Análise de Políticas na Saúde
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Box 2 - Wallerstein e a ideia de sistema-mundo
Ruben Araujo de Mattos
A Índia existe? Este é o título de um curto e instigante texto de Wallerstein. A pergunta título
pode soar estranha, como o autor mesmo salienta: “No mundo contemporâneo há uma
entidade política de nome Índia; logo, a Índia obviamente existe.” (Wallerstein, 2006, p. 153).
Mas com a pergunta o autor esta interessado em indagar sobre a criação da Índia, esta
entidade que hoje inequivocamente existe. Ou seja, argui e nos convida a pensar sobre quando
e quem criou a Índia.
Wallerstein toma a Índia como exemplo para três proposições, que ele julga poderiam ser
aplicadas “ao Paquistão, Inglaterra, Brasil ou China”. A primeira proposição pode ser
resumida da seguinte forma: A Índia é uma invenção do sistema mundo. É exatamente em
torno desta proposição que gira este nosso box. Mas o autor naquele texto afirma também
duas outras coisas: que a história pré-moderna da Índia é uma invenção da Índia moderna, e
que ninguém sabe se daqui a duzentos anos a Índia ainda vai existir. Estas duas outras
propostas não serão discutidas aqui, mas serão tratadas em outro Box neste material.
O que Wallerstein quer dizer com a sua proposição de que a Índia (assim como o Paquistão, a
Inglaterra, o Brasil ou a China) foi inventada pelo sistema-mundo? Para o autor
“O funcionamento da economia-mundo capitalista tem como premissa a existência de uma
superestrutura política de Estados soberanos ligados num, e legitimados por um, sistema
interestatal. Como nem sempre existiu, essa foi uma estrutura que teve que ser construída. O
processo de sua construção tem sido contínuo sob inúmeros aspectos. A estrutura foi criada de
início num único segmento do globo, primordialmente a Europa mais ou menos no período que
vai de 1497 a 1648. Passou então por expansões esporádicas, incorporando uma zona
geográfica sempre mais ampla. Esse processo, que poderíamos chamar de ‘incorporação’ de
novas zonas à economia-mundo capitalista, envolveu a reformulação de fronteiras e estruturas
políticas nas zonas incorporadas e a criação, em seu âmbito, de ‘Estados soberanos,
membros do sistema interestatal’ ou ao menos aquilo que poderíamos chamar de ‘candidatos
a estados soberanos’ – as colônias” (Wallerstein, 2006, p. 154).
Veja que Wallerstein situa a criação do Estado soberano da Índia, como de qualquer outro
Estado, como um fenômeno que se passa no interior de outro mais amplo, a construção e a
expansão de um sistema-mundo. Ele não aceita a ideia de considerar os Estados como uma
unidade de análise para as ciências sociais e políticas. Ou seja, para ele, não se pode
compreender a construção de um Estado como a Índia ou o Brasil, remetendo-se
exclusivamente à aspectos da vida social que supostamente transcorre no interior deste
Estado, ou da sociedade nacional que vive em seu território, ou da economia nacional (a
produção no âmbito deste território). Os Estados e sua construção devem ser pensados no
interior de uma entidade maior, o sistema-mundo, que seria, para este autor, a unidade básica
de análise, ou seja, o ente no qual a vida social ocorre. Assim, antes de pensar quais seriam as
especificidades da Índia, Wallerstein propõe pensar a especificidade desse nosso
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sistema-mundo, que nasceu em parte da Europa, e que se expandiu para abarcar hoje todo o
território no planeta. Estados, nesta perspectiva, não nasceram sozinhos, mas como parte
integrante de um sistema profundamente hierarquizado de Estados e candidatos a Estados.
As ideias de Wallerstein nos convidam a um olhar mais abrangente, mais atento a dimensões
territoriais e temporais mais largas. Se o mundo hoje está cheio de Estados soberanos, estes
se dispõem hierarquicamente em um amplo e sofisticado sistema de relações interestatais, que
talvez sirva de base para a dinâmica da economia-capitalista. Ao falar que os estados
dispõem-se hierarquicamente, o que se quer ressaltar que neste sistema-mundo, as relações
econômicas, políticas e culturais entre Estados/nações/países é profundamente desigual. Para
Wallerstein, há países centrais, que de certa forma delimitam a ordem econômica, militar e
política do sistema, e países periféricos, que de certa forma orbitam em torno daqueles Estados
centrais. O desenvolvimento dos Estados periféricos se fez a partir da dinâmica de expansão
do sistema-mundo. Em outros termos, a Índia (como o Brasil ou a China) só existe enquanto
parte deste sistema-mundo.
Por sua vez, o atual sistema-mundo é apenas um dos chamados sistemas históricos, que para
o autor, seriam os sistemas históricos nos quais a vida social transcorre. Os sistemas históricos
tem uma fronteira, nas quais “o sistema e as pessoas são regularmente reproduzidos por meio
de algum tipo de divisão contínua do trabalho.” (Wallerstein, 1999, p.459).
Olhando a história em uma longa duração, Wallerstein reconhecerá vários sistemas-históricos.
Ele desenvolveu uma tipologia, ou modos, como uma hipótese, para melhor apreender estes
diferentes sistemas históricos e suas lógicas de funcionamento. Diz o autor:
“Sustento que, empiricamente, houve três desses modos. Os ‘minissistemas’, assim
chamados porque são espacialmente pequenos e, com toda a probabilidade, relativamente
breves no tempo (uma duração de cerca de seis gerações), são altamente homogêneos em
termos de estruturas culturais e de governo. A lógica básica é a da ‘reciprocidade’ nas trocas.
Os ‘impérios mundiais’ são vastas estruturas políticas (pelo menos no ápice do processo de
expansão e contração que parece ser o destino de todos eles) e abarcam uma ampla
variedade de padrões ‘culturais’. A lógica básica do sistema é a extração de tributo daqueles
que de outra forma são produtores diretos localmente auto-administrados (sobretudo rurais),
que é passado para o centro e redistribuído entre uma fina mais crucial rede de funcionários.
As ‘economias-mundo’ são vastas e desiguais cadeias de estruturas de produção, dissecadas
por múltiplas estruturas políticas. A lógica básica é que o excedente acumulado é distribuído
desigualmente em favor daqueles que são capazes de realizar vários monopólios temporários
nas redes de mercado. É uma lógica ‘capitalista’” (Wallerstein, 1999, p.459-460).
Portanto, para o autor, o atual sistema-mundo é um sistema histórico do tipo economia-mundo
que nasceu na Europa a cerca de cinco séculos atrás, e que poderá desaparecer, como outros
sistemas históricos o fizeram (por exemplo, o Império Romano, que era do tipo império
mundial).
Para nós, o convite de Wallerstein é o de atentar para as interrelações entre Estados, países,
nações e economias nacionais, não perdendo de vista que a soberania é sempre delimitada no
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âmbito do sistema-mundo.
Referências bibliográficas: Wallerstein, Immanuel. Impensar a Ciência Social: Os limites dos
paradigmas do século XIX. Aparecida: Ideias & Letras, 2006. Wallerstein, Immanuel. Análises
dos sistemas mundiais. In Giddens, A.; Turner, J. (org). Teoria social hoje. São Paulo: Editora
Unesp, 1999, p.447-470.
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