VÔO SOBRE ABISMOS: POLÍTICA DE RECONHECIMENTO EM NANCY
FRASER, MOVIMENTOS SOCIAIS E EFETIVIDADE NORMATIVA
VUELO SOBRE ABISMOS: POLÍTICAS DE RECONOCIMIENTO EN NANCY
FRASER, MOVIMIENTOS SOCIALES Y EFECTIVIDAD DE LAS LEYES
Judith Karine Cavalcanti Santos
RESUMO
O debate sobre as formas de efetividade da Justiça compreende com novas perspectivas
de análise, não somente introduzindo noções de distribuição, como também trabalhando
com o reconhecimento e a representação. Na teoria, os primeiros estão ligados à moral
kantiana, para os quais a Justiça se aplica melhor quando percebida como neutralidade.
Para os últimos, no entanto, é necessário sobretudo o reconhecimento, mais próximo ao
conceito de ética hegeliana. Os movimentos sociais, nesta dinâmica, exigem uma
percepção de reconhecimento que se aproxime da Justiça sem, no entanto, desconsiderar
as diferentes identidades. Neste sentido, Nancy Fraser possibilita uma releitura de
ambas as teorias, até então vistas como conflitantes. Assim, discuto a efetividade das
leis, distantes da simples elaboração de novas leis e mais próxima de uma resignificação
das leis já em vigor, com base sobretudo nos princípios que as regem.
PALAVRAS-CHAVES:
RECONHECIMENTO,
EFETIVIDADE NORMATIVA, NANCY FRASER
MOVIMENTOS
SOCIAIS,
RESUMEN
El debate sobre las formas de la efectividad de la Justicia tiene nuevas perspectivas de
analice. Hoy, ellas no sólo introducen nociones de distribución como también trabajan
con reconocimiento y representación. En la teoría, los primeros están ligados a la moral
kantiana, para los cuales la justicia se aplica mejor cuando percibida como neutralidad.
Para los últimos, todavía, es necesario sobretodo el reconocimiento, cerca del concepto
de la ética hegeliana. Los movimientos sociales, además, exigen una percepción de
reconocimiento que se aproxime de la Justicia sen desconsiderar las diferentes
identidades de los grupos. Para comprender la práctica, Nancy Fraser posibilita una
relectura de las dos teorías, até este momento comprendidas como distantes. Con esto,
discuto sobre la efectividad de las leyes, distante de la comprensión de la elaboración de
nuevas normas, y próxima de una resignificación de las antiguas leyes.
PALAVRAS-CLAVE: RECONOCIMIENTO, MOVIMIENTOS
EFECTIVIDAD NORMATIVA, NANCY FRASER
SOCIALES,

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF
nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.
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O debate atual sobre grupos sociais, identidades e inclusão parece ser atualmente a
engrenagem que move as lutas dos movimentos sociais no Brasil. A dúvida perpassa
apenas a forma com que as demandas devem ser satisfeitas: uns defendem políticas
distributivas; outros, políticas de reconhecimento e representação. Enquanto que os
adeptos da primeira baseiam seu argumento na moral kantiana que, pressupondo
neutralidade, seria o discurso que mais se aproximaria da justiça, os defensores do
reconhecimento justificam a necessidade de observação das identidades dos grupos
sociais, conceito próxima à ética hegeliana.
Diante do debate sobre tais políticas, pretendo neste texto identificar os conceitos
apresentados na disputa entre política de reconhecimento e reconstruir os passos de
Nancy Fraser, que justificou a possibilidade de articulação conjunta entre ambas, ao
criticar a suposta ligação teórica de política de reconhecimento com a ética e conceitos
como boa vida, auto-estima e identidade, confrontados aqui principalmente com o
pensamento de Axel Honneth.
Entretanto, não é exatamente neste ponto que pretendo dar fim à discussão.
Considerando os avanços conceituais de Fraser quanto ao modelo de identidade e
proposição do modelo de status, procuro relacionar o reconhecimento como justiça com
a dinâmica jurídica atual sobre a edição de normas. Dessa forma, busco deslocar o
debate sobre inclusão social da esfera da cobertura normativa per si, que entendo estar
ligada a uma política baseada na identidade, para a efetividade das normas já existentes,
mais próxima da política de reconhecimento tal qual idealiza Fraser.
Distribuição, Reconhecimento, moral e ética
O debate em torno da política de reconhecimento enfrentou algumas críticas
relacionadas a uma leitura, num primeiro momento, baseada em princípios éticos,
diferentemente das políticas de distribuição, relacionadas à moral, com uma autoridade
histórica de mais de 150 anos. A política de distribuição foi acolhida com mais
facilidade pelos teóricos e pela sociedade, sobretudo, por essa proximidade com a
moral, conceito intrinsecamente ligado ao de justiça[1].
O conceito de moral, nesse sentido, recebe maior respaldo teórico em geral por seu
desvínculo quanto à parcialidade, que o relaciona ao conceito de justiça, por sua vez
ligada à neutralidade garantidora da participação igualitária dos indivíduos na
sociedade[2].
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No outro extremo teórico, alguns discursos teóricos vinculam ao reconhecimento
conceitos como o de identidade, auto-estima e boa vida[3], ligados a noções de ética, na
medida em que necessitam de julgamentos valorativos de cultura e passíveis de
apropriação circunstancial de indivíduos ou grupos, capazes de comprometer a
neutralidade necessária para efetivação da justiça. Para esses autores, o justo perpassa o
ético, o que induziria o leitor a crer que políticas distributivas aproximam-se mais do
contexto de justiça que políticas de reconhecimento.
Autores ligados ao reconhecimento, nesse contexto mais clássico, buscam promover
condições qualitativas para a vida em sociedade, a vida boa. Assim, considerando
valores, características e identidades variadas, o reconhecimento, à primeira vista,
parece, portanto, para a maioria dos autores divididos por essas posições, cuja adoção
revela um certo maniqueísmo, políticas distributivas e políticas de reconhecimento são
inconciliáveis. Nesse primeiro momento, portanto, tais idéias apresentam-se
desvinculadas, mais que isso, antagônicas, já que uma necessita de neutralidade e a
outra supostamente viola essa neutralidade, utilizando qualificações valorativas.
Identidade e Reconhecimento
Os principais autores sobre teoria do reconhecimento referem-se a auto-estima, boa vida
e identidade como valores a serem considerados no processo de reconhecimento. Tais
conceitos seriam os garantidores da justiça ou conseqüência dela.
Como uma das principais referências no assunto, Axel Honneth apresenta três formas de
reconhecimento intersubjetivo: amor, direito e auto-estima. A primeira, centrada no
amor, cujo conteúdo não se restringe à relação íntima sexual como o próprio autor
adverte, e que tem substância nas relações primárias de afeto entre os indivíduos,
baseado principalmente no conceito de confiança mútua[4]. Posteriormente, Honneth
refere-se ao direito, a segunda forma de reconhecimento intersubjetivo, como a
expressão dos interesses universalizáveis dos membros da sociedade, como afirma em
citação a Hegel; no sentido de que os sujeitos se reconhecem reciprocamente na medida
em que obedecem às mesmas leis[5].
No terceiro momento, Honneth caracteriza a última forma de reconhecimento: a autoestima, que junto com as demais constituirá a matriz de seu pensamento político. De
acordo com ele, o comportamento lesivo à sociedade não é injusto somente porque
sujeita a liberdade de ação ou inflige danos, mas sobretudo porque fere as pessoas na
compreensão positiva de si mesmas, adquiridas de modo intersubjetivo[6]. Para o autor,
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a degradação e a ofensa seriam as formas de desrespeito à estima social, cujos
componentes ameaçados seriam a honra e a dignidade[7]. Honneth trabalha, portanto,
com o conceito de boa vida e auto-estima, conceitos passíveis de base valorativa.
Assim, para o autor, a justiça somente teria potencial de concretização se houvesse
estima simétrica entre os sujeitos, admitindo essa simetria como a consideração
recíproca “à luz de valores que fazem as capacidades e as propriedades do respectivo
outro aparecer como significativas para a práxis comum”[8]. Essa estima simétrica entre
os indivíduos, segundo Honneth, deve ser compreendida não somente como a tolerância
para com as particularidades dos demais indivíduos, como também é capaz de despertar,
segundo ele, o interesse afetivo pelas particularidades[9].
A política de reconhecimento, nesse contexto, parece num primeiro momento vinculado
ao discurso da ética (no sentido de Fraser), na medida em que leva em consideração
valores culturais, aproximando-se de conceitos como boa vida e auto-estima. Segundo
os críticos, conceitos dessa natureza comprometem a neutralidade necessária para se
efetivar a justiça; ou, em outras palavras, o reconhecimento no sentido ético viola a
equidade possível com a política distributiva[10].
Em sentido oposto ao de Honneth que apresenta a concepção de auto-estima vinculada
ao de reconhecimento, Nancy Fraser critica essa idéia de respeito às
particularidades[11]. Com base nesses conceitos, a autora argumenta que basear uma
teoria em conceitos fluidos como boa vida ou auto-estima é precário, principalmente
porque esses conceitos não são universalmente compartilhados e “qualquer tentativa de
justificar reivindicações por reconhecimento que apele para uma concepção de boa vida
será sectária”[12].
Mais que isso, a autora reporta-se ao conceito de identidade como problemático e busca
desvincular reconhecimento de identidade. O modelo de identidade baseia-se na
afirmação de uma identidade coletiva, através de uma “cultura própria autoafirmativa”[13], que, para a autora, apresenta alguns problemas estruturais que
comprometem seu uso em modelos de justiça.
Em primeiro lugar, esse conceito “enfatiza a estrutura psíquica em detrimento das
instituições sociais e da interação social”, cujo conteúdo vincula noções abstratas de
consciência. Além disso, faz referência a um processo coletivo, trabalhando com a idéia
de identidade coletiva, como que de caráter autêntico, e aprisiona a cultura num espaço
que resguarda sua pureza, em outras palavras, conduz ao entendimento de que as
múltiplas culturas não interagem.
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Em segundo lugar, o modelo de identidade também é incapaz de perceber os grupos
dentro dos grupos, ou seja, considera os grupos sociais como homogêneos,
desrespeitando as peculiaridades de suas facções internas[14]. Assim, segundo Fraser, o
modelo de identidade tende a não promover a interação entre os grupos, mas tão
somente a separação. Em suas palavras, “o modelo de identidade aproxima-se muito
facilmente de formas repressivas do comunitarismo”[15].
A autora propõe uma mudança de paradigma e apresenta como alternativa o modelo de
status. Com esse modelo, o enfoque, antes centrado da perspectiva da identidade, passa
a ter como referência os indivíduos na condição de parceiros integrais na interação
social. Diferentemente de Honneth, Fraser refere-se não a noções de auto-estima ou boa
vida, mas à justiça como conseqüência de um processo em que todos participem como
parceiros.
Jacques Derrida também critica tal multiplicidade de grupos que, segundo ele, acabam
se sobrepondo ao singular, ao geral. Com isso, ele não se coloca disposto a por fim aos
ideais emancipatórios, mas sugere a reelaboração dos conceitos[16], caso contrário o
risco é o de comprometer a parceria participativa.
Essa percepção dos indivíduos como parceiros não significa, entretanto, uma tentativa
de traduzir tudo em uma unidade homogênea; ao contrário, é o modelo identitário que
está submetido a esse risco porque sua preocupação é com a identidade colativa.
Considerando esse enfoque na condição de parceria, Fraser explica que o nãoreconhecimento não significa mais a negação da identidade do grupo, mas a
subordinação dos indivíduos, impedindo sua participação como igual[17], colocando-os
em uma categoria diferenciada da de parceiros.
Adotar um conceito baseado no status e não na identidade ou, como ela diz, evitar a
psicologização permite ao indivíduo, portanto, liberdade para optar pelo contexto de boa
vida que considerar mais adequado a si mesmo, cabendo aos demais respeitá-lo como
parceiro da interação social.
Movimentos sociais, normas e os modelos de identidade e status
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Em contato com esses conceitos, proponho uma aplicação da política de
reconhecimento em seus modelos clássicos (identidade) e contemporâneo (status) na
atual dinâmica jurídico-legislativa brasileira. Para tanto, preciso de imediato apresentar
o papel histórico-social dos movimentos sociais e articular a ‘necessidade’ de
apropriação das normas por parte desses grupos sociais com duas percepções da política
de reconhecimento que exponho mais adiante: o modelo de identidade e o modelo de
status.
Os movimentos sociais[18] no Brasil, a partir da década de 1980, passaram por uma
dinâmica histórica bastante peculiar, um deslocamento do espaço de luta, que precisam
ser considerados, para fins desta discussão, em torno de três aspectos.
Em primeiro lugar, com o Brasil reestruturando-se em um processo democrático, os
espaços públicos de participação foram adotados como espaços estatais, ou seja, o
Estado passou a reconhecer esses espaços como locais de práticas democráticas. Essa
abertura institucionalizada, embora permita um acréscimo substancial na luta que recebe
o reconhecimento do Estado, parece gerar por outro lado a dependência de tais
movimentos com relação a esse Estado, pois já não conseguem articular sozinhos suas
lutas[19].
Além disso, um segundo aspecto baseia-se na mudança quanto ao fundamento dos
movimentos sociais, antes ligados a ideologias, questões políticas, econômicas ou
sociais, passando ao espaço de luta da contra a carência. A preocupação dos
movimentos passou a ser a satisfação de carências específicas de grupos.
Posteriormente, houve a ‘crise’ da cidadania, perdida em focalizar as demanda por
igualdade no Estado ou nos grupos hegemônicos, a dúvida em identificar qual a
instância de realização dos direitos[20].
Nesse contexto de mudança de mecanismos de participação, necessidade de satisfação
das carências sociais e de deslocamento de entes demandados, novas estratégias faziamse necessárias; “reparar a injustiça certamente requer uma política de reconhecimento,
mas isso não significa mais uma política de identidade”[21].
Os movimentos sociais passaram, então, a atuar publicamente com estratégias múltiplas,
dentre elas o espaço normativo ganhou grande fôlego e conquistou adeptos
extremamente conservadores. E não à toa. A lei, embora teoricamente seja a confluência
dos interesses dos indivíduos, é capaz de permitir privilégios e injustiças.
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Assim, iniciou-se uma dinâmica nacional de busca do Sistema de Justiça[22] como
espaço estatal potencialmente aberto para as demandas sociais, já que o próprio
momento histórico propunha a reformulação da Constituição. Nesse contexto, o acesso
ao judiciário se popularizou e as discussões em termos legislativos ganharam
visibilidade.
Mais de duas décadas depois, o ritmo de edição de normas continua acelerado; além
disso, a essência de muitas delas se não é a mesma, no mínimo tem a mesma base
principiológica já transcrita na Constituição. Em outras palavras, é que o ponto central
do discurso tem sido, a partir de então, o fato de que muitas normas substancialmente já
estão na esfera da realidade jurídica e, analisando do ponto de vista de sua
essencialidade, em quantidade excessiva.
Isso ocorre porque os grupos coexistentes na diversidade social brasileira têm
perseguido a mesma estratégia de atuação, centralizada neste momento no sistema
jurídico-normativo. Nesse mesmo âmbito, mas em outra perspectiva, a efetividade dos
direitos é defendida por alguns autores como uma forma eficaz de garantia da cidadania
num processo democrático, atualmente reduzida ao (e confundida com) direito ao
voto[23].
Essa necessidade de apropriação das normas por parte dos grupos sociais soa como
possibilidade de esgotamento do acesso ao reconhecimento, ora apresentado sob duas
perspectivas. De um lado, a tentativa de apropriação deu-se através da edição de novas
normas, por outro o enfoque recai sobre a efetividade das normas já editadas.
Em outras palavras, em termos de reconhecimento, a primeira tende a uma estratégia
jurídica de modelo identitário, na medida em que busca incluir os diferentes grupos
sociais sob sua identidade cultural. A seguinte parece mais correspondente ao modelo
de status, por objetivar não a identificação dos grupos em categorias culturais variáveis,
mas numa perspectiva de paridade participativa.
Com base nesse novo paradigma apresentado por Fraser, é possível repensar a dinâmica
das discussões contemporâneas sobre inclusão e direitos. Em geral, os debates
privilegiam a esfera da inclusão normativa, através da edição de novas normas, ou seja,
aqueles que buscam eliminar a exclusão de grupos dentro da sociedade têm optado por
exigir a edição de mais normas, que tendem a ser cada vez mais específicas,
direcionadas a um grupo excluído em particular.
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De imediato, surge uma questão problemática para um sistema de justiça: a pluralidade
infinita de normas sobre os mais variados temas, na medida em que são exigidas para
cada um dos grupos pertencentes à diversidade social. Na prática, as normas têm o
mesmo conteúdo e em alguma medida correspondem a um direito já resguardado pela
constituição, em caráter mais geral.
A perspectiva de políticas de igualdade, como modelo padrão de reconhecimento,
centra-se no debate sobre a elaboração de normas que, cada vez mais, englobem os
grupos, de forma a incluí-los no espaço político social respeitando suas peculiaridades.
Em termos de Fraser, a política de edição de normas centra-se em debates sobre
identidade e, portanto, tendem ao fracasso, pois reproduzem os mesmo problemas.
A mais recente discussão sobre reconhecimento, apresentada por Fraser, por outro lado,
debate sobre a desnecessidade de criação de novas normas, já que o objetivo é o
reconhecimento de todos na norma geral. Nesse contexto, tal discurso aproxima-se do
problema de eficácia-efetividade normativa.
Para a estratégia da edição de normas, importa o reconhecimento dos grupos através de
edição de normas, garantindo as particularidades. Assim, sendo vários os grupos
excluídos, várias devem ser as normas, de mesmo conteúdo ou não, para garantir o
devido reconhecimento. Necessitando dessa reafirmação da identidade coletiva, tal
conceito foge à idéia de justiça.
Quanto à estratégia da efetividade das normas, o importante é garantir o respeito à
condição de parceiros participativos, excluindo conceitos fluidos como identidade e
auto-estima. Assim, tendo em mãos as normas de conteúdo moral, garantidoras da
condição de parceiros a priori, busca-se a aplicação de tais normas. Nesse sentido, o
que lhes falta não é conteúdo justo, mas tão somente efetivação.
Para a dinâmica normativa contemporânea, o impedimento à Justiça está na não
ausência de efetividade de tais normas[24]. Ou seja, as normas existem, são válidas e
juridicamente legítimas, mas não se consubstanciam na prática. O que leva a crer que,
dentro da dinâmica atual dos movimentos sociais, a norma tem sido buscada como um
mecanismo do processo identitário. A tendência dessa demanda normativa no contexto
brasileiro segue a perspectiva de que não é a ausência de normas que compromete a
inclusão dos grupos e a persecução da justiça, ao contrário, o ordenamento jurídico
brasileiro está repleto de normas; em termos quantitativos, o Brasil possui uma relativa
sobrecarga de normas.
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O fato é que entre a existência da lei e a sua efetividade há um abismo. Quando falamos
em mais normas, falamos em aprofundamento com esse abismo e, por outro lado,
quando se fala em efetividade das normas, busca-se superá-lo.
Perspectiva Política
Charles Taylor, outro autor proeminente sobre reconhecimento, também baseie sua
teoria em conceitos éticos relacionados à boa vida ou à auto-estima, sua conclusão sobre
o efeito do não reconhecimento remete o discurso para um outro ponto importante que é
a instância política da questão.
Obviamente, as demandas por inclusão normativa não possuem um caráter somente
formal no sentido da simples edição de nova norma; por vezes a exigência de rigor
quanto à edição da norma revela a necessidade de visibilidade política dos grupos.
Nesse sentido, a proposta de nova norma transcende à formalidade normativa e passa o
debate para a esfera de legitimidade – ou não – das estratégias de visibilidade política
das demandas dos grupos sociais excluídos[25].
Aqui talvez haja uma aproximação com Fraser quando ela menciona a necessidade de,
em alguns momentos, retornar ou revisitar a questão da ética. A autora afirma que pode
haver casos em que o retorno à discussão sobre a ética é inevitável; o que ela busca é
adiar ao máximo esse momento[26], mas ela admite possibilidade de sua existência .
Para Taylor, o “não reconhecimento ou o falso reconhecimento [...] pode ser uma forma
de opressão, aprisionando o sujeito em um modo de ser falso, distorcido e
reduzido”[27]. É exatamente isso que a promulgação de normas em demasia faz:
aprisiona os grupos em um formalismo que retira força de articulação política, tornando
extremamente difícil quebrar o contexto político argumentativo.
Na prática, isso significa que os movimentos sociais obtiveram avanço, já que obtêm
reconhecimento legal, mas esse reconhecimento é pequeno comparado com a
desvantagem de perder argumentos de lobby na luta por paridade participativa. Em
outras palavras, os grupos sociais têm sua demanda satisfeita em parte e, em certa
medida, isso rotula os direitos desses grupos na categoria de ‘direitos prestados’. O
problema está na satisfação parcial. É o mesmo que dizer para o movimento negro que
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não há porque se falar em necessidade de discussão sobre a história africana nos
currículos escolares porque já existe a lei que a exige.
Correndo o risco de vincular meu discurso à ética (no sentido de Fraser), sustento,
portanto, que diante da realidade dos movimentos sociais somada a todo o contexto
político, econômico, cultural e social brasileiro, as estratégias políticas de visibilidade
de grupos historicamente excluídos podem ser compreendidas como uma reivindicação
que promove a paridade de participação.
Para Fraser, tal argumento não estaria dentro da justificativa plausível para se
possibilitar a observação das particularidades de grupos sociais, já que essas
particularidades somente podem ser observadas se estiverem além da humanidade
comum a todos os indivíduos[28].
Conclusões
Para justificar o novo paradigma que apresenta quanto às políticas de distribuição e
reconhecimento, Nancy Fraser sustenta argumentos que reinterpretam o reconhecimento
e desloca o debate para o espaço da moral.
Busquei correlacionar dois autores referenciais quanto ao tema – Fraser e Honneth – e
construir a partir daí um debate conceitual que seria de base para o entendimento do que
posteriormente apresentei como dinâmica das discussões contemporâneas sobre direito,
norma e justiça.
Confrontando tais argumentos sobre suas críticas ao conceito de identidade, o debate
sobre política de reconhecimento e a dinâmica normativa, procurei estabelecer a
conexão entre os temas sob dois aspectos: o modelo de identidade e o modelo de status,
analisados pela autora.
Alguns autores e grande parte dos movimentos sociais têm buscado a edição de novas
normas como estratégia para o reconhecimento dos grupos sociais, quando o mais
adequado, do ponto de vista normativo, é buscar a efetividade e a releitura das normas
já editadas.
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O que apresentei consiste na ligação do tema com o modelo de identidade da teoria
clássica de reconhecimento, confrontando com a teoria contemporânea, que busca a
efetividade das normas, mais próximo, na minha opinião, do modelo de status proposto
por Fraser.
Por fim, questionei a legitimidade dos movimentos sociais que utilizam a edição de
normas como estratégia de promoção política, passando o debate para a esfera de
legitimidade das estratégias de visibilidade política das demandas dos grupos sociais
excluídos.
Sustento que diante da realidade dos movimentos sociais somada a todo o contexto
brasileiro, as estratégias políticas de visibilidade de grupos historicamente excluídos
podem ser compreendidas como uma reivindicação que promove a paridade de
participação, nos termos que propõe Fraser.
Bibliografia
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SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos direitos fundamentais. 2 ed. Rev. e atual.
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760
[1] FRASER, 1997. p.17-54.
[2] FRASER, 2007. p.104.
[3] Até a mudança de paradigma de Fraser, quanto à possibilidade de suplementariedade
entre distribuição e reconhecimento.
[4] 2003. p.159.
[5] 2003. p.182.
[6] 2003, p.213.
[7] 2003. p.211.
[8] 2003. p.210.
[9] 2003. p.211.
[10] FRASER, 2007. p.104-105.
[11] Ao menos, sem antes tentar alternativas menos fluidas.
[12] 2007. p.112
[13] 2007. p.106.
[14] FRASER, 1997. p.29; 2007. p.106-107.
[15] FRASER, 2000.
[16] 2004. p.57.
[17] 2007. p.107.
[18] Quanto às perspectivas históricas dos movimentos sociais brasileiros que
apresento, ler Gohn.
[19] COHN, 2003. pp.14-15.
[20] COHN, 2003. p.16.
[21] 2007. p.107.
[22] Com o termo Sistema de Justiça, refiro-me não somente ao Tribunal, mas também
ao Ministério Público, Delegacia, bem como órgãos do Executivo (Conselhos Tutelares,
por exemplo) e do Legislativo (Assembléias Legislativas, Câmara e Senado)
[23] Quanto à garantia da cidadania através da efetividade dos direitos, ler
O’DONNELL, Guillermo. Uma outra institucionalização. Lua Nova. São Paulo, 37: 532, 1996. p.29. Apresentando alternativas de condução das diversas poliarquias, o autor
observa a importância da Efetividade dos direitos, entendidos no sentido amplo.
[24] SARLET, 2001.
[25] Esse ponto em específico foge aos limites teóricos que exponho. Merece, na minha
opinião, aprofundamento em outra oportunidade.
[26] FRASER, 2007. p.107, 120, 135.
[27] apud FRASER, 2007. p.111.
[28] Condição diferenciada das mulher na gestação dos filhos, por exemplo.
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