CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO
PONTIFICIA FACULDADE DE TEOLOGIA
NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO
EDGAR DA SILVA GOMES
A Separação Estado - Igreja no Brasil (1890):
uma análise da pastoral coletiva do episcopado
brasileiro ao Marechal Deodoro da Fonseca.
SÃO PAULO – 2006
1
CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO
PONTIFICIA FACULDADE DE TEOLOGIA
NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO
EDGAR DA SILVA GOMES
A Separação Estado - Igreja no Brasil (1890):
uma análise da pastoral coletiva do episcopado
brasileiro ao Marechal Deodoro da Fonseca.
Dissertação apresentada como exigência parcial
para obtenção do título de mestre em Teologia
Dogmática com concentração em História
Eclesiástica a banca examinadora na PFTNSA,
sob orientação do Prof. Dr. Ney de Souza.
SÃO PAULO – 2006
2
COMISSÃO JULGADORA:
______________________________________
______________________________________
______________________________________
3
Quem anda com integridade
e pratica a justiça:
fala a verdade no coração,
e não deixa a
língua correr;
em nada lesa o irmão
nem insulta seu próximo;
despreza o ímpio com o olhar,
mas honra os que temem a Iahweh;
(Sl. 15, 2-4)
4
Agradeço a todos pesquisadores da história da Igreja Católica.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Dalto Caram (em memória), pouco convivemos, mas muito me ensinou.
Ao Prof. Dr. Ney de Souza, meu orientador, pela forma que me apoiou e ajudou, neste
processo de amadurecimento intelectual, acolhendo minhas dúvidas e propondo desafios.
Ao Prof. Dr. Antônio Manzatto, diretor da PFTNSA, a quem muito respeito.
À Profª Drª Maria Freire, pela amizade sincera e a paciência característica de uma mãe
acolhedora.
Aos sempre amigos e (ex) professores: Dr. Sérgio Conrado, Dr. Edélcio, Ms. Rosana
Manzini, Dr. Renold Blank, Drª Christiane Blank, Dr. Pedro Iwashita, Pe. Dalton, Pe.Chico, Pe.
João Júlio, Ir. Lélia Sbrana, Patrícia Rangel, Nali Goes, Célia Squariz e Meire Shimabukuru.
Aos colegas e amigos do mestrado, especialmente: Beth, Bino, Célio, Cida, Clotilde,
Jesus, Matalanga, Paulo, Rodrigo.
Aos funcionários, pela paciência e amizade de todos esses anos: Oswaldo, Selma, Aline,
Cristina, Isabel, Dalva, Zilda, Rita de Cássia, João Jhony e Jailda.
Aos funcionários dos Arquivos e bibliotecas visitados, pela atenção e carinho com a qual
sempre fui recebido, em especial aos funcionários do ACMSP: Jair e Roberto, e aos funcionários
do ANRJ: Sátiro, Valéria, Luiza e Jacques, e tantos outros que me “fogem” a memória agora.
Aos meus amigos: Salmir, Vani, Flavia, Janete, Ítalo, Ernande e Lizete.
À minha madrinha, minhas prima-irmãs, meus sobrinhos postiços, a todos meus amigos e
amigas de sempre, em especial: Fernando, Kátia, Valério, Manolo, Gil, Paulo, Bia e SBJunior.
À minha família que é a base e equilíbrio da minha vida: aos meus pais, Edgard e Palmira,
aos meus irmãos, Eliana e Marco Aurélio, a minha sobrinha Luara Eloí e ao meu cunhado Jair.
A ADVENIAT pela bolsa de estudo concedida.
6
SIGLAS
ABEP
Associação Brasileira de Estudos Populacionais
ACMSP
Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo
ACRJ
Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro
AESP
Arquivo do Estado de São Paulo
ANRJ
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
ASV.
Arquivo Secreto do Vaticano
CEHILA
Centro de Estudos da História da Igreja na América Latina
CEPEHIB
Centro de Estudos e Pesquisa para a História da Igreja no Brasil
Coace
Coordenação Geral de Acesso e Difusão Documental
Cocac
Coordenação de Consultas
CNBB
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CODES
Coordenação de Documentos Escritos
DICON
Divisão de Consultas
EIR
Executive Intelligence Review
Eduem
Editora da Universidade Estadual de Maringá
EDUFF
Editora da Universidade Federal Fluminense
EDUSP
Editora da Universidade de São Paulo
FAPESP
Fundação de Ampara a Pesquisa do Estado de São Paulo
FFLCH-USP
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de SP
INEP
Instituto Nacional de estudos e Pesquisas Educacionais
PFTNSA
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção
UFF-RJ
Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro
7
ABREVIATURAS
Abr
Abril
Ago
Agosto
At.
Atos dos Apóstolos
c.
Correspondência
cap.
Capítulo
Card.
Cardeal
CBA
Correspondências dos Bispos e Arcebispos
Cia.
Companhia
COD.
Código
Coord.
Coordenador
CP
Carta Pastoral
D.
Dom
dez
Dezembro
DGP
[Dado de catalogação interna do ANRJ]
Dir.
Direção
Ed.
Editora
EXmo.
Excelentíssimo
I.
Imprensa
IDH
Índice de Desenvolvimento Humano
Jo.
João
jun
Junho
8
jul
Julho
Lc.
Lucas
MC.
Macedo da Costa
Mt.
Mateus
N.
Nova
n.esp.
número especial
OCRB
Obras Completas de Rui Barbosa
OR
Obras Raras
OR-Bib.
Obras raras – Bibliografia
OR-F-SPO
Obras Raras – Folhetos – [Dado de catalogação interna do ANRJ]
Org.
Organizador
Orgs.
Organizadores
out
Outubro
PIB
Produto Interno Bruto
PRP
Partido Republicano Paulista
R.
Rampolla
Rm.
Romanos
set
Setembro
Sf.
Sofonias
SpR
Spolverini a Rampolla
Sr.
Senhor
Srs.
Senhores
Typ./TYP.
Typographia
9
Resumo
O trabalho de pesquisa consignado sobre a “Separação Estado – Igreja no Brasil” tem o intuito de
contribuir, sem grandes pretensões, com uma temática pouco valorizada na historiografia civil,
onde de acordo com o material pesquisado, não encontramos nenhuma bibliografia específica
sobre o assunto em questão, e, quando o contexto analisado pelos historiadores exigiu tal
abordagem, ela foi quase sempre realizada de maneira superficial. Para realizar um trabalho mais
específico sobre esta temática contextualizamos nos dois primeiros capítulos a história social na
Europa e no Brasil do século XIX. No terceiro capítulo tratamos do interesse específico do
catolicismo em determinados aspectos do cotidiano da sociedade como a laicização da educação,
dos cemitérios, do casamento civil, entre outros e que foram abalados pela separação Estado –
Igreja com o Decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890. No quarto e último capítulo analisamos a
Pastoral Coletiva do episcopado brasileiro ao clero e aos fiéis e a reclamação ao Marechal
Deodoro, chefe do Governo Provisório relatando a situação da Igreja no Brasil com a “indigna”
separação entre os dois poderes aliados desde a colonização do Brasil.
Palavras Chaves:
Aliança
Estado
Igreja
Monarquia
Política Partidária
República
Separação
10
Resumen
El Trabajo de pesquisa consignado a la “Separación Estado – Iglesia en Brasil” tiene el intuito de
contribuir, sin grandes pretensiones, con una temática poco valorizada en la historiografía civil,
en donde de acuerdo con el material investigado, no encontramos ninguna bibliografía específica
sobre el asunto en cuestión y, cuando el contexto analizado por los historiadores exigió tal
abordaje, ella fue casi siempre realizada de manera superficial. Para realizar un trabajo más
específico sobre esta temática, se contextualizó en los dos primeros capítulos la historia social de
Europa y del Brasil del siglo XIX. En el tercer capítulo tratamos del interés específico del
catolicismo en determinados aspectos de lo cotidiano de la sociedad, como la laicanización de la
educación, de los cementerios, del casamiento civil, entre otros y que fueron abalados por la
separación Estado - Iglesia con el Decreto 119-A del 7 de enero de 1890. En el cuarto y último
capítulo, analizamos la Pastoral Colectiva del Episcopado brasilero, al clero y a los fieles y a la
reclamación de Marechal Deodoro, jefe de Gobierno Provisorio, relatando la situación de la
Iglesia en Brasil, con la “indigna” separación entre los dos poderes aliados desde la colonización
de Brasil.
Palabras Claves:
Alianza
Estado
Iglesia
Monarquia
Política Partidaria
República
Separación
11
ABSTRACT
The consigned paper about the “Separation State-Church in Brazil” is aimed at contributing, with
no great pretensions, to a little valued theme in the civil historiography in which, according to the
searched material, no specific bibliography about the referred subject has been found and when
the analyzed context by the historians demanded such an approach, it was most of the time done
in a superficial way. In order to carry out a more specific study about this topic, in the two first
chapters we have contextualized the social history in Europe and Brazil in the 19th century. In the
third chapter we have discussed a specific interest of the Catholicism in some determined aspects
of the everyday life in society such as the removal of the religious character of education,
cemeteries, civil marriage among other that have been affected by the separation State-Church
according to the act 119-A from January 7th, 1890. In the forth and last chapters we have
analyzed the Public Pastoral in the Brazilian episcopacy to the clergy and congregation and the
complaint to Marechal Deodoro, the leader of the Provisional Government, relating the situation
of the Church in Brazil with the “indignant” separation of the two allied powers since the
colonization of Brazil.
Keywords:
Alliance
Church
Monarchy
Party Politics
Republic
Separation
State
12
INDICE
Introdução...........................................................................................................................
15
CAPITULO I
I. Século XIX: A Igreja Católica em um mundo em acelerada transformação............
21
22
1. A secularização da sociedade contemporânea e o abalo da aliança trono-altar................
1.1. O sentimento anticlerical no século XIX..............................................................
29
33
2. A dilatação da fé católica no século XIX..........................................................................
37
3. O saudosismo pelo “antigo” afasta a Igreja da resilência exigida no presente.................
43
4. Igreja e Estado em políticas opostas: Liberalismo x Ultramonstanismo..........................
4.1. A Europa: 150 anos de transformações políticas e sociais: 1648-1798................
4.2. Os pensadores liberais definem uma nova sociedade...........................................
4.3. O predomínio do catolicismo “intransigente”.......................................................
4.4. A necessidade de se reestruturar internamente.....................................................
49
50
52
54
55
5. Os papas da reação católica no século XIX: Gregório XVI, Pio IX e Leão XIII
62
CAPITULO II
II. Segundo Reinado: Entre as incertezas e as transformações (1840-1891).................
65
66
1. A imprensa: forte aliada dos republicanos contra o regime monárquico..........................
70
2. O declínio da monarquia no Brasil...................................................................................
2.1. A Questão Militar.................................................................................................
2.2. A Questão Escravista............................................................................................
2.3. A Questão Religiosa.............................................................................................
2.3.1. Uma outra “questão”: a perseguição aos religiosos...........................................
2.3.2. A Questão dos Bispos........................................................................................
73
74
78
81
81
83
3. As bases sociais de apoio ao republicanismo no Brasil....................................................
3.1. A elite cafeeira do Oeste Paulista.........................................................................
3.2. Os “pensamentos” e sua influência nas instituições.............................................
3.2.1. O Liberalismo no Brasil.....................................................................................
3.2.2. O ideal Maçom e sua influência no Brasil.........................................................
3.2.3. O pensamento positivista no Brasil....................................................................
89
90
91
92
93
95
4. A Monarquia atrelada à figura de D. Pedro II..................................................................
99
5. A Economia: da resistência à transformação....................................................................
5.1. A Estrada de Ferro: mola propulsora da economia brasileira...............................
5.2. O Brasil na dinâmica da diversificação capitalista...............................................
103
105
108
13
6. O que muda com a “Proclamação da República”.............................................................
109
CAPITULO III
III. Nascimento, educação, matrimônio e morte: eis a questão!.....................................
112
113
1. As tentativas de reforma no Império para quebrar o “monopólio” da Igreja Católica.....
115
2. Foram-se os anéis com dificuldade ficaram os dedos preservados...................................
120
3. Registro Civil: nascimento, matrimônio e morte..............................................................
125
4. O matrimônio católico “finalmente” cedeu seu espaço ao casamento civil no Brasil......
128
5. Morte: a laicização dos cemitérios....................................................................................
133
6. Educação: a exclusão do ensino público religioso no Brasil............................................
6.1. A situação do ensino público no Império.............................................................
6.2. As Reformas: Cunha Barbosa, Couto Ferraz, Leôncio de Carvalho....................
138
143
145
7. A passagem de ida para separação Estado – Igreja no Brasil...........................................
152
CAPITULO IV
IV. O CONTEXTO DO SURGIMENTO DAS PASTORAIS COLETIVAS DE 1890.
155
156
1. O processo de reordenação das instituições políticas e sociais no Brasil.........................
163
2. A [falsa] noção de se ter uma ideologia motora na formação da República.....................
167
3. Atrito em casa: divergência entre os religiosos e a hierarquia do catolicismo (1891).....
169
4. Indicações e remanejamento do episcopado brasileiro no alvorecer republicano............
4.1. O Internúncio Mons. Spolverini no cenário político-religioso brasileiro.............
4.1.1. D. Macedo e a questão sucessória na diocese do Rio de Janeiro.......................
173
175
179
5. A postura diplomática do episcopado na separação Estado – Igreja no Brasil.................
182
6. A nada fácil articulação política pré-Constituição Brasileira de 1891.............................
188
7. A nova realidade que se impunha ao catolicismo no alvorecer republicano no Brasil.....
193
CONCLUSÃO.....................................................................................................................
200
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................
214
ANEXOS..............................................................................................................................
227
14
1. Correspondência Circular: 15 de maio de 1890 Mons. Spolverini Æ D. Lino.................
228
2. Correspondência: 20 de junho de 1890 D. Lino Æ Mons. Spolverini..............................
229
3. Correspondência Pessoal: 28 de junho de 1890 Mons. Spolverini Æ D. Lino.................
230
4. Correspondência Pessoal: 1º de julho de 1890 D. Lino Æ Mons. Spolverini..................
231
5. Correspondência Confidenciale: 7 de agosto de 1890 Mons. Spolverini Æ D. Lino.......
232
6. Correspondência N. 843: 19 de abril de 1891 Mons. Spolverini Æ D. Lino...................
233
7. Correspondência Circular: 14 de maio de 1891 Mons. Spolverini Æ D. Lino.................
234
8. Correspondência com anexo: 18 de maio de 1891 D. Lino Æ Mons. Spolverini............
236
9. Correspondência Circular N. 891: 16 de junho de 1891 Mons. Gualtieri Æ D. Lino......
237
10. Correspondência: 30 de junho de 1891 D. Lino Æ Mons. Gualtieri..............................
238
11. Correspondência N. 894: 10 de novembro de 1891 Æ Mons. Gualtieri – D. Lino........
239
15
INTRODUÇÃO
16
O fato religioso, seja o que for que se pense a respeito de suas origens e de seu
conteúdo, constitui um aspecto importante da vida das sociedades contemporâneas,
contribuindo para especificá-las. [...] contentemo-nos, portanto, em assinalar a
existência de um fato religioso, que teve e que ainda tem importância na história das
sociedades, com muitas e diferentes relações com os demais componentes da vida
coletiva. [...] O que de fato prenderá nossa atenção não é a intimidade da consciência
pessoal, o conteúdo da fé, mas o fator religioso, enquanto ele ultrapassa os limites da
vida particular como fenômeno social. Além do mais, o fato religioso comporta de
ordinário uma dimensão social: ele é vivido em comunidade1.
O objeto deste trabalho é a separação Estado – Igreja no Brasil pelo do Dec. 119-A de 7
de janeiro de 1890 que motivou a publicação2 das pastorais coletivas do episcopado brasileiro: ao
clero e aos fiéis do catolicismo e ao Chefe do Governo Provisório Mal. Deodoro da Fonseca. As
pastorais coletivas não serão “analisadas” em sua forma metodológico-literária, o contexto que
1
RÉMOND, René. O Século XIX 1815-1914. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2004. p. 164-165.
Cf. ACMSP. Documentos em fase de catalogação: O episcopado brazileiro ao clero e aos fieis da Egreja do Brazil.
São Paulo: Typ Salesiana a vapor do Lyceu do Sagrado Coração, 1890; ACRJ. Série CP046: Reclamação do
episcopado brasileiro dirigida ao EX.mo Sr. chefe do Governo Provisório. TYP. de G. Leuzinger & Filhos, Ouvidor
31-6158-90.
2
17
propiciou o seu surgimento a reação dos atores que subscrevem as pastorais é que será analisado
por este trabalho.
A escolha deste tema deve-se a problemática da confusão hodierna entre Estado e
Religião, que reproduz o passado, com grave conseqüência para a segurança de países ou grandes
regiões, envoltas numa espessa nuvem ideológica de fundo religioso e que carrega consigo um
grande número de vidas cooptadas pela alienação do discurso teológico-civil em prol de interesse
estatal; exemplos concretos não faltam, basta citar inúmeros conflitos iniciados apenas no século
XXI, que conta com apenas seis anos “de vida”, mas que acumula uma gama considerável de
maus exemplos na implícita, às vezes explícita relação Estado – Religião, que vem provocando
“guerra Santa” com ataques terroristas ou “guerra Cirúrgica” organizada por exércitos embasados
no mesmo discurso (teológico-civil) de governos imperialistas para conquista com motivo
espúrio, outros conflitos aparentemente menos importante ocorrem cotidianamente na forma de
preconceitos inter-religiosos com seta para a nacionalidade dos povos envolvidos.
Por outro lado, no contexto atual, o relativismo é uma “cultura” que predomina na
sociedade ocidental. O homem contemporâneo ignora o problema que não atinge sua vida
privada; o coletivo foi sendo relegado ao segundo plano na discussão pós-moderna. Quando o
homem se dá conta do dano causado ao coletivo pelo descaso com o particular, pequenos
problemas se transformaram em impasse de difícil solução.
Para realização deste trabalho, os caminhos percorridos foram os usuais na história social.
Pesquisamos nos arquivos nacionais documentação que desse suporte material para esta
discussão e apoio bibliográfico na historiografia brasileira, sempre imprescindível. Mas apesar da
Igreja Católica ter sido desde nossa colonização um estamento relevante na vida da população
brasileira a historiografia não nos oferece material suficiente para uma análise detalhada sobre o
tema relevante que foi nossa virada histórica monárquico-republicana.
18
Nosso trabalho está composto de quatro partes temáticas, distribuídos nos dois primeiros
capítulos está o contexto político-social da Europa e do Brasil com suas significativas
transformações políticas e sociais ocorridas no século XIX. O capítulo terceiro e quarto
abordaram o conflito ideológico entre Estado – Igreja no Brasil a tensão mudança – preservação e
os meios utilizados pelo Estado e a Igreja para prevalecer sua posição.
O primeiro capítulo apresenta em linhas gerais a secularização e o abalo “definitivo”
trono-altar numa Europa em acelerada transformação político-capitalista que transforma a noção
estática de sociedade existente em décadas recentes que causou tensão com o catolicismo. O
catolicismo resistente à mudança e fortemente atacado voltou se para uma política interna de
reestruturação, o ultramontanismo, que levou a romanização do orbe católica através de papas
contestados, mas decididos a fazer valer seu ponto de vista político-social.
A política ultramontana foi acolhida progressivamente pelo episcopado brasileiro a partir
do Segundo Império que teve na figura antagônica de D. Pedro II sua força e seu fracasso, o
Brasil monárquico conheceu sua ascensão e seu declínio através do comando de D. Pedro II, sua
base aliada foi se enfraquecendo, a força político-econômica foi mudando de mão e
geograficamente se deslocou de norte a sul do país. A transição monárquico-republicana contou
com o acelerado processo de reordenação da sociedade na ordem mundial, aqui leia mundial
relativo à Europa.
Havia desde o Segundo Império acirrado embate entre os estamentos e as castas que
dominavam a sociedade brasileira, este conflito foi ao mesmo tempo e na mesma medida, luta de
interesses. Com a queda do Império os republicanos buscavam sua afirmação no poder, e, para
isto recorreram ao método usual quando uma mudança de direção ocorre na sociedade, se tentou
eliminar a influência, no caso, do catolicismo que esteve diretamente ligado às esferas
dominantes desde a colonização do Brasil. Por isso no terceiro capítulo nosso foco foi delimitar o
19
campo de combate Estado – Igreja pela consciência da população, e isto, só poderia ser realizado
conquistando “corações e mentes” daqueles que nem de longe participaram do processo de
reordenação política da sociedade, mas seu cotidiano foi sacudido pelas mudanças progressivas a
partir de 15 de novembro, educação, matrimônio e morte esteve na pauta do dia desde o decreto
119-A de 7 de janeiro de 1890 de separação Estado – Igreja até a promulgação da Carta
Constituinte em 24 de fevereiro de 1891.
O catolicismo esteve próximo do objetivo de conquista da população, por mais de três
séculos, mas os republicanos entraram na disputa dispostos a vencer. Na tentativa de relegar à
religião um papel político secundário na vida da população decretos e leis foram
progressivamente promulgadas. O período foi tenso e rico em disputas internas e externas para o
catolicismo que além de se defender da tentativa de ser espoliado no que havia conquistado no
Brasil, precisou apaziguar os atritos ocorridos a partir da tentativa de se reorganizar
administrativamente após a separação do Estado.
O trabalho de aproximação com o novo regime político brasileiro contou com a figura de
D. Macedo da Costa, bispo experiente em conflitos com o Estado desde a “Questão Religiosa” da
qual foi protagonista ao lado de D. Vital. Com o passar dos anos a experiência havia mostrado a
D. Macedo que a diplomacia seria a melhor arma para apaziguar os ânimos de parte do
episcopado tradicionalista e dos republicanos jacobinos. Em torno da figura deste bispo forte e
sábio, e, do esforço do internúncio apostólico Mons. Spolverini se reuniu o episcopado para
defender o catolicismo e projetar seu futuro na nova ordem política brasileira.
A motivação para este trabalho vem do fato que é factível uma análise do problema
hodierno através do prisma da disputa Estado – Igreja no Brasil, e apesar das mudanças operadas
no quadro da homogeneidade do catolicismo no Brasil, esta religião, ainda influencia a ordem
civil e política do país, para aqueles que se dedicam às diversas pastorais católicas achamos
20
conveniente retomar uma temática que por vezes ainda hoje esbarra na tentação do passado de se
retomar alianças que de acordo com nossa análise mais subtraiu do que somou benefícios para o
que é específico a cada um desses estamentos na história da cristandade. Clero e o laicato
precisam estar atentos à política pós-moderna, o papel primordial refletido pela DSI é
diametralmente oposto aos propósitos desta política globalizada que gera mais morte do que o
resgate da dignidade dos excluídos. Este trabalho procura contribuir, através da história da Igreja,
com a sociedade e o catolicismo, em vista de uma reflexão política madura de colaboração sem
confusão entre Estado e Igreja Católica no Brasil.
21
CAPÍTULO I
22
Século XIX: A Igreja Católica em um mundo em acelerada transformação
O cristianismo se mostrara incapaz de paz. Com isso, decididamente perdera
credibilidade, de modo que cada vez menos formava o vínculo decisivo religioso,
cultural, político e social da Europa. Assim, contribuiria para o processo de
desligamento da religião, de secularização, de crescente mundanismo que determinaria
de modo decisivo o caráter da nova era – a modernidade. Uma nova cultura secular
estava se formando3.
Neste capítulo pretendemos tratar da complexa situação da Igreja Católica no século XIX
onde a relação da sociedade moderna com a Igreja foi profundamente abalada pela reação
defensiva da hierarquia romana, com a chamada política ultramontana diante, de um mundo em
“revolução”: principalmente a revolução industrial, que transformou as relações de trabalho
provocando reações diversas na sociedade, entre elas a revolução iniciada pelos ideólogos do
socialismo, os comunistas Marx e Engels4.
A hierarquia católica se sentiu desafiada pelo mundo moderno e tentou garantir sua
estabilidade com uma atitude que não correspondia com o contexto histórico, uma instituição de
3
4
KÜNG, Hans. Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 177.
MARX, Karl; FRIEDRICH, Engels. O manifesto comunista. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
23
quase dois milênios e resilente as mudanças, procurou à sua maneira preservar seu status quo
“reconquistado” por um breve período no século XIX. Sendo a instituição mais antiga da história
suas políticas geradas nas suas próprias contradições internas e externas causam conseqüências
de longo alcance. O poder espiritual do papado como condutor da sociedade cristã estava sendo
efetivamente abalado, após anos de perene estabilidade, conquistada através de alianças com os
monarcas católicos, e esta situação parecia continuar possível por um breve período do século
XIX onde:
Na Europa a Monarquia representativa ascende para o seu apogeu. Em 1837 inicia-se na
Inglaterra a época vitoriana, espécie de modelo universal. A República romântica de
1848 dos franceses caia ante o novo 18 de Brumário de 2 de dezembro [...] Esbatia-se
pouco a pouco a onda revolucionária que se espraiara no Velho Mundo. No inicio
triunfal da máquina e do liberalismo econômico, as grandes nações guias da Europa
julgavam encontrar na monarquia temperada o justo equilíbrio entre a tradição e o
progresso, ou a forma perfeita de governos livres5.
Mas enquanto essa certeza política das nações européias se esvaia, a hierarquia católica
sonhava em manter sua influência política neste modelo que foi sendo abandonado pouco a
pouco, com isso, no decorrer dos séculos surgiram questionamentos de maior ou menor
intensidade na história da Igreja, como por exemplo, na obra “Da Monarquia6” concluída por
Dante Alighieri provavelmente no ano de 1298, e que foi um tratado político inspirado na
filosofia escolástica onde o poder do papado tem sua validade refutada:
5
6
BELLO, José Maria. História da República: (1889-1954). 5. ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional. p. 18-19.
Obra no INDEX até o ano de 1908. Cf. KÜNG, Hans. Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 149.
24
[...] falta de jurisdição da Igreja nesta matéria [...] Prova-se assim que a autoridade da
Igreja não é a causa da autoridade imperial: Se não existindo ou não atuando uma coisa,
a outra possui toda a sua virtude, a primeira não é causa da virtude da segunda: não
existindo ou não atuando a Igreja teve o Império toda sua virtude; logo a Igreja não é a
causa da virtude do Império, e (sic) por conseguinte, não o é de sua autoridade, pois a
mesma coisa é a sua virtude e a sua autoridade. [...] A faculdade de autorizar o reino de
nossa mortalidade é contrária à natureza da Igreja; logo, não constitui parte de suas
faculdades. [...] Os argumentos precedentes provam suficientemente, pelas suas
conseqüências funestas, que a autoridade do Império não depende de maneira alguma
da Igreja. [...] se demonstrou que a autoridade do Império não é proveniente da
7
autoridade do Sumo Pontífice [...] .
Os questionamentos sempre fizeram parte da vida política da humanidade, pois o ser
humano é essencialmente um ser para a política, mas nenhuma transformação político-social
pareceu naquele contexto ser tão nociva para o catolicismo8, onde vozes se levantaram para
proclamar sua extinção, os comunistas pareciam ter uma certeza inabalável de sua derrocada9.
Na Europa do Século XIX se realizaram as mudanças que transformaram a sociedade e
forjaram uma nova existência baseada no progresso filosófico - científico, esteio do homem
contemporâneo desgarrado da proteção religiosa que imperou por séculos, quando o cristianismo
7
DANTE ALIGHIERI. Da Monarquia. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. p. 128 [Et seq.].
Após as teses de Lutero em 1517, a resposta não tardou e veio na forma de um grande concilio ecumênico, o
concilio de Trento (1545-1563), também chamado de contra-reforma, pois neste período após um curto período de
embates para restaurar a unidade cristã a igreja Católica lançou-se ao ataque. Isto quer dizer que até então esta
instituição milenar ao contra atacar seus adversários, mostrou-se mais uma vez ser resilente as mudanças. Por isso é
que chamamos a atenção para o fato “intra-eclesial” ter se sobressaído no século XIX, o que de certa forma é
compreensível dado que após as seguidas turbulências enfrentadas a partir do século XVI tenha feito a Igreja
Católica negar o mundo para se fortalecer, coisa que inegavelmente vem acontecendo desde os primórdios do século
XIX onde inegavelmente a Igreja Católica conseguiu através de sua política romanizante agregar as Igrejas
particulares na órbita da Santa Sé revitalizando sua abalada influência política. Consultar: ALBERIGO, Giusppe.
História dos concílios ecumênicos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995; ZAGHENI, Guido. A idade contemporânea. São
Paulo: Paulus, 1999; MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 4: A era
contemporânea. São Paulo: Loyola, 1997.
.
9
MARX, Karl; FRIEDRICH, Engels. O manifesto comunista, 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 39-41.
8
25
tutelava o agir político-intelectual.
Ao se libertar da tutela imposta pelo catolicismo, parte dos políticos e intelectuais
fomentaram o espírito anticlerical que teve seu apogeu no Século XIX. A tutela da Igreja Católica
não se fazia mais necessária para o espírito livre que passou a imperar naquele contexto de
euforia cientificista, o teocentrismo estava cedendo seu espaço ao antropocentrismo, o homem
estava se sentindo senhor de si e de toda natureza, tentava através das experiências científicas
desvendar os mistérios do mundo concreto. A estabilidade que a monarquia inspirava na Igreja
Católica começou a ruir “definitivamente10” na Europa do século XIX:
A vitória da terceira República francesa repercute naturalmente entre as elites
brasileiras, tão atentas sempre a tudo que vem da França. Renascem as velhas idéias
liberais, que se sintetizam nos compromissos do Manifesto de 186911: reforma eleitoral,
reforma da justiça, abolição do recrutamento e da guarda nacional e emancipação dos
escravos. Mas semelhante programa de “Reforma” – para evitar a “Revolução” – não
pode satisfazer a espíritos menos contemporizadores ou mais lógicos12.
E isso se reflete mais uma vez no Brasil, onde também ao se concretizar o regime
republicano, anos mais tarde vem com as mesmas conseqüências européias para a Igreja Católica:
o que estava acontecendo parecia ser uma punição para a Igreja Católica por ter se aliado a
política de Estados13 beligerantes, política esta que é antagônica ao reto seguimento do
10
O grifo para definitivamente acima citado é para destacar que isso se refere apenas às monarquias em que a Igreja
Católica se apoiava para manter-se influente politicamente, mesmo sabendo que a Espanha é uma “monarquia” ela
não se manteve na forma absolutista como em regra se unia ao catolicismo para governar.
11
RUI BARBOSA. A questão social e política no Brasil: OCRB. V. 46. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1988. p. 79-80.
12
BELLO, José Maria. História da república: (1889-1954). 5. ed. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1964. p. 19.
13
“Desci então à terra e levantei uma grande cruz, à entrada do porto, numa elevação situada a oeste e bem visível,
para fazer saber que essa terra pertence a Vossa Alteza, e na verdade, no sinal de Jesus Cristo, nosso Senhor, e para a
honra de toda cristandade”: Essa observação no livro de bordo de Cristóvão Colombo – datada na quarta-feira, 12 de
dezembro de 1492. MEIER, Johannes. In: História Liberationis: 500 anos de história da igreja na América Latina.
São Paulo: Paulinas; CEHILA, 1992, p. 89-122.
26
evangelho, mas convergente com os interesses expansionistas do cristianismo católico,
entendidos naquele contexto como deveres missionários que, no entanto começaram a ser
duramente criticado pela sociedade moderna14. O anticlericalismo foi inflamado por instituições
do espírito dos tempos modernos, como foi, por exemplo, a maçonaria, abordada no segundo
capítulo desta dissertação, que na Europa foi um rival extremamente pernicioso para as
pretensões do catolicismo15.
Com o desdobramento deste processo, vivemos hoje, numa sociedade dominada pela
globalização com sua economia predominantemente capitalista, muitas vezes desumana quando
pretende uniformizar tudo e ignora o que não consegue incluir fazendo em alguns casos uma
higienização16 muito em voga na atualidade. Mesmo que essa exclusão tenha sido provocada pelo
processo das políticas de resultado imediatista, excludente e irracional que visa apenas o lucro
sem se comprometer objetivamente com as suas conseqüências.
É certo que devemos tomar cuidado para evitar generalizações inconseqüentes fazendo
parecer que o progresso técnico - cientifico e a globalização só nos trouxe aspectos negativos,
mas em um mundo em que para os que crêem no cristianismo, mesmo que os materialistas
passem por cima deste aspecto, a globalização só é valida quando a dignidade humana for levada
em consideração para a formulação de suas políticas.
14
A Igreja Católica se prestava mais aos interesses do Estado do que aos interesses do evangelho como nos atesta o
Frei García de Toledo: “se não há ouro, não há Deus nas Índias” in Parecer de Yucay de 1571. RODRIGUES
LEON, Mário A. In: História Liberationis: 500 anos de história da igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas;
CEHILA, 1992, p. 69-88.
15
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: a era do liberalismo. São Paulo: Loyola,
1996.
16
Utilizo este termo no sentido político que a ele foi se conotando a partir do século XX para se combater a política
discriminatória para com os excluídos dos sistemas globalizados, onde se tornou fácil e conveniente proteger os
interesses das classes dominantes, empurrando para a periferia dos oásis de prosperidade aquela parcela de
miseráveis que o sistema não consegue, ou não que se preocupar com ela, e esta aí um aspecto negativo da
contemporaneidade provocado pelo processo capitalista de globalização, onde infelizmente o que vemos crescer em
ritmo acelerado é a pobreza, principalmente dos países pobres e em desenvolvimento.
27
A gênese das transformações da sociedade contemporânea, as revoluções de idéias tecnocientíficas tiveram como berço primordial a Europa. Foi na Europa que o mundo modernocontemporâneo ocidental foi forjado. O modelo civilizado na perspectiva européia ocidental
continua sendo, assim como na colonização da América no século XVI, o seu padrão de vida
ideal, contemporaneamente somado ao “estilo americano de vida” como o modelo civilizado para
ser exportado ao “resto do mundo”. Isto também é observado por Darcy Ribeiro:
A história do homem nos últimos séculos é, principalmente, a história da expansão da
Europa ocidental que, ao se constituir em núcleo de um novo processo civilizatório, se
lança sobre todos os povos em ondas sucessivas de violência, de cobiça e de opressão.
Nesse movimento, o mundo inteiro foi resolvido e reordenado seguindo os desígnios
europeus e na conformidade com seus interesses. Cada povo e até mesmo cada pessoa
humana, onde quer que tenha nascido e vivido, acabou por ser atingida e engajada no
sistema econômico europeu e nos ideais da riqueza, do poder, de justiça ou de santidade
nela inspirados17.
É também na Europa que está sediada a Santa Sé, célula-mãe da Igreja Católica romana
dispersa pelo “resto do mundo” e que no século XIX lançou bases para maior centralização e
consolidação de seu poder18. No Brasil o episcopado já demonstrava ao trono sua insatisfação
com a ingerência do Estado nos assuntos eclesiásticos e certa intenção do episcopado em estreitar
17
RIBEIRO, Darcy. As Américas e a civilização, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 57. (APUD)
MANOEL. Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960).
Maringá: Eduem, 2004.
18
No século XIX foi iniciada uma política para reestruturar a Igreja católica que teve sua doutrina teocêntrica
abalada pelo pensamento racionalista, a investidura do antropocentrismo como fonte de preocupação da ciência
moderna, pela revolução francesa que exacerbou o sentimento anticlerical que saiu dos guetos intelectualizados e
atingiu a população urbanizada do final do século XVIII, inicio do século XIX. A esta política a literatura nomeou de
“Catolicismo Ultramontano”. Consultar: ZAGHENI, Guido. A idade contemporânea. São Paulo: Paulus, 1999.
28
relações com a sede romana19. Por mais de três séculos com o regime de padroado o poder
temporal no Brasil havia impedido uma aproximação efetiva com a Santa Sé.
Neste contexto uma tímida aproximação era esboçada, a denominada romanização estava
chegando a Igreja Católica do Brasil, com maior intensidade, a partir da segunda metade do
Século XIX. Incidentes como a “questão religiosa” e outros enfrentamentos20 se tornaram mais
freqüentes. A insatisfação de ambas as partes se fazia sentir apesar de certo comodismo por parte
da hierarquia católica que não fez nada de efetivo para provocar uma ruptura com o trono,
tentando assim garantir o monopólio da fé da população.
O exemplo externo do desgaste da aliança trono-altar não foi suficiente para uma ação
concreta de afastamento da hierarquia católica do Estado brasileiro, afinal esta aliança era
desejada pela Santa Sé, o saudosismo romano ao antigo regime era refletido no Brasil que tentava
se manter na órbita do poder, mesmo não tendo a mesma relevância de outrora. No entanto a
efervescência na política européia encontrou eco entre os republicanos brasileiros que com a
influência externa pegaram o “bonde da história” modificando a estrutura política do país e
alterando sua relação com o catolicismo, que serviu de suporte ideológico ao trono português e
depois ao Império brasileiro, mas que não se comportava nos padrões ideológicos do
19
Um fato que pode ilustrar bem este comentário sobre a crescente insatisfação de parte do episcopado foi a
“Questão religiosa” que após um inicio de século – XIX – em que é difícil ter clara e definida a consciência de Igreja
na hierarquia por causa da perda de identidade em que se encontrava a religião no Brasil sob o regime de padroado,
que esvaziava a função episcopal, não havia um centro de unidade e nem foi este assunto de interesse do monarca
brasileiro: que se concretizasse uma unidade entre o episcopado. O episcopado brasileiro na evolução do segundo
período imperial em que a “romanização” já se fazia sentir no seio da Igreja católica no Brasil, onde a situação de
uma religião doméstica e privatizada estava sendo gradualmente institucionalizada, à inércia do período colonial
estava sendo abalada. O relacionamento com a sede romana começava a se estreitar – a ingerência abusiva do
padroado já não era amplamente aceita por parte da hierarquia. Apesar do poder temporal ter uma noção muito
abrangente do conceito de padroado onde a religião era apenas uma das instituições fundamentais da máquina estatal
alicerce do poder absoluto do Estado que os questionamentos a situação vigente era tida como um desafio a
soberania do regente. A “Questão religiosa” foi um grito de independência da Igreja que teve como resposta a autoafirmação de um Estado absoluto que não podia ser desafiado. Consultar: LUSTOSA, Oscar Figueiredo. A Igreja
Católica no Brasil República. São Paulo: Paulinas, 1991.
20
Questões como: ensino religioso, o casamento civil, a secularização dos cemitérios, serviram para exaltar os
ânimos entre a hierarquia católica e a monarquia brasileira. Consultar: LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. A Igreja
católica no Brasil Republica. São Paulo: Paulinas, 1991.
29
republicanismo com nuance positivista na política brasileira21. A república proclamada no
território brasileiro estava em consonância com o que a Europa estava propondo naquele contexto
como modelo ideal (por parte do pensamento político-filosófico), baseado no lema “ordem e
progresso”. Entre seus ideais, os republicanos almejavam alcançar meios de atingir tecnologia
propícia para sua industrialização, onde a razão comandasse as ações do homem moderno. Surgiu
também daí algumas ideologias comandadas por esta “onda” racionalista que influenciou o agir
político no Brasil e que não era exatamente de acordo com nosso contexto poltico-cultural
predominante, de certa forma foi uma tentativa de ruptura com o velho ser político nacional.
O Brasil seguiu a cartilha européia: políticos formados dentro de uma mentalidade
racionalista onde o mais atual (para os brasileiros) seria estar de acordo com o positivismo
comtiano, de onde boa parte do exército brasileiro “rezou” conforme os preceitos da cartilha de
Auguste Comte. Mas como esta realidade, que teve seus reflexos no território brasileiro foi se
tornando complexa o bastante para encurralar uma instituição milenar como a Igreja Católica
dentro dos muros da Santa Sé?
1. A secularização da sociedade contemporânea e o abalo da aliança trono-altar22
O termo secularização é de significado muito abrangente, sendo aplicado em diversos
contextos e de acordo com o fenômeno que se quer explicar podendo ser: um fenômeno da
modernização, onde a secularização discursa sobre o que é antigo, antiquado e passa a ser
21
Não é objeto de discussão da dissertação se as reformas implementadas pelos republicanos foram ou não eficazes
para o país. Para um aprofundamento neste sentido há na historiografia uma considerável bibliografia como por
exemplo: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O tempo do liberalismo excludente: da
Proclamação da República à Revolução de 1930. V.1: O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
22
A encíclica Mirari vos chama a atenção sobre os males do momento histórico, condena veladamente as posições
de Lamennais divulgados pelo jornal L´Avenir, por ele fundado em 1830. Nesta encíclica é reafirmada a autoridade
papal, o valor do celibato, a indissolubilidade do matrimonio, condena o indiferentismo e o racionalismo, a liberdade
de consciência de imprensa e de pensamento, assim como a separação entre Igreja e Estado. DOCUMENTOS DA
IGREJA. V. 6: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX. São Paulo: Paulus, 1999. p. 25-42.
30
substituído pelo novo, pela modernidade. Sendo, portanto a secularização um movimento de
atualização ou de contextualização23 com uma época, é a ruptura com o antigo24, uma mudança
de rumo é se atualizar “ao século25”. Há também o processo histórico onde se detecta que a
secularização foi um processo material que atingiu a vida das Igrejas cristãs a partir do século
XVII, dando ao termo secularização o seu sentido jurídico26:
No sentido jurídico, significa a passagem de pessoas do estado clerical para o secular,
ou a passagem de bens eclesiásticos a propriedade secular. Nesta acepção, duas etapas
significativas da formação do conceito são as negociações para a paz de Westfália
(1648), que punha fim às guerras de religião, além de regulamentar a questão dos bens
eclesiásticos, e o confisco e a incameração dos bens eclesiásticos durante a Revolução
Francesa e na época napoleônica27.
Com o confisco de bens eclesiásticos por parte dos Estados modernos, mosteiros se
transformaram em colégios e igrejas e dioceses em principados leigos, portanto a Igreja passa a
ser mais uma entre as instituições que compõem o Estado, outro aspecto emblemático para
23
“E o Senhor louvou o administrador desonesto por ter agido com prudência. Pois os filhos deste século são mais
prudentes com sua geração do que os filhos da luz. Lc. 16, 8. BIBLIA DE JERUSALEM. São Paulo: Paulus, 2002.
24
“Este é o pão que desceu do céu. Ele não é como o que os pais comeram e pereceram; quem come este pão viverá
eternamente. Jo. 6,58. BIBLIA DE JERUSALEM. São Paulo: Paulus, 2002.
25
Àquele que tem o poder de vos confirmar segundo o meu evangelho e a mensagem de Jesus Cristo – revelação de
mistério envolvido em silêncio desde os séculos eternos, agora, porém, manifestado e, pelos escritos proféticos e por
disposição do Deus eterno, dado a conhecer a todas as nações, para levá-las à obediência da fé - a Deus, o único
sábio, por meio de Jesus Cristo, seja dada a glória, pelos séculos dos séculos! Amém. Rm. 16, 25-27. BIBLIA DE
JERUSALEM. São Paulo: Paulus, 2002.
26
No ano de 1648 uma das negociações mais singulares desse processo histórico ocorreu entre os dias 15 de maio a
24 de outubro (de 1648). Neste período, nas cidades alemãs de Münster e Osnabrück, foi assinado um grande tratado
de paz (a Paz de Westfália) que pôs fim a desastrosa Guerra dos Trinta Anos – guerra sanguinária entre católicos e
protestantes (luteranos e calvinistas). Este tratado, entre muitas leis, assinalou que um reino tem interesses que o
colocam acima das motivações religiosas e a autoridade do papado para intervir nos assuntos internos dos reinos, foi
substituída pelo conceito de soberania de Estado. Para saber mais sobre a Paz de Westfália: JERELUP, Torbjörn. A
Paz de Westfália. EIR: o alerta cientifico e ambiental, Rio de Janeiro, Ano 9, Suplemento Mensal, p. 1-11 [out.]
2002; FERNÁNDEZ DEL CAMPO, José Antonio Cabezas. España en Westfália I y España en Westfália II. Revista
História 16, Salamanca, n. 272, Ano XXII, p. 16-41 [diciembre] 1998.
27
GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998. p.123.
31
ilustrar este processo histórico foi a avalanche da separação jurídica entre Estado e Igreja a partir
do século XIX, impulsionados pela França que abriu este precedente em sua constituição após a
Revolução de 1789, transferindo o registro civil e os cemitérios de posse da Igreja Católica para a
esfera do poder público.
Os movimentos revolucionários na Europa do final do século XVIII e inicio do século
XIX28, marcaram o início de uma ruptura entre o antigo regime de alianças “trono-altar”
implementando uma nova realidade sócio-economico-político no panorama europeu que teve seu
impulso inicial com a revolução francesa e seu lema revolucionário: liberdade, fraternidade,
igualdade. E se embrenhou no século XIX rumo ao estabelecimento do capitalismo no período
contemporâneo com a revolução industrial e suas ideologias.
Uma outra forte e decisiva revolução foi a técnica - científica que marcou profundamente
o final da era moderna e início do período contemporâneo, o acelerado processo de
industrialização da Inglaterra e gradualmente dos outros países europeus, onde foi para a
burguesia uma oportunidade de ganhos ilimitados, apesar do padrão de vida da população não ter
se modificado substancialmente, o que não representou uma novidade histórica já que as
“revoluções” significativas sempre foram manipuladas do topo da pirâmide social.
A ruptura entre a fé tradicional e a sociedade foi retomada com todo vigor a partir dos
anos 20 do século XIX e veio impregnada por uma mistura de idealismo e violência, era
necessário eliminar os antigos sistemas de governo e modelos de sociedade atrelados ao
catolicismo, preferencialmente o ataque à religião seguiu como padrão hostilizar o clero. Em
geral, mesmo onde este (clero) esteve muitas vezes disposto a apoiar os movimentos
revolucionários que tiveram como ponto de referência a defesa dos interesses ditos populares, os
28
BURNS, Edward Mcnall; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização Ocidental. V. 2:
Do homem das cavernas às naves espaciais. 40. ed. São Paulo: Globo, 2001.
32
sentimentos estavam aflorando negativamente contra o clero: o padre foi odiado por ser padre29.
A Igreja Católica ficou estigmatizada por sua ligação com o sistema opressor absolutista,
no contexto da modernidade, a igreja foi considerada inimiga da ciência e do progresso advindo
do conhecimento humano como já comentamos. A Igreja Católica, mais preocupada com suas
tradicionais imunidades, e, sobretudo aliada dos ricos, negligenciando os pobres, uma instituição
acostumada a controlar a vida dos fiéis impondo uma atitude moral que contrastava com o
sentimento liberal presente em cada cidadão, que tinha cada vez mais presente os ideais da
Revolução Francesa30.
O coletivismo moral formatado pelos dogmas religiosos estava em cheque perante esta
nova concepção de vida, o social estava composto por pessoas individuais que formavam uma
sociedade diferente da sociedade forjada pela idade média, apesar dos bons frutos proporcionados
pelo medievo. A repulsa por este período “dominado” pelo pulso de ferro da aliança trono-altar
tem seus reflexos negativos até os dias atuais onde se insiste em classificá-lo como a idade das
trevas sem reconhecer seus diversos aspectos positivos:
As mudanças religiosas e intelectuais que se verificaram no ocidente entre 1050 e 1300
foram tão importantes quanto as econômicas, sociais e políticas. Na esfera da religião, a
inovação mais fundamental, do ponto de vista da organização, foi o triunfo da
monarquia papal [...] os papas se transformaram nos supremos lideres religiosos do
29
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: a era do liberalismo. São Paulo: Loyola,
1996. Segundo Martina, p. 287 [et. seq.], o anticlericalismo tem seu ponto de maior referencia entre os anos de 18151915, ou seja, por um século a Igreja Católica enfrentou sérios problemas com seus antagonistas principalmente na
Europa.
30
“uma parte da corrente cristã aprendeu então a acomodar-se, com o apoio de alguns dos seus, aos regimes cuja
conformidade aos valores do cristianismo não é evidente [...] por vezes propaga as virtudes da ordem e da
autoridade, incitando assim a submissão. Nos Estados-gerente, esses cristãos alinham-se com os mais conservadores.
A titulo de exemplo, no final do século XIX, a clivagem entre os pró-Dreyfus e os anti-Dreyfus coincide amplamente
com a separação entre não-católicos e católicos; na França, observa-se que a probabilidade de voto de direita
aumenta com a intensidade da prática religiosa. PISIER, Evelyne. História das idéias políticas. Barueri: Manole,
2004. p. 141.
33
cristianismo ocidental. Centralizaram o governo da Igreja, desafiaram o poder de reis e
imperadores [...] a própria religião cristã se impregnava de uma nova vitalidade,
possibilitando ao cristianismo empolgar a imaginação humana como nunca antes. Ao
mesmo tempo, verificou-se também uma extraordinária revivescência da vida
intelectual e cultural. Na educação, no pensamento e nas artes, tal como na economia e
na política31.
O homem moderno livre almejava igualdade e não mais a formatação imposta pelos
dogmas e prescrições morais de uma instituição que não o defendia das opressões vigentes, ao
contrário as justificou por séculos32. A igreja passou a ser atacada duramente o século XIX e um
destes sentimentos foram expressos, inclusive, com certa violência física e moral por parte de
seus opositores como veremos a seguir.
1.1. O sentimento anticlerical no século XIX
Segundo Martina33, não existe uma obra que trate do conjunto denominado como
anticlericalismo, mas sim obras que trabalhem separadamente esta situação constrangedora vivida
pela Igreja Católica para diversos países. Ao tratar deste tema (anticlericalismo), podemos ter em
mente que este caso como já foi comentado acima, é uma reação ao papel da Igreja Católica e sua
vinculação ao poder, mas também devemos registrar que a Igreja Católica é uma instituição
31
BURNS, Edward Mcnall; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização Ocidental. V. 1:
Do homem das cavernas às naves espaciais. 42.ed. São Paulo: Globo, 2003: em seu capitulo 12, p. 271-306 (Alta
Idade Média 1050-1300: aspectos religiosos e intelectuais), esta questão da efervescência intelectual na alta idade
média pode refutar este estigma de tratar este período com tanto obscurantismo, muitas vezes mais interessados em
combater a participação e influência efetiva do catolicismo.
32
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.6: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX. São Paulo: Paulus, 1999.
consultar: Carta encíclica “CUM PRIMUM AD AURES” do Papa Gregório XVI (09/06/1832), uma exortação a
obediência as autoridades constituídas e condenação dos movimentos revolucionários e da violência desencadeada
com a insurreição na Polônia. Aos católicos se pede submissão à legitima autoridade constituída. Ao clero
recomenda fidelidade à doutrina, esplendor do culto e santidade de vida. p. 20-24.
33
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: a era do liberalismo. p. 287.
34
milenar com uma influência considerável na vida social e política de cada tempo passado e
presente, portanto devemos reconhecer sua influência na vida da humanidade34.
E como tal enfrentou muitos adversários interessados em dominar ideologicamente sua
época, onde o enfrentamento é quase impossível de ser evitado, afinal o próprio catolicismo pode
ser considerado uma forma de ideologia alienante, como sustentou Karl Marx e, portanto deve ser
combatido segundo esses ideais. Em uma sociedade oficialmente não cristã as condições gerais
da Igreja Católica e da sociedade são diametralmente opostas35 colocando se a sociedade
literalmente em luta contra a o catolicismo a partir da revolução francesa, já nesta época, final do
século XVIII.
O anticlericalismo não esteve restrito a sociedade francesa, pois o sentimento anticlerical
foi se alastrando na Europa principalmente a partir da revolução francesa e atravessando todo o
século seguinte a ela, perdendo força já no início do século passado, em países considerados ‘mui
católicos’ como na Espanha, onde o catolicismo enfrentou maus momentos devido a esse
sentimento anticlerical. O catolicismo parecia fadado mesmo ao extermínio, não faltando
“profetas do caos” que proclamavam seu fim e a “morte” de Deus como, por exemplo, Nietzsche,
que através de suas obras filosóficas tenta decretar o fim não apenas da instituição, mas do seu
princípio, como acreditam os crentes ser um Ser supremo que denominamos de Deus36.
34
LECOMPTE, Denis. Do ateísmo ao retorno da religião: sempre Deus? São Paulo: Loyola, 2000. Lecompte em
uma análise no capitulo II de seu livro vai discorrer sobre: “um ateísmo anticristão” comentando sobre os filósofos e
pensadores: Voltaire, Diderot, Marx e o barão de D´Holbach (1723-1789) considerado em seu tempo um autor nada
desprezível incluso entre os filósofos enciclopedistas, com uma publicação de 438 artigos e obras como Le
Christianisme dévoilé e o Système de la nature que foi considerado por Voltaire como sendo “a bíblia do ateísmo e
do materialismo [...] A partir disso [...] passam em revista temas como o celibato dos padres, o conjunto do culto, e
dos sacramentos...; com esses meios e muitos outros, o poder absoluto de padre seria total sobre as atividades do dia,
do ano ou da vida de um cristão, como também no seio da sociedade civil, da política e da economia”.
35
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: a era do liberalismo. p. 49.
36
Nietzsche no capitulo terceiro sobre “A vida religiosa” de sua obra: NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado
humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Cia. da Letras, 2000.[...] Quanto mais diminuir o império das
religiões e de todas as artes da narcose, tanto mais os homens se preocuparão em realmente eliminar os males: o que,
sem dúvida, é mau para os poetas trágicos – pois há cada vez menos matéria para a tragédia, já que o reino do destino
inexorável e invencível cada vez mais se estreita, - mas é ainda mais trágico para os sacerdotes; pois até hoje eles
viveram da anestesia dos males humanos”. Portanto, a extinção da religião, e em voga sempre o cristianismo católico
percorreu um longo espaço de tempo. (obra publicada em 1878 ano do centenário da morte de Voltaire).
35
A relevância dada ao anticlericalismo que levou a sociedade francesa a atacar o
catolicismo, preferencialmente, depois se disseminou por outras partes da Europa Católica
parecendo mesmo que estava decretado o fim da religião e do catolicismo no ocidente, mas a
Igreja vai permanecer no campo de batalha. A Igreja Católica foi tentando defender seus direitos
e reivindicando sua sobrevivência entre as instituições modernas, afinal uma instituição milenar
não sobrevive sem uma razão de ser ou mesmo por estratégias capazes de se reinventar nas
adversidades, mas não foi fácil, pois a modernidade pareceu mesmo disposta a dar cabo as
pretensões do catolicismo:
retiraram (os pensadores leigos) do conceito de progresso qualquer sentido de
transcendência, confiando em ser ele uma imanência do processo histórico.
Essa
ruptura opôs frontalmente a Igreja Católica aos filósofos racionalistas [...] em especial
no que tange à teoria do progresso [...] a igreja Católica rejeitava a teoria laica do
progresso e da perfeição humana por uma razão política, que se confundia com a
questão doutrinária [...] É um fato histórico que os séculos XVIII e XIX foram
marcados por uma luta [...] da Igreja Católica para se manter institucionalizada em face
dos problemas que vinha enfrentando no âmbito da filosofia e política [...] Os
desdobramentos da longa revolução burguesa, seja através da perseguição anticlerical
[...] seja pela consolidação das filosofias racionalistas que procuravam explicar o
mundo eliminando irrevogavelmente o catolicismo, como qualquer outro teologismo
[...] se dizia na França por volta de 1800 que “o pontificado atual era do papa Pio VII e
último”. [...] Estava posta portanto a questão política: os demiurgos da modernidade
para quem a Igreja católica era uma sobrevivente reacionária que deveria desaparecer
com o que restava da idade Média. [...] a Igreja Católica, que identificava a
modernidade e seus construtores ao Mal37.
37
MANOEL. Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960).
Maringá: Eduem, 2004.
36
Tomada por uma fúria incontrolável foram depredados edifícios das ordens religiosas e do
clero secular que muitas vezes serviram de refúgio e instrução escolar para a própria população
que agora os atacava insuflados por lideres políticos e pensadores que tinham como objetivo
livrar-se de um sistema ideológico que agora pretendiam fazer desaparecer.
Como se o catolicismo não tivesse feito parte da cultura e das conquistas imperialistas de
seus países, não que fossem contra o imperialismo, mas sim porque pretendiam reforçar a
imagem do Estado como poder soberano e responsável pelas defesas dos direitos de seus
cidadãos. Talvez, e até com certa razão assim como o Estado em diversas ocasiões se utilizou da
ingerência no poder espiritual para submeter a religião a esfera pública, a religião também se
julgava no direito de interferir nos assuntos supostamente de sua alçada, gerando mais uma vez o
já antigo conflito pelo poder sobre a sociedade, que nesta altura já tinha certa consciência de seus
direitos, mesmo que, estes direitos não fossem necessariamente respeitados por nenhuma das
instâncias de poder aqui discutidos:
A análise da mentalidade da sociedade que a igreja tem diante de si, que ela é chamada
a converter e da qual, porém, deve com freqüência defender-se, ajuda a compreender
melhor certas atitudes da hierarquia e do laicato católico e determinadas linhas de ação,
de outro modo, correm o risco de se tornar quase incompreensíveis ou pelo menos
injustas, devido muitas vezes não só a temores infundados, a incompreensões, a
fechamentos e demoras como também às lutas que de fato teve de sustentar, diferentes
de época, mas na maior parte das vezes nascidas da diversidade de visão do mundo e da
vida38.
38
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: a era do liberalismo. São Paulo: Loyola,
1996. p. 286-287.
37
A era das revoluções, iniciada com a Revolução Francesa e a partir daí o acirramento da
hostilidade aos valores da ordem e da religião, fazem com que a Igreja Católica sinta-se acuada
tendo a modernidade como inimiga criando contra ela uma percepção de estranheza em relação
ao mundo, a nova civilização é tida então como inimiga do catolicismo.
Portanto, “o catolicismo começa, assim, a assumir uma atitude retraída e defensiva ante o
sistema político vigente e o modelo social por ele produzido, a dura polêmica anticlerical
reforçava este sentimento39”.
2. A dilatação da fé católica no século XIX40
A Igreja Católica entrou em um estado de gueto no século XIX, devido à pressão de
correntes adversas; sensação de ameaça, que trouxe como conseqüência certo fechamento, a fim
de impedir a entrada do espírito moderno no seio do catolicismo, o que não é de todo mal, pois
nas adversidades muitas vezes encontramos fórmulas capazes de nos fazer reformular equívocos
tidos no passado como certos e favoráveis aos nossos procedimentos e que na realidade
encobriam diversas deformidades que só serão revistas após sermos questionados em nossas
atitudes, mas isso não ocorreu de imediato, houve a tentativa de restauração da antiga ordem,
como veremos mais adiante.
Com os questionamentos da sociedade moderna houve uma ruptura com a fé tradicional, a
Igreja Católica foi forçada a repensar sua atitude perante o mundo moderno o que foi sendo
realizado gradativamente no século XIX, considerado o “século das missões” do catolicismo na
idade moderna - contemporânea, e, foi essencialmente no século XIX, que emergiram inúmeras
39
ZAGHENI, Guido. A idade contemporânea: curso de história da Igreja. V.4. São Paulo: Paulus, 1999. p. 26.
Pobre Nostis Deplora os assaltos dos ímpios que querem erradicar a religião. Recomenda defender a causa comum
da Igreja e empenhar-se na propagação da fé por meio do anuncio do evangelho. Ilustra os frutos das atividades
missionárias no exterior. Elogia a sociedade para a propagação da fé, fundada em Lião em 1822. Elogia a sociedade
Leopoldina e outras instituições com finalidades missionárias. Convida a todos a favorecer essas instituições.
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.6: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX. São Paulo: Paulus, 1999. p. 54-61.
40
38
congregações missionárias focando em especial o assistencialismo na África, Ásia e América
Latina ou até mesmo o trabalho assistencial nos países europeus. Só como nota se faz importante
assinalar que com a proclamação do dogma mariano em 1854 surgiram inúmeras congregações
dedicadas a estimular a devoção mariana pelo mundo41.
No pontificado de Pio IX, lembrado nos dias de hoje muito mais por seu fechamento ao
mundo moderno e consequentemente anatematizado pelo seu conservadorismo, houve um grande
impulso para o surgimento de novas congregações religiosas onde a maioria se dedicou à
pastoral, ao ensino, a enfermagem e as atividades missionárias.
Houve a partir do pontificado de Pio IX e seus sucessores uma preocupação com uma
melhor formação dos padres42 e a tradicional disputa entre seculares e religiosos foi cedendo
lugar a uma maior colaboração. Na América latina os países vão sucessivamente se tornando
independente, a política expansionista européia já não dependia da ideologia da cruz-espada, as
estratégias imperialistas respeitam outros parâmetros43:
O imperialismo moderno distingue-se do imperialismo clássico (o dos antigos gregos,
do ecumenismo militar de Roma, do espírito de conquista e da evangelização da
primeira onda de colonização européia) pela mundialização da sociedade burguesa que
se realiza paralelamente à extensão da dominação política dos Estados. Por sua vez, a
41
Deve-se anotar aqui que a preocupação com a fé católica não foi apenas com as missões fora da Europa, mas
também no continente europeu houve o empenho pela vida espiritual do povo, foi um processo de estimulo a
religiosidade popular em substituição do pietismo frio e austero que marcaram o século XVIII. O romantismo
estimulou a recuperação da religiosidade popular, que aos poucos foi reconstruindo um sistema devocional mais
simples e imediato, mais adaptado ao povo, a paróquia a partir de 1815 foi o eixo que agregou o povo em torno da
celebração dos sacramentos como o batismo e o matrimonio, os ritos aos defuntos, a missa dominical e as festas do
padroeiro, as peregrinações e as associações religiosas também foram incentivadas neste contexto. As missões
populares iniciada a partir de 1820 prosseguiu por todo século XIX, com o objetivo de educar o povo na fé.
ZAGHENI, Guido. A idade contemporânea: curso de história da Igreja. V.4. São Paulo: Paulus, 1999. p. 36-37.
42
Um exemplo para esta afirmação pode ser conferido com a preocupação com a formação do clero autóctone na
América na encíclica: Meridionali Americae: cuidadosa formação do clero indígena. DOCUMENTOS DA IGREJA.
V.6: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX. São Paulo: Paulus, 1999. p. 276-277.
43
PISIER, Evelyne. História das idéias políticas. Barueri: Manole, 2004; HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios
1875 – 1914. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra. 2006. Consultar sobre o colonialismo no século XIX-XX. 381-407.
39
colonização se transforma. Com efeito, não há uma, mas três colonizações: a
colonização de evangelização e de pilhagem, inaugurada por Colombo; a colonização
comercial, na qual os ingleses tomam o lugar dos holandeses; e a colonização
administrativa, na qual os Estados Unidos estabelecem pactos e tratados. [...] à
penetração econômica, quase não existe um arpento44 que escape do mundo branco ou
de seu imitador japonês [...] Um conjunto de idéias serve de base e essa política.
Inicialmente, [...] sem agressividade nem ressentimento. A seguir, a certeza de ter razão
conferida pelas filosofias históricas, tanto pelo pensamento missionário dos anglicanos
quanto pela vontade de melhorar o conhecimento do mundo que anima as sociedades
científicas, tanto pelo desejo de produzir positivistas quanto pelo evolucionismo
spenceriano. Com Spencer, o imperialismo recebe o reforço ideológico do darwinismo45
político. As leis que regem os organismos vivos aplicam-se igualmente às sociedades46.
Com suas ideologias forjadas pela razão ou por novos aliados representativos da moral
cristã os novos imperialistas não necessitam mais da benção do cristianismo católico para impor
suas conquistas e subjugar novas nações. Mas, para a Igreja Católica, se fez urgente uma nova
ação política para não perder os terrenos conquistados e consequentemente ir além dos territórios
supostamente católicos. Por isso o século XIX conheceu uma grande efervescência missionária,
rumo à descoberta de novas devoções47 como citamos acima.
No campo religioso, tendia-se a reproduzir a sociedade oficialmente cristã mediante a
aplicação de sanções civis às censuras impostas pelos bispos e através de uma pastoral
baseada na coerção: mas esse método colidia com o sentimento comum das populações
44
Antiga medida agrária dos gauleses, adotada posteriormente pelos romanos, cujo valor variava entre 20 e 50 acres.
PISIER, Evelyne. História das idéias políticas. Barueri: Manole, 2004. p. 386.
45
[...] principio da evolução, crescimento dos mais dotados, atrofia dos inúteis. Portanto, é normal que o homem
civilizado conquiste o mundo. PISIER, Evelyne. História das idéias políticas. Barueri: Manole, 2004. (ver cap. 6).
46
PISIER, Evelyne. História das idéias políticas. Barueri: Manole, 2004. p. 385-386.
47
A este respeito consultar também: KÜNG, Hans. Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 201.
40
e terminava por acentuar o já difuso anticlericalismo. A participação nos sacramentos,
que no ancien régime era quase obrigatória, torna-se gradativamente facultativa, o que
provoca no clero um desassossego crescente e a tendência a ler o mundo como
descristianizado e afastado da verdadeira religião. A igreja respondeu a esses problemas
com as missões populares, com a divulgação de um sistema devocional que funcionava
também como interpretação dos problemas da vida e da sociedade, com a restauração
das velhas ordens religiosas e o florescimento de novas ordens, em geral dedicadas ao
apostolado, e um renovado empenho missionário tanto no interior do mundo católico
quanto entre as populações não-cristãs. Esse esforço gerou uma grande riqueza de vida
48
religiosa e apostólica .
É hora, portanto de garantir o espaço que se conquistou no passado através da
evangelização impositiva e expandir, agora, por seus próprios recursos a dilatação da fé em
Cristo, até mesmo enfrentando a hostilidade de antigos aliados políticos que lhe garantiram
através da força da “espada”, novas almas para seu rebanho.
O Estado-Nação forjado pelas idéias de John Locke é retomado, a Grã-Bretanha é a jóia
rara da concepção de Estado como pacto, onde o proprietário ou soberano tem o direito de vigiar
e punir cuidando dos assuntos comuns e privilegiando seus interesses. O imperialismo reencontra
em Locke parte de seu suporte ideológico49.
Para a Igreja Católica, nem tudo foi desilusão com o Estado moderno no colonialismo do
século XIX, a França trás de volta a oportunidade de o catolicismo fazer frente ao avanço dos
colonizadores protestantes. Através de justificativas morais os colonizadores e os católicos se
felicitam com a volta do catolicismo ao campo de batalha das conquistas temporais, onde a partir
48
ZAGHENI, Guido. A idade contemporânea: curso de história da Igreja. V.4. São Paulo: Paulus, 1999. p. 23-24.
O estado é um contrato entre proprietários; - é proprietário quem ocupou um terreno e soube fazê-lo frutificar; - o
Estado é, portanto, um território, um conjunto de propriedades prósperas; em conseqüência, os nômades estão
excluídos do pacto social; e da mesma forma, os “improdutivos” devem aceitar a tutela dos produtores civilizados
para ingressar na civilização. PISIER, Evelyne. História das idéias políticas. Barueri: Manole, 2004. p. 387.
49
41
de 1870 acaba se aliando novamente a um país imperialista apesar da desconfiança com a
modernidade e volta a justificar esse mal para as nações pobres e desprovidas de defesa para
enfrentar a investida eurocêntrica:
Segundo o abade Roboisson: “Por todos os lugares em que o francês colocou os pés,
ainda que por um instante, ele tornou francês o solo que pisou [...]. Vide Maurício,
Trinidad, Luisiania, Canadá! A própria Alsácia...”. Pode-se, portanto, construir uma
França africana, uma França oriental, uma França polar (Estudos sobre as colônias e a
colonização do ponto de vista da França, 1877), e de acordo com o imperialismo
francês também estava Monsenhor Lavigerie, arcebispo de Argel, que envia
pessoalmente expedições a África negra, e em 1871, apelou aos metropolitas para que
se tornassem colonos: “Vinde, ao contribuir para estabelecer sobre este solo ainda infiel
uma população laboriosa, moral, cristã, vós sereis seus verdadeiros apóstolos diante de
Deus e diante da pátria (aos alsacianos e aos lorenos exilados)”50.
Há certa semelhança com o discurso de Colombo citado acima, pois ambos estavam
engajados no projeto colonial de um Estado, mais do que comprometido com os ideais
evangélicos, quanto a Colombo, é justificável, pois foi patrocinado pela coroa espanhola51 para
realizar seu projeto mercantilista.
50
PISIER, Evelyne. História das idéias políticas. Barueri: Manole, 2004. p. 388.
“Ao apoiar o sonho de Colombo, no final do século XIV, os reis católicos Fernando e Isabel garantem para a
Espanha o acesso aos tesouros da América. Antes de garimpar as pródigas minas de ouro e prata os conquistadores
espoliam tudo o que já está manufaturado, à custa das civilizações pré-colombianas. Embora se imagine que a paixão
cristã e a do metal fossem antagônicas, na verdade elas se confundiam. A grande viagem para além dos mares era
uma cruzada de dois gumes: para o Cristo e para o metal. As descobertas ofereciam um deus e procuravam a riqueza
material: é dando que se recebe. Os dois temas, o espiritual e o temporal, estavam intimamente misturados; Colombo
assegurava que: “teríamos de converter para nossa fé um grande número de povos e ganhar, ao mesmo tempo,
grandes quantidades de ouro” e segue falando que: “o ouro pode até conduzir almas ao Paraíso, se o empregarmos
para rezar missas”. A associação de riqueza estava intimamente neste contexto ligada a piedade. SÉDILLOT, René.
Esplendor tinto de sangue: ambição e genocídio. História Viva, São Paulo, ano II, n. 13, p. 28-40. Consultar também
para este assunto: FERRO, Marc. História das colonizações: das conquistas às independências: Séculos XIII a XX.
São Paulo: Cia das Letras, 1999.
51
42
Mas quanto a um arcebispo católico já no final do século XIX, consciente das mazelas
passadas pela Igreja Católica em séculos recentes, é questionável esta postura “ingênua”. Afinal,
a Santa Aliança, já havia ficado no passado deste mesmo século, e agora a Igreja Católica estava
relativamente consciente de sua situação política diante dos interesses políticos do Estado
moderno, alias com uma postura bastante cética diante da modernidade em que este se lançará.
E foi através da tomada de consciência das divergências de interesses existentes entre
Igreja e Estado no contexto da modernidade que a hierarquia percebeu que deveria contar
essencialmente com seus esforços e basear sua missão alicerçada no evangelho.
Depois de procurar em vão defender a velha ordem trono-altar, a Igreja Católica teve
mesmo que a contra gosto que se desvencilhar dos nós que a atavam aos interesses dos Estados e
praticar sua própria política. A Igreja Católica deu um importante passo para se reestruturar
internamente, mesmo sem estar convencida de que a sua separação do Estado era o melhor
caminho a ser percorrido. Isso ocorreu depois de tentar uma reaproximação com o absolutismo e
a monarquia que estava se esfacelando na Europa. Após a desilusão de tentar e não convencer os
governantes, e grande parte da população dos países europeus de sua importância dentro deste
novo modelo de sociedade moderna como fora outrora no passado (uma baliza para regular toda a
sociedade), a igreja partiu para a construção de seu contra-ataque e de certa forma se apegou ao
que deveria ter sido sempre seu ideal que é estar em conformidade com reto agir da moral e dos
dogmas do catolicismo livre da ingerência estatal nos assuntos eclesiásticos, mas em um primeiro
momento se descuidou da defesa de seu rebanho preferencial: o pobre52 que clamava por socorro
em um século marcado pela corrida desenfreada atrás do cientificismo e que deixava o ser
humano em segundo plano para satisfazer sua curiosidade pelas novidades palpáveis que a razão
poderia oferecer.
52
cf. Sf 2,3; Mt 5,3; Lc 12,33; At. 4,32.
43
3. O saudosismo pelo “antigo” afasta a Igreja da resilência exigida no presente53
Após os horrores da revolução francesa seguida pelas devastadoras guerras napoleônicas
houve um estremecimento da nova ordem surgindo um anseio pelos “velhos tempos” onde a
tentativa de se restaurar o mundo segundo os paradigmas da fé, como, por exemplo: “vontade de
Deus” encontrou ressonância junto aos Estados conservadores e culminou com o “acerto”
ocorrido no Congresso de Viena (1814-1815), capitaneados pela Áustria, conhecido na
historiografia como Santa Aliança. Fazia parte desta aliança, além da Áustria, a Rússia, a Prússia,
a França e a Inglaterra provocando no Estado pontifício a ilusão da restauração da velha ordem
absolutista, abençoada pela intervenção de Deus no mundo através de seu representante o Sumo
Pontífice aliado aos monarcas conservadores destes países citados acima.
Esta situação durou por um curto espaço de tempo e novas revoluções sacudiram a
Europa, desta “Santa Aliança” apenas a Rússia, no século XIX, parece ter ficado imune a
53
cf. FISCHER-WOLPPERT, Rudolf. Os Papas: de Pedro a João Paulo II. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1999. Em
Bizâncio os imperadores, em grande parte, haviam assumido pessoalmente o domínio sobre a Igreja, [...] E
procuravam estender tal domínio sobre o papa, “o patriarca do ocidente”. [...] A liberdade e autonomia da Igreja do
Ocidente, nos séculos subseqüentes, vinha sendo ameaçada por muitos lados. Todas essas situações de dependência
levaram a Igreja a um paulatino fortalecimento da autoconsciência da Igreja romana. O papa Gelásio I [492-496]
[...], esclareceu pela primeira vez, durante as desinteligências com a Roma Oriental, a concepção eclesiástica das
relações Igreja-Estado. Numa carta ao imperador Anastácio formulou ele, em 494, a clássica doutrina-dos-doispoderes, que, a partir de então, por mais de 1000 anos, em todo transcurso da Idade Média, constituiria a base teórica
do pensamento político do Ocidente. Consoante o papa, os dois poderes governam o mundo: A autoridade dos bispos
e o poder imperial. O poder sacerdotal é entre estes o mais poderoso, porquanto é chamado a prestar contas a Deus
também acima dos reis. Embora o rei ultrapasse em dignidade todo gênero humano, também ele depende dos
ministros da Igreja no recebimento dos meios da sua salvação espiritual. Por isso não pode submeter a Igreja à sua
vontade. [...] Por isso, ninguém deverá jamais elevar-se acima da primazia daquele homem que foi por Cristo
estabelecido acima de todos os homens e cujo primado a própria Igreja reconhece. [...] em outro tratado, esclareceu
Gelásio que não se deve confundir o poder da Igreja com o poder estatal, nem tampouco separa-los um do outro. “...
porquanto Cristo [...] separou as esferas de competência de ambos os poderes em campos de atividades autônomos e
dignidade bem distinta. Assim sendo, devem os imperadores cristãos subordinar-se aos bispos em assuntos da
própria salvação eterna, devendo os bispos, por sua vez, conformar-se com as determinações imperiais no âmbito do
domínio terreno. O múnus espiritual deverá manter distância de todas as coisas mundanas e, em contrapartida, aquele
que se ocupa das coisas temporais deverá abster-se da pretensão de querer dispor sobre as divinas [...] nem uma nem
outra haverá de afirmar com orgulho ser dona de ambas as competências. O papa Leão Magno [440-461] preparou o
terreno teológico dessa doutrina, quando no quarto concilio ecumênico de Calcedônia [451], proclamou a doutrina
das duas naturezas de Cristo: Assim como em Cristo, também a Igreja deverá ficar assegurada, inobstante a natureza
diversa, a unidade substancial soa âmbitos religioso e político. O papa Bonifácio VIII preconizou, na bula “Unam
sanctam”, de 18 de março de 1302, a doutrina das duas espadas: Tanto a espiritual como a secular estariam
implicitamente em poder da Igreja. Ao poder espiritual compete estabelecer e, se necessário, julgar o poder secular.
p. 261-262.
44
turbulências revolucionárias que sacudiram a Europa. Ao se restabelecerem os sistemas prérevolucionários e voltando alguns Estados ao antigo sistema de monarquia, estes Estados não
ficaram isentos de reformas que de alguma forma, mesmo que pontuada, favorecessem os anseios
da população, resguardando alguns direitos civis, apesar de politicamente a população não ter
conseguido mudanças concretas, estando sujeitos aos mesmos governos despóticos de antes.
Neste contexto, onde a população dos países, considerados católicos, ou não, vão
adquirindo consciência de seus direitos; qual deveria ser a atitude da Igreja Católica diante do
grito da porção de seu rebanho (no caso os operários) que clama por justiça? Esta porção do
rebanho é o trabalhador pobre que será “reunido” por Marx em uma classe denominada a partir
daí de proletariado: “A sociedade se divide cada vez mais em dois grandes campos inimigos, em
duas classes que se opõem frontalmente: burguesia e proletariado54”.
Como estava a situação do proletariado na Europa? O que fez a Igreja neste período para
apoiar o proletariado católico marginalizado na população de países católicos? Qual foi a
conseqüência do distanciamento entre proletariado e Igreja num contexto em que a hierarquia
católica esteve mais preocupada em restaurar o antigo regime e seu lugar junto ao sistema
político dominante negligenciando mais uma vez esta grande parcela da população?
A publicação do manifesto comunista de Marx e Engels defende a importância do
proletariado e manifesta seu apoio explicitamente55: “Já é hora de os comunistas publicarem suas
opiniões, suas metas, suas tendências abertamente, para o mundo inteiro, e enfrentar esta landa do
fantasma do comunismo com um manifesto do próprio partido56”.
54
cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. Documento
que preconizou a organização da classe trabalhadora para defender os seus direitos supressos pela burguesia.
55
Na introdução da 10ª edição brasileira do manifesto comunista editado pela Paz e Terra do ano de 2002 pode-se ler
que os comunistas “foram vitimas” – o grifo é nosso – de uma caçada demagógica por todos os poderes da antiga
Europa: o Papa e o Czar, Metternich e Guizot, os radicais franceses e os espiões da policia alemã, “O comunismo já
foi reconhecido por todos os poderes europeus como um poder”. O grifo é nosso.
56
Marx, Karl; Engels Friedrich. O Manifesto comunista, 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 7.
45
A Igreja ficou durante muito tempo, apegada ao saudosismo da restauração do antigo
regime, e, se defendendo da modernidade, deixando de perceber que a população pobre e
espoliada pelo acelerado avanço e transformação social provocado pela revolução industrial
inglesa57 necessitava muito mais do que apenas um assistencialismo inócuo naquela situação
concreta de penúria em que estavam sobrevivendo.
Sendo assim, neste contexto histórico a Igreja Católica deixou de ser resilente aos apelos
de seu contexto histórico fornecendo munição para o pensamento socialista e uma atitude
aceitável para os capitalistas, desde que ela (a Igreja) permaneça com seu ideal de cristandade
dentro da sacristia.
“Igreja – Mundo Moderno” entram num embate prejudicial ao catolicismo, pois houve
evasão de uma parcela considerável de pessoas da prática religiosa. A Igreja passa a perder o
apoio e a fidelidade de quem até então aceitava suas imposições sem as questionar: os pobres.
Como sempre foi (e é) comum na história da humanidade os governantes raramente se
prontificaram em atender os apelos de seus governados sem que houvesse algum tipo de conflito.
No entanto a população, sem voz e sem vez, começou a adquirir certo senso crítico diante
das desigualdades sociais, alertados pelos defensores da “liberdade e igualdade” para todos
perante o Estado, e que invariavelmente atacavam, em alguns momentos com certa razão o papel
desempenhado pela Igreja Católica que pouco ou nada fazia de concreto para que aquela situação
estrutural fosse mudada.
Estamos comentando uma situação nova para a Igreja Católica surgida com a Idade
Moderna, falamos aqui sobre a realidade de um grupo (operários) e de uma situação nova (ser
duramente questionada nas suas atitudes). Este fato provocou uma situação praticamente
57
Pelo motivo de não ser o assunto focal deste trabalho, não nos deteremos em explicitar esta situação aqui
mencionada, mas é interessante consultar para este assunto especifico a obra de HOBSBAWM, Eric J. Da revolução
industrial inglesa ao imperialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1979.
46
desconhecida pela hierarquia eclesiástica, acostumada com um ritmo compassado de vida,
marcado pela certeza dos dogmas e de uma fé quase inabalável na providência divina que tudo
deveria “ajeitar” a seu tempo. Até mesmo a ruptura com o Estado tida como um laço impensável
de ser rompido apesar dos sobressaltos em que viviam foi cortado, pois acreditavam que esta
situação, mesmo que turbulenta era mantida por vontade de Deus.
Não era uma tarefa fácil acompanhar essa aceleração social, a vida no campo foi sendo
substituída pela agitação das cidades, a Igreja Católica, acostumada a modelar a sociedade
enfrenta uma realidade inversa58, onde as instituições passam a ser modeladas pelos interesses de
grupos envolvidos com a trama político-econômica do século XIX.
A Igreja Católica estava fechada aos eventos do mundo moderno, com isto, para a Igreja,
os operários, criaturas do mundo moderno capitalista com os quais a Igreja não estava disposta a
dialogar ficaram a margem das preocupações mais urgentes do seio da Igreja. As realidades
concretas foram formando uma mentalidade diversa no mundo operário59.
O apoio social ao proletariado constituiu para a Igreja uma novidade para o qual a
hierarquia católica não estava preparada60, o mundo moderno era mais um fenômeno para ser
combatido do que refletido como lugar de salvação para a pessoa humana, e, isso não foi
58
A descristianização violenta acarretada pelo período revolucionário era considerada o último elo do processo
secular que, iniciado com a reforma protestante, havia tirado da Igreja a autoridade sobre a sociedade, fazendo com
que o mundo se precipitasse no precipício da desordem e da descrença. Portanto, fazia-se necessário reconstruir uma
sociedade baseada em valores autênticos, garantidos pela presença e pela ação da Igreja e do papado. ZAGHENI,
Guido. A idade contemporânea: curso de história da Igreja. V.4. São Paulo: Paulus, 1999. p. 24-26.
59
O proletariado reagiu. Na segunda metade do século XIX, em face da dominação irrestrita do capital privado, o
socialismo se desenvolveu. Este era um heterogêneo movimento socialista de trabalhadores, [...] o manifesto
comunista foi proclamado em 1848. Em vez de se preocupar com a liberdade do individuo (a preocupação liberal
básica), o socialismo agora se preocupa cada vez mais com a justiça social (a preocupação básica do socialismo), e,
assim com outra ordem social mais justa. Mas qual era a atitude da Igreja católica em relação à Revolução Industrial
e à justiça social? KÜNG, Hans. Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 200.
60
A ideologia de cristandade na doutrina social da Igreja: [...] aparece com clareza [...] maneira como a Igreja
enfrentou a questão social. No inicio da revolução industrial, a posição dos bispos católicos sobre a questão social
era bastante tradicional [...] apresentavam como remédio possível à gravidade da questão social a esmola pessoal,
espontânea e fraterna, ou via associações (como a de são Vicente); apelavam para que se suportassem com paciência
as provações, porque essa paciência comportaria uma adequada recompensa na vida ultra terrena. ZAGHENI, Guido.
A Idade Contemporânea: curso de história da Igreja. V.4. São Paulo: Paulus, 1999. p. 43-47.
47
diferente com o “mundo do trabalho” onde se pleiteavam direitos estranhos ao rigorismo da
relação súdito-monarca até então sendo normal a submissão e a obediência.
A sociedade européia61 estava entrando em uma nova fase e foi incompreendida pela
hierarquia do catolicismo que em um primeiro momento tem uma política menos condizente com
a justiça social empreendida pelo catolicismo hodierno o que é compreensível, ou seja, depois de
algumas décadas a reflexão da Igreja conseguiu acompanhar mais efetivamente a maioria de seu
rebanho que é composto pela classe social de trabalhadores e de excluídos da sociedade
contemporânea, salvo raras exceções (infelizmente) a classe média - alta costuma freqüentar a
Igreja por mera formalidade social.
O lugar preferencial da missão da Igreja é o mundo com toda sua diversidade cultural, e
não apenas a sacristia. Com o fechamento do catolicismo as transformações impostas pela
modernidade tantas vezes citado no primeiro capitulo, a hierarquia pôde ser atacada pelas mais
diversas vertentes ideológicas62, pois acabou não estando preparada, para responder prontamente
61
A Europa chegou sem dúvida, ao auge de seu poderio. Ela desfruta de sua expansão. Certamente subsistem,
sobretudo no Este e no Sul, zonas rurais que foram apenas roçadas pelo movimento capitalista. Mas, no conjunto, a
cidade comanda as atividades e imprime-lhes um ritmo veloz. É a burguesia que, neste quadro urbano, dirige a
produção e a circulação de riquezas, assim como dirige a cidade, esta Cidade liberal cujas instituições modelam.
Embora se acelere a mistura dos elementos componentes da civilização européia, a diversidade continua sendo
espantosa no seio de um continente que, apesar de pequeno, abunda em contrastes regionais e sociais. Pois o
enriquecimento de cada nação segue uma curva muito variável e largas manchas de pobreza persistem. Se o nível de
vida geral eleva-se, o número de proletários aumenta. De resto, o espírito fervilha [...] Na segunda metade do século,
o fenômeno urbano adquire uma amplitude sem precedente. Até 1850, exceto na Inglaterra, os habitantes dos campos
eram os mais numerosos. [...] Por volta de 1815, menos de 2% dos europeus habitavam uma vintena de cidades com
mais de 100.000 almas. Em 1910 seis conglomerados apresentam um total superior a um milhão, 55 possuem mais
de 250.000 habitantes e 180 mais de 100.000. [...] Londres congrega, em 1880, 4 milhões de ingleses numa
população de 30 milhões e Paris quase 3 milhões em 37 milhões. CROUZET, Maurice (Dir.). História Geral das
Civilizações: V. 13: o século XIX o apogeu da civilização européia (1815-1914). Rio de Janeiro: Bertrand, 1996. p.
311-330.
62
cf. o socialismo materialista, a maçonaria, o positivismo entre outros, ou mesmo poderíamos aqui especular o
sentimento de abandono entre o povo trabalhador e simples que mesmo não comungando com a ateísmo em moda
crescente a partir do século XIX se sentindo abandonado por aqueles que deveriam defende-los da hostilidade dos
poderosos não o fez.
48
aos questionamentos impostos por tais transformações porque não formou um quadro clerical
capaz de refletir e responder ao pensamento moderno que foi combatido com veemência63.
Um fato para tipificar este comentário foi a defasagem cronológica entre a publicação do
manifesto comunista (1848) e o reconhecimento por parte da Santa Sé de que os operários
necessitavam de seu explícito apoio e defesa que só veio ser em parte respondido pela encíclica
Rerum Novarum, sobre a condição dos operários escrita pelo papa Leão XIII64.
A classe operária pelas condições de trabalho ficou privada de seu descanso dominical, a
criança, mão-de-obra de baixíssimo custo para o capitalista, estava crescendo sem uma instrução
religiosa adequada para sua realidade ou ficou totalmente privada de conhecer o que era ser
cristão. A mulher no seu papel de mãe é invariavelmente a primeira catequista dentro do lar,
neste contexto vendeu sua mão-de-obra barata para complementar a renda familiar.
Toda esta situação era nova, insistimos aqui que o clero não estava formado dentro das
novas idéias, portanto incapacitados para dar respostas adequadas aos questionamentos de seu
contexto, não havia, portanto uma preocupação com a situação social, a atenção esteve voltada
para a prática da religiosidade, o que o crente faz no mundo é como se não fosse responsabilidade
da instituição que os congregava na fé em Deus.
Mais uma vez não se dava resposta adequada ao mundo, ou seja, é como se aquela
situação fosse um castigo. Até à muito pouco, invariavelmente, a religião foi imposta aos súditos,
a religião do monarca era a religião oficial do Estado, mesmo com o evento da Reforma
Protestante no século XVI cada governante, impunha sua religião a população de seu país, o que
facilitou por um longo período a “atuação” da Igreja sobre a população dos países católicos, não
63
A palavra veemência neste caso indica mais constância, pois segundo a explicação que temos para o
“SYLLABUS” as 80 proposições contidas nesta encíclica foram sendo reunidas através de diversos escritos do papa
Pio IX, se estruturando depois na redação final em dez parágrafos. DOCUMENTOS DA IGREJA. V.6: Documentos
de Gregório XVI e de Pio IX. São Paulo: Paulus, 1999. p. 260.
64
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.12: Documentos de Leão XIII. São Paulo: Paulus, 2005. p. 419-461.
49
foi necessário nenhuma estratégia pastoral para arrebanhar o que já era seu por direito adquirido
com o aval do Estado.
Os laços entre política e religião foram sendo dissipados65, no entanto o ser religioso
sempre fez parte do humano, e permanece assim ainda hoje. Marx não levou este sentimento em
consideração quando decretou o desaparecimento das religiões. Marx acreditou que à medida que
se conseguisse uma sociedade igualitária, seria o fim da alienação. Portanto uma sociedade sem
classes destruiria a razão de ser das religiões que alienava o proletariado à obediência cega. Esta
afirmação até o momento não passou de um ato de “fé” de Marx em sua ideologia.
Para ilustrarmos este fato, na Polônia após quase três décadas de comunismo a Igreja
Católica hoje em pleno século XXI ainda constitui uma força representativa na sociedade com
milhares de adeptos. A Igreja enquanto símbolo do sagrado continua dentro da sociedade a
desempenhar um papel importante que as instituições políticas precisam levar sempre em
consideração. Nem por isso a Igreja deixou de enfrentar grandes dificuldade e ainda hoje enfrenta
para se adaptar as exigências que lhe são impostas pelas populações em constante transformação
no mundo contemporâneo.
4. Igreja e Estado em políticas opostas: Liberalismo x Ultramontanismo
É possível constatar a existência histórica de diversas autocompreensões da Igreja
Católica, por exemplo, [...] a auto-compreensão da Igreja Ultramontana [...] é possível
perceber que, em cada um desses momentos houve uma Igreja diferente das anteriores e
65
Felicité de Lemannais (1782-1854) ocupou lugar de destaque na primeira metade do século XIX na história do
catolicismo, primeiro por sua postura rígida em defesa do ultramontanismo em repudio ao galicanismo o que o levou
mais tarde a defender com veemência a separação entre Igreja e Estado por causa dos abusos de ingerência do Estado
na vida eclesial, pois isso provocou uma desordem na vida diocesana, onde cada Estado, com exceção de Áustria,
Espanha e Portugal os outros países católicos sob o domínio de Napoleão tinham a nomeação dos eclesiásticos sem a
instituição canônica.
50
das posteriores, autoconferindo-se tarefas, obrigações e papéis sociais bastante
específicos, e, para isso, ordenava-se internamente de modo também bastante
especifico. [...] outra função do conceito “Autocompreensão da Igreja” é impedir a
atitude política bastante comum de aplicação de rótulos à Igreja Católica, como se eles
pudessem sintetizar o significado e as funções da instituição em todo seu trajeto
histórico. Dizer que a Igreja é instrumento de domesticação não basta, é necessário
dizer de qual Igreja se fala. A Igreja das Comunidades eclesiais de Base é a mesma
Igreja dos Apostolados de oração e das Filhas de Maria? Portanto, suas funções foram
as mesmas66?
4.1. A Europa: 150 anos de transformações políticas e sociais: 1648-1798
Um novo tempo se desenhava no horizonte desde o final do século XVI, início do século
XVII: a Espanha foi até meados do século XVII a grande potência católica romana preeminente,
enriquecida por descobertas, mas exaurida pelo excesso de guerras. Alemanha e Itália envolvidas
em disputas e guerras internas eram irrelevantes para a política mundial. O papado excluído como
autoridade reguladora em direito internacional pela Paz de Westphalia, não fora substituído por
nenhuma autoridade nova que transcendesse o Estado e o poder protestante para entrar em
qualquer ofensiva era inócuo. A confissão era subordinada ao Estado que foi substituída pelo
absolutismo real durante o período de 1648 a 178967.
Versalhes substitui o Escorial de Madri: o palácio do Escorial tem em seu centro uma
igreja ladeada pela residência real, já no palácio de Versalhes os aposentos do rei ocupam o
centro com a igreja em suas alas. Filipe II um Habsburgo católico absolutamente ortodoxo, o
homem mais poderoso da segunda metade do século XVI, foi substituído pelo “católico” Luís
66
MANOEL, Ivan A. O pêndulo da história: tempo e eternidade do pensamento católico (1800-1960). Maringá:
Eduem, 2004. p. 8-9.
67
KÜNG, Hans. Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 180-187.
51
XIV um Bourbon autocrata totalmente secularizado, a figura mais importante da metade do
século XVII; estes são os atores da nova transposição de equilíbrio histórica que vai transcorrer
daí em diante: Espanha e Portugal são suplantados pela França e Inglaterra.
Com Luís XIII, a França apesar de ser uma monarquia católica, se transformou em uma
potência estatal em grande parte secularizada e centralista, a mais moderna da Europa sob a
batuta do cardeal Richilieu68. Sob o comando de Luis XIV, a política de princípios de poder
moderna foi elevada ao extremo. A religião servia para legitimar o absolutismo real: em vez de
um Deus, um Cristo, uma fé, como na Idade Média, havia agora um Deus, uma fé, uma lei, um
rei. Os pensadores políticos, como Thomas Hobbes, afirmavam que o absolutismo real era o
único meio de evitar o caos e garantir a paz interna por meio de um estado central forte.
O Estado em princípio, sem qualquer graça divina, era o produto natural de um tratado
entre o povo e o governante – e os tratados, como seria provado, eram feitos para serem
quebrados. O Estado era uma máquina racionalmente construída, tudo planejado, arquitetado,
anunciando a passagem para uma nova era, a mudança memorável para a modernidade69.
Não surpreende, então, que as inovações e os feitos da modernização paradigmáticos na
sociedade, na igreja e na teologia em geral não fossem encontrados na inconteste esfera
romana. O paradigma católico romano, que inicialmente foi tão inovador na idade
Média, estava sendo cada vez mais metido numa camisa-de-força medieval, ainda que o
sistema romano continuasse funcionando como um efetivo instrumento de poder em
paises católicos. Desde o concilio de Trento, a igreja se fechara cada vez mais [...]
68
O cardeal Richelieu, internamente estabeleceu o absolutismo real em face da nobreza, do Parlamento, e dos
camponeses, e tirou o poder dos hunguenotes em termos políticos e finalmente militares. Externamente Richilieu
estabeleceu o domínio da França sobre o continente europeu colocando as razões de estado acima de todos os
interesses da igreja e da confissão KÜNG, Hans. Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 180-187.
69
KÜNG, Hans. Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 180-187.
52
atacava com armas antigas, como condenações, vetos a livros, excomunhões e
suspensões os cada vez mais numerosos “inimigos da igreja” que a estavam tomando de
assalto. Teve pouco sucesso: depois de alguns importantes papas da Contra-reforma –
de Pio V, passando por Gregório XIII, até Urbano VIII na segunda metade do século
XVI e primeira metade do século XVII -, na segunda metade deste século o papado se
encontrou cada vez mais a sombra da história70.
O papado nas palavras de Hans Küng se encontrava as margens da história já a partir da
segunda metade do século XVII. E esta situação foi se agravando até o início do século XVIII,
com a humilhante situação do papado sob o domínio da católica França, que apoiando o papado
em inúmeras situações na história não deixou de cobrar um alto preço por este apoio. Mas mesmo
pagando um alto preço por se aliar ao Estado, a Igreja parecia não poder viver sem este vínculo
que a uniu ao poder temporal desde o século IV e de onde herdou muito da estrutura
administrativa utilizada para hierarquizar a Cúria Romana.
4.2. Os pensadores liberais definem uma nova sociedade
Com o decorrer dos séculos XVI – XVIII foram sendo traçadas as diretrizes jurídicas,
políticas e religiosas que acarretaram em uma estrutura não cristã de sociedade que foi sendo
transformada paulatinamente através de escritores e políticos que defendiam o “separatismo”
entre o Estado e a Religião:
[...] separatismo. É este defendido por diversos autores, ora até conhecidos pelo grande
público, ora conhecidos apenas por especialistas; autores que, todavia, exercem
extraordinária influência sobre a opinião pública de seu tempo. Ainda que haja uma
70
KÜNG, Hans. Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 184.
53
unidade no motivo de fundo, os diversos autores caminham para fins bastante
diferentes, por vias e com convicções bastante diversificadas. Lembramos [...] o pastor
e literato suíço Vinet; de Tocqueville; os redatores do ‘L´Avenir’, Montalembert,
Cavour e Pier Carlo Boggio, que foi o primeiro a difundir no reino da Sardenha a teoria
do separatismo; [...] os mestres da escola jurídica alemã, como Friedberg, que
inspiraram os italianos Ruffini e Scaduto. De Tocqueville [...], vê com admiração o
Exemplo dos Estados Unidos, onde é o povo que realmente governa e onde a separação
entre Igreja e Estado exerceu uma influencia benéfica sobre as duas sociedades; Vinet
[...] Montalembert reagem a subordinação da sociedade religiosa em relação à civil,
tentando purificar e renovar a Igreja, libertando-a das pesadas salvaguardas [...]
Montalembert, reportam-se às teses galicanas que negavam toda autoridade do poder
espiritual eclesiásticos no campo temporal; Cavour e Boggio são movidos pelo
entusiasmo pela liberdade em todos os campos [...] os alemães se preocupam em
transformar em sistema coerente as aspirações amplamente difundidas [...]71.
Desde a Contra-reforma o catolicismo representava claramente uma religião conservadora
de restauração. A sociedade “agrícola-artesanal” já em transformação na idade moderna foi
cedendo espaço para a sociedade industrial contemporânea devido a um acelerado processo de
“invenção-inovação” que relacionados entre si causaram novos questionamentos para o homem
principalmente em sua forma de ver o mundo: antigas fórmulas já não funcionavam mais para
explicar seus questionamentos, a forma de ver o mundo já não é mais do prisma da religião72.
71
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: a era do liberalismo. São Paulo: Loyola,
1996. p. 49-81.
72
O catolicismo passou a representar o atraso das nações latinas, com exceção da França, enquanto que o
protestantismo, apesar de não ter conseguido a mesma influência sobre os Estados como foi o caso do catolicismo até
a Idade Média, ele (o protestantismo) tinha o anseio pela reforma, estava nas nações em ascendência como a alemã e
anglo-saxônica; no catolicismo, o próprio papa decidia sobre a interpretação da Bíblia e não tolerava divergência; no
protestantismo, entretanto, podia-se recorrer a leituras independentes da Bíblia e apelar para a própria consciência em
face das declarações doutrinas de suas igrejas, e assim desenvolver uma ética de responsabilidade. KÜNG, Hans.
Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 184-185.
54
A revolução da modernidade foi principalmente uma renovação intelectual, a sociedade
estava inserida em um outro ritmo, muito mais frenético, aquela vida mais pacata do campo
cedeu espaço a loucura das máquinas nas fábricas. E com isto os pensadores e políticos foram
estruturando revolução social com novos paradigmas, suas estratégias político-sociais foram
tentando responder a esta nova realidade, onde a separação Estado – Igreja era encarada como
uma necessidade.
4.3. O predomínio do catolicismo “intransigente”
Neste conflito de duas realidades opostas, onde após a Revolução Francesa e outras
revoluções que se seguiram na primeira metade do século XIX, em meio ao aparente caos, o
absolutismo parecia ter ressurgido vitorioso, o liberalismo foi facilmente identificado a aspectos
negativos daquele contexto. “Desenvolveu-se, portanto entre os católicos uma dupla tendência.
De um lado, temos os intransigentes [...] e de outro os liberais73”.
O que vai predominar nesta época até boa parte do século XX é o pensamento dos
chamados católicos intransigentes, um exemplo deste raciocínio pode ser sintetizado pelo
sacerdote espanhol Sarda y Salvany que publicou um livro no ano de 188474 atacando o
liberalismo. A atitude deste sacerdote espanhol não foi uma exceção, foi sim a atitude que
predominou entre a maioria dos católicos, rotulados como “católicos intransigentes”.
Naturalmente houve uma ala mais liberal que foi sufocada no decorrer do século XIX
onde a Igreja tomou uma atitude conservadora, assumiu oficialmente a teologia tomista como
paradigma do pensamento teológico e passou a atacar, dentro e fora da Igreja as atitudes do
73
MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: a era do liberalismo. São Paulo:
Loyola, 1996. p. 148.
74
El liberalismo es pecado! cf. MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: a era do
liberalismo. São Paulo: Loyola, 1996. p. 149.
55
século, perdendo de certa maneira o bonde da história, mas sem dúvida esta atitude de
fechamento fez com que a Igreja fosse se reestruturando internamente depois de mais de um
século de ataques a instituição do catolicismo.
4.4. A necessidade de se reestruturar internamente
Neste contexto de fechamento sem dúvida podemos contabilizar perdas e ganhos para
ambos os lados desta trincheira armada entre Igreja Católica e o mundo moderno. A Igreja
Católica vive e atua dentro das perspectivas e dimensões de cada época, ela (a Igreja Católica)
está vinculada à história concreta de seu tempo e vai agir e reagir de acordo com seu ideal de
sociedade, neste ou em qualquer outro período histórico. Houve avanços e retrocessos na história
da sociedade humana e na instituição mais antiga da sociedade que é a Igreja.
Houve ataques de todas as formas e dos dois lados desta “trincheira” armada no século
XIX entre os poderes temporal e espiritual75. A opressão sobre a classe operária e a vida urbana
desordenada foram fatores que contribuíram para o nascimento de uma nova maneira de pensar a
sociedade que não foi imediatamente absorvida pelos pensadores cristãos e o Magistério da
Igreja, que já vinha sendo “questionado” pela realidade social que se impunha76.
75
cf. MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: a era do liberalismo. São Paulo:
Loyola, 1996; MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
76
Segundo Hans Küng “Para as igrejas católica, protestante e anglicana, a ruptura com a tradição provocada pela
democratização e a industrialização foram um choque, mas também um desafio para reconquistar, por toda uma série
de formas, novas de ação da igreja, os trabalhadores que eles haviam perdido. No século XIX, sem duvida houve um
ressurgimento de forças religiosas no clero e no laicato, entre as ordens religiosas, no movimento missionário, nas
obras de caridade e na educação, e, especialmente na devoção popular [...] mas até essas atividades sociais dentro da
Igreja acabaram perdendo credibilidade em função das polêmicas sobre a definição da infalibilidade papal no
Concilio Vaticano I, em 1870 [...] ficou claro que a democracia moderna – que em linhas gerais abolira o
absolutismo [...] estavam em conflito [...] Nas democracias, o sistema de classes desaparecera; no sistema romano o
clero tinha superioridade em virtude de seu status. Nas democracias, evidenciaram-se esforços para garantir e
estabelecer os direitos humanos e civis; no sistema romano, os direitos humanos e os direitos dos cristãos eram
negados. Numa democracia representativa, o povo era soberano; no sistema romano, o povo e o clero eram excluídos
da eleição de pastores, bispos e papas. Numa democracia, havia divisão de autoridade (legislativa, executiva e
judiciária); no sistema romano, toda a autoridade estava nas mãos dos bispos e do papa (primazia e infalibilidade).
Numa democracia, havia igualdade perante a lei; o sistema romano era um sistemas de duas classes, de clero e de
laicato ”. Consultar: KÜNG, Hans. Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 201-202.
56
Surge neste contexto (mais) um pensamento voltado para o proletariado e para o
progresso técnico-científico: o socialismo e o positivismo estão entre as idéias que vão dar base
para um novo modo de agir de uma considerável parcela da sociedade moderna77. O secular e o
religioso que estiveram intimamente ligados desde o século IV com a legalidade do cristianismo
dentro do Império Romano, se estendendo por toda a Idade Média e parte da Idade Moderna –
principalmente com o advento do colonialismo na América e na Ásia – passa a ser desmontado
na Europa, a partir do século XVI com o advento da modernidade. A modernidade uma revolução
onde a arma mais mortal foi o pensamento intelectual, terá forte reação dentro da hierarquia
católica romana. O período de conveniência e arranjos entre os monarcas católicos e os papas
estava sofrendo um duro revés na sociedade moderna.
Em uma sociedade cada vez mais complexa e secularizada, e, em particular à
transformação ocorrida no século XIX nas instituições e associações políticas e culturais e nas
recentes “associações de classes”, fez com que o catolicismo perdesse suas esperanças (sem
perder o desejo) de restaurar o absolutismo europeu, foi dada pela Igreja Católica uma resposta
imediatista que naquele contexto pareceu ser a mais oportuna: a Santa Sé se tornou um feudo,
uma sociedade hermética, houve um contraponto entre religião e sociedade moderna.
O absolutismo com sua estreita união entre trono e altar, parecia o melhor regime
político [...] a Revolução (es) ‘fez na esfera política e moral o que o dilúvio fez no
terreno físico, mudando totalmente a face da terra...’ [...] Estava também vivo em certos
ambientes aquele espírito maniqueu que esteve sempre latenta na história da Igreja,
mostrando-se com especial vivacidade quando a Igreja se encontra diante de uma
sociedade fundamentada em estruturas naturais [...] É forte, então a tentação de
considerar simplesmente mau o que ainda não esta elevado a ordem sobrenatural. 78
77
cf. PISIER, Evelyne et al . História das idéias políticas. Barueri: Manole, 2004.
cf. MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: a era do liberalismo. São Paulo:
Loyola, 1996. 149-158.
78
57
Quem não estava com Roma era contra Roma. A política conservadora implementada pela
Santa Sé ficou conhecida como Ultramontanismo e que será tratado neste tópico de forma sucinta
para que se possa ter uma noção geral de como esta política foi difundida para que a Igreja não
perdesse de todo sua influência tentando reter o “Pêndulo da história” tendo a Idade Média como
paradigma79.
O período medieval foi exatamente aquele onde a Igreja, definitivamente implantada e
consolidada com o amparo do Império Carolíngio, pôde desempenhar sua função
paralisadora do movimento pendular e fixadora do homem na órbita de Deus [...] “após
a Idade Média, o pêndulo retomou o seu movimento, afastando-se do centro ideal,
avançando em direção aos indesejáveis extremos, e sua primeira manifestação foi o
humanismo renascentista que, segundo a interpretação católica, por se caracterizar [...]
um movimento anticristão. [...] Dado o primeiro impulso para fora do centro de
equilíbrio o pêndulo adquiriu velocidade vertiginosa, acompanhando a própria
velocidade de expansão da sociedade burguesa – a cada novo avanço burguês em
direção à plena consolidação do capitalismo, seções inteiras da antiga ordem feudal
ruíram, por serem incompatíveis com a nova [ordem] que se firmava. [...] revogaram a
tese gelasiana dos dois poderes e subordinaram a Igreja local ao poder civil80.
A Igreja em cada contexto histórico estabelece tarefas e estratégias de ação para enfrentar
determinadas realidades temporais. Sua ação política seja na área das relações diplomáticas com
os Estados nacionais, seja na sua atuação pastoral vai desencadear efeitos nem sempre
compreensíveis de imediato. Nos séculos XIX e parte do século XX esta política compreendeu os
79
Consultar o livro de: MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento
católico (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004.
80
MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960).
Maringá: Eduem, 2004. p. 199-131.
58
pontificados de Pio VII (1800-1823) a João XXIII (1958-1963). A política ultramontana foi
sendo revogada pelo Papa João XXIII que deu início a uma política de abertura na Igreja ao
convocar no seu curto pontificado o Concílio Vaticano II.
O que se tem registrado nos mais diversos trabalhos sobre este período da História da
Igreja é em geral o de uma política conservadora que se “fechou para o século” e rejeitou o
modernismo, o que não deixa de ser uma expressão da verdade, mas que muitas vezes não
contempla na totalidade as causas deste fechamento para o secular. Isso não deixa de ser “mais
uma realidade” e não a totalidade de verdade contida no problema, pois em nenhuma análise
histórica, o historiador pode pretender abarcar todo contexto, principalmente em uma questão
complexa como foram as relações: Igreja-Estado-Sociedade moderna.
A política ultramontana foi também restauradora na Igreja, no entanto a instituição do
catolicismo foi mais criticada por sua reação antimoderna do que por sua luta em se preservar dos
ataques anticlericais, quase sempre relacionados à sua atitude milenar de união trono-altar. Se sua
posição fosse se aliar ao novo em todo seu escopo, isso poderia resultar no desmantelamento de
uma instituição que transcende a ordem temporal em sua razão de ser. A luta não era mais para se
manter em união com o trono, mas para manter sua identidade e sua originalidade.
A Igreja Católica81 esteve sempre às voltas com a possibilidade de renovação dentro da
sociedade, e até os tempos hodiernos vai respondendo com maior ou menor espaço de tempo aos
anseios de “cada atualidade” implantando uma política capaz de preservar sua identidade durante
as crises e se aliar aos movimentos de seu contexto capazes de recuperar sua credibilidade.
81
Na metade do século XIII deu-se a maturação de três percalços que precisaram de uma resposta do catolicismo: o
tocante à colaboração entre papado e império; o relativo às tentativas de reunificação das duas cristandades, ocidental
e oriental, divididas desde o cisma de 1054; o das cruzadas contra o islã. O resultado foi a perda crescente pelo
idealismo de um universalismo cristão e da hegemonia eclesiástica. O cristianismo medieval foi sacudido de cima a
baixo. Mas no Ocidente ele assume as rédeas da transformação, buscando a renovação não só da sociedade, mas
também da própria Igreja. Cf. PIERINI, Franco. A Idade Média: curso de história da Igreja. V.2. São Paulo: Paulus,
1997. p. 155.
59
No caso da política implanta pela Cúria Romana no século XIX, as conseqüências, até sua
estabilização foi uma verdadeira prova de fogo, às vezes estratégia que nos parece equivocada em
um determinado contexto pode ser nossa salvação em outros. A estratégia política muitas vezes
precisa permanecer em seu firme propósito. Não é tarefa fácil preservar uma instituição duas
vezes milenar como é o caso da Igreja Católica sem se deixar levar pelo relativismo do contexto
em que se está inserido.
No caso da Igreja Católica a política faz parte de sua história, mas não é fator
determinante se aliar a este ou aquele movimento, pois sua meta já foi traçada desde sua
instituição: O caminho a ser seguido é o de Cristo, e o determinante é estar no caminho da justiça
social. Apesar da direção humana da instituição católica não ter ouvido o apelo dos pobres, em
determinados períodos históricos, estará sempre presente no crente que, o Espírito suscitará
alguém para conduzir a Igreja para seu curso primordial, pois não é segurando o pêndulo da
história, uma tentação humana compreensível, que a Igreja vai atingir seu objetivo, mas sim
caminhando na direção indicada pelo seu fundador que é O Cristo.
Não se brinca impunemente com a história! Quando uma instituição de idade vinte
vezes secular, como é o caso da Igreja católica, seguida por milhões de fiéis e
respeitada até pelos seus inimigos e adversários, e mais, quando desenvolve uma vasta
ação política em âmbito mundial para consolidar esses preceitos doutrinários, ela arrasta
consigo forças incomensuráveis, provoca jogos de poder e desencadeia envolvimentos
que nem sempre pode controlar ou sequer
prever os resultados. Foi essa tensão
verdadeiro abalo sócio-político que a Cúria Romana provocou no decorrer do século
XIX, ao anunciar sua reação ao mundo moderno82.
82
MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960).
Maringá: Eduem, 2004. p. 133.
60
O fenômeno da separação entre Estado e Igreja foi abrangente a partir do século XVIII e
no Brasil a influência do pensamento europeu e em particular do positivismo comtiano está
estampado inclusive no mais representativo símbolo nacional que é a bandeira brasileira com a
inscrição “Ordem e Progresso”. O Brasil não foi uma ilha alienada ao que acontecia no mundo e
principalmente na Europa, a partir do século XIX os meios de informação se tornaram cada vez
mais eficientes, chegando de um continente ao outro com mais agilidade influenciando
decisivamente na formação de opinião, o que não acontecia com a mesma eficiência nos séculos
anteriores.
Além do progresso acima mencionado um outro elemento primordial que nos vem da
Europa as portas da segunda metade do século XIX e que influenciara o embate entre Estado –
Igreja no Brasil e em outros países, foi a eleição no ano de 1846 do papa Pio IX. No ano de 1848
eclodiram em algumas nações européias, revoluções de caráter liberal, a Itália dá os primeiros
passos para a unificação do país.
Na segunda metade do século XIX os governos se tornam mais representativos junto à
população, fato incomum para a Igreja que estava acostumada com governos pouco ou nada
representativos para as classes sociais que estavam à margem da sociedade burguesa
(camponeses, operários e pequenos comerciantes). Mas já nesta época, os governos começam a
atender alguns dos interesses do proletariado acossado pelo crescente movimento comunista83, no
entanto Estado e sociedade ainda estavam se avaliando, tudo não passava de um ensaio para um
entendimento futuro.
83
Cf. QUI PLURIBU, de 9 de novembro de 1846: o Magistério da Igreja não cansava de condenar em toda
oportunidade os “erros da época”. DOCUMENTOS DA IGREJA. V.6: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX.
São Paulo: Paulus, 1999.
61
No seio da Igreja os seus intelectuais se separavam cada vez mais da ciência e do
pensamento sóciopolítico, dando assim margem a formação de um enorme abismo entre igreja e
o povo. Na contramão crescia o movimento de pensadores socialistas como Marx, Engels,
Comte, entre outros que analisavam a sociedade e em boa parte se colocaram contra o
pensamento retrógrado do catolicismo.
Havia nestes pensadores um ateísmo declarado ou uma não aceitação da religião por
princípio, mas este fenômeno ficava em sua maioria restrito a classe intelectual, que aos poucos
vai influenciando a população que não era atingida pela pastoral da Igreja, uma pastoral precária
que estava alienada das reivindicações do proletariado nascente devido ao pequeno número de
padres e que para agravar tinham em boa parte uma formação intelectual insuficiente84.
A população pobre viveu assim uma espécie de secular isolamento sociológico e cultural
na primeira metade do século XIX o que provocou um natural distanciamento na segunda metade
do século XIX entre povo – religião.
No Brasil a situação não foi diferente onde as relações de parte do episcopado e o baixo
clero não mudaram muito desde o início da colonização até o final do império, pode se dizer que
havia uma elite eclesiástica em simbiose com o trono o que provocou uma degradação interna na
do catolicismo, criando um vazio entre a hierarquia e o baixo-clero. A igreja oficial foi se
distanciando dos interesses da população contribuindo para formar uma barreira entre os
interesses da igreja e dos fiéis afetando o êxito imediato da política de romanização entre os
84
Guido Zagheni nos apresenta um exemplo interessante desta situação da Igreja no século XIX, extraída da obra de
C. Marcilhacy, La diocese d´Orléans au milieu du XIXe siécle, Sirey, Paris, 1964. onde se descreve a situação da
diocese de Orleans na França – tida como exemplo por representar a situação na maioria das dioceses européias da
época – a população tinha uma formação religiosa deficiente o que induzia a vida moral marcada por carências
generalizadas: era freqüente o concubinato e muito numerosos os filhos ilegítimos; a prostituição estava por toda
parte, onde o próprio clero levava uma vida bastante deficiente. Apesar do esforço do bispo da diocese – D.
Dupanloup (1849-1878) – supra citada a situação religiosa não mudou muito tanto entre a população como a moral
do próprio clero. Cf. ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna: curso de história da Igreja. V. 3. São Paulo: Paulus,
1999. p. 23.
62
católicos no Brasil. Esta barreira só foi desfeita no inicio do século XX com os movimentos
leigos incentivados pela Santa Sé, como por exemplo, a Ação Católica um movimento tocado
pelos leigos que teve grande incentivo da hierarquia.
5. Os papas85 da reação católica no século XIX: Gregório XVI, Pio IX e Leão XIII
Para finalizar este capítulo trataremos brevemente desses três papas. Devido aos
problemas ocorridos na cristandade desde os seus primórdios, a Idade Moderna e suas revoluções
de espírito liberal86 antes mesmo e por conseqüências delas a Revolução Francesa, também o
problema do galicanismo, são eventos que tornam os Estados modernos um reagente às políticas
provenientes da Santa Sé a partir do século XVIII. Com isso, a postura do catolicismo no século
XIX é reflexo e atitude muito mais ampla do que uma simples postura anti-moderna, é resultado
de uma política de sobrevivência iniciada pela hierarquia católica e implementada com todo vigor
a partir do segundo quarto do século XIX e que chega às portas do concílio Vaticano II87.
Essa histórica reação anti-moderna do catolicismo praticamente inicia-se com Gregório
XVI que em suas pouquíssimas encíclicas, oito no total, condena em duas delas o indiferentismo
religioso e a liberdade de pensamento e imprensa ou exorta a orbe católica quanto aos benefícios
de sua ligação ao poder temporal incentivando a obediência dos fiéis súditos ao poder espiritual e
85
Optamos por não fazer uma biografia como usualmente se faz nesses casos. Os papas do século XIX ou de outros
personagens tratados neste trabalho. Preferimos indicar as bibliografias a seguir para que caso haja interesse seja
consultadas e se tenha um conhecimento mais completo de cada personagem. Para os personagens da política
brasileira indicamos o conciso trabalho: VAINFAS, Ronaldo (Dir). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio
de Janeiro: Objetiva, 2002. Para consulta da biografia dos papas relevantes para este trabalho a seguinte bibliografia:
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.6: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX. São Paulo: Paulus, 1999;
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.12: Documentos de Leão XIII. São Paulo: Paulus, 2005.
86
Consultar para este assunto: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até
nossos dias. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1991. v. 3.
87
Consultar para este assunto: JOHNSON, Paul. Historia del cristianismo. Barcelona (España): Javier Vergara,
2004; MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias.São Paulo: Loyola, 1995. 4 v.;
STCOKMEIER, Peter. et al. História da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2006.
63
ao poder temporal, em outra (encíclica) agradeceu o apoio do poder temporal à religião católica88.
Na segunda metade do século XIX o papa Pio IX com seu longo pontificado e sua força política
para proclamar dois dogmas em um período delicado para o catolicismo e também pelo seu valor
de ter revigorado o movimento missionário católico, o papa Leão XIII com seus atributos de bom
administrador e político habilidoso, imortalizado por sua encíclica Rerum Novarum
demonstrando o início da preocupação do catolicismo com o mundo operário que foram essências
por que não dizer assim, para dar ao catolicismo a arrancada necessária para sua sobrevivência no
mundo moderno, apesar de como bem disse Ivan Manoel que: “Não se brinca impunemente com
a história”89. Essa reação ou brincadeira histórica segundo podemos compreender em autores de
História da Igreja como, por exemplo, Giacomo Martina, Paul Johnson, Peter Stockmeier entre
outros, se deveu muito ao aludido acima sobre as revoluções de espírito liberal, mas também a
fragilidade sentida por Roma após ter perdido seu braço de apoio político extra-muros
empreendido pela Companhia de Jesus que foi seu apoio de ligação com o episcopado no mundo
católico. O catolicismo foi a religião de Estado onde quer que pudesse se estabelecer da
antigüidade cristã pós-constantiniana ao último suspiro do absolutismo real no século XIX . Mas
o tom da romanização no Brasil, a postura de cautela do episcopado diante da Proclamação da
República foi dada por Pio IX:
[...] o papa Pio IX, eleito dois anos antes, concordou com as reformas liberais, decretou
uma anistia e foi entusiasticamente celebrado pelo povo. Mas, por ter-se esquivado de
fazer reformas coerentes, foi forçado por rebeldes a fugir para Gaeta. Depois da derrota
da revolução italiana, com a ajuda das tropas francesas e austríacas, regressou a Roma
transformado. Tornara-se o adversário inflexível de todos os movimentos “liberais”90
88
Consultar para este assunto: DOCUMENTOS DA IGREJA. V.6: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX. São
Paulo: Paulus, 1999.
89
Consultar para o assunto da política desenvolvida pela Igreja Católica no século XIX: MANOEL, Ivan Aparecido.
O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004.
90
KÜNG, Hans. Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 202.
64
A separação de fato entre o Estado e a Igreja no Brasil, apenas se consolidou com o
advento da República, pois a relação entre esses dois poderes já estava bastante fragilizada como
já frisamos aqui. Mas, a Igreja foi no Brasil até o final do segundo Império um ramo da
administração pública, o que talvez explique a indignação de parte do episcopado com a nascente
República e a sumária separação do Estado com a Igreja Católica através do decreto 119-A91 de 7
de janeiro de 1890. No segundo capítulo procuraremos abordar em que base se consolidou o
movimento republicano e consequentemente a causa do declínio do segundo Império que
culminou com a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889.
91
Este decreto é acessível em: ABRANCHES, Dunshee de. Actas e actos do Governo Provisório. Brasília: Ed. FacSimilar, 1998.
65
CAPÍTULO II
66
Segundo Reinado: Entre as incertezas e as transformações (1840-1891)
No longo govêrno de Pedro II gravíssimos erros políticos prejudicaram a Monarquia,
isolando o Imperador, e impossibilitando o terceiro reinado. A questão religiosa
afastou do trono as simpatias do clero92. A abolição da escravidão malquistou os
lavradores com a Casa Imperial, pois não fôra possível solucionar na ordem económica
o problema da extinção do trabalho servil. As questões militares alienaram do
Imperador a dedicação de prestigiosos chefes do Exército. O rodízio do poder,
descricionàriamente feito pêlo capricho imperial, diminuía paulatinamente a autoridade
dos partidos políticos. A debilidade do reinado expirante complicava-se com a
suspeição de predomínio estranjeiro no trono93. [sic]
Nosso país é composto por um conglomerado de instituições – públicas ou civis – que
formam um sistema complexo de sociedades, ou seja, o Brasil (e não só ele) é formado por um
sistema de sociedades em rede, entendendo-se por sistema a definição, o conjunto das instituições
políticas e/ou sociais, e dos métodos por ela adotados, encarados quer do ponto de vista teórico,
quer do de sua aplicação prática: sistema parlamentar, sistema de ensino. Portanto a sociedade
92
93
O grifo é nosso.
SOARES, José Carlos de Macedo. Deodoro, Ruy e a Proclamação da República. São Paulo: [s.n.], 1940. p. 8.
67
brasileira é formada por um sistema em rede de instituições que forma um complexo de sistemas
sociais que compõe a sociedade brasileira. Toda sociedade recebe e assimila – em maior ou
menor grau – as influências dos acontecimentos locais e universais94, provenientes das
instituições que formam “esta ou aquela” sociedade.
Nesta perspectiva, na sociedade brasileira, a Igreja Católica, instituição que esteve durante
quase quatro séculos interferindo na formação do país, política e socialmente, será o nosso objeto
material de análise para um período em que esta instituição religiosa estava em rota de colisão
com o nascente poder republicano – local ou universal – e os republicanos formarão o novo
sistema de governo do Brasil e quase que naturalmente vai se chocar com a Igreja Católica que
legitimou o poder monárquico absolutista substituído e viveu o sonho de restaurar o ancien
regime na Europa e se manter no poder no Brasil.
No caso pesquisado este novo sistema de governo do Brasil não utilizará a mesma
conveniência utilizada pelo sistema monárquico: primeiro pela monarquia portuguesa e depois
pela monarquia do Brasil, onde o projeto colonial português esteve intimamente ligado ao projeto
religioso pelo regime de padroado, e que foi mantido no país após sua independência de Portugal.
Os governantes do Brasil imperial mantiveram a mesma política reguladora exercida pelo
poder civil (temporal) sobre o poder religioso (espiritual) onde praticamente anulava a atuação da
Igreja Católica que continuava sendo subserviente e convenientemente aliada ao trono.
A Igreja Católica teve uma autocompreensão de seu papel na sociedade – naquele
contexto – marcado pelo pensamento conservador ou como denominado naquele período de
ultramontanismo, direcionando a influência da Santa Sé para as Igrejas locais, e a Igreja Católica
no Brasil que entrou em choque com o poder monárquico não foi mantida atrelada ao poder
político nascente, ou seja, aos republicanos que ascenderam ao poder no final do século XIX e
94
O grifo é nosso.
68
desconfiavam do papel da Igreja Católica na sociedade. A Igreja Católica foi considerada uma
“fonte de atraso” por suas posições radicais ao desenvolvimento dos tempos modernos ou como
diria um positivista, era contraria a “Ordem e Progresso” da nova ordem mundial, o que não
deixa de ser verídico naquele contexto. Mas, este afastamento do poder não foi uma tática política
da Igreja Católica no Brasil, e sim fruto de uma opção dos republicanos e talvez de sua
(discutível) ideologia positivista, computada às vezes com certo exagero ao republicanismo no
Brasil.
Fato é que a Igreja Católica já na metade do segundo reinado vinha se desgastando com o
poder monárquico, e após a década de 70 do século XIX eclodiu a crise conhecida na
historiografia brasileira como Questão Religiosa95, que será uma questão melhor detalhada ainda
neste segundo capítulo, mais adiante. Para os republicanos – os novos donos do poder – a Igreja
Católica, uma instituição, acostumada, a partir do século IV, a interferir politicamente nos
Estados e que em alguns momentos da história cogitou uma divisão de poderes, não seria mesmo
bem vinda naquele momento de auto-afirmação dos republicanos na direção política do Brasil.
Uma questão que será aprofundada envolvendo a separação Estado – Igreja no Brasil se
relaciona a defasagem entre os ideais de uma Igreja apegada ao Ancien Regime onde o poder
95
. Segundo Boris Fausto seria interessante notar na sua colocação a respeito da influência da Igreja Católica na
política brasileira do final do século XIX, onde ele cita que: “Foi comum atribuir-se papel importante na queda da
Monarquia a dois outros fatores: a disputa entre a Igreja e o Estado [...]. O primeiro deles contribuiu em alguma
medida para o desgaste do regime, mas seu peso não deve ser exagerado. A queda da Monarquia restringiu-se a uma
disputa entre elites divergentes, e nem entre os monarquistas nem entre os republicanos a Igreja tinha forte
influência”. Cf. FAUTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 236. Um contraponto a este
pensamento de Boris Fausto pode ser recolhido no comentário de Nelson Werneck Sodré no livro formação histórica
do Brasil (p. 306-307) onde comenta que: “Na última fase do regime, as questões tornam-se agudas. A primeira a
assumir este caráter é a Questão Religiosa. Na sociedade brasileira, a posição do clero era importante [...] cabendo ao
clero secular funções oficiais, elas lhes transmitiam, além dos misteres específicos, as ânsias, as inquietações, os
impulsos populares. Por força da sua função, o clero participava ativamente da vida política imperial. Esta
participação e o processo de recrutamento, numa fase de mudança, permite a presença, nos grandes acontecimentos,
de padres que serão neles jornalistas veementes, tribunos apaixonados, rebeldes e mártires. Trazem aos
acontecimentos, além disso, a sua capacidade de comando e aliciamento, derivadas do mister religioso e que
encontram receptividade pela ascendência profissional que exercem. [...] podia participar, com um grande papel, nos
acontecimentos, como realmente ocorreu, da Regência à República”. Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. Formação
histórica do Brasil. 14. ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2005. p. 298-307.
69
temporal e o poder espiritual controlavam “corações e mentes” e a ascensão ao poder de um
regime não grato a política da Santa Sé onde era combatido pela Igreja Católica em detrimento do
absolutismo monárquico.
O ultramontanismo, posicionamento ideológico da Santa Sé, estava ganhando força dentro
da hierarquia das Igrejas locais e chegava com certa força já no inicio do segundo reinado, se
difundindo entre o episcopado brasileiro. A Igreja Católica apesar dos conflitos com o “trono” no
Brasil se manteve aliada ao poder para manter o seu status quo, no entanto, não se sustentou
como braço político do novo regime de governo, onde o ponto culminante da separação Estado –
Igreja no Brasil se deu com o decreto 119-A de 07 de janeiro de 1890 após o acontecimento
incidental da “Proclamação da República” em 15 de novembro de 1889; causando inúmeras
transformações no país:
O país deixava de ser uma Monarquia Constitucional, com todo seu aparato
governamental centralizado na figura do imperador D. Pedro II, e passava a ser
administrado por um presidente da República, o militar marechal Deodoro da Fonseca.
Ao tornar-se uma República Federativa, as antigas províncias transformaram-se em
estados, mais autônomos em relação ao poder central. Deu-se a separação do Estado e
da Igreja, a liberdade de cultos religiosos, o estabelecimento do casamento civil e a
secularização dos cemitérios96.
A Igreja Católica no Brasil entrou na dinâmica de reformas dos republicanos que com a
nova constituição que seria promulgada em 1891 (após um breve período de um governo
provisório a cargo do Marechal Deodoro) tentou colocar o Brasil nos trilhos do desenvolvimento,
tendo mais uma vez como modelo, parâmetros importados se esquecendo de analisar a realidade
96
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da República. São Paulo: Contexto, 2001. p. 7.
70
social, sua diversificada constituição cultural, repleta de problemas, um conjunto plural que se
impõe de partida no contraste de sua geografia, no uso gramatical, entre outros, negando sua
própria história para entrar na história pela porta dos outros97. Este é um dos problemas (das
ideologias impostadas), de ter como ideal algo que serviu para outra sociedade que vivia um
contexto histórico diverso do nosso, portanto utilizando fórmulas adversas ao nosso contexto
desrespeitando nossas particularidades advindas da formação cultural ibérica.
1. A imprensa: forte aliada dos republicanos contra o regime monárquico
Setores articulados do republicanismo mais combativos ao regime monárquico neste
período começaram a articular uma campanha de desgaste da monarquia, principalmente por
intermédio da imprensa, meio de comunicação relativamente livre de censura no segundo
reinado, o que fez deste veículo um meio muito utilizado para divulgar, sobretudo críticas à
figura de D. Pedro II considerado neste contexto a imagem fiel deste regime monárquico em
decadência, mas não apenas dele, como também de outros atores do Império que representavam a
centralização e o conservadorismo. Além da imprensa escrita (textos) a charge (imagem) foi
amplamente explorada no sentido crítico onde as publicações de Lilia Moritz Schwartz (As
barbas do Imperador, Cia. Das Letras, 2004).98 e Ana Luiza Martins (O despertar da República,
Contexto, 2001)99 trazem um bom exemplo ilustrativo deste fato. Ana Luiza Martins dedicou um
subtítulo de seu livro que trata especificamente sobre este assunto, onde podemos ler que:
97
Para maiores informações sobre o tema em história de a América Latina consultar a pesquisa realizada por
Halperin Donghi no livro do historiador: DONGHI, Túlio Halperin. História da América Latina. São Paulo: Circulo
do Livro, [s.d.].
98
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. 2. ed. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 409, 417-424,
426, 428, 435, 441, 449, 453, 456, 464.
99
MARTINS. Ana Luiza. O despertar da República. São Paulo: Contexto, 2001. p. 27, 45, 53 ,63, 67, 85, 87 ,91
,97.
71
A imprensa constitui-se num dos mais poderosos recursos da campanha, arma eficaz do
regime, arauto das forças descontentes. Responsável pela construção da mítica
republicana como proposta da modernidade, tratou de demolir o edifício monárquico
pelo simples uso da palavra. Mais que isso, serviu como instrumento de contestação
para os próprios monarquistas, estes também críticos permanentes do Império. O
historiador Oliveira Lima escreveu que de 1822 a 1880 a Monarquia foi o alvo predileto
dos jornalistas e que sobre ela quase todos experimentavam a força do pulso, com mais
ou menos sinceridade, com maior ou menor talento100.
Inclusive os aliados do trono sofreram duras críticas através da imprensa, no caso da
Igreja Oficial defensora do absolutismo monárquico temos registros críticos a ela dirigidos, como
por exemplo, através do artigo de Joaquim Nabuco no jornal O País do ano de 1887, pois a Igreja
Oficial não se envolveu entre os anos de 1879 até 1887, período de intensa campanha
abolicionista cuja causa até então não pode contar com a dedicação devida de nossos prelados e
que causou ressentimentos justificados entre abolicionistas. Esta posição tomada pelo catolicismo
oficial foi motivo de grande vergonha para toda uma nação que se dizia cristã católica, onde até
mesmo o papado nos séculos XVII e XIX101 condenava veementemente os abusos escravistas,
mas por motivos politiqueiros ainda sujava nossa história com o aval da Igreja Oficial no Brasil.
Observe nos quadros abaixo um número oficioso sobre a quantidade de jornais
republicanos que circulavam na época do segundo reinado no Brasil e de clubes republicanos que
também haviam em grande quantidade para o período.
100
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da República, São Paulo: Contexto, 2001. p. 76.
O papa Urbano VIII, no ano de 1639, no breve Comissum Vobis alertava para que ficava automaticamente
expulso da Igreja o católico que escravizasse alguém. Em dezembro de 1839 o papa Gregório XVI condena a
escravidão de índios e negros na encíclica In Supremo. Outro exemplo nos foi dado pelo papa Leão XIII em sua
encíclica In Plurimis dirigida especificamente aos bispos brasileiros no dia 5 de maio de 1888 contra o escravismo
praticado no Brasil. Consultar para este assunto: http://www.antroposmoderno.com/antro.articulo de 17/02/2006
23:46:12. DOCUMENTOS DA IGREJA. V.6: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX. São Paulo: Paulus, 1999.
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.12: Documentos de Leão XIII. São Paulo: Paulus, 2005.
101
72
Províncias
jornais por província
São Paulo
21
21
Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul
11
33
Rio, Pernambuco, Santa Catarina
3
9
Amazonas, Paraíba, Sergipe
2
6
Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso
1
5
Total
74
Províncias
Clubes
102
Republicanos
Minas Gerais
56
56
São Paulo
48
48
Rio Grande do Sul
32
32
Rio de Janeiro
30
30
Rio
16
16
Santa Catarina
15
15
Espírito Santo
8
8
Pernambuco
6
6
Pará
5
5
Paraná
4
4
Sergipe, Mato Grosso, Bahia
3
9
Maranhão, Ceará
2
4
Rio Grande do Norte, Amazonas, Piauí, Alagoas, Goiás
1
5
Total
102
236 [sic]
VIANA, Oliveira. O Ocaso do Império. São Paulo: Melhoramentos, [s.d.] p. 112-114. Não Foram apenas os
jornais republicanos que proliferaram neste período, veja também os clubes republicanos do mesmo período nos
quadros acima.
73
Além das críticas à política imperial através da imprensa e dos clubes republicanos outros
meios foram utilizados para propagação dos ideais republicanos, através das lojas maçônicas,
meetings, conferências, festas e comícios103. Os intelectuais e homens de negócio,
preferencialmente do oeste paulista, que orbitavam perifericamente ao poder centralizador da
monarquia – ao qual a Igreja Católica se aliou por séculos, apesar dos inúmeros atritos – foram se
fortalecendo e intensificando na maratona propagandista nas últimas décadas do século XIX. Esta
campanha de desgaste do regime monárquico através das críticas à pessoa de D. Pedro II e o
sistema político brasileiro constituem os temas prediletos da eficaz estratégia republicana para
ascenderem ao poder.
2. O declínio da monarquia no Brasil
A instituição monárquica foi se desgastando no seio da sociedade brasileira por
intermédio de alguns conflitos, cedendo espaço para a ascensão dos republicanos que vão
fortalecendo sua investida após o “manifesto republicano” no ano de 1870. Entre os conflitos que
podemos destacar além da questão religiosa, houve outras questões relevantes que contribuíram
para a derrocada do antigo regime monárquico de governo ao qual a Igreja esteve aliada por
quase quatro séculos. A Questão Militar, a Questão Escravista – ou abolição da escravatura –
influenciaram na perda da sustentação social da monarquia que estava ancorada numa elite de
cafeicultores escravistas em decadência, situados no vale do Paraíba.
A ascensão dos cafeicultores do oeste paulista, ligados ao PRP, não menos escravista, mas
que já procurava alternativas na mão-de-obra imigrante e que denominaremos aqui como uma
questão econômica atrelada à ambição do poder, está ligada mais objetivamente a queda da
monarquia do que a seu desgaste, pois o que seria a base de apoio do regime republicano, não foi
103
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da República, São Paulo: Contexto, 2001. p. 74-76.
74
motivo de preocupação dos monarquistas que se descuidaram de seu crescente poder, onde nem
mesmo “o reformismo do império104” respondeu a seus anseios políticos e econômicos.
O fim do regime monárquico resultou de uma série de fatores cujo peso não é o mesmo.
Duas forças, de características muito diversas, devem ser ressaltadas em primeiro lugar:
o Exército e um setor expressivo da burguesia cafeeira de São Paulo, organizados
politicamente no PRP. O episódio de 15 de Novembro resultou da iniciativa quase
exclusiva do Exército, que deu um pequeno, mas decisivo empurrão para apressar a
queda da Monarquia. [...] a burguesia cafeeira permitiria a Republica contar com uma
base de apoio social estável, [...] A queda da Monarquia restringiu-se a uma disputa
entre elites divergentes [...]105.
Vamos neste trabalho nos concentrar em pontos que a historiografia brasileira consagrou
como sendo de maior relevância para este desgaste: a questão religiosa, a abolição do regime
escravista em 1888 e a questão militar106.
2.1. A Questão Militar
Teoricamente a primeira batalha dos Guararapes em 19 de abril de 1648 marcou o início
da organização do exército como força genuinamente brasileira, formada por brancos locais
104
Sobre este assunto consultar: FAUSTO, Boris. História do Brasil, 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 233.
FAUSTO, Boris. História do Brasil, 10. ed. São Paulo EDUSP, 2001. p. 235-236.
106
Uma questão levantada por Ana Luiza Martins (O despertar da República, p. 97-98), foi o sentimento nacionalista
com possibilidade do Conde D’Eu assumir o trono com a iminência de entrarmos num Terceiro Reinado devido a
fragilizada saúde do monarca, sendo ele (Conde D’ Eu), um estrangeiro isso causou grande insatisfação nos militares
que aderiram à causa republicana mais por uma eficiente manobra dos republicanos históricos do que por convicções
ideológicas sendo denominados, republicanos de ultima ora: “[...] Benjamim Constant – o acatado professor da
Escola Militar, que divulgava o positivismo e pregava a República – fez ver aos colegas, a necessidade de uma
solução radical. Embora deles muitos não fossem republicanos – sobretudo os mais velhos e de altas patentes –
impunha-se uma ação imediata contra o governo [...] tendo a frente um estrangeiro, o conde d’Eu. Reafirma esta
posição nacionalista, Boris Fausto (História do Brasil, p. 235): “Outro problema consistia na falta de uma perspectiva
animadora para um terceiro Reinado. Por morte de Dom Pedro, subiria ao trono a Princesa Isabel, cujo marido – o
Conde d’ Eu – era francês e, no mínimo, uma personalidade muito discutível. Cf. FAUSTO, Boris. História do
Brasil, 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002; MARTINS, Ana Luiza. O despertar da República, São Paulo: Contexto,
2001.
105
75
liderados por André Vidal de Negreiros, índios liderados por Felipe Camarão e mulatos e negros
liderados por Henrique Dias. Sem nos atermos em detalhes e só como registro a data de 19 de
abril é então comemorada como o “aniversário” do exército brasileiro, mais uma data alusiva que
não representa uma realidade da história nacional, mesmo porque o exército foi negligenciado
efetivamente até o ano de 1865, ano do início da guerra com o Paraguai. O Brasil nesta época
contava com um contingente de 16.834 oficiais e praças, distribuídos pelas províncias num
território de dimensões continentais. Apesar das tentativas desde o ano de 1837 de se instituir a
obrigatoriedade do serviço militar faltou vontade política para resolver esta questão e equipar
devidamente esta força militar, que se ocupava mais da caça de negros fugitivos do regime de
escravidão do que com a defesa efetiva do território nacional.
A questão militar foi na realidade uma série de desentendimentos107 entre “fardas e
casacas”, ou seja, incidentes esparsos que causaram reprimendas disciplinares e troca de ofensas
verbais entre os militares que se negavam em se submeter ao poder civil e por sua vez o poder
civil foi representado quase que maciçamente pelos legalistas provindos das faculdades de direito
do país. Como de costume os casacas tinham a pretensão (a autoridade de fato concedida pelo
sistema monárquico absolutista) de ingerência em todos os assuntos considerados de Estado
inclusive na segurança nacional mesmo que esse poder não lhes fosse delegado.
Esta guerra (do Paraguai) deixou manchada para sempre a história da América Latina. No
entanto, este episódio da guerra do Paraguai motivou os militares a reivindicarem seus direitos,
pois se sentiram no direito de cobrar respeito para uma categoria que sempre esteve à margem do
poder mesmo depois da Independência do Brasil permanecendo efetivamente alijado do poder até
107
Serve como exemplos: O convite do Tenente-coronel Sena Madureira aos jangadeiros do Ceará que havia
libertado os escravos para visitar a Escola de Tiro do Rio de Janeiro, motivo pelo qual foi punido com sua
transferência para o rio Grane do Sul; A ordem do ministro da guerra proibindo os militares de fazer discussões sobre
questões políticas e da corporação por intermédio da imprensa. Cf. FAUSTO, Boris. História do Brasil, 10.ed. São
Paulo: EDUSP, 2002.
76
a proclamação da República do Brasil108. Logo após a guerra do Paraguai houve uma crescente
insatisfação e um sentimento classista que uniu esta instituição (o exército) em torno da defesa de
seus direitos.
O exército na realidade era uma corporação insatisfeita e ressentida com a elite do poder,
pois estava sempre girando como um satélite secundário aos interesses dos monarquistas, sendo
utilizados apenas quando necessário e para questões mais no campo da “força” do que no campo
da influência política, como indicado acima, mas neste período de descontentamento do exército
com o poder monárquico o exército se recusava a prestar serviços como, por exemplo, a recaptura
dos negros foragidos, este ressentimento afinal era, naquela óptica, por uma causa justa. Ao
término da questão internacional vencida pela tríplice aliança – Argentina, Brasil e Uruguai – “na
vitoriosa campanha” do exército brasileiro109, pois afinal:
Esse ressentimento transformou-se em mágoa profunda após a Guerra do Paraguai.
Afinal, a partir deste episódio, configurou-se a verdadeira corporação militar do país,
mobilizada para a conquista da vitória, após longos anos de luta árdua. Uma vez
vitoriosos, constituindo-se agora efetivamente num exército institucionalizado,
esperavam reconhecimento pelo seu desempenho, ou seja, remuneração condigna e,
sobretudo, participação política. Muito pelo contrário, as recompensas não
aconteceram. Os ministérios nada fizeram em seu beneficio, mantendo soldos baixos e,
inclusive, nomeando elementos estranhos às forças armadas para pastas militares. [...]
levou os militares a imbuírem-se de um “espírito de classe”, unindo-se no
enfrentamento de um inimigo comum: o civil, legistas de ontem, casaca de agora110.
108
Para constatar a fraca presença militar na política do país, lembramos que na década de 1840 apenas quatro deles
ingressaram no Senado; na década seguinte, apenas três; e nos últimos trinta anos do Império, igualmente três. Cf.
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da república. São Paulo: Contexto, 2001. p. 89; FAUSTO, Boris. História do
Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 203-235.
109
O grifo é nosso.
110
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da república, São Paulo: Contexto, 2001. p. 89.
77
O exército brasileiro tinha características bem peculiares se comparado aos exércitos sulamericanos que segundo alguns autores, era um exército teórico, não afeito às batalhas, ficando
mais nos estudos filosóficos, principalmente o novo oficialato, impregnado do sentimento
republicano propagado pelos ensinamentos do positivista Benjamim Constant, ao contrário da
“velha-guarda” composta inclusive por admiradores do imperador como o republicano de última
hora, o Marechal Deodoro111.
Neste contexto o fato importante a ser citado foi que os republicanos perceberam que a
ajuda do exército seria imprescindível para suas pretensões o que acabou acontecendo com o
aliciamento de alguns oficiais monarquistas insatisfeitos com o tratamento dispensado pelos
homens do poder conforme comentamos acima. “O político Campos Salles, de São Paulo,
escrevendo para o colega Saldanha Marinho, no Rio de Janeiro, admitia que os republicanos
deviam aproveitar-se da então denominada Questão Militar112”.
De fato foi o que aconteceu, a questão militar foi devidamente explorada se desdobrando
posteriormente no apoio já conhecido pela história brasileira onde os republicanos manipularam
com eficiência as peças chaves dentro do exército para atingirem seus objetivos: ao apoiarem os
militares, receberam destes a solidariedade almejada. Atritos não faltaram durante o conturbado
período imperial brasileiro para que se instalasse um novo regime de governo, no entanto, graças
à habilidade política dos republicanos deste contexto, este desejo de inserir o Brasil no cenário
republicano latino-americano pôde ser concretizado, caiu o último “império entre repúblicas113”
111
“A 11 de novembro de 1889, figuras civis e militares, como Rui Barbosa, Aristides Lobo e Quintino Bocaiúva
reuniram-se com o marechal Deodoro, tratando de convencê-lo a liderar um movimento contra o regime. A
participação de Deodoro era importante como figura conservadora e de prestígio no exército. Ele resistia por ser
amigo do imperador e não gostar da presença de paisanas na conspiração. O problema lhe parecia de ordem
estritamente militar. [...] uma serie de boatos espalhados [...] levou Deodoro a decidir-se pelo menos a derrubar Ouro
Preto. Cf. Boris Fausto. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 234-235.
112
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da república. São Paulo: Contexto, 2001. p. 91.
113
Para maiores informações sobre este tema consular: BERNARDES, Denis. Um império entre republicas. 5.ed.
São Paulo: Global, 1997.
78
da América Latina com o apoio do hoje temido e combatido poder dos militares. A história está
aninhada numa rede complexa de acontecimentos, para além das questões documentadas fica
ainda a questão da disputa particular pelo poder envolvendo cada ator e sua ambição
impublicável que pode ter mudado o rumo dos fatos.
2.2. A Questão Escravista
Esta é sem dúvida, na historiografia e na literatura brasileira, uma das questões mais
polêmicas e analisadas por diversas áreas do conhecimento. Portanto, aqui faremos apenas um
registro sucinto deste tema que causa discussões acaloradas quando tratado indevidamente em
exposições pretensiosas e sem o devido aprofundamento que o tema merece. É uma ferida aberta
que até hoje envergonha e dói a alma. O discurso de mal necessário não convence quem sofre até
hoje a discriminação que em determinado contexto foi justificada pela própria religião.
Não podemos julgar o passado com o ferramental disponível na contemporaneidade,
também não podemos nos calar diante do uso conveniente que muitas vezes fazemos da palavra
de Deus, usando um texto como pretexto para justificar abusos que favoreceram idéias e
momentos governados mais pela ganância de uma elite do que iluminados pela justiça social
contida nas linhas que deveriam nortear em todos os tempos o povo cristão. Algumas falas
advindas do setor eclesiástico no século XIX são consideradas114 mais em sentido legalista do
que propriamente evangélico ou humanitário como vemos no comentário de dois padres, um o
futuro Bispo de Mariana, D. Viçoso:
O primeiro argumento a fundamentar a justiça da escravidão negra era a ordem legal
[...] O Pe. Silvério Gomes Pimenta escreve em 1876 [...] ‘avultava então entre todas a
questão da escravatura trazendo com razão inquietadas as consciências dos católicos’.
114
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 157-158.
79
Essas dúvidas de consciência nasciam do fato de escravos negros estarem sendo
trazidos da África, apesar da lei antitráfico de 1831. Era, pois, uma escravidão fora da
lei. [...] havia divergência entre os moralistas ‘opinando uns que era lícito em
consciência ter, adquirir e até introduzir este contrabando no Brasil; sustentando outros
que não podia ter segura a consciência quem possuísse tais escravos, muito menos
quem os introduzisse115.
Este tipo de discussão no crepúsculo do século XIX é patética, pois trata da questão
escravista no sentido da legalidade, parece que ainda não haviam percebido o tema era sobre
seres humanos e não mercadoria. Para a questão escravista, desde o início do século havia uma
forte pressão externa exercida pela Inglaterra, não menos desumana e exploradora na questão da
mão-de-obra, pois ao fazer pressão contra o tráfico de seres humanos com todo mérito que a
questão merece, se esquecia da desumanidade estabelecida nas indústrias inglesas que fizeram a
mais importante revolução para o mundo capitalista desde então116. A mesma injustiça praticada
com a escravidão que fez a fortuna de muitas famílias abastadas da sociedade na terra “brasílis”,
foi praticada naquele país imperialista com seus próprios cidadãos que empregava batalhões de
crianças pela necessidade que suas famílias tinham para sobreviver.
Desumano foi cá e lá arrogante visando apenas o poder e o material, mas como em toda
história da humanidade são suscitados profetas para combater o mal e indicar o caminho do bem,
mesmo que estes profetas não rezem pela nossa cartilha, neste século surgiram grandes
defensores da dignidade dos escravos, só ousamos e lamentamos dizer aqui que no final do
115
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 157-158
116
Cf. HOBSBAWM, Eric J. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1979.
80
século XIX já não se fazia mais necessária a manutenção deste regime de trabalho, mesmo assim
ficam na história nomes dignos de reverência pelo empenho na defesa de seus irmãos.
Quanto ao papel desempenhado pela Igreja Povo de Deus, conforme definição do
Concílio Vaticano II, devemos registrar que houve esforços louváveis pela abolição dos negros,
com poucos registros é verdade porque a história do vencido ou do povo humilde, aqui uso no
sentido de (des)capitalizado, não conta com registros suficientes para grandes afirmações. Mas a
história muitas vezes é cruenta, mas é a história – não se trata de conformismo, mas de fatos – a
economia brasileira desde os primórdios da colonização foi dependente de um regime
escravocrata. Os senhores de engenho, a agricultora para exportação e até mesmo a vida
doméstica esteve dependente do negro (ou do nativo). O humanismo parece esteve esbarrando no
financeiro ou mesmo no ideológico por estas bandas do planeta, “neste ponto crucial todas as
forças se embaraçavam, fossem elas conservadoras, liberais ou mesmo representantes da Igreja,
esta também proprietária de escravos e conivente com os interesses oficiais. Estava aqui o terreno
pantanoso [...]117”. Para resumir a questão era inconcebível para um republicano carregar a
mácula da escravidão, mas nem tanto por se tratar de seres humanos, mas sim por ser um
potencial consumidor do sonhado progresso que o novo regime estaria prestes a implantar no país
ao sair do arcaico regime monarquista e suas práticas.
Este tema foi tabu mesmo dentro do PRP por ser apoiado por um grande contingente de
fazendeiros do oeste paulista que ainda utilizavam a escravidão, apesar de gradualmente estarem
lançando mão da onda imigratória. Este assunto só chegou a bom termo depois de arranjada uma
solução que não fosse onerar a base de apoio republicana. A campanha abolicionista não foi
assumida oficialmente pelos republicanos. Conseqüentemente o bom termo para os republicanos
117
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da república, São Paulo: Contexto, 2001. p. 80.
81
foi o golpe de misericórdia para a monarquia que perdia sua sustentação política ao fragilizar
ainda mais os já descapitalizados fazendeiros do Vale do Paraíba, donos de grande número de
cativos, falidos e sem condições de assumir o novo regime de trabalho abandonaram suas
fazendas de portas fechadas.
2.3. A Questão Religiosa
Na primeira e única constituição do período imperial brasileiro – 1824 – ficou
estabelecida a existência de uma religião oficial do Império do Brasil – a católica apostólica
romana – depois por intermédio da missão diplomática do monsenhor Francisco Correa Vidigal,
a Santa Sé reconhecia no ano de 1827 o direito de padroado com todas as regalias concedidas
anteriormente à coroa portuguesa, inclusive o beneplácito, isto é, a necessidade da licença do
governo brasileiro para se publicarem documentos provenientes da Santa Sé. Também foi
determinada a separação disciplinar das ordens religiosas com jurisdição em Portugal.
2.3.1. Uma outra “questão”: a perseguição aos religiosos
Dentre os inúmeros atritos com a Igreja Católica no período imperial brasileiro um
capítulo humilhante é reservado aos religiosos “tradicionais118” atormentados por várias questões
causadas pela excessiva ingerência do Estado restringindo suas ações, isto causou uma forte
decadência quase que sentenciando a morte das ordens religiosas “brasileiras” – as controvérsias
vão desde a questão em torno da reforma das ordens religiosas, aos bens destas ordens119 o que
118
As ordens religiosas tradicionais eram: “a beneditina, a carmelita, a franciscana, a mercedária, e a capuchinha,
como ordens religiosas masculinas. As ordens religiosas femininas eram as clarissas, as ursulinas, as concepcionistas
e as carmelitas descalças”. BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da
Igreja no Brasil. V. 2,2: Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 200.
119
Salvo quando esta necessidade fosse necessária aos interesses do governo brasileiro, como por exemplo, nas
missões no norte do país para garantir a expansão do território, onde foi solicitado aos capuchinhos um contingente.
Consultar: OSCAR BEOZZO, José. História geral da Igreja na América latina: História da Igreja no Brasil. V2,2:
Segunda Época Século XIX. p 200-215.
82
parece ter resquícios da perseguição de Pombal aos jesuítas no Império Português no terceiro
quarto do século XVIII, pois lá como cá os bens dos religiosos pareciam ser a ambição dos
governantes:
Um problema que agitou todo este período histórico foi o dos bens das ordens religiosas
‘tradicionais’. Em 1870 se torna a repisar na proposta de Concordata do Governo
imperial com a S. Sé para a extinção das ordens monásticas no Brasil e que ‘os bens dos
conventos extintos serão aplicados á reforma e grande melhoramento dos seminários’
[...] o jornal católico da Bahia objetava que ‘esses bens das ordens religiosas são o
El´Dorado do Governo do Brasil’. [...] em ultima analise a hostilidade do Governo
imperial às ordens religiosas se prendia ao problema desses bens. [...] o que tem atraído
sobre ele os anátemas desses governos é a moeda que a piedade dos fiéis tem
amontoado nos conventos, e esses frades, na maior parte, tão sabiamente administram.
O Estado não suporta estas lições práticas de economia; e o melhor meio de ver-se livre
delas é matando o seu contendor, apoderar-se da cadeira120.
O governo manteve as ordens religiosas tradicionais subjugadas a uma situação jurídica
de inferioridade, onde em toda legislação do período colonial e do primeiro império eram feitas
restrições ao ingresso de novos membros além de manter a ingerência do Estado nos assuntos
religiosos de maneira abusiva. Afinal o governo imperial considerava neste contexto os religiosos
de pouca utilidade, obsoletos para desempenharem qualquer função de interesse do Estado já que
a catequese de negros e índios não era mais necessária, com isso volto a colocar que quase foi
decretada a morte dos religiosos “brasileiros”. Um ponto crítico foi a proibição do noviciado por
um aviso do ministro da justiça no ano de 1855 – até que se procedesse a reforma pretendida pelo
governo nas ordens religiosas na tratativa com a Santa Sé – os religiosos aceitaram pacificamente
120
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 201.
83
esta medida por já estarem acostumados a “tais atitudes restritiva [sic] aos religiosos já eram uma
rotina legislativa121” por este motivo quase que foram morrendo lentamente, ao passo que só se
deram conta da gravidade no ano de 1870 com a reação esboçada pelos beneditinos do Rio de
Janeiro.
Os beneditinos enviaram jovens brasileiros para o noviciado em Roma, o que não deixou
de ser causa de repreensão por parte dos governantes. Como pode se ver a vida dos religiosos não
foi fácil no período imperial brasileiro. Os interesses dos governantes estavam voltados para
outra direção, afinal as ideologias que ligavam a cruz e a espada estavam dando lugar para outras
filosofias, como o liberalismo, o republicanismo e até o positivismo já estavam condenando a
ideologia religiosa que serviu para aos propósitos colonialistas. Este tópico é apenas uma
exposição da complexidade do problema entre trono e altar, pois não se resumiu apenas à
hierarquia da Igreja, mas se estendeu a toda vida religiosa, o desleixo do Estado que tinha um
compromisso firmado na colonização e reafirmado com a “independência” do Brasil através do
regime de padroado de “zelar pela fé”.
2.3.2. A Questão dos Bispos
O Segundo Reinado foi palco da mais famosa crise entre a Igreja Católica e o Estado122
(1872-1875), impasse que só teve fim “Pelo decreto n.º 5.993 de 17 de setembro de 1875, a
concessão de ampla anistia aos bispos de Olinda (D. Vital) e do Pará (D. Macedo Costa), que
haviam sido condenados na célebre Questão Religiosa. Era presidente do Conselho, nesta
121
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 203-204.
122
Consultar a discussão “diplomática” do Estado brasileiro na Santa Sé através deste interessante documento:
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 0017 COD. OR-F-SPO/003 OR 021 1. [Missão Especial a Roma – 1873 / Barão de
Penedo].
84
ocasião, o Duque de Caxias123”, o caráter oficial do catolicismo foi mantido até o final do
império, no entanto, os atritos foram uma constante. Mas, por que isto aconteceu?
Nesta síntese que se desenvolverá neste capítulo e se completará com os capítulos
seguintes não está em jogo apenas a tensão política entre o Estado e a Igreja no Brasil, já havia há
alguns anos um embate silencioso entre os bispos com formação ultramontana e o regalismo
imperial, portanto não foi apenas um conflito entre dois bispos, a saber, D. Antonio Macedo da
Costa, bispo do Pará, e D. Vital, bispo de Pernambuco. Na realidade este conflito envolvia a
doutrina da Igreja. D. Macedo em defesa de seu irmão de episcopado argumentava com o
ministro do Império João Alfredo o seguinte: “Se o bispo de Pernambuco é réu perante a lei,
Exmo. Senhor, réus perante a lei sou eu e muitos outros bispos do Império124”. A Igreja neste
contexto trava uma luta conservadora e antimaçônica que estava além de nossas fronteiras, ao
contrário já vinha contagiada pelo embate que ocorria na Europa.
A Santa Sé estava preocupada com a ortodoxia em matéria religiosa e a centralização do
poder na autoridade papal. Este pensamento foi envolvendo lentamente o episcopado brasileiro
que se alinhava ao movimento católico antiliberal, orientado pela publicação da encíclica Quanta
Cura e do compêndio Syllabus. Mas não foi fácil se alinhar às determinações da Santa Sé, não só
o caso mais conhecido entre a Igreja Católica e o Segundo Reinado denominado como Questão
Religiosa marcou negativamente as relações entre o episcopado ultramontano que estava se
formando no Brasil e a elite imperial, majoritariamente regalista, anticlerical e laica.
Apesar de católica a elite brasileira contava também com boa parte do clero incluso nesta
linha liberal regalista, provocando atritos no seio da própria Igreja entre a hierarquia que se
123
BANDEBCCHI, Brasil; ARROYO, Leonardo; ROSA, Ubiratan (Orgs.). Novo dicionário histórico do Brasil.
2.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1971. p. 371.
124
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 186.
85
alinhava com os preceitos que estavam sendo adotados em Roma e orientando parte do seu clero
a seguir o mesmo caminho. Mas, na elite foi quase uma tradição um homem do governo e ou da
sociedade ser maçônico e católico, pois “o processo de cristianização no Brasil realizou-se de
maneira muito peculiar. Se o país oficial proclamava-se católico, o país real, quase sempre,
movia-se à margem das práticas e dos dogmas da Igreja [...] cerimônias religiosas funcionavam
primordialmente como espaços de sociabilidade, aproveitados para trocar inconfidências e
namorar125”.
Contando com um gabinete ministerial e um parlamento anticlerical, em grande parte
maçônico, apesar de formalmente católico, a Igreja se sentiu no direito de cobrar indiretamente
uma ortodoxia dos homens do poder, e teoricamente seus aliados. Através do enfrentamento
aberto contra a maçonaria, a hierarquia católica tentou barrar uma prática tolerada por décadas no
Brasil pela “Igreja Departamento de Estado126” que vigorou (a prática), desde a colonização, mas
que com sua nova orientação política conservadora, diferente da dos padres ilustrados de outrora,
manifestava neste contexto sua orientação mais romanizada, ligando-se a política da Santa Sé.
Apesar desta nova orientação ultramontana da Igreja defender a ligação entre a Igreja e o Estado
baseado no saudosismo do regime antigo, houve crescente conscientização da Igreja hierárquica,
onde:
[...] representou para Igreja um tempo de profunda fermentação em que se desenvolvia
progressivamente, sobretudo no episcopado, a consciência da missão especifica de Igreja bem
como de sua autonomia face ao governo temporal. Sendo o apogeu do império o apogeu
também da idéia de um governo forte e centralizante, isso envolvia necessariamente um
domínio exorbitante dentro do setor espiritual. Contra isso reage a Igreja. Mas reage
125
NEVES, Lucia Maria Bastos Pereiras das; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de
Janeiro: N. Fronteira, 1999. p. 206.
126
O grifo é nosso.
86
igualmente contra a idéia antagônica que então assumia grande expressão: o liberalismo. De
forma que, embora a Igreja estivesse a favor de um governo forte e centralizante e também
estivesse convencida da união sagrada entre “altar e trono”, no entanto se recusava a continuar
numa posição de subserviência diante do poder temporal127.
Nos países católicos da Europa já havia um enfrentamento entre a Igreja Católica e a
Maçonaria, o que foi começando a ser seguido no Brasil apesar do grande contingente de leigos
católicos dirigentes das irmandades religiosas e de parte considerável do clero pertencer à
maçonaria, como já citado acima. No Brasil a hierarquia católica tomou medidas para coibir o
que considerava um abuso causando deste modo um conflito com os maçons. O Estado interveio
de acordo com suas prerrogativas baseadas no velho sistema de padroado tentando sufocar mais
uma vez a autonomia da Igreja em questões religiosas e fazer valer sua autoridade, chamando os
infratores da lei à obediência.
As irmandades religiosas segundo as leis do Império, eram organizações mistas, de acordo
com o Decreto n. 1911 de 28 de março de 1857. O ministro João Alfredo comunicou a decisão do
Conselho de Estado contra as ordens do Bispo (D. Vital) de interditar as capelas das referidas
associações religiosas e a suspensão dos ofícios das irmandades, e posteriormente a D. Macedo
pelos mesmos motivos. D. Macedo da Costa ao ser citado respondeu o seguinte: “importa
obedecer antes a Deus que aos homens. Rejeitou categórico a doutrina do beneplácito e contestou
como absurdo herético o recurso à coroa128” mantendo-se firme em sua decisão e foi além
dizendo que “em matéria religiosa o poder civil não é autoridade, mas pelo contrário tem estrita
127
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 151.
128
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. 187.
87
obrigação de obedecer à Igreja129”. Consta ainda em sua defesa no processo que: “Não podendo
eu, sem apostatar da fé católica, reconhecer no poder civil autoridade para dirigir as funções
religiosas, pois o aviso do ministro do império envolve esta pretensão, não, posso sacrificar-lhe
minha consciência e a lei de Deus130”.
O resultado desta insubordinação dos dois bispos foi a prisão expedida pelo presidente do
Supremo Tribunal de Justiça de acordo com a infração do art. 96 do Código Criminal131. O caso
na verdade contou com a falta de diplomacia das partes envolvidas, quando tudo começou com a
ameaça de expulsão pelo bispo do Rio de Janeiro do padre Almeida Martins, um maçom, que na
festa de comemoração da lei do Ventre Livre fez um discurso exaltando, na loja maçônica
Grande Oriente, ao visconde do Rio Branco que além de primeiro ministro era o grão mestre da
loja maçônica Grande Oriente.
A orientação para expulsar os maçons da convivência religiosa foi tomando corpo entre o
episcopado brasileiro e culminou com o atrito de D. Vital e D. Macedo da Costa com os
integrantes das irmandades religiosas de suas dioceses que freqüentavam a maçonaria.
Inconformados desta resolução os católicos maçons subordinados a esses bispos recorreram ao
poder temporal que regulava os estatutos destas irmandades consideradas associações mistas:
tanto religiosa quanto civil. Prevaleceu o caráter anticlerical do poder temporal e a falta de tato do
poder religioso em também reconhecer sua intransigência nesta matéria, pois não se mudam
costumes arraigados em uma prática de décadas por decretos, pois:
129
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 187.
130
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 188.
131
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 188.
88
Não parecia forçoso que seus adeptos fossem contrários à Igreja. Vários eram católicos,
e muitos devotos, nem faltaram sacerdotes que, fazendo suas preces a Deus, o Deus dos
cristãos, davam tributo, igualmente, ao Supremo Arquiteto do Universo. Somente a
partir de 1852, quando se generalizou o rito escocês, começou a infiltrar-se o
antagonismo contra a Igreja, mormente contra a alta hierarquia eclesiástica, numa
associação secreta que empolgava grande parte das camadas dirigentes. Mas se o
liberalismo extremado levava esses maçons a combater o catolicismo e, sobretudo a
autoridade prelatícia, os mais conseqüentes teriam de ser naturalmente conduzidos a
volver-se contra o padroado que, no Brasil, estava estreitamente ligado as
instituições132.
Ao se transplantar uma controvérsia européia para o Brasil entre as posições das políticas
liberais antagônicas ao ultramonstanismo ganhava corpo os embates entre o Estado e a Igreja no
Brasil e com a agravante de expor dentro da própria Igreja uma vertente de padre liberais adeptos
do movimento republicano, favoráveis ao abolicionismo e a fragilidade da união desses dois
poderes, oportunidade aproveitada pelos republicanos para expor a debilidade da monarquia:
A imprensa republicana, ao tomar [sic] público o que fora secularmente velado,
expunha a debilidade da Monarquia. Trazia a tona as contradições de um Império que
se pretendia morno e liberal mas que, entretanto, por sua ligação com a Igreja, não
admitia a livre consciência, a liberdade de ensino, a liberdade de religião, o casamento
civil, a instituição do registro civil de nascimentos e óbitos, nem mesmo a secularização
dos cemitérios pelas administrações municipais. Império que teria a sua continuidade
com a princesa Isabel, beata, ligada a confessores conservadores133.
132
HOLANADA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico V7,2: Do
Império à República. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005. p. 335.
133
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da república. São Paulo: Contexto, 2001. p. 87.
89
O governo brasileiro anistiou, no ano de 1875, como frisado acima, “aos dois prelados,
numa tentativa de contornar a delicada situação. Mas a questão tinha já tido ido longe demais,
indispondo o imperador com a Igreja, um dos sustentáculos do Trono. Estremecimento que
arranhava o Trono e enfraquecia ainda mais a Monarquia134”. O poder temporal e espiritual
parece não ter se acertado mais depois deste impasse de tamanha gravidade, principalmente para
o ego da hierarquia católica, os atritos foram se acentuando e a década de 80 do século XIX
trouxe novos dissabores.
Mesmo antes da proclamação da república algumas reformas já vinham sendo discutidas
no parlamento e que arranhariam novamente o status de poder da Igreja Católica, como por
exemplo, as questões relativas ao casamento civil e as secularizações dos cemitérios, a educação
laica e as liberdades de culto, revogando muitas prerrogativas, doravante não reservadas apenas a
Igreja Católica, mas as demais confissões religiosas cristãs no território brasileiro. Mas isto não
por uma questão de boa vontade ou democracia e sim decorrente do relevante número de
imigrantes que professavam a fé cristã ligada a denominações protestantes como, por exemplo, os
alemães luteranos, ou mesmo os protestantes presbiterianos e batistas missionários135
provenientes dos Estados Unidos cooptando adeptos para suas denominações. Oportunamente
estas questões voltarão a ser discutida no terceiro capítulo desta dissertação.
3. As bases sociais de apoio ao republicanismo no Brasil
O ideal republicano está no Brasil desde os movimentos de independência em curso no
final do século XVIII136, neste período associado à idéia de revolução, e com a participação mais
134
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da república, São Paulo: Contexto, 2001. p. 84.
Para maiores informações consultar: CAVALCANTI, H. B. O projeto missionário protestante no Brasil do século
19: comparando a experiência Presbiteriana e Batista. REVER, São Paulo, n.º 4, p. 61-93, 2001.
136
Cf. WILCKEN, Patrick. Império a deriva: A Corte portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005; FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002.
135
90
ativa do baixo clero aliado a algum tipo de reforma da sociedade e este pensamento perpassou
todo o século XIX contagiando alguns lideres do movimento republicano e signatários do
manifesto de 1870, como por exemplo, Lopes Trovão e Silva Jardim onde defendiam “uma
revolução popular como caminho para se chegar a República”137. Ao contrário o movimento
seguiu nos moldes do que se consagrou na história do Brasil como sendo um país de mudanças
sem grandes conflitos. Com isso Quintino Bocaiúva e os partidários de uma transição pacífica
prevaleceram e foram conquistando o apoio de uma elite que provavelmente não estava com
intenção de grandes mudanças populares para preservar seu patrimônio em franca ascensão.
3.1. A elite cafeeira do Oeste Paulista
Os republicanos ganharam o apoio popular da burguesia cafeeira paulista. Este foi um fato
importante para a ascensão dos republicanos, pois a elite cafeeira do oeste paulista insatisfeita
com má (re)distribuição de rendas orquestrada na capital do país, onde o poder central se
descuidou nas defesas dos interesses desta classe, que foi se organizando e demonstrando um
poder crescente nas últimas quatro décadas do século XIX, juntamente com uma classe média
agitada que se formava nos meios urbanos em expansão.
Este foi o apoio que faltou a monarquia para se manter no poder: uma base social
poderosa, pois na política partidária brasileira o que se convencionou chamar de base social
parece estar mais ligado ao apoio logístico financeiro do que a mobilização de classe ligada ao
povo, pelo menos até o final do século XX e que ainda não se confirmou nenhum caso contrário,
vide a situação que se encontra a política brasileira em nosso contexto atual, carente de projeto
eleitoral que chame a atenção do eleitorado brasileiro, restando então apenas os ataques morais
137
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 227.
91
entre os partidos, situação que entre outras causas se encontra o malefício do financiamento das
campanhas políticas para os cargos eletivos da vida política nacional.
3.2. Os “pensamentos” e sua influência nas instituições138
As revoluções na Europa do século XIX precipitaram uma onda de insatisfações e desejos
de mudanças no Brasil – tanto no âmbito do poder temporal como no próprio ambiente
eclesiástico. Entretanto por não sermos um país eminentemente formador de opinião e estando
relativamente atrelado à mentalidade colonialista continuávamos, ou continuamos, importando
modelos de pensamentos e técnicas para entrar na dinâmica mundial do progresso. O problema
maior se concentra não em importar modelos prontos e sim na incapacidade de não se
contextualizar o modelo aos problemas específicos, fazendo disto uma corrida contra o atraso que
deveria ser vencido a qualquer custo.
Mas, por que nos utilizamos deste termo: a qualquer custo? Porque não será repetindo
fórmulas prontas que conseguiremos alcançar o progresso técnico e científico pura e
simplesmente, o comprometimento futuro muitas vezes reserva-nos atrasos que se arrastarão por
anos quando o imediatismo supera o bom senso. Seria necessária uma série de adaptações para
contextualizar modelos de sucesso de outra cultura para ser compatível com nossos costumes,
tomada a decisão contra a monarquia no Brasil, não que a história seja um processo mecânico,
mas encontrou um solo fértil, insatisfação de setores chave da sociedade brasileira daquele
contexto. Neste subtítulo nos deteremos em apresentar duas “ideologias que predominaram” no
Brasil do século XIX.
138
Este subtítulo trata apenas dos pensamentos de maior relevância para o agir republicano no Brasil, como as
ideologias anti-clericais e os ideais de progresso cientifico embutidos no republicanismo.
92
3.2.1. O Liberalismo no Brasil
O liberalismo adotado pela elite no Brasil, parece-nos estar ligado ao que foi considerado
por Roberto Schwarz, um crítico machadiano, quando em sua obra argumenta sobre as idéias
impostas no Brasil comentando sobre o liberalismo139 como sendo este liberalismo “fora do
lugar”, principalmente por ser incompatível com a escravidão. Como já comentamos neste
capítulo, à primeira vista parece que esta informação está em conflito com o que colocamos sobre
a camisa de força, ao se adotar um ideal importado pelo Brasil. Porém, esta visão é confirmada
pelo fato de que, mais uma vez, não foi respeitado o contexto, adotando um discurso
incompatível com nossa realidade, como se discurso e prática não tivessem que necessariamente
caminhar lado a lado.
Neste sentido, caminhamos muitas vezes por um caminho estéril, ao tentar expor um
pensamento político que mobilizasse as pessoas em torno de um ideal. Parece muitas vezes que o
ideal vem precedido de conveniências particulares, dado o fato da recorrência histórica de nossos
partidos aos palanques eleitorais, mais do que às agremiações defensoras de algum ideal. A
política já foi um clube de milionários defensores das oligarquias, que se abriu
“democraticamente” aos “descamisados”, tornando-se para estes um cabide de emprego. Um
dado comum num país miserável, no qual, salvo raríssimas exceções, encontramos pessoas
imbuídas de alguma ideologia que de tão raras, fica difícil apontar alguma. Objetivamente, ficanos muitas vezes a impressão de um lugar do “faz de conta”.
Se o liberalismo tivesse se desenvolvido aqui como foi propagado pelo ocidente após a
Revolução Francesa e seu ideário iluminista proveniente da formação das sociedades burguesas a
partir do setecentismo deveriam aqui ter defendido como em outros países as liberdades, tais
como: trabalho livre assalariado, liberdade comercial, liberdade de pensamento e religião, a
139
SCHWARS, Roberto. Ao vencedor as batatas. 5.ed. São Paulo: 34, 2000.
93
representatividade política da população e o constitucionalismo de fato. Mesmo em outros países
de origem colonial este ideal foi reinterpretado e adaptado às conveniências locais, portanto a
ideologia liberal é frágil em unicidade, não se tratando de um problema unicamente brasileiro. No
Brasil colonial as idéias liberais serviram, sobretudo para contestar o colonialismo português
representante saudosista do absolutismo.
Os liberais da independência conseguiram conjugar uma constituição atrelando o Poder
Moderador do Imperador com os direitos civis e políticos de brasileiros (brancos e proprietários)
com a manutenção da escravaria aglomerada nas senzalas. A desigualdade não era questionada,
nem de cor, classe, ou gênero. No Brasil prevaleceu um “liberalismo conservador” que
assegurava a ordem pretendida140.
3.2.2. O ideal Maçom e sua influência no Brasil
A Maçonaria foi outro agente importante que perpassou toda a história do Brasil Império
e com ele se confunde; a maçonaria é uma associação semi-secreta, difundida em todo o mundo,
que adota os princípios da fraternidade e da filantropia, sendo uma associação exclusivamente de
homens (discrimina a mulher que não pode fazer parte de seu quadro associativo). Os quadros da
maçonaria são compostos por profissionais liberais que deram suporte teórico à luta por
emancipação do sistema colonialista (em todo contexto latino americano onde esteve presente), a
favor da “independência”. No Brasil a maçonaria se envolveu, mesmo antes de ter uma loja
formalmente instalada em nosso território, com a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana
no final do século XVIII e inicio do século XIX.
140
O ideário liberal teve diferentes leituras no decorrer da história, onde cada pensador se sobressaia dependendo do
uso político que se desejavam os autores que mais influenciaram as idéias liberais foram os seguintes: Montesquieu,
Hobbes, Bentham. VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva,
2002. p. 477.
94
A maçonaria no Brasil, teve em seus quadros desde o clero da Igreja colonial, homens
ligados as Ordens Religiosas e Irmandades e daí até os altos quadros de comando dos partidos
políticos fazendo inicialmente parte dela (Maçonaria), os irmãos Andradas, políticos influentes
no período da Independência, D. Pedro I, depois D. Pedro II entre outros influentes políticos e
homens de negócio.
Houve uma séria política de enfrentamento entre a Santa Sé e as Lojas Maçônicas na
Europa que acabou refletindo na política de romanização da Igreja no Brasil, e foi um dos
motivos da Questão Religiosa no Segundo Reinado. A maçonaria no Brasil141 esteve longe de
enfrentar o mesmo conflito ideológico ocorrido na Europa, mesmo lá os maçons procuraram dar
respostas aos questionamentos da hierarquia católica que emitiu Encíclicas, Bulas e
Recomendações a respeito da maçonaria e a reação contra a última encíclica papal de Leão XIII
“Humanum Genus”142.
141
Histórico e características da Maçonaria: “Em meados do século XV na Inglaterra as lojas medievais de free
masons (pedreiros livres), inicialmente reservadas somente a profissionais ligados a esse oficio (arquitetos e
engenheiros), abriram-se para membros da nobreza, da burguesia e do clero. Durante os séculos XVI e XVII, crescia
cada vez mais o número desses maçons aceitos que conservaram os ritos e os símbolos da maçonaria tradicional de
pedreiros, arquitetos e engenheiros, apegando-se, contudo às suas próprias interpretações no tocante a questões
filosóficas, científicas e espirituais. No inicio do século XVIII aparece a franco-maçonaria moderna, com orientação
interna baseada no Livro das Constituições publicado em 1723 por James Anderson, que exerceu influência
internacional no pensamento das sociedades modernas, difundindo-se principalmente, nos paises anglo-saxônicos.
[...] A hierarquia para iniciação maçônica possui três níveis (aprendiz, companheiro e mestre), que são desenvolvidos
em lojas ou oficinas. Do quarto grau até o décimo quarto o maçom se desenvolve em lojas de perfeição, depois, do
décimo quinto ao décimo oitavo, em capítulos, e do décimo nono ao trigésimo em areópagos. A partir do trigésimo
grau até o trigésimo terceiro e ultimo, a iniciação é realizada por conselhos que administram os quatro graus
precedentes. [...] A simbologia da maçonaria é composta por elementos de uma linguagem coerente e complexa.
Apesar de não possuir definição político-partidária ou religiosa, a maçonaria sempre atuou no campo políticoideológico. [...] No Brasil a maçonaria distanciou-se dos interesses populares, passando a representar a aristocracia
rural, estendendo-se no máximo às classes médias emergentes. [...] Apesar da maçonaria estar presente no Brasil
desde a Inconfidência Mineira no final do século XVIII, a primeira loja maçônica brasileira surgiu filiada ao Grande
Oriente da França, sendo instalada no contexto da Conjuração Baiana. A partir de 1809 foram fundadas várias lojas
no Rio de Janeiro e Pernambuco e em 1813 foi criado o primeiro Grande Oriente Brasileiro sob a direção de Antonio
Carlos Ribeiro de Andrada e Silva. Consultar: http://www.historianet.com.br/conteúdo. Acesso em 12/10/2004
20:10:26. Consultar para o tema “Maçonaria e Igreja Católica”: CAMINO, Rizzardo da. Introdução à maçonaria.
São Paulo: Madras, 2006; BENIMELI, José Antonio Ferrer (Org.). Maçonaria e Igreja Católica: ontem, hoje e
amanhã. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1998.
142
Cf. CAMINO, Rizzardo da. Introdução à maçonaria. São Paulo: Madras, 2006. p. 61-112.
95
3.2.3. O pensamento positivista no Brasil
O Positivismo, filosofia que prevaleceu nas camadas militares e que muitos historiadores
afirmam ter influenciado ideologicamente a Proclamação da República é um tema complexo. É
interessante notar que na história política do Brasil o que prevalece invariavelmente são as
alianças por interesses particulares havendo assim uma troca de favores que parece interminável
– dado o exemplo de nosso contexto atual – aonde as alianças parecem ser feitas única e
exclusivamente para a manutenção do status quo. O povo continua sendo o que definiu José
Murilo de Carvalho143: “para os conselheiros do Império, o Brasil era um sistema heliocêntrico,
dominado pelo sol do estado, em torno do qual giravam os grandes planetas do que chamavam
“as classes conservadoras” e, muito longe, a miríade de estrelas da grande massa do povo144”.
Carneiro Pessoa, no capitulo IV da sua tese de doutoramento (USP) analisa “A linha de
ação revolucionaria da propaganda republicana145” e faz uma observação sobre a propagação
deste ideal através dos grupos republicanos e suas divergências:
Isto posto leva-se a crer que não existia, já nessa época, unidade quanto ao
encaminhamento que deveria ser dado para se alcançar o objetivo principal, ou seja, a
derrubada da monarquia no país [e buscando mais um ponto de apoio para o comentário
a seguir sobre como foi a influência do positivismo, no movimento republicano nos
utilizamos do estudo de Carneiro Pessoa] Em 1883, na publicação do opúsculo de sua
autoria ‘Combate Republicano n. 1’ (TROVÃO, Lopes. O combate; republicanos
brasileiros. Rio de Janeiro, Imp. Contemporânea, 1883. n. 1. p. 27), Lopes Trovão atesta
a existência, no município da Corte, de três grupos republicanos distintos. Denomina-os
‘evolucionistas’, ‘evolucionistas revolucionários’ e ‘revolucionários’ que tinham em
143
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo EDUSP, 2002. p. 190.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 190.
145
PESSOA, Reynaldo Xavier Carneiro. O ideal republicano e seu papel histórico no segundo reinado: 1870-1889.
(tese de doutorado em história social), FFLCH USP. São Paulo: AESP, 1983. (Coleção Monografias 6), p. 169.
144
96
Quintino Bocaiúva, Aristides Lobo, e Ferro Cardoso, respectivamente os mais lídimos
representantes. Informa ainda existirem duas facções intermediárias, uma simbolizada
por Ubaldino Amaral que confederava os ‘evolucionistas’ aos ‘evolucionistasrevolucionários’, e a outra representada por ele mesmo – Lopes Trovão – ou Matias
Carvalho que concatenava os ‘evolucionistas-revolucionários’ aos ‘revolucionários’146.
Por que buscar no ideal republicano deste período uma análise sucinta para fundamentar
uma opinião sobre o positivismo no ideal republicano brasileiro147? Porque como indicado acima,
a política esteve sempre mais a serviço de interesses particulares e alianças nada etéreas, do que
na defesa de puros ideais que norteassem a conduta de um partido político, então o positivismo é
mais uma defesa acadêmica do que uma ideologia que movesse seus seguidores a implementar
mudanças no país baseadas nesta filosofia nascente importada do velho mundo para ser adaptada
a nossa realidade conforme a conveniência de parte do grupo de tomaria as rédeas do poder:
De todas as formas de evasão da realidade, a crença mágica no poder da idéias pareceunos a mais dignificante em nossa difícil adolescência política e social. Trouxemos de
terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto
146
PESSOA, Reynaldo Xavier Carneiro. O ideal republicano e seu papel histórico no segundo reinado: 1870-1889.
(tese de doutorado em história social), FFLCH USP. São Paulo: AESP, 1983. (Coleção Monografias 6),. p. 176-177.
Para mais informações sobre este assunto, consultar também: BELLO, José Maria. História da República: (18891954). 5. ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1964.
147
Positivismo: “é uma corrente de pensamento cujos princípios básicos foram formulados pelo pensador francês
Augusto Comte (1798-1857). [...] Partindo da tradição romana e da experiência jacobina na Revolução Francesa de
1789, Comte considerava ser a ditadura republicana a melhor forma de governo para as condições de sua época.
Opunha-se assim à Republica liberal, que se baseia na idéia de soberania popular, sendo o poder exercido em nome
do povo através de um mandato. (onde) Membros do Congresso ou o presidente da República recebem dos eleitores
esse mandato periodicamente renovável , por ocasião das eleições. O principio de representação é assim básico no
modelo liberal de República. [...] A ditadura republicana concebida por Comte não correspondia ao nepotismo, mas
implicava a idéia de um governo de salvação no interesse do povo. Teoricamente, o ditador republicano de veria ser
representativo, mas poderia afastar-se do povo em nome do bem da República. Ele seria eleito por toda a vida e
poderia influir na escolha de seu sucessor. [...] Nos meios militares brasileiros, a influência do positivismo só
raramente se deu pela aceitação ortodoxa de seus princípios. Em geral, os oficiais do Exército, assim como muitos
estudantes e professores, absorvem aqueles aspectos mais afinados com suas percepções. A ditadura republicana
assumiu a forma de defesa de um Exército forte e intervencionista, capaz de modernizar o país, ou simplesmente a da
ditadura militar [...] outros elementos de atração do positivismo eram a separação da Igreja e do Estado e a clara
preferência pela formação técnica, pela ciência e pelo desenvolvimento industrial [...] e na neutralização dos políticos
tradicionais [...]”. BORIS, Fausto. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 232.
97
se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais
condições imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático
jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde
coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda [...] Uma
aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível,
aos seus direitos e privilégios [...] E assim puderam incorporar a situação tradicional, ao
menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais
acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos148.
Inegável que estas mudanças vieram gradativamente com o tempo e com as novas
políticas, mas não porque estas mudanças estavam bem fundamentadas em uma ideologia que
pouquíssimos aqui conheciam com seu devido rigor cientifico a ponto de propagá-la como
fundamento para as reformas políticas no país no momento da Proclamação da República.
Estamos de acordo neste ponto com Martins que nos fala do positivismo no Brasil da seguinte
forma que se segue:
Fala-se muito na influência do positivismo entre os homens que prepararam a República
no Brasil, como se aquela geração conhecesse a fundo a imensa obra do filósofo francês
Augusto Comte (1798-1857), seu fundador. [...] Isso precisa ser visto com reservas. [...]
Os livros positivistas, naquela altura sem tradução no Brasil e pouco encontrados no
original francês, não constavam do acervo das bibliotecas do país naquele momento. De
uma ou outra biblioteca particular talvez, como a de Teixeira Mendes (1855-1927),
Pereira Barreto (1843-1923) ou Miguel Lemos (1854-1917), ortodoxos da doutrina.
Além do mais, num país de grande maioria analfabeta, os poucos alfabetizados não
tinham na filosofia sua leitura predileta. [...]149.
148
149
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Cia. Das Letras, 1995. p. 160.
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da República. São Paulo: Contexto, 2001. p. 56-58.
98
Também não se nega totalmente a influência desta doutrina em alguns meios de influência
política, como foi o caso no Rio Grande do Sul entre um grande número de militares, pois esta
doutrina foi aplicada com eficiência por Benjamim Constant na academia militar do Rio de
Janeiro e se expandiu fortemente para aquela região de fronteira onde o Brasil mantinha um
grande contingente de soldados – para se precaver de invasões e demarcar seu território.
E isto (o positivismo) serviu como um ideal para uma classe esquecida desde a
Independência do Brasil pelo governo monárquico. Esta doutrina foi bem recebida então entre os
militares que almejavam maior influência no destino do país principalmente depois da campanha
“vitoriosa” na guerra do Paraguai. O positivismo foi uma “tábua de salvação” na visão deles, para
renovar o país como já aludimos acima, então o que aconteceu foi que o meio em que esta
doutrina conseguiu penetração propagou, mas não a ponto de ser consenso entre os republicanos.
Mas encantou uma parcela considerável de atores do movimento republicano que conheceu a
doutrina positivista, e Martins continua falando que:
O que aconteceu foi que a doutrina positivista – baseada nas ciências exatas, no
conhecimento racional e pregando a Ordem e o Progresso – contrapunha-se às idéias
românticas e não muito objetivas que caracterizavam o Segundo Império. A doutrina
positivista correspondia de certa forma a um anseio generalizado das camadas letradas
do país que esperavam do governo projetos mais consistentes, [...] que favorecessem o
liberalismo. [...] Oferecendo mudanças, que passavam pela separação entre Igreja e
Estado, pelo trabalho e educação para todos, pela defesa da ordem e do progresso,
combatendo os privilégios [...] positivistas ortodoxos foram poucos, que inclusive
propunham uma ‘ditadura republicana para a manutenção da ordem. No geral adotou-se
o positivismo como rótulo de uma conduta ideal de oposição a Monarquia150.
150
MARTINS, Ana Luiza. O despertar da República. São Paulo: Contexto, 2001. p. 56-58. Para Paes de Andrade:
“o positivismo no Brasil foi menos uma escola filosófica , do que uma Igreja ou seita [...]”. ANDRADE, Paulo
Bonavides Paes de. História constitucional do Brasil. 3.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
99
Corroborando e concluindo a nossa análise sobre a real influência do positivismo no
início da “velha república” o diretor do Centro Positivista do Brasil, o Sr. Miguel Lemos em 25
de maio de 1889 enviou uma correspondência ao Senador Silveira Martins, onde os pontos
fundamentais seguem abaixo:
Permita V. Es. Que oponha algumas observassões a un tópico de seu discurso
pronunsiado onten no Senado, en que V. Es. fês algumas referências à dotrina de
Augusto Comte [...] não é meu propozito entrar en grandes dezenvolvimentos [...] Não
á duvida que a nóssa propaganda, que já conta con nove anos de trabalhoza ezistensia
ten nessessariamente modificado a orientassão das aspirassões republicanas entre nós.
Esta influênsia á de ir cressendo com o tenpo até tornar-se dessiziva i predominante no
dia en que o partido republicano axar enfin un xéfe na altura das sircunstânsias, tão
diferente dos retóricos i jornalistas que até oje o ten capitaneado, como dos falsos
profétas, que se esforsarão por esplorar en proveito próprio o crédito cada vês maiór da
dotrina rejeneradora. Encuanto a situassão não se tornar ben nítida, não será pequena
dificuldade para o partido republicano separar en similhante influcso o esforso onésto i
convensido da mistificassão xarlatanesca i inepta151.
4. A Monarquia atrelada à figura de D. Pedro II
A monarquia no Brasil conseguiu uma sobrevida nas últimas décadas do século XIX
atrelada à figura carismática e astuciosa de seu monarca, Pedro II, que coincidentemente foi se
enfraquecendo, junto com sua figura, cada vez mais e mais debilitado por problemas de saúde152.
D. Pedro II foi um homem que deixou sua excessiva prudência se transformar em pedra de
tropeço. “O Imperador e a burocracia imperial atendiam à essência dos interesses dominantes, ao
151
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 0017 COD. OR-F-SPO/003 OR 040 4, [sobre o positivismo].
A doença do imperador, atacado de diabetes, tirou do centro das disputas um importante elemento estabilizador.
Com seu prestigio pessoal e o derivado do trono, Pedro II servia de amortecedor das queixas. Cf. FAUSTO, Boris.
História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 235.
152
100
promover a ordem em geral, ao dar tratamento gradativo ao problema da escravidão153. Entre
outros assuntos de trato delicado não se nega sua participação em “todas” decisões políticas
importantes sob sua responsabilidade, foi um homem astuto a ponto de trazer para seu lado
oposicionistas declarados154, no entanto, apesar de sua astúcia, e dita pouca coragem para levar
projetos importantes à frente:
Não lhe faltavam meios de vislumbrar algumas das grandes reformas de que o Império
precisava, mas em geral tinha vôo baixo155”, (temeroso em excesso) “dominava-o a
idéia meio fatalista de que tudo haveria de vir naturalmente a seu tempo [...] E como
acabava sendo ele próprio, mesmo negando que o fosse, juiz inapelável da boa
oportunidade para agir, tudo ia se paralisando ou esperando o momento em que uma
espera maior poderia ser catastrófica. Que era sua, em geral, a decisão última em todos
os negócios públicos, ainda quando não fossem suas as iniciativas [...]156.
A figura do monarca foi se desgastando com o avançado do século XIX, “onde cresceram
as funções urbanas e as camadas populacionais cujos interesses se apresentavam distintos dos
‘barões’ do meio rural157” apesar de ainda não ter nenhuma interferência na vida política do país.
Contudo o desgaste público é consideravelmente maior quando há concentração, mesmo que
apenas teórica, nas mãos de uma só pessoa, caso dos regimes absolutistas, pois ao exercer de fato
153
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 190.
“Muitas vezes procurou afincadamente chamar a si alguns de seus maiores detratores, [...] não escapou, de ser
tachado de astucioso e corruptor de consciências. [...] A uma fria dissimulação associaram-se as muitas atenções com
que tratou de cumular Sales Tôrres Homem, o Timandro do Libelo do Povo, admitindo-o sucessivamente como
ministro, Senador do Império [...], Lafayette Rodrigues Pereira, que assinara em 1870 o manifesto republicano e fora
Presidente da Assembléia onde se leu o documento subversivo, acabará ministro, Senador, Conselheiro e Chefe do
Governo [...].HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico. V.7, 2:
Do Império à República. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005. p. 25.
155
HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico. V.7, 2: Do
Império à República. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005. p. 25-26.
156
HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico. V.7, 2: Do
Império à República. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005. p. 26.
157
PESSOA, Reynaldo Xavier Carneiro. O ideal republicano e seu papel histórico no segundo reinado: 1870 –
1889. 1972. (Tese de Doutorado em História Social) FFLCH-USP. São Paulo: AESP, 1983. (Coleção Monografias
6). p. 220.
154
101
e de direito os atributos da soberania “sem limites” como foi o caso da monarquia no Brasil.
Apesar do dito carisma de D. Pedro II, o governo imperial carecia de uma sólida base de
apoio popular já que os barões do café do vale do Paraíba estavam quebrados, no entanto, fazia se
valer do poder moderador para limitar ou implantar as reformas que pretendesse.
Apesar de tais limitações e por maior que seja a tentação de pretender reduzir a
influência que, durante longos anos exerceu um só homem sobre o curso de nossa
história, força é confessar que, dada a soma considerável de poderes que enfeixava, e
que ninguém mais tinha no mesmo grau, não pode ela ser subestimada e muito menos
silenciada. Apenas cumpre dizer que esses poderes ele os utilizou, por menos que o
desejasse, no sentido de moderar e até esmagar as reformas necessárias à modernização
do país. Funcionaram, de fato, como catalisadores da resistência a qualquer mudança na
estrutura tradicional, quando as mudanças importavam mais do que uma estabilidade
estéril e mentirosa158.
Na década de 80 do século XIX o Império entra em sua fase agonizante, dado o
imobilismo vivido até então, onde as contradições forjadas até 1850 e onde os interesses de
alguns setores atravancavam a economia que foi se transformando em busca do progresso que
fizesse participar da vida política um número maior de pessoas que não fosse aquele rodízio feito
pelos partidos: Conservador e Liberal. Segundo a definição do político pernambucano Holanda
Cavalcanti: “Nada se assemelha mais a um ‘saquarema’ do que um ‘luzia’ no poder”159.
158
HOLANDA, Sérgio Buarque de (Dir.). História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico. V.7, 2: Do
Império à República. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005. p. 26.
159
Saquarema nos primeiros anos do Segundo Império era o apelido dos conservadores. Deriva do município
fluminense de Saquarema, onde os principais chefes do partido possuíam suas terras e se notabilizaram pelos
desmandos eleitorais. Luzia era o apelido dos liberais, em uma alusão à Vila de Santa Luzia, em Minas Gerais, onde
ocorreu a maior derrota destes, no curso da Revolução de 1842. A idéia de indiferenciação dos partidos parecia
também confirmar-se pelo fato de ser freqüente a passagem de políticos de um campo para outro. FAUSTO, Boris.
História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 180; ver também este comentário de Holanda Cavalcanti Cf.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. p. 182.
102
A esse respeito comenta ainda o historiador Sérgio Buarque de Holanda, que:
“Efetivamente quase nada os distinguia, salvo os rótulos, que tinham apenas o valor de bandeira
de combate”160. O país foi gradativamente entrando na dinâmica mundial capitalista, deixando
para trás o retrógrado e desumano sistema escravista. Neste sentido a própria situação do escravo
como meio de produção das riquezas de seus senhores foi cedendo espaço à mão-de-obra
assalariada do imigrante branco.
No entanto, a situação do negro não melhorou nem mesmo depois da abolição da
escravatura, pois o negro continuou a margem desta transformação econômica, a mão-de-obra
escrava que havia proporcionado o fausto de “muitos senhores feudais do além mar” ficou a
margem da sociedade, da qual não conseguiu se integrar totalmente até os tempos hodiernos.
Mas, a economia se transformou gerando mais riqueza para os ricos brancos: “O novo saiu do
velho, dele se alimentava, mas tinha um dia de destruí-lo, se quisesse desenvolver todas as suas
potencialidades161”.
Com isso a economia brasileira que dava os primeiros sinais de integração com o mundo
capitalista a partir da segunda metade do século XIX não sustentava mais o peso de um regime
(monárquico absolutista) em que a participação dos que gerava o capital ficasse na dependência
do aval de um monarca para ascender politicamente, e ter em suas mãos a possibilidade de
legislar em causa própria, livrando-se assim do peso do poder moderador. Seguindo o raciocínio
de Sérgio Buarque de Holanda concordamos com ele que os movimentos reformadores no Brasil
partem sempre de cima para baixo, análise que está também presente no pensamento do
sociólogo Max Weber:
160
161
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Cia. Das letras, 1995. p. 182.
BERNARDES, Denis. Um Império entre Repúblicas. 5. ed. São Paulo: Global, 1997 .p. 51
103
É curioso notar que os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase
sempre de cima para baixo: foram de inspiração intelectual, se assim se pode dizer, tanto
quanto sentimental. Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso
de nossa evolução política vieram quase sempre de surpresa; a grande massa do povo recebeuas com displicência, ou hostilidade. Não emanam de uma predisposição espiritual e emotiva
particular, de uma concepção da vida bem definida e específica, que tivesse chegado à
maturidade plena162.
5. A Economia: da resistência à transformação
O Brasil perdeu a oportunidade de iniciar, mesmo que modestamente seu processo de
industrialização, ainda no início do século XIX com a chegada da Família Real portuguesa ao
Brasil, já que estava se iniciando a todo vapor a revolução industrial no território de seu maior
aliado e protetor, a Inglaterra. Isto não foi possível, atrasando em quase um século nossa inserção
no mundo industrializado.
Este atraso deveu-se entre outros fatores, a insistência na manutenção da mão-de-obra
escrava voltada prioritariamente à agricultura e a baixa população do território brasileiro163, sem
contar a subserviência do monarca à proteção inglesa que inundava o mercado brasileiro com
seus produtos têxteis a baixo custo travando o desenvolvimento da insipiente fabricação brasileira
na indústria têxtil do algodão.
162
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Cia. Das Letras, 1995. p. 160-161.
A população brasileira do período em pauta (século XIX) não dava vazão nem aos produtos importados da
Inglaterra que agia da seguinte forma: “[...] instruções de Canninng, ministro das Relações Exteriores, quanto à
maneira de lidar com a corte no Rio. [...] escreve Canning a Strangford, num anexo sigiloso, ‘e não incentivá-lo (D.
João) a voltar os olhos com inútil pesar de seu território europeu, nem alimentar a expectativa, pouco propensa a se
materializar, de recuperá-lo (Portugal) das garras do inimigo [...] Strangford deveria frisar as vantagens que o
príncipe regente obteria da sua permanência no Brasil, que ‘deve de forma sensata e judiciosa, ser estabelecido em
bases tais que induzam os comerciantes britânicos a fazerem do Brasil um empório para os produtos britânicos
destinados ao consumo de toda a América do Sul”. O Brasil foi inundado com mercadorias inúteis p.126 / Houve
uma explosão especulativa no mercado: “patins de gelo e os aquecedores de colchões, como não é de admirar, não
tiveram saída; espartilhos femininos e ataúdes, nenhum dos quais era usado no Brasil, começaram a se acumular [...]
artigos de luxo [...] estavam todos muito além das posses dos brasileiros comuns”. WILCKEN, Patrick. Império a
deriva: A corte portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. p. 126, 152.
163
104
Faltou ousadia ao cambaleante D. João VI que investiu mais em seu conforto do que no
progresso do seu “Reino Unido” onde o Brasil não passava da raia da possibilidade: “outro ramo
que parecia demonstrar possibilidade de desenvolvimento era o da indústria de construção naval
[...] esses homens do Antigo Regime raciocinavam mais em termos de poder do que de
economia”164.
O Brasil independente conservou durante o século XIX, muito das características da
economia colonial, apesar da independência ter sido conseqüência de uma nova fase da economia
mundial, onde para não se sujeitar ao retrocesso pretendido pela metrópole “foi forçado” a ser um
país independente. (Isso tudo em conseqüência de um amadurecimento dos interesses políticoseconômicos de uma minoria da elite, pois acumulação e miséria no Brasil sempre conviveram
lado a lado desde os primórdios da colonização, grupos e regiões do Brasil sempre estiveram
como que mapeadas por interesses e a população sem direito a voz).
Concentrando-se agora mais na economia do segundo reinado, onde a mola propulsora da
economia se concentrou, ainda, nos setores voltados para a grande lavoura exportadora (café,
borracha, açúcar) para atender aos centros hegemônicos consumidores, no entanto, não podemos
nos esquecer do pequeno produtor da lavoura voltada para os alimentos e a pequena pecuária,
onde os estados de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul se destacavam.
Este tipo de produção de subsistência desenvolvido pelo pequeno produtor teve o
importante papel de abastecer o mercado interno garantindo a manutenção da força de trabalho da
população pobre ou dos escravos, os imigrantes do sul impulsionaram as pequenas propriedades,
inclusive introduzindo no mercado brasileiro produtos novos como a maçã, entre outros.
164
HOLANDA, Sérgio Buarque de (Dir.). História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico. V.6,2:
Declínio e queda do Império. 6.ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2004. p. 38-53.
105
5.1. A Estrada de Ferro: mola propulsora da economia brasileira165
O Brasil a partir de 1850 passou por um processo de modernização: o sistema bancário se
encarregou de fazer a integração financeira, enquanto que a integração geográfica se deu através
da construção de estradas de ferro, um meio de transporte revolucionário para os padrões
brasileiros da época “No rastro da riqueza gerado pelo café, Vinham os trilhos das ferrovias, as
transformações técnicas, a busca do progresso e a idéia de República166”.
O Pernambuco e a Bahia, no nordeste, tiveram várias estradas interligando-os em várias
partes, mas o epicentro do desenvolvimento, assim como hoje, se deu muito mais na região
sudeste, mais especificamente entre o Rio de Janeiro, antiga capital federal e São Paulo devido,
sobretudo a forte expansão cafeeira desta região que precisava chegar aos portos para serem
exportadas, como o centro produtor se deslocou do Vale do Paraíba para o oeste paulista, as
ferrovias ganharam o interior do Estado. As estradas de ferro D. Pedro II ligando São Paulo ao
Rio de Janeiro e a estrada de ferro São Paulo-Santos geraram grande desenvolvimento destas
regiões principalmente a região produtora de café do interior paulista.
Apesar da riqueza a caminho incentivada pelos trilhos dos trens que facilitava o
escoamento mais rápido e barato para os portos do país (Santos e Rio de Janeiro), por volta de
1870 a Província de São Paulo era: “tida então como a mais rica do Império. Rude, solene,
vastidão rural imersa num cotidiano profundamente marcado por rígida hierarquia social. Ali, a
despeito da existência de uma incipiente camada média urbana, prevaleciam, polarizados, dois
mundos conflitantes: o senhor de terras, poderoso grande proprietário, e aquele da imensa massa
165
Relativo a esta questão pode-se encontrada uma vasta documentação no ANRJ: ANRJ. Cocac/Bib. microfilme
0001 COD. OR-F-SPO/004 OR 000 4; OR 003 4; OR 005 8; OR 007 4; OR 007 9; OR 009 4; OR 009 8; OR 013 0;
OR 013 2; OR 013 3; OR 013 5; OR 013 7; OR 014 3; OR 014 4, [Disposições gerais sobres as estradas de ferro].
166
MARTINS, Maria Luiza. O despertar da República. São Paulo: Contexto, 2001. p. 33.
106
escrava167”. Imerso nesta contradição onde o progresso surgia junto aos ideais republicanos
lastreados pelo slogan “Liberdade, Fraternidade e Igualdade” o conservadorismo mediante ao
trabalho compulsório da escravaria nas imensas fazendas de café era ignorado para o “bem” do
progresso pessoal desses senhores republicanos, mas “Era preciso libertar o cativo para que este
se tornasse um consumidor [...] Contudo, a despeito da premência da abolição, o Partido
Republicano – fosse aquele nacional fosse aquele de São Paulo (PRP) não assumiu oficialmente a
campanha abolicionista168”.
Mas o trem da história segue e em despeito das condições de trabalho dos cativos os
trilhos continuam se expandindo – primeiro com o incentivo do governo – agora através do
investimento de uma classe cada vez mais influente economicamente e que está para ser o lastro
social que o partido republicano necessita para tomar o poder. Através da iniciativa de
fazendeiros progressistas, a fim de baratear o café, e introduzí-lo cada vez mais para as terras
férteis do interior paulista, no ano de 1867, a companhia “The São Paulo Railway Company
Limited” iniciou com um curto trajeto (da cidade de Jundiaí ao porto de Santos), com esta
iniciativa “A província de São Paulo deu início à desmontagem de seu cenário ainda colonial,
estranhou o remanso do Império, e se apressou em pegar o trem da História [...] Vamos partir
com ele daqui. É quando se acelera o projeto da República169”.
O negócio lucrativo das estradas de ferro mais uma vez partiu da tradicional “tutora” do
Brasil desde os tempos coloniais, a Inglaterra, país que sempre soube explorar as possibilidades
econômicas do Brasil, espoliando um território que mais parecia sua colônia do que de Portugal e
que depois da “independência” tornou-se o principal algoz do Brasil, pois praticamente tudo
167
MARTINS, Maria Luiza. O despertar da República. São Paulo: Contexto, 2001. p. 38.
MARTINS, Maria Luiza. O despertar da República. São Paulo: Contexto, 2001. p. 81.
169
MARTINS, Maria Luiza. O despertar da República. São Paulo: Contexto, 2001. p. 38.
168
107
dependia do aval inglês. Culpa de quem? Talvez de um casamento entre a sagacidade inglesa e a
incompetência congênita de boa parcela de nossos políticos.
Neste caso a Inglaterra desde 1856 investiu na instalação de ferrovias no Brasil,
primeiramente subsidiando o investidor e visionário Barão de Mauá, onde os ingleses investiam
seu capital disponível a fim de expandir sua avançada tecnologia, pois patrocinando a
modernização no Brasil conseqüentemente os lucros atravessariam o atlântico fazendo a mesma
rota que se iniciou no final do século XVIII e que se consolidou a partir do século XIX.
A economia brasileira estava engatando no trem da história literalmente, pois a ferrovia na
segunda metade do século XIX iniciou definitivamente a inclusão do Brasil na economia
capitalista com todos seus males e benefícios.
No ano de 1868 foi criada a Companhia Paulista, em 1870 a Companhia Ituana, em 1872
a Companhia Mogiana e a Companhia Sorocabana, a única neste período que foi construída em
função da produção algodoeira, em 1880 a Companhia Rio Claro, a primeira sem nenhuma
subvenção estatal financiada exclusivamente pelos cafeicultores. “Os trilhos tomaram conta da
província cobrindo, em trinta anos (depois se aliando aos cafeicultores paulistas), cerca de três
mil quilômetros de caminhos de ferro, que avançaram pelo território paulista170”.
A otimização do transporte favoreceu um maior acúmulo de capital e a diversificação da
economia no território paulista – que serviu de locomotiva para o desenvolvimento do país –
onde começaram a se diversificar os empreendimentos, sobretudo comerciais, financeiros e
industriais.
170
MARTINS, Maria Luiza. O despertar da República. São Paulo: Contexto, 2001. p. 40.
108
5.2. O Brasil na dinâmica da diversificação capitalista
As atividades industriais, pouco significativas nos primeiros decênios do século XIX,
começaram a crescer atrelada com a economia cafeeira como assinalamos acima pelo impulso
proporcionado com a construção das estradas de ferro, que favoreceu a otimização dos custos e
um maior lucro para aplicação em outros ramos de negócio gerando diversidade em uma
economia que até então estava concentrada na exportação de gêneros primários para o mercado
europeu industrializado e capitalista. Entre os anos de 1850 e 1860 são fundadas: empresas
industriais, bancos, caixas econômicas, companhias de seguro, companhias de colonização, de
transportes urbanos, companhias de gás.
[...] 1850 não assinalou no Brasil apenas a metade do século. Foi o ano de várias
medidas que tentavam mudar a fisionomia do país, encaminhando-o para o que então se
considerava modernidade. Extinguiu-se o tráfico de escravos, promulgou-se a Lei de
terras, centralizou-se a Guarda Nacional e foi aprovado o primeiro Código Comercial.
Este trazia inovações e ao mesmo tempo integrava os textos dispersos de companhias
que poderiam ser organizadas no país e regulou suas operações. Assim como ocorreu na
Lei das Terras171, tinha como ponto de referência a extinção do tráfico. (com) a
liberação de capitais resultante do fim da importação de escravos deu origem a uma
intensa atividade de negócios e de especulação. Surgiram bancos, indústrias, empresas
de navegação a vapor etc. Graças a um aumento nas tarifas de produtos importados,
decretado em meados da década anterior (1844), as rendas governamentais cresceram.
Em 1852-1853, elas representavam o dobro do que tinham sido em 1842-1843.
Esboçava-se assim, nas áreas mais dinâmicas do país, mudanças no sentido de uma
modernização capitalista172.
171
Lei n. 601 do Império do Brasil, sancionada em 18 de setembro de 1850, Cf. VAINFAS, Ronaldo (Dir).
Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 466.
172
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 197.
109
Surgem os primeiros empreendedores no país do qual destacamos Irineu Evangelista de
Souza (1813-1889), o visconde de Mauá, que fez grande esforço para modernização do país,
nascido em Arroio Grande, município de Jaguarão, Rio Grande do Sul, “um dos empresários
mais conhecidos e polêmicos do Império, o barão (1854), depois visconde (1874) de Mauá. Sua
vida confunde-se com a do Império, não só cronologicamente, mas por sua participação ativa nos
esforços de inserir o Brasil nos quadros da modernidade173”.
O capital para instalação de outras atividades econômicas como, por exemplo, a indústria
geralmente vem do setor agrário, onde vários fazendeiros diversificam seus negócios, conforme
já citado mais acima. Com isso outra questão relevante precisava ser resolvida: a questão da
escravidão, já não fazia mais sentido bradar a vergonhosa frase em voga no império no início da
expansão da cultura do café que afirmava que: “o Brasil é o café e o café é o negro174”.
6. O que muda com a “Proclamação da República”
[...] em certa mentalidade criada pelas condições especiais de nosso desenvolvimento
histórico [...] dos nossos políticos do Segundo Reinado e da Primeira República não
conseguiu modificar, quando muito se manteve as margens dos fatos, exacerbando
mesmo, pelo contraste, as forças que queria neutralizar. Tal mentalidade, dentro ou fora
do sistema liberal, exige que, por trás do edifício do Estado, existam pessoas de carne e
osso. As constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem
violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias, são fenômeno corrente em toda
a história [...] É em vão que os políticos imaginam interessar-se mais pelos princípios
do que pelos homens: seus próprios atos representam o desmentido flagrante dessa
pretensão [...] na tão malsinada primazia das conveniências particulares sobre os
interesses de ordem coletiva revela-se nitidamente o predomínio do elemento emotivo
sobre o racional175.
173
VAINFAS, Ronaldo (Dir). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 388389.
174
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 192.
175
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Cia. Das Letras, 1995. p. 182.
110
Com esta análise acima de Sérgio Buarque de Holanda temos um breve retrato de como
agiram (agem) os homens do poder. O status quo foi mantido, onde foram apenas adaptadas
novas regras, para que se pudesse aproveitar do poder da maneira que lhes fosse mais
conveniente, dentre estas adaptações, a separação entre “trono e o altar” mobilizou a hierarquia
eclesiástica que também pretendia defender seus interesses dentro do regime republicano, apesar
das contradições políticas que isto significaria no século XIX, pois a política defendida pela Santa
Sé176 neste contexto tinha a pretensão de reviver o período medieval (grande parte do período
moderno) onde a religião foi uma das pilastras de sustentação da ideologia monarquista.
Para a hierarquia do catolicismo essa era uma justa defesa, pois no caso do Brasil em
particular a Igreja Católica esteve presente influenciando por mais de três séculos na política com
o status privilegiado de religião de Estado, mesmo que para isso sofressem todo tipo de
ingerência em assuntos eclesiásticos, apesar de que em geral a história do envolvimento político
da Igreja ser deixado em segundo plano por um considerável número de historiadores177
brasileiros quando tratam da história pré-republicana.
No terceiro capítulo teremos a oportunidade de fazer uma pequena análise através de
documentos e obras raras do século XIX pesquisadas em arquivos178 que atestam a veracidade de
que a Igreja Católica no Brasil esteve presente sim no intrincado cenário político do século XIX
neste contexto de transição política, quando serão trabalhadas questões consideradas essências
pelo catolicismo para se manter influente no cenário político nacional através de atribuições que
sempre lhe foram peculiares junto a população brasileira e que agora estavam sendo colocadas
em xeque pelo novo regime político.
176
Para este assunto consultar: MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no
pensamento católico (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004.
177
Por exemplo, Boris Fausto em seu extenso livro sobre a história do Brasil: FAUSTO, Boris. História do Brasil.
10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002.
178
ANRJ, ACMSP, ACRJ, Arquivo do Museu Paulista (USP).
111
A Igreja Católica na Europa através de sua política romanizante influenciava o catolicismo no
Brasil, que por sua vez, caiu na tentação de recorrer ao seu passado histórico que remontava à
colonização do país. Foi “nossa” tentativa de alterar o movimento pendular da história. O embate
Estado – Igreja neste período vem carregado da ideologia ultramontana que permeava a ação do
catolicismo lá e cá, mas o novo regime político republicano impôs ao catolicismo “brasileiro”
uma nova realidade numa disputa complexa que não se esgotará nesta análise parcial da história
que estamos desenvolvimento.
CAPÍTULO III
112
Nascimento, educação, matrimônio e morte: eis a questão!
[...] não somente a revolta fez-se vitoriosa, como, ao derrubar a ordem imperial, os
jovens oficiais [...] abriram passo à reorganização da ordem política brasileira. [...] Nem
a República foi mera quartelada, nem se tratou “apenas” - como se estas não
importassem... – de uma mudança ao nível das instituições, que de monárquicas
passaram a republicanas, mas houve, de fato, uma mudança nas bases e nas forças
sociais que articulavam o sistema de dominação no Brasil179. De alguma maneira,
portanto, analisar o período que vai da proclamação da República à instauração do
poder republicano sob controle civil [Prudente de Morais e Campos Sales] implica
deslindar as fases, as forças sociais, a ideologia e as instituições políticas que, também
entre nós e por analogia formal com a história européia, marcaram a passagem do
antigo Regime para uma ordem burguesa. Esses contornos e forma assumida pela
ordem política instituída pela República precisam ser mais bem descritos para que
possam ser entendidos o significado da República [sic]180.
Após uma visão geral da situação da Igreja Católica nos dois primeiros capítulos
passaremos deste terceiro capítulo adiante a objetivamente tratar da questão da separação Estado
– Igreja no Brasil, onde alguns autores deixam nas entrelinhas de suas análises que esta situação
179
O grifo é nosso.
FAUSTO, Boris (Dir.). História geral da civilização brasileira: o Brasil republicano. V.8,3: Estrutura de poder e
economia. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2006.
180
113
já tinha seu destino traçado após a Questão Religiosa, apesar da negativa da hierarquia católica
nas palavras de D. Macedo Costa em sua carta a Rui Barbosa, no dia 22 de dezembro de 1889:
“Não desejo a separação, não dou um passo, não faço um aceno para que se decrete no nosso
Brasil o divórcio entre o Estado e a Igreja181”.
Estas palavras estão carregadas de sentido sendo que D. Macedo Costa naquele contexto
era o “líder” do episcopado brasileiro. “Sua atuação foi decisiva para que a hierarquia eclesiástica
tirasse o melhor proveito possível da Proclamação da República, sem se desgastar em uma atitude
de repúdio à nova ordem implantada ou de saudosismo da Monarquia182”. Mas, como vemos
abaixo a questão religiosa não foi isoladamente a causa do desgaste do trono – altar seria muito
simplista acreditar nesta suposição, já que, aconteceram outros fatos externos e internos que se
somaram para o desfecho da separação Estado – Igreja no Brasil, e, dependendo da “leitura” que
se queira fazer dos fatos esta separação pode ser vista de dois ângulos: positivo ou negativo e
para não cair em redundâncias como o dito popular de que há males que vem para o bem e viceversa, tentaremos prosseguir nosso trabalho para de acordo com nossa análise tentando contribuir
para mais uma visão da história sobre este fato na vida da Igreja no Brasil. Para isto vamos
mostrar que da perplexidade do decreto 119-A de 07 de janeiro de 1890 que provocou “[n]a elite
eclesiástica brasileira183” para se manter e se estabelecer sem perder seu prestígio junto a classe
política brasileira, passando por um período quase que de hibernação para ressurgir com boa
influência no cenário político brasileiro através do Cardeal D. Leme, quatro décadas depois,
houve várias tentativas para não se perder o contato com o poder nascente.
181
MANOEL, Ivan Aparecido. D. Macedo Costa e a laicização do estado: A Pastoral de 1890 (um ensaio de
interpretação). Revista de História UNESP, Bauru, (n. esp.), 179-192, 1989. p. 179.
182
MANOEL, Ivan Aparecido. D. Macedo Costa e a laicização do estado: A Pastoral de 1890 (um ensaio de
interpretação). Revista de História UNESP, Bauru, (n. esp.), 179-192, 1989. p. 179.
183
Estou aqui utilizando a denominação utilizada pelo autor do livro homônimo Sérgio Miceli. Cf. MICELI, Sérgio.
A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988.
114
1. As tentativas de reforma no Império para quebrar o “monopólio” da Igreja Católica
O que nos interessa neste momento é estabelecer que apesar do desgaste e da iminente
separação entre Igreja e Estado, a hierarquia do catolicismo atuante no Brasil se empenhou para
se manter influente diante da população brasileira, oficialmente católica desde a constituição de
1824184, da mesma forma que conseguiu com sua entrada no Brasil com seu aparato ideológico
sustentando a espada colonialista, mas agora o Estado Brasileiro, desde a segunda metade do
século XIX parece-nos que já não necessita tanto ou quase nada de seu antigo aliado, a Igreja,
que também já não é mais aquela mesma Igreja do contexto do século XVI185, para dominar esta
população já não mais tão indócil como a encontrada aqui na época da invasão portuguesa.
A dinâmica de dominação já não é mais a mesma, não é melhor nem pior, mas é diferente,
a comunicação estava mais veloz e mais acessível, a produção industrial foi aprimorada com a
revolução industrial inglesa, os pensadores já não se deixavam amedrontar pelas excomunhões e
a fogueira já não ardia em nome da fé: “Entretanto, a evolução, o progresso espiritual do Homem
não era já um fato, mas um projeto a ser realizado e contra o qual se erguiam as barreiras
materialistas, racionalistas, hedonistas, comunistas e liberais do mundo moderno186”. E a política
brasileira caminhava a passos lentos para a implantação da república, a alternância no poder em
certos momentos pareceu satisfazer a todos os gostos:
184
Título I art. 5º da Constituição brasileira de 1824 lê-se: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a
religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para
isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo. A Carta Magna da nação brasileira começa demonstrando sua
ligação com a religião: Dom Pedro Primeiro, por graça de Deus [...] e antes de se iniciar o Titulo I que tem o titulo
de: “Do Império do Brasil, seu Território, Govêrno, Dinastia e Religião, podemos ler a seguinte frase estanpada [sic]:
“EM NOME DA SANTISSIMA TRINDADE”. cf. ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (org.). Constituições do
Brasil. São Paulo: Ed. Saraiva, 1954.
185
Consultar para este tema sobre a transformação da atuação da Igreja Católica entre outros: JOHNSON, Paul.
Historia del cristianismo. Buenos Aires: Vergara, 2004; PIERRARD, Pierre. História da Igreja. São Paulo: Paulus,
1982; LENZENWEGER, Josef; STOCKMEIER, Peter. et al. História da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2006.
186
MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960).
Maringá: Eduem, 2004. p. 51.
115
A queda do gabinete liberal de Zacarias em 1868, contra todas as normas dos governos
parlamentares, torna mais evidente do que nunca o artifício do regime político.
Renascem as velhas idéias liberais, que se sintetizam nos compromissos do manifesto
de 1869: reforma eleitoral [...] abrem através do efêmero Partido Radical, o caminho
lógico para a República, a cujas portas ficavam os radicais187.
Para a Igreja Católica é inconcebível depois de mais de três séculos de união com o
Estado brasileiro o catolicismo ficar alienado do poder político que a duras penas se mantinha.
Continuou a hierarquia católica sonhando com um mundo paralelo ao proposto pelas novas
doutrinas políticas, ansiara reviver num mundo “dominado” pela doutrina católica, não aceitavam
um mundo diferente do mundo traçado pelos planos de Deus, mas assim como na Europa os
políticos brasileiros se encaminhavam fortemente para contrariar os planos da hierarquia do
catolicismo no Brasil de manter a união com o Estado sem sofrer a ingerência sufocante até então
exercida pela monarquia188 e implantar definitivamente a política de romanização. No entanto,
desde o manifesto republicano de 1870, a proclamação da República já se anunciava como um
caminho irreversível e nos moldes europeus – com a separação entre Estado e Igreja – e como
proposto por alguns historiadores189 isso aconteceria irremediavelmente com a morte de D. Pedro
II, mas para o catolicismo o ideal de mundo sem dúvida era aquele em que o teocentrismo
deveria continuar ditando a política do mundo laico como fez na Idade Média, pois para o
187
BELLO, José Maria. História da República: (1889-1954). 5. ed. São Paulo: Cia Ed. Nacional. p. 19.
Para maiores detalhes deste assunto podem ser consultados entre outros os seguintes autores: PIERINI, Franco. A
Idade Antiga: curso de história da Igreja. V.1. São Paulo: Paulus, 1998; PIERINI, Franco. A Idade Média: curso de
história da Igreja. V.2. São Paulo: Paulus, 1997; ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna: curso de história da Igreja.
V.3. São Paulo: Paulus, 1999.
189
Consultar esse assunto em: BELLO, José Maria. História da República (1889-1954). 5.ed. São Paulo: Cia. Ed.
Nacional, 1964; FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002; MARTINS, Ana Luiza. O
despertar da República. São Paulo: Contexto, 2001; SCHWARCZ. Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. 2ª ed. São
Paulo: Cia. das Letras, 2004.
188
116
catolicismo esse deveria ser o único meio “progresso” para o qual estava orientando todos os
homens para a Salvação, medida e fim para o único destino possível para a humanidade.
Controlar a natureza e criar novos meios para o bem estar não estavam nos planos do
catolicismo que viveu um sério conflito com o mundo moderno no século XIX e em grande parte
da primeira metade do século XX, com isso veio uma avalanche de críticas à Igreja Ultramontana
que segurou à rédeas curtas seus fiéis mais influentes ditando as normas intelectuais pela filosofia
tomista e conseguindo assim se manter neste duro galope sobre a cela e não se perder na história
até poder a seu tempo ir se alinhando ao mundo moderno percorrendo um percurso longo e difícil
até o Concílio Vaticano II num mundo onde:
Progresso humano, da perspectiva dos pensadores leigos, significava avanços técnicocientíficos, domínio sobre a natureza, desenvolvimento de uma filosofia livre do
formalismo escolástico, estabelecimento de novos padrões éticos e morais, de tal forma
que esse conjunto de conquistas e de avanços se transformasse em instrumento de
aperfeiçoamento da vida social, material e política. Por essa razão, José Carlos Reis irá
dizer que, nas filosofias leigas, “a utopia substituirá a profecia. No ‘fim da história’ a
espera é outra: não mais o apocalipse, mas uma sociedade moral e racional”. As
descobertas da ciência, as invenções, o aperfeiçoamento tecnológico, o controle, ainda
parcial sobre a natureza, as descobertas marítimas, a consolidação do capitalismo pré e
pós Revolução Industrial, a “matematização” do Universo, enfim, a ruína do edifício
medieval deu aos séculos XVIII e XIX europeu a certeza de que o progresso humano
era irretratável, mas que somente se consolidaria quando se libertasse definitivamente
das amarras teológicas do catolicismo e quando a Razão humana assumisse
definitivamente o controle de todo esse processo190.
190
MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960).
Maringá: Eduem, 2004. p. 42.
117
A estratégia da Igreja no Brasil, surpreendentemente, foi a mais conciliadora possível, não
se utilizando abertamente do enfrentamento com o poder republicano, mas tratou de trabalhar nos
bastidores191 do poder para ter garantias de não se sair prejudicada com uma possível investida
dos “jacobinos192” brasileiros em uma possível reforma política após a tomada do poder pelo
grupo republicano mais radical, uma tomada de posição senão igual, mas pelo menos similar a
postura anticlerical como ocorreu após a Revolução Francesa193 em países católicos como nos
casos da França, Espanha e na Itália, por isso:
O processo de “construção institucional” da Igreja Católica brasileira ao longo da
República Velha (1890-1930) se prende, de um lado, às novas diretrizes e
empreendimentos da Santa Sé durante a segunda metade do século XIX e, de outro
lado, aos desafios organizacionais e condicionantes políticos que teve de enfrentar no
interior da sociedade brasileira. [...] apontar o século XIX como um momento-chave
para os rumos tomados pela organização eclesiástica em âmbito nacional [...] o século
191
Foi elaborada uma reclamação do episcopado brasileiro dirigida ao Marechal Deodoro, Chefe do Governo
Provisório entregue pessoalmente por uma comissão representativa composto por: D. Macedo da Costa, D. José da
Silva Barros e D. Esberard. Esta reclamação aqui aludida foi enviada para imprensa que não deu o destaque esperado
pelo episcopado, a segunda utilização é feita no inicio dos debates constitucionais num trabalho de contato pessoal,
de “corpo a corpo” desenvolvido pelo internúncio Mons. Spolverini e por D. José da Silva Barros e D. Macedo da
Costa. Consultar: PIVA, Elói. Transição Republicana: desafio e chance para a Igreja (I). Revista Eclesiástica
Brasileira, Petrópolis, v. 49, n. 195, p. 620-639, [jul./set.] 1989.
192
Um exemplo do radicalismo republicano se encontrava na pessoa de Antônio da Silva Jardim (Capivari – atual
Silva Jardim, RJ, 1860 – Nápoles, Itália, 1891) entre outros atores deste movimento. No Brasil haviam três visões
distintas para se implantar o republicanismo. Consultar para este assunto: COSTA, Emília Viotti da. Os anos da
abolição: o ocaso do Império 1870-1888. Nossa História, São Paulo, ano III, Ed. Esp., p. 130 -165. 2006; PESSOA,
Reynaldo Xavier Carneiro. O ideal republicano e seu papel histórico no segundo reinado: 1870 – 1889. 1972. (Tese
de Doutorado em História Social) FFLCH-USP. São Paulo: AESP, 1983. (Coleção Monografias 6).
193
O dia 04 de agosto de 1789 foi prejudicial para a vida eclesiástica na França. Em relação à Igreja são tomadas
decisões relevantes: nacionalização dos seus bens, supressão das ordens religiosas, Constituição civil do clero. [...],
rompe-se as relações diplomáticas entre Roma e Paris [...] Começam as primeiras perseguições [...] No dia 10 de
outubro de 1791, toma posse a nova Assembléia Legislativa [...] muitos deles extremistas. Logo se apresenta o
problema da Igreja, por causa da resistência dos novos Bispos e párocos constitucionais. No seio da Assembléia vão
prevalecendo, contra a linha moderada, as teses repressivas, como a obrigação de juramento para todos os padres. No
dia 26 de agosto de 1792, é aprovada uma lei contra o clero: quem não prestou juramento deve partir [...] No dia 20
de setembro de 1792, na última sessão, a Assembléia legislativa vota a laicização do Estado: os registros de
nascimento e de casamento são retirados das mãos dos párocos. [...] No dia 15 de novembro de 1793, é baixada uma
lei para favorecer o casamento dos padres [...] As festas cristãs foram substituídas por festas pagãs: no dia 10 de
novembro de 1793, por exemplo, celebra-se a festa da razão em Notre Dame. Em paris são fechadas todas as igrejas
[...]. ZAGHENI, Guido. A Idade Moderna: curso de história da Igreja. V.3. São Paulo: Paulus, 1999. p. 334-357.
118
XIX não se caracterizou tão somente pela revisão “defensiva” das doutrinas oficiais da
Igreja nos diversos ramos do conhecimento e do apostolado afetados de perto pelas
transformações políticas [...]. O movimento de reação eclesiástica desembocou numa
série de iniciativas que, a longo prazo, significaram o fortalecimento organizacional e
condições mínimas de sobrevivência política no acirrado campo da concorrência
ideológica, cultural e religiosa, do mundo contemporâneo194. [...] Desejava a República
o clero católico, ainda magoado com a questão regalista [...]195. [sic]
Com o modelo republicano de governo, a modernização da sociedade era uma exigência
de fato, fruto do estágio atingido no processo de mudança da base da sociedade que vinha desde a
segunda metade do século XIX se modernizando, como foi visto no primeiro capítulo desta
dissertação, passando de uma sociedade rural-agrícola exportadora de matéria prima, para se
estabelecer nas cidades tornando-se progressivamente urbano-comercial. Foi
uma
época
de
aceleradas mudanças sociais, era o desejo: “elevar o país ao nível do século [...] o que nos
diferencia da civilização ocidental é uma questão de fase, não de natureza [...] tais propostas são
feitas porque a conquista do legislativo através da qual se poderia fixar em leis impositivas o
modelo estrangeiro196”. Foi uma época em que estão de “pleno” acordo liberais e cientificistas
(positivistas) estabelecendo pontos comuns em seus planos de ação para tornar a máquina de
Estado mais eficiente para alcançar o “espírito” do tempo moderno em grande profusão no
“centro” do mundo: a Europa dos filósofos e ideólogos da nova ordem que se expandia, a ordem
capitalista capaz de nos livrar do atraso e nos colocar nos trilhos da “ordem e progresso”. Seria
necessário implementar algumas reformas essenciais como, por exemplo, constava do programa
194
MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. p. 11-29.
BELLO, José Maria. História da república: (1899-1954). 5. ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1964. p. 13.
196
RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. 14 .ed. Campinas:
Autores Associados, 1995. p. 63-65.
195
119
de ação comuns entre liberais e cientificistas197 e que segundo este ponto de vista será levada à
consecução no período republicano, pois desde o último quarto do século XIX, as idéias
republicanas ganharam impulso definitivo e as reformas políticas foi carta certa com pontos que
podemos ilustrar a seguir já se ventilavam antes da Proclamação da República:
[...] abolição dos privilégios aristocráticos, separação da Igreja do Estado, instituição do
casamento e registro civil, secularização dos cemitérios, abolição da escravidão,
libertação da mulher para, através da instrução, desempenhar seu papel de esposa e
mãe, e a crença na educação, chave dos problemas fundamentais do país. A organização
escolar, em tal contexto, é atingida não só pelas críticas às deficiências constatadas
como também pela proposição e até decretação de reforma [...] A 19 de abril de 1879 é
decretada a reforma Leôncio de Carvalho198. Alguns de seus princípios ficam
dependentes de aprovação do legislativo, aprovação esta que não chega a ocorrer199.
2. Foram-se os anéis com dificuldade ficaram os dedos preservados
Em relação à separação Estado – Igreja no Brasil, diferente do que ocorreu na Questão
Religiosa onde a situação do episcopado estava relegada a segundo plano, “uns por força de
convicções particulares ou por comodismo, como diria o Pe. Julio Maria de cada bispo200“, o
episcopado foi reunido em torno de D. Antônio Macedo da Costa que com audácia, segundo
Thales de Azevedo201, comandou o episcopado frente ao governo provisório do Mal. Deodoro,
para preservar a dignidade da Igreja no Brasil, mas este caminho para a unidade episcopal foi
197
RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. 14. ed. Campinas:
Autores Associados, 1995. p. 65-66.
198
Para maiores informações sobre este decreto de programa de ensino e reforma da instrução pública de 1879
consultar: ANRJ. Cocac/Bib. microfilme 0001 COD. OR-F-SPO/004 OR 013 0, [Programa de ensino]
199
RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. 14. ed. Campinas:
Autores Associados, 1995. p. 65-66.
200
AZEVEDO. Thales de. Estado e Igreja em tensão e crise. São Paulo: Ática, 1978. p. 158.
201
Cf. AZEVEDO. Thales de. Estado e Igreja em tensão e crise. São Paulo: Ática, 1978.
120
sendo construído após a década de 70 do século XIX, neste período foi sendo moldada a
colegialidade jamais existente no episcopado brasileiro desde a sua instituição no período
português202 que se iniciou com as primeiras dioceses no século XVI e sendo concluída no século
XVIII e assim permanecendo até o final do século XIX203.
O movimento externo para este fato pode ser creditado à influência da política de
romanização empregado pela Santa Sé, que neste período de incertezas para o catolicismo no
Brasil, contou com um considerável trabalho de articulação do representante da Santa Sé o
internúncio Francesco Spolverini204, e que anteriormente vinha sendo incutido desde a sua fonte
na Itália ou na França, facilitado pela crescente formação intelectual de seminaristas que foram
enviados pelas suas dioceses para estudarem na Europa205, como por exemplo, a diocese de
Mariana que foi uma das precursoras neste sentido.
A partir do último quartel do século XIX, portanto, a romanização encontrou um terreno
fértil na Igreja Católica no Brasil, mas houve um importante movimento interno para acelerar esta
nascente colegialidade do episcopado, abalado de certa forma pela dureza inicial como foram
tratados pelo governo D. Vital e D. Macedo da Costa na “Questão Religiosa”.
O episcopado começou a refletir neste contexto “sobre os acontecimentos e as nuvens
negras que se levantavam com a propaganda republicana, agnóstica, laicizante, ao mesmo tempo
202
“[...] é preciso se ter em mente as limitações das funções episcopais no regime de padroado; sua missão de reger a
Igreja era quase anulada pela interferência do poder civil; o que deles principalmente se esperava era que
mantivessem a disciplina do clero e pregassem ao povo a obediência. Cf. BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia
geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2: Segunda Época – Século XIX. 3.ed.
Petrópolis: Vozes, 1992. p. 81.
203
A província eclesiástica brasileira era composta de um arcebispado: o da Bahia; oito dioceses: Rio de Janeiro,
Olinda, São Luís do Maranhão, Pará, Mariana e São Paulo, Goiás e Cuiabá. Cf. BEOZZO, José Oscar (Coord.).
Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2: Segunda Época – Século XIX. 3.ed.
Petrópolis: Vozes, 1992. p. 81.
204
Detalhes em: PIVA, Elói. Transição Republicana: desafio e chance para a Igreja (I). Revista Eclesiástica
Brasileira, Petrópolis, v. 49, n. 195, p. 620-639, [jul./set.] 1989. PIVA, Elói. Transição Republicana: desafios e
chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990.
205
Consultar para maiores detalhes: MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988.
121
[em] que enfraquecia o antigo regímen, preparam o caminho da unidade colegial e da ação
conjunta206”.
Antes de cessarem as questões da dependência da Igreja Católica em relação ao Estado
brasileiro, apesar das reformas que estavam sendo propostas pelas correntes “ideológicas” acima
citadas, o governo não deixava de tentar controlar o catolicismo por causa da mentalidade
arraigada desde a colonização portuguesa e que de certa forma satisfazia o desejo de poder da
monarquia brasileira em manter o estado político de submissão da Igreja Católica atrelado ao
direito de padroado que o Império brasileiro conquistou, após o reconhecimento de sua
independência em 1827 junto à Santa Sé207.
As questões que incomodaram a Igreja Católica serão a partir de agora tratadas neste
terceiro capítulo, onde a partir da Questão Religiosa houve uma crise velada entre o Governo
brasileiro e a Hierarquia do catolicismo no Brasil, mesmo porque ao contrário do que parece, já
estava sendo ensaiada desde os tempos de D. Pedro II e sua corte liberal, talvez por conveniência,
não a separação entre a Igreja Católica e o Estado, mas sim um controle maior sobre a vida da
população208 por parte do Estado, tentativas e decretos que foram sendo protelados, mas que com
o advento da República finalmente foram colocados em prática. O controle que a Igreja Católica
possuiu sobre a população até o início do século XIX foi sendo aos poucos questionado pelos
liberais, agnósticos e positivistas que pretendiam assumir atribuições como as certidões de
206
AZEVEDO, Thales de. Estado e Igreja em tensão e crise. São Paulo: Ática, 1978. p. 158.
“(...) muito movimentada e difícil a missão de Monsenhor Francisco Correia Vidigal em Roma, para obter o
reconhecimento da independência. (...) Fins de sua missão: reconhecimento da independência, estabelecimento da
nunciatura, assinatura de uma concordata; negociações correlatas: atribuição ao imperador do grão-mestrado da
Ordem de Cristo, do qual dependia a provisão de benefícios curados; Bula da Cruzada e cobrança dos dízimos
eclesiásticos; criação de novas dioceses. Cf. BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América
Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2: Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 80.
208
Um dos motivos de interesses na “abertura confessional” do Estado brasileiro se encontrava na causa da grande
massa de imigrantes vindos da Europa e em numero cada vez maior de países da Reforma. Para maiores informações
consultar o trabalho organizado por: FAUSTO, Boris (org.). Fazer a América. São Paulo: EDUSP, 1999.
207
122
registro de nascimento, matrimônio e óbito, além é claro o controle do ensino sem a interferência
da religião. Isto se deve também ao crescente número de imigrantes que ingressavam no Brasil
para suprir o déficit de mão-de-obra causado pelas sucessivas leis anti-escravismo desde a
independência do Brasil. Apesar de continuar sendo o catolicismo religião do Império, as
exceções para os não-católicos eram relativamente benéficas e maleáveis como consta a seguir:
A religião catholica apostólica romana é a religião do Império [...] São, porém
permitidas todas as outras religiões [...] Ninguem no Brasil póde ser perseguido por
motivo religioso. Só se exige que não offenda a moral publica, e respeite a religião do
Estado; como assim este respeita [...] no seu Código Criminal com pena de prisão e
multa os que fizerem perseguições por motivo de religioso [...] Tem os poderes do
Estado [...] por vezes concedido fundos para construção de casa de oração, e
subsistência de ministros de religiões differentes [...] os filhos dos acatholicos não são
obrigados a receber a instrucção religiosa que se dá aos filhos dos catholicos. Os
casamentos dos acatholicos são respeitados em todos os seus effeitos legais [...]
assegura o estado civil da prole, considerando-a perfeitamente legitima [sic]209.
Entretanto poucos meses após a Proclamação da República e a perda dos privilégios o
episcopado brasileiro vai entrar no embate contra as influências funestas que acreditavam estar
alijando do poder o catolicismo conforme consta na “Reclamação” enviada ao Mal. Deodoro:
Sob a funesta influencia das doutrinas radicalmente oppostas as nossas crenças
religiosas, não só forão alli deixados á margem, no mais absoluto desprezo, os direitos
e as tradições tres vezes seculares desta nação catholica, mas positivamente atacados e
alvo da mais injusta guerra pontos esseciaes da fé e da disciplina de nossa religião [...]
209
ANRJ. Cocac/Bib. microfilme 0017 COD. OR-F-SPO/003 OR 020 3. [Sobre a educação].
123
Chefes e guias espirituaes do povo brasileiro [...] a santa liberdade das almas [...] em
um paiz christão e livre [...] E somos tanto mais levados a dar este passo [...] para o
bem da ordem publica [sic]210.
Insistimos que a hierarquia do catolicismo brasileiro neste contexto já estava se alinhando
progressivamente a partir da segunda metade do século XIX com a política de romanização
empreendida pela da Santa Sé211 onde seus “futuros dignitários, do estilo e orientação de mando
episcopal, quer a partilha do território brasileiro entre as congregações religiosas mais
dependentes e leais ao Vaticano212”. Após os anos 70 o catolicismo procurou não se tornar uma
peça obsoleta na política nacional e agiu de forma a firmar aliança político-doutrinária com
grupos influentes favoráveis às pretensões católicas. Apesar da “adesão pacífica” ao
republicanismo no Brasil a Igreja Católica travou um embate com os constituintes para se manter
dominante em pontos considerados de exclusividade moral e doutrinária para a grande maioria da
população do país e, portanto assuntos de sua alçada que pretendiam continuarem monopolizando
mesmo mediante a nova realidade política brasileira.
Trataremos cada um destes pontos a seguir: registro civil de nascimento e óbito,
laicização dos cemitérios, casamento civil e educação católica nos estabelecimentos públicos,
dando maior ou menor ênfase a cada ponto acima citado de acordo com o que pesquisamos para
210
ACRJ. Série CP046. Reclamação do episcopado brasileiro dirigida ao ExMO Sr Chefe do Gov. Provisório.p.3-4.
A teologia, ministrada nos seminários estava a serviço da ortodoxia romana, e, “o Segundo Império é justamente
o período de tomada de consciência ‘romana’ de nossa Igreja, e conseqüentemente tomada de posição ao lado da
‘ortodoxia’, emanada do ensino do supremo magistério eclesiástico. Nossos professores de teologia, que foram
estudar, em grande parte, em Roma ou na França, voltavam mais ligados a este magistério e a linha de orientação
então chamada de ‘ultramontanismo’. Mas sobretudo os lazaristas franceses eram instrumentos importantes dessa
orientação de nossa teologia. É de lembrar-se que ‘ortodoxia’ então significava de modo especial oposição ao
jansenismo, ao galicanismo, ao regalismo, ao liberalismo. E os lazaristas eram grandes opositores destas orientações
teológicas, que se opunham ao ‘ultramontanismo’. [...] característica de nossa teologia era o fato de ela estar a
serviço da defesa da Igreja. Era uma conseqüência lógica da defesa da ‘ortodoxia’. Daí, ela se expressava muitas
vezes sob um prisma apologético, mas que não atingia a mesma linguagem sectarista dos assim chamados ‘liberais’.
Consultar mais detalhes deste texto em: BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina:
Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2: Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 182-216.
212
MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. p. 12-14.
211
124
este trabalho. A ocorrência nos documentos pesquisados em arquivos e bibliotecas nos apontou
uma grande importância dada ao ensino da religião nos estabelecimentos públicos, vindo a seguir
a questão do matrimônio católico e de forma mais “despreocupada” as certidões de nascimentos e
óbito e a laicização dos cemitérios.
3. Registro Civil: nascimento, matrimônio e morte
No ano de 1875 foram efetivamente implantados nas grandes cidades brasileiras os
cartórios de registro civil, antes deste ano foram ensaiadas algumas tentativas neste sentido, no
ano de 1863 temos a principal iniciativa inclusive com a elaboração do decreto n. 3069 que dava
efeitos civis a registros de casamentos acatólicos, ou seja, os cidadãos que não professassem a fé
dos católicos, religião oficial do Império brasileiro, poderiam ter seus casamentos reconhecidos
pelo Estado, variando de município para município, os casamentos acatólicos eram registrados
em livros de assentamento de paróquias (principalmente luteranos) ou pelas prefeituras. Esta
demanda, no entanto visava o interesse do Estado em não descontentar a crescente onda de
imigração, principalmente dos alemães.
O registro civil foi criado no Brasil de maneira formal e generalizado pelo deputado geral do
Império, João Alfredo Correia de Oliveira, pelo decreto n. 5604 de abril de 1874 regulamentando
o registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos213. Mas, apenas algumas cidades brasileiras
consideradas na época “grandes” municípios é que a partir do ano de 1875 deram início à criação
de ofícios de registro civil os chamados cartórios de registro civil214.No entanto a obrigatoriedade
desta prática de se registrar os fatos da vida como os nascimentos, casamentos e óbitos
213
A lei a de n. 1829, de setembro de 1870, foi outra tentativa dos “reformadores” do Império formada por parte dos
membros do partido liberal e positivista republicanos, esta lei como diz Emilia Viotti foi como um marco decisivo
nas reformas políticas no Brasil para encerrar de vez com a aliança entre a “cruz e a espada” que vinha desde os
tempos coloniais citada por: COSTA. Emilia Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 6. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
214
Para este assunto consultar: FAGGION, Maria Cândida Baptista. O Registro Civil. Belo Horizonte: Água Branca,
2000.
125
anteriormente monopolizados com o consentimento e interesse do Estado para o catolicismo se
deu em março de 1888 com o decreto n. 9886215.
A pressão dos positivistas e republicanos foi o que levou os deputados do Império a criar
esta situação de obrigatoriedade para se registrar estes acontecimentos da vida da população
quebrando praticamente os últimos laços oficiais com o catolicismo antes da Proclamação da
República no ano 1889216. O Estado a partir de então começou a emitir ofícios para se criar os
estabelecimentos para este fim, os cartórios de registro civil, delegados a privados, sendo
geralmente concedido para as famílias influentes de cada cidade ou região, o que se tornou um
serviço do Estado delegado a privados com caráter hereditário e monopolista.
Nas pequenas e médias cidades brasileiras este serviço ficou delegado para os já
geralmente existentes cartórios de notas. O que é interessante notar foi que nas pequenas cidades
no interior do país esta prática de se registrar esses fatos (nascimentos, casamentos e mortes)
demorou a ser aceito pela população que sofria um controle mais rígido por parte dos religiosos
ligados ao catolicismo, já que a incidência protestante neste período também ficava mais restrita
as grandes cidades ou em menor escala às zonas rurais costeiras, portanto uma população mais
ligada à Igreja Católica, e que na maioria das vezes precisava percorrer grandes distâncias para
encontrar um cartório e se fazer o registro pedido pelo Estado217.
215
Cf. FAGGION, Maria Cândida Baptista. O Registro Civil. Belo Horizonte: Água Branca, 2000.
Consultar para este assunto: DORNAS FILHO. João. Padroado e Igreja brasileira.São Paulo: Nacional, 1938.
217
A instituição obrigatória do registro Civil em lei desde 1888 foi promulgada em 1890, pela recém-instituída
República dos Estados Unidos do Brazil. No Brasil, desde o seu inicio, o registro civil configura-se como um serviço
público delegado a privados responsáveis pelos Cartórios do Registro Civil. Até 1988, com a promulgação da
Constituição atualmente em vigor, os cartórios eram cedidos de forma vitalícia e hereditária pelo governo da União
(mais recentemente pelos estados da federação) a personalidades ilustres da sociedade como forma de barganha
política e também como meio de controle social. Atualmente, o registro civil é oficialmente apresentado sob o nome
de Ofício do Registro Civil das Pessoas Naturais, sendo os oficiais indicados por concurso público. (A designação
‘pessoas naturais’ faz-se necessária, pois no Brasil também se chama registro civil o registro de pessoas jurídicas
como, por exemplo, firmas comerciais) Consultar para este assunto: BASTOS, José Tavares. Registro Civil na
República: nascimentos, casamentos e óbitos. Rio de Janeiro: Garnier, 1909; HAKKERT; Ralph. Fontes de dados
demográficos. Belo Horizonte: ABEP, 1996.
216
126
Um dado digno de nota neste texto é o de que no Brasil a Igreja Católica colaborou nos
tempos remotos inclusive com as estatísticas populacionais do país. Mas a responsabilidade pela
coleta dos dados fornecidos pela Igreja Católica, no caso foi da diretoria Geral de Estatísticas que
nunca foi de uma medição exata, pois segundo Ralph Hakkert este órgão ficava dependente dos
dados fornecidos pela Igreja Católica que no século XIX também teve sua “medição” alterada
pelo crescente número de imigrantes acatólicos, pois em suas palavras este órgão estatístico no
Império brasileiro:
[...] tinha se limitado à sistematização e divulgação dos dados coletados pela Igreja e à
regulamentação dos óbitos e casamentos daqueles que não professavam a religião
católica. Mesmo depois da secularização, demorou para que a população fosse
conscientizada da necessidade de registro, até certo ponto pela influência dos próprios
párocos, que frequentemente desestimulava o registro de nascimentos e casamentos
perante as autoridades civis. Até poucos anos atrás, o número de batismos registrados
pela Igreja costumava superar o número de nascimentos que constava no sistema
oficial218.
Para além das questões ligadas á vida “moral” de um indivíduo e para o qual o
catolicismo ficou mais atento desde o Concilio Tridentino, o registro civil219, abrange outros
aspectos da vida dos cidadãos de um país, mas que foge ao escopo deste trabalho, só para registro
218
HAKKERT, Ralph. Fontes de dados demográficos. Belo Horizonte: ABEP, 1996.
Registro Civil: é um termo jurídico que designa o assentamento dos fatos da vida de um individuo, tais como o
seu nascimento, o seu casamento e a sua morte (óbito). Também são passíveis de registro civil as interdições, as
tutelas, as adoções, os pactos ante-nupciais, o exercício de o pátrio poder, entre outros fatos que afetem diretamente a
relação jurídica entre diferentes cidadãos. História: o registro de indivíduos remonta à antiguidade, entretanto se
aplicava apenas a alguns que à época possuíam o título de cidadãos (homens livres). Depois da queda do Império
romano, será a Igreja Católica a responsável pelo registro de indivíduos e de seus títulos, continuando a tradição
clássica de registrar fatos que envolviam somente pessoas com posses, sejam de ordem eclesiástica, dinástica ou
nobiliárquica. A primeira vez que se institui o registro universal dos batismos e das mortes (sepulturas) foi em 1539
com a Ordenança de Villers-Cotterêts no Reino da França. Somente com o fim do Concílio de Trento em 1563 é que
a obrigatoriedade do registro de batismos, matrimônios e mortes de todos os indivíduos é estendida à totalidade do
mundo católico. Finalmente, no início do século XIX o registro civil como é conhecido hoje, ou seja, universal e
laico será criado com o advento do Código Napoleônico de 1804. Todos os territórios sob o jugo de Napoleão
Bonaparte foram obrigados a adotar o novo código, o que afetou sensivelmente o poder da Igreja Católica. Pode-se
considerar que o Código napoleônico tenha sido o maior legado de Napoleão à Humanidade, pois direta ou
indiretamente – e mesmo no Oriente – todos os países do mundo sofreram sua influência em maior ou menor grau, o
que se evidencia em seus sistemas legais. cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Registro_Civil.
219
127
na atualidade a lei que regula o registro civil no Brasil é a de n. 6015 de 31 de dezembro de 1973,
intitulada “Lei dos Registros Públicos”220.
4. O matrimônio católico “finalmente” cedeu seu espaço ao casamento civil no Brasil
A matéria que trata do casamento civil no Brasil é polêmica e anterior ao novo regime
republicano. Na sessão de 12 de julho de 1880 na “Camara dos Srs. Deputados” temos a
interpelação do deputado Saldanha Marinho com resposta do ministro do Império Barão Homem
de Mello, onde respondeu a questionamento do deputado que diziam respeito diretamente a
atitudes do Governo Imperial em relação a práticas exercidas pelo catolicismo, como por
exemplo: o placet do Governo nas Bulas, Breves ou Decretos da Santa Sé para confirmação de
sua validade em território nacional; a permissão da entrada dos jesuítas no Brasil e sua
autorização para o ensino; sobre a aprovação do registro civil; questiona sobre o que pensa o
governo brasileiro sobre a grave questão da separação da Igreja do Estado e se o Governo adota a
instituição do casamento civil221, e para este ponto, que é o terceiro de nove questões, a resposta
dada pelo Ministro Homem de Mello foi a seguinte:
Senhores, desde que o Brazil é um paiz aberto a todos os estrangeiros, com perfeita
tolerancia para todas as crenças religiosas, comprehende-se que é um dever dos poderes
publicos garantir a estabilidade dos direitos de família, para com aquelles que não
pertencem ao culto catholico. O governo reconhece a instituição do casamento civil
como uma necessidade do nosso paiz (apoiados). O gabinete, porém, não pode tratar
della, emquanto não estiver resolvida a questão da reforma eleitoral, que agita e
220
Consultar para este assunto: FAGGION, Maria Cândida Baptista. O Registro Civil. Belo Horizonte: Água Branca,
2000; QUINTANILHA, Waldemar Jorge. Registro civil das pessoas naturais. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
221
O Centro Positivista na década de 80 do século XIX encaminhava aos ministros do Império projetos que chamava
de “interesse do país” assim como continuou fazendo no inicio da República, no ano de 1887 enviou um “Projecto de
casamento civil, com os seus complementos necessários, cemitério civil e registro civil de nascimento”: ANRJ:
Cocac/Bic microfilme 0003 COD. OR-Bib/002 OR 040 3, [Projetos Positivistas].
128
interessa a todo paiz, e não póde ser prejudicada por qualquer outra. O Sr. Dantas
(ministro da justiça): - É uma necessidade reconhecida ha já bastantes annos, desde
1857. (sem resposta) [sic]222.
O significado do casamento para a população e o clero ultramontano do período que
transcorre do segundo reinado a Proclamação da República em 1889 é bastante complexo e por
este motivo tratado com certa ênfase na Pastoral Coletiva223 ao clero e fiéis da Igreja no Brasil
após o decreto de separação entre Estado e Igreja. Nos anos de 1878, 1879, 1881 o papa Leão
XIII enviou a toda Igreja cartas encíclicas224 defendendo diretamente ou apenas citando em
algum de seus parágrafos o matrimônio cristão como uma instituição sagrada que deveria ser
defendida das profanações impostas pela modernidade. Nas palavras de Oscar Lustosa: “surgiram
os decretos que implantavam o regime legal do casamento civil, como único reconhecido
oficialmente [...] matéria polêmica e explosiva para os católicos, que viram no simples decreto
[...] uma espécie de ‘canonização’ do concubinato225”.
Tudo corroborava para aumentar a animosidade existente entre o catolicismo e a forma de
governo que estava sendo implantada no Brasil. O republicanismo era combatido pela Santa Sé
como uma forma de governo que contrastava com o ideal de mundo propugnado pela política do
222
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 0001 COD. OR-F-SPO/ 004 OR 003 1, [discurso do Barão Homem de Mello a
interpelação do deputado Saldanha Marinho]. p. 5-13.
223
Repellimos, emfim, o chamado casamento civil, com que se pretende legitimar entre christãos, sem a benção de
Deus, sem a acção da graça, a união do homem e da mulher, união que, fora do Sacramento do Matrimonio, tantas
vezes tem sido anathematisada pela Santa Sé como um torpe e funesto concubinato, de que devem abster-se com
horror todos os christãos. Embora nos não sorprendesse a consignação desses principios dissolventes da sociedade e
da família christã em decretos dictatoriaes da nascente Republica, comtudo, apezar das mitigações nelles postas, [...]
não deixámos de sentir amarga dôr. ACMRJ. Série CP046: Reclamação do episcopado brasileiro dirigida ao EX.mo
Sr. chefe do Governo Provisório. TYP. de G. Leuzinger & Filhos, Ouvidor 31-6158-90. p. 6-7.
224
Na ordem: INSCRUTABILI DEI CONSILIO, QUOD APOSTOLICI MUNERIS, CI SIAMO GRANDEMENTE
e a ARCANUM DIVINAE SAPIENTIAE: LEÃO PP XIII. Cartas encíclicas sobre o matrimônio cristão. Aos
veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e a todos Ordinários de lugar em paz e comunhão com a
Sé Apostólica. O caráter religioso e sagrado do matrimônio deve ser deve ser defendido de qualquer profanação e
secularização, essa é a chave de leitura das encíclicas. Cf. DOCUMENTOS DA IGREJA. V.12: Documentos de
Leão XIII. São Paulo: Paulus, 2005.
225
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo (Org.). A Igreja Católica no Brasil e o Regime Republicano: um aprendizado de
liberdade. São Paulo: Ed. Loyola, 1990. p. 11.
129
catolicismo e que neste contexto este ideal já se encontrava muito fortalecido na hierarquia
católica no Brasil. A autoconsciência que a Igreja (hierarquia) foi tendo de si mesma foi só
aumentando no final do século XIX, onde sua vinculação com Roma, como centro da ortodoxia,
que deveria ser seguida causou o estreitamento das relações com a Santa Sé. Digno de nota para
sedimentar esta ligação com a Santa Sé é notificar que no ano de “1870 estudavam no Seminário
Latino-Americano 50 brasileiros, assim distribuídos: 18 de Pernambuco, 12 do Rio Grande do
Sul, 8 do Ceará, 2 de Santa Catarina, 1 da Paraíba e 1 de Sergipe226”. Segundo o papa Leão XIII
ensinava sobre o matrimônio em sua encíclica:
Cristo, portanto, tendo como que rejuvenescido o matrimônio, elevando-o à máxima
perfeição, entregou-o e recomendou-o a Igreja, a qual em todos os tempos e lugares
exerceu seu poder sobre o matrimônio dos cristãos, exerceu-o de tal forma que ficasse
claro que só a ela pertencia esse poder, obtido não por concessão dos homens, mas
divinamente por vontade de seu Fundador. Quantos cuidados e quanta vigilância a
Igreja usou em conservar a santidade do matrimônio e para manter intacto seu
verdadeiro caráter, são por demais conhecidos e não carecem de demonstração [...]
nesta matéria que diz respeito aos matrimônios, a Igreja foi ótima conservadora, e
protetora do gênero humano; e que sua sabedoria triunfou, no transcorrer dos tempos,
da injúria dos homens e das mudanças inumeráveis dos Estados [...] os casamentos civis
[...] o motivo deste conflito consiste sobretudo nisto, que os ânimos de muitos,
embebidos em opiniões de uma filosofia falsa e de hábitos perversos [...] desprezam os
mandamentos de Deus [...] Daí nasceram os assim chamados casamentos civis e, em
seguida foram fortalecidas as leis sobre as causas que podem impedir as núpcias; daí as
sentenças sobre os contratos matrimoniais, se estariam feitos segundo a lei ou com
defeito [...] toda faculdade de emitir leis e pronunciar sentenças nesta matéria é sutil e
226
Para este assunto consultar: o Capitulo III: a Igreja-Instituição do livro: BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia
geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2: Segunda Época – Século XIX. 3.ed.
Petrópolis: Vozes, 1992.
130
tem sido tão arteiramente tirada da Igreja católica, sem tomar absolutamente em conta o
poder divino, ou suas leis providenciais, sob as quais viveram tão felizes os povos aos
quais havia chegado a luz da civilização com sabedoria cristã [sic]227.
Mas para o estado liberal “positivista” brasileiro, há muito, o que a hierarquia da Igreja e
principalmente o que vinha “de fora” tinha pouco valor quando contrariavam as metas
propugnadas pelo “espírito moderno” em que o republicanismo pretendia alinhar o país aos
grandes centros desenvolvidos para entrar efetivamente na dinâmica capitalista industrial
empreendida pela Europa e também já os Estados Unidos, desde o início deste século. Mas o
problema nunca foi o desenvolvimento e sim como aplicá-lo à vida nacional e a quem este
desenvolvimento irá servir como vemos mais de um século depois, este progresso “positivista”
no Brasil alcançou muito pouco dos seus objetivos primordiais visto que as adaptações aqui
sempre têm a tendência em favorecer uma pequena parcela da sociedade, a educação continuou
sendo por muito tempo um artigo de luxo para poucos. Portanto o casamento civil que foi
regulamentado pelos decretos e constituição de 1891 vinha obedecendo a uma reforma que
alinhasse o Brasil no que de mais moderno existia nas constituições de países como, por exemplo,
os Estados Unidos. E foi assim que a Igreja Católica perdeu mais uma batalha na defesa de suas
convicções religiosas em um contexto em que cada vez mais a fé e os dogmas perdiam espaço
para a razão, o cientificismo e o materialismo científico. Na Pastoral Coletiva o episcopado vai se
referir ao que se refere ao casamento civil da seguinte forma:
D´ora em diante, pois, arrimados aos 2º e 3º artigo do decreto228, poderemos entrar
francamente na pratica de nossa santa Religião, regendo-nos segundo a nossa fé e a
nossa disciplina, sem receiar a minima intervenção do poder publico. E como as
227
228
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.12: Documentos de Leão XIII. São Paulo: Paulus, 2005. p. 97-124.
Decreto 119-A de 07 de janeiro de 1890.
131
instituições dogmaticas e disciplinares do Concilio Tridentino fazem parte dos
principios de nosa fé e das regras de nossa disciplina, permanece em plenissimo vigor,
como até aqui, a sua legislação matrimonial, [...] em relação ás causas matrimoniaes. O
estabelecimentos do chamado casamento civl, sabei-o bem, christãos, não vem
substituir o unico verdadeiro casamento que é o relgioso. Nós acreditamos como um
dogma de nossa religião que o Matrimonio é um dos sete Sacramentos [...] é ainda
doctrina da nossa Egreja, que o contracto não se separa do Sacramento [...] estamos em
pleno direito, em face do mesmo governo civil, de só considerarmos como valido para
os Christãos o contracto matrimonial que é celebrado na Egreja [...] Outra qualquer
união, ainda que decorra com aparências de legalidade, não passa de vergonhoso
concubinato. Podeis prestar-vos á formalidade do casamento civil, [...] mas sabendo [...]
só contrahis verdadeiro matrimonio, [...] celebraes o acto religioso perante Deus [sic]229.
Este apelo na Pastoral Coletiva mostra bem a situação em que a Igreja se encontra nesta
fase de incertezas, não abre não de seus direitos sobre os fiéis, no entanto, não se choca, pelo
menos oficialmente com as leis que estavam sendo decretadas no governo provisório, se sentindo
ameaçada em seus “direitos” recorre aos fiéis para não abandonarem os dogmas de sua fé mesmo
prestando as formalidades exigidas pelo Decreto n. 181 de 24 de janeiro de 1890 que oficializava
a nova forma de registro, o civil, para os casais serem formalmente considerados casados. “o
casamento, em virtude das relações de direito que estabelece, é celebrado sob a protecção da
republica”230. [sic]
No final da década de 70 do século XIX com os liberais no poder a discussão sobre o
casamento foi pauta constante desses políticos que combateram os chamados padres
ultramontanos “[...] o projeto de casamento civil foi um dos enfoques à modernização proposta
229
ACMSP. Documentos em fase de catalogação: O episcopado brazileiro ao clero e aos fieis da Egreja do Brazil.
São Paulo: Typ Salesiana a vapor do Lyceu do Sagrado Coração, 1890.. p. 50.
230
ACMSP, Annaes do Senado. Sessão de 13 de julho de 1891: discurso de Campos Salles. (APUD) COSTA. Emília
Viotti da. Da monarquia à república. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
132
por políticos liberais no parlamento brasileiro; por outro lado, sua aprovação esbarraria em sérias
resistências por parte da ala parlamentar conservadora e defensora da Igreja”231. Com o projeto n.
181 de janeiro de 1890 e a ratificação do casamento civil pela constituição de 1891 no art. 72
parágrafo 4º onde: “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”, a
Igreja Católica não teve outra opção a não ser amenizar sua posição no que diz respeito ao
casamento civil e celebrar seu Sacramento conforme convém a fé e o respeito de seus fiéis pelos
seus princípios dogmáticos enfatizados no Concílio Tridentino (1545-1563).
5. Morte: a laicização dos cemitérios
Os enterramentos no final do século XVII passaram a ser realizados em área aberta,
procedimento este adotado por medidas sanitárias, quando estes espaços passaram a ser
denominados comumente como “campos-santos”. No Brasil o enterramento a céu aberto estava
reservado aos acatólicos, protestantes, mulçumanos, judeus, escravos e ou criminosos até que por
procedimentos de higiene devido à urbanização, crescimento das cidades e aumento da população
os católicos começaram a realizar seus sepultamentos em cemitérios coletivos próprios para os
seus fiéis. O aumento desenfreado da população não permitia mais que se fizesse o enterro nas
igrejas e capelas que não comportavam o aumento da demanda. Erigia-se a igreja como bem
público, integrada ao uso coletivo, no entanto, muitas igrejas foram levantadas para serem o
jazigo do seu doador, mas a sepultura de seu benfeitor ou doador na maioria das vezes isto foi
feito sem muita pompa e o túmulo não ultrapassava o nível do chão232.
No Brasil um primeiro sinal de rompimento da “familiaridade” entre os vivos e os mortos
através dos sepultamentos nas igrejas deu-se com a campanha vitoriosa dos médicos contra os
231
SILVA, Maria da Conceição. A Igreja Católica e o casamento no Brasil (1860-1890). (APUD)
http://www.cehila-brasil.com.br/Biblioteca/Arquivo_129.doc. Acesso em 10/03/2006 18:20:00
232
ALGRAVE, Beatrix. A origem dos cemitérios. 2004. (APUD) http://www.sincep.com.br/historias/25.asp. Acesso
em 06/07/2006 19:37:00
133
enterramentos eclesiásticos preocupados com o costume dos familiares e amigos de sentar-se nos
túmulos onde conversavam ou rezavam, já que era um local propício para este fim, muitas vezes
para os que caminhavam grande distâncias aproveitavam as sepulturas para descansar antes ou
depois das missas, pois os cemitérios dos seus mortos ficavam dentro ou nos arredores da igreja.
Os médicos argumentaram que os miasmas cadavéricos, produzidos no processo de
putrefação do cadáver contribuía para disseminar doenças nos ambientes mal iluminados e com
pouca ou nenhuma ventilação da maioria das igrejas. A salubridade pública começou a ser uma
preocupação da chamada “medicina social” no século XIX e foi iniciada uma “campanha” para
quebrar esta tradição funerária onde as atitudes diante da morte cederam espaço para a defesa da
higienização dos espaços públicos. A alternativa apresentada pelos médicos foi a de se sepultar os
mortos em locais fora das cidades.
Segundo Rodrigues233 um dos motivos para se criarem os cemitérios públicos foi a
denúncia da população de bairros do subúrbio dos cemitérios acatólicos que ficavam próximos
das casas, ou até mesmo enterramentos nas igrejas, ou seja, os cemitérios eclesiásticos
considerados insalubres começaram a ser denunciados pela população. Outro fator decisivo na
opinião de Rodrigues foi um surto epidêmico de febre amarela entre 1849-1850 de grandes
proporções para a época na cidade do Rio de Janeiro. Os médicos conseguiram com que o
Governo imperial, através de uma lei de setembro de 1850, determinasse a criação de cemitérios
públicos extra-muros e o fim dos sepultamentos eclesiásticos.
Para convencer o clero o argumento foi que “um surto epidêmico de grandes proporções
que ao atingir milhares de pessoas e matar outras tantas [...] o perigo de se acumular um grande
233
RODRIGUES, Claudia. Aspectos teóricos e metodológicos para uma analise da secularização das atitudes diante
da morte no Rio de Janeiro oitocentista. (Tese de doutorado em História Social). UFF-RJ, 2006.
134
número de cadáveres nas igrejas [...] ainda mais se tratando de corpos pestilentos234”. Sendo o
sepultamento um ato religioso e público, as cerimônias permitiam um controle religioso e social
tentando inibir as transgressões criminais, no mundo católico o espaço da Igreja ficava alienado
somente aos seus féis. Perdia o direito de se juntar aos justos “aqueles que, em vida, cometeram
atos e ações contrárias à religião, não devendo compartilhar da ‘comunhão e ajuntamento’ com os
fiéis exemplares235”. A Igreja regulava certa ritualização sobre os enterramentos que refletiam
costumes e temores de uma época: mortes violentas, criminosas e enterramentos de
catalépticos236.
O surgimento dos questionamentos à jurisdição eclesiástica a partir da década de 70 do
século XIX por intermédio da imprensa republicana e os movimentos liberais de secularização
contra a hegemonia da Igreja entre outros aspectos, também relacionava as questões da morte e
seus rituais. A partir de 1875-1876 para o sepultamento nos cemitérios públicos bastaria o
simples atestado do médico para liberar/autorizar o enterramento, dispensando-se com isso, a
ingerência sacerdotal, até então, os enterramentos “eram registrados e oficiados pela Igreja, sendo
o sacerdote o responsável pela liberação dos sepultamentos após o registro paroquial do óbito e a
realização da encomendação do cadáver237”.
Outro aspecto tão grave quanto estes acima estavam na simples recusava de um pároco
em receber um defunto em seu cemitério, dando assim motivos para discussões acaloradas sobre
liberdade e igualdade que neste contexto era abraçado pela imprensa liberal e alardeado pelo
cambaleante Império na segunda metade do século XIX:
234
RODRIGUES, Claudia. Aspectos teóricos e metodológicos para uma analise da secularização das atitudes diante
da morte no Rio de Janeiro oitocentista. (Tese de doutorado em História Social). UFF-RJ, 2006.
235
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. (APUD) O purgatório em crise: a razão da Igreja:
http://www.unicamp.br/~elmoura/CAP4.doc. Acesso em 02/09/2006, 23:58h.
236
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. (APUD) O purgatório em crise: a razão da Igreja:
http://www.unicamp.br/~elmoura/CAP4.doc. Acesso em 02/09/2006, 23:58h.
237
RODRIGUES, Claudia. Aspectos teóricos e metodológicos para uma analise da secularização das atitudes diante
da morte no Rio de Janeiro oitocentista. (Tese de doutorado em História Social). UFF-RJ, 2006.
135
O debate sobre a secularização dos cemitérios públicos, que esteve bastante presente
nos jornais da época, surgiu a partir de 1869, em torno da recusa do pároco de Sapucaia
(RJ) de dar sepultura, em local sagrado, ao suicida e protestante David Thompson. O
caso deu origem a uma discussão entre o Ministério dos Negócios do Império e a
hierarquia eclesiástica a respeito da jurisdição eclesiástica sobre os cemitérios da
cidade. O debate chegou ao Parlamento, com a apresentação de um projeto de
secularização dos cemitérios públicos, afim de que fosse permitido o sepultamento [...]
independente da religião [...] apesar de os cemitérios terem se tornado público, a partir
de 1850, eram destinados apenas ao público católico [...] das pré-condições para o seu
funcionamento era a benção do terreno238. [sic]
O século XIX foi muito marcado pela exacerbação do humanismo, a perda progressiva
dos domínios espirituais sobre os povos do ocidente, da crise política do papado na chefia da
cristandade católica e o repúdio ao sistema escolástico tomista adotado como filosofia niveladora
nos discursos da hierarquia do catolicismo. A Igreja Católica teve de se reorganizar internamente
para buscar novos e mais consistentes apoios intelectuais e políticos e, sobretudo tentar dar
respostas religiosas para seus fiéis. O Concílio de Trento (1545-1563)239 havia por pelo menos
dois séculos conseguido prender a atenção dos fiéis através de suas “prescrições” dogmáticas,
afirmando a mensagem salvífica da Igreja e a necessidade de se estar em comunhão com a Igreja
e seus preceitos, sistematizou os sete sacramentos e valorizou a devoção pessoal e coletiva dos
fiéis, afirmou existência do Purgatório, a confissão e o perdão tiveram grande valor para o
moribundo e sua família. A presença do padre na cabeceira do moribundo teve importância vital
para muitos fiéis que temiam o inferno e a perdição eterna. Mas, a Igreja não estava sendo
238
RODRIGUES, Claudia. Aspectos teóricos e metodológicos para uma analise da secularização das atitudes diante
da morte no Rio de Janeiro oitocentista. (Tese de doutorado em História Social). UFF-RJ, 2006.
239
Consultar para este assunto: ALBERIGO, Giuseppe (Org.). História dos concílios ecumênicos. 2.ed. São Paulo:
Paulus, 1995.
136
resilente às mudanças e seus fiéis aos poucos, apesar da religiosidade do povo brasileiro o
catolicismo começou a ceder espaço para as atitudes políticas que estavam acontecendo e mesmo
que inevitáveis poderiam ter transcorrido sem o impacto que causou, se fossem negociadas ainda
no Império sem saudosismos de uma hegemonia já perdida há algum tempo, mesmo em se
tratando apenas do território brasileiro retomando assim com paciência os trilhos da história.
Sem esta atitude acima, a separação entre a Igreja e o Estado no Brasil foi feita por
decreto240 e deu a impressão de ser uma novidade para a hierarquia do catolicismo, o que não foi
a realidade, haja vista as inúmeras tentativas citadas neste trabalho, quando foram tratadas de
forma mais incisiva a partir da segunda metade do século XIX. No caso da laicização dos
cemitérios o que o decreto iniciou a constituição brasileira de 24 de fevereiro de 1891 ratificou
em seu art. 72, parágrafo 5º que decretou o que se segue: “Os cemitérios terão caráter secular e
serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática
dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as
leis”. Com o decreto n. 789 de 27 de setembro foi instituída a secularização dos cemitérios em
cumprimento ao que determinava a constituição do Brasil.
De acordo com esta lei passou para a competência da municipalidade e da polícia a
administração dos cemitérios sem intervenção de qualquer autoridade religiosa, com isso ficou
proibida qualquer distinção “em favor ou detrimento de nenhuma igreja, seita ou confissão” e
também foi proibida a construção de cemitérios particulares, e respeitada a existência dos
cemitérios pertencentes às ordens religiosas, irmandades, congregações e confrarias, desde que
devidamente inspecionados pelo serviço público de saúde e pela polícia municipal241.
240
Decreto de separação Estado – Igreja no Brasil: 119-A de 7 de janeiro de 1890.
ANRJ. Cocac/Bib. microfilme 0001 COD. OR-F-SPO/004 OR 010 3, [Exposição apresentada ao Generalíssimo
Chefe do Governo Provisório dos Estados Unidos do Brazil – 1890].
241
137
6. Educação: a exclusão do ensino público religioso no Brasil
Orden i Progresso, viver às claras, Pela Liberdade Espiritual o Apostolado Pozitivista
do Brazil, fiel aos princípios que não ten cessado de ensinar i defender, i coerente com a
sua atitude en cazos identicos ou analogos, protesta contra a perseguição policial
movida [...] outrosin e pelos mesmos motivos, protesta contra a prizão arbitraria de un
sacerdote catolico por ter este se manifestado infenso à escluzão do ensino relijiozo das
escolas publicas i aconselhado aos seus fieis que se abstivessen de a elas mandar os
filhos. O Governo Provizorio está esquecendo que é republicano, que se separou a
Igreja do Estado, i parece tanben esquecer cada vês mais que toda intervenção do poder
civil em assuntos que só interessão à consiencia de cada cidadão constitui a essencia
mesma da tirania [sic]242.
Quando de certa maneira refutamos neste trabalho a ideologia positivista como âncora
inefável para a Proclamação da República no Brasil, isso não quer dizer que seus adeptos não
estavam atentos aos acontecimentos da vida política no país e tentando influenciar as decisões do
poder vigente e até mesmo em alguns casos, fazendo-o de maneira politicamente correta ao
defender interesses dos seus oponentes que de certa forma casava com seu ideal, como por
exemplo, o texto em destaque acima e em outras passagens deste trabalho que mesmo quando
não estão de acordo emitem sua opinião de preferência ao que seria o centro de poder dirigente
do país, antes ou depois da ainda incipiente República.
242
ANRJ. Cocac/Bib. microfilme 0003 COD. OR-Bib/002 OR 040 9, [Liberdade religiosa].
138
A ciência foi defendida pelo positivismo como o meio por excelência de se chegar a
“plenitude” social243, o meio para se transmitir o conhecimento é através do ensino244, neste caso
para “todas” as pessoas, a filosofia comtiana no Brasil para não fugir a regra, defende a liberdade
de consciência e com isso no desdobramento das questões pendentes, na estruturação do
republicanismo através da elaboração da carta constitucional, concedida a liberdade de
consciência, os positivistas também vão se favorecer desta liberdade, o Governo Provisório
caminhava para uma ditadura que não foi indesejada pela filosofia de Comte, só que não
predominava no Governo os ideais positivistas como vemos no documento abaixo:
O pozitivismo i a atual direção política do Governo. Rio 25 de Carlos Magno de 102,
12 de julho de 1890. Ao cidadão redator da Gazeta de Noticias [...] licença para opor
breve protesto [...] tópico en que o Sr. Dr. M. Prado reprodus as palavras de un
sacerdote ilustradíssimo con quen converssou na Italia, parece depreender-se que a
direção politica da Republica obedece aos ditames da doutrina pozitivista atribuindo-se
a esta inspiração tendencias ostis contra Igreja Catolica. Cumpre-me declarar
solenemente que é de todo inezato que o pozitivismo esteja deterrminando a orden
política do atual Governo, que, pelo contrario [...] como já á saciedade o ten
demonstrado em nossas publicações i conferencias patenteado e patenteia-se cada vês
mais afastado [mediante] orientação. Cuanto a supor o pozitivismo animado [...] contra
a fé catolica, confundindo-o assin com o [...] volteriano ou materialista que domina
parte ativa de nossas classes dirijentes, é outra inverdade que o conpleto
desconhecimento de uma doutrina cujo teor político fundamental consiste na mais
ampla liberdade espiritual, como saben todos os que aconpanhão a nossa propaganda
no Brazil [sic]245.
243
“[...] o positivismo não apenas afirma a unidade do método científico e o primado desse método como
instrumento cognoscitivo, mas também exalta a ciência como o único meio em condições de resolver, ao longo do
tempo, todos os problemas humanos e sociais que até então haviam atormentado a sociedade”. REALE, Giovanni;
ANTISERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1991. v. 3.
244
Para maiores informações sobre uma pequena parcela da importância dada para a reforma do ensino público é
necessário consultar as fontes existentes no: ANRJ. Cocac/Bib: Microfilme 0001 COD. OR-F-SPO/004: OR 000.4 –
OR 003.4 – OR 005.8 – OR 007.4 – OR 007.9 – OR 009.4 – OR 009.8 – OR 013.0 – OR 013.2 – OR 013.3 – OR
013.5 – OR 013.7 – OR 014.3 – OR 014.4.
245
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 0003 COD. OR-Bib/002 OR 042 5, [O Pozitivismo i a atual direção politica do
Governo].
139
A propaganda doutrinaria positivista não havia alcançado seus objetivos, pois como
vemos neste documento sua propaganda não atingira o governo e algumas medidas creditadas a
eles são inverdades. Havia uma propaganda positivista no Brasil a fim de propagar seus ideais.
O ensino dependendo da maneira como ele é transmitido sempre foi e é uma maneira de
dominação ideológica, o catolicismo dentre as outras ideologias sempre procurou doutrinar seus
seguidores à sua maneira fazendo parecer que o seu modo de vida é o único e mais correto
existente dentre tantos outros, vide a frase de Marx “a religião é o ópio do povo” que ficou
conhecida popularmente e mesmo sem conhecimento exato de seu significado é reproduzida por
aqueles que desejam criticar o catolicismo com frases de efeito. Não estamos entrando aqui no
julgamento de valores ou em artigos de fé particulares ou universais, mas apenas tentando
demonstrar que para qualquer instituição o ensino é a forma ideal de transmitir seus valores, de
doutrinar seus seguidores, afinal a utopia de todo dirigente de instituição ou partido político é
transmitir aos seus seguidores o seu modo de vida como sendo o ideal a ser seguido.
Para impor seus valores os líderes de cada instituição ou partido lutam para não deixar de
co-existir com o poder, quando estão em desvantagem procuram meios de se aliar com grupos ou
pessoas que possam aderir naquele momento por conveniência política ou porque acreditam nas
suas propostas e estão em posição de defender seus ideais junto a castas dirigentes246. Antes de
entrar na questão da exclusão do ensino religioso nas escolas públicas do Brasil e para mais uma
246
Reclamamos [...] contra a exclusão de todo o ensino religioso nas escolas publicas. É doloroso para os nossos
corações de Bispos que a lei civil force professores catholicos a calar diante dos seus alunnos o santo nome de Deus,
[...] commoventes ensinamentos da nossa fé, tão aptos por sua natureza a insculpir naquellas tenras almas os
principios eternos [...] contra os que escandalisão os pequeninos! Que maior pedra de escandalo do que a irreligião
na escola? Eduque-se no atheismo a geração que desponta, e bem depressa [...] apparecerão estiolados pelo vicio
esses corações juvenis, em que a religião e a Pátria depositarão as suas mais fagueiras esperanças! Que tremendas
maldições cahirão sobre o nosso caro Brasil, se elle se tornar réo de tão enorme crime! A perspectiva do futuro que
nos aguarda, com semelhante methodo de educação que suprime pela base todo o elemento de moralidade, enche de
inquietação os corações dos pais de familia verdadeiramente dignos de tão bello nome. Que há de ser, dentro em
poucos annos, desta nobre e generosa Nação, quando as funestas doutrinas do atheismo, que circulão livremente por
toda a parte e são obrigatorias nas escolas publicas, [...] Cf. ACRJ. Série CP046: Reclamação do episcopado
brasileiro dirigida ao EX.mo Sr. chefe do Governo Provisório. TYP. de G. Leuzinger & Filhos, Ouvidor 31-6158-90.
140
vez salientar sua importância para o catolicismo, de não perder contato com o poder republicano,
damos um salto apenas para demonstrar que este foi um assunto de grande interesse e que foi
recorrente na velha república até encontrar um meio de subsistir após os anos de maior aversão
do poder dominante contra a instituição católica.
Em 1910 a plataforma presidencial de Ruy Barbosa, candidato da oposição às correntes
situacionistas, trouxe novamente à batalha a necessidade de promover ampla reforma
do sistema constitucional vigente com o advento da República [...] finalmente, nas
relações entre a Igreja e o Estado, o estabelecimento do ensino religioso facultativo,
ensino cuja obrigatoriedade fora sempre defendida pelo clero247.
Segundo Martin Dreher248 escreveu em seu livro “A Igreja Latino-Americana no contexto
mundial” o confessionalismo religioso que se instalou após a reforma no século XVI, esteve
profundamente ligado ao surgimento do Estado moderno e consequentemente esse
confessionalismo se instalou na estrutura do Estado moderno sendo o alicerce da sociedade
possibilitando lei e ordem e garantindo sua continuidade, não só as igrejas protestantes
auxiliaram a criar sociedades uniformes, disciplinadas que evitaram as guerras religiosas
propiciando o resultado de “lei e ordem” e deram contribuição para a instalação do absolutismo:
Não houve confissão religiosa específica que propiciasse o surgimento do Estado
absolutista. Todas elas, na situação em que se encontravam contribuíram para tanto. O
imperialismo dos Habsburgos foi suportado pelos católico-romanos; os Hohenzollem,
que montaram Prússia-Brandenburgo, foram suportados pelo calvinismo; os territórios
alemães tiveram, em sua maioria, suporte luterano249.
247
Cf. ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de. História constitucional do Brasil. 3.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
Cf. DREHER, Martin Norberto. A Igreja Latino-Americana no contexto mundial. V. 4. São Leopoldo: Sinodal,
1999.
249
DREHER, Martin Norberto. A Igreja Latino-Americana no contexto mundial. V.4. São Leopoldo: Sinodal, 1999.
p. 89.
248
141
Apesar de não ter sido a igreja a promotora da secularização, a sua atitude diante do
Estado europeu foi um grande facilitador para que isso ocorresse, a ingerência do Estado no
âmbito religioso foi aumentando “sobre áreas que antes eram da jurisdição da Igreja: casamento,
família, educação, auxilio aos pobres e bem-estar-social. Os âmbitos de atuação da Igreja
diminuíram; os “seculares” aumentavam250”. Estava claro naquele contexto que o sucesso da
empreitada para expansão, aqui no caso específico da fé, se dava pelo ensino, pois a transmissão
da fé inicialmente se deu pela catequese, ao se formarem os centros de estudos cada confissão
religiosa no período moderno da história da humanidade não deixou de ser também um local para
expandir sua confessionalidade.
Lançando-se no tempo vemos hoje que a temerosidade do catolicismo com a separação
Igreja e Estado no Brasil e sua conseqüente perda de influência sobre a sociedade em quesitos
que deteve por quase três séculos o controle, como por exemplo, o ensino religioso nas escolas
públicas teve seu fundamento, pois se chegou a tal ponto que nos tempos hodiernos é levantada a
questão sobre a autoridade de a Igreja estar em posição de fraqueza onde a perda do controle da
sociedade causou “uma crise de transmissão da fé por razões em grande parte culturais251” o
confessionalismo de Estado com controle social foi sendo abalado com a queda do absolutismo e
a ascensão dos Estados republicanos com sua reserva formal de democracia devido ao aumento
desde o século XIX de uma sociedade crescentemente pluralista, vão diminuindo em
conseqüência disso a influência, a autoridade e o prestígio da Igreja em seu discurso oficial252,
nos séculos anteriores, porém as igrejas foram assumindo o bem comum pelo Estado passando a
controlar a vida moral e espiritual de seus súditos doutrinando-os, pois:
250
DREHER, Martin Norberto. A Igreja Latino-Americana no contexto mundial. V.4. São Leopoldo: Sinodal, 1999.
p. 89.
251
Consultar para este assunto: SESBOÜE, Bernard. O Magistério em questão: autoridade, verdade e liberdade na
igreja. Petrópolis: Vozes, 2004.
252
Consultar para este assunto: SESBOÜE, Bernard. O Magistério em questão: autoridade, verdade e liberdade na
igreja. Petrópolis: Vozes, 2004.
142
No Estado Confessional, a autoridade secular buscou, com o concurso da religião,
formular a vida pública e a vida privada da sociedade. Surgiu, então, uma sociedade
uniforme de sujeitos, de indivíduos. Nesse contexto, as igrejas, tiveram seu papel muito
importante: elas tinham “legitimação divina” em relação à moral, à política e às normas
legais. Sermões, aconselhamentos, educação religiosa, catecismo, cultos e missas, os
valores pregados e disseminados ajudaram a formar e a conformar características da
emergente sociedade burguesa: honesta, estudiosa, disciplinada, obediente. Ainda no
século XIX, líderes brasileiros pensaram em trazer pregadores protestantes em bom
número ao Brasil para que esses valores se instalassem aqui, pensando assim poder
promover o progresso [...] O estudo do confessionalismo nos deixa descobrir os teóricos
do controle social nos primórdios da Idade Média: os teólogos253.
6.1. A situação do ensino público no Império
No primeiro reinado a estrutura política favoreceu o “projeto” educacional do catolicismo
sendo totalmente favorável ao ensino religioso, embora o Imperador tivesse poderes capazes de
interferir até nos currículos dos Seminários e estivesse sob forte pressão dos liberais, que desde
1827 publicaram algumas leis e normas, que visavam o desgaste progressivo das ordens
religiosas, consideradas indesejáveis do ponto de vista entre a Igreja do Brasil e sua ligação com
Roma, onde algumas ordens foram abolidas ou reformadas e seus bens confiscados. Até o final
do Império o governo teve poder inclusive para interferir no currículo dos seminários, onde isso é
confirmado por um decreto de 1863 que dava competência ao governo para nomear professores
nos seminários e mesmo escolher os textos de seus estudos, o que não dizer que o Imperador
tenha usufruído desta prerrogativa que a lei do Império lhe facultava, sendo o catolicismo a
religião oficial do Estado e os governantes formalmente católicos, os professores da rede pública
253
DREHER, Martin Norberto. A Igreja Latino-Americana no contexto mundial. V.4. São Leopoldo: Sinodal, 1999.
p. 89.
143
inclusive os funcionários públicos prestavam juramento de fé católica254, afinal na carta
constitucional a opção é clara pela confessionalidade de Estado que assim declara:
Constituição Política do Império do Brasil. Em nome da Santíssima Trindade. Titulo
1.º Do Império do Brasil, seu Território, Governo, Dynastia, e Religião:
Art. 5. A
Religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as
outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para
isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo [sic]255.
Professar a religião católica na elite foi pré-requisito para ocupar cargos públicos já que
no Capitulo IV art. 95 da constituição que rezava sobre as eleições isto estava claro: “Todos os
que podem ser Eleitores, são hábeis para serem nomeados Deputados. Exceputam-se: I. os que
não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida [...] III. Os que não professarem a Religião de
Estado256”. Esta relação vai enfrentar seus primeiros embates com o início dos movimentos
republicanos no segundo reinado onde começaram as pressões para que se desvinculassem a
aliança Estado – Igreja não só por causa de ideais políticos, mas também por motivos religiosos
devido ao crescente ingresso de imigrantes protestantes europeus neste período257.
No Brasil, a Igreja do período colonial e do primeiro reinado praticamente dominou o
ensino prioritariamente formado pela elite que podia pagar por uma boa educação em escolas
particulares para meninos e meninas ou mesmo em seminários para meninos, o ensino público foi
precário em todo o Império no século XIX. “Havia poucas escolas providas, funcionando em
254
Consultar este assunto em: CASILI, Alípio. Elite intelectual e restauração da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1995.
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 0001 COD. OR-F-SPO/004 OR 006 7, [Constituição do Império do Brazil – 1824]
256
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 0001 COD. OR-F-SPO/004 OR 006 7, [Constituição do Império do Brazil – 1824]
257
Sobre a imigração consultar: FAUSTO, Boris (org.). Fazer a América. São Paulo: EDUSP, 1999.
255
144
salas impróprias, com mobiliário e materiais didáticos insuficientes; a maior parte dos professores
era formada por leigos [...] o desinteresse pela formação elementar era desolador258”.
6.2. As Reformas: Cunha Barbosa, Couto Ferraz, Leôncio de Carvalho
As reformas de ensino no período imperial brasileiro foram poucas e objetivamente não
surtiram o efeito de suas propostas, no primeiro reinado projetos ambiciosos de reforma de ensino
nem foram discutidos259, limitando-se a regular as escolas de educação elementar com a lei e 15
de outubro de 1827 determinando a criação de “escolas de primeiras letras” elaboradas pela
“Comissão de Instrução Pública” e que deveriam ser instaladas em “todas as cidades, vilas e
lugares populosos”, esta lei sofreu uma alteração no ano de 1834 com um Ato Adicional
descentralizando “o ensino e transferindo para os governos provinciais a responsabilidade pela
educação popular”260. Uma matéria como esta (ensino), prioritária do poder central não foi
fiscalizada da maneira como deveria ser, ao ser advogada para os poderes regionais sofreu ao
longo do Império por parte de seus ministros inúmeras críticas a respeito da carência do ensino
pela negligência das Províncias que não tinham condições de fiscalizar a instrução popular. Aliás,
a pedagogia como frisa Saviani, esteve ausente nas várias medidas de política educacional
durante o Império. Somente em 1859 na Escola Normal de Niterói foram introduzidas as cátedras
de “língua nacional, caligrafia, doutrina cristã261 e pedagogia262”.
258
Cf. SAVIANI, Dermeval. et al. O legado educacional do século XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006.
Foi discutido na reabertura do Parlamento em 1826 um projeto de ampla reforma do ensino no Império
apresentado por Januário da Cunha Barbosa, “que pretendia regular todo o arcabouço do ensino distribuído em
quatro graus” denominados: pedagogias, liceus, ginásios, academias. Cf. SAVIANI, Dermeval. et al. O legado
educacional do século XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006. p. 11-14.
260
Cf. SAVIANI, Dermeval. et al. O legado educacional do século XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006;
RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. 14. ed. Campinas: Autores
Associados, 1995.
261
O grifo é nosso.
262
Cf. SAVIANI, Dermeval. et al. O legado educacional do século XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006.
259
145
Depois de caminharem vagarosamente na primeira metade do século XIX as reformas
pedagógicas de instrução pública no Brasil, onde a falta de preparo e insuficiência de docentes
qualificados para a instrução da população esteve na maioria dos relatórios dos ministros do
Império deste período, a tentativa de resolver este problema com a proposta de criação das
escolas normais também ainda não haviam dado o resultado esperado263. Com isso houve ocasião
para um novo projeto de reforma pedagógica com a ascensão do Gabinete de Conciliação
(chefiado por Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês do Paraná, setembro de 1853), neste
governo o ministro do Império Couto Ferraz, que baixou o Decreto n. 1331-A de 17 de fevereiro
de 1854, aprovando a reforma do ensino primário e secundário do município da corte264 nos
âmbitos público e privado, tratando inclusive da inspeção dos estabelecimentos de ensino e um
destaque especial para a instrução pública primária, tratada no capítulo III, artigos 47-76 sob o
título: “as escolas públicas; suas condições e regimes”265.
As reformas de ensino no período imperial brasileiro estão distantes de cumprir com o seu
papel, e isto é reconhecido na seguinte frase de José Ricardo Pires de Almeida em 1889: “em
matéria de instrução primária e também instrução secundária no Rio de Janeiro, é grande a
distância entre a aparência e a realidade266”, mas não foi valor, por exemplo, a reforma de Couto
Ferraz que serviu para instituir o principio da obrigatoriedade do ensino público primário nas
263
“[...] parca remuneração e pouca dedicação dos professores; a ineficiência do método lancasteriano atribuída,
sobretudo, à falta de instalações físicas adequadas à prática do ensino mútuo; e a ausencia de fiscalização do ensino
por parte das autoridades do ensino”. Este ultimo aspecto nas criticas provocou constantemente o pedido da
implantação de um serviço adequado de inspeção do ensino naquele período. Consultar em: SAVIANI, Dermeval. et
al. O legado educacional do século XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006. p. 18.
264
“Embora o regulamento esteja dirigido ao município da corte, zona de atuação direta do ministro do Império [...] a
reforma Couto Ferraz contém, normas alusivas, também, a jurisdição das províncias [...] o Regulamento de 1854
explicitamente buscava alcançar a instrução pública provincial [...] no parágrafo 5º do artigo 3º, que estipulava como
uma das incumbências do inspetor geral”. Cf. SAVIANI, Dermeval. et al. O legado educacional do século XIX. 2.
ed. Campinas: Autores Associados, 2006. p. 19.
265
Cf. SAVIANI, Dermeval. et al. O legado educacional do século XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006;
RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. 14.ed. Campinas: Autores
Associados, 1995.
266
ALMEIDA, José Ricardo Pires. História da instrução pública no Brasil (1500-1889): história da legislação.
Brasília: INEP. 1989. p. 89.
146
províncias, o que não conseguiu evitar a pouca eficácia das reformas deste período da história da
educação no Brasil, Paiva aponta a frase do barão de Mamoré (1886) para confirmar este parecer:
“o programa nele estabelecido nunca fora cumprido267” o que não deixa de ser uma realidade
ainda presente nos tempos hodiernos referente à educação no Brasil, quadro que está sendo
progressivamente melhorado na última década do século passado e início deste século XXI.
Após um período de domínio dos conservadores os anos 60 do século XIX ressurgiram
cheios de propostas de reforma, assumiu a chefia do gabinete o liberal Francisco José Furtado
quando ocupou a pasta de Ministro do Império José Liberato Barroso, suas reflexões e
intervenções na área de instrução pública foram reunidas em 1867 no livro “A instrução pública
no Brasil” com projetos voltados para solucionar de forma unificada o problema da educação no
país, mas mais uma vez seus projetos não obtiveram êxito prático, embora a obra de Barroso
possa ser considerada o primeiro estudo de conjunto sobre a educação brasileira, segundo analisa
Saviani268.
Barroso defendeu a obrigatoriedade escolar e a educação como elemento conservador do
status quo e fator de integridade nacional onde se posicionou ao mesmo tempo contra os liberais
e os católicos retrógrados. Barroso buscou conciliar dogma e liberdade, fé e razão,
obrigatoriedade escolar com liberdade de ensino, a fiscalização do Estado e a iniciativa da
instrução escolar nos estabelecimentos particulares269. Antecipou ainda em sua obra assuntos que
seriam colocados em práticas somente alguns anos depois como a secularização de ensino, as
sociedades cientificas, literárias e industriais270, o orçamento da instrução pública, o ensino
267
Consultar para este assunto: PAIVA, Vanilda Pereira. História da educação popular no Brasil: educação popular
e educação de adultos. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2003. p. 81.
268
Cf. SAVIANI, Dermeval. et al. O legado educacional do século XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006.
269
Cf. BARROSO, José Liberato. A instrução pública no Brasil. Pelotas: Seiva, 2005.
270
Para este assunto consultar a obra de: HAMBURGER, Maria Amélia. et al. As ciências nas relações BrasilFrança (1850-195). São Paulo: EDUSP; FAPESP, 1996.
147
religioso
271
, militar, normal e de adultos e não apenas os tradicionais272. Após este período, já
quase no crepúsculo do período imperial tivemos a reforma conhecida como Leôncio de Carvalho
que pelo Decreto n. 7247 de abril de 1879, que reformou o ensino primário, secundário e superior
no município da Corte273 que foi exatamente o que propunha as reflexões de Barroso:
Entre nós se tem cometido em matéria de ensino primário um erro duplo. O Estado,
cuidando pouco de generalizar e derramar o ensino, cria ao mesmo tempo embaraços à
iniciativa individual e à liberdade. Ao lado do ensino primário gratuito e obrigatório
deve marchar e se desenvolver o ensino livre. O estado deve exercer uma inspeção
salutar sobre a liberdade de ensino [...] O desenvolvimento do ensino livre limita a
necessidade do ensino oficial e traz economia para o Estado, cuja inspeção salva os
interesses da moral e da ordem social274.
Na reforma Leôncio de Carvalho “a essência da reforma é apresentada logo no artigo 1º,
ao proclamar que ‘é completamente livre o ensino primário e secundário no município da Corte e
o superior em todo o Império, salva a inspeção necessária para garantir [...] moralidade e
higiene275”. Esta reforma é uma continuidade da reforma de Couto Ferraz em suas propostas
essenciais como a obrigatoriedade de ensino primário dos 7 aos 14 anos, a assistência do estado
aos alunos pobres, o serviço de inspeção entre outras repetições. A ruptura acontece no art. 9º que
regulamentou o funcionamento das escolas normais fixando seus currículos, a nomeação de
docentes e remuneração de seus funcionários e inovou ao prever jardins-de-infância, caixa
escolar, bibliotecas e museus escolares, subvenção a instituições particulares, equiparação das
271
O grifo é nosso.
Consultar para este assunto: BARROSO, José Liberato. A instrução pública no Brasil. Pelotas: Seiva, 2005.
273
Notar que “município da Corte” serve quase que como um adjetivo para oficializar a reforma do ensino no país
todo, sendo desta forma utilizada apenas para “delimitar” a ação do ministro do Império.
274
BARROSO, José Liberato. A instrução pública no Brasil. Pelotas: Seiva, 2005. p. 61-62.
275
Cf. SAVIANI, Dermeval. et al. O legado educacional do século XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006.
272
148
escolas normais particulares com as escolas oficiais e de escolas secundária privadas ao Colégio
Pedro II entre outras diversas medidas276. A reforma Leôncio de Carvalho foi a última reforma do
Império em relação à educação277.
Após estas reformas, onde apenas começaram a citar a possibilidade de secularização do
ensino e propunham uma maior participação das instituições privadas para incrementar a
instrução no império, chegou a vez do movimento republicano deixar de ser um movimento e
assumir o poder para perplexidade da hierarquia católica que já em sintonia com a Sede romana
vão entrar em um longo embate pela manutenção do ensino religioso nas escolas públicas, que
teve sua participação limitada ao corpo a corpo do episcopado e do núncio mons. Spolverini com
os parlamentares para não verem reduzidos seus interesses a nada e pior se não fosse esta ação
veremos no quarto e último capítulo que o catolicismo poderia ter sido ao seu modo de analisar
os fatos muito mais prejudicado do que sentiu ser com esta carta constitucional (1891). Na
questão da instrução pública os liberais comemoraram efusivamente, como se segue:
O movimento de formação de renovação da escola primária empreendido pelos
primeiros governos republicanos teve um profundo significado político, social e
cultural. Tratava-se não apenas de sua difusão [...] mas, também, da implantação de
uma instituição educativa comprometida com os ideais republicanos e com as
perspectivas de renovação da sociedade brasileira [...] Nas décadas finais do século
XIX, a educação popular tornou-se uma das bandeiras de luta dos liberais republicanos
[...] Nesse esboço impetuoso de iniciativa particular, os republicanos fizeram da
educação um meio de propaganda dos ideais liberais republicanos e reafirmaram a
276
O texto da Reforma Leôncio de Carvalho não foi dividido em títulos ou capítulos, tratava-se de um extenso texto
174 itens com 29 artigos as vezes divididos em parágrafos e incisos. Cf. SAVIANI, Dermeval. et al. O legado
educacional do século XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006.
277
Foram apresentados outros projetos que não foram aprovados como, por exemplo, o projeto de Almeida Oliveira
em 1882 e o projeto do Barão de Mamoré em 1886. Cf. SAVIANI, Dermeval. et al. O legado educacional do século
XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006.
149
escola como instituição fundamental para o novo regime e para a reforma da sociedade
brasileira [...] Entende-se, dessa forma, a ênfase à formação [...] o que explica o
significado da implantação da escola-modelo. “Esta preciosa instituição vai ser o
coração do Estado”, afirmou Caetano de Campos, depositando nela toda a esperança de
renovação do ensino [sic]278
Mas a bandeira educacional não foi um discurso apenas da ideologia republicana é claro,
como demos a entender acima a educação é uma bandeira ideológica eficaz para
instrução/indução279 das massas, e neste sentido o papa Leão XIII no início de seu pontificado se
manifestou a respeito da necessidade da continuação da instrução católica para a formação dos
fiéis como se fosse um primado concedido por Deus há séculos para a Igreja e que o poder civil
desprezava e contestava este direito de instrução registrando o seguinte a este respeito na sua
primeira encíclica, INCRUTABILI DEI CONSILI, de 21 de abril de 1878:
[...] a liberdade desenfreada do ensino público e da imprensa, ao mesmo tempo que, de
toda forma, se pisoteia e oprime o direito que a Igreja tem de instruir e educar a
juventude. E a usurpação do principado civil, que a providência divina concedeu, há
tantos séculos, ao pontífice romano, para poder exercer livremente e sem impedimentos
do poder conferido por Cristo para a salvação eterna dos povos, não visa à outra
coisa280.
Este temor do papa Leão XIII, mais uma vez se confirma com a promulgação da primeira
constituição republicana do Brasil em 1891, onde deu-se o primeiro sinal claro de se estar
formando um Estado a-confessional já estampado no preâmbulo que omite qualquer referência
278
SAVIANI, Dermeval. et al. O legado educacional do século XIX. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006. p.
52-53.
279
Para este assunto consultar a Carta encíclica “AETERNI PATRIS: A renovação da filosofia cristã tomista nas
escolas católicas [sic]. Recomenda a renovação da filosofia cristã nas escolas como introdução fundamental à
teologia. Estudo da obra filosófica de santo Tomás, 4 de agosto de 1879. DOCUMENTOS DA IGREJA. V.12:
Documentos de Leão XIII. São Paulo: Paulus, 2005.p. 69-95.
280
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.12: Documentos de Leão XIII. São Paulo: Paulus, 2005. p. 14.
150
religiosa sem, no entanto perseguir nenhuma das religiões tradicionais que se encontravam no
país neste contexto. Outra coerência com a doutrina liberal republicana ficou estampada no art.
70 da constituição de 1891: “São eleitores os cidadãos maiores de 21 annos, que se alistarem na
forma da lei. Não podem alistar-se para as eleições federaes ou para as do Estado: 4.º os
religiosos de ordens monásticas, companhias,
congregações, ou comunidades de qualquer
denominação, que importa a renuncia da liberdade individual281” [sic] e para ser coerente com
nosso texto o art. 72 parágrafo 6.º decretou o ensino leigo: “Será leigo o ensino ministrado nos
estabelecimentos públicos”282. A pedagogia do progresso dos herdeiros do iluminismo e
agarrados à filosofia liberal, a atriz principal do século XIX, e fãs da modernidade:
[que] definia-se pela capacidade dos homens de intervir na realidade, modificando-a
pelo uso da razão e conhecimento objetivo dos fatos. Somente assim seria possível
assegurar o progresso. Por conseguinte, não bastava reger a ordem estabelecida, mas
cumpria criar as condições para a sua transformação. Transformação que ao romper
com a tradição, exigia a implantação de mecanismos capazes de incutir os novos
valores – ou seja, de instruir. Instruir mais do que educar, porque o rumo estava traçado
e definido pelo conhecimento esclarecido de que essas elites se julgavam portadoras283.
A casta intelectual e política do movimento republicano brasileiro consideravam a
educação um instrumento fundamental para difundir a civilização e o progresso – isso provocou
um embate entre o ideal de progresso dos republicanos liberais com o antigo regime monárquicoabsolutista dominado de certa forma pelo mundo litúrgico forjado em mais de três séculos de
281
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 0001 COD. OR-F-SPO/004 OR 008 8, [Constituição da República dos Estados
Unidos do Brazil – 1891].
282
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 0001 COD. OR-F-SPO/004 OR 008 8, [Constituição da República dos Estados
Unidos do Brazil – 1891].
283
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; MACHADO, Humberto Fernandes. O império do Brasil. Rio de
Janeiro: N. Fronteira, 1999. p. 226-238.
151
conivência entre trono e altar no antigo regime político brasileiro, a monarquia. Sem poder banir
o catolicismo, opositor dos avanços científico-tecnológicos que se pretendia inserir no Brasil.
O texto utilizado acima assinala um ponto fundamental quando coloca que mais do que
instruir os republicanos (e não só eles) pretendia incutir valores através da educação até então
prática (quase que) monopolizada pela instituição eclesiástica, principal apoio ideológico, durante
aproximadamente três séculos de monarquia incutindo valores não mais fundamentais naquele
contexto liberal onde agora o papel principal do instituto educacional deveria ter como motivação
transmitir a nova ideologia de governo. Desta forma a separação Estado – Igreja se consolidaria,
pois estando a Igreja afastada de sua função formadora, o Estado estaria livre do conservadorismo
exacerbado do catolicismo, radicalizado pelo papa Pio IX no século XIX onde “a cartilha”
antimodernidade foi sendo codificada pela encíclica “Quanta Cura284”.
7. A passagem de ida para separação Estado – Igreja no Brasil
Repassando os acontecimentos do crepúsculo do Império no Brasil, em 1870 com o
término da guerra do Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai houve aceleradas mudanças
políticas e sociais em nosso país, já iniciadas a partir de 1850 e que se estendeu até o final da
primeira metade do século XX, onde se instalou no país um processo de modernização que
valorizava a ciência, tanto as ciências humanas quanto as ciências exatas, a nível cultural a
relação com a França guardava laços estreitos com o positivismo influenciando parte de nossos
republicanos. A cultura francesa já apresentava influência sobre nossos “letrados” através da
presença do pensamento iluminista no final do século XVIII com os ideólogos da Inconfidência
mineira (1792) e causando certo escândalo às autoridades portuguesas quanto ao conteúdo dos
284
Quanta Cura: Chama a atenção a respeito dos erros do liberalismo e do racionalismo. Lembra o cuidado de seus
predecessores em anunciar a reta doutrina e combater os erros. Anexa à presente encíclica um elenco (Syllabus) de
80 proposições que contêm, nas palavras de Pio IX, ‘os principais erros do tempo presente’. 8 de dezembro de 1864.
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.6: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX. São Paulo: Paulus, 1999. p. 248.
152
livros existentes em suas bibliotecas, livros esses que fortaleciam os ideais de liberdade dos
mineiros, segundo Eduardo Frieiro autor de “O Diabo na livraria do Cônego”285.
Para a formação de um novo regime político as figuras simbólicas de um antigo sistema
que significavam algum tipo de poder concorrente precisaram ceder espaço para a atuação deste
novo regime político. No caso desta dissertação estamos tratando da suplantação do sistema
monárquico brasileiro pelo republicanismo que se impôs à sociedade. A formação de uma
sociedade está ligada a um amplo processo histórico no qual é gestado o novo poder e que de
alguma forma conhece a multiplicidade do antigo regime que está suplantando e que identifica
em alguns subsistemas desta sociedade a necessidade de aliar-se ou descartar-se mesmo que as
escolhas em um futuro próximo, ou não, inscreva-se como equivocado para assegurar a
governabilidade.
A substituição de um grupo de poder por outro, como por exemplo, um grupo de liberais
por outro ou os liberais pelos conservadores que se revezaram no poder no período da conciliação
no regime monárquico podem acomodar-se nos subsistemas que compõe a sociedade como, por
exemplo, as estruturas que o formam a econômica, a justiça, a política, a ciência ou a religião,
mas no caso tratado nesta dissertação não é apenas a substituição de um poder por outro e sim a
transformação deste poder, de uma ideologia absolutista por uma ideologia liberal. O antigo
poder foi suplantado representando a primeira tentativa concreta de se ter um país brasileiro de
fato com a fixação de um poder completamente novo e diferente de tudo o que aqui já se havia
(re)produzido. Foi uma mudança qualitativa, sem aqui se discutir a validade ou não de um ou
outro regime, mas diferenciá-los enquanto ideal, com a tentativa de mudanças nas estruturas de
apoio que serviu ao antigo regime monarquista e a desestruturação desses poderes de apoio como
285
Consultar para este assunto: HAMBURGER, Maria Amélia. et al. As ciências nas relações Brasil-França (1850195). São Paulo: EDUSP; FAPESP, 1996.
153
o que ocorreu com o catolicismo neste período. Depois de apresentarmos alguns aspectos
essenciais da vivência do catolicismo na sociedade brasileira monarquista trataremos no próximo
e último capítulo da atitude que a hierarquia católica teve entre a Proclamação da República e a
Constituição brasileira de 1891 para não perder totalmente seu prestígio e poder dentro da
sociedade republicana, pois como observou Gramsci em sua obra, abaixo citada, tratamos neste
capítulo sobre um momento de instabilidade na vida do catolicismo brasileiro, onde sua
influência parecia estar se esvaindo. Foi uma situação recorrente na Europa do século XIX, pois:
“ao nível do controle da sociedade civil: grande parte dos domínios, até então sob controle da
igreja, agora lhe escapam. É o conjunto da sociedade civil tradicional que se desagrega”286. Mas
esta situação não aconteceu sem antes haver muita resistência por parte da elite eclesiástica.
286
PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questão religiosa. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 95.
154
CAPÍTULO IV
155
O contexto do surgimento das “Pastorais Coletivas de 1890”
[...] da liberdade relijiósa287, a propózito de un projeto de liberdade de culto aprovado
pelo Senado, mas que foi afastado pela Câmara dos deputados, O cléro privilejiado não
deixô de provocar uma ajitassão factíssia contra este projeto, que aliás limitava-se à
consagrar pela lei que os nóssos costumes conséden á muito tenpo às manifestassões
esteriores dos cultos não ofissiais. Sob este impulso clerical várias reprezentassões
fôrão enviadas à Câmara, pedindo a rejeissão da lei vinda do Senado. Entre as
manifestassões deste jênero a do Bispo do Pará foi a que mais se salientô. En respósta à
S. Es. Rev.ma dirijimos-lhe uma carta pública, firmando a verdadeira dotrina da
liberdade espiritual i refutando as objessões que os interessados aa manutenssão do
monopólio ecleziástico costúmão fazer valer. Seja como for, o projéto de lei foi adiado
indefinidamente pela maioria da Câmara, que não se móstra dispósta a conseder uma
satisfassão insignificante às reclamassões da opinião pública, [...] da opozissão alguns
padres deputados, cujos vótos parésse que são necessários à vida do ministério atual.
como se vê, os principais estorvos provèn do sistema parlamentar. [...] en apoio de un
prinsípio cuja conpléta aplicassão se tórna cada vês mais indispensável.288
287
A forma ortográfica respeita a Ortografia positivista. “i justificar sumariamente a refórma ortográfica aplicada
pela primeira vês em minha tradussão do Catessismo Positivista. Ésta refórma redús-se a uma simplificassão
coerente de nossa ortografia, a mais anárquica de todas as do Ossidente, conservando poren, cuidadozamente nósso
alfabéto atual. Cf. ANRJ. Cocac/Bib. microfilme 0003 COD. OR-F-Bib/002. OR 040 7. p. 24, [Liberdade religiosa].
288
ANRJ. Cocac/Bib. microfilme 0003 COD. OR-F-Bib/002 OR 040 7. p. 24-26, [Liberdade religiosa].
156
Para introduzirmos a questão central do nosso trabalho que é a reação da hierarquia
católica no Brasil a “abrupta” separação entre Estado e Igreja no Brasil após os republicanos
assumirem o poder político, se faz necessário um balanço da postura da hierarquia católica até
este período. De um episcopado inexpressivo e inoperante devido às condições numéricas de seu
quadro pessoal e das dimensões geográficas que precisavam percorrer dentro do território
“brasileiro” os bispos que pretendiam desenvolver realmente seu trabalho de pastor esbarravam
muitas vezes também na idade avançada que tinham para fazer tal sacrifício, portanto, mesmo
que pretendessem desenvolver um trabalho pastoral seria humanamente impossível, ocorria
também o imperativo de serem subservientes às condições impostas pela administração
portuguesa, pelo menos nos três primeiros séculos da história do Brasil, aonde quem determinava
sua funcionalidade era a Mesa de Consciência e Ordens289. Reclamava desta situação
D.
Lourenço de Mendonça que ocupou o bispado do Rio de Janeiro no século XVII (1632-1638).
[...] se queixava, sentindo-se isolado e desamparado: ‘A viagem à Bahia é longa, mais
de trezentas léguas, e perigosa por motivo dos inimigos e chegando lá, quase não acham
o bispo. O Brasil com mil e duzentas léguas tem um só bispo e por vezes nenhum’. [...]
Pelo decorrer do tempo os bispos do Brasil, dentro de uma carreira que englobava
Angola, Brasil, Portugal, pertenciam ‘ao conselho de sua majestade’ e funcionavam
realmente como representantes do rei, seus substitutos na vacância de um governo tanto
geral como regional290.
289
A Mesa de Consciência e Ordens foi instituída no ano de 1532 e extinta no Brasil apenas no ano de 1828, ou seja,
após seis anos da independência do Brasil do Reino português. A M.C.O. conseguiu centralizar diversos privilégios
papais referentes às nomeações episcopais e outras e tornou-se desta forma uma arma temível do poder colonial
contra a liberdade da Igreja. cf. HOORNAERT. Eduardo (Coord.). História Geral da Igreja na América Latina:
História da Igreja no Brasil. V.2,1: Primeira Época – Período Colonial. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 277.
290
HOORNAERT. Eduardo (Coord.). História Geral da Igreja na América Latina: História da Igreja no Brasil.
V.2,1: Primeira Época – Período Colonial. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 275-280.
157
Esta situação foi se sustentando assim pelo menos até o início da segunda metade do
século XVIII, pois até este período “os missionários não deixavam os bispos entrar nos
aldeamentos indígenas, pois consideravam a visita pastoral como uma ameaça à liberdade de
ação291”. Com as mudanças administrativas em Portugal no período pombalino a ingerência da
hierarquia temporal ou espiritual na vida religiosa tornou-se mais austera e inclusive os
missionários foram selecionados dentre aqueles que estavam mais afinados com os projetos da
metrópole. O perfil do episcopado vai mudando e prelados com perfil mais administrativo vão
sendo nomeados, como foi, por exemplo, o caso do 4 º bispo de São Paulo, D. Mateus de Abreu
Pereira (1796-1824), que governou a Província de São Paulo em quatro períodos vacantes292. A
situação foi sendo transformada gradativamente no século XIX, no entanto a princípio:
[...] é difícil ter uma consciência clara e definida num contexto de perda de identidade, e
esta era a situação da religião no Brasil no inicio do século XIX. O padroado esvaziava
de tal forma a função episcopal que os bispos não chegavam a constituir um centro de
unidade. O episcopado continuava pouco numeroso [...] e sua influência não era
significativa: a maior parte das funções do episcopado era exercida pela instituição leiga
do padroado [...] O relacionamento dos fiéis com os pastores reduzia-se a ocasiões
especiais, geralmente no tumultuo das grandes festas. Pode-se dizer que a Igreja era, no
Brasil, uma organização de leigos [...] bispos e padres eram representantes de uma
religião de Estado [...] a novidade da presença no país do representante do papa, os
núncios apostólicos. Inútil esperar deles qualquer influência, ou mesmo uma boa análise
da situação religiosa no Brasil293.
291
HOORNAERT. Eduardo (Coord.). História Geral da Igreja na América Latina: História da Igreja no Brasil.
V.2,1: Primeira Época – Período Colonial. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 278.
292
Para mais informações sobre este assunto consultar: CAMARGO, Paulo Florêncio da Silveira. A Igreja na
história de São Paulo (1771-1851). São Paulo: IPHAR, 1953. v. 4-6.
293
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 13-15.
158
Na política brasileira os princípios ideológicos chegavam em estado puro da Europa, no
final do século XVIII e início do século XIX começaram a se expandir o liberalismo francês e
outras doutrinas temidas pelas monarquias absolutistas e pela hierarquia católica. Tais ideologias
quando aportavam por aqui não eram adaptadas às condições brasileiras tão pouco favoráveis, “o
liberalismo brasileiro era insensível à justiça social; não trazia a democracia, pois o liberalismo só
valia para certos grupos294”. No Brasil as classes dominantes foram incapazes de criar um Estado
liberto das amarras das doutrinas pré-fabricadas vindas de fora. O eurocentrismo reinou durante
muito tempo do século XIX adentro, até ser gradativamente substituído pelo norte-americanismo
que aos pouco foi avassalando e substituindo em muitos aspectos o predomínio Europeu aqui e
no mundo. A maçonaria foi também no Brasil como na Europa ganhando poder e influência na
vida política e social da população e neste contexto procuravam defender seus afiliados da
ingerência da religião na vida das pessoas, e com isso não respeitando nem mesmo a jurisdição
eclesiástica.
Neste contexto a comunicação do catolicismo brasileiro com Roma foi se estreitando e
passou de um relacionamento quase nulo com o papa e a cúria romana para, uma crescente
conscientização da sua ligação com a Santa Sé, como centro da ortodoxia da sua fé e exemplo a
ser seguido. Essa mudança no catolicismo se deveu também à percepção da hierarquia para com
o relaxamento dos governantes para com a sua religião oficial devido a mudança de atitude ou de
comando nesses governos monárquicos absolutistas, para outras formas de governo durante toda
a primeira metade do século XIX, onde esta situação de mudanças foi se acentuando. Com a
memória de convulsões revolucionárias na França foram sendo alimentados os desejos dos
governantes daqui por uma maior ou total liberdade em relação à benção da religião. Na Europa a
294
BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil. V. 2,2:
Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 22-30.
159
Igreja já havia começado há muito tempo combater a modernidade e suas doutrinas através dos
documentos pontifícios, quando houve também um grande temor pelas novidades das
reivindicações sociais295 que começavam a ser espalhar, incluindo os já existentes movimentos
republicanos, liberais, entre outros296, que em todas as suas acepções invariavelmente atacavam a
postura considerada conservadora da Igreja Católica.
Os ataques destas doutrinas chocavam-se principalmente com o movimento de reforma no
século XIX dentro da Igreja297 para barrar essas novidades inquietantes e se defender dos ataques
dos mentores das políticas anticlericais já em atividade desde a segunda metade do século XVIII
com a Revolução Francesa. No pontificado de Leão XIII houve uma continuidade da condenação
e repúdio, iniciados pelos papas do século XIX ao que foi considerado um abuso da modernidade
aos princípios da moral e causa dos males que estavam assolando os Estados modernos:
A causa principal de tantos males encontra-se, estamos disso convencidos, no desprezo
e na recusa daquela santa e augustissima autoridade da Igreja, que, em nome de Deus,
preside ao gênero humano e é ultriz e tutela de todo poder legítimo, os inimigos de toda
ordem pública, conhecendo perfeitamente isso, não encontram meio mais odiento para
abalar seus fundamentos do que atacar constantemente a Igreja de Deus [...] como se ela
se opusesse à verdadeira civilização, e enfraquecendo cada vez mais [...] a sua
autoridade e força e abatendo o poder supremo do pontífice romano, guarda e vingador
sobre a terra dos princípios eternos e imutáveis da moralidade e da justiça. Daí se
originam as leis subversivas da constituição da Igreja católica, que, com dor imensa,
295
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. 10.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
O papa Leão XIII vai condenar estas doutrinas já no inicio de seu pontificado com a encíclica “Quod Apostolici
Muneris”. DOCUMENTOS DA IGREJA. V.12: Documentos de Leão XIII. São Paulo: Paulus, 2005. p. 35-48.
297
Consultar para o assunto da política conservadora da Igreja Católica no Século XIX: MANOEL, Ivan Aparecido.
O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960). Maringá: Eduem, 2004.
296
160
vemos promulgadas em muitos Estados; daí o desprezo da autoridade episcopal e os
obstáculos ao exercício do ministério eclesiástico [sic]298
Houve no Brasil uma mudança na atitude do episcopado como comentávamos acima, o
estreitamento das relações com a santa Sé não tardou a acontecer por aqui no século XIX com os
chamados bispos reformadores299 cuja atividade e influência começavam a ganhar corpo no
Brasil. Estes bispos reformadores é que vão modificando paulatinamente durante o século XIX a
mentalidade do episcopado brasileiro, que foram aos poucos saindo de debaixo das asas do
Estado, mas apesar do ataque da Igreja às doutrinas modernas cerceadoras do poder eclesiástico
nos Estados, o intuito não foi se desvincular das alianças que existiam com o poder, mas refutar
suas ideologias para permanecer controlando seu quinhão que existiu a partir do período
constantiniano onde sua influência não foi de mero guardião da ordem e da moral, mas de um
chefe de Estado que além das prerrogativas naturais desta função era investido pelo poder divino
para agir e influenciar em nome de Deus.
Antes do Concilio Vaticano I e sob influência do Concílio de Trento300 a formação do
clero foi sendo cada vez mais incentivada pelo centro da ortodoxia do catolicismo irradiado para
298
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.12: Documentos de Leão XIII. São Paulo: Paulus, 2005. p. 14.
A reforma que iria produzir frutos reais, ampliando-se numa cadeia crescente, teve inicio modesto no Pará, na
pessoa de D. Romualdo de Souza Coelho (1819-1841), que criou um circulo de influência do qual saíram, entre
outros seu sobrinho D. Romualdo Antonio Seixas, arcebispo da Bahia (1827-1860) e D. Marcos Antonio de Souza
(1827-1842). Entre outros bispos executores do concilio de Trento estavam seguindo a influência do Norte do país os
bispos de Mariana, Diamantina e São Paulo que trabalhavam a formação seminarística mais austera e ligada às
orientações da Santa Sé. Assim que a liderança da reforma atingiu o Sul do país a europeização será um fato, o clero
vai insistir no caráter sagrado e espiritual do padre e a pastoral começará a combater as superstições. As novas
tendências de separação entre os poderes civil e eclesiástico, em busca de maior autonomia da Igreja, levarão os
bispos a dar maior atenção as ordens emanadas de Roma, e aos poucos irão abalar o relacionamento amigável, de
tantos anos entre a Igreja e a maçonaria, até então unidas em vários movimentos e acontecimentos no país, o clero
vai assumindo funções mais amplas e reduzindo a participação leiga na Igreja através das associações religiosas e
irmandades. Este estado de coisa já é um reflexo das tensões que envolviam as relações entre a Igreja e a maçonaria
na Europa. BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia da Igreja no Brasil.
V. 2,2: Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 81-85.
300
Consultar para este assunto dos concílios: ALBERIGO, Giuseppe (Org.). História dos concílios ecumênicos. 2.ed.
São Paulo: Paulus, 1995.
299
161
toda orbe católica, ou seja, para alavancar uma reação a Santa Sé começou a insistir numa melhor
formação de seus pastores301 e os bispos reformadores brasileiros foram insistindo principalmente
na formação do clero bebendo na fonte desta ortodoxia (Roma), isto foi abrindo espaço para a
romanização da Igreja no Brasil, e o que vai provocar a chamada questão religiosa302, que já
abordamos sucintamente no segundo capítulo. O embate entre a hierarquia em fase de maturação
da romanização do catolicismo no Brasil e o Segundo Reinado ocorreu porque o Império
encontrava-se em seu apogeu (1848-1868) com a idéia de um governo forte e centralizador que
valorizava seu poder em todas as instâncias da vida pública, inclusive a ingerência303 do Estado
nos assuntos eclesiásticos. Neste contexto essa maior maturidade da Igreja em profunda
fermentação, sobretudo no episcopado, com uma consciência específica de seu papel missionário
diante da população e com sua autonomia em face do Estado não aceitou pacificamente a
desaprovação de uma orientação contra a maçonaria existente na Santa Sé.
A posição da Igreja Católica é antagônica, pois desejava um governo forte, de viés
absolutista que combatesse as ideologias modernas, mas ainda sonhava com a continuidade da
união sagrada entre “trono e altar”, entretanto não estava mais admitindo a ingerência do governo
nos assuntos que dizia respeito apenas a ela como instituição, ou seja, no campo religioso só a
Igreja poderia governar, mas em se tratando de uma tutela do Estado para se manter soberana no
país a aliança deveria permanecer como algo sacramental.
301
Consultar, por exemplo, a encíclica “Ubi Primum Arcano” de Pio IX sobre a reforma da disciplina religiosa em:
DOCUMENTOS DA IGREJA. V.6: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX. São Paulo: Paulus, 1999. p. 100-107.
302
Consultar para estes e outros assuntos de crise entre Estado e Igreja no Brasil o livro de: AZEVEDO, Thales de.
Estado e Igreja em tensão e crise. São Paulo: Ática, 1978.
303
Neste período encontram-se inúmeras resoluções nos arquivos do Império com inúmeros exemplos relacionados a
ingerência do Estado na rotina eclesiástica. Cf. ACMSP. Colleção das decisões do governo do Império do Brasil de
1868. Rio de Janeiro: Typographia NACIONAL, 1868. Tomo XXXI.
162
Isso não seria possível, já que a exemplo do que estava ocorrendo na Europa, e como tudo
deveria ser importado pelo Brasil em seus mínimos detalhes pela classe dominante brasileira, a
elite eclesiástica no Brasil:
[...] vinha acompanhando nos dois últimos decênios do segundo Reinado (1864-1889)
os movimentos de modernização, iniciados no Brasil, com as tendências a uma
reordenação da sociedade. [...] apanhados de surpresa com que os militares derrubaram
o trono imperial. E, no entanto, a hierarquia eclesiástica ficou atônita e atordoada com a
situação diferente que se criou para a igreja Católica, vistos os precedentes da agressiva
ideologia liberal na Propaganda Republicana que, durante duas décadas, carreou alguns
elementos da doutrina e de posições práticas bastante desfavoráveis aos interesses do
catolicismo e, concretamente, da comunidade eclesial brasileira304”.
1. O processo de reordenação das instituições políticas e sociais no Brasil
Apesar da tendência de reordenação da sociedade brasileira ser cada vez mais evidente na
segunda metade do século XIX, aonde até mesmo o catolicismo vinha buscando se reordenar
ideologicamente, já que buscava uma aproximação cada vez maior com a Santa Sé em matéria de
doutrina, implantando gradativamente a política de romanização emanada do centro de poder do
cristianismo católico que aglutina todo seu rebanho disperso pelo mundo, mas ainda
administrativamente se encontrava preso aos laços do padroado reafirmado pelo Império
brasileiro, após a sua quebra de laços com o colonialismo português.
304
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo (Org.). A Igreja Católica no Brasil e o Regime Republicano: um aprendizado de
liberdade. São Paulo: Ed. Loyola, 1990.
163
O advento da Proclamação da República305 para a população em geral foi uma surpresa,
mesmo porque a participação popular nunca foi um canal privilegiado para tomada do poder em
nenhuma nação, os atores que decidem são formados sempre por castas que manipulam o povo
incutindo sua ideologia, transmitindo seus interesses sendo a solução para o problema de todos,
como já comentávamos no terceiro capítulo, quando na verdade esse “todo” é descartado a seguir
no processo de distribuição de cargos ou privilégios desta minoria insignificante diante da
maioria enganada.
Após 18 dias da “Proclamação da República” com o decreto n. 29 de 03 de dezembro de
1889 o governo Provisório comandado pelo Mal. Deodoro nomeou uma comissão para elaborar o
projeto de Constituição da República que foi composta pelos seguintes membros: “Drs. Joaquim
Saldanha Marinho, na qualidade de presidente, Américo Brasiliense de Almeida Mello, na de
vice-presidente, e Antonio Luis dos Santos Werneck, Francisco Rangel Pestana e José Antonio
Pedreira de Magalhães Castro, na de vogaes306”.
Mas por que a Igreja Católica que durante mais de três séculos esteve vinculada ao poder
de Estado, ficou tão surpresa? Pelo menos é o que constatamos ao consultar documentos e
correspondências eclesiásticas deste período em questão. Até mesmo D. Macedo (ex)mestre de
Rui Barbosa, apesar de ter com este elaborado o projeto de separação entre Estado e Igreja no
305
A implantação da República Federativa se deu pelo Decreto N. 1 do Governo Provisório aos 15 dias de Novembro
do ano de 1889, que: “Proclama provisoriamnete e decreta como forma de Govêrno da Nação Brasileira a República
Federativa, e estabelece as normas pelas quais se devem reger os Estadois Federais”. Este decreto foi composto de 11
artigos. No artigo 1º “Fica proclamada provisoriamente e decretada como a forma de govêrno da nação brasileiraa
República Federativa”; o 11º artigo: “Ficam ancarregados da execução dêste decreto, na parte que a cada um
pertença, os secretários de Estado das diversas repartições ou ministérios do atual Govêrno Provisório. E foi
finalizado desta maneira: Sala das sessões do Govêrno Provisório, 15 de novembro de 1889, primeiro da república.
Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Govêrno Provisório. S. Lobo. Ruy Barbosa. Q. Bocayuva.
Benjamin Constant. Wandenkolk Corrêa; respectivamente: Ministro do Interior, Ministro da Fazenda e interinamente
da Justiça, Ministro da relações Exteriores e interinamente da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Ministro da
Guerra, e, Minsitro da marinha. Cf. ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de. História constitucional do Brasil. 3.ed.
São Paulo: Paz e Terra, 1991.
306
ANRJ. Dicon. Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, 1º fascículo, 15 de
novembro a 31 de dezembro de 1889.
164
Brasil, não demonstrou estar a par da situação que estava se desenvolvendo nos bastidores do
poder307.
Mesmo assim, a elite eclesiástica brasileira, procurou reagir a tempo para não saírem
despojados de seus direitos depois de tanto tempo de serviços prestados, já que a indenização por
esse longo período trabalhista parecia ser mais do que justo! Afinal não foi tão fácil assim
convencer os “dóceis” habitantes da terra brasilis a se submeterem a um rei, a sua fé, e a sua lei,
ou mesmo defender-se daqueles funcionários inacianos rebeldes que procuram à sua maneira com
o ferramental que dispunham naqueles tempos, fazer um trabalho autônomo do que estava
programado pelo projeto cruz – espada e que pela sua teimosia foram despejados sem direito
algum da terra onde tanta vida foi perdida, para que os “novos donos” da terra chegassem de
mansinho para dela desfrutar. O episcopado308 articulou-se e usou suas armas para não capitular
ante ao primeiro impacto causado pelo decreto de separação Estado - Igreja em janeiro de 1890.
Queremos que a sociedade brazileira toda inteira, comprehendida, respeite a religião,
ame a religião, não se separe da religião, antes em seus actos publicos ou privados, se
inspire nos dictames sagrados que ella impões a consciencia. Queremos os indivíduos,
as familias, a sociedade, observe fielmente o decalogo, observancia que, segundo o
grande economista Le Play e sua sabia escola, é o segredo da estabilidade e do bem
307
Ficou na historiografia convencionado que o texto foi elaborado em conjunto por D. Macedo e Rui Barbosa, no
entanto também é defendida a participação de D. Esberard com um dos mentores intelectuais do decreto 119-A de 07
de janeiro de 1890. Cf. PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafio e chance para a Igreja (I). Revista
Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 49, n. 195, p. 620-639, [jul./set.] 1989; PIVA, Eloí Dionísio. Transição
Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415432, [abr./jun.] 1990.
308
O bispo da Pará é citado por diversos historiadores da Igreja ou da história social como sendo o líder natural do
episcopado brasileiro a partir dos anos setenta do século XIX. Consultar por exemplo: AZZI, Riolando. O
movimento brasileiro de reforma católica durante o século XIX. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 34, n.
135, p. 646-662, [jul./set.] 1974; PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafio e chance para a Igreja (I).
Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 49, n. 195, p. 620-639, [jul./set.] 1989; PIVA, Elói Dionísio.
Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n.
198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990; LUSTOSA, Oscar Figueiredo. A Igreja Católica no Brasil República. São Paulo:
Paulinas, 1991; LUSTOSA, Oscar de Figueiredo (Org.). A Igreja Católica no Brasil e o Regime Republicano: um
aprendizado de liberdade. São Paulo: Ed. Loyola, 1990.
165
estar das famílias, da regeneração das raças, da honra e do esplendor dos grandes povos
prosperos309.
A constituição seria fato consumado apenas no dia 24 de fevereiro de 1891 sem ter o seu
Título Primeiro antecedido pela “benção” da Santíssima Trindade como ocorreu na primeira e
única Constituição Política do Império do Brasil. Isso, no entanto não foi novidade para a Igreja
católica que já estava através do trabalho de corpo-a-corpo que vinha sendo realizado por sua
hierarquia, que procurou atenuar os efeitos considerados negativos para o catolicismo desde o dia
7 de janeiro de 1890, quando pelo decreto de n. 119-A, realizou a separação Estado – Igreja,
sacramentado pela constituição, um assunto que a muito vinha sendo protelado pelo governo do
Império e que ao raiar da nova ordem política brasileira não conseguiu mais se sustentar como
vinha sendo sustentado apenas pela influência de membros eminentes do episcopado como, por
exemplo, D. Macedo, líder natural do episcopado brasileiro devido a sua experiência e poder de
articulação. O art. 72 da Constituição definiu a situação do catolicismo nestes termos:
SEÇÃO II Declaração de direitos Art. 72.
§ 3º) Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o
seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do
direito comum.
§ 4º) A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.
§ 5º) Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade
municipal, ficando livres a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em
relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis.
§ 6º) Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.
309
ACMSP. Documentação Avulsa, CBA-04-03-03: O episcopado brazileiro ao clero e aos fieis da Egreja do Brazil.
São Paulo: Typ Salesiana a vapor do Lyceu do Sagrado Coração, 1890.
166
§ 7º) Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de
dependências ou aliança com o govêrno da União, ou dos Estados.
§28º) Por motivo de crença ou de função religiosa, nenhum cidadão brasileiro poderá
ser privado de seus direitos civis e políticos nem eximir-se do cumprimento de qualquer
dever cívico.
§ 29º) Os que alegarem motivo de crença religiosa com o fim de se isentarem de
qualquer ônus que as leis da República imponham aos cidadãos, e os que aceitarem
condecoração ou títulos nobiliárquicos estrangeiros perderão todos os direitos
políticos310.
2. A (falsa) noção de se ter uma ideologia motora na formação da República
Como já trabalhado no segundo capítulo, e só reafirmando nossa posição, encontramos
nas obras raras do ANRJ documento(s) enviado(s) ao Congresso Nacional Brasileiro onde
havia(m) proposta(s) para as “Bazes de uma Constituição Política Ditatorial Federativa para a
Republica Brazileira311” preparada por Miguel Lemos e Teixeira Mendes e também no ACMSP
nos annaes do Congresso Nacional na “Sessão de 13 de dezembro de 1890” a discussão sobre
uma “Representação enviada ao congresso Nacional pelo Apostolado Positivista do Brasil,
propondo modificações no projeto de Constituição apresentado pelo governo312”.
Podemos constatar o pedido de separação entre Estado e Igreja almejando uma liberdade
mais ampla do que apenas a liberdade referente à limitação ao culto católico, pois como já vimos
anteriormente313 houve inclusive a defesa da liberdade de expressão para o clero opinar a respeito
do ensino religioso e sua conseqüente orientação aos seus fiéis ficando, portanto estes ideólogos
310
ANRJ. Cocac/Bib. microfilme 0001 COD. OR-F-SPO/004 OR 008 8, [Constituição da República dos Estados
Unidos do Brazil – 1891]
311
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 003 COD. OR-F-Bib/002 OR 041 9. [Projecto Pozitivista]
312
ACMSP. Annaes dos Srs. Deputados: sessões preparatórias de 4 a 14 de novembro e de 18 de dezembro de 1890;
constituinte de 15 de novembro a 31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. Volume I, 1891.
Appendice. p. 4.
313
Capitulo III Tópico 6 sobre “Educação: a exclusão do ensino religioso”.
167
positivistas longe de reproduzirem no Brasil o anticlericalismo que marcou o século XIX na
Europa.
Para demonstrar esta atitude separamos o parágrafo 7º do Centro Positivista enviado “Ao
Povo e ao Governo da República” podemos ler o seguinte: “Deverão ser salvaguardadas as
situações pessoaes dos funccionarios, quer civis, que ecclesiasticos, cujas funcções forem
supprimidas, ou passarem para o domínio da actividade privada314”, ou ainda outro, entre muitos
documentos produzidos pelo sempre presente Centro Positivista. Neste que se segue foi dirigido
ao redator da Gazeta de Notícias em que fez uma defesa de sua posição referente ao catolicismo:
Cuanto a o pozitivismo animado de ost(...) contra a fé católica, confundindo-o con o
(...) volteriano ou materialista que domina ainda parte ativa de nossas classes dirigentes,
é outra inverdade que (...) completo desconhecimento de uma doutrina cujo (papel)
político fundamental consiste na mais ampla liberdade espiritual, como sabem todos os
que aconpanhão a nossa propaganda no Brazil315.
Não podemos dizer que foi um período sem turbulências nas relações entre o clero e os
positivistas, no entanto, no que se referiam à liberdade e direitos das instituições ou das pessoas
individuais, os positivistas que se manifestavam através de documentos “oficiais” como estes
apresentados neste trabalho procuraram preservar o mínimo de garantias individuais, inclusive ao
catolicismo. Não podemos afirmar o mesmo quanto aos direitos defendidos pela hierarquia
católica, pois nem mesmo dentro do próprio ambiente religioso a situação foi de calmaria. Depois
de encerrada a constituição, como podemos ver a seguir, a hierarquia católica enfrentou
resistência dos religiosos aonde defendeu direitos sobre os bens de mão morta contestado pelos
religiosos.
314
315
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 003 COD. OR-F-Bib/002 OR 040 8, [Liberdade religiosa].
ANRJ. Cocac/Bib: microfilme 003 COD. OR-F-Bib/002 OR 042 6. [Resposta pozitivista].
168
3. Atrito em casa: divergência entre os religiosos e a hierarquia do catolicismo (1891)
O internúncio Francesco Spolverini foi criticado anonimamente [um catholico]316 após o
dia 13 do mês de maio do ano de 1891 na seção Várias, do “Jornal do Commercio” aonde a
matéria vinha com o seguinte título: “O Sr. Internúncio Apostólico e as Ordens Religiosas”
constando do seguinte texto abaixo transcrito:
Causou profunda e desagradavel impressão no coração de todos os catholicos
brazileiros a noticia, hoje publicada pelo Jornal do Commercio em suas Varias que M.
Spolverini, infelizmente representando a Santa Sé junto ao Governo dos estados Unidos
do Brazil, respondendo á consulta do Governo, affirmou que as ás ordens religiosas
não estão legal e canonicamente constituídas!
Quem diria que separada a Igreja do
Estado, viesse o representante da Santa Sé, que deveria ser o protector nato das ordens
religiosas, com uma informação falsa concorrer para a realização das medidas que
tendem tirar ás Ordens a liberdade que lhes garantio a Constituição de 24 de fevereiro!
Em que caracter, representando a quem, correu S. Ex. Revdma. Submisso, humilde e
officioso a responder ao Governo? Quererá tamben a extinção das ordens religiosas e a
absorção do seu patrimonio pelo Governo? Ou estará ainda em sua mente o plano por S.
Ex. combinado com o fallecido D. Antonio de Macedo, plano denunciado por Erasmo ?
Não podemos crêr que o representante de S. S. Leão XIII, que sempre tem profligado a
espoliação dos bens das ordens religiosas, tenha aceitado um papel incompatível com o
seu caráter de prelado da igreja Catholica. Seja como fôr, temos plena confiança que o
Congresso e o Generalíssimo não consistirão neste attentado contra a Constituição da
republica e aguardamos a publicação no Diario Official da informação do Sr.
Internúncio para discuti-la. Um catholico317. [sic]
316
Segundo Lustosa, este pseudônimo “um catholico” foi utilizado pelo jornalista e diretor da União de Recife José
Soriano de Souza na publicação do “Ensaio de Programa para o Partido Católico”. Provavelmente ele tenha
assinado este artigo “anônimo” no “Jornal do Commercio” para se posicionar combater Mons. Spolverini.
LUSTOSA. Oscar de Figueiredo. Igreja e Política no Brasil. São Paulo: Loyola – CEPEHIB, 1983. p. 11.
317
ACMSP. Documentação Avulsa. Pasta: CBA-04-03-03. [Correspondências da Internunciatura].
169
Esta indignação deveu-se ao fato ainda não resolvido entre o Governo e a Igreja sobre os
bens das Ordens religiosas, baseados no direito de aquisição de bens pelas corporações de “mão
morta” que se arrastou por um longo período desde o Império quando as Ordens religiosas foram
perdendo sua importância e representatividade na vida pública do país, fato que foi provocado
pelas constantes proibições, já tratado neste trabalho no segundo capítulo, onde o noviciado e a
entrada de religiosos estrangeiros foram minguando até a quase total extinção dos religiosos que
haviam prestado relevantes trabalhos ao país, só eram admitidos religiosos no país quando isso
representasse extremo interesse do governo brasileiro, e em relação aos seus bens, que não eram
poucos e quase todos doados pela piedade de fiéis, começaram a ser disputados pelo governo e
seus detentores. As corporações de “mão morta” estavam autorizadas pelo governo a apenas
possuírem os bens necessários ao seu uso, pois desde 1864:
o decreto legislativo n. 1225 de 20 de agosto de 1864 autorisou o governo a conceder as
corporações de mão-morta licença unicamente para adquirirem ou possuírem, por
qualquer titulo, os terrenos e prédios necessários para a edificação de igrejas, capellas,
cemitérios, etc..., e determinou que os bens de raiz adiquiridos pelas corporações de
mão-morta, na conformidade da Ord. Do Liv. 2º Tit. XVIII, Parag. 1º, sejão alienados
no prazo de seis mezes contados da sua entrega e o produto convertido em apólices da
divida publica, sob as penas da mesma Ordenação, exceptuados os prédios e terrenos
para os serviços das ditas corporações, e os que até agora tiverem constituído seu
patrimônio [...] Vimos que, desde a antiqüíssima data, tem o Estado usado do direito de
regular a acquisição, posse e alienação dos bens das ordens religiosas, e que o legislador
brazileiro o tem constantemente exercido, sem que até agora lhe fosse contestado [...]
anno de 1870318. [sic]
318
ANRJ. Cocac/Bib. microfilme 0002 COD. OR-Bib/001 OR 017 9, [bens de mão-morta]. p. 6-7.
170
Questionado pelo Governo a respeito dos bens319 das ordens religiosas, o núncio Mons.
Spolverini recorreu ao episcopado solicitando um parecer sobre este assunto, como por exemplo,
ao bispo de São Paulo, quando enviou uma correspondência datada de 11 de abril de 1891. D.
Lino respondeu dando seu parecer recebido por Mons. Spolverini no dia 19 de abril, data em que
seria cobrado pelo núncio o não recebimento de sua interpelação. O parecer de Mons. Spolverini
foi publicado no Diário Oficial320 no dia 13 de maio, Mons. Spolverini pediu o apoio do
episcopado à sua resposta ao governo recorrendo à necessidade de extrema união do episcopado
entre si e com a nunciatura devido ao grave momento que a Igreja enfrentava neste início de
governo republicano321. Apesar da Constituição de 24 de fevereiro de 1891 não ter o tom
jacobino temido por todo episcopado, os assuntos que se referiam a Igreja foram tratados pela
nunciatura e o episcopado com a máxima prudência para não abalar ainda mais a relação do
catolicismo com o governo republicano.
319
Problemas relacionados aos bens da Igreja não ficou restrito ao Estado brasileiro, pois foi inclusive uma das
tratativas de uma encíclica logo no início do pontificado de Leão XIII, INSCRUTABILI DEI CONSILI, já citada no
capítulo anterior nas questões sobre o matrimônio e a educação vai tratar também dos bens da Igreja em seu terceiro
parágrafo desta maneira: Daí se originam as leis subversivas [...] vemos promulgadas em muitos Estados [...] a
dispersão das famílias religiosas, os confisco dos bens destinados ao sustento dos ministros da igreja e dos pobres; a
emancipação dos institutos públicos de caridade e beneficência da salutar direção da igreja [sic]. DOCUMENTOS
DA IGREJA. V.12: Documentos de Leão XIII. São Paulo: Paulus, 2005. p. 14.
320
Consultar cópia do original nos anexos: Diario Official Republica dos Estados Unidos do Brasil. Anno XXX – 3.º
da Republica – N 127 Rio de Janeiro Quarta-Feira 13 de maio de 1891.
321
Exmo. E revmo. Snr. Não tendo ainda recebido a resposta de V. Exa. Revma. A minha carta de 11 do corrente,
apresso-me a comunicar-lhe aqui inclusa, a que eu entenciono enviar as perguntas do Ministro da Justiça no negocio
dos bens da ordens religiosas. O Snr. Barão de Lucena a minha confidencial e verbal pergunta sobre o seu parecer
acerca da destinação dos bens das Ordens respondeu: “Os bens são da Egreja, e devem voltar para Egreja.” É por
isso que eu achando-me de accordo com o Snr Barão de Lucena neste ponto e persuadido pelo mesmo Barão que o
fim das perguntas é justificar a medida do governo para impedir a dilapidação dos ditos bens, ameaçados pelos
Benedictinos, julguei muito mais necessário e util expor na minha resposta (que provavelmente será publicada) os
principios catholicos contra os inimigos, do que responder singillatim sobre a situação de cada uma das corporações
religiosas. Queira V. exa. encamina-lo e me telegraphar terça feira se a approva.Com sentimentos de particular
estima e consideração me subscrevo. De V. Exa. Rma. Dedicado servo e amigo sicero, [...] Spolverini. [...] P.S.
Recebo neste momento a resposta de V.E. que não responda aos quesitos do Barão de Lucena. meo propósito da
resposta aqui ainda divulgo os quesitos. Peço o grande favor de não me tornar o telegramma pedido acima sim
todavia eras comprehender ao jubilo o sujeito da matéria. ACMSP. Documentação Avulsa. Pasta: CBA-04-03-03
[Correspondências da Internunciatura].
171
Estando ainda pendente a discussão na câmara sobre os bens de mão morta das Ordens
Religiosas a resposta de Mons. Spolverini foi um esforço para fazer valer o artigo 72 parágrafo 3
da constituição que garantiu para todos os indivíduos e confissões religiosas o direito de exercer
pública e livremente seu culto, ou mesmo adquirir seus bens322. Esta iniciativa de defender os
bens da Igreja não foi nada mais então do que o catolicismo exercer um direito constitucional,
repito, garantido pela então recente constituição brasileira de 1891.
Por isso a insistência do internúncio Mons. Spolverini em manter o episcopado coeso e
neste requerimento do Governo da República estar sua resposta em consonância com o parecer de
todo episcopado.
Petropolis, 14 de Maio de 1891. Exmo. e Revmo. Snr. Pelas carta aqui juntas V. Exa.
Revma. Verá como eu respondi as duas perguntas do governo relativamente a situação
actual das ordens religiosas e a propriedade dos bens D´ellas. Se há momento, em que é
necessária a mais perfeita união de todos os Bispos entre si, e de todo o Episcopado
Brasileiro com o representante da Santa Sé, tanto nos princípios, tanto na acção
commum é precisamnete este em que trata-se da vida material da egreja do Brazil. Se
V. exa. achar, como eu julgo, util para fortalecer essa união e para obter que o
Congresso entregue a Egreja do Brazil os seus bens, queira enviar-me sem demora uma
carta, para ser publicada, em que V. Exa. Na certeza que V. Exa. se compenetrará da
importancia e da gravidade do momento, tenho o prazer de renovar-lhe as seguranças de
minha affectuosa veneração. [...] Spolverini Internúncio Apostolico323
322
Consultar para este assunto: ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de. História constitucional do Brasil. 3.ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1991;MANOEL, Ivan Aparecido. D. Antonio de Macedo Costa e Rui Barbosa: A Igreja Católica
na ordem republicana brasileira. Revista Pós-História, Assis, v. 5, p. 67-81, 1997.
323
ACMSP. Documentação Avulsa. Pasta: CBA: 04-03-03. [Correspondências da Internunciatura].
172
D. Lino respondeu então afirmativamente ao apelo do núncio Mons. Spolverini em
correspondência de 18 de maio324. Este foi o último episódio vivenciado por Mons. Spolverini,
que anteriormente se envolveu numa confusa tentativa de reorganização325 do quadro episcopal
no território brasileiro que foi um tanto complexa, devido aos entraves políticos envolvendo a
diocese do Rio de Janeiro governada por D. Lacerda (segundo a análise da época, feita por alguns
historiadores citados neste trabalho e que discutem esta transição histórica, o bispo do Rio de
Janeiro esteve em última análise mais alinhado as orientações da Santa Sé que propugnava o ideal
de um governo forte e centralizado representado pelo modelo de monarquia absolutista, com isso
D. Lacerda pode ser considerado um monarquista326).
4. Indicações e remanejamento do episcopado brasileiro no alvorecer republicano
A diocese do Rio de Janeiro foi considerada por Mons. Spolverini ponto chave na
articulação entre a Santa Sé e o governo brasileiro, já que ali se encontrava o centro de decisão do
governo brasileiro, mas as indicações e transferências de candidatos ao episcopado propostas por
324
Exmo. Revmo. Snr. Respondendo a circular de V. Exa. com data de 14 do corrente tenho a satisfação de
testemunhar a V. Exa. a minha inteira adhesão: 1º a exposição feita por V. Exa. sobre a organização e administração
actual das ordens religiosas; 2º sobre a doctrina exposta por V. Exa. sobre alienação de bens religiosos, declarado
absolutamente nulla, aquella em que não se observar a extravagante Ambitiosa de Paulo II, e assim mantenha com V.
Exa. digno representante da Sta. Sé a mais perfeita solidariedade. Se porem o poder civil (o que não é de esperar)
abusando do direito da força apoderar-se dos bens da Egreja restará a V. Exa. a consolação de haver cumprido
nobremente o seu dever. Approveito a opportunidade para dar testemunho publico do muito que V. Ex.a tem feito
pela Egreja n´este paiz, identificando=se com seus legítimos interesses e propgnando affamosamente a sua
prosperidade e florescimento. Reitero os protestos de minha estima. Exmo. E Revmo. Mons. Franco. Spolverini.
Digmo. Representante da Sta. Sé no Brazil. Projecto de resposta. ACMSP. Documentação Avulsa. Pasta: 04-03-03.
[Correspondências da Internunciatura].
325
Para este assunto consultar: PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II).
Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990.
326
Esta observação é válida não apenas para a alta hierarquia do catolicismo no Brasil, Sérgio Miceli ao comentar em
seu trabalho a rota de colisão traçada desde antes a Proclamação da Republica no Brasil entre membros do
episcopado descontentes com a ingerência do Estado na vida eclesiástica em vias de forte romanização relata que por
outro lado havia membros do clero: “os prelado postos naquele momento crítico acabaram lançando mão de diversos
expedientes para resistir a tais ‘intromissões’ que, por sua vez, desagradaram inúmeros membros do clero temerosos
de mudanças capazes de afetar sua condição privilegiada de ‘funcionários públicos’. [...] as reclamações e agravos do
baixo clero, muito mais leal ao trono do que aos seus superiores hierárquicos”. Cf. MICELI, Sérgio. A elite
eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. p. 17-18.
173
Mons. Spolverini causaram alguns atritos de opinião entre o internúncio, parte do episcopado,
superiores de Ordens religiosas e conseqüentemente com seu superior hierárquico, o Secretário
do Estado Vaticano, Card. Mariano Rampolla del Tindaro327. As propostas de indicação de
candidatos a transferência e ao episcopado feitas por Mons. Spolverini foram rápidas como a
situação exigia, mas fugazes, pois as alterações328 foram inúmeras e constantes, o que causou
certo descontentamento do Card. Rampolla, que para tomar as decisões a este respeito precisava
consultar outros membros do clero e realizar um consistório onde eram discutidas cada indicação
transmitida por Mons. Spolverini, pois em se tratando de situação delicada como a que estava
ocorrendo no Brasil correr o menor risco de erro possível:
[...] o objetivo imediato é o de ‘fazer entrar no Episcopado sacerdotes de conduta
exemplar, instruídos, zelosos e devotos a Roma’ [...] Com efeito nesta tarefa Spolverini
move-se prontamente. O primeiro pacote de proposições, contendo os nomes dos
candidatos ao episcopado [...] leva a data de 18 de janeiro. A composição proposta a
Rampolla é a seguinte: transferência de Joaquim José Vieira, bispo de fortaleza, para a
diocese de Porto Alegre [...] na suposição da renuncia de Lacerda, transferência de José
Pereira da Silva Barros, bispo de Olinda, para a diocese do Rio de Janeiro. Porém,
passados apenas oito dias, Spolverini sugere a primeira alteração. [...] Mais ainda
[...]329.
327
Formado em Direito Civil e Canônico. Nomeado em 1875, conselheiro na nunciatura de Madrid. Em 1877
nomeado para a Sagrada Congregação para Assuntos da Igreja no Oriente. Em 1882 foi nomeado núncio apostólico
em Madrid, após cinco anos o papa Leão XIII o nomeou Secretario de Estado exercendo este oficio até o ano de
1903, em 1887 também foi elevado a cardinalato; faleceu no ano de 1913 aos setenta anos. Cf. PIVA, Elói Dionísio.
Transição Republicana: desafio e chance para a Igreja (I). Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 49, n. 195,
p. 620-639, [jul./set.] 1989.
328
Para maiores informações consultar a tese de láurea em História da Igreja, defendida na Pontifícia Universidade
Gregoriana de Roma, sob a direção do Pe. Miguel Batllori e moderação dos Padres Eduardo Cárdenas e Giacomo
Martina, em março de 1985, sob o titulo: Transição Império-República: desafio para a Igreja no Brasil. (APUD)
PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafio e chance para a Igreja (I). Revista Eclesiástica Brasileira,
Petrópolis, v. 49, n. 195, p. 620-639, [jul./set.] 1989.
329
Consultar para este assunto: PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II).
Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990.
174
As alterações não paravam de ocorrer e Spolverini insistia numa reposta breve de Roma já
que a reunião dos bispos, marcada para agosto, estava se aproximando e com isso começou a
pressionar o Card. Rampolla atrás de uma solução mais imediata: “Spolverini volta a insistir:
‘Suplico nomes dos Bispos preconizados’, e Rampolla, [...] comunica-lhe a resolução do
Consistório: Dom Luis Antônio [...] Quanto a D. Pedro Maria de Lacerda, o Consistório não
achou prudente, por ora, tomar alguma resolução a respeito330”.
A necessidade de dilatação da hierarquia episcopal no Brasil naquele momento foi
largamente discutida, não faltaram melindros nesta disputa de posições privilegiadas para se
assumir a “jóia da coroa”, que naquele momento, como já comentado, era estratégica para as
pretensões da Igreja Católica no Brasil, Mons. Spolverini deixou transparecer certa preferência
pelo bispo de Olinda D. José Pereira da Silva Barros.
Esta indicação e a indecisão de D. Lacerda em deixar o posto que ocupava rendeu
inúmeras discussões e acusações. “Assunto estratégico e delicado, visto que, em torno de Dom
Pedro Maria de Lacerda, se aglutinava parte da resistência ao regime político331”.
4.1. O Internúncio Mons. Spolverini no cenário político-religioso brasileiro
A “ausência temporária” do Mons. Spolverini do cenário político brasileiro foi
comunicada pelo recém nomeado representante interino da Santa Sé no Brasil, Mons. Domingos
Gualtieri conforme correspondência enviada ao bispo de São Paulo D. Lino Deodato.
Após toda discussão em torno dos bens das Ordens Religiosas, antecedido pelo jogo
político de nomeações e remanejamento do episcopado, a substituição mais traumática parece ter
330
Consultar para este assunto: PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II).
Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990. p. 420-423.
331
PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica
Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990. p. 423.
175
sido a de D. Lacerda da diocese do Rio de Janeiro que a princípio foi sugerida (a substituição)
pelo colaborador imediato de Mons. Spolverini no corpo-a-corpo que se realizou nos bastidores
da assembléia constituinte, D. José da Silva Barros, bispo de Olinda.
Spolverini inicialmente recebeu apoio do Card. Rampolla, que inclusive o autorizou falar
que a renúncia teria sido uma sugestão do papa Leão XIII. Mas em meio às tratativas, quando
Mons. Spolverini começou a ter apoio de seus superiores hierárquicos e sugere a D. Lacerda seu
afastamento este se desvencilha da proposta alegando que a renúncia naquele momento não seria
de seu agrado. Em meio a este embate D. Lacerda dirigiu-se diretamente a Rampolla, que por sua
vez dirige-se aos superiores das Ordens Religiosas332 no Brasil pedindo-lhes informações sobre
as condições de D. Lacerda, até mesmo porque Mons. Spolverini o havia acusado de estar com a
saúde mental debilitada.
A princípio o superior jesuíta, Giuseppe Mantero, pareceu estar de acordo com a
observação de Spolverini, mas recua e diz que “melhor que Macedo Costa teria Lacerda
assessorado Spolverini na tarefa de recomposição do episcopado brasileiro e, por diversas razões,
o atual Internúncio não se porta à altura de sua missão333”. O Pe. Sipolis, superior lazarista
prefere se reportar ao seu superior geral334 e como informa Elói Piva, é uma referência indireta,
onde comunicou a discordância de D. Lacerda ao nome de D. José da Silva Barros, proposto para
substituí-lo, a atitude também poderia ter relação com a atitude de D. Lacerda num passado
próximo ao trazer os padres lazaristas para administrarem os dois seminários da diocese.
332
A saber: o jesuítas Guisuppe Mantero, o lazarista Barthélemy Sipolis e o capuchinho Fedele d´Avola. Cf. PIVA,
Elói Dionísio. Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica Brasileira,
Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990.
333
PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica
Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990.p. 425.
334
Superior Geral dos lazaristas: Pe. Fiat. Cf. PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafios e chances para a
Igreja (II). Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990.
176
A situação torna-se mais confusa quando Mons. Spolverini acusa o superior jesuíta no Rio
de Janeiro de estar manipulando D. Lacerda e sugere a Rampolla que imponha um bispo auxiliar
não deixando alternativa para a livre decisão do prelado da diocese carioca e argumenta que o
bispo é uma pessoa de trato difícil, o que foi confirmado no comentário de D. Macedo em
correspondência a Rampolla: “Numa palavra, um santo, bastante instruído, mas um bispo
impossível335.
Após todo este desencontro de opiniões e depois de divulgada a lista das nomeações e
transferências do episcopado próximo a reunião de agosto em São Paulo, foi enviada uma
proposta pelo superior jesuíta do Rio de Janeiro, Giuseppe Mantero, em concordância com D.
Lacerda para que João Esberard fosse alçado a bispo auxiliar naquela diocese336. A proposta foi
analisada conjuntamente por Esberard, D. Macedo e Spolverini que achou a proposta intrigante,
mas não se opôs a princípio com a condição de que toda a administração da diocese carioca
passasse para o controle de Esberard. No entanto Spolverini passou a se opor a esta indicação de
última hora por desconfiar de ter havido um arranjo entre os lazaristas, D. Lacerda e o próprio
Esberard.
Dois foram os motivos apresentados por Spolverini para se opor ao que chamou de
arranjo entre os lazaristas e D. Lacerda: primeiro porque em sendo Esberard um estrangeiro e
tendo defendido os bispos na “Questão Religiosa” o clero local poderia rejeitá-lo, o segundo
motivo é o de seu envolvimento político-partidário ao comprar o jornal “O Brasil” com
financiamento dos lazaristas e conselhos do jornalista Carlos de Laet que passou a defender a
335
MC. a R., c., 10-05-90: ASV, SpR, bl, Fb, 2ffvr-1ºfv, para a citação. (APUD) PIVA, Elói Dionísio. Transição
Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198,
[abr./jun.] 1990.p. 426.
336
Cf. PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica
Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990.
177
restauração monárquica, portanto ideologicamente contrário ao Governo Provisório e
conseqüentemente contrários ao republicanismo que estava se instalando no poder.
Para Spolverini a indicação de Esberard para a diocese do Rio de Janeiro seria um
retrocesso no processo de aproximação pretendido pela hierarquia católica para conseguir o
máximo de garantias possíveis para a continuidade dos projetos de expansão e solidificação do
catolicismo no Brasil republicano.
Neste jogo de situações Rampolla deduziu que a sucessão no Rio de Janeiro estava sendo
uma disputa pessoal entre o internúncio e o bispo da sede carioca, com isso tomou a decisão de
fazer com que Spolverini se retraísse nas negociações para a renúncia de D. Lacerda passando o
encargo para o superior lazarista Sipolis. Este foi o decreto de condenação de Spolverini, pois
para confirmar suas desconfianças de arranjo feitas entre D. Lacerda, Sipolis e Esberard o novo
mediador da situação, Sipolis, além de reafirmar o nome de Esberard para bispo auxiliar da
diocese carioca, propôs o nome de D. Arcoverde para a diocese de Olinda e completou seu
trabalho fazendo o seguinte comentário: “a respeito de Spolverini afirma: por causa de suas
imprudências ele destrói e deixa destruir a Igreja no Brasil337”, opinião comungada com o
superior dos jesuítas Giuseppe Mantero.
Como podemos observar a relação entre o internúncio338 e os superiores das Ordens
religiosas não foi das melhores neste período, razão pela qual podemos deduzir sua postura ao
337
MC. a R., c., 10-05-90: ASV, SpR, bl, Fb, 2ffvr-1ºfv, para a citação. (APUD) PIVA, Elói Dionísio. Transição
Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198,
[abr./jun.] 1990.p. 427 – 429.
338
Tenho a honra de comunicar a V. exa. Rvma. que o Exmo. Snr. Internúncio Apostólico, Monsenhor Francisco
Spolverini, partio hontem para Genova com destino a Roma no gozo de uma licença temporária que obteve do Santo
Padre, e que davante a ausencia do mesmo [...] foi a minha humilde pessoa conferido o cargo de encarregado dos
negocios da Santa Sé nesta Internunciatura Apostolica com todas as faculdades do mesmo Monsenhor Spolverini.
[...] na ardua tarefa da gerencia interina desta internunciatura enpenhar-me-hei com a maior dedicação [...] a alta
confiança com que sem merecimento algum vejo-me distinguido, como tambem, a fim de manter com V. Exa. as
mais cordiaes relações, e merecer sua generosa benevolência. ACMSP. Documentação Avulsa. Pasta: 04-03-03.
[Correspondências da Internunciatura].
178
responder abertamente ao governo brasileiro a questão sobre os bens de mão morta pertencentes
às Ordens Religiosas e a publicação anônima de “um catholico339” destacada acima atacando o
internúncio e deixando transparecer uma disputa entre as partes, depois de analisar todo o
contexto de reprovações mútuas. Mons. Spolverini contou com o apoio do prestigiado D. Macedo
que interveio a seu favor.
4.1.1. D. Macedo e a questão sucessória na diocese do Rio de Janeiro
Em meio a este jogo político a voz que se fez ouvir foi a de D. Macedo ao interferir nesta
situação que parecia estar decidida em favor dos lazaristas na pessoa de seu superior no Brasil, o
Pe. Sipolis, que defendia a nomeação de João Esberard, após a inesperada morte de D. Lacerda
no dia 12 de dezembro de 1890. Mons. Spolverini ainda insistia com Roma para que fosse
nomeado um bispo que tivesse maior facilidade de aceitação pelo governo brasileiro, o que
segundo Spolverini e as evidências, não era o caso de João Esberard, que já havia demonstrado
sua posição quando acusou publicamente o Governo republicano de ser ateu, e que D. Macedo
relacionou em suas correspondências enviadas para Santa Sé, endereçadas ao papa Leão XIII e a
Mons. Mocceni.
Segundo a opinião de Rampolla a situação já estava decidida em favor de João Esberard,
mas D. Macedo agiu eficazmente conseguindo dissuadi-lo desta certeza e finalmente conseguiu
colocar na diocese do Rio de Janeiro o prelado que em sua opinião e de Mons. Spolverini teria
melhor jogo de cintura para atuar no cenário político que se apresentava. Não seria fácil mesmo
contando com um bispo diplomático como D. José da Silva Barros, e que se confirmasse a
nomeação do monarquista João Esberard poderia ter desarticulado todo trabalho até então
realizado nos bastidores da constituinte como comentamos acima, e só para relembrar, foi
339
ACMSP. Documentação avulsa. Pasta: CBA-04-03-03. [Correspondências da Internunciatura].
179
iniciado por Mons. Spolverini e que contou com a colaboração de D. José da Silva Barros e D.
Macedo, logo que retornou de sua viagem a Roma. A situação que envolveu esta disputa pela
diocese do Rio de Janeiro com a morte de D. Lacerda ficou assim definida pelo Card. Rampolla:
revendo as posições anunciadas. Concretamente, transfere Dom José Pereira da Silva
Barros da diocese de Olinda para a do Rio de Janeiro; convida Esberard a tomar posse,
sem tardança, da diocese de Olinda para onde já tinha sido designado, e deixa
Arcoverde, por ora, sem destinação alguma. Mas não se deixa passar esta revisão por
menos: Leão XIII confia Barros à prudência e ao discernimento de Macedo Costa; a
seus cuidados confia outrossim, a manutenção e o incremento da concórdia entre o
poder civil e o eclesiástico no Brasil340.
No entanto com a morte de D. Macedo em março de 1891 e pela aparente falta de
unanimidade em Roma na decisão de nomear D. José da Silva Barros para a diocese do Rio de
Janeiro, as bases políticas de sustentação do recém nomeado bispo ruíram, a Santa Sé retornou a
opção inicial de nomear João Esberard para bispo da diocese carioca com o titulo de arcebispo,
Barros é promovido e aposentado com o titulo honorífico de arcebispo de Darnis e finalmente
Arcoverde é nomeado bispo auxiliar de D. Lino em São Paulo. Spolverini foi convidado para
regressar para Roma.
Uma correspondência341 do dia 16 de junho de 1891, enviada por Mons. Domingos
Gualtieri ao bispo de São Paulo, colocou ponto final nesta questão que opôs veladamente o
internúncio e as Ordens Religiosas supra citadas no Brasil.
340
PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica
Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, [abr./jun.] 1990. p. 431.
341
[...] o Exmo. Snr. Internúncio Apostólico, Monsenhor Francisco Spolverini, partio hontem para Genova com
destino a Roma no gozo de uma licença temporária [...]. Cf. ACMSP. Documentação avulsa. Pasta: CBA-04-03-03.
[Correspondências da Internunciatura].
180
Quanto à discussão sobre os bens de mão morta, outro calcanhar de Aquiles na relação:
internúncio com os religiosos foi um assunto que ultrapassou a discussão da constituição de 1891,
mas que por ora a situação ficou assim:
[...] a República adotou o princípio da igreja livre em estado livre [...] Pelo artigo 72 da
carta Maior todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e
livremente o seu culto, associando-se para este fim e adquirindo bens, observadas as
disposições do direito comum. Nota-se, portanto, que os diversos cultos poderiam
fundar suas igrejas e até adquirir bens observando apenas as disposições do direito
comum. Aqui percebe-se que o Estado nada mais influencia na igreja, porem impõe-lhe
regras. [...] A partir do momento em que existem associações religiosas, estas devem
possuir personalidade jurídica, pois, no direito constitucional brasileiro, desde que se
procedeu a separação entre a Igreja Católica e o Estado, a Santa Sé é pessoa de direito
internacional e as associações religiosas, simples pessoas jurídicas de direito privado.
Aqui é possível fazer um paralelo com o artigo 72 da Carta Política vigente na época.
Este artigo dizia que as associações religiosas deveriam respeitar o direito comum, e de
acordo com o dito acima, isto é, essas associações serem pessoas jurídicas de direito
privado, nada mais correto do que elas respeitarem o direito comum a todas as
associações de direito privado. No entanto, a restrição feita não fica bem colocada, pois
outras associações podem dispor de seus bens, e as religiosas não342.
Os bens de mão-morta continuaram em posse das Ordens Religiosas e da Igreja que
manteve seu patrimônio não sendo, portanto desapropriados nem a título de interesse público.
342
Consultar para este assunto: CARNIETTO, Alexsandro; SOUZA, André Luiz de. et al. Igreja – Sociedade
Política: a importância, o poder e a manifestação do aspecto político e jurídico. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n.
42, Jun 2000.
181
5. A postura diplomática do episcopado na separação Estado – Igreja no Brasil
Segundo Bruneau, os bispos almejaram maior independência com relação ao Estado,
mas com certeza não esperavam completa exclusão. Seriam três as razões para o
Governo ter excluído tão radicalmente a Igreja. Primeira, porque as lideranças
religiosas seriam concorrentes das políticas. Além disso, se a Igreja foi parceira oficial
da Monarquia, deveria cair junto com ela. Segunda, porque a Igreja não tinha influência
junto à nova liderança política liberal. Terceira, porque, sendo novo o regime e
inexperiente seus líderes, julgavam possível prescindir da legitimação da religião para
manter o poder343.
Juntando-se as três proposições apresentadas acima por Bruneau que foram extraídas de
uma análise histórica contextualizada do Brasil, acrescentamos também outra proposição para o
aparente desprezo à força política do catolicismo, também se originaram na história recente da
Europa e como copista por excelência, a casta de intelectuais do Brasil não deixou de reproduzilas aqui, mesmo porque nas discussões do governo provisório foi recorrente a expressão de que o
catolicismo não representava uma força como na França ou na Alemanha, mas essa força no que
diz respeito à participação do clero e do episcopado no cenário político brasileiro encontrou sua
razão de ser a partir da política dos bispos reformadores que se afastam decididamente da área
política e se concentram na missão pastoral344, mas não deixa de ser verdade que a hegemonia de
outrora do catolicismo estava já abalada anterior ao movimento de reforma empreendido aqui no
Brasil, como vemos abaixo:
343
CASILI, Alípio. Elite intelectual e restauração da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1995.
Para este assunto consultar o artigo: AZZI, Riolando. O movimento brasileiro de reforma católica durante o
século XIX. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 34, n. 135, p. 646-662, [jul./set.] 1974.
344
182
Com a revolução [francesa] acaba definitivamente a hegemonia ideológica do
catolicismo [...] na Europa ocidental [ex-feudal] marca o declínio do catolicismo que,
de uma posição de hegemonia passa a uma posição subalterna [...] a conseqüência desta
nova situação é essencial: em nível ideológico, a religião católica não é mais a
concepção do mundo da classe dirigente acha-se reduzida à condição de ideologia de
grupos subalternos e mesmo dos mais atrasados; da mesma forma, e ao nível do
controle da sociedade civil: grande parte dos domínios, até então sob controle da igreja,
agora lhe escapam. É o conjunto da sociedade civil tradicional que se desagrega345.
Esta hegemonia ideológica, pretendida pelo catolicismo no Brasil, havia sido quebrada há
muito tempo desde que o Estado legitimista teve que fazer concessões políticas e ideológicas ao
liberalismo, como já vinha ocorrendo na Europa desde o final do século XVIII. Aqui no início do
século XIX, apesar da união formal entre Estado e Igreja em decorrência do regime de padroado
mantido por insistência de D. Pedro I após a “independência” do domínio português (agravandose com a venda da alma do Estado brasileiro ao domínio explorador do imperialismo inglês que
procurou impor, além de seus produtos manufaturados, inúteis a realidade brasileira, já
apresentados no segundo capítulo deste trabalho através do trabalho-pesquisa de Patrick Wilcken,
e a exigência de liberdade religiosa para os anglicanos que se estabeleceram no território
brasileiro, muitos comerciantes por sinal, para revender o excesso da produção da indústria
inglesa e explorar a falta de opções da insipiente indústria nacional)346.
Também ideologicamente347 ficamos atrelados aos pensamentos e interesses importados,
não havia condições propícias para se formar ou adaptar uma ideologia a realidade brasileira, o
345
PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questão religiosa. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 95.
Para maiores detalhes indicamos a obra de: WILCKEN, Patrick. Império a deriva: A Corte portuguesa no Rio de
Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
347
Cf. RÉMOND, René. O Século XIX 1815-1914. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
346
183
homem culto foi aquele que teve condições de se formar de acordo com os grandes centros
europeus:
[...] é na Europa que se realizam as mudanças mais decisivas, as que transformam a
sociedade, as que modificam a existência. È também na Europa que as grandes
correntes de idéias nasceram, que surgiram a revolução técnica, a transformação
econômica, a experiência política, que constituem outras tantas forças novas. O ritmo
da história aí é mais rápido, e os demais continentes em relação à Europa, parecem
imóveis [...] Sua história quase não se renova [...] o que se passa na Europa repercute no
mundo inteiro. O inverso não é verdade, pelo menos no século XIX348.
Com o catolicismo também não foi diferente, haja vista que o próprio catolicismo foi uma
imposição ideológica européia dos impérios colonizadores a outros povos, e por isso não foi
diferente quando o catolicismo no Brasil do século XIX começou a se realinhar novamente com
as diretrizes de sua célula mãe sediada na Europa. Já havia um desejo emanado da Santa Sé de
manter a coesão do episcopado católico em cada país e com a Santa Sé através da política de
romanização.
A “Pastoral Coletiva349” elaborada pelo episcopado e dirigida ao clero e a população foi
mais um ato político de demonstração de força e união de que lançou mão nossa casta religiosa
para enfrentar os estamentos políticos e as castas de intelectuais do novo sistema de governo em
formação. A elite dirigente foi de certa forma obrigada a ser diplomática e não tomar nenhuma
postura anticlerical, o que evitou conseqüências indesejáveis num possível confronto entre
348
Cf. RÉMOND, René. O Século XIX 1815-1914. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
ACMSP. Documentos em fase de catalogação: O episcopado brazileiro ao clero e aos fieis da Egreja do Brazil.
São Paulo: Typ Salesiana a vapor do Lyceu do Sagrado Coração, 1890. de 19 de março de 1890.
349
184
orgulhos pessoais, deixando a população pobre e desinformada fora dos acontecimentos que
estavam agitando as elites do país, pois:
Lutas ideológicas num país de fraca consciência política como o Brasil, nunca têm sido
muito claras e definidas nem muito conscientes por parte da maioria da população.
Prevalecem sempre os personalismos e a articulação em torno de pessoas [...] Os
posicionamentos são frutos mais da intuição dos problemas e de uma atitude emocional
do que a compreensão racional e consciente dos mesmos e das alternativas para o
processo histórico da nação350.
A população era de uma maioria esmagadora (pelo menos teoricamente) constituída de
católicos, os republicanos não poderiam se dar ao luxo de ignorar este dado, apesar de sempre
haver, em todo meio, os exaltados, que pretendem partir para o confronto aberto em diversas
situações da vida social e política, o que não ocorreu, sendo que este desgaste parecia mesmo
desnecessário e contornável, mesmo para os exaltados351.
O episcopado como vimos acima estava mais envolvido desde o final do primeiro reinado
com o processo de romanização empreendido pela Santa Sé (e irradiado para toda orbe católica)
350
BRUM, Argemiro Jacob. O desenvolvimento econômico brasileiro. 8. ed. Petrópolis: Vozes; Ijuí: FIDENE, 1987.
p. 76.
351
Para se ter uma noção mesmo que superficial sobre este assunto não é preciso fazer uma pesquisa muito
minuciosa devido a grande quantidade de exemplos que se pode obter nos documentos citados a seguir encontrados
no ACMSP: ACMSP. Annaes dos Srs. Deputados: sessões preparatórias de 4 a 14 de novembro e de 18 de dezembro
de 1890; constituinte de 15 de novembro a 31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. Volume I,
1891; ACMSP. Annaes da Camara dos Deputados: primeira Sessão da Primeira Legislatura e sessões de 1 a 31 de
agosto de 1891. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. Volume II; ACMSP. Annaes da Camara dos Deputados:
primeira Sessão da Primeira Legislatura e sessões de 1 a 30 de setembro de 1891. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1891. Volume III; ACMSP. Annaes da Camara dos Deputados: primeira Sessão da Primeira Legislatura e sessões de
1 a 31 de outubro de 1891. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. Volume IV; ACMSP. Annaes da Camara dos
Deputados: primeira Sessão da Primeira Legislatura e sessões de 1 a 3 de novembro de 1891 e appendice. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1892. Volume V; ACMSP. Câmara dos Deputados: histórico dos assumptos mais
importantes de junho de 1891. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891.
185
do que com a movimentação político-partidária352 do país, mas a partir do momento em que cai a
monarquia e sobe ao poder um regime até então hostil às lideranças do catolicismo na Europa e
as suas pretensões de manter aliança com os governos de cada país. Foi necessário um repensar
da posição que estava sendo praticada para lutar pela sobrevivência que até então foi garantida
pela Carta Magna da nação, pelo menos de maneira formal, e que foi colocada em risco com o
decreto (119-A).
Com isso, pelo menos momentaneamente, todas as atenções deveriam estar concentradas
na defesa e manutenção da sobrevivência do catolicismo e para isto os fiéis foram colocados a
par da situação que a Igreja Católica estava enfrentando através da Pastoral Coletiva353 de março
de 1890. A reação da elite eclesiástica pela manutenção da influência do catolicismo na sociedade
brasileira para permanecer sendo um dos estamentos capazes de se impor ao poder republicano
(mas que já estava fragilizada no século XIX no Brasil354), foi assumida por D. Macedo
representante natural dos interesses do episcopado brasileiro, e que foi também auxiliado pelo
representante da Santa Sé o núncio Mons. Spolverini, que não confrontou a política vaticana de
defesa da monarquia com o ascendente republicanismo no Brasil, até mesmo porque nem na
Europa isto seria possível nestas alturas dos acontecimentos.
352
Esta analise esta contando com as generalidades descartando particularidades como a anotada anteriormente
empreendida, por exemplo, pelos lazaristas que financiaram João Esberard na compra do jornal “O Brasil” de clara
postura político-partidára. PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista
Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n. 198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990.
353
ACMSP. Documentos em fase de catalogação: O episcopado brazileiro ao clero e aos fieis da Egreja do Brazil.
São Paulo: Typ Salesiana a vapor do Lyceu do Sagrado Coração, 1890.
354
Neste ponto é de interesse anotar o texto do Pe. Manoel Barbosa em sua síntese sobre a vida da igreja Católica no
Brasil do século XIX: “O século XIX guarda na colônia, no império e no primeiro decênio da república, fatos de
grande significado na vida da Igreja Brasileira. A tentativa de Feijó para o estabelecimento de um cisma, a
resistência heróica de D. Romualdo, a prepotência do regalismo, o enfraquecimento das ordens religiosas, o
desprestigio do clero, a prisão dos Bispos, a proclamação da República e tantos outros acontecimentos históricos dão
a esses cem anos especial relêvo. Se nele não logrou a hierarquia notável desenvolvimento, teve, ao menos, a glória
de possuir nomes do melhor quilate. É justo e bem justo que, da plêiade de defensores da igreja do Brasil, apontemos
as figuras de D. Romualdo, D. Vital e D. Macedo Costa, os três maiores expoentes do Episcopado Nacional no
século passado. BARBOSA, Manoel. A Igreja no Brasil. Rio de Janeiro: A Noite, 1945.
186
A elite eclesiástica brasileira foi resilente ao contexto histórico para não perder o terreno
conquistado pelo catolicismo no Brasil desde o período colonial, pois o quadro político indicava
esta direção a ser seguida. No caso do internúncio, Mons. Spolverini, sua postura foi inteligente e
intransigente de acordo como o contexto exigia; inteligente porque poderia ter deixado escapar a
chance de se manter uma convivência pacífica entre o Estado brasileiro e a Santa Sé;
intransigente, pois parecia ignorar propositadamente a postura da Santa Sé em algumas questões
internas para reconstituição do quadro hierárquico, mantendo-se assim na linha conciliatória com
o Governo brasileiro, pois temia o grupo baseado na diocese do Rio de Janeiro e que na ocasião
se mantinha arraigado ao velho sistema monárquico. Com isso Spolverini colocou em risco seu
cargo de representante da Santa Sé no Brasil. Mas com a mudança político-ideológica no cenário
brasileiro, seria imprudente fazer mudanças antes da promulgação da constituição, por isso a
Santa Sé também agiu com prudência deixando o encargo da intermediação diplomática entre o
catolicismo e o governo para o episcopado e seu representante diplomático no Brasil, que foi
substituído após as tensões iniciais cederem lugar ao espírito de reordenação do catolicismo.
A Pastoral Coletiva355 acenou com a intenção de se manter unidos os poderes civil e
eclesiástico de tradição três vezes secular no país, mas a realidade indicava outro caminho a ser
seguido, foi necessário repensar a situação da Igreja e sua nova configuração jurídica no país,
pois entre tantas outras atribuições a elite eclesiástica356 assumiu prerrogativas que estiveram nas
355
Cf. ACRJ. Série CP046: Reclamação do episcopado brasileiro dirigida ao EX.mo Sr. chefe do Governo Provisório.
TYP. de G. Leuzinger & Filhos, Ouvidor 31-6158-90. de 6 de agosto de 1890.
356
“Não podendo arcar diretamente com os encargos financeiros e institucionais requeridos pela formação de
quadros docentes e administrativos, e sem contar com o respaldo de políticas públicas adequadas na área
educacional, os governos estaduais e alguns setores de peso dos grupos dirigentes locais preferiram dar mão forte aos
empreendimentos confessionais. Emprestando ou fazendo cessão de terrenos e prédios em condições vantajosas,
concedendo subsídios financeiros [...] cumpre salientar os ganhos organizacionais logrados em função das coalizões
firmadas com os detentores do poder local e estadual [...] O regime republicano e a Igreja católica ‘tinham objetivos
semelhantes de estabelecer influência por todo país’ [...] isso não significou o ponto de partida para um confronto
políticos e tampouco caracterizou um processo aberto de competição pelo monopólio de esferas de influência”. cf.
MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. p. 23-25.
187
mãos do Imperador desde a instalação do primeiro bispado no Brasil357, como por exemplo,
indicar os nomes dos futuros bispos e a organização de novas dioceses com patrimônio próprio,
sem nenhuma subvenção do governo federal ou dos governos estaduais, apesar dos arranjos que o
poder civil teve que fazer com o catolicismo para se adaptar as exigências do poder central. Notese que esta situação da ligação entre os poderes temporal e espiritual mais uma vez se manteve
por pura conveniência, com isto, em matéria de ensino, o catolicismo não ficou desamparado da
subvenção, e, como estamos tratando neste trabalho, a decisão de separação Estado – Igreja no
Brasil não favoreceu uma postura radical de nenhuma das partes até mesmo porque não se muda
uma cultura arraigada como a da união Estado – Igreja com um simples decreto.
6. A nada fácil articulação política pré-Constituição Brasileira de 1891
Rui Barbosa por tradição e convicção foi católico358, ex-aluno de D. Macedo no Colégio
Baiano, onde na sua juventude aconteceu uma aproximação entre o futuro bispo ultramontanista
com o futuro e brilhante político Rui Barbosa. Apesar de a história apontar para uma elaboração
conjunta do decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890 de separação Estado – Igreja no Brasil, D.
Macedo e Rui Barbosa divergiam em pontos fundamentais em suas visões políticas. Ainda que o
ministro Rui Barbosa:
[...] continuasse católico até o fim de sua vida, sua teologia esteve muito próxima do
pensamento protestante, tanto no que se refere à relação entre igreja e Estado quanto
à natureza do relacionamento homem-Deus. Além do mais, boa parte da vida política
357
Foi criado o primeiro bispado do Brasil na cidade de Salvador no ano de 1551 pela bula Super specula militantis
Ecclesiae do papa Júlio III. Cf. SOUZA, Ney (Org). Catolicismo em São Paulo. São Paulo: Paulinas, 2004.
358
Cf. FONSECA. Andréa Braga. A função da religião no pensamento de Rui Barbosa. REVISTA
INTELLECTUS, Rio de Janeiro, ano 3, v. III, 2004.
188
de Rui Barbosa foi uma tentativa de reproduzir no Brasil a experiência democrática
da Inglaterra, o ímpeto reformador dos estados Unidos. Rui acreditava que só a
descentralização administrativa e política, emprestando maior autonomia as
províncias, dando cabo dos vícios burocráticos da centralização imperial,
encaminhariam o Brasil para uma etapa de progresso acelerado [...] também não foi
por acaso que o clero brasileiro o elegeu como seu inimigo quando ele se fez
candidato à presidência da república [...] Como Rui Barbosa viu a função da religião
numa sociedade em mudança?359.
Houve um movimento heterogêneo de idéias e movimentos que fizeram ruir o trono e
despedaçar com a monarquia no Brasil, sem contar o temor de um terceiro reinado controlado
mais uma vez por um estrangeiro, o conde D´Eu. Rui Barbosa foi dos atores (principais) nesta
intrincada e eclética movimentação que depôs a monarquia e depois precisou ajudar a organizar o
novo poder. Após a Proclamação da República vieram os decretos do Governo Provisório antes
da promulgação da Carta Maior da República, e neste hiato de tempo o episcopado tratou de se
articular para tentar rebater os pontos do projeto de constituição que estivesse em desacordo com
o pensamento do catolicismo. Neste período engana-se quem suspeitou que Rui Barbosa pudesse
estar a favor das proposições do catolicismo. Rui Barbosa foi a favor do nivelamento de todas as
confissões religiosas: “o crente emancipado na igreja, a igreja livre no Estado, o Estado
independente da Igreja360”.
A constituição promulgada em 24 de fevereiro de 1891 foi no aspecto formal uma ruptura
com o antigo regime, mas na prática os republicanos se defrontam com forças antagônicas ao
processo de institucionalização, como por exemplo, a Igreja Católica, contestou a instituição do
359
Cf. FONSECA. Andréa Braga. A função da religião no pensamento de Rui Barbosa. REVISTA
INTELLECTUS, Rio de Janeiro, ano 3, v. III, 2004.
360
Rui Barbosa. O Papa e o Concilio. Rio de Janeiro: MEC, 1977. (APUD) FONSECA. Andréa Braga. A função da
religião no pensamento de Rui Barbosa. REVISTA INTELLECTUS, Rio de Janeiro, ano 3, v. III, 2004.
189
casamento civil, a secularização dos cemitérios, o estabelecimento do ensino público laico e não
se conformava com o “ateísmo” propugnado pelos republicanos com a separação Estado – Igreja.
O Estado liberal parecia atingir o auge da consolidação institucional com suas garantias de
liberdades individuais, das instituições públicas e suas garantias dos direitos civis361.
O Brasil começou apenas a ser discutido neste período e nesta discussão toma parte Rui
Barbosa, político por excelência queria um país novo e melhor. Apesar de ser católico, muitos de
seu pensamento moderno e liberal não coadunavam com a fé católica, estavam mais para a visão
do protestantismo europeu e norte-americano. Para Rui Barbosa a sua fé não se chocava com sua
visão de progresso: “Muitas vezes esperei descobrir nos recessos da ciência [...] a chave para os
arcanos do universo [...] Então achei os livros mudos, a razão muda e a filosofia estéril [...]
abracei-me à cruz. Foi a fé que me salvou362”, no entanto, Rui Barbosa tinha uma visão de mundo
diferente do que pregava o catolicismo ultramontano, linha que estava sendo seguida pelo
episcopado brasileiro e ao qual ele se opunha. Na visão de Rui Barbosa o Brasil deveria buscar o
progresso técnico-científico como fizera a Inglaterra ou os Estados Unidos. O conceito de Rui
Barbosa sobre o ultramontanismo foi oposto a sua fé católica, enquanto ele permaneceu católico e
jamais rompeu com o catolicismo foi muito cético com sua política (do catolicismo) naquele
contexto:
[...] o ultramontanismo essa bandeira de reação, intransigente como a fé que ele não
nutre, e astuta como interesse político, que é o seu único alimento e a sua moral única
[...] de dous elementos se compõe o ultramontanismo, ambos inacessíveis à razão:
um, a fé supersticiosa, que só se rende às alucinações e às pieguices do sobrenatural,
361
Para este assunto consultar: ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de. História constitucional do Brasil. 3. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1991.
362
RUI BARBOSA. Discurso na sociedade acadêmica beneficente.Obras completas, I, 1, p.60. (APUD) FONSECA.
Andréa Braga. A função da religião no pensamento de Rui Barbosa. REVISTA INTELLECTUS, Rio de Janeiro,
ano 3, v. III, 2004.
190
recursos de que não disponho; o outro, os interesses de partido, que em nenhum são
tão cegos como no clerical. Meu fim único é provar que a liberdade estaria perdida,
se contasse com a milícia fiel desses arraias363.
A postura de Rui Barbosa está inserida dentro do projeto de modernidade, portanto não
podemos neste ponto julgar sua religiosidade separada do estadista que tem um projeto maior
para ser desenvolvido dentro da sociedade de sua época. Nem também é o caso aqui de julga-lo
em suas atitudes, mas apenas reafirmar a difícil tarefa do episcopado brasileiro na manutenção da
integridade do catolicismo para traçar seu projeto de ação dentro de uma sociedade em
transformação, até a aparente facilidade de comunicação entre D. Macedo e seu (ex)aluno Rui
Barbosa teve de ser diplomaticamente calculada para não causar atrito de opiniões.
Após a “comissão dos 5”364 ter elaborado um projeto constitucional sob a presidência de
Saldanha Marinho, o ministro Rui Barbosa recebeu a incumbência do Governo provisório para
fazer a revisão deste projeto, tanto na redação quanto no conteúdo. Nos trabalhos da constituinte,
o arcebispo da Bahia e Primaz do Brasil, D. Antonio, levou o pensamento católico em nome do
episcopado brasileiro que reivindicava principalmente: a manutenção dos cemitérios sagrados, o
casamento religioso com efeitos civis, a retirada da ameaça de proibição do estabelecimento de
novas Ordens Religiosas e a retirada do item que possibilitasse a confiscação dos bens das ordens
religiosas pelo Estado.
363
RUI BARBOSA. Secularização dos cemitérios. in: Obras completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ministério
da Educação, 1950, v. 7 tomo 1. p. 163. (APUD) FONSECA. Andréa Braga. A função da religião no pensamento de
Rui Barbosa. REVISTA INTELLECTUS, Rio de Janeiro, ano 3, v. III, 2004.
364
A comissão foi composta por cinco membros: Saldanha Marinha, Amércio Brasiliense, Magalhães Castro, Santos
Werneck e Rangel Pestana, foram auxiliados pelo Dr. Nelson de Vasconcelos que anotava em ata as resoluções da
comissão preparatório do projeto de constituinte. O trabalho foi concluído em 24 de maio de 1890. A instalação do
Congresso Nacional com poderes constituintes ocorreu no primeiro aniversario da República no dia 15 de novembro
de 1890 e contou com 205 deputados e 63 senadores. Posteriormente Cf. ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de.
História constitucional do Brasil. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
191
Asseverava também o primaz do Brasil que: “uma nação separada oficialmente de Deus
se tornava ingovernável” e advertia aos constituintes para não violentar a consciência católica,
pois desta atitude poderia resultar conflitos permanentes entre os republicanos e a sociedade, mas
mesmo assim, ainda afirmou que o catolicismo não estava contra a nova ordem estabelecida na
nação brasileira. A relação entre o Estado republicano e a Igreja Católica após a promulgação dos
decretos que atingiram os interesses do catolicismo foi tenso até a finalização da constituinte, este
período para a elite eclesiástica no Brasil foi tão tenso quanto no período monárquico com a
Questão Religiosa365, e neste ponto os positivistas se aproveitaram para desdenhar do poder
político do catolicismo alegando que:
‘Historicamente, este aniquilamento do prestigio político do catolicismo entre nós
ficou patente quando, há vinte anos, a ditadura imperial prendeu dois bispos em uma
fortaleza, sem que isso provocasse a mínima reação popular. Nem sequer foi possível
então constituir-se um partido católico, como alguns tentaram, tentativa que com
igual insucesso acaba de ser renovada [...] O catolicismo [...] se já não desapareceu
como esta [a monarquia] é porque ainda não surgiu o sacerdócio cientifico que deve
receber a gloriosa herança dos Hildebrandos, dos S. bernardes, dos Bossuets e mesmo
dos Santos Inácios de Loyola’366
Como deixa transparecer o positivismo pretendeu ser uma força tão representativa quanto
havia sido o catolicismo até aquele contexto. Tentou também o positivismo influenciar a
constituinte e conseguiu já que sua filosofia conseguiu penetrar em alguns meios mais
intelectualizados da sociedade, como por exemplo, as escolas militares e se fazer presente
365
Cf. ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de. História constitucional do Brasil. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de. História constitucional do Brasil. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991. p.
228-231.
366
192
principalmente através de seu lema “ordem e progresso”, Miguel Lemos e Teixeira Mendes
formularam algumas representações propondo alterações nos textos do projeto de constituição, e
chegaram mesmo a desenvolver um projeto de constituição que foi apresentado aos constituintes
na 7ª sessão em 13 de dezembro de 1890367 por intermédio do deputado Demétrio Ribeiro, mas
era um projeto esdrúxulo e cheio de excentricidades e devido a falta de experiência em direito
constitucional e uma linguagem desprovida de base científica e atualização doutrinaria368
malograram na grande maioria de suas inserções a carta constitucional e nos tempos hodiernos o
“apostolado positivista” é um peso morto sem nenhuma representatividade na sociedade.
7. A nova realidade que se impunha ao catolicismo no alvorecer republicano no Brasil
Com o Decreto 119-A369 confirmando uma separação formal entre o Estado e a Igreja no
Brasil, já que de maneira informal esta situação se impunha a algum tempo, devido a realidade
objetiva da vida da população, com o aumento da imigração de protestantes para o Brasil e a
necessidade de proporcionar-lhes o mínimo de direitos civis, houve uma convocação do
episcopado brasileiro pelo núncio apostólico, Mons. Spolverini, para que os bispos se reunissem
para discutir a situação em que se encontrava a Igreja com a Proclamação da República, e que
caminhos deveriam seguir para evitar as ameaças que pudessem provocar a perda total de
influência do catolicismo no Brasil, seja na vida privada da população ou pública, onde sempre
esteve atrelado desde a chegada no Brasil com os colonizadores370.
367
ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de. História constitucional do Brasil. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991. p.
228.
368
ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de. História constitucional do Brasil. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991. p.
230.
369
Cf. ANRJ. Dicon. Actas do Conselho de Ministros do Governo Provisório. DGP208 CO7732; ABRANCHES,
Dunshee de. Actas e actos do Governo Provisório. Brasília: Ed. Fac-Similar, 1998.
370
Consultar para este assunto: BEOZZO, José Oscar (Coord.). Historia geral da Igreja na América Latina: Historia
da Igreja no Brasil. V. 2,2: Segunda Época – Século XIX. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1992.
193
Não foi propriamente um encontro para se defender a manutenção do status quo, ou seja,
uma volta à situação anterior ao decreto, a segunda reunião em agosto de 1890 do episcopado
tratou em última análise de ser um apelo ao Governo371 para que se considerasse a situação de
discriminação, na análise dos bispos, em que a Igreja Católica se encontrava com a promulgação
do decreto de separação, e primeiramente recorreu ao clero e aos fiéis católicos372 para que estes
se alinhassem às proposições contidas no ideário da pastoral coletiva numa tentativa de contrariar
as “vozes” no poder que não acreditavam na força do catolicismo brasileiro, dando a entender no
início da pastoral coletiva, que o trono tinha sofrido as conseqüências por ter abandonado a Igreja
nos últimos anos:
Melindrosa, cheia de perigos, de immensas consequencias para o futuro, dignos
Cooperadores e filhos muito amados, é a crise, que, n´este revolto periodo de sua
historia, vai atravessando nossa patria. Crise para a vida ou para a morte. Para a vida,
se todo o nosso progresso social fôr baseado na religião; para a morte, se não o fôr.
[...] Desappareceu o throno... E o altar? O altar está em pé, amparado pela fé do povo
e pelo poder de Deus. O altar está em pé, todo embalsamado como o odor do
Sacrifício, sustentando a cruz [...] Queremos que a sociedade brazileira toda inteira,
comprehendida sua parte dirigente, respeite a Religião, ame a Religião, não se separe
da Religião, antes em seus actos publicos ou privados, se inspire nos dictames
sagrados que ella impõe a consciencia. Queremos os indivíduos, as famílias, a
sociedade observando fielmente o decálogo373. [sic]
371
Cf. ACRJ. Série CP046: Reclamação do episcopado brasileiro dirigida ao EX.mo Sr. chefe do Governo Provisório.
TYP. de G. Leuzinger & Filhos, Ouvidor 31-6158-90.
372
Cf. ACMSP. Documentos em fase de catalogação: O episcopado brazileiro ao clero e aos fieis da Egreja do
Brazil. São Paulo: Typ Salesiana a vapor do Lyceu do Sagrado Coração, 1890.
373
Cf. ACMSP. Documentos em fase de catalogação: O episcopado brazileiro ao clero e aos fieis da Egreja do
Brazil. São Paulo: Typ Salesiana a vapor do Lyceu do Sagrado Coração, 1890. p. 3-4.
194
Apesar da decepção com a separação, o episcopado precisava dar uma resposta aos
republicanos e demonstrar sua posição de líder natural da sociedade majoritariamente católica.
Esta situação incômoda da separação Estado – Igreja obrigou a hierarquia católica a uma escolha
decisiva: a luta contra os republicanos ou uma adesão ao novo estado de coisa, se não quisesse
sofrer conseqüências indesejáveis e desestimulantes para se prosseguir com seu trabalho três
vezes secular no Brasil, situação que foi lembrada ao Mal. Deodoro: “Sob a influência de
doutrinas radicalmente oppostas ás nossas crenças religiosas, não só forão alli deixados á
margem, no mais absoluto e desprezo, os direitos e as tradições três vezes seculares desta nação
catholica374”. [sic]
Este trabalho de manutenção da calma foi articulado pelo nome mais expressivo do
episcopado brasileiro naquele contexto, D. Macedo, bispo de idade avançada, mas com
experiência nos embates com as elites dirigentes da política brasileira. Primeiro porque desde a
“Questão Religiosa” este ultramontano375 demonstrou ter amadurecido e não ser o mesmo
intransigente das décadas passadas. O núncio apostólico Mons. Spolverini trabalhou nos
bastidores deste ato histórico, como maior autoridade representativa da Santa Sé junto ao governo
brasileiro e que estava vivenciando as ingerências do período imperial no cotidiano do
catolicismo no Brasil376. O internúncio se manteve durante este primeiro momento de apreensão e
incertezas articulando o encontro que resultou no apelo do episcopado brasileiro ao clero e aos
fiéis do catolicismo no Brasil como podemos observar na correspondência enviada pelo núncio
ao bispo de São Paulo, D. Lino:
374
Cf. ACRJ. Série CP046: Reclamação do episcopado brasileiro dirigida ao EX.mo Sr. chefe do Governo Provisório.
TYP. de G. Leuzinger & Filhos, Ouvidor 31-6158-90. p. 3-4.
375
Para este assunto consultar: BOUTRY, Philippe. Ultramontanismo. In: LEVILLAIN, Philippe. Dizionario Storico
del papato. Milano: Bompiani, 1996.
376
Este documento pode servir de exemplo de como o Estado controlava a vida do catolicismo no Brasil. Cf.
ACMSP. Colleção das decisões do governo do Império do Brasil de 1868. Rio de Janeiro: Typographia
NACIONAL, 1868. Tomo XXXI.
195
Interpretando os desejos do episcopado brasileiro de providenciar as conseqüências da
nossa situação em que actualmente se acha a Egreja do Brazil, convido V. Exa. Revma.
A vir ao Rio de Janeiro em fins do próximo mez de Julho para tomar parte nas
conferencias eclesiásticas dos Bispos, que terão lugar em princípios de Agosto.
Trantando-se de assumpto do mais alto interesse da egreja e dos fieis, não duvido que
V. Exa. Faça todo o possível para não faltar as conferencias e não provar seus collegas
de suas luzes e sua experiência. Queira V. Exa. Accusar-me o recebimento do presente
convite, certificando-me de sua vinda, e acceitar os protestos de minha profunda e
affectuosa veneração377. [sic]
Na documentação pesquisada no Arquivo da Cúria de São Paulo, como por exemplo, este
documento citado acima, o tratamento entre o núncio apostólico e o bispo de São Paulo foi
sempre muito cordial e de aparente estima entre ambos, o que não podemos afirmar em relação
aos outros bispos que formaram o bloco que nomeamos aqui como monarquistas, liderados
preferencialmente pelo bispo do Rio de Janeiro, D. Lacerda378 e que complicaram a manobra
política de Mons. Spolverini para estabelecer os prelados de sua confiança nas dioceses
consideradas de suma importância para a política vaticana no Brasil como, por exemplo, a
própria diocese do Rio de Janeiro, onde a boa convivência com o novo regime de governo
deveria ser inevitável, pois o envolvimento em disputas desnecessárias poderia aflorar no seio
dos constituintes o fantasma do anticlericalismo e provocar situações similares e nada agradáveis
para o catolicismo no Brasil assim como ocorreu na Europa379.
A reunião ocorreu em São Paulo no início de agosto de 1890 e nela foi elaborada a
pastoral coletiva do episcopado ao Mal. Deodoro, mas marcou também o início de uma
movimentada disputa para a composição de um episcopado que pudesse promover o
377
ACMSP. Documentação Avulsa. Pasta: CBA-04-03-03. [Correspondências da Internunciatura].
Consultar para este assunto os artigos: PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafio e chance para a
Igreja (I). Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 49, n. 195, p. 620-639, [jul./set.] 1989; PIVA, Elói.
Transição Republicana: desafios e chances para a Igreja (II). Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 50, n.
198, p. 415-432, [abr./jun.] 1990.
379
Para este assunto consultar: MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero aos nossos dias. V. 3: A era do
liberalismo. São Paulo: Loyola, 1996.
378
196
reflorescimento da Igreja Católica no Brasil, após três séculos, como é argumentado na própria
pastoral coletiva, de serviços prestados a religião e a fé da população brasileira.
A pastoral coletiva é um documento de requintada erudição, portanto desapropriado para a
grande maioria da população do país se for considerar a falta de preparo desta população para
manipular um documento com este grau de erudição e fontes que provavelmente nunca ouviram
falar como, por exemplo, as bulas pontifícias citadas em rodapé, mas na realidade estes
documentos se prestaram a fins bem específicos, de acordo com a nossa análise: em primeiro
lugar o endereçamento destas pastorais certamente não foi para atingir a consciência do clero
(baixo), e da população. Seu objetivo primeiro foi atingir a casta de intelectuais e dirigentes
republicanos com a seguinte mensagem: o catolicismo esteve presente até a presente data
prestando um serviço de interesse dos governantes e está enraizado por todo território, portanto o
clero que instruiu para a obediência, pode usar da mesma arma ideológica contra a classe
dirigente, pois:
Seja porem como fôr. Se, cerrando ouvidos aos nossos patrióticos protestos, assentou
o Governo Provisório de enveredar pelos caminhos tortuosos de uma política de
violencia, ficaremos com a alma enlutada, sim; porque o futuro de nossa pátria se nos
antolhará pejado dos mais funenstos males; mas não sucumbiremos ao peso do
desolamento, porque o desalento não é christão, nem se coaduna com a firmeza do
nosso caracter episcopal. Acceitamos o repto, como os grande lutadores de Deus com
os olhos levantados ao céo, prestes a vibrar, nos bons combates pela justiça, as armas
pacificas do nosso augusto ministerio. Teremos em derredor de nós doze milhões de
catholicos. Usaremos energicamente de todos os meios legaes para sustentar, sem
desfalleciemnto, os interesses sagrados da fé e da liberdade das almas380. [sic]
380
Cf. ACRJ. Série CP046: Reclamação do episcopado brasileiro dirigida ao EX.mo Sr. chefe do Governo Provisório.
TYP. de G. Leuzinger & Filhos, Ouvidor 31-6158-90.
197
Se o objetivo pretendido com as pastorais coletivas ao Governo Provisório e depois ao
clero e aos fiéis foi a manutenção do status quo do catolicismo no Brasil, eles fracassaram
totalmente, mas como observamos já havia uma separação objetiva entre Estado e Igreja no
Brasil. Esta separação foi acontecendo progressivamente a partir dos anos 70 do século XIX entre
as partes envolvidas, pois já não tinham a mesma linguagem, quando respeitando cada uma os
seus objetivos, partiram para caminhos opostos.
O Estado precisava cumprir seu dever de regulador social e realizar a defesa dos direitos
de seus cidadãos de origem protestante, já que com o progressivo aumento da imigração européia
para o Brasil a partir da independência, esses cidadãos não poderiam ficar as margens da lei, até
mesmo porque a Igreja católica detinha parte do sistema que regulava a vida civil da população e
o governo precisava atenuar esta situação e não descontentar os protestantes. Por sua vez a Igreja
católica estava cada vez mais ligada à Santa Sé pela política de romanização, como salientamos
em diversas passagens deste trabalho.
Não foi desejo da casta381 do catolicismo abrir mão de seu status quo, no entanto também
almejava maior liberdade, até mesmo porque o Império não abria mão de seu direito de padroado,
e isso não por quererem ainda a benção do catolicismo, mas mais para poder através de seu braço
secular controlar o religioso e conseqüentemente a maior parte da sociedade que naquele contexto
professava a fé católica. Objetivamente a elite eclesiástica devia ter a noção de que o decreto de
separação Estado – Igreja não seria revogado, mas precisava lutar contra o fantasma do
381
O termo casta que esta sendo utilizado é o weberiano, devido ao desejo de manutenção do status quo, onde: “Nas
formas sociais de castas, esta socialização é realizada pela coerção religiosa, definidas pelas regras e tabus
sancionados pelos usos e costumes tradicionais, transmitidos de geração em geração, sem nenhuma possibilidade de
ocorrerem mutações em seus componentes essenciais, o que torna o conceito e a forma social de castas protótipos
invariáveis”. Nos regimes controlados por castas o desenvolvimento e a transformação do regime são improváveis.
Cf. HIRANO, Sedi. Castas, estamentos e classes sociais: introdução ao pensamento sociológico de Marx e Weber.
3. ed. Campinas: Unicamp. 2002.
198
anticlericalismo que atormentou o catolicismo na Europa e garantir uma situação no mínimo mais
cômoda no Brasil do que o foi para os católicos a separação do poder secular no velho mundo.
Se o objetivo foi apenas este, de não sofrer o radicalismo do novo poder, a casta religiosa
não se saiu nada mal, pois até mesmo depois do endurecimento pretendido pelo Ministro do
Governo Provisório, Rui Barbosa, na revisão do projeto de constituição a finalização do projeto e
a promulgação da Carta Maior da nação brasileira, foi bastante favorável para o catolicismo no
Brasil. Seus direitos a propriedade foram mantidos, a educação católica de certa forma continuou
exercendo seu poder de influência na sociedade sem maiores problemas, até mesmo por
necessidade do poder civil nos estados, incapazes de se adequarem às exigências impostas pelo
poder central em matéria educacional, conforme comentamos acima, possibilitando, portanto ao
catolicismo, através de alguns poucos espaços começar sua reestruturação sem perder contato
com a sociedade382.
382
A Separação Estado – Igreja no Brasil contribuiu entre outros aspectos para um efetivo posicionamento da Igreja
Católica em defesa dos fiéis e cidadãos, mesmo que de parte, do episcopado brasileiro para o desmantelamento do
regime militar no Brasil (1964-1985). Se ainda existissem os laços formais de união entre esses dois poderes com a
conveniência política imperando, como o foi por quase três séculos de nossa história, esta questão poderia ser ainda
muito mais sofrida do que foi. Esperamos contar sempre com a contribuição de Pedro (s) Paulo (s) Evaristo (s) e
Hélder (s).
199
CONCLUSÃO
200
“A religião é, sob muitos aspectos, o tema mais complicado para a universidade
trabalhar. Muitos dos problemas nasceram da incapacidade de se distinguir
adequadamente a prática e o estudo da religião. Esse impasse é criado pela
compreensão limitada da religião por parte daqueles que a defendem e também dos que
a criticam [...] a religião não é só o que acontece nas igrejas, nos templos e mesquitas.
Há uma dimensão religiosa em toda cultura [...] É importante expandir nosso
conhecimento sobre a religião de forma a nos permitir determinar exatamente a sua
influência na chamada cultura secular”383.
O formal e o ideal são adjetivos em constante tensão no seio da humanidade, não se
desvinculam práticas por decretos, mas estamos sempre buscando a forma ideal de vida, de
sociedade, de mundo... Às vezes a impressão que temos é a de que a sociedade esta sempre atrás
da utopia, como no país imaginário idealizado por Thomas More “onde um governo, organizado
da melhor maneira, proporciona ótimas condições de vida a um povo equilibrado e feliz384”.
383
Mark C. Taylor: é professor de religião no Williams College, em Massachusetts e na Universidade de Columbia,
em Nova York (EUA). Se dedica a mais de trinta anos ao estudo da religião, seu livro “Erring: a Postmodern a
theology”, tornou-se desde seu lançamento a mais de 20 anos um clássico da teologia e da filosofia. Cf.
http://www.claudiocarvalhaes.com.br/. Acesso em 20/10/2006 21:52:00.
384
Thomas Morus (1480-1535), autor inglês, escreveu o livro Utopia no ano de 1516. Cf. MORE, Thomas. A utopia.
São Paulo: Marin Claret, 2002.
201
Entretanto, assim como a lei Áurea de n. 3353 de 13 de maio de 1888 não trouxe para a
totalidade da população a consciência do mal praticado pelo escravismo, contra nossos
semelhantes, em todo período colonial e imperial, também não foi o decreto 119-A de 7 de
janeiro de 1890 que quebrou as amarras entre o poder temporal e o poder espiritual no Brasil, de
fato não foram rompidas todas as relações existentes entre o Estado e a Igreja Católica.
Eduardo Hoornaert comentou em um de seus textos385 que o conflito entre a religião e o
poder civil deve ser compreendido como um conflito estrutural, este comentário tem como base
as palavras do livro do apocalipse de São João onde se deixa claro que a perseguição daqueles
que estão contra o projeto salvífico de Deus seria uma perseguição “constante até a completa
vitória de Deus sobre os ‘poderes do mundo’. A História da Igreja seria essencialmente a do
conflito entre o projeto cristão [...] e os diversos projetos baseados na não fraternidade
estabelecida”.386 O difícil em certos momentos da história é identificar em qual lado se encontram
os inimigos desta instituição duas vezes milenar, se dentro ou fora de seus muros.
Na história do Brasil a conquista do poder temporal no período colonial contou com a
ideologia da cruz para aplacar a gentilidade dos nativos e reduzi-los ao “civilizado” mundo
Europeu, já existia assim como se constata uma tensão entre o projeto ideal da igreja e a realidade
com a qual ela chegou até aqui com sua aliança com os colonizadores, portanto, desde o início de
nossa história fica difícil de identificar o inimigo do evangelho, talvez isto contribua para
confirmar as palavras de São João.
O catolicismo ibérico foi institucionalizado nos moldes da conquista, e muitos dos
religiosos que embarcaram nesta aventura enxergavam as agruras cometidas pela expansão
385
HOORNAERT. Eduardo (Coord.). História Geral da Igreja na América Latina: História da Igreja no Brasil. V.2,
1: Primeira Época – Período Colonial. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 409-410.
386
HOORNAERT. Eduardo (Coord.). História Geral da Igreja na América Latina: História da Igreja no Brasil. V.2,
1: Primeira Época – Período Colonial. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 409.
202
colonial como um mal necessário, pois em troca do trabalho realizado para submissão dos nativos
aplacavam a ânsia de conquista de terras e gentes de sua majestade o Monarca Português. Em
conseqüência a religião chegou a terras que jamais chegaria com a facilidade que chegou naquele
contexto para conquistar um rebanho virgem sem os vícios do povo europeu, chegou-se a
acreditar que seriam estes os súditos para a construção de uma sociedade perfeita, a terra sem
males, era um paraíso e estava distante dos vícios e da degradação da sociedade européia.
Com o predomínio desta mentalidade que justificava a colonização portuguesa os nativos
do novo mundo ganharam mais um inimigo: os seus catequistas. Não estamos aqui contando
entre os que abraçaram o projeto colonialista, os inúmeros santos, que deram suas vidas pela vida
dos nativos em defesa do evangelho, mas o que predominou na conquista das Américas
espanhola e portuguesa foi a de que o esteio ideológico da conquista baseou-se na religião cristã
católica, com a utilização de um meio sagrado para se atingir um fim profano de conquista da
terra e submissão de um povo.
Há um limite tênue entre a boa ação missionária e a desgraça dos nativos, portanto de
difícil compreensão, onde todo cuidado é pouco ao fazermos juízo de um passado onde o sagrado
e profano se misturam, e, como fomos alertados acima por Mark Taylor “Muitos dos problemas
nasceram da incapacidade de se distinguir adequadamente a prática e o estudo da religião [...]
criado pela compreensão limitada da religião”.
Quando a instituição religiosa extrapola os limites da fé e se presta a agir como partido
político ela entra numa trama muito complicada fugindo de sua função primordial, pois na
política partidária nem sempre ou quase nunca os interesses dos pobres e oprimidos, o órfão, ou a
viúva, nem o estrangeiro podem ser defendidos em detrimentos das castas e estamentos. E por
este motivo há os que defendam (corretamente) que a religião é maior que a fé no sentido de se
203
agregar pessoas, pois a fé é de foro pessoal enquanto a religião sustenta uma ideologia que
ultrapassa os limites do indivíduo.
A simbiose entre o temporal-espiritual corre o risco de fazer da religião uma “religião de
Estado” e da teologia uma “teologia civil” que neste sentido vai se prestar a defender um deusEstado, ou seja, a religião passaria a refletir uma “teologia civil” e consequentemente seria
absorvida pelo aparelho estatal387, enquanto que ela deveria estar em defesa da fé, ou seja, do que
ela acredita acima das ligações partidárias, pois só assim ela continuará em seu firme propósito
de defender a dignidade humana, o que nem sempre como já dissemos acima, ocorre quando se
tem interesses menos “elevados” onde o pessoal estará acima do coletivo.
Na realidade a sociedade está longe de ser a propalada pelos ideólogos. Temos a
impressão de que quando castas e estamentos conseguem emplacar suas idéias, estando próximos
de começar a construção na prática, o que suas teorias pretendem como sociedade ideal, se perde
nas ambições individuais ao controlar o poder. Daí parte o questionamento levantado neste
trabalho: Será que tivemos ou temos no Brasil pessoas, grupos, castas, estamentos, que realmente
tenham uma ideologia capaz de transformar nossa sociedade, ou apenas vimos e estamos vendo a
sucessão de pessoas que, ao governarem este país, estão interessadas em defender “a parte que
lhes cabe deste latifúndio”. E esta não é uma defesa da união entre temporal e espiritual, pois
cada um tem sua função na sociedade e o ideal seria cada um desempenhar sua função no que há
de mais fundamental em suas obrigações: a defesa do fiel por parte da Igreja e a do cidadão por
parte do Estado. Sendo estes um único e mesmo cidadão, sua dignidade pode ser mais bem
defendida sem confusão de funções, sem disputas de poder, mas unindo-se esses estamentos no
387
Consultar para este assunto: AZEVEDO, Thales de. A religião civil brasileira, um instrumento político.
Petrópolis: Vozes, 1981.
204
essencial e debatendo o periférico com maturidade sem imposições no que fere os princípios de
cada uma dessas instituições.
A religião não pode ter no aparato estatal um suporte secular, a religião deve caminhar de
acordo com suas convicções, sem, no entanto, fazer de suas convicções um peso para quem não
segue sua doutrina. A ingerência de um poder no campo de atuação que não lhe diz respeito foi
um vicio alimentado por mais de três séculos no Brasil. Mesmo depois da separação Estado –
Igreja pelo decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890 este costume arraigado permaneceu e a
permanência deste estado de coisa, ou seja, a manutenção de certos vínculos entre o Estado e a
Igreja Católica pode ser visto a partir de dois prismas distintos.
Enquanto o primeiro deve ser “comemorado” como sendo um aspecto positivo da
separação formal entre Estado – Igreja, porque a laicidade de um Estado não significa a exclusão
de suas relações com a Igreja, o Estado deve manter sua relação dialógica com todas as
instituições que compõe a sociedade e que envolve os interesses de seus cidadãos. Portanto, a
laicidade do Estado não significa a criação de um espaço neutro onde cada um deve estar restrito
ao seu mundo e a Igreja neste contexto ser entendida como uma instituição de aspecto privado,
escondida ou desprezada pelo Estado. A Igreja Católica continuou prestando seus serviços no
campo educacional para suprir uma necessidade do Estado (no caso das regiões mais carentes do
país), não há mal algum nisso o problema é de que forma isto foi “solicitado” e daí advém o
problema e que serve de base para o comentário que analisamos como problemático.
O segundo aspecto, e nesta consideração, é analisado como um dado negativo nas relações
entre instituições independentes, a atitude civilizada de convivência não pode ser apenas um jogo
de interesses particulares, estes deveriam ser descartados nas relações institucionais que tratam do
coletivo e não do particular. A relação pacífica entre Estado e Igreja a que nos referimos foi à
colaboração aludida no quarto e último capítulo desta dissertação sobre as alianças nos Estados
205
mais pobres da federação que não tinham condições de realizar os projetos educacionais
emanados da capital federal. Esta aliança deveria ser interpretada (e aqui fazemos isto), como um
caso de interesse particular das partes envolvidas para perpetuar, cada uma delas, seus interesses,
onde foi mantida a convivência da velha ordem monarquista em que as alianças de interesses é
que faziam (ou não) valer as leis e com isso, por exemplo, a Igreja continuou sendo subsidiada
pelas castas e estamentos nos Estados mais pobres do país mesmo após sua separação formal do
Estado brasileiro.
Foi à permanência de um status quo velado, impulsionado pelos decretos
descontextualizados emitidos por um poder central que não tinha consciência, ou preferia não ter,
daquele contexto específico onde não bastava a assinatura de uma lei ou decreto, seria necessário
um planejamento mais complexo da situação econômica de cada região antes de impor o que
parecia irrealizável naquele momento pela maioria dos Estados. Para não ficar entregue a própria
sorte os Estados sem condições de aplicar as leis de educação contavam com a ajuda de sua elite
que subsidiava a Igreja para continuar prestando o serviço educacional. A teoria e a prática não
caminharam juntas. É necessário que se dê o primeiro passo, mas este passo não pode ser mais
largo que a medida das pernas, e foi a isso que o republicanismo se prestou neste caso especifico
e que abriu uma brecha para a igreja continuar ligada diretamente a uma instância de poder que
pelo decreto de separação (119-A de 7 de janeiro de 1890) e depois ratificado pela constituição
de 24 de fevereiro de 1891 a impedia de estar se relacionando.
Houve na realidade durante este período analisado um conflito de ideologias que ficou
muitas vezes restrito ao mundo das idéias, pois na prática o lema “ordem e progresso” pretendia
se desvincular de tudo que representasse o atraso e o catolicismo foi identificado no século XIX
como uma causa de atraso para o progresso da humanidade, mas aqui o lema positivista só
206
funcionou (ou funciona) estampado no pavilhão nacional. Não basta querer é necessário ter
condições de realizar os planos traçados.
A separação Estado – Igreja deve ser interpretada mais como uma necessidade prática a
que o contexto global exigiu do republicanismo do que a consciência que os republicanos
brasileiros tinham como ideologia, pois até quando foi possível o PRP não fez a mínima questão
de tocar no assunto abolição, portanto não podemos aqui ver neste processo a consciência de que
Estado e Igreja precisavam fazer a passagem de um estado de interdependência para um estado de
liberdade de ação das instituições envolvidas neste processo sem a ingerência de uma instituição
nos assuntos pertinentes única e exclusivamente ao âmbito de ação da outra instituição para que
como ideologia do estado-republicano melhor servisse a sociedade como instituições soberanas.
Ao Estado e a Igreja compete, sem dúvida, o cuidado com o bem estar de milhares de
pessoas envolvidas nesta decisão que foi tomada por elas, e não apenas cuidar do interesse de
cada instituição em separado sem se levar em consideração as demais estruturas sociais
envolvidas e que de alguma forma delas continuavam dependendo. Mesmo que a decisão desta
separação, como de costume, envolveu apenas os interesses das castas e dos estamentos ocupados
pela elite do país, no entanto, seus efeitos foram sentidos na sociedade que não participou das
decisões, mas que no momento que isto estava ocorrendo, a ela (população) foi requisitada uma
tomada de postura através da Pastoral Coletiva ou do próprio decreto de separação.
Apesar de ser o agente passivo do contexto em que isto ocorreu de forma indireta este
assunto causou certo impacto na vida da sociedade brasileira, que infelizmente não podemos
dimensionar agora pela falta de dados que hoje dispomos para este tipo de análise, como as
pesquisas de amostragem feita pelos institutos aptos para este fim que poderia nos dar estes
dados.
207
O que podemos fazer neste momento e por analogia com outras situações semelhantes
considerar que as conseqüências diretas ficaram para ser digeridas por esta sociedade que não
participou desta decisão de separação entre o Estado e a Igreja. Nem mesmo podemos afirmar
que as decisões foram tomadas pelos representantes da sociedade, pois a política partidária
brasileira naquele contexto não representou os interesses da maioria da população, pois, na
política partidária nacional apenas as castas de poder aquisitivo médio a alto e que tinham
interesse na “ordem e progresso” conseguiram eleger representantes que defendiam seus
interesses pessoais.
Portanto, progresso e ordem, que em tese não são um mau negócio, na
prática política partidária de nosso país, atendeu constantemente apenas os interesses da elite
brasileira, que através do patrocínio e do voto de cabresto elegeu candidatos atrelados ao projeto
de castas e estamentos, deixando a população em segundo plano. O resultado nefasto desta
política de conveniência com raiz profunda em nosso processo eleitoral pode ser constatado no
tempo presente, quando coletamos dados sobre o IDH de nosso país388.
Na realidade o conflito entre o catolicismo e a monarquia já existia, os atores deste
conflito mudaram pouco ou quase nada do período monárquico para o período republicano. A
decisão de disputa entre as instituições com poder de influência sobre a população, chegou
carregada de ideais, mas com efeitos práticos inócuos, muito discurso, muita tensão para uma
situação que estava sendo resolvida separadamente sem muita agitação. Parece-nos mais a
disputa eleitoreira hodierna para amealhar aliado que apesar de terem objetivo distinto projetam
suas limitações em um inimigo comum, no caso o inimigo no século XIX foi o catolicismo.
No Brasil cada vez mais o episcopado se ligava a santa Sé, deixando de ser um estamento
do Estado brasileiro para retornar a sua origem, num desejo de se religar a sua Sede de origem. O
388
Consultar os dados em anexo sobre o IDH e o Ranking dos países mais ricos do mundo onde o Brasil ocupa,
segundo os dados de 2005 a 14ª posição enquanto o IDH brasileiro é o 57º.
208
catolicismo apesar do anseio de retorno as origens não apresentou sinais de deixar de lado seu
status de órgão de governo com sua capacidade de influência na vida política para defender seus
interesses.
Com receio de haver no republicanismo brasileiro uma força anticlericalista o catolicismo
relutou o quanto pôde para não sair prejudicado, quando conseguiu neutralizar os pontos mais
polêmicos contra a Igreja, recuou e “aceitou” a proposta de separação. O saldo positivo nesta
história foi não ter sofrido o repudio que sofreu o catolicismo na Europa. Aceitando a situação
como estava o catolicismo não deixou de participar da vida política nacional, aproveitou a
oportunidade de permanecer na sociedade até se reestruturar através da necessidade do próprio
Estado brasileiro. Com o passar dos anos teve força de barganha com os republicanos, e isto
ocorreu anos mais tarde ainda na velha república, através de um trabalho paciente da
reestruturação de sua política interna389.
O catolicismo representou para os republicanos uma ameaça no período que sucedeu a
Proclamação da República até sua estruturação no poder, isto foi por causa da busca de
aproximação do episcopado brasileiro com a santa Sé desde o segundo reinado. Os prelados
brasileiros foram cada vez mais atraídos pela política romanizante na qual, boa parte deles, teve
formação intelectual a partir do segundo quarto do século XIX. O nacionalismo republicano não
admitiu “nenhuma” intromissão estrangeira na política nacional, com isso houve até projeto para
impedir a entrada de novas ordens religiosas estrangeiras, expulsar os jesuítas, e tudo que pudesse
ser ameaça a soberania nacional.
Aconteceu no Brasil o que estava acontecendo na Europa do século XIX, ao cair a
monarquia, que não foi um mal, o movimento republicano estimulado pelas idéias externas
389
Consultar para este assunto: LUSTOSA, Oscar Figueiredo. A Igreja Católica no Brasil República. São Paulo:
Paulinas, 1991; MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988; ROSÁRIO, Maria
Regina do Santo. O cardeal Leme (1882-1942). Rio de Janeiro: José Olympio, 1962.
209
reproduziu no mesmo molde o que estava dando certo na Europa, e no já latente dominador do
continente americano, os Estados Unidos da América do Norte. Mais uma vez deixamos de
analisar nosso contexto e importamos um conceito pré-estabelecido aplicado numa realidade
distinta da nossa. O que vale ressaltar é que não tivemos uma separação violenta entre Estado –
Igreja como na Espanha e na França.
O poder cega as pessoas, Jesus ao ser interpelado pelos filhos de Zebedeu disse: “Sabeis
que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós
não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e
aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos”390. A missão da Igreja é se
empenhar na construção do Reino de Deus. A política partidária do mundo globalizado é um
campo minado para o catolicismo, observamos uma busca desenfreada e individualista do poder,
ao se posicionar partidariamente o catolicismo compromete seu prestígio, ainda hoje o mais
elevado entre as instituições moderna391.
Enquanto a política partidária permanecer dominada por castas e estamentos que visa o
próprio interesse, vamos permanecer neste atraso visceral, o bem comum não pode ser deixado de
lado se o objetivo maior for o progresso justo e ordenado. O interesse particular não pode
subjugar o coletivo comprometendo a dignidade humana. A Igreja livre e isenta de ideologia
partidária deve reivindicar a justiça social a todo estamento e casta da sociedade brasileira.
Na estrutura moral ainda tão incerta do Brasil, fatos análogos, análoga falta de
inteligência política dos dirigentes, análoga precariedade de condições econômicas e
sociais produzem frutos semelhantes. Desde a independência, o Brasil tenta descobrir o
seu destino ou o sentido de sua vida; fartando-se depressa das experiências iniciadas
390
391
Mc. 10, 35-45. Cf. BIBLIA DE JERUSALEM. São Paulo: Paulus, 2002.
Cf. http://www.scielo.br/scielo.php. Acesso em 23/10/2006 23:40:00.
210
entre entusiasmos ruidosos e messianismos ingênuos, entrega-se facilmente a novas
tentativas. O “receio do pior” é, no fundo, a sua grande força de resistência. [...] a
maioria dos políticos que o acompanharam (D. Pedro II), bacharéis e doutores,
orgulhosos de sua educação clássica [...] viciados na pequena política de intrigas, pouco
curiosos das grandes questões filosóficas, sociais e economias da época. A República
[...] partindo do seu alvorecer, até a grande crise histórica de 1930, expia, mesmo hoje,
além dos erros cometidos por sua exclusiva conta, os da herança do Império, que é,
afinal, no lado das sombras, a herança da escravidão e de cinqüenta anos de hesitação,
de timidez, de artifícios e, tantas vezes, de mau bacharelismo...392.
Esta análise de José Maria Bello resume o motivo pelo qual a Igreja deve estar distante
das ligações vicerais com o poder partidário e não se envolver com as castas que como varejeiras
infestam os centros de poder. Após mais de um século a separação Estado – Igreja no Brasil pode
ser considerada um bem para o catolicismo. O político muda facilmente de opinião a exemplo do
que observamos cenário político hodierno. O ideal político parece-nos cada dia mais efêmero,
promessas são feitas e não cumpridas, são válidas apenas até o primeiro dia após uma eleição. A
opinião de castas ou estamentos não causa na sociedade o mesmo impacto que a opinião ou
adesão da Igreja Católica, como comentou Ivan Manoel.
Não se brinca impunemente com a história! Quando uma instituição vinte vezes secular,
como é o caso da Igreja Católica, seguida por milhões de fiéis e respeitada até pelos
seus inimigos e adversários [...] ela arrasta consigo forças incomensuráveis, provoca
jogos de poder e desencadeia envolvimentos que nem sempre pode controlar ou sequer
393
prever os resultados
392
.
BELLO, José Maria. História da República. (1889-1954) 5. ed. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1964. p. 1-2; 16.
MANOEL, Ivan Aparecido. O pêndulo da história: tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960).
Maringá: Eduem, 2004.
393
211
A Igreja Católica deve ser o ponto de desequilíbrio na sociedade pós-moderna se pretende
“construir o Reino de Deus”, questionar toda violência e exclusão social e não se aliar ao projeto
de morte da cultura dominante e opressora. O catolicismo deve evitar dialeticamente o conflito
social e o consenso insano do utilitarismo da pós-modernidade. A teologia católica deve estar
fundamentada nos ensinamentos bíblicos e na revisão crítica da história. Deve estar claro para o
teólogo que, em seus campos próprios, Igreja e Estado devem ser soberanos e independentes um
do outro. A colaboração mútua deve existir não a aliança que faça do catolicismo uma religião de
Estado novamente, ficando submetido às restrições e intervenções do Estado em suas atividades
pastorais e organização institucional. O Estado deve prescindir de toda legitimação sacral para
cumprir com isenção seu papel de guardião dos direitos do cidadão da República.
212
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6. Dissertações
GARCIA, Rogério. Guerra e hegemonia do grupo católico: a presença da Igreja Católica no
Estado brasileiro. (Dissertação em História da Educação) FFLCH-USP. São Paulo, 1999.
RIBEIRO, Célio dos Santos. A pericórese trinitária e a economia dos Cônegos Regulares
Lateranenses no Brasil pós-moderno: (1947-2000). (Dissertação de Mestrado em Teologia)
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http://www.unicamp.br/~elmoura/CAP4.doc. Acesso em 02/09/2006 23:58:00
226
ANEXOS
227
INTERNUNCIATURA APOSTOLICA IN BRASILIA
Circular
Rio de Janeiro, 15 de Maio de 1890.
Exmo. e Ilmo. Snr.
Interpretando os desejos do episcopado brasileiro de providenciar as conseqüências da
nossa situação em que actualmente se acha a Egreja do Brazil, convido V. Exa. Revma. A vir ao
Rio de Janeiro em fins do próximo mez de Julho para tomar parte nas conferencias eclesiásticas
dos Bispos, que terão lugar em princípios de Agosto.
Trantando-se de assumpto do mais alto interesse da egreja e dos fieis, não duvido que V.
Exa. Faça todo o possível para não faltar as conferencias e não provar seus collegas de suas luzes
e sua experiência.
Queira V. Exa. Accusar-me o recebimento do presente convite, certificando-me de sua
vinda, e acceitar os protestos de minha profunda e affectuosa veneração.
Mons. Spolverini
Internúncio Apostólico
Exmo. E Ilmo. Snr Bispo
de São Paulo.
228
(Copia)
S. Paulo, 20 de Junho de 1890.
Exmo. E Revmo. Snr.
De volta da minha visita a S. Carlos do Pinhal e dos trabalhos [...] alli e na cid. De S. João
do Rio Claro, achei a Circular de V.Exa. Revma. Convidando-me a comparecer na capital federal
em fins do próximo mez de julho para tomar parte na conferencia ecclesiasticas dos Bispos, que
terão logar em princípios de Agosto.
[...] todos os meus esforços afim de não faltar a essa reunião tão urgentiss. reclamada
pelas actuais circunstancias da egreja Deste Paiz.
Reitero a V. Ex. Revm. As [...] de minha mais alta estima e affectuosa consider.
De V. Exa. Revma. Humilde Addictissim S. in Domino
[...]
Lino, Bispo de S. Paulo.
Exmo. E Revmo. Ir. Mons. Fco. Spolverini
Digmo. Intern. Aapostolico no Brazil.
229
Pessoal
Rio de Janeiro, 28 de junho de 1890.
Exmo. E Revmo. Snr. Bispo,
Li hoje um telegramma no jornal = o Paiz = anunciando que o seu Vigário Geral mandou
uma circular aos Vigários sobre a nova lei do casamento civil. Desejo que o telegramma não seja
ezacto. Nos negócios que se referem a Egreja do Brasil em geral, na epocha que atravessamos a
conducta e a acção do clero deve ser completamente uniforme em todas as dioceses. Parece por
conseguinte necessário que quando trata-se de taes negócios os Bispos consultem o Arcebispo do
qual deve partir a direção. Como a concórdia e uniformidade de acção produz força, constancia e
actividade, assim a divergência e falta de unidade è sempre causa de fraqueza e desanimo.
As muitas provas que V. Exa. Revma. Me deu de seu zêlo pela Egreja e de sincera estima
e affeição por mi[m] são um penhor certo de que V. exa. Se conformara em tudo as indicações
sobre ditas.
Nesta Occasião renovo-lhe os protestos e affectuosa veneração.
De V. Exa. Revma.
Dedicadíssimo
[...] Spolverini
230
Pessoal
São Paulo, 1º de Julho de 1890.
Exmo. E Revmo. Il. Mons. Internº a [...] carta de V. Ex. Revm. De 28 de
Junho ultimo.
Agradeço de veras a bond. Com que V. Ex. Revm. Auxilia-me com seus conselhos em
quadro tão difficil pa. a Egreja e o Clero em meu paiz este inditoso Brazil, outrora a Terra da
Santa Cruz.
Como Talvez saiba V. Exa. Revm. Achava-me em Itu para celebração pontifical da Festa
do angélico S. Luiz, Padroeiro do Colégio alli estabelecido sob a piedosa direção e alto criterio
do [...] Padres Jesuítas ainda q. V. Exa. Revm. O sr. Bispo do Rio de Janeiro que alli se achava
pior incomodados de saúde, não se podia prestar a esse mister.
Prontifiquei e a tarde percorri com o SSmo. Sacramento as ruas principaes ruas da cidad.
Dando no fim a benção com o SSmo. Sacramento. Quem sabe! se pela ultima vez naquele grande
utilíssimo e piedoso estabelecimento ja e ja.
Durante esta auzencia o Revmo. Cônego Vigário Geral, no intuito talvez de dar solução a
inúmeras consultas de Noivos que elle e eu recebemos mas por querendo elle expor as penas de
prisão e multa correspondente a metade do tempo fez aquela publicação ou coisa que tbe. nos [...]
Vou entenderme com elle e peço desde já permissão a V. Exa. Revma. Para fazer=lhe
constar a recomendação expressa do digmo. representante da Sta. Sé com quanto pessoal não
exclue a pessoa do Vigário geral nesse assumpto. Se elle ne ouvisse não faria!
[...] q. me ache ahi na capital federal [..] som eleito mas preconizado, o Exmo.
Metropolita, a elle nos dirigiremos em todas as cousas preciosas. Estou pronpto a fazer qualquer
notificação no aviso feito pelo Revmo. Vigário Geral, mas aguardo qualquer indicação de V. Exa.
Revm. ou do Sr. Arcebispo ultimamente preconizado.
Tranqüilize-se pois Ex. revmp. Certo de q. achara em mim como filho amantíssimo da
Egreja do Ds Vivo, e como seu Ministro e súbdito submisso toda a Dedicação e accordo até o
ultimo dos sacrifícios, o da minha própria vida. Assim Deos me ajude e não me falte com sua
Santa graça.
Aguardo ancioso a publicação da Representação Colletiva para a qual, de Itu, prestei meu
assentimento e assignatura. Os parochos nos amofinam com inúmeras consultas! Reitero a V.
Exa. Revm. os protestos de minha mais perfeita estima e alta considera.
Do de V. Exa. Revma. Addicitissimo e Obed.
em N. Snr. J. Christo.
Lino, Bispo de S. Paulo.
231
Confidenciale
Rio 7 Agosto de 1890.
Monsenhor Caríssimo
Quera V.E. Disculpar-me do que ainda não respondi a sua muito amável carta na qual
com tanta bondade offerecia-me hospedar-me no seminário. Fiquei extremamente occupado pela
rotina das conferencias e desde 5 dias doente com forte bronquite. Tenho neste momento mesmo
febre.
Agradeço tanto a vossa amável offerta mas motivos de delicateza pelos bispos me
obrigam a a[b]stensão: estar presente em espírito mas desejo o mais grande que o meu coração
pode conceber , que tudo se faça e acabe para a maior gloria de Deus e proveito desta egreja do
Brasil, pelo bem da qual estarei pronto a fazer qualquer sacrifício. Mais vivo no meio della mais
considero as sua necessidades tanto mais gosto della. O momento é o mais solene por elles [...] da
sua ressurreição ou do seu enfraquecimento até não viver mais, mas vegetar. E pelos Bispos a
responsabilidade ante de Deus e da Egreja do povo brazileiro que procura panem è imensa.
É mister meu caro monsenhor de pedir a Deus todo auxilio porque tudo depende do
resultado dessas conferencias. É mister que o [...] tenha mais coragem que o doente. Que todas as
susceptibilidades todas pessoas cessem, que todos os bispos entrem nas conferenciass com a
única inteção de fazer obra de Deus. Conferencias não são conversas mas livre e ordenadda
manifestação dos seus pareceres concebidos perante Deus, com respeito ao parecer dos outros.
Cada um entregue a sua luz para chegar a clareza certa e segura na maneira d´agir commum e
geral em toda Egreja. Queira não dar as disputas um valor maior do que tens. As disputas forão
sempre inimigas das grandes obras, ma volente nil difficile. Ah quantas vezes nos enganamos a
nos mesmos neste ponto. Pois a nossa não é uma vida de ssacrificios? Mas ao sacrifício
correponde uma grande [Verampirja]!
Quera V. E. interpretar minhas palavras como uma expansão do meu coração na maneira
a mais intima e fraterna l. Sinto-me animado a faze-la pelo afecto todo particular que tenho por
V. E. e pela afeição que V. e. ha per me. O que digo é por todos os bispos mas não a todos eu
posso fallar com tanta confiança e espansão, pelo motivo que não com todos tenho a mesma
familiaridade que tenho com V. E. todavia o que a todos posso dizer com toda verdade apresso
estima [...]. Domino fraterna caritate.
Adeus caro monsenhor disculpa a inintellegivel [...] e tenha-me como seu.
Todo affectuoso
[...] Spolverini,
232
INTERNUNCIATURA APOSTOLICA IN BRASILIA
N. 843
Petrópolis, 19 de Abril de 1891.
Exmo. E revmo. Snr.
Não tendo ainda recebido a resposta de V. Exa. Revma. A minha carta de 11 do corrente,
apresso-me a comunicar-lhe aqui inclusa, a que eu entenciono enviar as perguntas do Ministro da
Justiça no negocio dos bens da ordens religiosas. O Snr. Barão de Lucena a minha confidencial e
verbal pergunta sobre o seu parecer acerca da destinação dos bens das Ordens respondeu: “Os
bens são da Egreja, e devem voltar para Egreja.” É por isso que eu achando-me de accordo com o
Snr Barão de Lucena neste ponto e persuadido pelo mesmo Barão que o fim das perguntas é
justificar a medida do governo para impedir a dilapidação dos ditos bens, ameaçados pelos
Benedictinos, julguei muito mais necessário e util expor na minha resposta (que provavelmente
será publicada) os principios catholicos contra os inimigos, do que responder singillatim sobre a
situação de cada uma das corporações religiosas.
Queira V. exa. encamina-lo e me telegraphar terça feira se a approva.
Com sentimentos de particular estima e consideração me subscrevo.
De V. Exa. Rma.
Dedicado servo e amigo sicero
[...] Spolverini.
P.S. Recebo neste momento a resposta de V.E. que não responda aos quesitos do Barão de
Lucena. meo propósito da resposta aqui ainda divulgo os quesitos. Peço o grande favor de não me
tornar o telegramma pedido acima sim todavia eras comprehender ao jubilo o sujeito da matéria.
233
INTERNUNCIATURA APOSTOLICA IN BRASILIA
Circular
Petropolis, 14 de Maio de 1891.
Exmo. e Revmo. Snr.
Pelas carta aqui juntas V. Exa. Revma. Verá como eu respondi as duas perguntas do
governo relativamente a situação actual das ordens religiosas e a propriedade dos bens D´ellas.
Se há momento, em que é necessária a mais perfeita união de todos os Bispos entre si, e
de todo o Episcopado Brasileiro com o representante da Santa Sé, tanto nos princípios, tanto na
acção commum é precisamnete este em que trata-se da vida material da egreja do Brazil.
Se V. exa. achar, como eu julgo, util para fortalecer essa união e para obter que o
Congresso entregue a Egreja do Brazil os seus bens, queira enviar-me sem demora uma carta,
para ser publicada, em que V. Exa.
- 1º Confirme as informações por mim dadas ao governo em relação a organização e
administração actual das referidas Ordens; - 2º adhere inteiramente à doctrina exposta nas minhas
cartas; - 3º diga algumas palavras com referencia ao Representante da Santa Sé para desaggravalo das insultas que lhe são já feitass e que não lhe faltarão em seguida. Saiba o Brazil que o actual
Internúncio goza de toda a estima, respeito e dedicação de todos os Bispos.
Permitta-me V.Exa. notar, que se um dos Bispos faltasse em corresponder a esta
manifestação publica de solidariedade com o Representante da Santa Sé, seria este um afcto que
daria motivo a crer que um desaccordo houvesse entre nos: suspeita esta que seria fatal na
occasião em que se discutir nas Câmaras a futura lei sobre os bens de mão morta.
Na certeza que V. Exa. se compenetrará da importancia e da gravidade do momento,
tenho o prazer de renovar-lhe as seguranças de minha affectuosa veneração.
[...] Spolverini
Internúncio Apostolico
234
Conformando-me ao desejo de V.Exa. expresso em officio de 15 do corrente, sob nº 1822,
tendente, devo e quero suppôr, em conservar a Egreja do Brazil, à quem farão doados os bens
administrados pelas Ordens religiosas: esplendido monumento da caridade, piedade e
generosidade do povo brazileiro, tendo a honra de responder os dous quesitos no mesmo officio
propostos.
1º - Si a organização actual de cada uma das corporações religiosas existentes na
republica é regular?
Respondo – Não é regular por falta de membros [pela] em conseqüência da prohibição do
passado regimen para receber noviços. A congergação Benedictina Brasileira, faltando-lhe
também membros sufficientes para poder se reger hierarchicamente teve necessidade já por duass
vezes de uma dispensa extraordinária do sumo Pontífice. Nenhuma dass outras Ordenss religiosas
quer de homens, quer de mulheres, é , pelo mesmo motivo, organisada conforme ass próprias
regras e constituições.
2º - Sé estão sendo administradass conforme as suas respectivas constituições?
Respondo – As Ordens religiosas regulares de mulheres, estando debaixo da immediata jurisdição
dos Bispos, são por estes legitimamente administradas. Quanto as ordens regulares de homens, a
Santa Sé, visto o estado de decadencia em que ellas tinhão cahido em conseqüência da
prohibição de receber noviços, acima indicado, e por isso não podendo reger-se conforme as suas
respectivas regras e com os privilegios de exempção conceddidos pelas Bullas Apostolicas,
submetten os religiosos regulares do Brazil, com decreto de 21 de Março de 1886, a jurisdição
dos respectivos Bispos aos quaes por sensequite deviam elles prestar contas de sua administração.
A Provincia Carmelitana Fluminense tem desde muito tempo um Visitador Apostolico, nomeado
pela Internunciatura e reconhecido officialmente pelo Governo para os actos administrativos.
Os bens das Ordens regulares, constituindo um patrimonio sagrado exclusivamente da
egreja catholica do qual as refereidass Ordens são simples administradoras debaixo da suprema
direcção do Chefe da egreja, nenhuma dellas, sem excepção alguma pode alienar, permutar,
hypothecar, fazer empréstimos, contrahir dividas, transformar propriedade alguma de qualquer
entidadde, administrada por ellas, sem uma licença, que tenha por fim de acautelar o sagrado
patrimonio expressa por escripto pelo mesmo chefe da Egreja, rrepreseentado no Brazil na pessoa
do internúncio Apostólico, reconhecido sempre pelo Governo nas actas administrativas das
mesmas Ordens, e munido para este fim de poderes especiaes. E aquelles membros das Ordens e
qualquer outra pessoa, que procedessem em contrario, alem de fazerem um acto nullo, incorrem
em penas caninicas severíssimas, estabelecidas pela Egreja por taes crimes. E um Governo d´um
Estado (ainda que separado da Egreja) que apoia a auctoridade da mesma e impede tal
dilapidação, não com o fim de devolver para o Estado mais tarde e em occasião dada, os referidos
bens que forão pelos fieis tão piedosa e generosamente confiados, como em deposito, as Ordens
religiosas a titulo oneroso, mas para entrega-los nas mãos do verdadeiro proprietario que é a
Egreja, compõe um seu dever, qual é o de tutelar os direitos sagrados dos [...] que fazem parte da
Egreja catholica dos quaes civelmente ella governa.
235
(Copia) S. Paulo, 18 de Maio de 1891.
Exmo. Revmo. Snr.
Respondendo a circular de V. Exa. com data de 14 do corrente tenho a satisfação de
testemunhar a V. Exa. a minha inteira adhesão: 1º a exposição feita por V. Exa. sobre a
organização e administração actual das ordens religiosas; 2º sobre a doctrina exposta por V. Exa.
sobre alienação de bens religiosos, declarado absolutamente nulla, aquella em que não se
observar a extravagante Ambitiosa de Paulo II, e assim mantenha com V. Exa. digno
representante da Sta. Sé a mais perfeita solidariedade.
Se porem o poder civil (o que não é de esperar) abusando do direito da força apoderar-se
dos bens da Egreja restará a V. Exa. a consolação de haver cumprido nobremente o seu dever.
Approveito a opportunidade para dar testemunho publico do muito que V. Ex.a tem feito
pela Egreja n´este paiz, identificando=se com seus legítimos interesses e propgnando
affamosamente a sua prosperidade e florescimento.
Reitero os protestos de minha estima.
Exmo. E Revmo. Mons. Franco. Spolverini
Digmo. Representante da Sta. Sé no Brazil.
Projecto de resposta
236
INTERNUNCIATURA APOSTOLICA IN BRASILIA
Circular
nº 891
Rio, 16 de junho de 1891.
Exmo. e Revmo. Snr.
Tenho a honra de comunicar a V. exa. Rvma. que o Exmo. Snr. Internúncio Apostólico,
Monsenhor Francisco Spolverini, partio hontem para Genova com destino a Roma no gozo de
uma licença temporária que obteve do Santo Padre, e que davante a ausencia do mesmo Exmo.
Snr. Internúncio foi a minha humilde pessoa conferido o [subido] cargo de encarregado dos
negocios da Santa Sé nesta Internunciatura Apostolica com todas as faculdades do mesmo
Monsenhor Spolverini.
Asseguro a V. Exa. que na ardua tarefa da gerencia interina desta internunciatura
enpenhar-me-hei com a maior dedicação e solicitude possíveis as minhas debeis forças a fim de
corresponder menos indignamente a alta confiança com que sem merecimento algum vejo-me
distinguido, como tambem, a fim de manter com V. Exa. as mais cordiaes relações, e merecer sua
generosa benevolência. No cumprimento deste duplo dever terei sempre diante de meos olhos os
traços luminosos do meo illustre e venerando chefe a quem todo o Episcopado rendeo digna
homenagem de merecidos [incomios], e as provas mais inequívocas de aprezo pela indefecta
dedicação e sapientíssima prudencia com que ha exercido no Brazil sua nobre missão.
Offerecendo a V. Exa. os meos sinceros préstimos do mais profundo obsequio e
veneração
De V. Exa. Ilmo e Rvema.
Servo humile. e ded.o
D.os Gualtieri
Encarregado dos Negocios da S.Sé
237
Paço Episcopal de S. Paulo, 30 de junho de 1891.
Exmo. e Revmo. Snr.
Acusando a recepção da circular de V. Exa. nº 891 de 16 deste mez, tenho a honra de declarar a
V.Exa. que fico ciente de haver S. Exa. Mons. Internúncio apostolico D. Francisco Spolverini
partido no dia 15 para Genova com destino a Roma, no gozo da licença temporária que obteve do
Santo Padre, ficando [...] sua ausencia V.Exa. occupando o alto cargo de encarregado de
Negocios [...] Santa Sé nessa Internunciatura.
Congratulando=me com V.Exa. pela honrosa prova de confiança que lhe foi confiada e da
qual o considero muito digno, limito-me a dizer=lhe que espero manter com V.Exa. as mesmas
relações amistosas que [...] com o Exmo. Snr Internúncio, ora doente e de licença.
Prevaleço=me da affectividade para apresentar a V.Exa. os protestos da minha súbita
estima e consideração. Deos Guarde a V. exa.
Exmo e Revmo. Snr. D. domingos gualtieri
M. D. Encarregado de negócios da santa Sé no Brazil.
Lino Bispo S. Paulo.
238
nº 894
Rio, 10 de Novembro de 1891.
Exmo. e Revmo. Snr.
Tenho a honra de enviar a V.Exa.Revma. o anexo decreto emanado da S. l. dos Negocios
Eclesiasticos Extraordinarios por ordem do Santo Padre, em virtude do qual todas as ordens
religiosas brasileiras são declaradas sujectas a jurisdição dos Bispos, em cujas Dioceses achão-se
as respectivas casas.
Pedindo a V.Exa. que se digne de acusar recepção do referido decreto, valho-me da
opportunidade para renovar-lhe os protestos de minha alta estima e veneração.
De V. Exa. Rvma.
Ao Exmo. e Revmo. Snr.
Bispo de S. Paulo
Servo humilde e dedicado
Pe. Dr. Domingos Gualtieri
Encarregado de Negocios da Santa Sé
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A Separação Estado - Igreja no Brasil (1890)