uma sociedade que, por sua vez, aparentemente, não se dispõem a abrir mão destas significações imaginárias constituintes (pelas conseqüências políticas daí advindas...) que não poderia ser, sem elas, uma outra sociedade, por mais que na prática os ideais que estas significações representem sejam cotidianamente "derrotados" enquanto experiência social concreta. Nessa criação do mundo, implicada na instituição de cada sociedade, de uma forma ou de outra, a existência das "unidades humanas" e de "coletividades de humanos", sempre encontra lugar. O aprisionamento relativo do nosso pensamento, em relação às contradições do ideário iluminista, no que se refere ao relacionamento com a alteridade - seja esse "outro" um "outro" de "amor" ou de "desamor", seja este "outro" uma unidade individual humana, 8 seja uma coletividade definida por raça ou religião - está inelutavelmente vinculado e implicado com essa trindade da "liberdade, igualdade, fraternidade" e todas as contradições que o desenvolvimento particular e especifico de cada um destes mandamentos sociais implica para o par não considerado. Isso porque, dentre as instituições criadas, produzidas por uma "sociedade que se institui" ao lado das "representações", "valores", figura como elemento central a instituição dos respectivos "sujeitos sociais" coetâneos a essas significações, que "recobrirão" e definirão, por assim dizer, os indivíduos concretos, empírica e naturalmente dados, bem como os conjuntos e subconjuntos por eles formados. E é exatamente sobre esses indivíduos concretos, empírica e naturalmente dados, que tais significações devem operar, fazendo converter prescritivamente em atributos e circustancialidade, essas significações imaginárias da liberdade, igualdade, fraternidade. A nova sociedade projetada emblematicamente como um "projeto de ocidente" pela Revolução Francesa, se não limitarmos a idéia de revolução àqueles acontecimentos históricos magistrais passados na França ao ocaso do século XVII, tem como seu fulcro a idealização de uma nova "humanidade" composta por sujeitos sociais, pensados, (idealizados no pensamento) segundo certos ideais racionais, que representam muito mais expectativa do seu vir a ser do que se comprometem efetivamente com os precedentes da matéria humana, social e psíquica. Prescrita como a sociedade dos sujeitos individualizados da liberdade, da igualdade e da fraternidade que ao mesmo tempo devem mover-se no ambiente social resultante do encontro entre a significação da autonomia e da maestria racional (esse modelo de sujeito social, ele próprio uma expressão do relativo triunfo desse conúbio) elevam-se potencialmente o grau de contradições que esse sistema social deve suportar, e que, acreditamos, faz incidir alto grau de complexificação para a sociabilidade por ele produzida. Para exemplificar este tipo de efeito, tomaremos para reflexão o tema do desenvolvimento do valor da igualdade e de como ele se construiu e se situa no nosso imaginário social, sempre referenciado no cotejamento de algumas obras do filósofo Castoriadis. 9 II - O valor da Igualdade e o imaginário social É pelo seu reverso que o tema da "Igualdade" se introduz enquanto questão teórica no horizonte intelectual ocidental moderno. Pelo menos, se quisermos considerar como tal, o "Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens" de autoria do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, surgido em 1753, em resposta ao concurso proposto pela Academia de DiJon e do qual, não foi ele o vencedor. Não que este tipo de temática não já estivesse estado presente nas reflexões de outros filósofos contemporâneos seus ou que lhe antecederam, mas certamente pela conjuntura em que o mesmo se produziu, pela divulgação e notoriedade que assumiu e principalmente pela "radicalidade" (para a época) de sua inflexão e dos pontos de vista defendidos, assim poderíamos considerá-lo. Precursor excepcional da relevância crescente que essa temática iria adquirir nos séculos seguintes, inspirador teórico e prático de pensadores e ativistas que lhe sucederam e sobretudo, prenhe de alguns dos signos fundamentais e ordenadores da presença do debate sobre a questão da Igualdade desde aquela época até aos nossos dias, neste Discurso, Rousseau, distinguindo entre as desigualdades físicas e as desigualdades "morais" ou políticas, propõe-se a tratar das segundas, postulando uma linha progressiva para o seu desenvolvimento entre os homens. De que se trata precisamente esse discurso?, interroga de início Rousseau (1967, p.l69) para, em seguida, responder que o mesmo pretendia ocupar-se em marcar "no progresso das coisas, o momento em que o direito, sucedendo à violência, submeteu à natureza à lei e explicou porque encadeamentos de prodígios pode o forte se resolver a servir o fraco e o povo a obter um repouso, em projeto, pelo preço de uma felicidade real" Não é mais como um produto da desigual atenção de Deus para com a sorte dos indivíduos, assim como resultante de uma predestinação, mas sim como fruto da institucionalização histórica da vida em sociedade que a desigualdade será concebida por Rousseau. Produto, portanto, da história e da política... 10 E no "progresso das coisas", ele assinalaria como o primeiro termo fundamental do estabelecimento da desigualdade entre os homens, a constituição da lei e do direito à propriedade. "O homem que primeiro cercou um terreno e atreveu-se a dizer: isso me pertence", encontrou ingênuos que o acreditaram. Foi este homem o verdadeiro fundador da sociedade civil.."(Rousseau, 1967, p.170)". Como segundo termo, Rousseau aponta a instituição da Magistratura surgida, segundo ele, como uma exigência derivada do direito de propriedade ou da necessidade da sua regulação, tornando-se depois num elemento importante para o futuro surgimento do Estado: - "Destruíram para sempre a liberdade natural, fundaram para a eternidade a lei da propriedade e da desigualdade, e assim de uma hábil usurpação, fIzeram um direito irrevogável, e para o proveito de alguns ambiciosos..."(Rousseau, 1967, p. 173). E para concluir este "edifício" desigualizador dos homens, Rousseau responsabilizaria como seu terceiro e último termo "a conversão do poder legítimo em poder arbitrário", numa clara alusão a uma inevitável apropriação do poder político do Estado, pelos detentores do poder econômico. Subjacente a esta concepção progressiva do desenvolvimento da desigualdade social e política entre os homens, encontravam-se presentes algumas idéias que, pela primeira vez reunidas, inauguram e esboçam a forma através da qual um certo ideário da igualdade emergiria e se inscreveria no "imaginário social" daí por diante. A primeira delas, de ordem mítica, incorporada por quase todas as teorizações posteriores sobre este tema, inclusive o marxismo, afirma o pressuposto da existência de uma primeva condição de igualdade natural. Espécie de "fundamento metafísico" dessa igualdade ancestral. A Natureza é evocada como "mãe" do que seria este igualitarismo primitivo, representação do Edem adâmico, do qual o homem teria sido expulso, após a "perda da inocência" em relação à propriedade. A segunda idéia, uma espécie de corolário desta primeira, refere-se à hipótese de que tal "primeva igualdade" teria sido subvertida pela institucionalização entre os homens de formas "anti-naturais" de vida societária, representadas pelo estabelecimento de desiguais relações de poder frente à Natureza por alguns indivíduos, com o consentimento ou com a subjugação 11 dos outros. De certa forma a desigualização presente representaria as resultantes destes "equívocos" originários na organização da vida social. E finalmente uma terceira idéia pressuporia que, sendo baseada na política - enquanto "dosagem" entre persuasão e força - esta desigualdade "anti-natural" seria passível de remoção, numa reposição daquela condição originária da igualdade primitiva perdida, que deveria ser promovida por aqueles que não a parte benefIciada pela desigualdade. Ainda que se aproximando de uma certa concepção simplista da questão, a qual os séculos seguintes se encarregariam de complexificar, no plano do debate teórico, achamos que, sem exageros, tal ideário corresponderia em seu simplíssimo, à forma como tal questão ficaria inscrita, a partir daí, no "imaginário social" ocidental, operando como uma espécie de "núcleo central" da racionalidade inspiradora e justifIcadora dos "movimentos" que historicamente se construíram em tomo dessa exigência de igualdade social e política entre os homens. Resumindo de uma forma um tanto caricata, esse núcleo inspirador e justifIcador dessa exigência tal como ela veio se colocando em sucessivos movimentos sociais, poderia assim ser formulado: - Se um dia "fomos iguais", se em função de certas institucionalizações da vida social "perdemos" esta igualdade, então é plausível e possível "reavê-la", "reconquistála", bastando para tal lograrmos uma alteração das regras da "instituição da sociedade" de maneira que a "nova" sociedade, daí surgida, seja em seu caráter intrínseco, prescritora e geradora de relações sociais igualizadoras... E se esta percepção é procedente, ainda que caricata, ela enseja, entre as várias discussões possíveis colocadas por esta "racionalidade", uma que diz respeito às postulações acerca dos fundamentos justificadores da exigência da igualdade. Torna-se assim útil ao debate interrogar, de fato, como tem sido fundamentada historicamente esta exigência. Como foi a sua justificação construída? Através de quais argumentos pretenderia ela se sustentar? Parece existir algo racionalmente plausível e politicamente palatável, além de 12 psicologicamente bastante sedutor, na idéia de que um objetivo ou uma ação operante no "presente" possa estar visando "apenas" uma mera "reposição" de uma situação "ideal" ou do "passado" que, por algum motivo, tenha sido "desvirtuada" em sua antiga ordem "natural". Mais atrativo torna-se ainda este movimento quando esta "reposição" implica na "evolução" de benefícios aos que foram "prejudicados" pela usurpação daqueles "direitos preteridos". Perspectiva sem dúvida carente de fundamentos históricos, mas de grande alcance tático no campo da política pelos seus efeitos subjetivos... Dessa forma, poderíamos pensar que de per si essa mera formulação da existência de uma pretérita igualdade "usurpada", poderia constituir-se num móvel bastante suficiente para acionar as massas dos desiguais "menos iguais do que os outros" a movimentarem-se politicamente em direção às ações que visassem "apenas" o restabelecimento da antiga ordem perdida. Entretanto, essa igualdade primitiva, bem como a sua reposição, agora pleiteada, carecem ambas de encontrarem os "fundamentos" capazes de justificarem as suas exigências... Fundamentos que devem ser sólidos, na medida em que, através deles, é que serão confrontados aqueles interesses e privilégios dos que usufruem dos eventuais benefícios resultantes destas situações sociais de desigualdade. Segundo Castoriadis (1897A, p.318), a resposta historicamente construída e oferecida a essa questão recorreu sistematicamente a "Deus, Natureza e Razão - sucessivamente introduzidos como seres, entes supremos e paradigmáticos", fundamentos metafísicos recorridos e exibidos pela tradição filosófica grego-ocidental - por ele denominada como a "ontologia herdada” - como capazes de justificar a formulação dessa exigência de igualdade entre os homens. E acrescenta que estes fundamentos vêm, na atualidade, mostrando-se insuficientes e insustentáveis, razão pela qual já não tem sido tão explicitamente invocados, deixando, entretanto, a sua ausência um importante vazio, caracterizador de uma certa omissão intelectual - referida por ele como "uma pusilanimidade filosófica" - presente nas atitudes em relação ao debate deste tema, mas igualmente extensiva a toda a discussão contemporânea dos direitos humanos. 13 E, de fato, na atual conjuntura da Modernidade, percebe-se que argumentos tais como, "a vontade de Deus que nos criou a todos iguais" ou "somos iguais por natureza", ou ainda, "a razão é que exige que.." são cada vez menos solicitados enquanto justificativas dessa exigência, seja pela sua fragilidade ou pela ambigüidade que lhes caracteriza, bastando, segundo Castoriadis, apenas algum "deslizamento" lógico ou acrescentar alguma premissa oculta a mais para se derivar deles, quer a defesa da igualdade, quer a do seu contrário. Segundo este autor, esse "modelo" de fundamentação da necessidade da igualdade política e social entre os homens, colocado nestas bases metafísicas e "extra-sociais" tais como ''tese religiosa", ''tese científica" ou ''tese filosófica", somente indicam e revelam, num outro plano, um sério problema teórico, de grande gravidade, que se refere ao próprio modo utilizado pela "ontologia herdada", para conceber o processo de criação e instituição da sociedade, marcado por uma perspectiva heteronômica de sua instituição, que busca alhures as sua razões de ser o que ela é. É que, para ele, faz parte dessa tradição ter-se constituído exatamente, a partir da "ocultação" do fato e do papel decisivo, em que se constituí a "criação" e o "imaginário social" no processo de produção da Sociedade e da sua ação na História. Ou seja, na ocultação do fato de que a Sociedade se constitua como uma invenção humana; que ela seja "auto-criada" e que a História seja apenas e fundamentalmente criação: "criação de formas totais de vida humana". E que, nesta perspectiva, não deva ser pensada como "movidas", nem como "determinadas" por leis naturais ou históricas, conforme correntemente postula a tradição do pensamento filosófica, mas sim posta como resultante autonômico de cada experiência social-histórica singular. ( Castoriadis, 19873 p.322) Assim portanto, considerada a Sociedade como esta auto-criação incessante, estaria a mesma enquanto tal, conduzida a uma produção de significações que são, em última instância, "auto-referidas" ou "auto referentes". Ou seja, significações que não são justificáveis exceto enquanto remetidas ao próprio processo de auto-instituição da sociedade que as tenha produzido enquanto uma "significação" que conta, que faz sentido, em seu interior. 14 Importante conclusão derivada daí, atinente ao problema que estamos tratando neste texto, seria que a idéia e o valor da existência de uma igualdade social e política substantiva dos indivíduos, não seja (e nem possa ser) encontrada para além dos valores de uma Sociedade, que previamente lhes tenha formulado enquanto tal, e lhe inscrito no seu "imaginário social": lugar a partir do qual poderá ser reconhecida pelos membros desta mesma sociedade como um valor "seu". Desta maneira, seria pouco recomendável e infrutífero que se vá buscar a sua "confirmação" a partir de teses "científicas", "filosóficas" ou "religiosas" como se fossem distintos os processos de auto-criação através dos quais a sociedade produz "uns" e "outros". Ou seja, como se fossem distintos os processos que produzem significações imaginárias sociais, daqueles que possibilitam também a produção tanto de um discurso político que exige a igualdade, quanto de um discurso filosófico ou científico que lhe afirme como um valor transcendental ou universal, respectivamente. Para Castoriadis (1987a, p.324), a exigência da igualdade, tal como nós, os ocidentais europocêntricos, a construímos em nosso processo histórico-social, trata-se de uma "significação imaginária social" e mais exatamente de "uma idéia e um querer político que envolve a instituição da Sociedade enquanto comunidade política", ao que, concordando com ele, acrescentamos que tal condição, longe de diminuirlhe a legitimidade e dignidade políticas enquanto reivindicação, apenas nos faz localizá-la e devolvê-la ao âmbito que lhe é próprio (o da vontade política). Âmbito do qual, aliás, ela só se encontra fora, quando justificada na "antologia herdada" como uma espécie de derivação ou dedução de postulados teológicos, filosóficos ou científicos. E, tendo sido justamente entre os europeus contemporâneos (e ao referir-se ao europeu, Castoriadis não pretende aludir a qualquer expressão de graduação civilizatória) que esta significação imaginária social tenha emergido, tenha sido "criada", singularizando-a enquanto cultura (e por extensão as áreas do globo cobertas pela sua influência) torna-se , segundo ele, mais absurda ainda buscar "fundar" essa exigência de igualdade, em qualquer sentido do termo, pois, segundo Castoriadis (1987a, p.325), é exatamente ela, essa exigência de igualdade, que funda este homem europeu enquanto tal, que lhe especifica enquanto 15 "sociedade política". E o fato de que assim seja, que a história tenha "produzido" numa sociedade, no caso a européia, tal significação imaginária social da igualdade entre os homens enquanto uma exigência sua, constitui-se, para Castoriadis(1987a,p.324), de "per si" o êxito do improvável: o êxito "de uma imensa improbabilidade histórica". Pois que, ''uma instituição da sociedade" que seja instituição da desigualdade atenderia muito mais às exigências da economia psíquica do indivíduo humano, do que aquelas que se reivindicam da igualdade. E tal tese baseia-se nas sua investigações sobre a natureza narcísica do o núcleo psíquico que originariamente nos constitui, o qual segundo ele "desejaria sempre ser... onipotente e centro do mundo". O que, não sendo realizável encontraria o ser simulacro no exercício do "pequeno poder" e "centralidade relativa a um pequeno universo", cujo patrocínio pela sociedade se daria através da forma de hierarquia social e da desigualdade. Tal hipótese, baseia-se na concepção de que este núcleo psíquico originário, a mônada psíquica, seja por definição constuitiva e originária, anti-social e solipsista, auto-referente e narcísica e que somente abra mão deste "prazer" de tudo reportar a si mesma em função das conseqüências funestas que poderiam advir a si própria, a suas possibilidades de expressão e ao seu suporte vivente no caso da persistência nessa direção suicida, já que não patrocinável pela cultura. Desviada dessa exigência originária, seria através da fabricação social do indivíduo, onde as mediações propiciadas pela criação "da" e "na" sociedade dessa "instituição" do indivíduo, que parcialmente lhe garantindo satisfação e sobrevivência, possibilita a mônada psíquica encontrar a sua "viabilidade" através da assimilação de outros sentidos e de "sentidos outros" para o seu existir. Estes sentidos são aqueles oferecidos no repertório de significações imaginárias sociais disponíveis nessa sociedade na qual a mônada psíquica é "humanizada" através da assimilação da forma de um "indivíduo social". Desejosa de ser a referência "de tudo" e "de tudo" poder, a mônada psíquica se contentará então, em ser a referência "de algo” e "de algo" poder, numa espécie de barganha com a Sociedade, a qual, por sua vez, em troca do seu "enformamento" enquanto indivíduo social, viabilizaria-lhe a sobrevivência e possibilidade de expressão. 16 Numa aproximação com as teses antropológicas defendidas por Louis Dumont (1985), por uma via teórica absolutamente diferenciada, também para Castoriadis, a hierarquia social e as desigualdades dos mais diversos quilates seriam, desta forma, mais propícios a esta economia psíquica narcísica monádica na medida em que funcionariam como espécie de substitutivo da auto referência e daquela onipotência total originária do modo de ser monádico, de onde derivaria uma idéia de que, talvez as exigências de desigualdades sociais fossem mais adequadas, próprias a este modelo de psiquismo, ou, no mínimo, "menos contraditórias" aos interesses monádicos tornados economia psíquica dos indivíduos sociais. No mínimo, mais prováveis... A despeito da sua improbabilidade histórica e psíquica, entretanto a exigência de uma igualdade aconteceu entre nós, os ocidentais, e tem representado um "meta-fato" enquanto "inspirador" há séculos, das lutas sociais e políticas dos países europeus e do seu processo de auto-transformação", conclui Castoriadis. Desta maneira poderíamos afirmar, que, em última instância, exigimos a igualdade porque o queremos assim! E o queremos assim porque a sociedade que nos "fabricou" enquanto indivíduos, o faz de tal forma, que trazemos em nós, mesmo que eventualmente "contrariados" psiquicamente, o sentimento da "legitimidade social" deste querer. E isso também porque, como já foi dito, dotados todos os seres humanos da psique enquanto imaginação radical, esta só pode manifestar-se e mesmo sobreviver" se a forma do indivíduo social lhe for imposta" . Mas esta "imposição", através do compartilhamento das "significações imaginárias sociais" que formata como indivíduos sociais a uma psique que é por natureza a-social, implica também na assimilação de uma problemática representação das origens da instituição da sociedade posta como fora da nossa sociedade, constituindo-se a fonte da heteronomia que nos caracteriza e a qual já nos referimos. Alienadamente, a sociedade é percebida como uma criação originada "nos deuses, em Deus, nos ancestrais, nas leis da natureza, nas leis da razão, nas leis da história", tudo menos em nossa própria ação criadora (Castoriadis, 19878, p.322). Seria em função deste caráter heteronômico que impera em nossa sociedade, que oculta a verdade "elementar" da auto-criação enquanto processo-mor de instituição da 17 sociedade, ao mesmo tempo em que "impõe" aos indivíduos uma representação de que este processo, o da feitura das leis, que são instituídas através do mesmo , independem de si próprio enquanto indivíduo social, que, quando se trata de justificar as exigências institucionalizadas na sociedade, apela-se aos recursos da fundamentação metafísica, apoiadas em bases "extra-sociais", como temos questionado neste caso. A própria "invenção" propagação e assimilação pelo “imaginário social” desta mitologia antropológica, que afirma a existência de uma primeira igualdade natural entre os homens, seria pensada como tendo as suas fontes nas "significações imaginárias sociais" oriundas de um "imaginário radical" particular que nos institui enquanto civilização ocidental, a partir do século XIV. Imaginário radical que encontra sua maturação exponencial no questionamento instituínte que com vigor sacode a instituição da sociedade européia no século XVIII, momento no qual pode ser localizada a emergência do discurso "Rousseauniano". “Significações imaginárias, as quais implicam a adoção de novas atitudes, valores, normas. Uma "nova definição social da realidade e do ser, daquilo que conta e daquilo que não conta, entre as quais se inclui, ineditamente em tal proporção, a própria possibilidade do autoquestionamento. da instituição da Sociedade”. Aqui, retomando novamente ao Discurso de Rousseau com o qual iniciamos este texto, encontramos a presença de alguns elementos que prenunciam os recortes que caracterizariam a crise deste "imaginário social", agudizada contemporaneamente. Igualmente antecipatório, Rousseau, ao articular neste discurso, a denúncia da propriedade como parte das desigualdades, ao papel do Estado enquanto seu regulador e a fatal degenerescência do mesmo pela usurpação arbitrária e burocrático do seu poder pelas elites, anteviu e profetizou a "plutocracia democrática", que viria a dominar no futuro. Problematizando de forma bastante antecipada os limites do projeto da Democracia, ao evidenciar as suas potencialidades de instrumental do poder "desigualizador", Rousseau - ao afirmar que "a revolta que termina por estrangular ou destronar um sultão é um ato tão jurídico como aqueles, pelos quais ele dispunha na véspera das vidas e dos bens dos seus 18 súditos" (Rousseau1967,p175) - oferece à "violência recíproca" dos dominados, o status de legitimidade filosófica e política que até então lhe esteve ausente. E de certa forma, sanciona mesmo que apenas do ponto de vista intelectual, o "conflito" enquanto possibilidade e mesmo enquanto modo de relação, entre o indivíduo e/ou coletividades e a "instituição da sociedade" em que se inserem. De fato, como sugere Castoriadis, e já tratamos rapidamente na primeira parte do texto, uma diferença fundamental marca o modo de relação entre os indivíduos e coletividades com a "instituição da sociedade" no interior do Capitalismo, quando comparamos com a relação estabelecidas pelos sujeitos sociais e instituições sociais das sociedades que lhe antecederam, marcadas por estratificações "menos contraditórias" do que as atuais, sob o formato das classes sociais próprias do capitalismo (Castoriadis,1982p186). É que, pela primeira vez, a própria estratificação, ao fazer preponderar quase exclusivamente o critério econômico "estrito senso" em sua definição destes grupamentos sociais específicos, favorece sobre maneira que, não mais sob forma episódica de eventuais revoltas e protestos, a contestação ganhe, a partir dos antagonismos destes objetivos econômicos das classes sociais, os contornos de uma oposição sistemática , no interior da própria "instituição da sociedade", na qual elas se manifestam. E com tal intensidade, que passa a constituir-se este fenômeno, em um dos elementos fundantes do próprio "modo de ser" destas sociedades, especificando-as. (Castoriadis,1982 p.178). E será esta vulnerabilidade da "adesão" dos indivíduos à instituição da sociedade em que vivem, consubstanciada na luta de classes concomitante ao aparecimento das mesmas, o elemento que, pensamos, abrirá uma nova fase na existência das sociedades : a fase das sociedades históricas "propriamente ditas". Ou seja, sociedades nas quais o questionamento instituínte em permanência não reconhece domínios preservados contra a sua ação. Nas quais nenhuma "perenidade" é garantida a qualquer instituição. Deste modo, o que fora até então, essa espécie de "reabsorção imediata das coletividades em suas instituições; simples sujeição dos homens as suas criações imaginárias, unidade que só 19 marginalmente era perturbada pelo desvio ou inftação" (Castoriadis1982 p187), assume a partir da versão capitalista de igualdade/desigualdade materializadas nos antagonismos de classe as feições de ''uma totalidade dilacerada e conflitual, “autocontestação da sociedade”, emergência inusitada da possibilidade inesgotável da crítica, recusa, oposição à instituição da Sociedade, não escapando a ação deste movimento nenhuma das unidades micro ou macro, que a constituem: grupos, códigos, agências, saber, ética, etc. E pensamos que seria exatamente na combinação destas duas "significações imaginárias sociais" - a da exigência da igualdade entre os homens e a da legitimidade da crítica, recusa, oposição, contestação dos elementos discordantes "na" e "da" instituição da sociedade, que encontraremos a reflexão filosófica e preocupação política constituintes do traço mais marcante da especificidade da experiência social de nossa época. Hipotetizando que em uma sociedade estivesse presente uma significação imaginária social do tipo da "exigência formal de igualdade entre os seus membros", como é o nosso caso, mas que não incluísse em seu imaginário social de forma igualmente radical a possibilidade de oposição/contestação à instituição da sociedade, a primeira certamente não causaria a repercussão e os efeitos que conseguem nos surpreender no caso da civilização do ocidente. Desta forma, não existe para nós a possibilidade de uma reflexão teórica "neutra" acerca dessa questão da igualdade, pois a mesma encontra-se historicamente "onerada" por pré definições que encadeando "verdades teóricas" a "ações práticas" mais respondem ao que queremos politicamente do que supostamente "esclarecem" ou "fundamentam" uma verdade "essencial" sobre ela, ou sobre as suas possibilidades práticas de se estabelecer como "diretriz" de ordenamento da vida social. Por outro lado, combinadas como força motriz de um querer e de uma ação, ambos políticos, estas duas significações imaginárias sociais, quando confrontadas com as bases da produção/reprodução materiais da vida social, remete-nos ao elemento fundante da talvez "principal" crise no imaginário social contemporâneo. Crise, que tal como a Esfinge, aprisiona no seu enigma e devora/consome significativa parcela dos investimentos políticos e/ou teórico-filosóficos na decifração de sua contradição: a afirmação da utopia, anunciada 20 enquanto possibilidade, por via da ação política do retomo à condição de igualdade entre os homens - reposição daquela condição imaginária mítica da primeva igualdade natural entre os homens - e por outro lado, o movimento prático e incessante da produção e reprodução de desigualdade/desigualização, inerentes ao modo de produção capitalista, ao "liberar" e "individualizar" os "sujeitos econômicos" nos processos coletivos de produção/ reprodução global da existência social. Ao produzir esta inusitada "individualização" dos sujeitos econômicos, sejam eles "força de trabalho" ou "capital investido", e, ao introduzir a sua "liberação", reivindicação da mais completa liberdade - liberdade da pessoa, condição do assalariamento; liberdade do espírito, condição da pesquisa, descobertas técnico-científicas ; liberdade dos bens, condição de sua mais ampla mobilidade - o capitalismo inscreve-os também no mesmo imaginário social, onde se faz a inscrição da exigência de igualdade e da legitimidade da contestação instituínte. Individualidade e Liberdade fomentadores das desigualizações e da impossibilidade da "administração", com base na racionalidade igualizadora, da instituição da sociedade. Contestação instituínte da "instituição da sociedade" a exigir a re-produção de igualdade, enquanto utopia política, acalentada pela ilusão de um retomo a um Edem mítico existente sem nunca ter existido... E o sucesso na ação política, como o único critério de verdade, a legitimar a uns e a outros na sucessão de conjunturas que, neste fim de século, marcam esta crise no imaginário social contemporâneo e coloca em questão, na forma pratica da sociabilidade os atributos e as circunstancialidades, preconizados como a marca dos sujeitos sociais produzidos a partir dessa Modernidade. Rio de Janeiro, 29- 07-1999 21 Referendas Bibliográficas. Dumont, Louis, Homo Hierarchicus : o sistema de castas e suas implicações. 1977. Edusp – SP -----------------O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna 1985. Ed. Rocco RJ Castoriadis, Cornelius, A instituição imaginária da Sociedade 2a edição 1992, Ed. paz e Terra – RJ -----------------As Encruzilhadas do Labirinto Vol III - O Mundo Fragmentado, 92. Ed. paz e Terra - RI As Encruzilhadas do Labirinto V 01. I, 1987. Ed. paz e Terra - RI As encruzilhadas do Labirinto V 01. TI - Os Domínios do Homem 1987-a. Ed. paz e Terra RI Socialismo ou Barbárie : O Conteúdo do Socialismo. 1983 - Ed. Brasiliense - SP Giddens, Anthony, As Conseqüências da Modernidade 1991. Editora Unesp -SP Rousseau, Jean- Jacques, Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens Introdução de Romain, Rolland /Pensamento Vivo de Rousseau, Biblioteca do Pensamento Vivo, 1967 Livraria Martins Editora - SP. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens Comentários: Jean-François Braunstein/Prefácio Jean-Deprun, 1989. Editora UNB/Ática-DF Roszack, Theodore, El nacimento de una contracultura, 1984 - 83 Ed. - Kairós Ed. - Barcelona/Es 22 23