ENTREVISTA
Luiz Alberto dos Santos
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Desde que foram propostas como um modelo de gestão indireta, as fundações públicas de direito privado
– ou fundações estatais – vêm sendo celebradas por alguns e condenadas por outros. A ideia do PLP 92/
2007, que está tramitando na Câmara dos Deputados, é permitir a atuação dessas fundações nas áreas de
saúde, assistência social, cultura, e meio ambiente, entre outras. Até que ponto isso significa um afastamento
do Estado em relação a atividades pelas quais é responsável? Por que usar as regras do privado para gerir
serviços públicos? O modelo atual de gestão se tornou insuficiente? O que muda nas relações de trabalho?
Para discutir essas questões, conversamos com Luiz Alberto dos Santos, especialista em políticas públicas
e em gestão governamental, doutor em Ciências Sociais e Consultor Legislativo do Senado Federal para
Administração Pública. Luiz Alberto, que atualmente é subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República, também analisa nessa entrevista as mudanças que os países da América Latina atravessaram nas últimas décadas, no que diz respeito à atuação
do Estado nas áreas sociais.
Nas últimas décadas, houve uma tendência mundial à retração do papel do Estado. Como o Brasil
atravessou esses anos de crescimento do neoliberalismo? E para onde estamos caminhando?
O neoliberalismo, particularmente fundado nas premissas do Consenso de Washington, foi muito mais um
receituário para os países em desenvolvimento do que propriamente um conjunto de medidas adotadas
pelos países desenvolvidos. Na verdade, o papel do Estado sofreu uma modificação não tanto no que se
refere ao seu tamanho ou ao volume do gasto público, mas na forma utilizada para a prestação de certos
serviços e a estruturação de certas atividades, e o foco principal dessa mudança foram os países em
desenvolvimento.
Esse receituário neoliberal teve uma aplicação mais evidente em alguns países como o Reino Unido, a Nova
Zelândia e a Austrália, mas isso não significou propriamente uma redução do gasto público. Ocorreu, sim,
uma transferência de competências e de funções até ali exercidas diretamente por órgãos da administração
para entidades que, no Brasil, o ministro Bresser Pereira tentou chamar de setor público não-estatal, ou seja,
utilizando-se organizações não-governamentais ou quase não-governamentais, como eles chamam no Reino
Unido. Esse modelo tinha, de fato, um componente privado, que buscava reduzir o nível de subordinação
da gestão pública a certas restrições de ordem legal e formal. O que ocorreu foi uma tentativa de mudar o
padrão de gestão do Estado através da utilização de atores privados gerindo recursos públicos. Por exemplo, no Reino Unido não houve uma redução do que eles chamam Estado de bem-estar social, mas sim o
aumento da participação privada na gestão desse setor. No caso da Nova Zelândia também, na Austrália
um pouco menos.
E esse modelo que eles adotaram partia de uma premissa que tentou se reproduzir no Brasil, que era a da
ineficiência da gestão pública, da gestão estatal propriamente dita. Com isso, buscavam-se parâmetros de
gestão mais próximos do setor privado que levassem a um ganho de eficiência. Na verdade, isso não
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aconteceu conforme o esperado. O que ocorreu nesse processo foi, em certa medida, uma perda de
controle da atuação da administração pública por meio de atores privados. O volume de gastos total por
meio de atores privados cresceu sem necessariamente corresponder a uma redução no gasto público total.
O que mudou foi a maneira como esse gasto era feito.
Já nos países do Terceiro Mundo a discussão foi um pouco mais profunda. Países que não tinham implantado ainda o seu Estado de bem-estar social, como o caso de Brasil, Argentina, Uruguai, Peru, Bolívia etc,
passaram — para cumprir metas de ajuste fiscal, compromissos impostos ou pelo menos propostos por
organismos internacionais como Banco Mundial e outros — a reduzir o tamanho do seu gasto público na
área social, particularmente no que se refere à seguridade social. A reforma da previdência, por exemplo,
foi quase um símbolo desse processo, porque atingiu quase todos esses países, com o objetivo claro de
redução de direitos, por meio da redução do papel do Estado e do gasto público nessas áreas, com a
introdução de sistemas privados de provisão social. O caso mais notório é o do modelo chileno, seguido
de perto pelo argentino, que acaba de ser, inclusive, reformulado pela presidente Cristina Kirchner, que
restabeleceu a obrigatoriedade do regime público no que se refere à previdência social. Os países da
América Latina, em particular, seguiram algumas propostas e metodologias defendidas pelas organizações
internacionais que, mesmo nos países europeus, não foram implantadas com tanto entusiasmo assim. Mas o
Brasil não concluiu esse processo, até porque a reforma da previdência aprovada em 1998 não chegou a
ser implementada na sua plenitude. Ainda assim, houve, de lá para cá, um crescimento forte da previdência
privada no Brasil.
O Estado, propriamente dito, não mudou tanto de tamanho, mas houve essa tentativa de alteração da sua
forma de gestão. Hoje, nós temos, no Brasil, uma visão bastante distinta daquela que orientou a discussão
sobre a reforma do Estado na segunda metade dos anos 1990, porque praticamente descartamos o
discurso que associava a gestão pública à ineficiência. Nós buscamos, sim, mecanismos para enfrentar as
dificuldades, tornar o serviço público mais apto a dar respostas e, ao mesmo tempo, suprir lacunas que
foram resultantes de um processo de quase desmonte do aparelho do Estado orientado pela necessidade
de ajuste fiscal – uma expressão que ouvimos muito ao longo dos anos 1990 no Brasil em função dos
compromissos com o Fundo Monetário Internacional e outras instituições.
O que o Brasil fez naquele período? Primeiro, o governo passou por vários processos de enxugamento,
com a extinção de órgãos e entidades e redução ou redesenho de ministérios. Não havia concursos com a
mesma regularidade, ou seja, havia uma tendência a reduzir o número de servidores, se não podendo
demitir, pelo menos não recolocando servidores para substituírem aqueles que se aposentavam ou faleciam
e, ao mesmo tempo, ampliando a participação de atores privados na prestação de serviços públicos, como
foi o caso, em alguns estados, da utilização de entidades privadas para substituírem a rede pública de saúde
- não só no âmbito do SUS, em que os hospitais já fazem isso há muito tempo, mas inclusive transferindo
hospitais públicos para a gestão privada. No governo Lula, nós rejeitamos essas premissas e passamos a
investir primeiro na requalificação do setor público, por meio do fortalecimento das instituições de Estado,
da realização de concursos públicos para prover esses setores, tanto na área social, quanto na área de
formulação de políticas, reduzindo a necessidade de contratação de atores privados ou de utilização de
terceirizações.
Durante a crise econômica atual, o Estado foi chamado novamente a intervir de forma mais concreta.
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Como o senhor avalia isso? Quais as diferenças entre a atuação do Estado em um contexto de capitalismo reformado e em uma proposta de superação do capitalismo?
Eu acho que tirar conclusões desse processo atual ainda é um pouco precipitado. Mas se olharmos o que
ocorreu nos anos 1930, em função da crise de 1929, a lição que nós temos daquele processo histórico
é que a crise determinou, de fato, um novo padrão de atuação do Estado, fortaleceu a legitimidade e exigiu
uma presença maior do Estado, não apenas na esfera regulatória, como também na provisão de serviços
públicos. O que aconteceu após a crise de 1929 foi precisamente o fortalecimento do Estado enquanto
provedor de bens e serviços, como orientador da atividade econômica, investindo em infra-estrutura, definindo políticas. E esse processo, inclusive, teve como elemento fundamental o que nós chamamos de
construção do Estado de bem-estar-social, que é também um resultado da crise dos anos 1930.
Hoje, temos um mundo mais complexo, diferente. E o que nós temos observado é que têm se saído melhor
na crise aqueles países que sempre preservaram o seu Estado e não permitiram que a doutrina neoliberal
fincasse estacas profundas, como é o caso da China, que é um país hoje importantíssimo na economia
mundial, onde o Estado tem um papel importante e decisivo na economia. –Não estou defendendo com
isso o intervencionismo do Estado, mas o papel do Estado como definidor de políticas, fomento e investimento, seja presente e ativo e não omisso ou mero espectador dos acontecimentos. Essa nova crise tende a
fortalecer um perfil de atuação do Estado mais competente, atento e participativo no que diz respeito à
provisão de serviços públicos e garantia de direitos sociais e também fortalecimento da atividade regulatória,
que já é uma atividade exclusiva e permanente do Estado.
A esquerda brasileira sempre defendeu a importância de um Estado regulador, criticando a idéia de
que o setor público é ineficaz. No entanto, o modelo de fundações estatais vem se apresentando como
proposta do governo atual. O que fez com que, em certo momento, uma parte da esquerda se convencesse de que determinados serviços, apesar de permanecerem públicos, deveriam funcionar com as
regras do privado?
Primeiro, não é proposta deste governo defender que o Estado seja apenas regulador. O Estado regulador
é um desenho que foi mais associado a essa concepção minimalista de Estado, em que só é Estado aquilo
que envolve poder de polícia, regulação e fiscalização. Não. A visão de Estado que o governo do presidente Lula tem defendido é a de um Estado ativo, que participa efetivamente do desenvolvimento nacional,
por meio do incentivo ao investimento na infra-estrutura e também da prestação de serviços públicos, seja
através de empresas estatais, seja através da sua administração direta, autárquica ou fundacional.
O segundo ponto é que a nossa Constituição prevê expressamente vários desenhos que o Estado pode
utilizar para prover serviços públicos e executar suas funções. O primeiro é a administração direta, em que
o Estado exerce as suas funções diretamente, através da Presidência da República e dos ministérios, no
plano federal. Ora, historicamente, o modelo de gestão via administração direta se mostrou insuficiente
para responder ao conjunto de anseios de um Estado que foi se tornando mais complexo e mais dinâmico,
e isso fez com que, já desde os anos 1920, fossem criados no Brasil e em vários países, entes da administração indireta que foram se diversificando de acordo com suas funções. Primeiro surgiram as autarquias,
que têm patrimônio próprio, receita própria, personalidade jurídica própria, mas exercem funções e prerrogativas que são típicas ou exclusivas de Estado e, portanto, envolvem o poder do Estado e não podem ser
regidas por outro regime que não o de direito público. Algumas instituições de natureza autárquica, no
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entanto, ao longo do tempo assumiram funções de caráter empresarial, muito próximas da atividade econômica, e foram portanto classificadas como tais. Outras já surgiram como empresas e, portanto, regidas pelo
direito privado. Mas um direito privado que não é totalmente privado, porque, por serem instituições que
integram a administração pública, elas sofrem injunções.
Então nós temos as empresas estatais, que se dividem em empresas públicas e sociedades de economia
mista. As empresas públicas são aquelas em que o Estado domina totalmente o seu capital: não há nenhum
associado, nenhum sócio privado. Podem ser dois estados e o governo federal, ou só o governo federal,
pode ser o governo federal mais uma entidade da sua administração autárquica, mas o capital é todo
pertencente a instituições de direito público. A empresa pública é de direito privado, mas tem um caráter
mais público, mais próxima do ente que a controla. A sociedade de economia mista tem sócios privados e
é mais próxima do setor empresarial propriamente dito. Ainda assim, ela também sofre conseqüências por
fazer parte da administração pública como, por exemplo, a necessidade de concurso público para a
contratação do seu pessoal, a sujeição à lei de licitações e à fiscalização pelo Congresso, o fato de o seu
orçamento de investimentos ter que integrar o orçamento da União e assim por diante.
No terceiro grupo, termos as fundações, que têm uma natureza um pouco confusa. Se buscarmos as diferentes fontes bibliográficas de estudos que foram feitos ao longo de 50 anos, vamos encontrar dificuldade em
achar um consenso sobre o que são essas fundações no âmbito da doutrina. Elas surgem no direito privado,
como entes que não integram a administração pública – está lá no antigo código civil de 1916 – mas o
Estado, a partir principalmente dos anos 1950 e 1960, introduz no seu ordenamento a figura da fundação, que era inicialmente de direito privado, para prestar serviços que não sejam exclusivos do Estado mas
precisem de alguma forma do seu apoio. Aí, ele exerce essa atividade através de fundações que ele cria,
mas que se sujeitam ao regime privado em vários aspectos. Isso evolui, de certa forma, até 1987, quando
finalmente as fundações públicas são incorporadas efetivamente como um modelo da nossa organização
administrativa, mediante uma alteração ao Decreto-Lei 200/67, que é a norma que define os tipos de
instituições que existem. Aí, a lei fala em ‘fundações de direito público’. Essa discussão é incorporada pela
nossa Constituição, em 1988, e as fundações que eram originalmente de direito privado passam a ser
trabalhadas como entidades exclusivamente de direito público. Essa foi a interpretação de muitos juristas
brasileiros que estudam esse assunto e entenderam que, de fato, dali para a frente, não se admitiria mais
fundação pública de direito privado, ou seja, regida, ainda que parcialmente, pelo direito privado.
Essa foi uma discussão muito complicada, já que esse entendimento não é unânime. Alguns especialistas
renomados no Brasil continuaram defendendo a tese de que poderia haver fundações públicas de direito
privado. De fato, vários estados da nossa federação continuaram criando fundações de direito privado,
mas que integravam sua administração pública – privado no sentido de não se sujeitarem, por exemplo, ao
regime estatutário, ou aos mesmos tipos de controle das autarquias, que são também de direito público. E
essa situação gerou o debate, durante a tramitação da Emenda Constitucional 19, em que o deputado
Moreira Franco, relator da matéria na ocasião, resolveu sepultar essa polêmica, flexibilizando, colocando na
Constituição (no artigo 37, inciso XIX) de forma tal que as fundações poderiam também ser de direito
privado. No entanto, essa discussão não se dá isoladamente. Não se pode pegar e dizer ‘esse inciso diz
isso, portanto nós temos uma fundação agora que é completamente diferente da que existia antes’. Porque
a Constituição é um corpo normativo muito complexo e as referências às fundações aparecem em diversos
momentos no texto constitucional. Como a Constituição, em vários outros trechos, continua se referindo a
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essas fundações como públicas, mesmo que elas sejam em parte e para alguns objetivos regidas pelo direito
privado, continuam sendo fundações públicas e, portanto, assim como as empresas públicas e as sociedades de economia mista, sujeitas a uma série de outras regras importantes que caracterizam o status de instituição
pública das fundações.
Um dos aspectos mais complexos dessa discussão diz respeito precisamente ao regime jurídico do seu pessoal.
Para alguns, que têm se manifestado sobre isso, a mudança que foi feita no texto constitucional permitiria que se
pudesse deixar as fundações públicas de direito privado fora do chamado Regime Jurídico Único (RJU), ou seja,
o regime estatutário. Mas a tendência hoje é se entender que não é possível adotar regime jurídico de direito
privado porque a Constituição determina que seja adotado o regime jurídico único para a administração direta,
para as autarquias e fundações públicas, de modo que com isso teríamos um fator a menos de controvérsia em
relação às características de privatismo ou de sujeição ao direito privado das fundações.
A Constituição também é clara quando determina que as fundações se sujeitem às normas gerais de licitação e
contrato. Também por força do que determina a Constituição, as fundações integram o orçamento da União,
portanto elas têm um tratamento muito parecido com o das empresas estatais dependentes nesse aspecto. Mas
elas podem, de fato, sendo regidas em parte pelo Código Civil, ter uma autonomia maior do ponto de vista
administrativo e financeiro e, portanto, estabelecer uma relação menos rígida com a administração direta, como
ocorre com as empresas estatais. Ou seja, elas não são iguais às empresas estatais porque estão sujeitas, por força
da Constituição, a dispositivos que as empresas estatais não estão. Mas estão sujeitas a outras regras de direito
privado que as autarquias e fundações de direito público não estão. Elas são uma figura intermediária entre as
fundações públicas de direito público e as empresas estatais.
Mas a idéia inicial não era que os trabalhadores fossem celetistas?
Não, isso não está escrito em lugar nenhum. Isso é um mito que tem sido apregoado. Em momento algum o
texto que foi aprovado na Comissão de Trabalho pelo relator, deputado Pedro Henry, fala isso. Esse foi um
cuidado que nós tivemos na discussão com o relator para que não houvesse uma contaminação desse debate
por uma questão que não pode ser, a priori, definida em lei complementar. Ou se muda a Constituição ou
então vamos ter uma discussão caso a caso a respeito dessa matéria. O que se fez meramente foi dizer, na
forma do substitutivo do relator, que, independentemente do regime jurídico que venha a ser adotado para
cada fundação, a admissão desse pessoal depende de concurso público e que também, independentemente
do regime jurídico, o trabalhador só pode ser demitido naquelas situações que geralmente são associadas à
demissão por justa causa, ou associadas à conduta irregular do servidor. Então temos a falta grave, a
acumulação ilegal de cargos e a regra geral, que vale para servidores estatutários ou não, que é a necessidade de redução de gastos por excesso de despesas e a demissão por insuficiência de desempenho, que
também está prevista para servidores estatutários, no artigo 40 da Constituição.
Então não caberia dizer que tem que ser estatutário?
O entendimento majoritário hoje, no âmbito do governo, é que, por decisão do Supremo Tribunal Federal,
o regime terá que ser estatutário. Mas se houver uma alteração válida na Constituição que permita haver
mais de um regime jurídico, poderia ser o celetista. Isso não está colocado hoje. Hoje, o que temos em vigor
na Constituição é um dispositivo que manda haver um regime jurídico único para administração direta,
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autarquias e fundações públicas, e o conceito de fundação pública se desdobra em fundação de personalidade jurídica de direito público e personalidade jurídica de direito privado.
Em que tipos de serviço e políticas o Estado deve estar presente como protagonista, como regulador ou
estar ausente?
A Constituição é ampla em relação a isso. O Estado tem deveres inafastáveis em relação à saúde, assistência, meio ambiente, previdência social, pesquisa — uma série de competências decorrem diretamente do
texto constitucional. Isso sem falar das mais classificadas como típicas ou exclusivas, que são aquelas
relacionadas ao poder de polícia, fiscalização tributária, arrecadação de impostos, soberania, defesa,
fiscalização, controle e por aí afora. Além do que é sua função exclusiva, o Estado tem deveres. Nesse
sentido, ainda que a Constituição não determine que o Estado faça diretamente, não permite que ele se
omita totalmente.
O desenho institucional que o Estado pode utilizar para uma ou outra função vai depender exatamente do
nível de responsabilidade que a Constituição estabelece. Assim, as chamadas atividades exclusivas não
podem ser exercidas senão sob regime de direito publico e por entidades da administração direta e autárquica.
Já aquelas atividades que o Estado deve observar, cumprir, deve prestar serviços mas pode inclusive utilizar
provedores privados, tem que se ver caso a caso e encontrar a solução mais econômica, justa e correta para
atender às necessidades da população. A saúde é uma área interessante para essa discussão. Nós temos
historicamente um modelo de provisão universal de saúde pública que não é feita apenas através de hospitais públicos, mas também de hospitais conveniados da rede do sistema único de saúde que são hospitais
particulares que recebem recursos, que são contratados por meio de instrumentos para que prestem serviços
à sociedade e recebam em função dos serviços que prestam.
Temos também instituições que atuam diretamente na pesquisa, como a Fiocruz, que são extremamente
importantes na produção de vacinas, na produção de tecnologia, no desenvolvimento de novos medicamentos e mesmo na produção de medicamentos, que representam funções exercidas pelo Estado. No caso da
produção de medicamentos, os estados também têm os seus laboratórios e mesmo no governo federal já
houve uma empresa pública que produzia medicamentos, a Central de Medicamentos, que foi extinta no
governo Collor. Essa definição de qual será o melhor desenho vai depender de uma avaliação de conveniência e oportunidade que cada governo pode fazer e que depende também da lei.
Na área da assistência social, o Estado tem obrigações definidas constitucionalmente, de assegurar condições para deficientes físicos, carentes, idosos, e isso é feito hoje basicamente através de instrumentos de
participação da sociedade, por meio das organizações não-governamentais que atuam na área da assistência
social, mas também por meio dos estados e municípios e, no âmbito federal, por um ministério que fala
disso e uma instituição autárquica que faz o pagamento de benefícios para os idosos e deficientes físicos
que recebem benefícios da Lei orgânica de Assistência Social. Temos ainda os programas de transferência
de renda, como o Bolsa Família, e o Governo Federal se utiliza para prover esses serviços da colaboração
das prefeituras e da Caixa Econômica Federal, que também é uma empresa.
Na área da educação, a participação do Estado se dá de maneira dupla. Em grande medida, o Estado no
Brasil é provedor sim de serviços na área da educação, por meio das escolas que prestam educação básica,
desde o que se chamava antigamente primário até o ensino médio e também na esfera do ensino superior e
pós-graduação. Mas em todos esses níveis também existem provedores privados. Temos escolas particula-
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res e o governo vem, há vários anos, propiciando, através de incentivo fiscal, que universidades particulares
ofereçam bolsas a alunos carentes, como é o caso do ProUni, que é uma forma alternativa de provisão de
serviço público. O Estado cumpre o seu dever por esses dois tipos de instrumentos.
Isso para citar algumas atividades e mostrar que há algumas delas que só o Estado pode fazer, que são as
exclusivas, e ele faz através dos seus ministérios e autarquias, e há aquelas em que, como o Estado não é
exclusivo, ele pode prestar diretamente ou se valer da colaboração de atores privados.
As fundações estatais, ou, como prefiro dizer, as fundações públicas de direito privado, vão suprir esse
mesmo tipo de demanda, esse mesmo tipo de necessidade, permitindo assim que, por meio de instituições
que integram a administração pública, o Estado continue prestando esses serviços sem precisar transferir
totalmente para atores privados a provisão de serviços públicos.
Na administração direta, há mecanismos para dar conta dos problemas apontados? Ou a necessidade
de implantar as fundações estatais significa que o direito público não é mais viável para garantir o bom
funcionamento de alguns serviços?
Essa é uma indagação muito difícil de responder. Acho que ninguém tem condições de fazer uma afirmação
categórica em relação a isso, no sentido de dizer que o direito público não serve. Muito pelo contrário. O
regime jurídico administrativo, o direito público, é um regime muito importante no sentido de promover, de
permitir que a gestão pública se dê conforme estabelece o caput do artigo 37 da Constituição, ou seja,
observando os princípios da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legalidade, e mais recentemente, o da eficiência. O que ocorre é que o regime de direito público é, por definição, mais rigoroso,
mais restritivo em certas questões e, portanto, às vezes pode trazer algum tipo de embaraço para quem
opera em ambientes econômicos ou ambientes em que há competição com atores privados. A discussão
sobre o nível de eficiência que uma entidade pode ou não ter no âmbito do regime de direito público é
muito antiga e não está totalmente superada. As empresas privadas não atuam no âmbito do regime de
direito público, mas utilizam outros parâmetros para orientar sua atuação, principalmente a busca do lucro,
que não é o caso das instituições públicas. No caso das instituições públicas, o que vale mais é a observância dos princípios que a Constituição estabelece. Mas em alguns casos essas instituições precisam ter maior
agilidade, maior celeridade para fazer negócios, para tomar decisões, implementar decisões, e algumas
características do regime de direito privado podem ser facilitadoras dessa maior agilidade. O que precisamos saber é distinguir essas situações para adotar o regime mais apropriado a cada caso e não adotar uma
panacéia, dizer que o regime de direito privado é melhor e, portanto, é preciso privatizar ou tirar tudo da
esfera pública e pronto.
Num momento em que a fundação estatal surge como projeto de governo e parece tomar o centro dos
debates, descartando propostas como a das Organizações Sociais, como se explicam as ações de São
Paulo, que tem seus sistemas de saúde totalmente articulados em OSs, e do Rio de Janeiro, que
parece ir na mesma direção?
As fundações não significam privatização ou terceirização, pelo contrário. O governo federal não tem
autoridade sobre os outros níveis da federação. Ele responde pela administração federal. O governo de
São Paulo continua baseado na premissa do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que
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foi defendida pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que prevê a atuação de atores privados
em substituição a atores públicos. É o caso das Organizações Sociais, que são geridas por meio de
contratos de gestão e receberão recursos públicos para aplicar em nome do Estado, mas são totalmente privadas, não se submetem às regras da administração pública como são as fundações públicas de
direito público ou privado.
No caso governo do Rio de Janeiro, a premissa deve ser exatamente a mesma. O governo federal não
trabalha com essa perspectiva. Existem hoje cinco ou seis organizações sociais que foram qualificadas
durante o mandato de Fernando Henrique, mas desde 1o de janeiro de 2003, nós não criamos nenhuma
outra, não qualificamos nenhuma outra organização social.
Essa é uma opção que os governos estaduais fizeram, baseados na sua avaliação, de conveniência e de
oportunidade, e que entendem lícita na medida em que o Supremo Tribunal Federal não julgou até o
momento a inconstitucionalidade da lei 8.637, que criou esse modelo de organizações sociais. As Oscips
são um outro instrumento para que o governo possa repassar recursos para instituições privadas prestadoras
de serviços públicos em diversos segmentos, como define a lei. As Oscips são as chamadas instituições do
Terceiro Setor, ou organizações não-governamentais, que já existem há muitos anos — não estamos diante
de nenhuma criação nova. Mas elas não têm uma relação de dependência permanente com a administração.
Ela só recebe recurso, não recebe patrimônio público, é muito mais simples, é como se fosse um convênio.
A votação do projeto vem sendo adiada por conta da pressão do movimento sindical e do Conselho
Nacional de Saúde. Como o senhor analisa essa correlação de forças?
É verdade, o Conselho Nacional de Saúde tem uma posição contrária, basicamente porque não compreendeu que o modelo não é privatizante. Parece-me uma avaliação um pouco dura do Conselho, que poderia
ser resolvida facilmente se houvesse uma discussão mais aprofundada por parte de seus membros, mas é uma
discussão que no âmbito do Congresso nós temos feito com bastante transparência e clareza. O deputado
Pepe Vargas inclusive participou desse debate, tentando encontrar alternativas que pudessem afastar essas
resistências. Isso envolveu vários partidos, vários parlamentares. O nível de tensionamento que temos com
essa matéria, na verdade, é pequeno, não há tantas dificuldades. Temos esperança de que em breve essa
matéria seja apreciada pelo plenário da Câmara dos Deputados. Ela não está parada, está tramitando, mas
é uma proposta de lei complementar e tem que ser submetida ao plenário.
Quanto aos movimentos sindicais, não temos tido maiores dificuldades. Houve, aqui e ali, manifestações
contrárias, mas não temos observado uma manifestação sistemática e uma resistência sistemática das entidades sindicais e das centrais sindicais ao projeto. Na área da saúde e da educação, algumas entidades têm,
sim, se mostrado contrárias, mas acho que é por conta de não terem compreendido ainda a amplitude e o
escopo dessa proposta.
Entrevista realizada por
Raquel Torres, em
maio de 2009
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