ARTIGO / ARTICLE
Extermínio: Violentação e Banalização da Vida
Extermination of Humans: Violation and Vulgarization of Life
Otávio Cruz-Neto 1
Maria Cecília de S. Minayo 1
CRUZ-NETO, O. & MINAYO, M. C. S. Extermination of Humans: Violation and Vulgarization of Life. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supplement 1): 199-212, 1994.
This paper aims at conceptualizing the extermination of humans as a political phenomenon,
focusing on the issue within the field of public health. The article begins by distinguishing
between the concepts of extermination and homicide. The dynamics of this practice are then
characterized as a political, social, ethical and moral process, transcending the final act of
executing the victims. Extermination is specified within the Brazilian reality, that is, through its
relationship to the social context in which it is generated.
Key words: Violence; Homicide; Extermination; Mortality; Health and Society
INTRODUÇÃO
Este artigo faz parte de um estudo mais
amplo sobre o fenômeno do extermínio na
sociedade brasileira atual. Trata-se de uma
reflexão teórica que se impõe num universo de
polêmica sobre a propriedade do termo para
nominar assassinatos em massa que ocorrem
hoje nos grandes centros urbanos do país.
Pretende-se integrar esta reflexão ao conjunto
do debate atual, buscando não só quantificar os
atos, mas também produzir uma crítica sobre a
pretensão simplista ora de subsumi-los no
conjunto dos homicídios, que inflacionam as
estatísticas de mortalidade no país; ora de
tratá-los como ações restritas dos assim chamados “grupos de extermínio”.
A hipótese central do trabalho, portanto, é de
que os grupos de extermínio executam uma
sentença pronunciada por segmentos da sociedade, que assim legitimam tal fenômeno, de caráter sócio-político e cultural, num contexto
ideológico voluntarista e autoritário.
A idéia de abordar este tema a partir da
Saúde Pública vem do fato de, por um lado, as
vítimas do extermínio (quando suas mortes são
1
Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional
Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 9º andar,
Rio de Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil.
notificadas) engrossarem as estatísticas de
homicídio; por outro, embora configure como
componente neste grupo de causas de morte, o
extermínio, enquanto processo social, tem
origem, se realiza, se consuma e traz conseqüências diferenciadas, quando comparado ao
homicídio.
O homicídio pode ser considerado a expressão máxima da exacerbação dos conflitos
das relações interpessoais. No entanto, ele é um
mal limitado. O assassino que mata seu semelhante habita nosso mundo de vida e morte, e
entre ele e a vítima há um elo explicativo do
ato fatal. Ele deixa atrás de si um cadáver, não
conseguindo apagar nem os traços de sua
identidade nem os da vítima. O assassino
cometeu um crime, e a lei promete-lhe a sentença e a punição. Como nunca houve sociedade sem homicídios, ele é previsto como parte
dos conflitos com os quais a sociedade se
enfrenta (Durkheim, 1978).
No caso do extermínio é diferente. Enfrentam-se um fenômeno e um processo social de
alta complexidade, politicamente muito fortes e
juridicamente muito fracos. A vítima e o exterminador são de natureza coletiva, como não
acontece no homicídio, e a lei, ao julgá-los, se
coloca acima das leis positivas. “O seu desafio
a essas leis pretende ser uma forma superior de
legitimidade que, por inspirar-se nas próprias
fontes, pode dispensar legalidades menores”
(Arendt, 1990: 227).
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Cruz-Neto, O. & Minayo, M. C. S.
Do ponto de vista político, o tema em pauta
se insere no capítulo das idéias, visões e movimentos totalitários como um fenômeno das
sociedades de massa. Dentro de realidades ditas
democráticas, como a nossa, a análise do extermínio exige aprofundamento e adequação
teórica para que seu uso não se torne apenas
eufemístico ou metafórico, tendo-se, talvez, que
invocar as raízes autoritárias da formação
sócio-política e cultural. É importante assinalar,
porém, que totalitarismo e autoritarismo se
referem, na Ciência Política atual, a uma categoria de análise mais geral denominada sistemas hierárquicos, ou seja, todos aqueles sistemas em que o poder deriva mais ou menos de
uma cúpula (no limite, de um líder) ou de
grupos de elite. Há, no entanto, diferenças
notáveis entre os dois termos que precisam ser
esclarecidas.
Pode-se falar de totalitarismo como um
movimento de massas, de tendência centralizadora, conduzido autoritariamente por uma
minoria política através do monopólio da autoridade e do Estado. O totalitarismo realiza a
expansão do controle governamental sobre a
globalidade da vida social.
O termo totalitarismo surge no século XX
para descrever as experiências nazistas, fascistas
e stalinistas que tiveram em comum: (a) o
Estado enquanto monopolizador da expressão
da verdade, criando, assim, uma verdade oficial;
(b) negação da pluralidade de pensamento; (c)
censura política e imposição do partido único;
(d) controle de todas as atividades da sociedade
pelo Estado; (e) monopólio, pelo Estado, dos
meios de comunicação de massa.
No totalitarismo, o controle do Estado se
exerce através de duas armas fundamentais: a
propaganda política e o estabelecimento do
terror. A propaganda se torna eficaz através: (a)
da simplificação das mensagens, transformadas
em palavras de ordem ou slogans; (b) da desfiguração grosseira dos fatos; (c) da busca de
unanimidade, pela supressão da diferença; (d)
do uso repetitivo dos temas de interesse nos
meios de comunicação de massa. O terror é
estabelecido através: (a) da atomização dos
indivíduos; (b) do extermínio físico, social,
cultural e moral dos “inimigos objetivos”; (c)
200
do clima de espionagem e suspeita de todos
sobre todos; (d) da instituição da polícia secreta.
O autoritarismo é um neologismo da Ciência
Política do final do século XIX e recentemente
se refere a um fenômeno típico de países de
desenvolvimento econômico retardatário, onde
as regras do jogo político são dadas por elites
tradicionais ou por elites modernizantes, em
colaboração com poderes extranacionais.
Enquanto nas formas totalitárias de governo
o componente político e a chamada à participação das massas é algo central, organizado e
dirigido, nos regimes autoritários tal situação é
oposta. Há poucos ou muitos partidos políticos,
não importa, porque estes atuam de forma
burocratizada e de cima para baixo. Geralmente
florescem no seio de uma escassa participação
popular e as elites se legitimam pela inércia e
passividade, conformismo e apatia das massas.
A mentalidade dominante é diluída, inerte e
rotineira.
Engana-se, porém, quem imagina que o
baixo grau de adesão popular demonstra a
fraqueza do autoritarismo. Esta diluição da
organização autoritária é uma forma dela se
manter. Há um deliberado relaxamento de
supervisão e controle sobre as atividades nãopolíticas dos cidadãos.
Arendt (1990) chama a atenção para o fato
de o nicho produtor do fenômeno do extermínio
ser a moderna sociedade de massas. E, neste
sentido, a autora mostra que nem as democracias estão imunes, na medida em que são
produzidas “populações supérfluas”, para as
quais a sociedade política clássica não produz
nem sentido, nem resposta. Esta sociedade de
massas, criação da modernidade, segundo
Arendt, dá um susto em duas ilusões da democracia:
a. a de que o povo, em sua maioria, participa ativamente do governo e a de que
todo indivíduo é simpatizante de algum
partido político. Esses movimentos, pelo
contrário, demonstram que as massas,
politicamente neutras e indiferentes,
podem constituir a maioria num país
democrático e, portanto, tal democracia
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 199-212, 1994
Extermínio
seria aceita apenas por uma minoria. Para
Arendt (1990), o termo massa se refere a um
conjunto de pessoas que, por seu número ou
sua indiferença, ou pela mistura de ambos,
não se integram numa organização baseada
em interesses comuns, constituindo uma
maioria politicamente indiferente;
b. A de que a massa politicamente indife-rente e
desarticulada é neutra, constituindo nada mais que um silencioso pano de
fundo para a vida política da nação. Ao
contrário, o governo democrático repousa
na silenciosa tolerância e aprovação de
“setores desarticulados do povo” (a que
Arendt denomina massa), tanto quanto
nas instituições articuladas, organizadas e
visíveis do país (Arendt, 1990).
Da mesma forma que Arendt (1990), em “A
Rebelião das Massas”, Ortega y Gasset (1987)
se ocupa deste fenômeno moderno, próprio da
sociedade industrial, e fala dele articulando-o ao
conceito de cultura. “Avaliei o homem médio
atual quanto a sua capacidade para continuar
a civilização moderna e quanto a sua adesão à
cultura” (Ortega y Gasset, 1987: 9). O autor
define o homem-massa como “um homem feito
de pressa; montado simplesmente sobre poucas
e pobres abstrações (...) previamente esvaziado
de sua própria história, sem entranhas de passado (..) (p. 12) “Não se designa aqui uma
classe social, mas um modo-de-ser-homem que
acontece em todas as classes sociais” (p. 22). A
massa desprovida de certos valores civilizatórios, comenta o autor, tende a considerar as
infinitas possibilidades oferecidas pelo mundo
moderno como “natureza”, algo eternamente
dado, a ser usufruído sem preocupações. O
homem-massa, sem sentido do passado, sem
projeto de vida que tenha caráter individual,
traça caminhos para uma miserável socialização, em lugar de se encaminhar para um
magnânimo solidarismo.
Sobre o papel do homem-massa na sociedade, Ortega y Gasset (1987) mostra que o mundo
e a vida se tornaram excessivamente abertos ao
homem medíocre, este homem médio cujas
idéias não são autênticas idéias, transtornando
o espaço das normas. “E as normas são o
princípio da cultura. Não importa quais sejam.
Não há cultura onde não há normas” (Ortega y
Gasset, 1987: 122).
Com sua capacidade abusiva de adjetivar,
Baudrillard (1993) é um dos filósofos contemporâneos também preocupados com a sociedade
de massas, que se contrapõe ao “pensamento
crítico que julga, escolhe, produz diferenças e
vigia o sentido. As massas não escolhem, não
produzem diferenças e sim indiferenciações” (p.
33). Para Baudrillard, as massas são uma “bola
de cristal das estatísticas (...) que absorvem
toda a eletricidade do social e do político e as
neutralizam, sem retorno. Não são boas condutoras nem do político, nem do social, nem do
sentido. Elas não irradiam, ao contrário, absorvem toda a irradiação das constelações periféricas do Estado, da História, da Cultura, do
Sentido” (p. 9).
Concordando com Arendt (1990), Baudrillard (1993), diz que toda a esperança do social
e da mudança social só pôde funcionar até aqui
graças ao escamoteamento de suas bases: uma
maioria silenciosa cuja existência é mais estatística que social, e que na atualidade não se
expressa, é sondada. Completando sua reflexão,
Baudrillard diz que “as maiorias silenciosas, as
massas, são resistentes a qualquer forma de
organização social e planejada: não hesitam
em trocar uma manifestação política importante
por um jogo de futebol na televisão: matam-se
como moscas em guerras cujos objetivos simplesmente não lhes interessam e ao mesmo
tempo se comovem ante o deslocamento de uma
família real (ou uma novela)” (p. 33).
Estas reflexões se complementam com a
palavra de Arendt (1990), que parte do contexto
totalitário, mas expande sua abrangência para
todo o contexto da sociedade moderna. Segundo
esta autora, a massa que não é democrática, que
se compõe dos elementos desarraigados de
todas as classes, não herda os padrões e atitudes
das classes dominantes. Ao contrário, ela reflete, e de certa forma perverte, os padrões e
atitudes de todas as classes em relação às
questões sócio-políticas. Os padrões dos elementos da massa são então determinados não
apenas pela classe específica de onde são
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provenientes, mas acima de tudo por influências
e convicções tácita e implicitamente compartilhadas por todas as classes sociais.
Desta forma, as massas são uma produção
social de diferentes sistemas políticos modernos
e se configuram como um contingente populacional ora “funcional”, ora “supérfluo”, podendo
parte dele ser sacrificada ou escolhida como
exterminadora, muitas vezes superpondo as
duas funções. Basta que alguma ideologia
exterminista fundamentada na raça, na etnia, na
opção sexual, religiosa ou política, na classe ou
em razões sociais se articule através de líderes
oriundos dela (da massa). Os membros dos
grupos considerados “supérfluos”, desdenhados
pelos partidos políticos como apáticos, indiferentes ou estúpidos, se perfilam para matar,
considerando isso uma tarefa rotineira, da qual
não interessa o sentido, como diz Baudrillard
(1993).
Esta é a lição para as sociedades modernas
que Arendt (1990) tira da análise do nazismo.
E sobre o extermínio, a autora o coloca no
contexto de “massas desarraigadas” e de “populações consideradas supérfluas”, desafiando os
princípios fundamentais da democracia e dos
direitos sociais e humanos.
CARACTERIZAÇÃO DA DINÂMICA
DO EXTERMÍNIO
São dois os termos classicamente utilizados
para falar do fenômeno sócio-político de eliminação de grupos sociais nas sociedades modernas: genocídio e extermínio. Ambos foram
encaminhados no século XX, na realidade pósSegunda Guerra Mundial e no clima anatematizador dos totalitarismos.
Entende-se por genocídio o extermínio de
coletividades étnicas, confessionais ou sociais,
pressupondo um plano de ação coordenado. O
termo geno vem de raça; cidium significa
matança, assassinato. A figura do genocídio
entrou para o Direito como crime de natureza
internacional, ou seja, superior e anterior a
qualquer direito interno. Segundo a Convenção
Internacional de 11 de dezembro de 1946,
Genocídio é qualquer dos atos abaixo mencionados, praticados com a intenção de destruir,
total ou parcialmente, um grupo nacional
étnico, racial ou religioso enquanto
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tal: morte dos membros do grupo; lesão
grave à integridade física ou mental dos
membros do grupo; sujeição intencional do
grupo a condições de vida que hajam de
acarretar destruição física, total ou parcial;
medidas destinadas a impedir nascimentos no
seio do grupo; translado coativo de crianças
de um grupo a autro.
A Convenção Internacional, no entanto,
encontra dois obstáculos fundamentais ao seu
cumprimento. O primeiro diz respeito à autoria
do crime: seria o autor um agente individual?
Ora, isso contraria a essência do genocídio, que
é um delito fruto da ação coletiva. É certo que
está prevista a possibilidade de se levarem a
julgamento órgãos do poder nacional. Isso,
porém, não tem sentido prático dentro da processualística do Direito.
A segunda dificuldade refere-se à questão da
intencionalidade, difícil de ser provada em
tribunais. Feldman (1991), num artigo intitulado
“Os índios não morrem por acidente”, mostra a
falta de elementos legais com que se deparou o
Tribunal de Paris para configurar como crime
contra a humanidade o genocídio dos índios
brasileiros, pelas dificuldades políticas em se
atribuir este conceito à situação de fato e por
seu uso apenas simbólico.
O termo extermínio é mais ambíguo que o
termo genocídio. Ele não aparece nas convenções de Direito internacional ou nacional, e até
os dicionários o omitem ou o simplificam: “ato
de eliminar com morte”, “banir”, diz a Enciclopédia Universal. Na filosofia política atual, esta
noção está incorporada a fatos históricos contundentes, como o nazismo e o stalinismo. E
freqüentemente, no uso tanto descritivo como
analítico dos fatos, os dois termos — genocídio
e extermínio — se superpõem.
É no sentido de precisar melhor este conceito que se busca aqui explorar as características
da dinâmica do extermínio perpetrado pelo
nazismo, como uma possibilidade de discuti-lo
em circunstâncias não-totalitárias, como a da
sociedade brasileira. Aqui, o texto de Arendt
(1990) sobre “As origens do totalitarismo” é
referência fundamental.
1 . Em primeiro lugar, o extermínio é parte
de um projeto político de grupos que se
arrogam o direito e o poder de selecionar
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 199-212, 1994
Extermínio
camadas da sociedade a serem eliminadas, expulsas ou circunscritas. Este poder,
segundo Chauí (1987), não é algo que se
localiza num setor particular da sociedade, mas é aquilo que define, para esta
parcela, o que é justo e injusto, legal e
ilegal, possível e impossível, legítimo e
iníquo, dentro do projeto social que concebe o passado e o futuro. Portanto,
trata-se de uma ideologia construída.
O caso do nazismo, representado por Hitler,
é exemplar em termos da construção da liderança sem mediações de partidos políticos e da
ideologia totalitária. No livro Minha Luta,
escrito na prisão de Landsberg entre 1925 e
1927, Hitler se investe da missão de predestinado, a quem cabe a tarefa de purificar o mundo.
Creio agir, escrevia,
No sentido desejado pelo Criador Todo
Poderoso. Lutando contra os judeus eu
defendo a obra do Senhor. A arte dos grandes
líderes sempre consistiu, através dos tempos,
em não distrair a atenção do povo, mas sim
concentrá-la sempre sobre um só adversário,
no meu caso, o judaísmo internacional, sustentáculo, ao mesmo tempo, do capitalismo e
do comunismo. (Hitler, 1938)
A retórica que justifica o extermínio é a
divisão da sociedade não em classes, mas entre
os bons e benfeitores do povo (os que propõem
o extermínio) e os maus e malfeitores (os alvos
do extermínio). Como já foi citado anteriormente, os movimentos totalitários recrutam seus
agentes (líderes e executores) nas massas,
moldando-os não para a convicção e persuasão,
mas sim para as idéias de morte e terror. A
possibilidade do extermínio se transforma em
um processo histórico sui generis. É cumprido
por um grupo que declina de sua liberdade, ou
que nunca a assumiu, para se transformar em
instrumento que faz ou sofre aquilo que, de
acordo com leis imutáveis, sucederia inevitavelmente. Segundo Arendt (1990: 186), “uma
política de força completamente destituída de
princípios só se pode exercer quando há uma
massa igualmente isenta de princípios e numericamente tão grande que o Estado e a Sociedade não podem controlá-la”.
2 . Em segundo lugar, da mesma forma que
os “exterminadores” se constituem em
grupos, as vítimas preferenciais do extermínio se expressam em segmentos e
camadas identificadas por possuírem
atributos que importunam e se tornam
insuportáveis a seus potenciais aniquiladores. Tais atributos têm sido configurados historicamente, através da origem
e/ou da posição de classe, de opções
sexuais e políticas, de raça, etnia, e/ou de
sanidade física e mental.
No caso dos judeus, por exemplo, foram
características culturais de raça, aliadas a atributos de classe, que os tornaram alvos da fúria
nazista. Eles não se adequavam ao projeto
político do nacional socialismo de Hitler: era
um povo sem estado próprio e internacionalista,
não tinha tradição política e se colocava fora
das classes e acima das massas (Arendt, 1990).
Por outro lado, por sua alienação em relação às
sociedades locais, permitiram a construção de
uma imagem estereotipada de riqueza sem fim
social, sendo portanto considerados uma “raça”
inferior, portadora de tendências anti-sociais,
como uma espécie de doença contagiosa. Assim, uma vez construído o estereótipo, tornaram-se os judeus, como raça, a “categoria dos
inimigos objetivos” (Arendt, 1990). Tornaramse
figuras indesejáveis pelo fato de serem judeus,
pelo seu modo de ser e de viver, e não por um
comportamento reprovável em determinada
circunstância.
As vítimas do extermínio tomam consciência
de serem condenadas a priori, sem ao menos
terem condições de defesa, de mudança imediata, porque reconhecem que é o fato de existirem
o objeto da negação. Assim, o inocente e o
culpado são igualmente indesejáveis e devem
desaparecer.
3 . Em terceiro lugar, o extermínio é um ato
político revestido de intencionalidade,
seja ela declarada ou não pelos executores. A questão da intencionalidade, exigida para comprovar o genocídio, coloca-se
de forma diferente para o Direito e para
a Sociologia e/ou a Filosofia. Bretano
(apud Cruz Hernandes, 1953) trabalhou
este conceito a partir da obra de Bretano
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vinculando-o ao sentido e à direção da
ação, como qualidade de toda ação humana, que exige para sua realização: (a)
uma representação; (b) um juízo; e (c)
uma resposta afetiva. No caso do extermínio, a representação do alvo é um
grupo indesejável, insuportável, mau. O
juízo sentencia que tal grupo deve ser
exterminado. A resposta afetiva é de ódio
e de estabelecimento do terror.
Schutz & Luckmann (1973) definem a intencionalidade como um motivo “a fim de” (in
order to), referindo-se à intenção e aos objetivos, e como um motivo “porque” (because),
para falar de experiências e conhecimentos
anteriores que fundamentam a ação. No caso
dos judeus, Arendt (1990) comenta que, durante
100 anos, o anti-semitismo havia lenta e gradualmente penetrado em quase todas as camadas sociais e em quase todos os países europeus, até emergir como uma questão capaz de
unir a opinião pública. A realidade dos judeus,
privilegiados sem se integrarem, somou-se à
idéia estereotipada de uma raça “maldita” que
ameaçava a sociedade e suas estruturas, devendo portanto desaparecer.
A intencionalidade do extermínio, para ser
comprovada, deve ser vista não como um ato
individual, e sim no interior da própria filosofia
que fundamenta e governa tal processo no seio
da sociedade. Buscá-la num ato de governo,
dentro dos instrumentos legais democráticos, é
desconhecer a sua própria natureza. Ou seja, a
ação do extermínio pode ser institucionalizada,
sem que esta se torne um crime, porque o poder
que a exerce transforma alguns em seus representantes, que, ao representá-lo, representam a
si mesmos como executores de uma vontade
geral abstrata. Ou seja, a legalidade arbitrada
pela mentalidade exterminista pretende haver
encontrado um meio de estabelecer a justiça na
terra, algo que a legalidade da lei positiva
nunca pôde ou pretendeu conseguir.
4 . Em quarto lugar, o extermínio se contrói
dentro da idéia de limpeza social, administrada por um poder centralizador,
considerado imune ao mal. Seja sob a
motivação de “superioridade e purificação
da raça”, no caso do nazismo, seja sob o
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pretexto da “construção de um novo
momento histórico”, no caso do stalinismo, ou, ainda, sob a ótica da eliminação
de populações supérfluas, o pensamento
fundamentador do extermínio é o de que,
eliminando-se os componentes de determinado segmento ou etnia, promove-se o
bem para a coletividade. O sacrifício da
parte em favor do todo, a extirpação da
porção maldita, faria a sociedade encontrar seu estado ideal de normalidade, ou
retornar ao mesmo. O grupo ou segmento
executor concebe-se como ideologicamente superior, detentor da verdade, do poder
de justiça e acima das leis constitucionais. Desta forma, o mesmo se isenta de
culpa, porque desloca o pacto moral da
sociedade e as contradições sócio-econômicas para o domínio da transcendência
religiosa, da história, da natureza, da
cultura ou das necessidade sociais.
Segundo Lasch (1990), o extermínio sistemático representa apenas o ponto culminante de
um longo processo de remoção, deportação e
perseguição de populações. O totalitarismo das
sociedades modernas em estado considerado de
paz diferencia-se das formas anteriores em
situação de guerra, porque ele se dirige aos
próprios cidadãos, quando estes são um estorvo
no caminho de programas de purificação racial,
projetos de industrialização forçada ou controle
populacional. Ele repete, como exemplo, a frase
do Khmer Vermelho: “Não há nada a ganhar
mantendo-os vivos e nada a perder por suprimilos” (Lasch, 1990: 91).
Em todos os casos, o extermínio não se
apresenta explicitamente como um ato de
disputa de poder, e sim como negação e rejeição de um perfil. As vítimas, não importa se
individualmente inocentes ou culpadas, tornamse culpadas a priori (bodes expiatórios), em
nome da segurança social, da moral, da revolução (Girard, 1972). São consideradas “indignas”, “demoníacas”, “marginais”, “inúteis” ou
“pesos mortos para a socidade.”
5 . A quinta característica do extermínio é a
sua perpetração pela tortura e seqüestro
das vítimas.
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 199-212, 1994
Extermínio
Tem sido lei dos movimentos totalitários,
como ocorreu nas prisões nazistas e nos campos
de concentração da Rússia, o terror como
pedagogia do extermínio. Arendt (1990) fala
dos mais diferentes graus em que a tortura
precedeu e cercou todo o regime nazista, através da destruição da vida coletiva dos judeus,
do seu banimento do cenário político, de sua
extinção da vida grupal. Esta política de aniquilamento, que arrasava a vida social do grupo
determinado para desaparecer, atingia também
todas as suas conexões de lealdade. Os expurgos eram conduzidos de forma a ameaçar, com
o mesmo destino, o acusado e todas as suas
relações, desde os meros conhecidos até parentes e amigos íntimos: era a culpa por associação.
A prisão, os processos de segregação, as
tentativas de apagamento da personalidade são
o segundo passo do processo de extinção: matar
a pessoa jurídica do ser humano, excluindo-a da
liberdade e da proteção real da lei. Mas a
tortura própria ao terror realiza mais: mata a
pessoa moral, tentando torná-la parceira do
crime pela delação e traição dos companheiros,
fazendo, assim, desaparecer a fronteira entre o
perseguidor e o perseguido, entre o assassino e
a vítima.
Segundo Arendt (1990: 491), “a psique
humana pode ser destruída mesmo sem a
destruição física do ser humano. Na verdade, a
psique, o caráter e a individualidade parecem,
em certas circunstâncias, manifestar-se apenas
pela lentidão ou rapidez com que se desintegram”.
O corpo, porém, é o lugar privilegiado da
tortura, atingindo-se sua singularidade individual: o uniforme, a eliminação dos cabelos, os
trabalhos forçados, a privação de alimentos,
sono e ar puro, as experiências de dor, e de
espancamento — tudo isso e muito mais, conforme Arendt (1990), tem a marca pedagógica
de aterrorizar e mostrar a “superfluidade” de
todos aqueles seres humanos. Assim, a última
conseqüência do terror é que, graças à superfluidade de todos, ninguém está livre do medo:
“uma pessoa pode morrer em decorrência da
tortura, da fome sistemática, ou porque a
prisão está superpovoada e há necessidade de
se liquidar o material humano supérfluo”
(Arendt, 1990: 493).
As torturas são, então, um momento de
extrema perversão que antecede a morte anunciada. Com uma beleza lúgrube, assim termina
Arendt (1990: 496):
As massas humanas que os torturadores
detêm são tratadas como se já não existissem,
como se o que sucedesse com elas não pudesse interessar a ninguém, como se já estivessem mortas e algum espírito mau, tomado de
alguma loucura, brincasse de suspendê-las
por certo tempo entre a vida e a morte, antes
de admiti-las na paz eterna.
Falando da tortura no terrorismo da ditadura
militar brasileira, Chauí (1987) analisa que sua
função fundamental é a desumanização dos
participantes deste ato: o torturador se coloca
acima da condição humana e força o torturado
a se colocar na situação abaixo da mesma
condição. Busca destruir a sua essência, transformando-a em coisa, ou, ainda, supliciar e
lacerar o seu corpo, para, por meio do medo,
apossar-se de seu espírito e destruí-lo.
6 . Em sexto lugar, a idéia de limpeza social
traz imbutida em si a filosofia de banalização da vida e da morte. Trata-se da própria
desumanização das relações e das ações sociais. A banalização, já mencionada em Baudrillard (1993) e Ortega y Gasset (1987),
nega o projeto de cidadania e subjetividade.
E, como diria este último autor, impossibilita
pensar a situação humana de forma ampla,
sem perder de vista a dimensão do indivíduo, porque “a vida universal tem seu ponto
luminoso quando é vivenciada por cada
pessoa enquanto realidade radical” (Ortega
y Gasset, 1987: 122). A vida e a morte são
tratadas como coisas meramente descartáveis
e funcionais, porque, na verdade, os indivíduos são também assim considerados.
Do lado dos grupos sociais que detêm o
poder do processo de extermínio, a banalização
se configura como um apego excludente aos
seus próprios direitos e poderes, bem como pela
negação total do ideal igualitário. Para esses
segmentos difusos, “é como se apenas os homens considerados de primeira classe tivessem
direitos humanos”, reforça o Gabinete de Asses-
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 199-212, 1994
205
Cruz-Neto, O. & Minayo, M. C. S.
soria Jurídica às Organizações Populares —
Gajop (1991: 20) em seu estudo sobre grupos
de extermínio.
A filosofia de banalização, no entanto, contamina toda a “massa” envolvida neste processo,
incluindo-se aí os alvos do extermínio e seus
executores. Dito em outros termos, existiria
uma ausência de perspectiva de vida para
aquele que se dispõe a matar e também para a
vítima e seu contexto social, conforme assinalam Barros et al. (1993) em seu estudo sobre
extermínio de crianças e adolescentes. E nada
tão simbólico para expressar o sentimento de
banalização como uma frase pixada no muro da
favela de Manguinhos em dezembro de 1993:
“Para que ter medo se o futuro é a morte?”.
7 . O sétimo e último aspecto a ser aqui
enfatizado é a necessidade de o movimento totalitário de extermínio apropriarse de um aparato militar ou paramilitar.
A existência de uma força-tarefa para a
execução dos aniquilamentos faz a mediação entre os grupos sociais que lavram
a sentença e determinam o seu cumprimento, sem que necessariamente ponham
as mãos na missão de “limpeza social”.
Arendt (1990) fala, em seu trabalho, que
as forças policiais totalitárias nunca tiveram por tarefa descobrir crimes, mas estar
à disposição para eliminar as categorias
indesejáveis. A substituição totalitária da
ofensa presumível pelo crime possível
equivale à transformação do inimigo
suspeito em inimigo objetivo. E, para
realizar a tarefa do extermínio, essas
forças se organizam em sociedades e
grupos secretos. Individualmente, tais
policiais permanecem como membros dos
grupos secretos, mesmo quando, pelo
revés freqüente da sorte, a própria sociedade secreta os prende, os obriga a confissões e os liquida (Arendt, 1990).
Esta força militar, além das armas materiais,
geralmente está imbuída dos elementos ideológicos que justificam seus atos como benéficos
e suas próprias pessoas como apenas instrumentos de uma causa maior a que servem.
Os traços característicos do extermínio aqui
delineados de certa forma indicam que, em
206
qualquer espaço social, a sua configuração
enquanto processo social se dá de forma mais
ou menos semelhante, ora podendo lhe acrescentar atributos, ora podendo subtraí-los, na
forma de realização. A pergunta chave diante
deste problema social possivelmente seria a
seguinte: o que levaria as sociedades, em determinado momento de sua história, a perpetrar o
extermínio?
EXTERMÍNIO NA REALIDADE
BRASILEIRA
Fora dos períodos de ditadura militar no
Governo Vargas e, posteriormente, nos diferentes governos militares a partir de 1964, onde a
ideologia autoritária, o regime ditatorial e o
terrorismo político poderiam ser descritos a
partir de uma tipologia, o extermínio, no Brasil,
se coloca sempre como um fato ambíguo: um
fato “endêmico”, para utilizar um jargão da
saúde.
Como vem sendo estudado por vários autores, e conforme defendido por Feldman (1991)
no Tribual de Paris, o genocídio dos índios vem
sendo praticado desde a colonização portuguesa
no Brasil. Pode-se ter como exemplo desta
“endemicidade”, hoje, o extermínio progressivo
dos índios Yanomámi, através da agressão
geográfica, cultural e social ao seu espaço, aos
seus costumes e à sua sobrevivência. Morreram,
por uma intervenção desrespeitosa em seu
hábitat, 1.500 índios de 1987 a 1990 (Feldman,
1991). Porém não há, visivelmente, nenhum
movimento organizado para a eliminação deste
grupo étnico. Feldman encontra como única
prova material ou simbólica de vontade de
extermínio a nomeação, pela Fundação Nacional do Índio (Funai), de um responsável pela
Amazônia (onde estão os Yanomámi), um torturador conhecido dos anos 60, citado no livro
Brasil, Nunca Mais. No entanto, apesar da
“não-intencionalidade” e da “não-explicitação de
uma ideologia de extermínio”, as diferentes
etnias indígenas vão desaparecendo pouco a
pouco, frente ao crescimento de muitos grupos
com interesses em suas terras e nas riquezas
nelas contidas.
A escravidão constituiu-se, em nosso país,
uma das mais antigas instituições de domina-
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 199-212, 1994
Extermínio
ção, submissão e dizimação de povos e nações
africanas. Mas nunca, em nenhum momento, o
racismo se configurou, aqui, numa ideologia
capaz de criar grupos como o Ku-Klux-Klan
norte-americano, embora autores como Nascimento (1978) tenham denunciado a perversidade do processo de um racismo mascarado, que
para eles se configura como genocídio.
Na realidade brasileira há duas idéias muito
fortes comandando a legitimação dos atos de
extermínio: a de limpeza social e a de população supérflua. Vai se construindo no país um
senso comum de que temos um excesso de
população (pobre), economicamente supérflua e
socialmente sem raízes, candidata à delinqüência e, portanto, sem utilidade numa sociedade
competitiva que aspira às riquezas da civilização e à modernidade. Tais idéias vingam com
mais intensidade nos períodos de maior desintegração social, quando os milhares de “indesejados” somam-se aos desempregados e quando a
população economicamente ativa diminui sua
participação no mercado, tornando-se, por sua
vez, supérflua.
Num texto inédito, intitulado Pânico e
Poder: Controle social e cidadania, Bocayuva
(1992) lembra que os banhos de sangue prefigurados no Carandiru, em São Paulo, podem
ser resultantes exemplares de uma lógica exterminista que realimenta a psicologia e a lógica
autoritárias. Diz o autor:
A experiência profunda do pavor diante do
poder das massas leva o imaginário na
direção mais óbvia: soluções historicamente
conhecidas, presentes na consciência coletiva
que, como pulsões de morte e destruição,
prenunciam uma paz absoluta de cemitério,
construída sob o terror. (Bocayuva, 1992: 2)
Dentro da lógica autoritária, de ideologia
difusa, o cenário social brasileiro vem tendo a
arte de construir a exclusão, sem a necessidade
de explicitá-la em doutrinas, em milícias caracterizadas e em chefias capazes de justificá-la.
Se tais ginga e arte do poder dominante têm
sido capazes de ocultar os horrores da discriminação, é necessário, neste momento, um esforço
de desvelamento, um esforço político e social
capaz de nominar o mal e explicitar esta face
“necrosada” e obscura da sociedade.
A hipótese que se levanta neste trabalho é
que, dentro de influências autoritárias, o extermínio no Brasil se dá, sistematicamente, como
um processo de aniquilamento, de exclusão e
eliminação de grupos sócio-econômicos e
culturais considerados “marginais”, “supérfluos”
e “perigosos”. Mas não apenas. É, em última
instância, uma forma de controle populacional
e social. Segundo o GAJOP (1991), por exemplo,
falando a partir de uma pesquisa empírica, a
vítima típica do extermínio é “o homem que
sobrevive num cotidiano de dificuldades que o
impedem de projetar expectativas amplas de
vida” (p. 6).
A ideologia que sustenta este processo de
extermínio é muito fluida. Ela se expressa mais
ou menos assim:
a. Esses grupos sócio-econômicos indesejáveis não deveriam ter filhos, porque
assim só aumentam a miséria do país.
Como na sua maioria são pobres e miseráveis, são também incapazes de cuidar
de si e de educar seus filhos, que, por
isso, tornam-se marginais, ameaçando a
vida e o patrimônio das pessoas consideradas de bem.
Desta primeira afirmação retiram-se algumas
conclusões em relação aos pobres: (1) seriam
pobres porque querem ou porque nasceram
assim. Há uma idéia de fatalismo fundamentando a gênese da pobreza como sendo natural
ou, quando muito, hereditária; (2) seriam “geneticamente” estúpidos, preguiçosos e inclinados
para o crime, e potencialmente contra a sociedade; e (3) por isso, não necessitariam existir.
b. O segundo elemento desta ideologia vai
um pouco mais longe: já que os pobres
seriam ignorantes, não se cuidam e crescem desproporcionalmente às condições
de serem “gente” em nossa sociedade,
então é necessário forçá-los ao controle
da natalidade.
O corolário imediato desta premissa são os
programas dirigidos para grupos específicos de
esterilização de mulheres, patrocinados por
agências externas, em articulação com instituições do país, sob o olhar omisso dos governos
(CPI, 1992; Carvalho, 1993; CEAP, 1993).
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 199-212, 1994
207
Cruz-Neto, O. & Minayo, M. C. S.
c. O terceiro elemento desta ideologia se
reflete na mortalidade infantil enquanto
um instrumento corroborador da seleção
social. Percebe-se que a mortalidade
infantil incomoda apenas enquanto índice
internacional capaz de comparar o país
com os mais subdesenvolvidos. Depreende-se isso a partir das débeis e tópicas
intervenções de políticas sociais que
reduzem as mortes por causas preveníveis, como a desnutrição e as doenças a
ela associadas (Claves/CBIA, 1991). As
atitudes de omissão dos sucessivos governos e da sociedade dominante não se
expressam, no entanto, em documentos
ou práticas. Pelo contrário, sob as mais
diferentes retóricas invoca-se a “questão
social” como prioritária, apesar de o
direcionamento dos investimentos do
Estado desmentirem esta preocupação.
d. Em quarto lugar observar-se-ia que, apesar do controle da natalidade e da mortalidade infantil por causas evitáveis, que
incide mais sobre os pobres, eles continuam a aumentar, a crescer, a invadir os
patrimônios e as terras no campo, e a
inchar as superfícies das grandes cidades.
Não se sabe controlá-los e, na medida em
que seriam geradores de miséria, de
sujeira, de doenças e epidemias, de delinqüência e violência, eles devem ser contidos ou eliminados, caso se tornem ameaças.
Ora, este raciocínio esconderia um projeto
político dominante excludente, concentrador e
incapaz de pensar um processo redistributivo e
um convívio cidadão para os que não integram
o circuito da produção. Tal situação existente
no país chegou a um limite crucial. Os marginalizados e os excluídos somam-se pela ausência de uma perspectiva de futuro, onde o vazio
social, a fome e o desemprego são sua experiência fundamental (Minayo et al. 1993).
Em tais circunstâncias, as idéias que vicejam
podem ser assim resumidas: (a) quem sabe não
estaremos mais seguros vivendo a ocupação do
território por parte dos militares, contra a ação
dos bandos, das gangues, das quadrilhas? Este
tem sido o grande debate que se trava no
cenário das campanhas eleitorais, no Rio de
208
Janeiro desde 1991; (b) quem sabe a eliminação
física dos líderes das galeras, dos criminosos e
dos suspeitos não resolveria o problema? Este
é o discurso que justifica o extermínio e a pena
de morte “bandido bom é bandido morto”; (c)
quem sabe não encontramos formas de construir
uma fronteira real, com muros, com grades, que
separe os bons dos maus? Esta é a lógica da
construção de fortalezas, como condomínios, e
do crescimento absurdo das empresas de segurança.
Portanto, para entender o extermínio na
sociedade brasileira hoje é preciso analisá-lo
como uma visão de mundo muito mais ampla
que aquela expressa pelos executores das chacinas e justiçamentos. Por exemplo:
a. Em primeiro lugar, como uma idéia dominante em amplas camadas da população de todas as classes sociais, como
solução para os problemas sociais das
grandes cidades e como forma de se
livrar do pesadelo da miséria e dos crimes. Na sua visão fatalista dos pobres
como representação do mal e de si como
pessoas de bem, decretam tacitamente a
sentença de morte dos grupos indesejáveis.
b. Em segundo lugar, os governos, que,
representando projetos de futuro para o
país, o fazem de forma excludente, sem
nenhum apreço pelos grupos que não
conseguem participar do mercado competitivo de bens, serviços e produção. Tais
omissões se materializam na ineficiência
ou irrealismo dos projetos propostos para
esses grupos. Um símbolo deste menosprezo é ausência de apuração dos crimes
de extermínio perpetrados contra eles, ou
em apurações ineficazes e discriminatórias que reafirmam os estereótipos negativos das vítimas. Assim o mostram estudos do Movimento Nacional de Meninos
e Meninas de Rua, Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas, Núcleo
de Estudos da Violência da Universidade
de São Paulo, Centro Latino-Americano
de Estudos Sobre Violência e Saúde e
Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (MNMMR, Ibase, Nev/USP,
1991; Claves/CBIA, 1991).
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 199-212, 1994
Extermínio
c. Em terceiro lugar, aqueles grupos da
sociedade que, retirando a máscara da
hipocrisia, confessam abertamente que
recorrem freqüentemente ao extermínio
para defender seus interesses de propriedade. Nos processos de extermínio, tais
atores sociais se confundem sobretudo
com comerciantes dos grandes centros
urbanos, lesados ou amedrontados pelos
delinqüentes de rua; no campo, com
fazendeiros ou invasores, que matam
trabalhadores em busca de um pedaço de
terra para trabalhar; com grupos econômicos envolvidos em projetos de mineração
e de extração de madeira; e com a rede
de narcotráfico envolvida na conquista de
territórios e mercados.
d. Apenas em último lugar poder-se-ia colocar a responsabilidade dos grupos e categorias imbuídos da ideologia de “limpeza
social”. São os executores de uma sentença condenatória advinda das “massas”. É
disso que se fala a seguir.
EXECUTORES DE UMA SENTENÇA
ANUNCIADA
Os termos utilizados para designar os executores diretos de extermínio especificam sua
localização e pertinência social. Para efeitos de
análise, distinguem-se aqui quatro categorias
principais: (1) o justiceiro; (2) o Esquadrão da
Morte; (3) os grupos paramilitares; e (4) as
Organizações de tráfico.
1. O justiceiro é uma categoria freqüentemente citada em crimes de extermínio que atua
no vazio e na omissão do Estado, atribuindo a
si a tarefa de eliminação dos indesejáveis. As
favelas e os bairros populares são, de preferência, o contexto social onde viceja. Aí se cria a
sua autodesignação, embora esta figura nada
mais seja que um criminoso com status de
defensor. Mais do que um personagem isolado,
o justiceiro atua articulado com outros atores de
extermínio e a mando de grupos interessados na
“limpeza social”. Sua origem vincula-se às
práticas de justiça, fora e acima da lei, e do
coronelismo, em que o senhor de terra utilizava
a figura do jagunço ou do pistoleiro para defender seu território, ampliá-lo, eliminar inimigos
e perpetrar vinganças.
A convivência mais ou menos pacífica da
população com essas figuras sociais deve-se à
sua legitimação, através ora do medo, ora da
aprovação. O medo tem sua expressão mais
sensível no silêncio, enquanto a aprovação vem
de uma convicção tácita de que é preciso eliminar os que causam problemas sociais.
Num texto que discorre sobre a vivência da
violência pelos moradores de bairros populares
de São Paulo, Durham (1987) comenta que os
que aí vivem querem a exclusão e a eliminação
dos chamados “bandidos”, porque, mais do que
qualquer outro grupo social, eles necessitam
provar à sociedade que são “pessoas de bem”.
O vocabulário para designar os pistoleiros, no
campo, e os justiceiros, nos grandes centros
urbanos, permite variantes: carrascos, matadores, matadores de aluguel, caçadores, vingadores.
2. É na esfera policial que se encontra a
origem do Esquadrão da Morte. Trata-se de
uma organização constituída por policiais,
ex-policiais e detetives, com a tarefa de atuar
contra as diferentes organizações geradoras de
violência, tais como os bandos armados, bandidos, homens perigosos, entre outros. Foi criada
na década de 50, com a missão reservada e
especial de caçar e matar bandidos considerados
de alta periculosidade e irrecuperáveis. Sem a
preocupação de levar as vítimas a julgamento,
esta organização colocou-se acima e fora da lei
como sendo a “turma punitiva da polícia”,
agindo como verdadeiros “pelotões de execução”. O método de atuação empregado era a
execução sumária, a sangue-frio, sendo sempre
acompanhada de atos de tortura.
Após várias denúncias e investigações sobre
sua atuação, o Esquadrão da Morte foi oficialmente desfeito. No entanto, segundo Barbosa
(1971: 37),
O Esquadrão da Morte apenas se extinguiria
como um grupo. Passou a ser a mentalidade
de matar, que extravasou os limites da
polícia, passando a denominar carrascos
clandestinos, matadores de aluguel, grupos
de execuções sumárias, compostos de
policiais ou não, como uma sociedade
assassina secreta, a serviço de todo tipo de
interesse, ou até mesmo na luta contra o
crime.
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 199-212, 1994
209
Cruz-Neto, O. & Minayo, M. C. S.
A exemplo do antigo Esquadrão da Morte,
na década de 60, a Escuderia Milton Lecocq
surge para dar conta do enfrentamento entre a
polícia e os bandidos. Esta passa a ser, então,
confundida com o Esquadrão, pela sua composição e pela sua forma de agir, a qual fomentava a violência policial. O certo é que tanto o
Esquadrão quanto a Escuderia serviriam para
confirmar que “é um fio muito fino a fronteira
entre o crime e a lei” (Barbosa, 1971: 64).
A defesa da instituição policial sempre se
fez presente, com ênfase na acusação aos
policiais tidos como desviados de sua verdadeira função. No entanto, sob esta dinâmica de
agir, grupos passaram a atuar em vários pontos
do país, igualando policiais e bandidos na
mesma violência.
Hoje, os Esquadrões da Morte continuam
atuantes em muitos centros metropolitanos,
como o mostram, por exemplo, os acontecimentos e o inquérito policial desenvolvido para
esclarecer as chacinas de Vigário Geral, da
Candelária e de Acari, no Rio de Janeiro,
envolvendo policiais, políticos, bandidos comuns e traficantes de drogas. Em entrevista à
televisão nacional da Dinamarca, transcrita pelo
Jornal do Brasil do dia 21/07/94, um deputado
acusado de chefiar um grupo denominado
Cavalos Corredores assim reafirma a ideologia
que os move: “Bandido bom é bandido morto,
mas melhor ainda é o enterrado em pé para
não ocupar espaço. Pensando bem, o ideal é o
bandido cremado, porque a gente joga as
cinzas na privada e dá descarga”.
3. Os grupos paramilitares que mais se
destacam na relação com o extermínio são
formados por pequenos comerciantes, informantes policiais, seguranças particulares, além de
bandidos. O caso dos traficantes, que mesmo
estando inseridos neste grupo, devido ao espaço
que vêm ocupando neste tipo de ação, é aqui
apresentado separadamente.
A mentalidade de “limpeza” através da
justiça por conta própria vem se deslocando do
meio policial e atingindo vários segmentos da
sociedade civil. Assim como o “poder de polícia” foi, e ainda vem sendo, utilizado pelos
Esquadrões da Morte, sem ter a lei e a justiça
como parâmetros, da mesma forma os grupos
paramilitares passaram a incorporar esta prática.
210
Na defesa de seus negócios e propriedades,
os pequenos comerciantes das regiões metropolitanas do país articulam-se com a rede de
grupos de extermínio, buscando a troca de
segurança por apoio financeiro. Num contexto
de extrema desigualdade e insegurança social,
qualquer meio é tido como válido para a garantia dos bens adquiridos. Os acordos envolvem
informantes — ou “colaboradores” — e bandidos. O “mal” é detectado e a tarefa de eliminação é planejada e cumprida à risca.
Outro recurso de proteção e defesa é a
contratação de seguranças particulares para a
guarda de residências e/ou de estabelecimentos
comerciais. Esses seguranças, em muitos casos,
são policiais que dividem sua jornada de trabalho, ou ex-policiais que encontram nesta função
a continuidade de sua tarefa anterior. Por último, está o indivíduo treinado para esta função,
num processo bastante parecido com a formação militar.
É possível destacar uma rede interligada de
contatos, informações e propostas envolvendo
distintas categorias, em função dos mais diferentes interesses. Esta é sempre uma relação de
criminalidade e, por isso mesmo, bastante
instável, muitas vezes acarretando a eliminação
de seus próprios integrantes como “queima de
arquivo”.
Ao examinar o perfil de cada segmento
envolvido nesta categoria, é possível perceber a
disponibilidade e a competência de cada um no
trato com a destruição da vida humana. São
segmentos inseridos no cotidiano de violência,
destruindo outros grupos ou a si mesmos, num
jogo de propósitos que, quase sempre, vão bem
além do seu espaço social e da sua compreensão.
4. As organizações de tráfico são também
um dos braços executores no fenômeno do
extermínio. Não que elas trabalhem para esta
finalidade. Nascidas a partir de 1979 e desenvolvidas na década de 80, inicialmente por
prisioneiros da Ilha Grande, no Rio de Janeiro,
muitos dos quais estão hoje confinados na
prisão de segurança máxima Bangu I (RJ),
segundo Amorim (1993), essas organizações
repousam sobre um quadripé: droga, contrabando, jogo e terrorismo. Estabelecem-se nos
morros e bairros populares, onde ditam o conví-
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 199-212, 1994
Extermínio
vio social utilizando a estratégia do prêmio e do
castigo, confundindo cotidianamente a postura
paternalista e a lei do cão para dominar as
comunidades.
Para conseguir a legitimação comunitária,
essas organizações dão presentes em festas
religiosas; financiam escolas-de-samba e clubes;
constroem igrejas e escolas; emprestam dinheiro
sem juros a moradores; pagam médico e remédios em situações de emergência; financiam
funerais; dão pensão a mulheres abandonadas
pelos maridos; e dão proteção a famílias de
companheiros mortos. Em troca, exigem que os
moradores dos locais “protegidos” não delatem,
cedam a casa em caso de perseguição de rivais
ou da polícia, escondam armas e dinheiro, e
prestem assintência a feridos (Amorim, 1993).
A traição é punida com a morte.
Em resumo, o crime organizado ocupa o
vazio de assistência social que o Estado vai
deixando para trás, por burocratização, insensibilidade política e outros motivos mais. No
entanto, o preço da proteção é muito alto. O
efetivo das organizações hoje recruta um grande
contingente de crianças e jovens das famílias
“de bem” e “trabalhalhadoras” que vivem nos
morros e bairros populares, acostumando-os
com as drogas e as armas, ao mesmo tempo
que arregimenta ladrões e outros criminosos,
sem preocupações com a lei e a moral, sobretudo relativizando o sentido da vida e banalizando
a morte.
Operando em territórios ocupados por quadrilhas, o tráfico tem gerado uma guerra sem
trégua entre gangues, pelo domínio de novos
territórios, por vinganças e por castigo a traições. Os dados vêm mostrando que as organizações de narcotráfico e os grupos de extermínio são, hoje, nos grandes centros urbanos, os
maiores provedores das estatísticas de homicídios, onde quem mata e quem morre são sempre membros dos grupos sociais considerados
“indesejáveis”.
CONCLUSÕES
Compreender o fenômeno do extermínio
significa, para os estudiosos, trazer à tona esta
prática, que por si só deve ser considerada
inaceitável ao convívio, à segurança e à cidada-
nia. O seu traço fundamental é ser constituído
enquanto uma mentalidade, dentro de um
processo político-ideológico com um nítido
propósito de destruição de vidas, referendado na
necessidade de exclusão do outro.
O extermínio, enquanto dinâmica social, é
fruto, fundamentalmente, dos conflitos humanos
gerados pela negação do outro, do diferente e
da utopia da igualdade. A negação da igualdade
vem sendo cada vez mais caracterizada pela
crescente concentração de renda nas mãos de
pequenos grupos, gerando uma marcante diferenciação entre os que tudo têm e os demais,
que nem sequer podem ser. Para uma grande
parcela destes últimos resta como perspectiva a
sobrevivência em meio à pobreza e à miséria,
ou o envolvimento em esquemas de acentuada
violência, onde a vida se torna artigo ou coisa
sem valor e onde a morte pode ser precocemente anunciada.
Em relação ao conceito de extermínio,
embora do ponto de vista acadêmico se venha
preservando um cuidado na utilização do termo,
a realidade tem sido forte em reafirmá-la. As
expressões “execução sumária”, “assassinato em
massa”, “eliminação”, “morte não-acidental”,
“chacina”, “desova” e “execução extra-judicial”
escondem, todas, histórias de vida de gente
pobre, social e ideologicamente excluída, alvo
do projeto de limpeza social, com quem a
sociedade pensante e “politicamente correta”
nunca contou, e para quem tem destinado
apenas, como projeto, a expectativa do “bolo
crescer”. Sem projeto de vida enquanto indivíduo, e sem projeto social enquanto cidadã, à
“população supérflua” resta o projeto do extermínio simbólico ou real.
Enfim, pensar o extermínio, por negação, é
retomar a beleza do pensamento de Arendt
(1990), ao finalizar suas reflexões sobre a
autoritarismo:
Todo fim na história constitui
necessariamente um novo começo; esse
começo é a promessa, a única mensagem que
o fim pode produzir. “O homem foi criado
para que houvesse um começo”, disse
Agostinho. Cada novo nascimento garante
esse começo: ele é, na verdade, cada um de
nós. (Arendt, 1990: 531)
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 199-212, 1994
211
Cruz-Neto, O. & Minayo, M. C. S.
RESUMO
CRUZ-NETO, O. & MINAYO, M. C. S.
Extermínio: Violentação e Banalização da
Vida. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10
(suplemento 1): 199-212, 1994.
Este artigo tem por objetivo conceitualizar o
extermínio enquanto fenômeno político,
trazendo esta reflexão para o campo da Saúde
Pública. Parte-se de uma análise
diferenciadora dos conceitos de homicídio e
de extermínio. Em seguida caracteriza-se a
dinâmica desta prática enquanto processo
político, social, ético e moral, transcendendo
ao ato final de execução das vítimas.
Especifica-se o extermínio na realidade
brasileira e a sua relação com o contexto
social no qual este fenômeno é gerado.
Palavras-Chave: Violência; Homicídio;
Extermínio; Mortalidade; Saúde e Sociedade.
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Extermínio: Violentação e Banalização da Vida