Inventário do Patrimônio Cultural da
Arquidiocese de Belo Horizonte
Dr. Luiz Gonzaga Teixeira
Ms. Mônica Eustáquio Fonseca
Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte
Pontifícia Universidade Católica - MG
“Cuidar do patrimônio histórico-artístico eclesiástico é uma responsabilidade
cultural, que atinge a Igreja em primeiro plano”.
“Para atalharmos, quanto de nós depende, desvio de bens, objectos, títulos,
documentos, pertencentes a uma parochia, lembramos a obrigação do inventário completo e minucioso, e de sua cópia na Cúria diocesana...”
Apresentação
A Diocese de Belo Horizonte foi criada em 1921, pelo Papa Bento XV, e elevada
à condição de Arquidiocese e Sede Metropolitana pelo Papa Pio XI, em 1924. Sua
área territorial, desmembrada da Arquidiocese de Mariana, compõe-se de 28 municípios, onde vive uma população estimada em mais de 4 milhões de habitantes.
Dividida em quatro regiões episcopais, respectivamente de Nossa Senhora
da Piedade, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora Aparecida e Nossa
Senhora da Esperança, organiza-se em foranias e paróquias.
CARTA CIRCULAR. Necessidade e urgência da inventariação e catalogação do patrimônio
cultural da Igreja. Pontifícia Comissão para os Bens Culturais da Igreja. Cidade do Vaticano:
8 de dezembro de 1999, p. 59.
CARTA PASTORAL do Episcopado Mineiro ao clero e aos fiéis de suas Dioceses sobre o Patrimônio Artístico. Belo Horizonte: Imprensa Official de Minas, 3 de maio de 1926, p. 25.
Belo Horizonte, Belo Vale, Betim, Bonfim, Brumadinho, Caeté, Confins, Contagem, Crucilândia, Esmeraldas, Ibirité, Lagoa Santa, Mário Campos, Moeda, Nova Lima, Nova União,
Pedro Leopoldo, Piedade das Gerais, Raposos, Ribeirão das Neves, Rio Acima, Rio Manso,
Sabará, Santa Luzia, São José da Lapa, Sarzedo, Taquaraçu de Minas e Vespasiano.
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Instalada logo após a transferência da Capital, de Ouro Preto para Belo Horizonte, possui valioso e diversificado patrimônio histórico e artístico, representado, notadamente, por igrejas e capelas, construídas pela devoção popular a partir de inícios
do século XVIII. Assim, apresentam essas edificações os variados estilos arquitetônicos e artísticos representativos dos últimos trezentos anos do Estado e do país.
Algumas sobressaem, no quadro da arte nacional, pela sua originalidade construtiva e riqueza decorativa. Artistas como Antônio Francisco Lisboa – o Aleijadinho, Manoel da Costa Ataíde, Oscar Niemeyer e Candido Portinari aí deixaram a
marca de seu talento.
Verdadeiras obras-primas do espírito criador brasileiro, monumentos como a
capela de Nossa Senhora do O, a matriz de Nossa Senhora da Conceição e a Igreja
de Nossa Senhora do Carmo, em Sabará, as Matrizes de Nossa Senhora do Bom
Sucesso, em Caeté e de Nossa Senhora da Conceição, em Raposos, a Capela Curial
de São Francisco de Assis, na Pampulha, em Belo Horizonte, todas protegidas por
tombamento federal, e algumas também por estadual e municipais, convivem com
grande número de edificações, muitas singelas e mesmo toscas. Distribuídas pelos
municípios que integram a Arquidiocese, todas são historicamente importantes
como registro da devoção católica do povo mineiro.
Ao lado das igrejas e capelas, destacam-se também, por sua singularidade,
construções de características similares às conventuais, como o célebre Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição, para mulheres, em Macaúbas, distrito de
Santa Luzia, também do século XVIII. Em Caeté, no alto da serra homônima, o
Santuário Arquidiocesano de Nossa Senhora da Piedade, padroeira do Estado, com
pequeno anexo conventual, datado da mesma época, convive com moderna edificação, também destinada ao culto, representativa da melhor arquitetura brasileira
da segunda metade do século XX, projetada pelo arquiteto Alcides da Rocha Miranda. Contemporâneo a ela, em Belo Horizonte, o Mosteiro de Nossa Senhora das
Graças, das monjas beneditinas, projeto de Francisco Bolonha, em sua despojada
elegância, exemplifica orientação construtiva eclesiástica da mais alta qualidade.
Se umas, de reconhecida tradição e importância, notadamente aquelas protegidas por tombamento, já foram objeto de estudos técnicos visando à sua identificação histórica e análise artística, inclusive com seus registros fotográfico, cinematográfico e videográfico, a grande maioria não mereceu, até hoje, nenhum trabalho
dessa natureza, que possibilite sua preservação e divulgação. Atividades que, naturalmente, não se restringem à construção (a igreja e seus anexos), mas abrangem
todo o conjunto de bens móveis e integrados que a complementam, tais como ornamentação escultórica e pictórica, retábulos e altares, pias batismais e de água
benta, peças de imaginária, alfaias, objetos de culto, mobiliário, instrumentos musicais, arquivos e acervos bibliográficos.
Em 1926, em célebre carta pastoral, os bispos mineiros recomendavam:
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Para atalharmos, quanto de nós depende, desvio de bens, objectos, titulos,
documentos, pertencentes a uma parochia, lembramos a obrigação do inventario completo e minucioso, e de sua copia na Curia diocesana, ...” (CARTA
PASTORAL do Episcopado Mineiro ao Clero e aos fiéis de sua dioceses sobre
o Patrimônio Artístico, em 3 de maio de 1926).
A esse documento, pioneiro na história da preservação do patrimônio cultural
e religioso do Estado e, mesmo, do país, outros se somaram, como o produzido em
1997, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUCMinas, intitulado
Patrimônio Cultural da Arquidiocese de Belo Horizonte. Seus autores, com a preocupação de promover a preservação e divulgação desse patrimônio, sugeriram,
entre outros itens, a realização do inventário dos bens culturais da Arquidiocese.
Em 1998, em oportuna coincidência, o professor Luiz Gonzaga Teixeira, pesquisador e professor de História da Arte, apresentou ao então Arcebispo Metropolitano,
Cardeal Dom Serafim Fernandes de Araújo, projeto de estudo sobre algumas edificações religiosas da capital, escolhidas entre aquelas localizadas em sua região
central, e que, construídas nas primeiras décadas do século XX, se distinguissem,
não só por sua importância histórica e artística, mas também como locais de grande afluência e de devoção popular. Dessa proposta, integrada às indicações do
referido documento da PUC Minas, resultou o projeto do presente Inventário, executado desde 2000 pela citada Universidade e incorporado ao Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte, criado pelo Arcebispo Metropolitano Dom Walmor
Oliveira de Azevedo, através do Decreto nº 04G, de 22 de agosto de 2005.
A ele se agregam orientações diversas de órgãos de preservação internacionais
e nacionais, notadamente o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
– IPHAN e Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais
– IEPHA MG. Registre-se também a contribuição de importantes recomendações
pontifícias, notadamente as contidas na Carta Circular Necessidade e Urgência da
Inventariação e Catalogação do Patrimônio Cultural da Igreja, expedida em 8 de
dezembro de 1999, pela Pontifícia Comissão para os Bens Culturais da Igreja, na
Cidade do Vaticano, que estabelece que:
Os objetivos da inventariação-catalogação são múltiplos e de importância
primordial. Fundamentalmente, podem ser reduzidos a três: o conhecimento,
a salvaguarda e a valorização do patrimônio histórico-artístico, segundo critérios culturais e eclesiais. (p. 25)
No plano estadual e nacional, a já citada célebre Carta dos Bispos Mineiros,
de 1926, inicia uma orientação de trabalho que terá prosseguimento em proposições de organismos da Igreja Católica, como a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil – CNBB.
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Metodologia de trabalho
Diante da amplitude do número de paróquias existentes na Arquidiocese, decidiu – se que, em uma primeira etapa, seriam objeto de estudo apenas aquelas
localizadas em Belo Horizonte, particularmente em sua região central. Atualmente
o trabalho já se estende, também, a paróquias de outros municípios.
Iniciado, em 2000, pelas edificações protegidas por tombamentos, respectivamente federal, estadual e municipal, teve, simbolicamente, a Igreja de São Francisco de Assis, da Pampulha, hoje Capela Curial, Inventário nº 1, como o ponto de
partida, prosseguindo, pelas paróquias centrais da cidade, a partir da de Nossa
Senhora da Boa Viagem, onde se localiza a Catedral Metropolitana. Atualmente, já
são 32 (trinta e dois) os monumentos inventariados.
Uma vez concluído, cada inventário resulta em documento especial a ser entregue à Arquidiocese – Arcebispo Metropolitano, Vigários Episcopais, Vigários Forâneos e Párocos ou Administradores Paroquiais e à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Os documentos, digitalizados e transformados em publicação seriada, serão
também, posteriormente, disponibilizados na Arquidiocese – bibliotecas, centros de
documentação e informação e similares – para acesso a pesquisadores, inclusive na
Web. Para tanto, vem sendo desenvolvido, com auxílio de equipe técnica especialmente contratada, instrumento em base cartográfica digital, visando este objetivo.
Ressalte-se aqui a conveniência, por questões técnicas de segurança, tal como se
procede em inventários semelhantes, de que seja considerada a questão da qualificação das informações a serem liberadas.
Para sua elaboração, o Inventário conta com apoio e a colaboração das paróquias pesquisadas, da Cúria Arquidiocesana, de setores diversos da PUCMinas, dos
referidos órgãos governamentais incumbidos das áreas de pesquisa histórica e de
Igreja de São Francisco de Assis (Pampulha), Catedral de Nossa Senhora da Boa Viagem,
Capela do Palácio Arquiepiscopal Cristo Rei, Igreja do Sagrado Coração de Jesus, Capela do
Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, Capela de Nossa Senhora do Rosário, Capela de
Santana – Palácio da Liberdade, Capela do Colégio Dom Cabral, Capela do Instituto Santa
Teresa, Capela do Centro Maria Imaculada de Promoção da Jovem, Capela do Colégio Imaculada Conceição, Capela de São Vicente de Paulo – Hospital das Clínicas UFMG, Capela do
Hospital Governador Israel Pinheiro – IPSEMG, Capela do Hospital SEMPER, Capela de Nossa
Senhora da Saúde, Hospital de Pronto Socorro João XXIII, Matriz de Nossa Senhora de Lourdes, Matriz de Santo Antônio (Contorno), Capela de Dom Bosco – Colégio Pio XII, Matriz de
Nossa Senhora das Dores, Matriz de Santo Antônio (Funcionários), Matriz de Nossa Senhora
de Fátima, Matriz de Santa Luzia – Santuário (Santa Luzia), Capela de Nossa Senhora Aparecida – PUCMinas (Coração Eucarístico), Capela do Mosteiro de Santa Clara, Capela da Casa
Provincial João XXIII, Capela do Colégio Sagrado Coração de Jesus, Matriz de Nossa Senhora
da Consolação e Correia, Matriz de São José, Matriz de Santana – Areias (Ribeirão das Neves),
Capela de Cura D’Ars – Instituto Dom João Resende Costa, Capela de Nossa Senhora Aparecida – Seminário do Coração Eucarístico de Jesus, Capela do Cenáculo Imaculada Conceição.
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preservação do patrimônio cultural - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – Iphan e Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas
Gerais – Iepha-MG, que colocou à disposição historiadora especialista em pesquisa histórica e metodologia de execução de inventários, bem como dos similares das
Prefeituras Municipais das cidades que integram o território da Arquidiocese.
Única e inovadora no gênero e em suas dimensões, no país, segundo se sabe,
a execução do inventário é atividade que se considera permanente, não se prevendo, portanto, sua conclusão em prazo determinado.
Vários fatores convergem para essa consideração. De um lado, a grande quantidade de igrejas e capelas existentes no território da Arquidiocese a serem inventariadas, das quais se desconhece o número exato e, também, a constante criação
de paróquias, com a conseqüente construção de novas igrejas e capelas. De outro,
o fato de que o dinamismo de funcionamento das paróquias sempre provoca modificações nas referidas edificações, o que demandará permanente acompanhamento, visando a manter atualizado o seu registro cadastral. Para isso pretende-se
implantar sistema de comunicação adequado, de modo a fazer com que cada paróquia passe a informar as alterações que vier a introduzir em suas construções.
Simultaneamente à execução dessa atividade, o Inventário pretende promover, em paróquias nas quais se localizem igrejas possuidoras de significado e importância histórica e artística ou que se destaquem como centros de devoção popular – basílicas e santuários, por exemplo, amplo programa de promoção cultural
e turística da edificação.
Especificidade – Estado da arte
Também, a especificidade do universo com que trabalha vem, ao longo de sua
execução, introduzindo em sua estrutura características que o distinguem de trabalhos similares executados pelos órgãos públicos referidos.
Isto porque, voltado especificamente para a edificação religiosa de culto, deve
abranger não só o estudo e análise detalhados de seus aspectos arquitetônicos e ornamentais, como também a sua evolução histórica e inserção na comunidade a que
atende. Assim, destacam-se as seguintes particularidades:
- registro de informações gerais sobre a paróquia, sua criação e dinâmica
ao longo do tempo.
- análise circunstanciada da representação simbólica de caráter religioso
– evolução arquitetônica dos vários tipos de edificações e da ornamentação em
sua expressão temática e iconográfica e seu posicionamento devocional na igreja
em questão.
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- levantamento de acervos documentais diversos – arquivos, bibliotecas,
peças litúrgicas e pára-litúrgicas.
- levantamento, registro e estímulo às festas religiosas e pára-religiosas realizadas na paróquia.
Considerando a expressiva dimensão desse trabalho e conseqüentemente seu
alto custo financeiro, que até então vem sendo mantido exclusivamente pela PUC
Minas, a Arquidiocese tem buscado obter a colaboração de organismos públicos e
privados diversos, como o projeto recentemente aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.
A questão da divulgação das informações –
sua complexidade
O Inventário, com as particularidades já ressaltadas, defronta-se também com
as complexas questões de sua divulgação, como ocorre com os dos organismos
oficiais referidos.
De fato, desde o início de sua realização sistemática pelo IPHAN e pelo IEPHA, em Minas Gerais, nas últimas décadas do século XX, seus responsáveis têm
se defrontado com questões relativas à sua divulgação e publicação. Prós e contras
são freqüentemente objetos de considerações diversas. Para uns, a plena e total
divulgação das informações torna suscetível de riscos a salvaguarda dos bens inventariados; para outros, teria função oposta, promovendo, com a divulgação, sua
mais adequada conservação.
Embora este Congresso não tenha como propósito, especificamente, questões
desta natureza, apresenta-se, no entanto, como fórum oportuno para sua discussão,
uma vez que congrega especialistas de alto nível e formação diversa, do país e do
exterior, que se ocupam da matéria.
Partindo de cuidadosas ponderações sobre essa questão, o Inventário começa
a desenvolver instrumento de registro e recuperação de dados com base em tecnologia de informação, servindo-se dos meios mais modernos para o seu encaminhamento técnico. Baseando-se em experiência similar, a exemplo do Atlas Digital dos
Bens Móveis e Imóveis inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, trabalho que trouxe relevante contribuição para a
pesquisa e conservação do patrimônio cultural e artístico, realizado pelo Programa
de Pós-graduação em Tratamento da Informação Espacial da PUC Minas, sob a
coordenação dos professores Dr. João Francisco de Abreu e Dr. Altino Barbosa
Caldeira, recentemente lançado, busca utilizar-se dos recursos dos sistemas de informação, com a elaboração de levantamentos digitais pormenorizados.
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Seu desenvolvimento, em parceria com o Centro de Geoprocessamento de Informações Pastorais, Administrativas e Religiosas – CEGIPAR, da PUC Minas, procura reunir o conhecimento de diversas áreas como a História, a Sociologia, a Arquitetura, as Artes Plásticas, a Geografia, a Religião e a Informação, entre outras, em
complexo sistema de informações geográficas, servindo-se dos meios GIZ e ARCVIEW,
dando a conhecer um vasto acervo de mapas, fotografias desenhos e documentos específicos, de inestimável valor histórico, disponibilizando-o para a pesquisa, visando
a contribuir para sua proteção. Não resta dúvida de que o conhecimento dos bens que integram o patrimônio
cultural é um passo importante na sua valorização e preservação. A orientação
para a realização de inventários de bens imóveis e móveis, de espaços públicos, de
paisagem urbana e de sua utilização e função social constitui elemento básico para
a política de preservação; somente a partir do conhecimento e do sentimento de
valor desses bens é que a comunidade pode ter respeito e interessar-se e, até mesmo, lutar por sua preservação: “Não se pode amar e respeitar o que não se conhece”, assim como “Não se faz história a não ser dos fenômenos que continuam”. A
utilização de tecnologias que permitem disponibilizar um grande número de informações simultaneamente, de maneira ágil e dinâmica, congregadas numa base
informatizada, facilitará o acesso a dados, documentos e mapas, permitindo respostas imediatas e mais precisas em eventuais processos de intervenção.
Considerações finais
Embora sua execução se tenha iniciado recentemente, mostra-se, todavia, possível registrar algumas reflexões sobre a prática desse trabalho.
Belo Horizonte apresenta algumas particularidades em suas edificações religiosas, várias datadas da primeira metade do século passado e localizadas em pontos que guardam grande significação na memória da cidade, sendo algumas protegidas por tombamento federal, estadual ou municipal.
Seu intenso uso para o culto religioso, com grande freqüência de fiéis, levou
seus administradores a nelas promover reformas e adaptações diversas, arquitetônicas e ornamentais, nem sempre criteriosas, motivadas pela renovação do culto
católico ou pela modernização tecnológica. O entorno de algumas delas tem refletido a violenta especulação imobiliária contemporânea, que provoca agenciamentos pouco recomendáveis e mesmo inadequados de seus adros e jardins, desfigu-
TELLES, Augusto Carlos da Silva. Preservação dos Bens Culturais Ontem e Hoje: e Amanhã?
In: Revista Barroco, Nº 18, Anos 1997/2000. Belo Horizonte, 2000, p. 449-470.
BLOCH, Marc. Apud HECK, Carlos Henrique. Inventário: Um Instrumento para a Preservação da Arte Barroca no século XXI. In: Revista Barroco, Nº 18, Anos 1997/2000. Belo
Horizonte, 2000, p. 471-474.
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rando-os de sua feição original com a construção desordenada de anexos para
locação comercial ou instalação de áreas para estacionamento de automóveis.
Assim foi que, ao lamentar as transformações e destruições por que passava a
cidade na década de 1970, o poeta Carlos Drummond de Andrade, em seu célebre
poema “Triste Horizonte”, disse com a propriedade e o sabor de seu talento:
Esquecer, quero esquecer é a brutal Belo Horizonte
que se empavona sobre o corpo crucificado da primeira.
(...)
Eles a protegiam, agora protegem-se a si mesmos.
São José, no centro mesmo da cidade,
explora estacionamento de automóveis.
(...)
São José vai entrar feio no comércio de imóveis,
vendendo seus jardins reservados a Deus.
São Pedro instala supermercado.
Nossa Senhora das Dores,
(...)
abre caderneta de poupança,
lojas de acessórios para carros,
papelaria, aviário, pães-de-queijo.
Terão endoidecido esses meus santos
E a dolorida mãe de Deus?
Também em cidades próximas, algumas já conurbadas com Belo Horizonte, reincidem essas ocorrências.
No entanto, o Inventário, em parceria com as comunidades interessadas, vem
desenvolvendo projetos de recuperação de algumas das igrejas já inventariadas,
que visam a restauração de suas condições originais. Cita-se, dentre tantos outros,
o caso da Igreja do Sagrado Coração de Jesus – Siríacos Católicos, localizada, em
pequena praça, na confluência das Avenidas Alfredo Balena com Carandaí, em
Belo Horizonte, cujo adro, descaracterizado ao longo do tempo com o plantio de
espécies arbóreas incompatíveis – Fícus Elástica, sofreu profundos danos que vão
ANDRADE, Carlos Drummond. Discursos de primavera e algumas sombras. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1978, p. 11-14.
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desde o encobrimento das visadas até a obstrução de calhas de escoamento pluvial
e de sistemas de esgoto e hidráulico. Neste caso, projeto encaminhado ao Conselho Municipal de Meio Ambiente – COMAM, propondo a retirada das árvores e a
recuperação do paisagismo original, foi aprovado, todavia “vinculado à recuperação paisagística da praça (...) e a garantia de sua manutenção”. Executado, assegurará a revitalização dos jardins, da praça e de toda a região, valorizando edificação
do início do século XX (1901), projetada por Edgar Nascentes Coelho, arquiteto da
Comissão Construtora da Nova Capital.
Já as igrejas contemporâneas, assim consideradas as construídas a partir da segunda metade do século XX, em bairros novos que resultam da expansão urbana
sempre crescente, revelam, em sua maioria, um flagrante processo de esvaziamento
dos valores estético e religioso. Muitas vezes concebidas por leigos, projetadas com
a consultoria dos párocos encomendantes, na aparente intenção de modernidade e
funcionalidade, apresentam fisionomia arquitetônica pobre, sem a dignidade e elegância que devem merecer. Em seu interior, ornamentação de discutível qualidade
artística pouco ou quase nada contribui para a instauração do clima de ascese espiritual desejável em uma igreja católica.
Sem deixar de atentar para a complexa questão do gosto artístico, das intenções e expectativas de atualização das comunidades eclesiásticas e de devotos,
refletidas nessas edificações, há que se observar que incumbe ao clero, como recomendam os mais diversos documentos pontifícios, procurar, ao lado de preservar
as expressões artísticas das igrejas construídas pelos que nos antecederam, instaurar no meio católico padrões de qualidade cultural e artística que sejam autênticos
registros da criatividade de artistas contemporâneos notoriamente reconhecidos.
A execução do Inventário, atividade que se considera permanente, vem agindo dentro desse objetivo, em parceria com os órgãos de patrimônio – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – Iepha/MG e Instituto
Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico, Iphan, mantendo assessoria permanente aos párocos, tanto em relação a reformas e construção de novas edificações,
como na recuperação de elementos artísticos, indicando profissionais capacitados,
que trabalham sob sua orientação.
Em paróquias nas quais se localizem igrejas possuidoras de significado e importância histórica e artística, ou que se destaquem como centros de devoção popular
– basílicas e santuários, por exemplo –, vem sendo realizado, ainda, amplo programa de promoção cultural e turística.
É o caso da Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, a primeira inventariada e que, desde 2002, como conseqüência do trabalho ali realizado, abriga em
suas dependências Posto de Informação Cultural e Turística, onde alunos do Curso
de Turismo da PUC Minas, devidamente treinados, prestam atendimento especializado a visitantes e turistas, com a distribuição de folhetos informativos em diversos
idiomas. Essa atividade conta com a colaboração da Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte – Belotur e o apoio da Companhia Brasileira de Metalurgia
e Mineração.
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Finalmente, mas não por fim, uma licença poética, recolhida em Ítalo Calvino:
Ao se transporem seis rios e três cadeias de montanhas, surge Zora, cidade
que quem viu uma vez nunca mais consegue esquecer. Mas não porque deixe, como outras cidades memoráveis, uma imagem extraordinária nas recordações. Zora tem a propriedade de permanecer na memória ponto por ponto,
na sucessão das ruas e das casas ao longo das ruas e das portas e janelas das
casas, apesar de não demonstrar particular beleza ou raridade. O seu segredo
é o modo pelo qual o olhar percorre as figuras que se sucedem como uma
partitura musical da qual não se pode modificar ou deslocar nenhuma nota.
Quem sabe de cor como é feita Zora, à noite, quando não consegue dormir,
imagina caminhar por suas ruas e recorda a seqüência em que se sucedem o
relógio de ramos, a tenda listrada do barbeiro, o esguicho de nove borrifos, a
torre de vidro do astrônomo, o quiosque do vendedor de melancias, a estátua
do eremita e do leão, o banho turco, o café da esquina, a travessa que leva ao
porto. Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou
um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja
recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre cada
noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória. De modo que os homens mais sábios do mundo são os que conhecem Zora de cor.
Mas foi inútil a minha viagem para visitar a cidade: obrigada a permanecer
imóvel e imutável para facilitar a memorização, Zora definhou, desfez-se e
sumiu. Foi esquecida pelo mundo.
As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 19-20.
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