Joana De Conti Dorea
Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho:
histórias, olhares e leituras sobre um documentário brasileiro
Florianópolis, dezembro de 2006
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Joana De Conti Dorea
Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho:
histórias, olhares e leituras sobre um documentário brasileiro
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em
Ciências Sociais pela Universidade
Federal de Santa Catarina
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sônia Weidner Maluf
Florianópolis, dezembro de 2006
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Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho:
histórias, olhares e leituras sobre um documentário brasileiro
Joana De Conti Dorea
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sônia Weidner Maluf
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em
Ciências Sociais pela Universidade
Federal de Santa Catarina
_______________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Sônia Weidner Maluf (UFSC – Orientadora)
______________________________________________________________
Prof.º Dr.º Fernando Ponte (UFSC)
______________________________________________________________
Prof.º Marco Aurélio Silva
Florianópolis, dezembro de 2006
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha mãe pelo carinho e ao meu pai pelo cuidado.
Agradeço à Duda, minha irmã de vida e alma. E a Kiko e Cata, sem os quais a vida
teria muito menos graça.
À Lú e à Tati, agradeço pelo aconchego.
Agradeço à Elis pelo apoio sempre, ao Victor pela compreensão e à nós juntos, pela
desconstração inusitada mesmo nos momentos mais complicados.
Agradeço à Talita, sempre, pela amizade. E a Caio e Nilson pelas risadas e conselhos
ao lado de um pé de manjericão, depois das horas de estudo.
Agradeço à Danielli e à Fê, companheiras de curso e amigas do peito.
Agradeço a todos que mesmo distantes estiveram presentes: Olívia, Helder, Ilo,
Martim e Suna.
Agradeço à Nica, parte de mim solta pelo mundo. E ao Bruno, com quem posso
compartilhar a dor e a delícia de existir.
Agradeço ao Dani, por ser companheiro. E à Yupanqui pelas conversas virtuais e toda
a camaradagem.
Agradeço à Ana e ao Benter pelos ensinamentos e por toda a paciência.
À Guida e a Eduardo Coutinho, agradeço pelo aprendizado de vida.
Agradeço à Sônia Maluf, com quem aprendi muito mais do que Antropologia desde as
primeiras aulas nas Ciências Sociais.
Agradeço ao mestre Fernando Ponte. E a Marco Aurélio por toda a atenção.
Ao amigo Pedro, agradeço pela consultoria “cinematográfica”, precisa e descontraída.
Agradeço à Bel, Mel, Pri e Letícia, por me mostrarem a força de ser mulher.
Agradeço à Chris, Pablo e Joam, presenças recentes e fundamentais nesses meses de
pesquisa. E agradeço ao Nathan, por ensinar e aprender o amar.
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“Filmo para saber o que existe porque há força em existir, cacete.”
(Eduardo Coutinho)
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SUMÁRIO
Resumo
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Introdução: Histórias, caminhos e trajetórias
Os meus caminhos
8
Os caminhos de Eduardo Coutinho
9
Os caminhos de Cabra Marcado para Morrer
11
Os caminhos do texto
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Cabra Marcado para Morrer: Olhares, sons e palavras
26
Conclusão: Leituras, conversas e filmes
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Glossário
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Bibliografia
91
Apêndices
Apêndice A – Fichas técnicas dos filmes
96
Apêndice B – Poesia de Ferreira Gullar
98
Apêndice C – Mapa da decupagem de Cabra Marcado para Morrer
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RESUMO
Esta pesquisa visa a realização de uma análise fílmica do documentário Cabra
Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho. O cinema possibilita uma série de debates em
diversas áreas do conhecimento, e a partir da narrativa sobre esse documentário realizou-se
uma reflexão acerca das questões sociais e dos aspectos estéticos e técnicos apontados pelo
filme. Nessa pesquisa, a partir de uma narrativa das seqüências, pontuaram-se fragmentos do
filme de modo a relacioná-los com os estudos nas áreas de Teoria do Cinema, Teoria Literária
e Ciências Sociais. Produzido entre os anos de 1964 e 1981, esse premiado documentário
trouxe muitas inovações para o cinema brasileiro, e seu estudo possibilita desde debates sobre
o período histórico no qual foi realizado até questões especificamente cinematográficas. Deste
modo, foi possível criar um entendimento próprio sobre a postura do diretor, o material
fílmico e os outros estudos sobre Cabra Marcado Para Morrer, e também construir reflexões
e diálogos pertinentes às Ciências Sociais, à Literatura e ao Cinema.
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INTRODUÇÃO: HISTÓRIAS, CAMINHOS E TRAJETÓRIAS
Os meus caminhos
No primeiro semestre de 2006 eu estava matriculada na oitava fase do curso de
Ciências Sociais e, depois de quatro anos dentro da universidade estudando para ser uma
cientista social, eu ainda não fazia idéia do que realmente me interessava dentre as muitas
possibilidades de pesquisa na Antropologia, Sociologia ou Ciência Política. Sabia que em
maio começaria meu último semestre tanto para a licenciatura quanto para o bacharelado e
que eu teria que escolher um tema para escrever o meu trabalho de conclusão de curso, o
TCC. Fazer a pesquisa, escrever muitas páginas, entrar no processo do TCC com todas as suas
exigências e dificuldades alardeadas desde sempre pelos formados, isso não me assustava.
Mas diante da necessidade de escolher tema e especificar um assunto para fazer a monografia,
eu me apavorava.
Além de eu ser uma pessoa indecisa, minha formação nas Ciências Sociais foi múltipla
e diversa. Desde a primeira fase do curso eu participei de grupos de discussão, núcleos de
pesquisa e atividades externas às disciplinas. Fiz parte já no primeiro semestre de uma
pesquisa sobre Antropologia Visual que rendeu algumas exposições e através da qual eu fiz
meu trabalho de iniciação científica. Ao mesmo tempo, participei de um grupo de estudos
sobre Marx e comecei a cursar outra graduação, desta vez em Pedagogia. Ao longo dos quatro
anos nas Ciências Sociais, dediquei-me avidamente a disciplinas como Ecologia Política e
Debates Atuais sobre Natureza e Cultura, criei junto com um coletivo de alunos sob
orientação do professor Fernando Ponte um grupo de discussão sobre a Sociologia da
Imagem, produzi alguns trabalhos sobre alfabetização de Jovens e Adultos a partir do Método
Paulo Freire, estagiei no banco de notícias do Observatório Social e ministrei aulas de
Sociologia em uma escola no centro de Florianópolis. E apesar de tantas vivências e contatos
com diferentes áreas, esta multiplicidade de referências tornava-me mais indecisa do que
segura quanto a minha formação. Eu ia para bancas de defesa de colegas e ficava admirada,
pois quase sempre eles eram elogiados pela continuidade na monografia do seus trabalhos
realizados em algum núcleo de pesquisa. E deste modo, um tanto quanto perdida, eu terminei
a disciplina de Métodos e Técnicas de Pesquisa – na qual é feito o projeto do TCC – com a
idéia de pesquisar a Literatura durante o período da Ditadura Militar no Brasil. Eu ainda não
certa do que queria, tanto pela dificuldade de fazer um recorte que possibilitasse tal pesquisa
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nas Ciências Sociais, quanto pela minha insegurança com relação a ser este mesmo a temática
que eu gostaria de pesquisar.
De qualquer maneira, o tema me interessava muito e eu tentava conhecê-lo da melhor
maneira, de modo que quando soube que o sociólogo Caio Navarro de Toledo na UFSC e iria
dar uma palestra sobre o regime militar, não hesitei em ir assistir. Toledo é historiador e
professor de Ciência Política, uma das principais referências quando se fala em Ditadura
Militar no Brasil. A sua palestra procurou refletir sobre a democracia quarenta e dois anos
depois do fim da Ditadura, oferecendo um breve panorama político e cultural do período
anterior a 1964. Foi por conta desse quadro histórico que Toledo citou o documentarista
Eduardo Coutinho e neste momento tive uma idéia para a monografia, pois eu sabia que teria
como entrar em contato com o cineasta sem dificuldades e também conhecia meu enorme
interesse pelo cinema. Desse modo, após algumas pesquisas pela internet, várias leituras de
entrevistas e textos, uns poucos telefonemas para Coutinho, conversas com a professora Sônia
Maluf – que havia me apresentado a obra do cineasta – e sessões dos filmes que encontrei
disponíveis pelas locadoras de Florianópolis, defini que este seria o meu tema para a
monografia e comecei a pesquisa.
Ainda não estava decidido com qual filme eu iria trabalhar e maio de 2006 foi o mês
no qual eu mergulhei no universo de Eduardo Coutinho, rodeada por entrevistas, filmes e
estudos de antropólogos, críticos de cinema e pesquisadores em geral. Terminei o mês com o
recorte definido, o projeto para a pesquisa qualificado, uma admiração ainda maior por este
cineasta e um grande espanto por conta de um dos seus filmes que antes era desconhecido por
mim: Cabra Marcado para Morrer.
Os caminhos de Eduardo Coutinho
Cabra Marcado para Morrer é o primeiro documentário cinematográfico de Eduardo
Coutinho. Realizado em um período de dezessete anos, esse filme ata as duas pontas de uma
história que se ramifica em muitas outras histórias. Pois ao chegar na Paraíba em 1964,
Coutinho não poderia imaginar os rumos que tomaria o seu projeto de contar a trajetória de
um líder camponês. Um breve resumo do filme: em 1962, ao visitar o Nordeste brasileiro
junto com uma caravana da União Nacional dos Estudantes (UNE) e com o objetivo de
divulgar o Centro Popular de Cultura (CPC) por outros Estados, Eduardo Coutinho toma
conhecimento do assassinato de João Pedro Teixeira, líder e fundador da Liga Camponesa de
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Sapé. É apresentado a viúva – Elizabeth Teixeira – e, quando volta ao Rio de Janeiro, propõe
ao CPC fazer um filme de ficção sobre essa história, usando os próprios amigos e familiares
de João Pedro como atores e filmando no próprio local. Dois anos Coutinho chega em Sapé,
mas um conflito no local impede as filmagens, e Elizabeth, seus filhos, o diretor e a equipe
encontram no Engenho Galiléia uma outra locação, ideal pela condição dos seus trabalhadores
de liberdade por terem vencido o conflito com o dono das terras a quem pagavam o foro.
Após algumas semanas de filmagem, na véspera do Golpe Militar de 1964, o exército invade
Galiléia, interrompe as filmagens, prende camponeses e apreende os materiais e
equipamentos. Roteiro, copiões1 e outras partes do trabalho são recuperadas e dezessete anos
depois uma relativa abertura na Ditadura possibilita a retomada das filmagens. Entretanto,
Coutinho retorna com a idéia de um outro filme, sem roteiro prévio, apenas com a intenção de
retomar o contato, descobrir o que aconteceu nesses anos com aqueles camponeses, com o
movimento das Ligas, os lugares e as muitas histórias envolvidas. A narrativa que eu fiz de
Cabra Marcado estará desenvolvida e detalhada ao longo do trabalho, de modo que cabe à
essa introdução apenas um resumo para que o leitor entre em contato com o seu universo
fílmico.
Sobre Eduardo Coutinho, podemos falar que se atualmente este nome é uma referência
nacional na produção do cinema documentário, na década de 1980 não se sabia quase nada
sobre ele, além de algumas participações em filmagens para o CPC do Rio de Janeiro,
pequenas produções em ficção sempre vinculadas à outros cineastas e vários anos de trabalho
no Globo Repórter. Quando Cabra Marcado para Morrer é lançado em 1984, há uma grande
repercussão nacional e internacional e Coutinho se torna um diretor conhecido e premiado.
Além disso, as histórias do filme – sua interrupção e as vidas que existiram nele – não são
esquecidas.
Analisando o trabalho de Coutinho após Cabra Marcado, é possível reconhecer que
neste filme ele começou a desenhar os contornos do que depois se tornou o seu modo de fazer
cinema. Durante os meses de pesquisa, eu assisti ao último trabalho do diretor, O fim e o
princípio2, filme lançado em 2005, e observei ali princípios vislumbrados no primeiro
1
Ao longo do texto, os termos cinematográficos estarão em itálico e serão definidos no glossário. Vale
ressaltar que será uma definição especificamente técnica, inspirada no Dicionário Teórico e Crítico de
Cinema (AUMONT; MARIE, 2003) para facilitar a leitura dos estudantes e pesquisadores das diversas áreas.
2 Neste filme, Eduardo Coutinho e sua equipe partiram para o sertão nordestino e, sem local ou pauta definida,
entram em contato com uma pequena comunidade através de uma de suas moradoras. Consegue registrar
assim, relatos dos moradores do Sítio Araçás, no interior da Paraíba, e recolhe depoimentos marcantes sobre
a vida e a morte.
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documentário. Consuelo Lins chama estes princípios de dispositivos, os procedimentos de
filmagem que Coutinho elabora cada vez que se aproxima de um universo social. Como ela
afirma no livro O documentário de Eduardo Coutinho, revelar a presença da equipe na
imagem é, por exemplo, uma prática inaugurada em Cabra Marcado que hoje se tornou um
procedimento comum ao documentário brasileiro. Porém, essa prática não deve, como
nenhuma outra, se tornar uma fórmula, pois perderia o seu vigor expressivo. Filmes como
Edifício Master3 e Santo Forte4, por exemplo, devem sua força não apenas pelos dispositivos
utilizados por Coutinho, a saber, o uso de um único local para filmar, o trabalho de pesquisa
anterior feito por uma equipe que aparece nas cenas, o respeito no diálogo com o outro, a
abertura para ouvir e também saber calar. São filmes poéticos e contundentes que falam ao
mesmo tempo sobre o particular e o geral, sem reduzir uma realidade ampla por filmar dentro
de um único prédio, sem esquecer as peculiaridades de cada ser humano por tratar de um
tema como religião. Não pretendo esgotar aqui a análise dos filmes de Eduardo Coutinho nem
de suas características. Ao longo da narrativa sobre Cabra Marcado, questões sobre métodos,
estéticas, comparações com outros filmes, entre tantas outras, emergem e são abordadas
dentro do contexto da produção desse filme ou da reflexão sobre ele. Para completar estas
breves notas sobre Coutinho, cito Consuelo Lins, que afirma com muita propriedade que
“Num pequeno livro de entrevistas intitulado O único e o singular, o
pensador Paul Ricouer responde assim a uma pergunta sobre o sentido
da responsabilidade: 'Onde há poder, há fragilidade. E onde há
fragilidade, há responsabilidade. Eu diria mesmo que o objeto da
responsabilidade é o frágil, o perecível que nos solicita. Porque o
frágil está, de algum modo, confiado à nossa guarda. Entregue ao
nosso cuidado.' Esta é uma boa síntese da obra de Eduardo Coutinho”
(LINS, 2004: 7)
Os caminhos de Cabra Marcado para Morrer
À primeira vista não é possível distinguir em Cabra Marcado para Morrer uma
linearidade na história. Até mesmo para saber se há uma história única no filme é necessário
refletir e talvez assisti-lo mais de uma vez. Entretanto, se observamos com cuidado a
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Durante três semanas, a equipe de Coutinho pesquisou o cotidiano dos moradores de um edifício situado em
Copacabana, no Rio de Janeiro. Trata-se de um prédio com 276 apartamentos conjugados, onde moram cerca
de 500 pessoas. Na quarta semana, Eduardo Coutinho e sua equipe entrevistaram e filmaram 37 moradores,
ouvindo suas histórias de vida e relatos sobre seu cotidiano.
4 Santo Forte é o documentário de Coutinho lançado em 1999 e filmado na favela Vila Parque da Cidade. As
filmagens tiveram início em outubro de 1997, quando a equipe de Coutinho filmou os moradores do local
durante a missa celebrada pelo Papa no Aterro do Flamengo. Dois meses depois, no Natal, Coutinho voltou à
comunidade para filmar depoimentos sobre a religião e a religiosidade.
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narrativa, é possível reconhecer uma maneira muito peculiar e instigante de contar não só uma
história, mas uma rede de trajetórias que são acompanhadas e apresentadas ao espectador. E
esta rede é mostrada de tal maneira que se constrói uma história a partir dos fragmentos, e a
fragmentação inicial é respeitada – assim como a fragmentação da própria vida também é –
por uma montagem precisa e, em diversos momentos, genial.
Deste modo, encontramos em Cabra Marcado o filme inacabado de ficção sobre a
morte de João Pedro Teixeira, a história de vida deste líder camponês, a história de vida de
sua mulher ao seu lado e depois do seu assassinato, as repercussões deste assassinato na vida
de cada um dos filhos do casal, outras histórias oficiais e orais de companheiros de luta, de
cidades do sertão, de uma ditadura em um país latino americano subdesenvolvido. São
inúmeros relatos, recortes de jornais, experiências vividas pela equipe de filmagem e por
Eduardo Coutinho, versões diversas da mesma história – e também da mesma História – e
pedaços de algo que foi e do que poderia ter sido. Se fôssemos resumir o enredo, é um
documentário sobre um filme de ficção interrompido pela ditadura que contaria a vida de um
líder camponês assassinado na década de sessenta e as conseqüências para os envolvidos nas
filmagens dessa interrupção. Mas torna-se algo maior e difícil de precisar, pois envolve vidas
e histórias contadas e construídas ao longo do documentário por seus realizadores e por todos
os que participam do filme. E mesmo assim isto é feito, pois a maneira com que Cabra
Marcado foi montado dá conta com responsabilidade e cuidado da complexidade, da
fragmentação e das vidas ali presentes.
Como salientou Henri Arraes Gervaiseau, “...a dimensão fragmentária da narrativa do
filme se deve ao próprio modo de sua emergência. É por meio de uma pluralidade de vozes
que emerge a lembrança de acontecimentos passados e essa lembrança é, por natureza, sempre
parcelar, fragmentada” (GERVAISEAU, 2000: 206). Para estudar o modo de organização
desta pluralidade, é necessário um olhar atento ao desenvolvimento da narrativa e alguns
trabalhos a partir daí criaram uma divisão interna de Cabra Marcado em blocos, compostos
em sua maioria pelos relatos dos personagens das histórias contadas. A pesquisadora Sarah
Yakhni – diretora de cinema e formada em Ciências Sociais pela USP – no texto Cabra
Marcado para Morrer: um filme que faz história divide o filme de Coutinho em quatro
blocos. O primeiro é intitulado Explicando o passado e resgata o período anterior a realização
do primeiro Cabra Marcado para Morrer5 para explicar ao espectador como Coutinho chegou
5
A partir de agora, de modo a facilitar a fluência do texto, irei me referir ao primeiro Cabra Marcado para
Morrer como Cabra/64 e ao segundo apenas como Cabra Marcado.
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à Paraíba, como conheceu Elizabeth Teixeira e a história de João Pedro, de onde surgiu a
idéia do filme, como ocorreram as filmagens iniciais e a invasão do exército em Galiléia. No
segundo bloco, O fio da memória: alinhavando o passado até o presente, Coutinho retorna a
Galiléia dezessete anos depois e assim une a experiência de Cabra/64 ao momento presente.
Ele realiza esta retomada através da projeção do material filmado em Cabra/64 e de
entrevistas com os participantes do filme que estavam na noite da projeção. No terceiro bloco,
chamado O presente revelado pelo passado, começamos a conhecer detalhadamente a história
de Elizabeth e João Pedro. Ela é reconhecida pelos amigos e companheiros durante a projeção
em Galiléia e Coutinho parte em sua procura com a ajuda de Abraão, filho mais velho do
casal. Elizabeth narra a sua trajetória com João Pedro desde o namoro até o assassinato,
história que foi encenada em Cabra/64. Alinhavando o futuro, quarto e último bloco, começa
com Elizabeth contando que seus filhos foram divididos para serem criados pelos seus
familiares e agora ela irá procurá-los, irá voltar para o mundo. Eduardo Coutinho se adianta
nesta busca e parte à procura do desenrolar das histórias, do dia da interrupção das filmagens,
em primeiro de abril de 1964, até o momento presente, 1981. Ele percorre vários pontos do
Brasil para entrar em contato com os filhos de Elizabeth, revelando a trajetória de cada um,
seu modo de compreender o passado e a vida dos seus pais, suas relações familiares e suas
próprias escolhas de vida.
Henri Gervaiseau em seu doutorado pela Escola de Comunicação da UFRJ dividiu
Cabra Marcado em onze seqüências mais um prelúdio e um epílogo. São trechos de duração
desigual que este pesquisador afirma ter identificado a partir da observação do tratamento
dado aos temas por Coutinho, aos quais foram dados títulos para comodidade de exposição.
Para não repetir excessivamente estas divisões e a própria descrição do filme, irei apenas citar
aqui os títulos, que neste contexto são bastante explicativos: o Prelúdio mostra um lugar
indefinido, dura apenas vinte segundos e é seguido pela seqüência I, Apresentação do tema
do filme. As seqüências seguintes são: História da Liga de Galiléia, Estabelecimento do
tempo presente da narrativa, Engate das lembranças, Lembrança do sofrimento de Elizabeth,
Trajetória da vida de João Pedro, Trajetória da vida de João Mariano, Trajetória de
Elizabeth da morte do seu marido ao golpe de Estado, Repercussões do golpe de Estado em
Galiléia e perseguições subseqüentes e História dos filhos de Elizabeth e João Pedro. A
décima primeira seqüência é chamada Metamorfose final de Elizabeth, mas o filme termina
com um Epílogo, no qual Coutinho fala da morte de João Virgínio.
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Estas divisões feitas por Gervaiseau e Yakhni não são óbvias nem absolutas e
compreendi o seu caráter funcional de organização das narrativas para facilitar a análise do
filme. Entretanto, após tentar estabelecer uma divisão a partir do meu olhar para o filme,
percebi que a fragmentação é parte fundamental de Cabra Marcado. Composto por
deslizamentos temporais, deslocamentos espaciais, múltiplas vozes e olhares sobre o que
poderia parecer ser apenas uma única história, o filme carrega a sua poesia, sua ficção e seu
lirismo dentro da constante alternância de lugares e épocas. Após reconhecer esta
fragmentação, decidi respeitá-la e dediquei-me a fazer um mapa da decupagem no qual todas
as falas, imagens e sons de Cabra Marcado fossem descritos. Foi um trabalho longo e
cansativo, mas a partir dele todas as seqüências das duas horas de filme começaram a povoar
minha mente e eu conquistei tanta intimidade com cada seqüência ou diálogo que ficou claro
para mim quais pontos de Cabra Marcado seriam fundamentais para a minha análise.
Já haviam se passado alguns meses do início da pesquisa quando terminei a
decupagem e a partir daí as imagens do filme passaram a deslizar pelos meus pensamentos em
diversos momentos do dia e da noite, de modo que os muitos textos que eu havia lido para
poder compreender uma área teoricamente nova mim – o cinema – começaram a fazer
sentido. Foi então que eu percebi, entre leituras e conversas com a professora Sônia, que as
seqüências que eu destacava em Cabra Marcado se agrupavam em grandes temáticas e estas
me interessavam profundamente por levantar discussões não apenas das Ciências Sociais, mas
também das teorias literárias, da Lingüística e do cinema em si.
Deste modo, o reconhecimento no filme de questões pertinentes ao atual debate sobre
a morte do autor se agrupou primeiramente no termo “autorias”, para pouco depois se
converter em polifonias, pois uma mudança de enfoque ao considerar quem assinou um texto
tem como uma das conseqüências o reconhecimento da multiplicidade de vozes – polifonias –
que permeiam este texto6. Roland Barthes em seu texto A morte do autor afirma que a escrita
é a destruição de toda voz e de toda origem, a partir da qual sobra um neutro, “o branco-epreto onde vem se perder toda a identidade, a começar pela do corpo que escreve”
(BARTHES, 1992: 65). A partir do momento que conta algo, a voz perde sua origem e o
autor – esta personagem moderna criada por nossa sociedade moderna que durante muitos
6
Considero aqui a palavra “texto” no seu sentido mais amplo, de textualidade, textura e tessitura, que permite
a inclusão de quaisquer criações representando algum tipo de discurso, tais fotografia, cinema, dança ou as
novas linguagens digitais. Bakthin define “texto” como tudo aquilo que diz respeito à toda produção cultural
fundada linguagem. É uma definição abrangente, tendo em vista a afirmação de Robert Stam de que “(...)
para Bakhtin não há produção cultural fora da linguagem” (STAM, 1992: 13).
14
anos conferiu prestígio pessoal ao individuo – morre. Apesar do autor¹ reinar em biografias,
entrevistas de revistas, manuais e na consciência de quem escreve e de quem lê e busca a
explicação da obra no autor, o seu império já está sendo abalado, suprimido em proveito da
escritura.
Eu li A morte do autor no início desta pesquisa e, mesmo encantada com a idéia do
autor não ser nada além do que aquele que escreve, (a linguagem conhece um ' sujeito' – não
uma pessoa – que basta para 'sustentar' a linguagem, isto é, para exauri-la”), não consegui sair
da aparente contradição de concordar com ela, mas de admirar muito o trabalho de um
determinado autor. Concordava que o texto é um espaço de múltiplas dimensões, tecido de
citações e signos, mas eu não consegui imaginar o texto como um neutro apenas sustentado
pelo autor enquanto sujeito, pois a força de enaltecer determinado escritor ou cineasta
superava a possibilidade de ele ser apenas literalmente aquele que fez tal texto, afastado do
mérito deste seu trabalho.
Cada entrevista de Eduardo Coutinho que eu lia aumentava minha admiração e eu relia
Barthes para encontrar algum espaço no seu texto para este enaltecimento, quem sabe algum
furo nas suas idéias. Como não encontrava nem um nem outro, deixei A Morte do autor
algum tempo de lado. Alguns meses se passaram – poucos – e após ler Introdução à teoria do
cinema, de Robert Stam, fiquei pasma com a qualidade deste livro e resolvi buscar outros
trabalhos deste autor. Como pretendia estudar a obra de Bakhtin, em especial a idéia de
polifonia, a professora Sônia Maluf sugeriu ler o texto de Stam sobre o lingüista russo. Foi
então, a partir dos textos de Stam e Bakhtin, que as idéias de Barthes se clarearam para mim e
eu pude ir além da mera leitura/entendimento da idéia de destruição, compreendendo e
observando seu funcionamento na “prática”.
A vida de Mikhail Bakhtin foi permeada desde a infância por trocas culturais e
misturas de classes e etnias, seja na cidade de Vilna, capital da Lituânia e exemplo de
poliglossia pela mistura de judeus, poloneses e lituanos, todos convivendo na pequena cidade
para a qual ele se mudou aos nove anos, seja nos círculos acadêmicos em torno dos estudos da
língua dos quais Bakhtin participou antes mesmo de completar vinte anos. Estes detalhes
biográficos servem apenas para caracterizar o contexto no qual as idéias de Bakhtin sobre o
diálogo e sobre a relação com o outro foram fomentadas, pois são estas influências que
deram-lhe vivência e respaldo para ele escrever seus trabalhos. Para Bakhtin, durante o
diálogo humano eu posso ver o que você não pode ver e você vê o que eu não posso ver. O
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“eu” não é autônomo nem monádico, existe apenas em diálogo com outros “eus” e se constrói
em colaboração. Do mesmo modo, para Bakhtin o autor não é uma entidade estática, não está
“lacrado”, mas é uma energia disponível que existe em interação com outros “eus” e
personagens.
Alguns autores assinalam a ironia de ser Bakhtin – que dedicou seus estudos às
questões do autor – objeto de disputas em torno da autoria, pois muitos livros escritos
principalmente por ele foram publicados sob o nome apenas dos companheiros de produção.
Dentre esses livros compostos por uma mescla de vozes ou assinados por Bakhtin, o que mais
me ajudou na superação das minhas dúvidas quanto a idéia de autoria foi Problemas da
poética de Dostoiévski. Este livro trata da relação entre Dostoiévski como autor e seus
personagens e Stam afirma que “Dostoiévski deve ser visto como o orquestrador das vozes de
personagens que estão a seu lado em completa liberdade, e capazes de discordar de seu
criador e até rebelar-se contra ele. Bakhtin assevera que a criação do romance 'polifônico',
uma pluralidade textual de vozes e consciências diferenciadas foi a grande contribuição de
Dostoiévski à literatura moderna”.
Como Coutinho em Cabra Marcado, a arte de Dostoiévski permitiu que visões de
mundo talvez incompatíveis, ou pelo menos muito distantes, dialogassem em um mesmo
espaço, que para o primeiro é um filme e para o segundo é um livro. Para Bakhtin,
Dostoiévski é autor no sentido polifônico, de quem não está preso a limites do discurso por
colocar a sua voz nos seus personagens, no seu herói. E a partir de uma abordagem igualitária,
anarquizante e carnavalesca, típica de seu pensamento, Bakhtin consegue orquestrar as
múltiplas vozes no seu livro, tal como Dostoiévski, de modo que seu discurso não estabelece
com o escritor russo uma louvação unilateral e de posse. Há diálogo com o “eu” que escreve
os romances e que é múltiplo, polifônico, carregado de visões e influências, heterogêneo nas
suas vozes. Do mesmo modo trabalha Coutinho e ao ler o trabalho de Robert Stam e de
Bakhtin foi possível compreender a idéia do autor morto, destruído em sua escrita individual
performática.
Em Cabra Marcado é possível perceber diversos tempos e espaços. Ao ver o filme,
surge a percepção do modo como a diegese percorre muitos momentos da história, muitos
lugares do Brasil, e se adequa à linearidade do que é dito e visto a partir da montagem,
sobrepondo-se a um historicismo cronológico clássico. Tal percepção, registrada em diversos
momentos do filme, se agrupou na temática Deslocamentos. Esta temática trata dos diversos
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deslizamentos ocorridos em Cabra Marcado pelos múltiplos lugares em muitos anos por
diversas pessoas. Ela perpassa um outro tema intitulado Narrativas, na medida em que o
tempo-espaço do filme se constrói pelos depoimentos dos personagens. Há em Cabra
Marcado para Morrer diversas narrativas sobre os muitos tempos vividos, além do momento
presente do filme e , ao final, também de um por vir. Há também uma Narrativa (com letra
maiúscula) que é única e marcada pelas datas, pois se trata da “História” que, mesmo não
sendo superior a nenhuma outra verdade do filme, existe concomitante às outras histórias. E
há a memória – ou as memórias – afetiva, distinta das narrativas apenas por tratar de períodos
anteriores ao registro de Cabra/64 e da UNE-Volante. No livro A história vai ao cinema,
Antonio Torres Montenegro analisa a relação entre memória e História (para ele, com letra
maiúscula) a partir de Cabra Marcado e afirma que o retorno de Eduardo Coutinho ao
Engenho Galiléia dezessete anos depois simboliza o revisitar e reconstruir coletivo de uma
memória. Para Montenegro, após Coutinho delinear algumas questões, tais como o recorte
temporal do filme que pretendia fazer, o resultado do filme dependeu inteiramente da
memória – e das narrativas da memória – destes camponeses e de alguns entrevistados. Mas a
memória é seletiva, não é cronológica e nem sempre pode ser facilmente traduzida em
palavra, ressalta Montenegro, de modo que são muitos os desafios de Coutinho ao realizar o
filme e um dos recursos que ele utiliza é, a partir de uma pesquisa de enquadramento
histórico, contrapor os depoimentos e a História. Assim, as temporalidades de Cabra
Marcado estabelecem equilíbrio, sem evidenciar nenhum tipo de discurso em detrimento de
outro. O filme se torna, assim, um documento de vida, “não apenas um registro histórico
sobre o peso da violência de um regime, mas a tentativa de interromper, de barrar o silêncio, a
perda, a dor, a tristeza”(MONTENEGRO, 2001: 191).
As questões acerca dos diversos tempos e espaços de Cabra Marcado, bem como
sobre os tipos de deslocamentos do filme, já foram detidamente analisados ao longo deste
trabalho. Entretanto, para compreender e talvez concluir a temática dos deslocamentos de
Cabra Marcado, considero importante destacar o artigo de Eliska Altmann, Memórias de um
Cabra Marcado pelo Cinema: representações de um Brasil rural. Ela analisa as
representações de um Brasil rural no filme de Coutinho a partir de compreensões estéticas e
sociais e conclui que o Nordeste de Cabra Marcado – uma região de atraso,
subdesenvolvimento e rígidas hierarquias latifundiárias – ainda existe hoje. Ela considera o
sentido da memória postulado por Halbwachs, “'uma corrente de pensamento contínuo, de
17
uma continuidade que nada tem de artificial, já que retém do passado somente aquilo que
ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém” (apud ALTMANN,
1990: 81), para afirmar que o contexto histórico das Ligas funda-se numa memória que ainda
subsiste enquanto vivência empírica. E conclui “Assim, o termo 'memória histórica', apesar de
paradoxal, alicerça o Nordeste brasileiro e suas representações, lançando uma ponte entre o
passado e o presente, restabelecendo essa continuidade interrompida. Se a criação desta ponte,
enquanto denunciação de uma memória injusta e inacabada, for uma das tarefas do cinema,
acreditamos que Cabra Marcado concretizou-a de forma bem sucedida” (ALTMANN, 1990:
101). A idéia de uma representação do campo como atraso e miséria apresentada nesse artigo
deve ser questionada, mas o conceito de 'memória histórica' poderia ser aplicado ao filme
como um todo, alinhavando assim as inúmeras temporalidades de Cabra Marcado para
Morrer.
Há também em Cabra Marcado uma miríade de narrações, contações, fabulações,
encenações. A história de João Pedro Teixeira é contada por sua viúva Elizabeth, pelos
companheiros João Virgínio e Manoel Severino e por Eduardo Coutinho em Cabra/64. A
história das filmagens é contada por estes personagens e também por João Mariano, Cícero,
Brás Francisco, Zé Daniel e João José. A histórias destas filmagens pretendia contar a história
de João Pedro e quase todos os que contam sua história dizem que ele representa todos os
camponeses que lutaram por melhores condições de vida no campo.
São histórias contadas dentro de outras histórias, um filme dentro de outro filme. E os
pontos analisados a partir deste reconhecimento foram agrupados sob o nome de Narrativas.
Marc Vernet dedica um capítulo do livro A estética do filme, organizado por Jacques Aumont,
para desenvolver as características da relação entre cinema e narração. Apesar de um pouco
distante da análise das diversas narrativas de Cabra Marcado, Vernet elabora com acuidade a
noção de narração para o cinema e seu texto é muito interessante para pontuar as principais
questões acerca desta temática e para compreender os possíveis mecanismos dessa linguagem.
Vernet afirma que a princípio, o cinema se destinava a ser um instrumento de
investigação científica, mas o seu encontro com a narração foi profícuo e se desenvolveu a um
ponto que hoje não conseguimos nos imaginar indo ao cinema se não for para ouvir uma
história que será contada. O cinema narrativo clássico é hoje predominante quando se trata do
circuito comercial de exibição. E mesmo os documentários – que possuem uma relação
diferente com aquilo que vai ser contado por geralmente tratar de histórias que “aconteceram”
18
– se utiliza de procedimentos narrativos, seja para manter o interesse ou por uma escolha
estética. A partir da idéia de que todo cinema é ficção, podemos considerar que um
documentário como Cabra Marcado para Morrer é uma construção (logo, uma ficção) e se
utiliza das três instâncias do cinema comumente tido como ficcional: a narrativa, a narração e
a diegese. Estas são instâncias do texto literário que Vernet particulariza para analisar o
cinema e que vou aqui caracterizar para analisar o filme de Eduardo Coutinho.
1) A narrativa – é o enunciado em sua forma material, o texto narrativo que contará a
história. Formada no romance apenas por palavras, no cinema a narrativa é composta
também por imagens, ruídos, música. É um discurso complexo, mas materialmente
limitado, composto por uma gramática, uma coerência interna, efeitos e organização,
pois o espectador precisa entender o filme. É a organização da narrativa que permite
ao espectador estabelecer um entendimento não apenas das imagens que estão sendo
vistas, mas da ligação entre elas e, conseqüentemente, do filme como um todo. A
narrativa de Cabra Marcado para Morrer se compõe de uma complexa rede de
referencias pois, por exemplo, um dos elementos narrativos é um outro filme,
realizado dezessete anos antes
2) A narração – Refere-se às relações existentes entre enunciado e enunciação, afirma
Vernet, é o ato narrativo/produtor que agrupa tanto a ação de contar algo quanto a
situação na qual esta ação está inscrita. A narração comporta algumas determinações
quanto ao modo como se realiza e exige uma distinção dos seus elementos, o que será
feito apenas brevemente neste texto em relação à Cabra Marcado, na medida em que
estes já foram detalhados anteriormente. A idéia de autor está vinculada à narração,
mas o narrador é um papel fictício – porque age como se a história fosse anterior a sua
narrativa enquanto é a narrativa que a constrói – que em Cabra Marcado é
desempenhado pelo próprio “autor” e por um narrador que se exprime em terceira
pessoa, do modo convencional. O
narrador escolhe o encadeamento narrativo e
produz ao mesmo tempo uma narrativa e uma história. A instância narrativa seria “o
lugar abstrato em que se elaboram escolhas para a conduta da narrativa e da história,
de onde trabalham ou são trabalhados os códigos e de onde se definem os parâmetros
de produção da narrativa fílmica” (AUMONT, 1995: 111). Ao utilizar tal termo, é
possível reconhecer que uma narração como a de Cabra Marcado se constrói pelo
trabalho de uma equipe e por diversas opções assumidas não apenas pelo diretor, mas
19
por diversos técnicos e pelo esforço conjunto. Ferreira Gullar e Eduardo Coutinho, os
dois narradores de Cabra Marcado, fazem parte da instância narrativa, mas não a
resumem, até mesmo por que existe uma instância narrativa real e outra fictícia, ou
seja, existem duas narrações ou dois textos narrativos, um externo e outro interno à
história que está sendo contada. Este significado dado à narração por Vernet pode ser
englobado pela idéia de muitas narrativas presente em Cabra Marcado, pois neste
filme as inúmeras vozes existentes oferecem um sentido plural – polifônico – às
narrações que guiam as histórias.
3) A história ou a diegese – Pode ser definida como o significado ou o conteúdo
narrativo, ou seja, o universo fictício no momento em que se concretiza e se torna uno,
formando um pseudomundo interno composto pelas ações, o contexto e o ambiente.
Para analisar Cabra Marcado é interessante compreender estas três instâncias na
medida em que os mecanismos de construção de um filme tornam-se mais evidentes quando
entendidos em comparação com todos os filmes, ou seja, com a teoria do cinema de modo
geral. Reconhecemos que determinados efeitos narrativos do filme de Eduardo Coutinho são
recursos normalmente utilizados, o que não tira o valor de Cabra Marcado como
representante de um salto e de uma mudança fundamental no cinema documentário e até
mesmo no cinema de sua época.
O nome dado a uma das temáticas, Efeitos de real, de antemão sugere o assunto que
será tratado pelas seqüências e cenas inseridas neste item. Efeito de real é o título de um texto
de Roland Barthes, do livro O rumor da língua. Neste artigo/capítulo, Barthes analisa os
pormenores inúteis da narrativa corrente ocidental, que devem ser cuidados por todo método
que pretender dar conta da integralidade do seu objeto que, neste caso, é toda a superfície do
texto narrativo. A descrição é parte deste conjunto de pormenores e, por ser meramente um
somatório,
tem
um
caráter
insignificante.
Deste
modo,
cria-se
uma
oposição
antropologicamente interessante por ser análoga à oposição entre natureza e cultura, na
medida que os animais se comunicam por mecanismos desprovidos de descrição. Nesta lógica
de pensamento, a descrição seria própria às linguagens superiores, sem finalidade de ação ou
significação. Mas se tudo na narrativa é significante, qual a significação dessa insignificância
da descrição? Para a cultura ocidental, desde a Antigüidade e por um longo período, a
finalidade estética delimitava o sentido da descrição. Barthes dá um salto até Flaubert e
mostra que no livro Madame Bovary há uma mudança nesta premissa e a descrição passa a se
20
relacionar com a verossimilhança, pois a finalidade estética flaubertiana é mesclada de
imperativos “realistas” “como se a exatidão do referente, superior ou indiferente a qualquer
outra função, ordenasse e justificasse sozinha, aparentemente, descrevê-lo” (BARTHES,
1988: 162). Deste modo, as injunções estéticas passam a ser penetradas por injunções
referenciais, colocado o referente como algo real para ter maior liberdade na escolha do que
escrever. A história, então, incorpora esta referência ao “real” e este passa a ser o modelo. O
real basta por si, acima de qualquer idéia de função e “ter-estado-presente” torna-se um
princípio suficiente da palavra. Há uma ruptura entre a verossimilhança antiga e o realismo
moderno e nasce um novo verossímil, que é o realismo. Barthes chama isso de 'ilusão
refencial' e representa uma desintegração do signo pelo encontro direto do objeto com sua
expressão. Entretanto, há uma espécie de regressão, pois se faz em nome de uma plenitude
referencial. E assim se coloca em causa a estética secular da “representação”.
Barthes consegue neste texto caracterizar a atual definição de realismo nas
representações artísticas, mostrando através da sua transformação no tempo como funciona o
efeito de real ao relacionar um objeto diretamente à sua expressão. Entre as técnicas e artes da
representação do objeto em movimento, o cinema sempre foi o que despertou maior
impressão de realidade. Barthes se refere neste artigo ao texto escrito, mas sua descrição do
efeito de real vale para qualquer espécie de texto. Entretanto, vale a pena definir para o
cinema este efeito de real. Jacques Aumont ressalta que reagimos diante da imagem fílmica
como diante da representação realista de um espaço imaginário que aparentemente estamos
vendo. Captamos uma imagem na tela como se aquele espaço fosse realmente composto de
três dimensões e como se ao redor daquele campo houvesse uma continuação daquele espaço,
daqueles objetos. Esquecemos que ao redor da cena está uma equipe de muitas pessoas,
câmeras e microfones, cultivamos um efeito de real pela nossa enganada percepção. E hoje o
cinema narrativo tem procurado aumentar ainda mais a sua proximidade com a realidade,
como Aumont aponta, para que a experiência de ver uma imagem bidimensional e limitada se
amplie e pareça ao espectador cada vez mais real.
Eduardo Coutinho em Cabra Marcado inverte esta lógica e tenta evidenciar a
construção daquele aparente realismo. Para o site de cinema Zaz, Coutinho afirmou – sobre
Cabra Marcado – que:
“A picada que o filme abre, a meu ver, não é tanto o fato de a equipe
aparecer - isto se faz muito. O importante, a meu ver, é que certas
21
informações de texto e de estrutura do filme servem para indicar as
condições de produção da 'verdade'. Quer dizer, hoje as pessoas falam
dessa maneira, numa determinada situação; no dia seguinte, de
surpresa, podem falar de outra maneira.”
Há nesta fala e no filme uma consciência da tentativa de refletir sobre a produção de
real e ela está presente nas escolhas de montagem: claquetes, cortes por causa do som,
interrupções e microfones aparecem ao longo do filme constantemente, de maneira sutil e, ao
mesmo tempo, perceptível.
Entretanto, essa postura de Eduardo Coutinho foi construída a partir de um contexto
propício. Como afirma Consuelo Lins em O documentário de Eduardo Coutinho, livro
dedicado ao trabalho do cineasta, entre 1964 e 1981 muita coisa aconteceu na história do
cinema: as inovações do neo-realismo italiano do pós-guerra e do cinema de diretores como
Orson Welles e Roberto Rossellini – que revolucionaram o cinema de suas épocas ao utilizar
narrativas não-lineares, entre outros fatores – se aprofundaram; o espectador passou a ser
investigado em sua relação com o significado dos filmes; aumentou-se a recusa dos cinemas
novos aos modelos clássicos de ilusionismo cinematográfico. O mundo na década de 1980
também já conhecia o Cinema Verdade e a obra de Jean Rouch. Amir Labaki, criador do
festival internacional de documentários É Tudo Verdade, afirma que “Enquanto as inovações
de Drew, Leacock e turma foram determinantes para a a escola do Cinema Verdade da
primeira metade da década de 1960, o modelo de Jean Rouch imprimiu marcas nítidas no
Cinema Verdade brasileiro da metade final dos anos 60 e nos anos 70”(LABAKI 2006: 59).
Rouch teve suas origens na “Antropologia compartilhada” e realizou seus primeiros filmes em
1947, seguindo o modelo clássico das imagens de costumes tribais e narração em off. Porém,
ele já desconfiava do modelo positivista ao afirmar que quando ligamos uma câmera, estamos
violando uma privacidade. Inicialmente, Rouch utilizou reencenações à moda Flaherty, depois
a reflexividade e a ficção e com Moi, un Noir, de 1958, moradores de Gana “interpretam”
papéis que escolhem livremente. Já há o equipamento mais leve do Cinema Direto e se
estabelece o documentário compartilhado, que Edgar Morin batizou de Cinema Verité.
Coutinho criou uma nova forma de fazer filmes e muitos dos recursos que utilizou em
Cabra Marcado para indicar as formas de produção da verdade, para quebrar o efeito de real
em seus filmes, são hoje a forma corrente de se produzir filmes documentário. É importante
reconhecer sua trajetória alicerçada em outros exemplos e em um ambiente favorável, mas é
22
também fundamental refletir sobre as suas inovações pelo elogio à sua obra e para que elas
não se tornem hoje, em outros filmes, mais um mecanismo de produção do ilusionismo.
Além das questões propriamente estéticas analisadas, Cabra Marcado remete
constantemente ao longo período no qual o primeiro filme tentou ser feito e o segundo se
concluiu, período marcante na história contemporânea de todos os países da América Latina.
Comentários referentes ao período da ditadura ou à condição de vida das pessoas naquele
momento histórico permeiam as duas horas de filme. São comentários sobre a luta agrária no
Nordeste brasileiro, as particularidades da vida no sertão, o movimento pela reforma agrária, a
organização dos camponeses, a migração na busca por emprego e diversas outras
“informações” contadas ao longo do filme. Foram agrupadas sobre o nome de Ditadura, pois
estão relacionadas ao período de realização do filme que coincide – não por acaso – com o
período do regime militar no Brasil: 1964 a 1981. Por Eduardo Coutinho ter entrado em
contato pela primeira vez com Elizabeth em 1962, em um comício na Paraíba, e por toda a
história da vida de João Pedro ter se passado nos anos anteriores ao Golpe, muitas das
questões analisadas nos itens desta temática tratam do contexto anterior às filmagens, do
período das lutas camponesas.
Todas essas questões aparecem em Cabra Marcado por conta de suas conseqüências
na vidas daquelas pessoas/personagens. Pois é esta a verdade que interessa ao filme e a
Coutinho: a verdade do momento da filmagem que não deve ser sobrepujada pela dos livros
de histórias, e vice-versa. Deste modo, descobrimos o desemprego de Cícero e sua mudança
para São Paulo, para tentar uma vida melhor, ouvimos João Virgínio contar das torturas
sofridas nos sete anos de prisão, conhecemos a prática da prefeitura de Galiléia antes dos
camponeses se organizarem de ter um único caixão para ser emprestado quando fossem feitos
os velórios dos mortos e que depois tinha que ser devolvido, sabemos o que ocorreu nos
dezessete anos de Elizabeth exilada dos seus filhos e da sua história, nos comovemos com o
futuro fim de uma minúscula cidade do interior para a construção de uma hidrelétrica e com o
desaparecimento e o assassinato de líderes camponeses. Relacionadas à situação de um Brasil
marcado por repressão, censura e medo, mas também por lutas e movimentos sociais de muita
força, estas histórias particularizam um contexto já conhecido pela historiografia e
aproximam-no de um espectador que será então sensibilizado.
De acordo com a pesquisadora argentina Beatriz Rajland em uma palestra dada em
fevereiro de 2006 na UFSC, é importante falar do que se passou durante o regime militar não
23
apenas por nostalgia, mas por militância histórica. Mas esta história, afirma Rajland, deve ser
feita não sobre o que se passou, mas sobre o significado que o que se passou teve. Essa é a
idéia desta temática: analisar o significado da ditadura através da sua repercussão e do seu
significado para os personagens de Cabra Marcado para Morrer. Resgatar a história de um
período muitas vezes esquecida, sim, mas reconhecer que tal esquecimento abarca também
uma miríade de outras histórias talvez menores, mas cujos significados são a principal razão
para se refletir sobre o passado.
Os caminhos do texto
Estas cinco temáticas – Polifonias, Deslocamentos, Narrativas, Efeitos de real e
Ditadura – serão o apoio sobre o qual foi feita a análise de Cabra Marcado. Deste modo, o
texto no qual eu narro esse filme – suas imagens e sons – será intercalado por quadros com
comentários sobre as seqüências. Esse texto é a minha leitura de Cabra Marcado, o modo
como eu vi, refleti, analisei e escrevi sobre o filme. Ao contar em um texto as imagens, sons e
palavras do filme que eu estudava, pretendi realizar uma espécie de etnografia sobre o filme.
Para isso, primeiro eu decupei o filme, colocando no papel todas as falas, sons e imagens que
eu via ao assistir Cabra Marcado. Não procurei me ater com muito rigor aos padrões de uma
decupagem cinematográfica clássica, pois pretendia que deste trabalho emergisse o meu olhar
sobre aquelas seqüências. Utilizei, portanto, apenas os termos e símbolos da Teoria do
Cinema que facilitariam a compreensão da imagem vista por quem quer que lesse esta
decupagem.
Com o mapa da decupagem nas mãos (ver apêndice C) – como se esse fosse o meu
diário de campo – relatei minha experiência de ver o filme, narrando os planos, a música7 e os
ruídos que eu via na tela. Para realizar essa leitura particular, lancei mão das reflexões
sociológicas, antropológicas, cinematográficas e literárias das quais eu dispunha, dando
espaço também a textos de outras áreas que se referissem à Cabra Marcado ou ao trabalho de
Eduardo Coutinho. E tais referências foram a base para as reflexões sobre o filme, que se
tornaram as intervenções feitas em minha própria narrativa, delimitadas no texto – para
facilitar a leitura – por um quadro.
Desse modo, o texto que se segue é a minha narrativa de Cabra Marcado para
Morrer, intercalada por comentários dentro de um quadro em destaque. O leitor acompanhará
7 Infelizmente, não pude me aprofundar na especificação das músicas pelo tempo que dispunha para essa etapa
e me detive em uma reflexão sobre o uso do som direto ou não em Cabra Marcado.
24
o texto da narrativa do filme e, após uma seqüência de maior relevância para minha análise,
ele poderá seguir para a leitura do quadro localizado abaixo da narrativa. Quando terminar de
ler o comentário feito sobre aquela seqüência, o leitor pode voltar à narrativa que seguirá o
fluxo do texto, fora do quadro delimitado.
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CABRA MARCADO PARA MORRER: OLHARES, SONS E PALAVRAS
Um céu de pôr-do-sol. Azul, em tom suave, é a cor mais no alto. Abaixo dele vem o
cor-de-rosa e por último um amarelo que vai ao encontro do desenho de uma colina com uma
grande antena de televisão. O céu é apenas um pedaço pequeno da parte de cima de uma tela
de computador – o meu – e todo o resto da tela é a colina, mas mesmo assim não vejo os seus
detalhes, pois o sol já se pôs e está por trás dela. Por isso, o que cobre a maior parte da tela é
uma grande faixa escura com os contornos de uma colina e pelas caixinhas de som sai uma
música instrumental que cria a expectativa de que algo vai acontecer, mas eu não sei o que é .
No meio dessa escuridão aparece, então, um pequeno quadrado de luz no canto esquerdo da
tela. Esta luz que foi acesa é a janela de uma casa e eu só me dou conta disso alguns segundos
depois, quando todas as luzes de dentro e fora da casa se acendem. E eu fico ainda mais
surpresa: se a cena do céu e da colina era bonita e poética antes, quando a seqüência se
completa este início de filme torna-se genial.
É o inicio de Cabra Marcado para Morrer. Os primeiros segundos de filme, que
provavelmente passam desapercebidos pela maioria dos espectadores por serem imagens
soltas, sem aparente relação com uma história que só parece começar alguns instantes depois.
Mas a tela do meu computador estava acostumada com outro início de Cabra Marcado, um
início já visto pelo menos uma dúzia de vezes, e aquela seqüência não passou despercebida.
Fez, na verdade, muito sentido para mim e, devo confessar sim, eu chorei.
NARRATIVAS I
Porque eu já tinha visto tantas vezes Cabra Marcado para Morrer, mas mesmo
assim não conhecia aqueles minutos iniciais? Bem, é uma longa história:
Era dia dezessete de julho de 2006 e o projeto Se Essa mídia fosse Minha iria
apresentar no sindicato dos bancários de Florianópolis Cabra Marcado para Morrer. A
proposta do SEMFM, sigla e insígnia deste instigante projeto, é provocar na cidade
novos espaços de discussão e reflexão sobre alternativas de comunicação. Uma das
atividades, então, é o chamado Cine Mídia, a exibição pública de materiais audiovisuais
distantes do circuito convencional8. Estes encontros acontecem quinzenalmente, com
uma sopa gratuita no terraço do edifício do sindicato após a exibição, momento que
8 Estas informações foram recolhidas a partir das conversas com integrantes do SEMFM e da primeira revista
organizada pelo coletivo, publicada em abril de 2006.
26
geralmente rende bons debates sobre os filmes vistos e quaisquer outros assuntos que
surjam entre os presentes. Quando me avisaram que naquela segunda-feira iria ser
exibido Cabra Marcado, sabia que não poderia faltar, pois seria o momento de discutir,
ouvir e ver outros olhares sobre o filme que eu estava estudando. Assim, lá fui eu para o
centro de Florianópolis naquela segunda-feira de julho, ver mais uma vez este
documentário de Eduardo Coutinho. A sala onde o filme ia ser exibido estava cheia, mas
não era grande. Éramos no máximo dez pessoas e eu estava muito segura que era a
pessoa mais entendida do assunto ali, pois há pelo menos três meses eu via, revia, lia
textos e pensava sobre este filme. Muito segura até o filme começar, quando aconteceu
de eu não reconhecer o que estava vendo na tela. Que filme era aquele? Era Cabra
Marcado, sem dúvida, pois falava da UNE-Volante e toda a experiência de Coutinho no
sertão que antecede a idéia deste filme. Mas eu não conhecia aquelas cenas e tinha
vontade de levantar e perguntar o que estava acontecendo. Passaram-se alguns minutos
de interrogações, suficientes para toda a minha confiança sumir, e então a foto de
Elizabeth Teixeira rodeada pelos seus seis filhos na praça do comício, em janeiro de
1964, me informou que eu já podia ficar aliviada: o filme que conhecia começava
justamente naquele momento. O que havia acontecido? Descobri depois da sessão com
os garotos que compõem o SEMFM – um deles colega de curso nas Ciências Sociais –
que aquela versão havia sido disponibilizada pelo Festival Latino Americano da Classe
Obreira (FELCO)9 e que o filme que eu havia anteriormente visto estava cortado, mas
era o que estava disponível nas locadoras, a versão comercial. Porque disponibilizar para
o público geral uma versão cortada do filme? Porque cortar justamente estes quatro
minutos de um filme de duas horas de duração? Há nestes quatro minutos explicações
sobre o que a UNE-Volante estava fazendo no Nordeste, por que Coutinho estava
acompanhando a caravana, sua relação com o CPC e o que foi visto por lá. Há também
uma fala de Coutinho no qual ele se posiciona como responsável por aquelas filmagens
e pontua a postura nacionalista característica daquele momento. Talvez questionar o
corte destas seqüências seja analisar questões que estariam além do trabalho de Eduardo
9
O FELCO é um festival de cinema e vídeo dedicado às lutas, realidade e cultura da classe trabalhadora no
continente latino-americano. Em 2006 acontecerá a terceira edição no Brasil, Bolívia e Argentina, com uma
fase inicial itinerante em ocupações, sindicatos, cineclubes e universidades de diversas cidades nestes três
países. A edição oficial será em São Paulo no final de novembro. O SEMFM conseguiu com os
representantes de Florianópolis do Festival esta cópia de Cabra Marcado, cópia que atualmente se encontra
(assim como todo o acervo do FELCO) no Laboratório de Sociologia do Trabalho da UFSC, endereço
eletrônico: http://www.cfh.ufsc.br/~lastro/
27
Coutinho, mas mesmo que haja por trás deste corte apenas uma necessidade técnica, foi
feita uma escolha que cria implicações no conteúdo do filme. E pelo conteúdo desses
quatro minutos é possível pensar que as implicações podem ser políticas, na medida que
o espectador que assistir à versão comercial de Cabra Marcado e não buscar nenhuma
outra informação sobre o filme) não irá tomar conhecimento da vinculação de Cabra/64
e, conseqüentemente, deste filme com o CPC.
No pé da colina sem iluminação está a casa, agora com luz e várias pessoas ao redor.
Na frente dela vemos uma mesa com um projetor em cima e esta cena termina quando um
homem – agora visto em plano conjunto – consegue colocar uma bobina no projetor.
Esta seqüência inicial colorida termina da mesma maneira como começou: sem
palavras ou explicações. Entra, então, um plano conjunto em preto e branco de várias casas
pequenas de palafita coladas umas nas outras, ligadas entre si por uma precária estrutura de
madeira onde dois homens caminham. A música, instrumental desde o começo do filme, é
agora estridente e cantada por um coro quase alegre, não fosse a letra que diz “é um país
subdesenvolvido, subdesenvolvido...”. Na tela, uma seqüência de imagens em preto e branco:
um barco passa pelo conjunto de casas, uma mulher alimenta um porco, algumas crianças sem
blusa brincam perto da janela. Ao fundo, o coro repete “Subdesenvolvido, subdesenvolvido,
subdesenvolvido...” muitas vezes, até surgir outra cena nas quais dois meninos carregam
caranguejos em frente a um mangue. A cantoria continua, mas muda bruscamente sua melodia
para um fado português lamurioso que diz “que passado do período colonial”. A música
ressoa nas imagens e tudo parece levar o espectador a associar aquelas cenas com miséria,
colonização, subdesenvolvimento.
O espectador não é informado, mas são imagens de Água de Meninos, bairro pobre de
Salvador. Um pequeno texto em off diz que as imagens foram feitas em abril de 1962 por uma
caravana da União Nacional dos Estudantes, intitulada UNE-Volante, que percorreu o país
para promover a discussão da reforma universitária. Junto com os estudantes seguiam também
alguns membros do Centro de Cultura Popular com o intuito de estimular a formação de
outros centros de cultura nos Estados.
DITADURA I
Apesar de não ser dito explicitamente em Cabra Marcado para Morrer, alguns
28
acontecimentos ocorreram nos dois anos que separam o primeiro encontro de Coutinho
com Elizabeth e o começo da filmagem do filme de ficção em 1964, acontecimentos
importantes para entender melhor este filme. Estudos específicos sobre Cabra Marcado,
como o livro O documentário de Eduardo Coutinho de Consuelo Lins, a tese de
doutorado O abrigo do tempo de Henri Gervaiseau, e o artigo A historicidade de Cabra
marcado para Morrer de Alcides Freire Ramos, contam que a tarefa de Coutinho na
caravana UNE era dirigir pequenas reportagens cinematográficas sobre a precariedade
da vida dos brasileiros e registrar as atividades dos estudantes. Mas pela falta de
recursos adequados, o trabalho foi interrompido, Coutinho voltou ao Rio de Janeiro e
iria filmar uma adaptação de alguns poemas de João Cabral de Melo Neto. Entretanto, o
poeta recuou na autorização cedida para o uso das poesias e o projeto não vingou, ao
que Coutinho propôs para a direção do CPC fazer o filme sobre o líder camponês
assassinado. Depois de passar quatro meses de 1963 entre Pernambuco e Paraíba, nos
quais teve outros contatos com Elizabeth Teixeira, Coutinho escreveu o roteiro de
Cabra Marcado em três dias e este foi aceito pelo CPC. Criado em 1961, o Centro de
Cultura Popular representava nesse momento uma tentativa de revolucionar o mundo
através da arte, de uma arte revolucionária e popular, que se dirigisse às classes
populares. Suas atividades duraram de dezembro desse ano até março de 1964 e o CPC
durante esse período se organizou como sociedade civil de direito privado de modo que
pudesse trilhar um caminho independente em relação ao Estado. A partir de março de
1962 o CPC estreitou os vínculos com a União Nacional dos Estudantes e ambos
tinham a preocupação de criar obras artísticas didático-conscientizadoras, de arte
engajada.
Embora houvesse discordâncias estéticas e ideológicas – Coutinho era o único
membro do CPC não filiado ao Partido Comunista – o CPC foi uma experiência
fascinante para o jovem cineasta, como ele conta em uma entrevista à revista virtual de
cinema Aruanda, pois permitiu que ele desenvolvesse trabalhos como Cinco Vezes
Favela10 e Cabra Marcado para Morrer.
A música continua no fundo e o narrador explica que se chama “canção do
10 Cinco vezes favela foi o único filme produzido e finalizado pelo CPC. Era composto por cinco episódios e
foi responsável pela revelação de três dos mais significativos cineastas cinemanovistas: Carlos Diegues,
Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman. Hirszman era amigo de Coutinho e foi quem o indicou para
diversos trabalhos desde a década de 1960 até a consagração de Cabra Marcado para Morrer.
29
subdesenvolvido”, uma letra que expressa uma tendência típica daqueles tempos: a imagem
da miséria contrastada com a presença do imperialismo. Ainda em Água de Meninos, agora
na feira local, vemos pessoas caminhando entre as barracas e atrás delas os símbolos da
Texaco e da Esso.
Quando a seqüência muda, Eduardo Coutinho fala pela primeira vez. Sua voz em off –
como em quase todos os momentos do filme – admite sua participação nesta tendência
nacionalista da época. Sabemos que é a voz dele quando ele diz ser o responsável por estas
filmagens, e por que ele fala em primeira pessoa e conta que era um dos integrantes do CPC.
Ele está explicando as imagens em um campo de petróleo da Petrobrás em Alagoas, uma
delas com o próprio Coutinho jovem conversando em primeiro plano com um homem não
identificado.
POLIFONIAS I
Nessa seqüência, composta por cenas tiradas da caravana da UNE, ouvimos pela
primeira vez em Cabra Marcado a narração de Eduardo Coutinho. Este, na verdade, é o
único momento em que ele é filmado diretamente e um dos poucos nos quais ele fala
usando a primeira pessoa do singular, em que diz “eu”. De acordo com a pesquisadora
de cinema portuguesa Manuela Penafria, no artigo O ponto de vista no filme
documentário, a característica consensual acerca das definições de documentário é que
este representa um ponto de vista, uma reflexão do seu realizador sobre determinado
tema que se traduz em uma visão a ser transmitida. Em outras palavras, o documentário
representa uma opinião que, segundo Penafria, é o olhar de quem faz o filme. Coutinho
nessa seqüência se posiciona, pois ao dizer “eu” admite ser aquele o seu olhar sobre
determinado acontecimento e, deste modo, Cabra Marcado define seu gênero para a
teoria do cinema. Pois a diferença entre filmes de ficção e documentários é uma
diferença de gênero, na medida em que todo filme é ficcional por ser ficcio, que de
acordo com Paulo Menezes no texto As relações (im)possíveis entre cinema documental
e conhecimento, significa invenção e também o ato de modelar, criar. Deste modo, o que
diferencia os documentários de outros tipos de filmes é um determinado grau de
ficcionalização, algumas características específicas, como um discurso pessoal, registro
in loco e uma exigência mínima de verossimilhança, e as expectativas e percepções de
quem assiste os filmes. Estas características foram apontadas por Cristina Teixeira
30
Vieira de Melo em um trabalho apresentado no XXV Congresso Anual de Ciência da
Comunicação, O documentário como gênero audiovisual.
A idéia de discurso pessoal, ou seja, de autoria individual será questiona mais
adiante. Entretanto é interessante estabelecer algum limite entre documentário e cinema
ficcional para entender qual o estatuto deste primeiro tipo de filme. Pois na medida que
se admite que o documentário é uma opinião, está se afirmando que ele não representa a
verdade, mas sim a construção de uma verdade que não é outra senão a do próprio filme.
Além da voz de Coutinho – narrador em off que fala em primeira pessoa como
testemunha do que está sendo mostrado – iremos ouvir textos informativos em terceira
pessoa, narrados por Ferreira Gullar, poeta e companheiro do cineasta no CPC. Estes textos
contextualizam o que está sendo mostrado e aparecem ao longo de todo o filme em off.
NARRATIVAS II
Cabra Marcado para Morrer é composto por uma narração que, apesar de
aparentemente seguir o modelo do cinema clássico, é um exemplo de cumplicidade com
que vê o filme e, principalmente, com quem participou do filme. Ela se utiliza da voz em
off, estilo de narração posteriormente abandonado por Eduardo Coutinho, e se divide
entre as falas do diretor falando sobre as cenas como alguém que esteve lá e alguns
textos explicativos em terceira pessoa. Para Marco Aurélio Silva, antropólogo e
pesquisador de cinema, a voz em off faz parte de um estilo de documentários da década
de sessenta, cuja fórmula é conhecida hoje por ser a utilizada na televisão brasileira: um
texto em off por cima das imagens apresenta idéias sobre a produção intercaladas por
depoimentos das pessoas, depoimentos que apenas reiteram e dão crédito de verdade ao
que é visto e ouvido. Há uma voz de verdade nestes documentários que é característica
da estrutura jornalística de apresentação dos fatos e que é a lógica predominante nos
documentários brasileiros desde o seu aparecimento até este período. Amir Labaki
estrutura em seu livro Introdução ao documentário brasileiro uma breve história do
documentário no Brasil e afirma que, após os primeiros anos de filmagens mudas e
voltadas para registros isolados da realidade, há uma transição para o cinema sonoro no
final dos anos 20, pouco depois dos filmes de viagem inundarem o mercado brasileiro. A
partir da década de 30, acompanhando o movimento internacional – iniciado na
31
Inglaterra pelo escocês John Grierson – em favor do documentário de cunho educativo, o
Brasil começa a exibir curtas-metragens antes de cada longa estrangeiro. Trata-se de
uma medida do primeiro governo do presidente Getúlio Vargas, que criou o Instituto
Nacional de Cinema Educativo (INCE). O trabalho do INCE predominou na produção
de documentários no Brasil até 1964, primeiro com um cunho científico e
posteriormente com um caráter mais documental, mas seguindo o sistema griersoniano
cujas características são as mesmas definidas no artigo de Marco Aurélio. Apenas em
meados dos anos sessenta aparecem brechas para uma linguagem mais fragmentária, em
exceções classificadas por esse antropólogo como “modelo etnográfico”. Esta nova
linguagem irá se definir aos poucos, com a ajuda de eventos como a Bienal de São Paulo
em 1962, os seminários de introdução ao documentário oferecidos neste período por um
professor estrangeiro cujas lições básicas eram as do Cinema Direto e com a chegada
dos primeiros gravadores Nagra que permitiam maior liberdade de movimentação nas
filmagens, entre outros. Mas uma janela especial para o documentário brasileiro se abrirá
apenas partir de 1973, com a criação do programa Globo Repórter, de formato
institucional semelhante ao padrão vigente no período, sobre o qual tratarei em um
próximo item. Interessante agora é reconhecer as características chamadas de “modelo
etnográfico” que predominaram a partir do exemplo de Coutinho, a saber, o
reconhecimento do filme como mais uma verdade, a relação com o outro a partir do
reconhecimento de sua particularidade, a ausência da voz off e a liberdade para ouvir e
deixar falar quem quer ser escutado. E tais características aparecem em Cabra Marcado
ainda como um esboço, como demonstra o exemplo da narração, pois apesar desta seguir
aparentemente o modelo clássico da voz em off, ela não representa uma verdade única,
ela deixa o outro falar e sabe ouvir e calar. A narração de Cabra Marcado é múltipla e
sofre alterações até mesmo no interior de um único narrador como, por exemplo, quando
Coutinho fala da invasão do exército nas locações de filmagem em 1964 e deixa de ser
apenas alguém que conta uma história vivida por outros para “encenar” ele mesmo o
enredo do seu filme.
A voz de Coutinho continua a narrar, mas a canção do subdesenvolvido é cortada e
surgem outras imagens, pois a UNE-Volante chega à Paraíba. É dia quatorze de abril, duas
semanas depois do assassinato do fundador e líder da liga camponesa de Sapé, João Pedro
32
Teixeira. Sua voz em off nos dá estas informações, mas também vemos manchetes de jornais
da época anunciando os acontecimentos. Uma página de jornal aparece e tem de um lado a
manchete “UNE-Volante sábado em João Pessoa: universitários estiveram ontem com o
governador” e do lado outro um texto intitulado “A morte de João Pedro”.
Em outro jornal, a manchete informa “Cinco mil camponeses foram ao enterro de João
Pedro para mostrar que a luta continua”, e Coutinho conta que no dia seguinte após a chegada
da caravana a Sapé realizou-se um comício de protesto contra o assassinato. Uma mulher de
uns quarenta anos aparece séria, sisuda, ao redor de seis crianças de várias idades, todos
vestidos de preto, em luto. É a imagem de Elizabeth Teixeira em 1962. Vemos pela primeira
vez a viúva de João Pedro, o ponto de convergência de todas as histórias que serão contadas
em Cabra Marcado para Morrer. O título do filme se refere a João Pedro Teixeira, líder
camponês assassinado cuja história teria sido contada em um filme de ficção começado por
Coutinho em 1964. Porém, esse filme foi interrompido pelo golpe militar, ficou parado por
dezessete anos, e quando as filmagens recomeçaram, o projeto inicial é alterado. O filme de
ficção se torna um documentário que trata de inúmeras histórias de vida, pois para entender o
que aconteceu com os personagens do primeiro filme, Coutinho recolhe as narrativas de
outros camponeses e da família de João Pedro, além do registro oficial de acontecimentos
históricos. Todos esses personagens e acontecimentos estão, de alguma maneira, ligados a
Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro.
Elizabeth será vista ao longo de todo o filme, em seqüências diversas e em diferentes
épocas. Neste primeiro momento que entramos em contato com sua imagem, a reconhecemos
e descobrimos que é 1962 pela narração em off. Do lugar onde estava Elizabeth Teixeira, são
filmadas outras cenas, que após o corte entre as seqüências se sucederão na tela. São
trabalhadores reunidos para o comício em frente à sede da liga camponesa, pessoas chegando
na boleia de uma caminhonete, a praça cheia, gente em conversas pelas calçadas, quase todos
homens, quase todos mulatos ou negros, quase todos vestidos de branco. Estas imagens se
alternam enquanto um texto curto nos informa que a liga de Sapé era a maior do Nordeste,
com mais de sete mil sócios, registrada em cartório. Era o centro canalizador das
reivindicações dos trabalhadores do campo, na medida que “a sindicalização rural era um
direito inexistente na prática”, afirma a voz de Gullar.
Voltamos a ver a imagem de Elizabeth de luto, séria e triste, e Coutinho neste
momento é pontual ao afirmar “Elizabeth Teixeira tinha trinta e sete anos. João Pedro morreu
33
com quarenta e quatro”. O filme em sua versão disponível hoje nas locadoras começa a partir
daqui e, assim, todas as informações e referências até aqui foram cortadas e não podem ser
vistas por quem aluga Cabra Marcado em uma locadora. Há continuidade do plano anterior, o
corte foi feito bem no meio desta seqüência. Alguns segundos depois Elizabeth, seus filhos e
as pessoas ao redor – antes paradas para a câmera – começam a caminhar.
Todas as cenas seguintes são do comício na praça: um palanque com algumas pessoas
em cima – entre elas Elizabeth – um homem discursando, uma multidão ao redor com
cartazes e faixas, o primeiro plano de alguns rostos assistindo.
Enquanto as imagens se sucedem Coutinho fala que nesse dia teve seu primeiro
contato com Elizabeth e que também nesse dia surgiu a idéia de uma longa metragem sobre a
vida de João Pedro. O título já estava definido, inspirado em uma poesia de Ferreira Gullar:
João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer.
POLIFONIAS II
A trajetória de Ferreira Gullar merece uma explicação à parte na narrativa de
Cabra Marcado. Gullar é um poeta nascido no Maranhão que dedicou sua vida à arte e à
política. Vida, arte e política são as principais características dos seus trabalhos desde
muito cedo. Por conta de uma paixão adolescente, escreveu poemas desde cedo e aos 20
anos, após haver presenciado o assassinato de um operário pela polícia durante um
comício em São Luís, nega-se a ler em seu programa de rádio uma crítica que culpava os
operários pelo ocorrido. Perde o emprego, mas entra na vida política do interior do
Maranhão e no mesmo ano vence um concurso literário com o poema O galo. Pouco
depois muda-se para o Rio de Janeiro, onde passa a atuar ativamente na vida cultural e
política e em 1961 é nomeado, com a posse de Jânio Quadros, diretor da Fundação
Cultural de Brasília e elabora o projeto do Museu de Arte Popular. Emprega-se em 1962
como copidesque na filial carioca do jornal O Estado de São Paulo, para o qual
trabalharia por 30 anos. Ao mesmo tempo, ingressa no Centro Popular de Cultura. É
através do CPC que Gullar publica o poema João Boa-Morte, Cabra marcado para
morrer, que segue nos anexos dessa pesquisa. Este poema é publicado no primeiro
número dos Cadernos de Cultura Popular e traz na contracapa a divulgação do filme
Cinco Vezes Favela. A poesia conta a história de um camponês que trabalha sob
condições precárias para o Coronel Benedito e é expulso com a mulher e os cinco filhos
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depois de queixar-se e instigar seus companheiros a se livrarem do cativeiro. João não
consegue outro emprego, perde um de seus filhos e decide matar a família e suicidar-se,
mas é impedido por um camponês que o convida para participar da Liga Camponesa.
Com a publicação de João Boa-Morte e de outras poesias, Gullar assume seu
engajamento e no ano seguinte é eleito presidente do CPC. No dia 1º de abril de 1964
filia-se ao Partido Comunista Brasileiro. Por conta de ameaças e avisos de amigos,
Gullar segue para o exílio em 1971, de onde colabora para o jornal O Pasquim sob o
pseudônimo de Frederico Marques. Somente em 1977 volta ao Brasil, mas é preso no
dia seguinte à sua chegada pelo Departamento de Polícia Política e Social, órgão
sucessor do DOPS na sua função de censura e repressão durante os primeiros anos de
Ditadura. Gullar é libertado três dias depois por conta das reivindicações de amigos.
Mantém suas atividades com poesia, teatro e também sua postura política por uma
divulgação ampla das artes até hoje e em 2002 é indicado ao Prêmio Nobel de
Literatura. Seus ensaios dos anos 60 Cultura posta em questão e Vanguarda e
subdesenvolvimento são relançados num só livro, e em dezembro do mesmo ano o poeta
recebe o Prêmio Príncipe Claus, da Holanda, oferecido a artistas, escritores e instituições
culturais de fora da Europa que tenham contribuído para mudar a sociedade, a arte ou a
visão cultural de seu país. É possível reconhecer, portanto, a importância de Ferreira
Gullar enquanto poeta e crítico no cenário cultural brasileiro, especialmente se
pensarmos na década de 1960. Então, qual poderia ser o significado de tê-lo como
narrador? Acredito que não há uma resposta pronta, mas para refletir sobre Cabra
Marcado para Morrer, vale a pena pensar que não foi escolhido um narrador
desconhecido que emprestasse a sua voz para um texto feito por Eduardo Coutinho.
Ferreira Gullar narra o filme, mas tem uma voz própria no movimento da época, e isso
particulariza e personaliza a sua narração.
A idéia de Eduardo Coutinho, após o seu primeiro contato com Elizabeth, era realizar
um filme com os participantes reais da história de João Pedro no local em que ela aconteceu.
Seria produzido pelo CPC da UNE e pelo Movimento de Cultura Popular de Pernambuco.
Há um corte na cena anterior e vemos uma folha do roteiro de Cabra/64. Passaram-se
dois anos do dia do comício e estava tudo pronto para começar as filmagens em Sapé, mas um
conflito na região entre uma usina e os camponeses faz com que o local seja ocupado pela
35
policia militar. Onze pessoas morrem e a filmagem ali é inviabilizada, diz o narrador
enquanto imagens de jornais aparecem e confirmam o que está sendo dito.
DESLOCAMENTOS I
Cabra Marcado para Morrer é um filme entremeado por diversos discursos.
Estes são apresentados por fotografias de tempos e fontes variados, textos de jornais de
diferentes segmentos políticos, depoimentos e imagens de muitos tipos. Os trechos de
jornais serão mostrados ao longo de todo o filme. Em algumas seqüências, estes trazem
manchetes que se contrapõem à narrativa dos personagens ou dos narradores. Em outros,
as manchetes a complementam, por exemplo, com fotos de imagens que de outro modo
não seriam conhecidas, como a fotografia de João Pedro Teixeira morto. Nesta
seqüência em que é contado o conflito ocorrido em Sapé no início das filmagens de
Cabra/64, as manchetes irão reiterar o que está sendo dito, situando temporalmente o
acontecimento. Cabra Marcado é um filme permeado por diversas temporalidades e a
narrativa diegética estabelece um vínculo com a história através deste mecanismo.
Entretanto, isto não significa que existe uma verdade única a ser confirmada pelo jornal
e isto é mostrado em outros momentos nos quais as manchetes contrariam o que é dito.
Pois, como afirma Jean-Claude Bernardet nas primeiras linhas de seu texto Vitória sobre
a lata de lixo da história,
“Nada mais distante do projeto de Eduardo Coutinho em Cabra
Marcado para Morrer do que historiar os últimos vinte anos.
Nada de enfileirar fatos no espeto da cronologia e amarrá-los entre
si com os barbantinhos das causas e efeitos. Que filmes históricos,
no Brasil, escaparam às ilusões do historicismo? Bem poucos, se
tantos. Mas, como certeza, Cabra Marcado para Morrer” (1990:
227).
O trabalho de Coutinho não é produzir uma verdade histórica com seu filme, nem
mesmo uma história verdadeira. A qualidade de Cabra Marcado reside inclusive em sua
fragmentação, em permitir que verdades múltiplas surjam das lembranças e do contato
com a câmera. As notícias de jornal estão ali presentes não para reafirmar uma única
realidade, mas para reconhecer os diversos discursos, emitir uma opinião sobre eles e
situar o espectador em uma linearidade da diegese que apesar de parecer confusa e
36
embaralhada, reside na organização desordenada de suas múltiplas referências.
Coutinho fala: “Na emergência, fui obrigado a transferir as locações e encontrei o
local ideal em Pernambuco, no engenho Galiléia”, onde havia nascido a primeira liga
camponesa, em 1955. Com autorização da liga e ajuda dos moradores, foram escolhidas as
locações e os atores, e em 26 de fevereiro o primeiro plano é rodado. Coutinho afirma que os
camponeses de Galiléia naquele momento eram donos de suas próprias terras e poderiam
utilizar no filme um tempo que era seu, pois estavam livres graças a uma luta de quatro anos.
Além dos galileus, João Mariano – que fazia o papel de João Pedro – e Elizabeth –
fazendo seu próprio papel, como seus filhos – eram os camponeses de fora que atuariam no
filme. São mostradas cenas de Cabra/64 nas quais os trabalhadores em um galpão trabalham
reunidos, cada um em uma etapa do processo da preparação da farinha de mandioca. Entre
eles, Zé Daniel, João Pedro e Elizabeth Teixeira.
Intercalada por uma curta imagem de Elizabeth abrindo a janela de sua casa, a cena
anterior é trocada por uma seqüência de Cabra Marcado em que João Pedro sai de dentro de
uma casa de pau-a-pique montado em um cavalo segurando um jarro de barro. Apesar de não
ouvirmos o som da sua voz, mas sim uma música instrumental, percebemos que ele fala com
Elizabeth e outro companheiro também montado. Ela aparece na porta com alguns filhos ao
redor, João Pedro espatifa o jarro no chão e sai de cena. A cena se repete duas vezes, mas de
maneiras diferentes, de modo que percebemos que são as diferentes tomadas feitas para
aquela seqüência. Na primeira repetição, ouvimos o narrador contar que as locações de
filmagem foram invadidas pelo exército. O trabalho foi interrompido, alguns membros da
equipe e líderes camponeses foram presos e os equipamentos de filmagem, negativo virgem,
copião, fita magnética, exemplares de roteiro e as anotações de filmagem foram apreendidos.
EFEITOS DE REAL I
Nesta seqüência, enquanto o narrador nos conta em off da invasão do exército e
enumera os equipamentos apreendidos, vemos três diferentes filmagens de uma mesma
seqüência de Cabra/64. Qual o sentido das repetições? Conscientemente ou não, ao
mostrar as várias tomadas feitas para uma seqüência – repetições de planos com
pequenas diferenças, como uma criança a mais no colo ou um companheiro ausente no
canto esquerdo da tela – um filme expõe que aquelas cenas foram construídas, que
37
tiveram que ser refeitas para saírem de um determinado jeito esperado por alguém,
geralmente o diretor. Afirma que a verdade do filme existe no espaço interno da sua
existência, com seus mecanismos próprios, mas que pode ser questionada e deve ser
objeto de reflexão. Não está se construindo aquela imagem como verdade, especialmente
se lembrarmos que neste caso o filme que é repetido está dentro de outro filme. O
documentário Cabra Marcado para Morrer, ao apresentar cenas do filme de ficção
Cabra Marcado para Morrer sem cortes, produz um discurso sobre o cinema que desfaz
muitos dos seus mitos. Para Christian Metz, de todos os problemas da teoria do cinema,
um dos mais importantes é o da impressão de realidade vivida pelo espectador diante do
filme. Ao assistirmos a um filme, enxergamos na tela uma aparência de acontecimentos
reais, não apenas uma ilustração aceitável de algum processo inventado. Em seu livro A
significação no cinema, Metz desenvolve a idéia de verossimilhança, abordando a sua
definição a partir de Aristóteles – para quem este conceito significava o conjunto das
coisas possíveis aos olhos do senso comum e era oposto ao possível verdadeiro, das
pessoas que sabem – e desenvolvendo-a em comparação com o teatro e a fotografia. Não
pretendo neste texto detalhar todas as idéias deste pesquisador, mas a partir das questões
já citadas é possível reconhecer que a impressão de real no cinema é arraigada, mesmo
para os filmes ditos de ficção. Como desfazer esta impressão, então, se não pelos
próprios mecanismos internos do filme? Mesmo que a intenção de Coutinho não tenho
sido desmanchar séculos de vinculação entre as artes da representação e a
verossimilhança, ao repetir as cenas desta seqüência de Cabra/64 – para citar apenas um
dos mecanismos – ele consegue instaurar uma reflexão sobre o filme dentro do próprio
filme. E, deste modo, o espectador questiona a realidade que está – ou não – diante dos
seus olhos, na tela.
Até este momento, apenas 40% do roteiro tinha sido rodado e foi salvo porque já havia
sido enviado para o laboratório no Rio de Janeiro, assim como a cópia de oito fotografias de
cena. A imagem do relatório de película e três fotografias são mostradas, seguidas por uma
página do roteiro. Neste momento a narração de narração de Coutinho volta, mas agora ele
fala sobre o resgate do roteiro, feito por uma advogada das Ligas Camponesas da Paraíba no
quartel em que esteve presa em agosto de 1964. As imagens de relatório de película,
fotografias e roteiro reafirmam o que está sendo dito pelos dois narradores. Muitas vezes
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iremos rever estas fotografias em outras cenas, e são elas – juntamente com a projeção – que
marcam o primeiro contato de Coutinho com as pessoas e histórias de Cabra/64 quando ele
retorna dezessete anos depois.
Há um corte e vemos novamente a imagem do início do filme: um homem colocando
uma bobina no projetor que está em cima de uma mesa ao ar livre. Ainda não sabemos
exatamente do que se trata, mas a seqüência continua e explicações começarão a ser dadas ao
espectador.
Já é noite, até mesmo por trás da colina. No pé dela agora vemos pessoas ao redor do
projetor e uma garota que observa curiosa o movimento da câmera que a filma e do homem
que ajeita a bobina.
A plantação mostrada antes em preto e branco – uma cena de Cabra/64 – aparece
agora colorida. Dezessete anos se passaram também para este lugar, mas não é possível notar
grandes diferenças. Coutinho fala em off, por cima do travelling deste local, uma explicação
fundamental sobre o filme:
“Fevereiro de 1981. Dezessete anos depois, voltei a Galiléia para completar o
filme do melhor modo que fosse possível. Não havia um roteiro prévio, mas
apenas a idéia de reencontrar os camponeses que haviam trabalhado em Cabra
Marcado para Morrer. Queria retomar nosso contato através de depoimentos
sobre o passado, inclusive os fatos ligados à experiência da filmagem
interrompida, à história real da vida de João Pedro, a luta de Sapé, a luta de
Galiléia e também à trajetória de cada um dos participantes do filme daquela
época até hoje.”
DESLOCAMENTOS II
Nem seis minutos da versão comercial de Cabra Marcado se passaram. Como
foi explicado anteriormente, a versão comercial de Cabra Marcado tem tamanho
reduzido, com quatro minutos e vinte segundos a menos do que a primeira versão do
filme. Desde os primeiros minutos, seja sobre qual versão se estiver falando, Eduardo
Coutinho explicita a sua intenção de retomar uma experiência passada que foi
interrompida, “lançar uma ponte entre o agora e o antes”, como afirma Jean-Claude
Bernardet em seu texto Vitória sobre a lata de lixo da história. Esse texto é um apêndice
da nova edição do livro Cineastas e Imagens do Povo, lançado pela primeira vez em
1985. Neste apêndice, o cineasta e pesquisador analisa este filme a partir de um elogio
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ao que o título do texto deixa explícito: Cabra Marcado representou uma vitória contra
o esquecimento histórico, fez um resgate de um acontecimento que de outro modo seria
jogado na lata de lixo, na lata de lixo da história. Nesse trecho em que Coutinho fala em
off sobre suas idéias de retomar as filmagens, percebemos que há diversos tempos em
Cabra Marcado. A fala do cineasta começa com uma data: “Fevereiro de 1981”. Mas a
frase seguinte já situa um outro tempo-espaço “...Dezessete anos depois voltei a
Galiléia(...)”. Coutinho lançou uma ponte entre estes dois tempos, mas me perguntava o
que aconteceu nos tantos anos existentes entre eles? Para Cabra Marcado, nesses anos,
e aos poucos, os vestígios da filmagem foram resgatados e a idéia de retomar o filme foi
germinada. Para o Golpe Militar que interrompeu as filmagens, ou seja, para o contexto
nacional instaurado no dia primeiro de abril de 1964 e identificado no filme pela invasão
de Galiléia, foram dezessete anos de mudanças políticas e sociais cujas conseqüências
foram as intensificações das práticas aplicadas às filmagens: censura de produções
artísticas, prisão, tortura e desaparecimento dos atores sociais que lutavam no
movimento camponês, revogação de medidas anteriores a 1964 de sindicalização e
apoio às lutas agrárias. De acordo com Consuelo Lins no livro já citado sobre o
documentário de Eduardo Coutinho, para este cineasta os primeiros anos foram
compostos pela difícil tarefa de sobreviver no Brasil fazendo cinema. De 1964 a 1970,
Coutinho participou de alguns roteiros e dirigiu quatro filmes, quase sempre contando
com a ajuda de Leon Hirszman, o produtor executivo de Cabra Marcado. Trabalhou
depois por quatro anos como copidesque no Jornal do Brasil, que deixou em 1975
quando a TV Globo o convidou para uma vaga no Globo Repórter. Lins conta que
apesar da censura intensa, esse programa na época estava conseguindo realizar uma
experiência de documentário bastante singular no Brasil. Coutinho exercia diversas
funções, e esta foi uma escola para seus trabalhos posteriores, mas sem idealizações. Era
possível filmar com regularidade, mas ele se afastou do universo cinematográfico, que
desprezava a televisão como meio de comunicação alienante. Os programas de modo
geral seguiam o padrão da TV Globo, mas em alguns momentos do trabalho de
Coutinho já é possível perceber as marcas do que se tornaria o seu modo de fazer
cinema. O exemplo principal deste aspecto é o programa Theodorico, Imperador do
Sertão, que conta a história de um fazendeiro da elite rural brasileira com a narração
feita pelo próprio Theodorico. Deste modo, Coutinho conseguiu driblar a narração
40
oficial do programa e manteve a proposta de deixar o outro falar, olhar a visão de
mundo daquela pessoa e permitir que ela se construa, construa o personagem de si
mesma através da câmera.
Esta é a idéia de Cabra Marcado para Morrer: completar o filme, reencontrar os
camponeses, retomar o contato. Como? Sem roteiro prévio e através de depoimentos sobre o
passado. Com estas informações, podemos compreender a fragmentação do filme, sua
estrutura construída em cima das falas de cada personagem, indo e voltando no tempo de
acordo com a memória de quem fala, das narrativas que perpassam pelas diferentes histórias e
temporalidades.
DESLOCAMENTOS III
Em texto intitulado O fio da meada, Roberto Schwarz propõe a análise de Cabra
Marcado como um filme que representa uma vitória da fidelidade política e, como o
título indica, um retorno para reatar o fio interrompido. Para o autor, Coutinho
conseguiu transformar o tempo decorrido em força artística e matéria de reflexão,
sobrepujando uma ordem vigente de opressão e esquecimento pela busca do fio da
meada. O retorno – e a sua apresentação a partir de muitas idas e vindas de Coutinho,
das narrativas e das histórias – representa a característica que dá uma das grandes
belezas, força e matéria de reflexão desse documentário.
A resposta à pergunta de como Coutinho irá retomar o contato, ou melhor, o resultado
desta busca, é mostrado ao espectador na prática: a seqüência seguinte começa com cinco
camponeses em roda, conversando perto de uma casa de pau-a-pique. Um texto em off nos
conta que dois deles são os únicos sobreviventes da luta de Galiléia: “José Hortêncio da Cruz
e João Virgínio Silva, que não sabe ler nem escrever e é uma espécie de memória da tribo”
termina o narrador, enquanto estes dois camponeses aparecem em primeiro plano, sentados no
chão com chapéu de palha e sem encarar a câmera. Após esta apresentação, João Virgínio é
quem começa a falar, contando brevemente da primeira reunião feita em que ele dividiu com
os companheiros presentes sua vontade de construir uma sociedade para beneficiar os
defuntos e o povo. A narração de João Virgínio continua em off, mas ele aparece em primeiro
plano sozinho na frente de uma casa, provavelmente o lugar onde foi feita a sua entrevista
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principal com Coutinho.
Sempre de óculos escuros, João Virgínio aparece e seu primeiro plano é intercalado
por cenas de Cabra/64 e por pequenas explicações do narrador. Estas cenas tratam do que está
sendo dito: a situação de Galiléia (um engenho de fogo morto onde viviam 150 famílias em
troca de um aluguel anual – o foro – ao proprietário), as reuniões para criar a “sociedade
beneficente dos defuntos” (pois se colocasse nome de sindicato era morto), a luta contra a
decisão do proprietário de expulsar todas as famílias quando descobriu que a liga não se
preocupava apenas com os mortos, a luta contra a decisão de venda de Galiléia quando o
proprietário perdeu as esperanças de vencer a luta contra a liga, e a busca por um advogado
que defendesse os camponeses na justiça. Apesar da “briga de sete mil pancadas”, pois “um
(deputado) gritava: minha gente, não vamos fazer a desapropriação de Galiléia, pois não é
desapropriar uma Galiléia, é desapropriar várias Galiléias. Pois daí avante, pegará fogo dentro
do Brasil, de ponta a ponta”, como conta João Virgínio, os deputados votaram em favor dos
camponeses na câmara dos vereadores. Enquanto ouvimos as histórias da luta camponesa pela
voz em off de João Virgínio, vemos cenas de Cabra/64. Nelas, um homem engravatado e
simpático aparece entre os camponeses, ora sentado em uma varanda conversando em roda
com alguns deles, ora em pé no meio de muitos, ora discursando dentro de uma sala. Ao final
já sabemos que este é o advogado do qual João Virgínio está falando – o homem que “tomou
conta e deu conta” da situação – e ele aparece sendo aplaudido por muitos camponeses dentro
de uma sala. Esta última cena ilustra a fala de João Virgínio sobre a vitória na Câmara, vitória
que significou a desapropriação das terras de Galiléia em benefício das famílias. Sem
nenhuma narração, aparece então o plano detalhe de uma carteira de associado à Liga de Sapé
nas mãos de um camponês. Uma imagem animadora do resultado inédito na história da lutas
rurais no Brasil, mas que contrasta com a música instrumental triste e com a voz do narrador:
“A desapropriação por interesse social de Galiléia foi feita em dezembro de 1959
através de justa e prévia indenização do dinheiro, como determinava a
constituição. Galiléia tornou-se então um símbolo da força do movimento
camponês. Mas até hoje os galileus não tem a escritura de suas terras”.
DITADURA II
Nessa seqüência de Cabra Marcado, o espectador acompanha a luta dos
camponeses em Galiléia a partir do relato de João Virgínio. Desde a primeira reunião até
42
a vitória na câmara dos vereadores, ouvimos uma narração que apresenta este fato
inédito na história da solidificada estrutura agrária brasileira. Os galileus conseguem
vencer o proprietário das terras onde vivem, a Liga é institucionalizada e a
desapropriação é aprovada na Justiça, conta-nos João Virgínio. Mas o fim da seqüência é
desanimador ao dar a informação de que Galiléia se tornou símbolo do movimento
camponês após esta vitória, porém até aquele momento – 1981 – os galileus ainda não
tinham a escritura das suas terras. Há uma denúncia nesta seqüência. Coutinho fala sobre
a situação em que os galileus vivem, mas não existe engajamento militante nem
denúncia alarmista. Alguém precisa falar sobre as histórias que não foram publicadas
nos jornais, as histórias vividas por aquelas pessoas. Alguém precisa escutá-las e dar
espaço para que elas falem. Fica claro nas muitas entrevistas que Eduardo Coutinho
concede que ele não está preocupado em levantar bandeiras nem em se tornar o paladino
da causa camponesa, pois como ele afirmou na entrevista dada durante a produção do
documentário Peões11:
“[Cabra Marcado] Tinha uma intenção política de resgate, claro,
mas tudo se molda pelo singular, pelo coração e pela cabeça —
diz Coutinho. — Em Cabra, eu queria me resgatar resgatando a
Elizabeth. Eu era quase um fantasma, não fazia mais cinema, que
era a minha vida. Se eu não fizesse aquele filme, estava morto.
Como a coisa está engrenada, o processo político não podia estar
fora. Mas ele é humanizado por aquela viúva, pelos filhos, na
família, e aí acontece o que faz os meus filmes até hoje. Por isso
o filme teve público: ninguém ligava na verdade para política,
mas na grande mãe, na família estilhaçada, que é a família
popular”(NOVAES, 2004: 06).
A dimensão ética se sobrepõe, deste modo, à questão política sem abafá-la, mas
priorizando o que é ordinário e singular. A denúncia de 1964 continua e o espectador
toma conhecimento tanto da vitória na Câmara quanto da ausência de escrituras mesmo
passados dezessete anos. Mas a seqüência termina uma carteira de associação à liga de
Galiléia. Vemos a mão de um camponês e, quando ele vira a página, olhamos seu rosto,
pois ele segura o documento na altura de seus olhos, de frente para a câmera.
11 Peões é o documentário de Eduardo Coutinho lançado em 2004. O projeto inicial previa que João Moreira
Salles acompanharia a campanha de Lula no segundo turno e Eduardo Coutinho seguiria a campanha de seu
adversário no mesmo período. Era uma realização da Videofilmes com a Rede Globo e com a saída do canal
de televisão, o projeto original foi alterado e Coutinho decidiu filmar trabalhadores da indústria metalúrgica
do ABC paulista que tomaram parte no movimento grevista de 1979 e 1980, mas permaneceram em relativo
anonimato.
43
A seqüência seguinte começa com a fala de Coutinho. Ele explica que logo após ter
chegado com a equipe em Galiléia, foi improvisada a projeção do material filmado em 1962 e
1964, sem cortes nem alterações, fora de ordem, com cenas repetidas e claquetes. As imagens
de Cabra/64 serão constantemente mostradas nas próximas seqüências e o que as diferencia
das cenas do segundo Cabra Marcado são as imagens, pois as seqüências de 1964 aparecem
em preto e branco e o novo filme é todo colorido. Esta distinção ocorre pelo fato das
mudanças na tecnologia do cinema nos dezessete anos que se passaram, mas é ela que permite
a circulação livre de um tempo para outro, sem que a história se torne confusa. A história que
está sendo contada é fragmentada, mas a diferença nas cores das imagens é um dos recursos
que possibilita o constante deslizamento por entre as diversas temporalidades.
Os atores do filme eram os convidados da noite da projeção e são eles que vemos
chegar por uma rua de barro ao local onde vai ser exibido o filme, dentro de uma kombi
creme. Já há muitas pessoas por perto e, enquanto os atores as cumprimentam e conversam
entre si, Coutinho os apresenta pela narração em off: José Daniel Nascimento tem sessenta e
sete anos e mudou-se para Galiléia depois de ter sido expulso de um engenho vizinho porque
um dos seus filhos tinha chupado um pedaço de cana sem a autorização do patrão; Brás
Francisco da Silva, cinqüenta e dois anos, foi um dos líderes da luta de Galiléia mas hoje
dificilmente aparece; Bia, sessenta e seis anos, que trabalha como vigia de pedreira e nunca
mais voltou a Galiléia depois de ter ido embora, em 1965; e João Mariano Santana da Silva
com seus netos, cinqüenta e nove anos, que fazia o papel de João Pedro em Cabra/64 e não
punha os pés em Galiléia desde esta época. Apenas João Virgínio, que já havia sido
apresentado em uma seqüência anterior, e Cícero, outro ator que só conheceremos mais
adiante, não são citados neste momento. Dentre todos eles, apenas José Daniel ainda mora em
Galiléia e todos raramente se vêem.
Para reunir tantos trabalhadores vindos de longe, a projeção teve que ser feita em uma
noite de sábado, explica Coutinho. Há a partir daqui uma seqüência que predomina, mesmo
quando intercalada por outras cenas: é a seqüência da noite da projeção. Os ruídos do
ambiente com vozes indefinidas, risadas e alguns comentários mais altos permeiam todos os
momentos, até mesmo quando são mostradas as imagens que estão sendo vistas na tela,
imagens de Cabra/64. Estas imagens são intercaladas por planos das pessoas assistindo a
projeção: homens, mulheres, velhos e crianças que olham curiosos e encantados para aquela
tela em que se projetam lembranças, histórias, vidas e um passado de dezessete anos antes que
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para alguns remete a memórias pouco tocadas. Vemos Coutinho entre estas pessoas, e mais ao
fundo estão também os atores de Cabra/64, reunidos em um grupinho que aparece diversas
vezes e se diverte comentado e identificando lugares, pessoas, companheiros e a si mesmos
nas imagens.
NARRATIVAS III
Na noite do dia em que Coutinho chegou a Galiléia, foi improvisada a projeção
dos materiais filmados em Cabra/64. Ele nos conta em off que o material foi mostrado
sem alterações e vemos nas seqüências seguintes as cenas que os galileus estão vendo na
tela. Estas cenas de Cabra/64 permeiam todo o filme. Aparecem algumas vezes como
som original, como a seqüência da chegada da família Teixeira em um terminal
ferroviário, outras em silêncio e muitas vezes com ruídos das filmagens de 1981, como
nesta seqüência da noite da projeção. Apesar do cinema ser uma forma de expressão
audiovisual, as áreas de estudos da imagem e do som se desenvolveram separadamente e
de modo desproporcional de maneira que, como afirma Manuela Penafria em seu texto
Ouvir imagens e ver sons, a componente sonora do cinema é ignorada ou marginalizada.
Para a análise do material fílmico de Cabra Marcado, tive grandes dificuldades de
entender e descrever os sons do filme, pois além de não conhecer a terminologia
apropriada, não sabia como realizar a decupagem de modo que tanto a parte das falas
quanto a música e os ruídos fossem incluídos. Penafria afirma neste texto que o som não
é apenas um fenômeno físico, pois além de ser transmitido sob a forma de ondas através
do ar, ele estimula o nervo auditivo ao ser percebido pelo córtex do cérebro. Isto
significa que o som é um fenômeno psico-físico e, apesar de encararmos os barulhos de
um filme com menos atenção e mais naturalidade do que as imagens, ele se dirige a nós
e nos atinge tanto quanto os outros sentidos. Quando Cabra/64 foi filmado, a
possibilidade de sincronia entre o registro sonoro e imagético com equipamento portátil
já existia e essa nova tecnologia marca um momento para a história do cinema tão
importante quanto o do advento do som. A partir de então – mais precisamente, a partir
de 1960 – houve uma grande mudança na linguagem do cinema. Entretanto, é
importante ressaltar que o som esteve presente nas projeções públicas de imagens seja
pelo acompanhamento de um pianista ou pela reprodução de barulhos por trás da tela, e
mesmo após o chamado “advento sonoro” alguns cineastas optaram por manter o
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cinema mudo. Isso ressalta a idéia de que o som é uma escolha na produção de um
filme, o que se torna mais óbvio se pensarmos nas inúmeras possibilidades de sons que
podem ser incluídas. Ao escolher manter o som original de Cabra/64 em algumas das
seqüências mostradas ao longo do filme e não em outras, Eduardo Coutinho está
optando por dar um determinado efeito naquela seqüência e em todo o filme. Cabra
Marcado é um filme no qual a captação de sons do ambiente predomina, e a inserção de
músicas e outros ruídos é feita quase sempre nas cenas filmadas em 1964 ou
anteriormente. Apesar da escassez de conhecimentos e recursos para analisar esta
inserção, é fundamental estar atento ao que o filme fala e tentar, como sugere Penafria,
ouvir imagens e ver sons.
Em um dado momento desta seqüência a voz em off de Coutinho afirma que o que
mais despertava o interesse dos galileus era a identificação dos participantes da filmagem
dezessete anos mais moços. A partir daí se inicia uma série de identificações da imagem dos
participantes na tela com a imagem de quem olha a tela. Este é o mote das seqüências que
seguirão: intercalar estas comparações temporais com pequenos trechos das entrevistas com
os que são identificados. Estas entrevistas foram feitas após a projeção com alguns dos atores
que foram apresentados ou identificados, e o primeiro é José Daniel, que ainda vive em
Galiléia, e em Cabra/64 teve sua casa usada como principal locação das filmagens: era a casa
de João Pedro Teixeira.
Voltamos à noite de projeção e Zé Daniel está rindo, ao lado de seus companheiros.
Eles apontam para a tela e ouvimos, entre as vozes e burburinhos, um comentário “Olha
Brás!”. Brás Francisco da Silva teve que fugir de Galiléia em 1964 e não gosta mais nem de
lembrar das lutas do passado. Ele foi o único ator do filme que prosperou, pois seis dos seus
filhos estudam em São Paulo e ele conta com a ajuda de três camponeses na lavoura. Porém,
Brás trabalha desde os oito anos de idade e agora diz querer vender seu sítio. Ele aparece
trabalhando em suas terras e ali mesmo dá a entrevista. Percebemos, pelas imagens dele em
primeiro plano, que Brás não mudou muito em relação a Cabra/64, não está muito diferente
de sua imagem há dezessete anos. Após a entrevista, sua última cena é um plano conjunto de
sua saída da plantação em direção à casa, de costas para câmera.
Assim como na seqüência anterior, a imagem de apresentação de Cícero é a do seu
reconhecimento na tela pelos companheiros, na noite da projeção. Cícero Anastácio da Silva
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era o único ator que sabia ler entre os galileus e foi também assistente de produção de
Cabra/64. Sua entrevista foi feita em Limeira, interior de São Paulo, na sua casa e no seu
trabalho.
Depois da comparação entre Cícero em Cabra/64 e dele se vendo na tela, há um corte
e vemos em plano conjunto um pátio de uma fábrica sem pessoas. Cícero aparece de costas,
bate ponto e a cena externa é trocada por outra de dentro de um lugar fechado. É o trabalho de
Cícero e nesta seqüência ele está chegando no serviço. Em sua entrevista, Cícero conta que
veio para o sul depois de ficar desempregado por seis meses, mas que sente vontade de voltar,
pois:
“Eu lá no norte sempre tinha prá onde ir, tinha os colegas prá conversar, que eu
contava minhas agruras tudinho. A gente se conversava, falava se tava bom, como
é que fazia, essas coisas, a gente se conversava. Mas aqui eu não tenho, a única
coisa que eu tenho é a televisão, ficar olhando, ver o repórter, que eu gosto mais
de olhar os reporte, prá ver o que está se passando”.
A entrevista continua, mas o plano muda e vemos Cícero dentro de sua casa ao redor
da mulher e de algumas crianças. É uma casa pequena e todos estão vestidos com muita roupa
de frio. Quando Coutinho pergunta o que ele lembra do filme, Cícero descreve uma cena de
Cabra/64 com cuidado e precisão. Enquanto o ouvimos, a cena é mostrada e, no final, a sua
fala do momento da entrevista se sobrepõe exatamente ao movimento da boca de Cícero em
Cabra/64. É uma seqüência em que Cícero está construindo um telhado, entregando telhas
para um homem mais acima e diz para ele “O charque está muito caro, como é que nós vai
poder viver?”.
DESLOCAMENTOS IV
Nesta seqüência da entrevista de Cícero, é possível pontuar algumas questões
sobre a vida daqueles que poderiam ser vistos personagens brasileiras quase típicas.
Cícero, assim como alguns filhos de Elizabeth e João Pedro e como seis filhos do
camponês bem-sucedido Brás, mudou-se para São Paulo em busca de emprego e uma
condição de vida melhor. Lá, ele reclama do frio e da falta de amigos para conversar e
compartilhar as alegrias e tristezas, diz que só o que pode fazer em casa é ver televisão e
que quer voltar para o norte. Sua casa é pequena, ele dá uma entrevista em casa com a
sua mulher por perto e alguns filhos, todos cobertos de casacos e com olhares tristes. As
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lembranças que Cícero tem de Cabra/64 produzem uma seqüência admirável do filme: a
sobreposição exata de uma fala atual sobre a imagem filmada na década de sessenta. A
voz de Cícero se encaixa na sua imagem de dezessete anos antes, mas ele mudou, e sua
trajetória é fundamental para entender o que ocorreu neste período com aqueles
camponeses e com o filme. Karla Holanda no artigo Documentário brasileiro
contemporâneo e a micro-história propõe que este tratamento do particular que
observamos em Cabra Marcado é uma maneira de se compreender a história em geral,
uma busca pela abordagem particularizada com o intuito de criar um ponto de vista
sobre a história. Olhar e ouvir a narrativa de Cícero, reconhecer neste camponês a
procura por uma vida melhor que descreve as razões da migração de inúmeros
nordestinos para o sul e sudeste, significa para Holanda, em outras palavras, uma microhistória, mais humana e dialógica. Para Cabra Marcado, Cícero é mais um personagem
dos deslocamentos que singularizam o filme, um exemplo das alterações espaciais
realizadas por necessidade ou desejo tanto por ele quanto por Elizabeth, a família
Teixeira ou até mesmo Eduardo Coutinho. Recorrer a uma experiência singular como a
de Cícero para falar de grandes temas, como a migração, é uma característica de toda a
obra deste cineasta. Em Santo Forte, por exemplo, ele experimenta a escolha de um
único grande tema – a religiosidade – para permitir que depoimentos particulares das
vidas das pessoas surjam durante as entrevistas. Tereza Novaes entrevistou Eduardo
Coutinho quando foi lançado Peões e afirma “Levando os objetivos de seu tipo de filme
às últimas conseqüências, ou seja, buscando exclusivamente histórias íntimas [...],
Coutinho acaba por encontrar trajetórias épicas” (NOVAES, 2004: 03).
Outras cenas de Cabra/64 aparecem, e a entrevista em Limeira continua. Coutinho
pergunta, então, se Cícero tinha esperança de que eles voltariam para terminar o filme, ao que
ele responde:
“Eu sempre tinha essa esperança, de que vocês iam voltar para nós terminar o
filme. Eu dizia que chegava e mainha, naquela época mainha era viva ainda,
mainha dizia 'ah, meu filho, esses aí não chegam mais não'. E eu dizia, 'chega
mainha, só não vem aquele que morrer. Mas aquele que não morrer vem'.”
DESLOCAMENTOS V
Nessa seqüência em que a noite de projeção é entremeada pela entrevista de
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Cícero, torna-se evidente um mecanismo de Cabra Marcado que é, simultaneamente,
um dos distintivos que caracteriza e compõe o filme: a montagem. Cícero conta da
esperança de que a equipe de filmagem voltasse para continuar o filme entre uma cena e
outra de Cabra/64. Neste pequeno trecho, diferentes tempos e espaços são colados e
constróem deste modo uma narrativa. A seqüência, desse modo, possui significado pelos
planos, mas também pela maneira como eles são entrelaçados, pela rede que os une.
Robert Stam no livro Introdução à teoria do cinema analisa a montagem a partir dos
teóricos soviéticos, referência fundamental quando se trata desse assunto. Ele afirma que
o estilo em bricolagem da teoria do cinema do período mudo foi substituído nos anos de
1920 pelas reflexões dos cineastas da União Soviética. Dentro de um contexto
preocupado com a construção de uma indústria cinematográfica socialista, ou seja que
conseguisse combinar criatividade autoral, eficácia política e popularidade de massa, os
teóricos soviéticos priorizaram o debate sobre a técnica, a construção e o experimento
no cinema. Apesar da diversidade de estilos, todos enfatizaram a montagem, que tornouse axioma inquestionável sobre o qual se construiu a cultura cinematográfica
internacional.
“'Montagem' é o vocábulo para edição, não apenas na Rússia,
mas também nas línguas latinas. [...] Para os teóricos soviéticos,
a alquimia da montagem conferia vida e brilho aos inertes
materiais de base do plano individual. [...] entendiam o plano
cinematográfico como destituído de um sentido intrínseco antes
de sua inserção em uma estrutura da montagem” (2003: 55).
Em um breve resumo sobre as teorias dos cineastas desse período, podemos
afirmar que para Kuleshov, fundador da primeira escola de cinema do mundo, o cinema
consistia em exercer controle sobre os processos cognitivos e visuais do espectador por
meio da segmentação analítica de visões parciais. Para Pudovkin, aluno de Kuleshov, a
chave do cinema estava em seus protocolos para controlar as percepções por meio da
montagem. O mais influente dos teóricos soviéticos foi Sergei Eisenstein, com seu
discurso filosófico, político, literário e espécie de manual de realização de filmes. Seus
escritos dão a impressão de serem uma constelação de descobertas extraordinárias em
busca de uma teoria unificadora e seu ideal de montagem é um concatenação dissonante
entre som e imagem, na qual as tensões permanecem irresolutas. Eisenstein
compartilhava essa orientação musical com muitos de seus contemporâneos, como
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Bakhtin e as noções de polifonia e tato artísticos na obra sobre Dostoiévski. Dziga
Vertov era mais radical que Eisenstein. Declarou sentença de morte ao cinema
comercial, afirmou que câmera era superior ao olho humano, mas estava impedida pelas
estruturas sociais dominantes de realizar seu potencial, e postulou um “cinema-verdade”,
kinopravda. O cinema seria uma espécie de escritura, de meio da verdade. Considerava
seus filmes como documentários poéticos e afirmava que o cinema deveria ser um
continuum da produção social, da vida. Em todos esses teóricos percebemos a
preocupação com a montagem como meio de aproximar as imagens captadas de uma
verdade cinematográfica que pudesse criar uma nova expressão e novos sentidos ao que
será mostrado. A montagem seria o instrumento que possibilitaria tal criação e é
fundamental compreender tal conceito pois foi a partir desse momento que a montagem
ganhou importância e significado para o cinema. Muitas mudanças ocorreram a partir de
então e a idéia de uma verdade social dos filmes postulada por esses teóricos não
encontra respaldo na obra de Eduardo Coutinho, mas em sua obra podemos facilmente
reconhecer que no processo da montagem ocorre a construção do sentido e a
significação do que foi filmado. Para Consuelo Lins em seu livro O documentário de
Eduardo Coutinho, que analisa Cabra Marcado e outros filmes anteriores e posteriores a
esse, o trabalho da montagem para Coutinho significa retirar os excessos, introduzir
vazios no material filmado e sempre respeitar o que foi captado pela câmera: “É um
exercício de eliminação que exige um esforço desmesurado e uma postura extremamente
ativa e trabalhosa, que pensa, repensa e discute o que está sendo produzido, distante de
qualquer passividade ou submissão diante do real” (2004: 13). A montagem de Cabra
Marcado para Morrer é genial. Coutinho preza por desconstruir idealizações e não é
minha intenção criar um mito em torno de sua obra, mas considero importante
reconhecer que grande parte do sentido de Cabra Marcado foi construída no processo de
montagem. São as sobreposições de cenas de diversos tempos, a união de falas e a
colagem de materiais diversos, bem como a possibilidade de se reconhecer muitas
verdades a partir dessa construção, que deu ao filme o seu sentido e sua grandiosidade.
A entrevista de João Mariano não aparece neste primeiro bloco de entrevistas dos
companheiros de João Pedro. Acredito que por representar o papel de João Pedro em
Cabra/64 e, conseqüentemente, por ser o único ator que não representa a sua própria vida, ele
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só aparecerá bem mais adiante. João Mariano é também o único ator de fora de Sapé, além de
não fazer parte do movimento camponês, como faz questão de deixar claro em sua entrevista.
A próxima pessoa a ser identificada é Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro. A
primeira imagem que aparece, desta vez sem nenhum barulho no fundo, é de um plano
conjunto dela em Cabra/64 colocando uma grande cesta de palha na cabeça com a ajuda de
um filho. A cena é cortada e vemos o grupo de atores na noite da projeção em Galiléia
apontando para a tela. Entre os muito ruídos, risadas e vozes, ouvimos “Elizabeth Teixeira,
né?”, seguido por outras vozes de espanto e uma entre ela é mais alta: “Ói mesmo,
Elizabeth!”. Surge então outra imagem de Elizabeth em Cabra/64, em pé na frente a uma casa
de pau a pique, falando e rindo, e Coutinho conta em off: “Mesmo não tendo visto Elizabeth
Teixeira desde 1964, os participantes do filme logo a reconheceram”. Haverá a partir deste
episódio uma mudança na série de apresentações dos personagens, pois a partir da
identificação de Elizabeth será realizada a busca pelo seu paradeiro e, quando encontrada, ela
irá narrar a vida de João Pedro a partir do momento em que os dois se conheceram.
Quando a busca por Elizabeth se inicia, Ferreira Gullar nos conta que ela estava
desaparecida há dezessete anos para família e amigos. Apenas Abraão, seu filho mais velho,
sabia onde ela se encontrava. Ouvimos a narração em off enquanto vemos uma paisagem
surgir aos poucos. Primeiro, a partir de um ângulo de quem está embaixo, vemos a copa de
uma árvore. Em seguida, a câmera se desloca para baixo ao mesmo tempo que segue em
frente, em um movimento que logo percebemos ser de um carro na estrada. Aos poucos a
câmera se distancia e notamos que a árvore é mesmo parte de uma paisagem de beira de
estrada, o caminho para a cidade onde Elizabeth se refugiara. É uma paisagem ampla com a
pequena cidade no meio, rodeada por uma vegetação baixa, verde e árida, típica do sertão.
Coutinho explica que fez aquele caminho junto com a equipe sem saber para onde ia, guiado
apenas por Abraão. O destino era São Rafael, cidade do Rio Grande do Norte, situada a uns
300 quilômetros de Sapé, e a mais de 500 de Galiléia. Com menos de três mil habitantes, nem
mesmo a televisão chegava em São Rafael.
“Elizabeth não esperava a minha chegada”, afirma Coutinho, e conta que começou a
conversa mostrando as oito fotos salvas das filmagens. Esta é a deixa para a nova seqüência,
que se inicia com Elizabeth em uma mesa, sentada ao lado de um rapaz nos seus quase vinte
anos, parecido com João Pedro. Ouvimos barulhos de cadeiras e papéis e percebemos que ela
está dentro da sala de sua casa e outras pessoas estão em volta. Coutinho diz que começou a
51
entrevista mostrando as oito fotografias salvas de Cabra/64, e as primeiras cenas são de
Elizabeth olhando as fotos e passando-as para este rapaz.
NARRATIVAS IV
Novamente vemos Coutinho retomar o contato com uma das personagens do
filme através da apresentação de fotografias tiradas dezessete anos antes. É ele mesmo
quem, em off, nos explica o uso deste mecanismo que tornou-se – nesta trajetória de idas
e vindas temporais e espaciais – um estimulador da narrativa, um modo de religar-se
àquelas histórias e proporcionar àquelas pessoas uma possibilidade de lembrar e falar
sobre suas lembranças. Coutinho irá utilizar este recurso em outros filmes, e Boca de
Lixo12 para mim representa neste sentido a sua produção mais marcante. A idéia desse
filme era filmar o cotidiano de um grupo de catadores do lixão de São Gonçalo, em
Niterói (RJ). Coutinho consegue nesse vídeo não reproduzir esteriótipos de pobreza,
fugir da culpa de filmar e ser filmado a partir do diálogo e do encontro, refletir sobre a
imagem de si e do outro e faz um documentário primoroso. O documentário foi feito em
três etapas, três encontros com os catadores ao longo do primeiro semestre de 1992 e um
dos recursos utilizados por Coutinho para vencer a resistência inicial dos catadores é
mostrar fotografias tiradas a partir das primeiras fitas gravadas ali no lixão. Esse gesto
mostra que não está se buscando uma desapropriação da imagem do outro, como é
normalmente feito na televisão, e como afirma Consuelo Lins “O prazer de recuperar
uma imagem, de se ver simplesmente duplicado, mesmo que precariamente, faz com que
se estabeleça uma ligação entre filmados e filmadores – e faz com que o vídeo se
realize.” (2004: 88), uma das lições aprendidas e ensinadas por Coutinho em Cabra
Marcado para Morrer.
Logo descobrimos que o rapaz ao lado de Elizabeth é Carlos, seu filho mais novo,
único que foi com ela para São Rafael.
Elizabeth é quem começa a entrevista, pois pergunta espantada a Coutinho como foi
que ele conseguiu aquelas fotos. Ele conta que os negativos foram pegos pela polícia, mas que
as cópias foram salvas, e sua resposta é interrompida por Abraão, que pede a Elizabeth para
reconhecer a abertura política do presidente Figueiredo. Neste primeiro encontro com
Elizabeth Teixeira há uma certa tensão. Elizabeth parece uma mulher sisuda e sofrida, fala
12 Documentário de 1992 de Eduardo Coutinho, filmado em vídeo e premiado internacionalmente.
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apenas de toda a perseguição que sofreu após o assassinato de João Pedro e de seu sofrimento.
Abraão faz um discurso político em favor de Figueiredo e logo depois declara veemente seu
repúdio a quaisquer sistemas de governo. Elizabeth concorda com ele balançando a cabeça,
séria e desconsolada.
NARRATIVAS V
Tive a impressão, desde a primeira vez que assisti a Cabra Marcado, que esta
interrupção da entrevista quando ela mal havia começado representava uma espécie de
cuidado do filho mais velho para com sua mãe. Apesar de toda a antipatia demonstrada
por Abraão nestas seqüências, sua necessidade de se mostrar de imediato a favor do
presidente me pareceu uma tentativa de driblar a censura, caso acontecesse com este
filme o mesmo episódio de dezessete anos antes. Pois qual outra explicação dar para,
logo após este elogio a Figueiredo, ele declarar com veemência seu repúdio a todos os
sistemas de governo? Não fica claro em nenhum momento do filme qual a razão para o
incômodo de Coutinho com Abraão. Em uma seqüência posterior, Abraão conta que sua
mãe é uma santa e, por ela, ele brigaria por qualquer quantia de dinheiro com Coutinho.
Nessa fala fica implícito que houve uma briga entre os dois, mas nada disso é
esclarecido. Coutinho em nenhum momento esconde as contradições dos discuros e
práticas dos personagens ou seus, mantendo partes da entrevista contraditórias como as
de Abraão e não ocultando o seu desconforto diante das declarações do filho mais velho
de Elizabeth. Essa é uma postura ética que poderia receber interpretações equivocadas –
e recebe, como será tratado mais a frente na análise de um artigo de Paulo Menezes – e
que Consuelo Lins considera espantoso, pois “esquece-se com excessiva facilidade que
se trata de um filme, e que o diretor pode simplesmente cortar falas e imagens que o
pertubam. Se são mantidas, é porque fazem parte da proposta do filme” (2004: 51).
Após o reconhecimento de Elizabeth na projeção de Galiléia, as cenas do primeiro dia
de entrevista acontecem nesta sala. É a casa de Elizabeth em São Rafael, e o ambiente se
mantém envolto por ruídos, pois há outras pessoas por perto. A partir de perguntas feitas por
Coutinho, Elizabeth conta que chegou ali dezessete anos antes, “quieta e assombrada”.
Abraão parece dominar o ambiente e termina a entrevista com um longo discurso contra todos
os governos e seu protesto contra o esquecimento de sua mãe pelas facções políticas e pelos
53
intelectuais, exigindo que o filme registre este seu repúdio.
A projeção que vemos na seqüência seguinte já não é em Galiléia. Coutinho conta em
off que na noite daquele mesmo dia projetou “os filmes do passado” para Elizabeth, seus dois
filhos e vizinhos. Abraão se torna uma presença menos influente a partir de então e isto pode
ser notado pela feição de Elizabeth e em duas falas de Coutinho. “Abraão assistiu a projeção
sem interferir” é a primeira delas, enquanto vemos o filho mais velho de Elizabeth sentado no
chão entre várias pessoas que olham para a tela, dentro da casa de Elizabeth. A segunda fala
que indica a não mais interferência de Abraão aparecerá na hora da chegada para o segundo
dia de entrevista.
Podemos acompanhar durante a projeção não só as imagens exibidas na tela das cenas
de Cabra/64, mas também os diversos planos – médio, primeiro plano e planos conjunto – das
várias
pessoas assistindo. Ouvimos também no meio do burburinho as explicações de
Elizabeth sobre o filme para os presentes, entre alguns de seus risos e suspiros. Ela está
sentada bem na frente da tela, tendo de um lado o projetor e do outro o seu filho Carlos, que
sempre a acompanha.
A segunda fala sobre a interferência de Abraão no primeiro dia de entrevista é dita na
seqüência seguinte, quando há um corte na cena da projeção e vemos a chegada de Coutinho
com a equipe na casa de Elizabeth, no dia seguinte. Coutinho está caminhando por uma rua de
barro ao lado de um homem da equipe que segura o microfone e passa por várias casas até se
aproximar de uma delas. É uma casa simples, de cimento, um buraco quadrado para a janela e
outro para a porta, sem pintura. Elizabeth é chamada por ele da janela e percebemos em sua
fisionomia o porquê do seguinte comentário de Coutinho:
“Essa é a nossa chegada para o segundo dia de filmagem com Elizabeth Teixeira.
No total foram três dias. No primeiro, a presença de Abraão influiu no clima da
entrevista, principalmente no início. No segundo, ele não apareceu. Elizabeth
contou sua vida e a vida de João Pedro nestas duas circunstâncias, com a presença
e sem a presença de Abraão, na sala e no quintal”.
POLIFONIAS III
Consuelo Lins publicou um artigo na revista da pós-graduação em estudos
culturais da UFSC, Calhamaço, no qual analisa a idéia de fabulação em alguns filmes de
Eduardo Coutinho. Sobre Cabra Marcado para Morrer, ela ressalta a transformação de
Elizabeth Teixeira a partir do reencontro com Coutinho. Após dezessete anos escondida,
54
a viúva de João Pedro é descoberta por Coutinho, e no contar e reviver sua trajetória, ela
passa por um processo de auto-formulação e libera uma dimensão de sua vida que havia
ficado escondida nos anos de regime militar, “quieta e assombrada” como ela mesmo
diz. Lins dá destaque a esta seqüência de Cabra Marcado na qual, pela montagem,
Coutinho consegue mostrar os dois momentos de entrevista com Elizabeth: com e sem
Abraão. “Na primeira entrevista, ela está ao lado do filho mais velho, que a pressiona
para contar o que ele acha 'contável'. Ela está visivelmente constrangida com essa
presença repressora. Da segunda vez, seu filho não está mais lá. É ela que de fato pede a
Coutinho para refazer a entrevista” (1996: 17), afirma Lins, que acredita ser um dos
momentos mais marcantes do processo de transformação de Elizabeth Teixeira. Nele e
durante todo o filme vemos surgir pela narrativa, pouco a pouco, uma outra mulher, pois
Elizabeth se reinventa através dos seus próprios depoimentos, do seu resgate pela
memória e pela reconstrução e criação dos fatos de sua vida. Talvez seja redutor tipificar
as experiências impressionantes pelas quais ela passou, mas desde o início de Cabra
Marcado é possível notar que nesta película habitam muitas Elizabeths. A primeira
imagem que vemos é de uma viúva brava e sofrida que luta pelos companheiros apesar
de toda a sua dor. Em seguida, ela aparece 17 anos mais velha como uma quase senhora
do interior, quieta e amargurada com o passado, presa ao discurso do seu filho mais
velho e às lembranças das mágoas que viveu. Mais adiante a transformação –
vislumbrada nesta seqüência das diferenças nos dois dias de entrevistas – torna-se nítida,
e Elizabeth vira uma mulher graciosa, que tem orgulho de sua força diante do
sofrimento e que permanece na luta, apesar do tempo passado e de todas as perdas. Lins
afirma que:
“O que acontece com a personagem de dona Elizabeth no filme
Cabra Marcado para Morrer é absolutamente revelador deste
processo de fabulação que 'libera' um personagem de uma
militante combativa nessa viúva de um líder camponês
assassinado pela repressão, ambos protagonistas de
acontecimentos recusados pela história oficial” (1996: 17).
Elizabeth Teixeira agora está sorridente, leve, mexe as mãos com graça e fala
emocionada do dia anterior, contando que não soube se expressar direito por causa da
55
surpresa. E Coutinho imediatamente responde: “Mas não tem problema, a gente continua
hoje. Tem quintal aí?”.
POLIFONIAS IV
Nesta seqüência Elizabeth Teixeira recebe Coutinho em sua casa pela segunda
vez. Sem a presença de Abraão, o clima da chegada é caloroso e ela fala que estava
muito emocionada no dia anterior e não soube falar bem. Coutinho então convida
Elizabeth para continuar a entrevista no quintal da casa dela. As falas desta seqüência
evidenciam uma postura em relação ao outro que é constante em toda a obra do
cinegrafista. Em uma entrevista dada à revista de cinema Contracampo, Coutinho afirma
que: “É espantosa a arrogância intelectual, a nossa arrogância, a de quem dirige filmes
principalmente. Você tem que criar um vazio para aprender no contato. Tem um jogo
que interessa aos dois lados, E vamos ver no que vai dar este encontro” (2002: 6). Esta
busca pelo aprendizado com o outro, através do contato, é uma prática que exige muito
respeito pela experiência individual de cada pessoa. Em Cabra Marcado vemos as
primeiras experiências do diretor na defesa deste respeito e deste compromisso que será
marcante em seus filmes posteriores, pois de que outra maneira seria possível retratar
moradores de um lixão sem envolvê-los no propício estereótipo de miséria e subhumanidade, como Coutinho faz em seu filme Boca de Lixo? Como, em Cabra
Marcado, como mostrar a vida de Elizabeth distante do marido e dos filhos pela
ditadura, ou a fala de João Virgínio sobre as torturas que sofreu na prisão, sem
estigmatizar estas experiências a partir apenas do sofrimento. Nesta mesma entrevista,
Coutinho nos conta:
“Vou te dizer um troço. Eu sou um cara tido folcloricamente
como pessimista, mas, se há uma coisa que eu acho bacana em
meus filmes, é que no cinema eu vejo o mundo com um olhar
feliz. Não tem nada a ver com minha vida. Não que pessoas são
felizes, são vistas com olhar feliz. Nunca filmo com culpa, até
onde é possível. Sabe essa culpa católica e comunista em relação
ao pobre? Isso gera o miserabilismo e a miséria pela miséria.
Tento realmente filmar sem culpa. [...] Tratar o pobre como
coitadinho não pode, ninguém é coitadinho. Não quer dizer que é
livre. Por que é coitadinho um camelô que mora em um prédio
ou um cara que mora no lixão? Se você vai desarmado, o cara
acaba não sendo coitadinho. [...] Trabalho com a idéia de que as
56
pessoas só tem uma certeza: nascem, vivem e morrem. Nascem
sem pedir, a morte também não tem outra opção e elas têm esse
espaço da vida, sobre o qual eu trabalho. Tanto no cara que não
tem nada ou no intelectual com suas utopias ele só tem isso, esse
espaço de finitude, e o mais violento em cada um é a necessidade
de ser reconhecido em sua peculiaridade. O Bourdieu, um cara
muito detestável sob vários aspectos, está certo: ser reconhecido
e ser ouvido é essencial. Ser reconhecido em sua singularidade
também é isso: do lugar onde esse cara fala você pode
compreender porque ele fala aquilo. (...) Só o fato de existir já é
interessante. Filmo para saber o que existe porque há força em
existir, cacete. Mesmo sendo negativo tem de conhecer, se não
como mudar?”
O que fica claro nesta entrevista, como em diversas outras que Coutinho oferece
e são facilmente encontradas em revistas de cinema ou pela internet, é que através de
sua prática cinematográfica o diretor conseguiu estabelecer uma ética e um relativismo
característicos do fazer antropológico. Quando no primeiro semestre do curso de
Ciências Sociais estudei o conceito de relativismo cultural13 para antropólogos como
Clifford Geertz ou Roberto Cardoso de Oliveira, na verdade eu – e a Antropologia –
estava desenvolvendo teoricamente o que o cinema de Eduardo Coutinho conseguiu
estabelecer como sua prática. E sem dúvida esta não deve ser uma separação
maniqueísta entre o que é teoria e prática, nem o que é arte e o que é ciência, mas um
elogio a uma forma de compreender o mundo que pode ser percebida em diversos
modos de conhecimento. Estes modos devem ser complementares e se entremear.
A equipe entra na casa e Coutinho comenta em off que Elizabeth, que estudou até o
segundo ano primário, estava dando aulas de alfabetização para um grupo de crianças da
cidade. Saberemos mais adiante que Elizabeth Teixeira dava aulas particulares para se
sustentar, assim como fazia outros serviços domésticos, mas pelos comentários dela e pelas
suas imagens dando aulas para as crianças, percebemos que este trabalho a encanta.
Há um corte na cena da entrada na casa de Elizabeth e ela aparece sentada no quintal.
Dali ela irá narrar a história da vida de João Pedro e as imagens deste encontro são permeadas
13 De maneira sucinta, podemos afirmar que o relativismo é uma postura e um método próprio do trabalho
antropológico ao entrar em contato com o outro. Pode ser relacionado com o trabalho de Coutinho na medida
em que, ao relativizar, eu reconheço este “outro” (que pode estar na porta ao lado) como parte de um
conjunto de valores, crenças e costumes criados e organizados em seu convívio social. E que me proponho a
observar e ouvir este outro reconhecendo a singularidade de sua maneira de viver, tal como reconheço a
minha própria.
57
por cenas de Cabra/64. Em dois momentos serão também intercaladas pela fala de Manoel
Severino, companheiro de trabalho, luta e igreja do líder camponês.
Elizabeth e João Pedro se conheceram em Sapé, começaram a namorar e fugiram para
poderem ficar juntos, pois o pai dela era contra o casamento. Primeiro eles moraram no
engenho Massangana, onde João Pedro trabalhou na pedreira e depois na cidade de Cavaleiro,
onde ele começa a sua atividade política. Elizabeth narra estas histórias, e seu rosto quase
sempre aparece em primeiro plano, mas estas imagens da entrevista no quintal são
intercaladas com cenas de Elizabeth em Cabra/64 ao lado de João Pedro em um outro quintal
ou sentada no chão ao lado de seus filhos, rindo com graça.
Em Cavaleiro João Pedro se tornou amigo de Manoel Severino, colega na pedreira. A
cena do trabalho de João Pedro quebrando pedras em Cabra/64 é substituída pela de Manoel
Severino hoje, medindo e quebrando pedras também, pois ele segue trabalhando na pedreira,
na grande Recife.
EFEITOS DE REAL II
Muitas questões poderiam ser discutidas a partir da análise desta pequena cena
em que uma imagem de Cabra/64 é imediatamente seguida de outra filmada dezessete
anos depois na mesma situação ou lugar. Este é um recurso utilizado ao longo de todo o
filme e nessa nota pretendo apenas citar três questões para serem pensadas: as mudanças
de tempo ocorridas no filme, discussão já vista anteriormente; a permanência de uma
mesma condição de trabalho e de existência; e a impossibilidade de estar João Pedro
Teixeira ali, no lugar de Manoel Severino, se não tivesse sido assassinado.
Nesta parte da narrativa de Elizabeth, Manoel Severino aparece e fala sobre João
Pedro. Com o mesmo chapéu de palha de sempre, em algum lugar aberto provavelmente perto
do seu trabalho, Manoel Severino descreve João Pedro com acuidade. Conta do rosto redondo
do companheiro, dos braços grossos e fortes, da cabeleira rebaixada, das idéias políticas de
lutar pelos operários e pelos direitos do trabalhador. Foi por estas idéias que João Pedro ficou
sem trabalho em Recife e decidiu mudar com a família para a Paraíba. Ao ser advertido por
Manoel Severino dos perigos e perseguições de lá, conta este, João Pedro respondeu:
“Eu vou dizer uma coisa a você, eu não tenho vontade de morrer, mas
eu não tenho medo de morrer na bala por causa dessas coisas, que o
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sujeito às vezes é sujeito. Eu posso até morrer lá na bala, mas é melhor
do que morrer aqui de fome.”
NARRATIVAS VI
Manoel Severino nos conta, nesta seqüência, o que João Pedro disse a ele quando
foi advertido dos perigos da Paraíba, em uma narrativa surpreendente. Em diversos
momentos de Cabra Marcado para Morrer ouviremos por alguém uma fala que teria
sido dita por João Pedro Teixeira – uma narrativa dentro da narrativa – como quando
Elizabeth nos conta que João Pedro nunca esmoreceu e insistiu em ficar na Paraíba
mesmo que fosse morto, pois só seria morto covardemente. Assim como Elizabeth
Teixeira consegue realizar o resgate da mulher corajosa que foi, unindo-a a figura de
Dona Marta - nome adotado por ela na cidade onde se refugiou – através das narrações
de sua vida, muitos personagens ganham forma pelas vozes dos entrevistados. As
narrativas de Zé Daniel e seu filho João José sobre o dia da invasão do exército em
Galiléia são exemplos fantásticos de como as histórias são reinventadas a partir do
momento em que são contadas para Coutinho e para a câmera. As palavras que João
Pedro teria dito não poderão jamais ser comprovadas, mas isso não importa, pois ao
filmar Elizabeth ou Manoel Severino contando o que João Pedro disse, Coutinho está
aceitando aquela verdade e oferecendo-a ao espectador. Não é uma verdade única nem
absoluta, é a verdade do filme que nos permite conhecer aqueles personagens naquele
momento. Diante da câmera, os sujeitos falam sobre si, compõem as noções que têm de
si mesmos. Como afirma Coutinho em uma entrevista para a revista virtual de cinema
Contracampo:
“Naquele momento, sou um pouco aquelas pessoas. Posso não
gostar delas, mas, depois de seis meses editando, passo a amálas, não a pessoa, mas o personagem. A pessoa não interessa. Só
interessa para não ser prejudicada depois. Personagem é que
interessa. Isso não é documentário. Você vê uma pessoa que você
filmou... você encontrou uma pessoa durante uma hora, você
filma quarenta minutos e no final você edita quatro minutos. Por
que você supõe que documentário é verdade pura? Você ao
mesmo tempo tem de respeitar o retrato dela como pessoa, mas
mais do que como pessoa você tem de respeitar o personagem
que ela construiu. Então veja o limite. Quanto mais você é
documental mais a ficção pode explodir” (2002: 4).
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Pela narrativa de Elizabeth e pelas as imagens de Cabra/64 da chegada da família
Teixeira em um terminal ferroviário e depois no sítio onde irão morar, sabemos que de 1958 a
1962 eles moraram na Paraíba e lá João Pedro organizou a Liga Camponesa local. Fazia
reuniões, convocava e conversava com os camponeses das dificuldades e agruras, sempre nas
horas vagas e nos dias de feira. Estamos no segundo dia de entrevista e Elizabeth, no quintal
de sua casa ao lado de Carlos, nos conta de João Pedro: a relação dele com o sogro, com a
religião, com a política e com o trabalho no sítio. São cenas de Cabra/64 relacionadas a estas
questões que vemos, junto às imagens da viúva no dia da entrevista. No final da seqüência,
enquanto ela nos conta da dedicação de João Pedro ao movimento camponês em todas as suas
horas vagas, vemos cenas da feira filmadas para Cabra/64. Muitas barracas, pessoas
circulando e uma escadaria que separa a feira de um prédio com homens reunidos na frente.
Uma música alegre e cantada ao fundo, como uma cantoria nordestina, acompanha as imagens
em preto e branco e a voz de Elizabeth. Ela pára de falar, mas as imagens e a música
continuam até que há um corte e vemos o mesmo lugar, o mesmo prédio e a mesma escadaria,
coloridos e vazios de pessoa e de barracas. Passaram-se dezessete anos e a música continua,
baixinho.
Uma das poucas seqüências completas de Cabra/64 é mostrada, e quem nos explica a
imagem que vemos é o narrador: um plano conjunto de um casarão com um homem em pé na
varanda se dirigindo a oito camponeses que estão mais abaixo dele. Um texto em off diz que
nesta seqüência um grupo de camponeses liderado por João Pedro discutia com o
administrador a questão do aumento do foro. Os diálogos da seqüência foram criados pelos
próprios atores, através de uma improvisação feita antes da filmagem. Por isso, reconhecemos
que a encenação não é profissional, mas que o enredo criado pelos camponeses é muito
próximo das situações que eles vivem. A seqüência gira em torno da discussão com o
administrador por causa do aumento indevido do foro. Aquele deveria ser o momento em que
um dos camponeses vai sozinho pagar o foro, mas eles se organizaram e foram em grupo para
evitar o aumento. O administrador fica indignado com a audácia deles, acusa João Pedro de
ser o líder e apela para um companheirismo que pela sua própria fala percebemos que não
existe, como fica claro no diálogo abaixo:
“ADMINISTRADOR: João Pedro, você é o cabeça, hein? Você é quem tá
inventando essas idéias.
CAMPONÊS 1: Ele não é o cabeça. É pelos alcance do acordo que está
ocorrendo ele pode fazer um apelo razoável pelo que é merecedor.
60
JOÃO PEDRO: É a necessidade que obriga nós a complicar o caso.
CAMPONÊS 2: Ói seu administrador, é pelo caso que eu digo que eu tô muito
agitado com o senhor.
ADM: Tá revoltado? Não devia. Seu filho morre, eu dou enterro. Sua mulher
adoece, boto na maternidade, nada falta prá vocês.
CAMPONÊS 2: O senhor tá muito fraco, precisa uma conclusão mais forte.
ADM: Você pensa pouco. Parece que tá doido. Não tem idéia no juízo. Você é
meio bruto. Senhor de engenho não morre, administrador não morre, só quem
morre é camponês.
JOÃO PEDRO: Seu Vieira, nosso caso não é brigar com o senhor, mas nós não
podemos pagar o aumento.”
A seqüência termina com um acordo entre eles de esperar o patrão chegar de viagem
para o assunto ser resolvido por ele, ao que todos concordam e os camponeses se retiram. Mas
na última cena, enquanto todos se afastam do casarão, um deles – o que havia ficado mais
exaltado – se volta para trás e grita “Ainda vai chegar o dia do senhor querer fazer do que tá
fazendo e não poder!”.
DESLOCAMENTOS VI
Esta seqüência de Cabra/64 é especialmente estudado por Alcides Freire Ramos
em um artigo intutulado A historicidade de Cabra Marcado para Morrer. Ramos analisa
a relação entre cinema e história e, conseqüentemente, entre história e memória, a partir
do material fílmico de Cabra Marcado, filme que segundo ele teve uma acolhida tanto
de críticos de cinema e espectadores específicos das sessões especiais de cinematecas,
quanto de intelectuais brasileiros. Segundo Ramos, isso ocorreu por que Cabra Marcado
permite acolher interesses estéticos e temas sociais, é um material fílmico heterogêneo,
composto basicamente de fragmentos de cena e planos esparsos. Porém, por ser
mostrada na íntegra, a seqüência do aumento do foro é analisada por Ramos, que a
divide em quatorze planos vistos a partir de três pontos de vista: o do varanda/alpendre,
o do terreiro e o lateral. O primeiro seguiria o olhar do poder, o segundo o olhar do
oprimido e o terceiro, de quem está filmando, ou seja, uma perspectiva que não é dos
personagens. O ângulo da tomada é basicamente frontal e são feitos diversos
enquadramentos: plano conjunto, primeiro plano etc. As características básicas da
seqüência, segundo Ramos, seriam a coincidência entre o tempo “real” e o tempo
diegético e o fato de não haver manipulações do espaço. Isso significa que a quantidade
de tempo gasta para a exibição do filme é muito próxima da quantidade de tempo da
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história narrada e que tudo se passa no mesmo lugar. “[...] à semelhança do tratamento
recebido pelo tempo e pelo espaço, a decupagem da cena parece ter seguido os cânones
do neo-realismo italiano, pois quando se faz necessário houve condensação de signos em
um mesmo plano, eliminado-se a montagem” (2006: 5). Ramos afirma que a análise
desse pequeno fragmento mostra que esse filme teve seu perfil didático conscientizador,
presente no roteiro, e reforçado pelo estilo próximo ao neo-realismo italiano do pósguerra. Esse estilo significava, de acordo com Ismail Xavier, uma crítica à falsificação e
ao mundo dourado da produção industrial dominante, pois buscava um cinema crítico e
anti-burguês que humanizasse as telas de cinema por observar a realidade, não pela
extração de ficções na vida. Xavier afirma em seu livro O discurso cinematográfico que
“A estratégia neo-realista, tendo como ponto de partida o fato banal, estabelece que a
significação essencial deste pequeno fato será captada pela observação exaustiva, pelo
olhar paciente e insistente” (2005: 74). É importante ressaltar que tal característica vale
apenas para as filmagens de Cabra Marcado interrompidas em 1964. Coutinho, assim
como a equipe do Centro de Cultura Popular, recebeu nesse momento as influências do
movimento neo-realista. Ramos ao analisar tal seqüência mostra que Cabra/64 era um
filme feito de fora para dentro, uma construção discursiva do intelectual sobre o povo
com o intuito de mostrar uma dicotomia entre o opressor e o oprimido. Entretanto,
acredito que esta idéia não leva em consideração algumas caracaterísticas de Cabra/64
pontuadas por Jean-Claude Bernardet, que afirma que Cabra/64 poderia ter sido um
filme inovador para o período, pois ao utilizar os próprios personagens da história real
como intérpretes dos seus papéis e ao integrá-los na construção do roteiro, Coutinho
estava criando uma dramaturgia diferenciada em relação ao período. Em nota final
escrita à terceira edição do seu livro Cineastas e Imagens do Povo, Bernardet afirma:
“SE Cabra marcado para morrer tivesse sido concluído,
contaríamos de forma diferente a história do cinema desses anos
1963-64, porque esse filme se colocaria como um contraponto a
relativizar a postura político-ideológica dos filmes do mesmo
período. [...] Possivelmente a finalização de Cabra marcado
para morrer nos teria permitido uma compreensão mais crítica
do trinômio consciência/conscientização/ ação” (2004: 241-242).
Esta seqüência de Cabra/64 parece ser o anúncio do assassinato. João Pedro está
marcado como líder, marcado para morrer, e sabia disso. Ele é advertido pela esposa e por
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amigos, sofre perseguições e Elizabeth canta um coco para que os filhos não ouçam os gritos
e pedras jogadas na sua porta. Outra seqüência de Cabra/64 que é mostrada na íntegra durante
Cabra Marcado para Morrer é a da noite de uma das prisões de João Pedro. Elizabeth narra
como foi a noite da prisão enquanto a seqüência filmada em 1964 se passa na tela. João Pedro
sentado na frente de casa, lavando os pés e sem blusa, os policiais chegando, Elizabeth
aparece na porta, percebe a situação, João Pedro levanta, ela pega uma camisa para ele dentro
de casa e segura firme quando ele tenta pegar, ele se veste e segue seguro pelo braço por um
dos policiais. E Elizabeth na porta, olhando para ele sendo levado e mexendo no cabelo,
mesmo gesto que aparecerá no início da seqüência seguinte, na sua entrevista dentro de casa.
João Pedro foi preso, mas nunca esmoreceu, mesmo sabendo que sua vida ia ser tirada,
mesmo se o custo fosse afastar-se da família. Pois, dizia João Pedro, ele poderia até ser
assassinado, mas seria morto covardemente. Isto quem nos conta é Elizabeth e quando ela
termina ouvimos sons de tiros por trás da manchete “Família camponesa ameaçada”. São três
tiros, sons que ouviremos sempre que se falar no assassinato de João Pedro.
EFEITOS DE REAL III
João Pedro foi preso, mas nunca esmoreceu, mesmo sabendo que sua vida ia ser
tirada, mesmo se o custo fosse afastar-se da família. Pois, dizia João Pedro, ele poderia
até ser assassinado, mas seria morto covardemente. Isto quem nos conta é Elizabeth e
quando ela termina ouvimos sons de tiros por trás da manchete “Família camponesa
ameaçada”. São três tiros, sons que ouviremos sempre que se falar no assassinato de
João Pedro. É interessante pensar, a partir desse efeito da sonoplastia, no uso dos sons
para o cinema. Pois se o cinema clássico se utiliza do som para aumentar o efeito de real
dos filmes, essa não é uma implicação direta e há outros resultados criados ao se
escolher o uso de sons feitos fora do momento da filmagem. De acordo com Robert
Stam, o advento do som trouxe um debate considerável sobre os méritos do cinema
mudo e do cinema sonoro e “foi preciso a teoria semiótica dos anos 60 para sugerir que
'essência' e 'especificidade' não são coincidentes, e que o cinema podia ter dimensões
'especificamente cinematográficas' sem que estas ditasse um único estilo ou estética”
(STAM, 2003: 77). Podemos entender dessa afirmação e das reflexões proporcionadas
por Cabra Marcado que não existe recurso cinematográfico que possa ser analisado fora
do contexto do filme. Se em parte a utilização de barulhos de tiros no momento em que
63
se fala no assassinato de João Pedro pode reforçar a idéia de covardia desse ato e
aumentar a indignação, por outro todo o filme leva a pensar esse assassinato através de
muitos olhares, por muitas narrativas e histórias, de tal maneira que não é possível
afirmar que este recurso produz efeito semelhante ao buscado pelo cinema clássico.
“Foi no dia dois de abril” conta-nos Elizabeth. Para narrar o dia do assassinato, as
cenas do primeiro dia de entrevista são retomadas e Abraão corta novamente a fala da mãe,
pois quer explicar que brigou com Coutinho apenas para defendê-la. Nesta data João Pedro
voltava de uma audiência com o advogado sobre a posse do sítio – por conta da briga com o
pai de Elizabeth ele estava lutando na justiça para ter o direito a viver nas terras do sogro – e
carregava livros para o filho mais velho. É assassinado na estrada do único jeito que disse que
seria morto: covardemente. Muitas manchetes de jornal aparecem a partir daí, enquanto
ouvimos o depoimento de Manoel Serafim:
“Por volta de oito horas, mais ou menos, chegou o jornal contando a notícia,
contando a reportagem dele. E o pessoal tudo comprando. Dizia assim, rapaz
mataram o presidente da liga camponesa da Paraíba e aquele nome surgia assim
na notícia como se fosse uma grande pessoa, né? E a gente sentimos uma tristeza
assim, houve isso, parece que o sangue esfriou assim, não quis sair do lugar. E foi
aquela serenidade fria, assim,aquela tristeza roncando assim, aquela vida com
aquela saudade. Que existe saudade sem alegria, aquela saudade com tristeza. E
todo mundo sentiu, né?”
É um depoimento triste e poético. Algumas das vezes nas quais conversei sobre Cabra
Marcado com outras pessoas, alguém sempre se dizia espantado com a beleza da fala deste
camponês, com o modo como ele consegue expressar seu sentimento no momento da morte
de um amigo e companheiro, exemplo de vida e luta para os que o rodeavam. Coutinho ainda
consegue manter a poesia do momento ao terminar a seqüência com a despedida de Manoel
Serafim: ele, saindo de costas do lugar onde estava sendo entrevistado, passa por um caminho
de terra e, antes de sumir por trás de uma escada, olha para trás e acena um adeus.
Em seguida Elizabeth segue sua narrativa e conta como foi sua reação à notícia. Além
da violência do atentado, pois ela foi encontrá-lo apenas no dia seguinte todo sujo de sangue e
terra, “uma coisa bárbara” nas palavras da viúva, nunca houve punição para o assassinato. Ao
som de tiros e ilustrado por jornais com manchetes e fotos relacionadas ao que está sendo
dito, ouve-se o narrador dizer que:
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“João Pedro Teixeira foi assassinado de emboscada no dia 02 de abril de 1962 por
dois soldados da polícia militar. Também participou da emboscada o vaqueiro de
uma fazenda do latifundiário Agnaldo Veloso Borges, suplente de deputado
estadual. O juiz de Sapé decretou a prisão preventiva de Agnaldo apontado como
um dos mandantes do crime. Mas ele livrou-se da prisão e do processo assumindo
uma cadeira na Assembléia Legislativa. Agnaldo era o quinto suplente. Um
deputado e quatro suplentes renunciaram no mesmo dia para permitir a sua posse.
Em março de 1965 os dois policiais que mataram João Pedro foram absolvidos
por unanimidade pelo tribunal do júri”.
DITADURA III
Talvez não haja muito o que analisar nessa seqüência de Cabra Marcado. Devo
dizer que foi uma das últimas partes do filme que eu narrei nesse texto, pois ela me
chocava de tal maneira que eu não conseguia escrever sobre ela. Preferi deixar a
narração intocada e acrescento essa nota apenas para que esse exemplo de impunidade e
de organização do poder político no Nordeste brasileiro em torno de coronéis e
proprietários de terras não passe em branco, não seja ignorado por quem vê o filme ou lê
esse texto. Apesar de ter centrado a minha análise em torno da relação do filme e seus
personagens/atores com o Regime Militar, as relações hierárquicas e as injustiças no
Sertão estão muito presentes em Cabra Marcado e tão pouco devem ser ignoradas.
João Mariano é o próximo personagem a compor a narrativa de Cabra Marcado para
Morrer. Como de costume, ele é apresentado para o espectador por cenas da primeira noite de
projeção. Nesta seqüência, a tela mostra um trecho da cena da prisão de João Pedro. Coutinho
explica que João Mariano era o único dos atores sem participação no movimento camponês.
Ele aceitou na hora o papel de João Pedro ao conhecer a história deste, inclusive por que tinha
sido expulso de outro engenho e estava desempregado.
Após a projeção, Coutinho foi entrevistá-lo de surpresa em Vitória de Santo Antão,
onde João Mariano é dirigente de uma congregação batista. A entrevista começa sem
perguntas, com João Mariano explicando que é “muito afastado de certos movimentos” e
“caiu” neste movimento revolucionário dezesseis anos antes. Antes dele terminar sua frase,
Coutinho o interrompe para avisar à equipe que o vento está interferindo no som e precisa ser
corrigido. Surge entre ele e o entrevistado uma mão com um medidor e ouvimos um apito.
Quando a mão some, vemos João Mariano em primeiro plano, com uma cara muito
desconfiada, olhando de soslaio. Coutinho pede três vezes para ele continuar falando e fica
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inquieto com o silêncio de João Mariano. Nesta hora, vemos apenas uma parte do rosto de
Coutinho de perfil, segurando o microfone, e ele parece preocupado. A câmera focaliza João
Mariano em silêncio, olhando para baixo e, desconcertado, Coutinho insiste “Pode falar, seu
Mariano, sem problema, sem medo. O senhor diz como é que o senhor vive e pronto”. Ele
recomeça a falar após mais algum tempo, e seu depoimento se centra em justificativas que
mostrem que seu ingresso no movimento camponês foi por acaso. João Mariano conta que foi
expulso de sua igreja (decepcionado pela igreja, nas palavras dele) por participar da revolução
e agora parece querer deixar claro o seu não-envolvimento neste novo filme e em nenhum
outro movimento.
EFEITOS DE REAL IV
A entrevista com João Mariano é um dos pontos em que Cabra Marcado se
questiona enquanto filme e enquanto verdade. Eduardo Coutinho poderia ter tirado essa
entrevista para manter uma coesão entre os discursos dos personagens, pois Mariano
deixa claro o quanto não se identifica com o movimento camponês do qual João Pedro
participou e que ele representou ao interpretar o papel principal em Cabra/64. Diferente
de todas as entrevistas com os camponeses que participaram do filme, ele se define
distante “de certos movimentos”, apesar de dizer que não foi prejudicado pelo filme,
mas sim pelo senhor de engenho que o perseguiu e tentou matar João Mariano por que
foi obrigado a indenizá-lo. Percebemos na entrevista desse camponês um descompasso
entre o ator e a personagem, uma diferença de militância que nos outros não é notada na
medida em que cada um fazia seu próprio papel e tinha participado ativamente da luta
camponesa que estava sendo narrada na história do filme, de Cabra/64. A ruptura entre
ficção e realidade nessa seqüência parece maior do que em todo o filme, e é fundamental
reconhecer que mesmo assim a entrevista foi mantida, incluindo inclusive a interrupção
por causa de um ajuste no som.
A narrativa retorna para o ano de 1963. O filme irá se dedicar então e pelas próximas
seqüências à trajetória de Elizabeth Teixeira do dia do assassinato até a invasão da filmagem
de Cabra/64, na véspera do golpe militar. Trata-se de um período curto, de quase um ano, que
na narrativa de Cabra Marcado para Morrer começa com a exibição de duas fotos ainda não
mostradas de Elizabeth. Vale a pena ressaltar que a narrativa seguirá os depoimentos de
66
Elizabeth e, assim, irá falar de períodos anteriores ao do momento da filmagem.
Após o assassinato de seu marido, Elizabeth Teixeira foi ao Rio de Janeiro e a Brasília
falar sobre a situação no campo e os deputados a convidaram para substituir o lugar de João
Pedro. As duas fotos do início desta seqüência mostram esta viagem, do depoimento de
Elizabeth na comissão parlamentar de inquérito. Durante a entrevista com Coutinho, ela
reconhece – firme e orgulhosa – que sabia do risco de vida implicado em sua decisão e
aceitou o convite mesmo assim, com o intuito de protestar contra o assassinato do marido e de
todos os companheiros que tombaram. Por conta disso, Elizabeth conta que foi presa e no
momento da prisão atiram e a feriram nos pés.
Enquanto Elizabeth narra estes acontecimentos, vemos ela em dois momentos: dentro
da sala de sua casa ao lado dos dois filhos no primeiro dia de entrevista e falando em um
palanque no comício de 1964. Este comício foi realizado em comemoração a fundação do
sindicato dos trabalhadores de São Miguel de Taipú, cidade próxima de Sapé, pois o governo
federal vinha estimulando nos últimos meses a sindicalização do campo por conta das
pressões do movimento camponês. Esta informação é dada por um pequeno texto narrado pela
voz de Ferreira Gullar, enquanto são mostradas as cenas do comício. Foi provavelmente a
última participação de Elizabeth no movimento camponês, pois duas semanas depois desta
manifestação houve o conflito na região de Sapé que impediu a filmagem de Cabra/64 e em
fevereiro ela seguiu com Coutinho para Galiléia, para filmar a história de João Pedro.
Ao som de um apito muito estridente lemos manchetes de jornais que anunciam as
marchas da família com Deus pela liberdade em Recife, João Pessoa, Guarabira e outros
municípios do nordeste. O apito soa como um aviso de que movimentos diferentes estão
acontecendo no Brasil, diferentes do comício e dos estímulos do governo federal.
DITADURA IV
Tal seqüência, ao citar através de notícias de jornais essas manifestações
organizadas pelo Nordeste, nos mostra que não havia movimentos apenas contra a
Ditadura Militar que estava sendo organizada. A Marcha da Família com Deus pela
Liberdade foi o nome dado a uma série de manifestações públicas organizadas pelo
Brasil. A primeira delas foi uma grande passeata realizada em São Paulo em resposta ao
comício feito em 19 de março de 1964 durante o qual o presidente João Goulart
anunciou seu programa de reformas de base. As marchas foram organizadas pela união
67
de Igreja, Governo, meios de comunicação e outros segmentos da sociedade brasileira,
como o IPES, Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, e contou com o apoio de boa
parte da classe média, temerosa do alardeado “perigo comunista” do governo reformista
de João Goulart.
Em seguida, aparecem as últimas cenas filmadas de Cabra/64. É a noite de 31 de
março, véspera do golpe militar, e o narrador explica que se trata de uma seqüência em que
João Pedro se reunia com outros camponeses para discutir a formação da liga. Sem cortes, a
seqüência é mostrada desde a claquete, e os três planos são explicados pelo narrador: João
Pedro está sentado na mesa da sala de sua casa com dois companheiros e no primeiro plano
Elizabeth serve o café, no segundo ela houve o ruído fora da casa e vai ver o que é, e no
último ela volta e avisa assustada “tem gente lá fora”. Em seguida, alguns atores de Cabra/64
aparecem em primeiro plano, um de cada vez, e repetem esta frase para a câmera: “tem gente
lá fora”, “tem gente lá fora”, “tem gente lá fora”, “tem gente lá fora”.
Quem começa a contar como foi a invasão é Zé Daniel. O exército de Pernambuco e
também da Paraíba ocupa toda a região em busca das pessoas da filmagem e de três
camponeses: João Virgínio, Zezé da Galiléia e Rosário.
É João José, filho de Zé Daniel, quem leva Coutinho pela plantação e aponta para um
lugar ao longe, onde se vê a antiga casa de seu pai. Nela todo o equipamento de filmagem
ficava guardado e eram rodadas todas as cenas da casa de João Pedro. São mostradas imagens
da casa ao longe em plano geral e também em Cabra/64, com João Pedro em cima do telhado,
colocando as telhas. É a mesma cena do preço do charque que Cícero nos narrou em sua
entrevista, desta vez mostrada com o foco em João Pedro, que recebe as telhas das mãos dele,
no chão.
João José fala sobre a invasão da sua casa. Ele está de pé, na plantação de seu pai, e a
câmera em travelling nos mostra o local, filmando em plano geral toda a região que contorna
a casa. Esta panorâmica é seguida pelo primeiro plano de João José contando indignado que o
exército chegou à noite em três caminhões, virou todos os móveis da casa, jogou no terreiro a
barriga de farinha e a panela de macaxeira que eles estavam cozinhando para comer, levou o
caminhão deles e todas as latas e máquinas do filme. Neste momento da invasão, a equipe de
filmagem já estava escondida atrás de um morro e é também João José quem indica o local,
apontando ao longe para a mata. Antes da narrativa desta noite continuar, as versões “oficiais”
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do acontecimento são mostradas: diversas fotos de primeira página e manchetes como
“Material subversivo apreendido” e “Exército viu em Galiléia um arsenal de miséria”.
Contrapondo-se a estas imagens, a fala do narrador comenta: “Nessa fotografia de primeira
página do Diário de Pernambuco, aparecem latas de filmes, tripés, refletores, um megafone, o
equipamento normal de qualquer filmagem”.
Em seguida, um pequeno recorte de jornal aparece isolado da folha e é lido:
“Foi talvez em Galiléia que o exército apreendeu materiais valiosos do maior foco
de subversão comunista no interior de Pernambuco, abandonado pelos lideres
vermelhos ao lado de mulheres e crianças. Num casebre característico de
camponês, foi encontrado farto material que acionava o dispositivo de subversão
ali montado pelos esquerdistas internacionais, sob a proteção do governo estadual,
recentemente deposto. Nesse casebre estava instalado um poderoso gerador,
destinado a fazer funcionar custosa máquina de projeção cinematográfica. O
filme, entre os inúmeros encontrados, estava sendo levado na semana do golpe,
era 'Marcados para morrer'. A película ensinava como os camponeses deveriam
agir de sangue frio, sem remorso ou sentimento de culpa, quando fosse preciso
dizimar pelo fuzilamento, decapitação ou outras formas de eliminação, os
reacionários presos em campanha e levados a Galiléia, interior do Estado.”
O discurso sobre a subversão, o sangue frio e a intenção de eliminação do inimigo do
filme “Marcados para morrer” que ouvimos contrasta com as imagens de Cabra/64 que são
mostradas durante a leitura em off. Nelas, vemos os filhos de João Pedro e Elizabeth
dormindo embaixo de uma árvore, chupando laranja ou olhando inocentemente pela janela da
casa da família para a câmera. Vemos também a cena dos camponeses reunidos no galpão de
fazer farinha, trabalhando juntos. A notícia termina com a informação de que um sociólogo
iniciou a elaboração de um plano para ajudar na “recuperação moral e social da sub raça a que
os camponeses quiseram reduzir os camponeses de Galiléia”.
DITADURA V
Nessa curiosa seqüência acima, um jornal conta que um sociólogo – que preferiu
não ser identificado – iniciou a elaboração de um plano para ajudar a recuperação moral
e social dos camponeses. Tal notícia ajuda não apenas a entender o papel dos meios de
comunicação em colaborar com a criação de um regime de ditadura (e a pensar que essa
ditadura também foi construída em cima de um exercício de ficção), como também a
refletir sobre o papel dos intelectuais nesse contexto. Segundo Florestan Fernandes em
69
seu texto O Significado da Ditadura Militar, desde o suicídio de Getúlio Vargas que os
militares brasileiros se sentiam em condições de arcar sozinhos, contando apenas com a
colaboração de alguns civis de confiança, com a responsabilidade de governar o país.
Por isso, procuraram no saber civil, principalmente acadêmico, a fórmula que os
permitiria tomar o controle do governo para si. Em 1962 iniciaram uma “limpeza de
área”, demitindo dos meios de comunicação os intelectuais considerados de esquerda ou
do setor radical e reduzindo o espaço de dissidência consentida nas relações trabalhistas.
Organizaram os quadros de civis de acordo com seus interesses e ficaram prontos para a
ação decisiva - o golpe - que viria de cima, do intelectual orgânico.
De acordo com esta perspectiva, os militares teriam instalado um regime
autoritário em 1964 tendo como suporte tanto o trabalho de políticos, acadêmicos e da
sociedade de modo geral quanto tendo como pré-requisito a exclusão de outros políticos,
acadêmicos e outra parte da sociedade civil. Deste modo, não existe uma postura
homogênea em nenhum dos segmentos da sociedade, sendo que cada grupo ou indivíduo
estabeleceu um modo de atuar em face do regime. Cabra Marcado para Morrer, nesse
contexto, deve ser entendido como um filme que não apenas se posiciona em relação ao
Regime Militar, como também questiona a posição de intelectuais, camponeses,
políticos e também a dos espectadores, cobrando uma reflexão sobre os nossos papéis,
dentre os quais está o de cientistas sociais.
Zé Daniel continua então a narrativa do filho, agora do ponto de vista de quem se
escondeu, pois ele estava no mato junto com Coutinho. Divertido e risonho, ele conta que
durante a noite seus filhos gritavam para ele voltar por que o povo do exército já tinha ido
embora. E ele, rindo, conta da sua vontade de ir, impedida pelos membros da equipe de
filmagem com receio de ser um truque do exército.
Os planos gerais do local de filmagem que mostram a vegetação e a casa de João
Pedro continuam, mas quem continuará a narrativa sobre a invasão é Coutinho. Sua narração
é em off, como sempre, mas agora ele é personagem, mais um dos deslizamentos de Cabra
Marcado entre a ficção e a realidade. Coutinho conta que ele, a equipe e Elizabeth saíram
cedo do mato, se dividiram em grupos de três e caminharam pelas colinas até a estrada para
Recife. Separados, chegaram à capital e souberam que os cinco membros que preferiram ficar
em Vitória de Santo Antão tinham sido presos. O exército voltou a Galiléia pouco depois da
70
partida de Coutinho e no mesmo dia que Zé Daniel se entregou. Esta cena termina com um
plano médio de Zé Daniel em Cabra/64, e a cena seguinte começa com ele em sua atual casa
ao lado de João José. Sua fala sobre este dia é emocionante, pois ele conta que disse ao
soldado do exército que tinha ido se entregar, sim, mas fala que “eu peço pelo leite que o
senhor mamou da mãe dos senhores, peço pelo amor do senhor amado Jesus Cristo, que se o
senhor vê que eu tenho algum caso pois prá mor de ser preso ou apanhar, o senhor taca com
uma bala, duas, três, conforme eu agüentar”. Zé Daniel fala ao exército que para não ser preso
respeitou durante toda a sua vida homem, menino e mulher, e quer ser respeitado também,
como homem, velho, fraco e sofrido: “Pobre graças a Deus, pobre como o diabo, como
homem fraco, mas vivo com respeito e também quero morrer honrado e respeitado. Que eu
subi que o senhor queria me ver. Eu vim prá morrer no meu terreiro, mas não prá ser preso
nem apanhar”.
João José olha para o pai com respeito e Zé Daniel continua a contar sua história. Os
sargentos então perguntaram a ele sobre as armas e as máquinas, ao que ele retruca que estava
vendo arma – sem ser espingarda de gado ou de passarinho – pela primeira vez naquele
momento, na mão do exército. Quanto às máquinas, Coutinho conta que a primeira câmera – e
principal equipamento – tinha sido escondida numa espécie de gruta com a ajuda de Zé
Daniel. Os dois caminham pelo mato com Zé Daniel guiando até chegarem ao local do
esconderijo. Coutinho pede ao camponês que explique o que aconteceu: Zé Daniel guiou o
exército também até ali, sem querer mostrar diretamente o lugar, e para Coutinho ele imita o
grito de triunfo do soldado para os seus colegas quando encontra a câmera, última peça
descoberta “Vem!!! Vem conta o que eu achei!!!”.
Apesar de já ter falado algumas vezes antes, João José é apresentado apenas nesta
seqüência. Muito parecido com seu pai, ele é conhecido por todos como Duda. Com vinte
anos na época da invasão, ele guardou dois livros deixados pelo fotógrafo de Cabra/64. Antes
de ouvirmos Duda falar a câmera focaliza uma espingarda pendurada bem no alto de uma
parede de pedra, circula pelo ambiente da parede e se foca em uma maleta em cima de uma
cadeira, ao lado de uma cama onde dorme uma criança. João José entra no quarto, pega os
dois livros e sai. A câmera o segue por todo o caminho e ouvimos sua voz contando que os
dois livros foram a única coisa que ele pode conservar, com muito custo, da invasão do
exército. Um livro é sobre fotografia e o outro é Kaputi: história de um manuscrito, do qual
Duda lê um trecho e diz ter achado parecido com a história de das filmagens de Cabra
71
Marcado, do primeiro Cabra Marcado. Ainda ouvimos a leitura quando a cena de Duda
pegando os livros na maleta é repetida.
POLIFONIAS V
O livro lido por João José é Kaputi mennonita: arados y fusiles em la guerra del
chaco. Pouco conhecido no Brasil, trata-se de um livro escrito por um mennonita, nome
dado à irmandade cristã formada no pelos imigrantes alemães. Segundo João José, o
livro conta a história de um homem que lutou na guerra do paraguai e sua relação de
companheirismo com um camponês do local. Esse homem ficou escondido na casa
desse camponês, que o advertia quando as tropas se aproximavam. “Quando tinha que ir
a frente de batalha, eu confiava o manuscrito de Kaputi ao meu amigo Romão Juscena,
que o escondia em um buraco da parede do chiqueiro. Hei de ficar sempre grato ao
camponês Romão Juscena e a sua jovem nora por me terem auxiliado a salvar o meu
perigoso manuscrito das mãos da Gestapo”, foi o trecho de Kaputi que leu João José
para Eduardo Coutinho, e logo depois disse que achou história do livro parecida com a
de Cabra Marcado.
Quando aparece a manchete “João Virgínio: o valentão das Ligas Camponesas
entregou-se ao exército”, se inicia a próxima narração sobre o ocorrido após a invasão. João
Virgínio é quem irá contar da sua trajetória após 31 de março de 1964 e só então sabemos que
ele usa óculos escuros durante todo o filme por que ficou cego de um olho pelas pancadas
levadas quando preso. Ele conta que após sete dias escondido não teve outro jeito a não ser se
entregar. Até dia quinze de abril, quando Castelo Branco assumiu a presidência, ficou preso
na base do exército e então foi levado a depor na secretaria de segurança pública “Quando
botaram eu prá depor, botaram dois tira prá bater em mim, né?”. Assim, a câmera acompanha
o caminho de João Virgínio por uma plantação e ouvimos sua voz:
“Eu produzi aqui nesse sítio, onde estou, meio caminhão de mercadoria por
semana, o exército pegou, tirou daqui, meteu eu na cadeia, cegou um olho, deu
uma pancada eu perdi o ouvido, outra pancada eu perdi o coração, passei seis anos
da grade da cadeia. O que foi que eu construí na grade da cadeia? [...] Era melhor
mandar me fuzilar, néra? Do que fazer uma miséria dessa. Eu fiquei mais
revoltado do que era. Deixaram meus filho tudinho morrendo de fome aqui e eu
lascado lá na cadeia, no cacete, no pau. Passei 24 hora dentro de um tanque de
merda, com água aqui no imbigo, cada rolo de merda dessa grossura, aquele catu,
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aquela manibeira, [...] Eu não acredito que tô vivo, não, que eu nunca vi um
espírito da minha qualidade agüentar mais choque elétrico de que eu agüentei,
não, rapaz.”
Enquanto João Virgínio fala não aparecem imagens de Cabra/64, mas sim de seu rosto
em plano médio e de uma penitenciária vazia e limpa. Um pequeno texto explica, quando ele
termina de falar, que a Casa de Detenção de Recife – onde ele ficou preso – foi desativada e
se tornou a Casa da Cultura em 1976.
A última trajetória narrada após a invasão é a de Elizabeth Teixeira. No dia em que o
exército invadiu Galiléia ela fugiu com a equipe de filmagem para Recife mas como não
podia ficar lá nem voltar à sua casa, foi para casa do companheiro Manoel Serafim em
Jaboatão. Mudou de nome e passou ali dois meses, até decidir se entregar às autoridades da
Paraíba que, segundo ela conta, a trataram bem. Após quatro meses de prisão, Elizabeth volta
a Sapé e vai morar na casa do pai, onde tentam novamente prendê-la. Desta vez, ela pede ao
pai para que converse com os policiais e combine dela se entregar no dia seguinte. Ela, então,
finge que vai se entregar e foge, pois sabia que seria torturada ou morta.
A voz de Gullar conta que outros companheiros de luta foram mortos e torturados
nesse período – Zezé da Galiléia e Severino Gomes da Silva, presos na primeira quinzena de
abril, e Pedro Fazendeiro e o Nêgo Fuba, fundadores da Liga que desapareceram logo após
saírem da prisão – e completa: “Três dias depois do desaparecimento, um jornal informava
que dois cadáveres mutilados tinham sido encontrados em uma estrada da Paraíba. Segundo o
jornal, tratava-se de marginais eliminados pelo esquadrão da morte. Os cadáveres nunca
foram identificados”.
Após a narrativa sobre a interrupção das filmagens, a fala de Carlos no inicio da
próxima seqüência mostra qual será o norte de Cabra Marcado daqui em diante: “A partir de
agora vamos nos informar de onde está tudo. Vou tentar localizar todos eles”. Mas será
Coutinho quem tentará primeiro descobrir a trajetória dos filhos de João Pedro e Elizabeth
após o assassinato do pai.
O primeiro dos filhos é Carlos, sempre ao lado de Elizabeth. Coutinho pergunta por
que, na fuga para São Rafael, ela ficou com o filho mais novo entre todos os outros e ela
responde que o seu pai não quis ficar com o garoto por se parecer demais com João Pedro.
Vemos então Carlos em primeiro plano sorrir acanhado e satisfeito.
A foto de Cabra/64 na qual Elizabeth está rodeada por seus filhos aparece em seguida.
Essa foto acompanhará toda a procura pelos filhos, pois cada vez que uma das crianças da
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foto for localizada, sua imagem do momento da entrevista será mostrada em seqüência – antes
ou depois – de sua imagem na fotografia de dezessete anos antes. Os momentos em que esta
foto é mostrada são quase sempre acompanhados de música instrumental, um intervalo entre
os silêncio e ruídos do ambiente constantes.
Entre as crianças da fotografia, um garoto olha sério na direção da câmera e o narrador
explica ser Paulo Pedro, que após o assassinato do pai em 1962, sofreu um atentado nunca
esclarecido. Ele aparece, então, em uma foto de jornal com a cabeça enfaixada e Elizabeth
explica que os capangas do mesmo latifundiário que mataram João Pedro atiraram no rosto do
garoto e que ela hoje nem sabe se ele está vivo. Durante a sua entrevista em uma seqüência
mais adiante, José Eudes – outro filho do casal – irá falar de Paulo: “[...] ele vive até revoltado
com esse problema que houve com minha família, né? Que bebe muito, vive muito
revoltado”. Estas são as únicas ocasiões nas quais Paulo é citado em Cabra Marcado e
Coutinho não fala nem se tentou entrevistá-lo.
Marluce, a filha mais velha, se suicidou quando Elizabeth foi presa após a morte do
pai. Segundo Elizabeth, foi o sentimento da morte do pai que levou Marluce a tomar arsênico.
Na foto de Cabra/64 dos filhos reunidos de luto, ela é a garota que está ao lado direito,
olhando para os irmãos e para a mãe, distante.
A entrevista com Elizabeth e Carlos continua. Eles estão no quintal com mais algumas
crianças e outras pessoas da equipe, e a maior parte dos planos focaliza ela sentada em
primeiro plano ou ao lado do filho, em plano médio. Carlos conta que não conhece nenhum
dos outros oito irmãos além de Abraão, e Elizabeth fala da sua mudança de nome. No meio da
alternância entre os diferentes planos, aparece um plano conjunto de todos os que estão no
quintal organizando o lugar, como se houvesse terminado a entrevista, mas Carlos continua
falando.
Ainda vemos todos no quintal, agora em pé, quando Coutinho pergunta sobre como
Elizabeth é conhecida em São Rafael e se agora ela vai “voltar para o mundo”. Quando
chegou na cidade, ela trocou seu nome para Marta Maria da Costa , mas agora todos estão
sabendo quem ela é e ela irá procurar seus filhos e inclusive seus pais. Elizabeth está
sorridente, fala animada sobre seu desejo de procurar amigos, os filhos e até mesmo seus pais.
EFEITOS DE REAL V
Eduardo Coutinho está entrevistando Elizabeth no quintal da casa dela. No meio
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da seqüência, uma cena inusitada: enquanto ouvimos em off Elizabeth responder à
pergunta sobre voltar para o mundo, vemos em plano conjunto todas as pessoas que
estavam presentes organizandorem as cadeiras e arrumarem o quintal, como se a
entrevista tivesse terminado. Mas além de a entrevista continuar logo em seguida com
todos em roda de pé, algumas das pessoas que estão organizando as cadeiras antes não
haviam aparecido na filmagem, estavam apenas ao redor de Elizabeth, fora do quadro.
No primeiro capítulo do livro A estética do filme, intitulado O filme como representação
visual e sonora, Jacques Aumont afirma que a impressão de analogia com o espaço real
produzido pela imagem fílmica é poderosa o suficiente para o espectador esquecer o
achatamento da imagem, a ausência de cores ou de som e, em casos mais freqüentes,
esquecer que além do quadro não há continuação daquela imagem. Para compreender o
modo como opera o ilusionismo no cinema, é interessante analisar as definições de
Aumont para campo e quadro. Segundo este pensador do cinema e ensaísta dos Cahiers
du Cinéma da década de 196014, o termo quadro se origina dos quadros de pintura e
seria o limite da imagem. Por ser a imagem limitada pelo quadro, temos a impressão de
que captamos apenas uma porção desse espaço visto no quadro. Campo é o nome
atribuído a essa “porção de espaço imaginário contida dento do quadro” (1995:21). O
cinema convencional15 prima por indicar que além do quadro haveria uma continuação
da imagem vista. Aumont afirma que o quadro também é composto por todo o espaço de
produção do filme e prefere utilizar o termo fora de quadro ao invés de fora de campo,
na medida em que o campo está completamente preso à ilusão. Coutinho inclui nessa
seqüência elementos que estavam dentro do quadro, mas fora do campo e desse modo
amplia a visão do espectador. Entretanto, essa ampliação não ocorre como no cinema
clássico, em que a ilusão de realidade é aumentada e o espectador acredita haver uma
continuidade inexistente, mas para mostrar a ausência dessa continuidade e, portanto, a
construção daquela realidade no e para o espaço fílmico.
Deste modo, Coutinho se adianta à busca de Elizabeth e continua a procura pelos
14 Cahiers du cinéma é uma revista sobre cinema editada na França e criada em março de 1951 por Jacques
Doniol-Valcroze, André Bazin e Lo Duca. De suas edições saíram jovens críticos da década de 1960 que
revolucionaram o cinema, como Truffaut e Godard.
15 Laura Mulvey chama o cinema clássico hollywoodiano de cinema narrativo, pois busca criar um ilusionismo
através de uma fluidez prazerosa da narrativa, escondendo assim a fabricação de uma realidade e de uma
verdade única sobre a vida. Esta cineasta construiu um projeto de contra-cinema que desmonta esse
mecanismo – com o uso, por exemplo, de um espelho que reflete a imagem do cinegrafista – para não deixar
o espectador esquecer que está assistindo a um filme.
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filhos que em abril de 1964 foram partilhados entre os avós e tios maternos. Abraão ficou na
capital, onde estudava e Isaac estava em Cuba desde 1963 como bolsista do governo cubano.
Um trilho de trem que segue para frente, sem deixar ver o seu fim, no meio de uma
cidade de interior com árvores e casas ao redor é a imagem mostrada na seqüência seguinte.
Ouvimos uma música instrumental, basicamente de percussão, e a voz de Coutinho em off:
“Quinze dias depois do encontro com Elizabeth, fui a Sapé para tentar descobrir as marcas do
passado”.
A praça onde Coutinho se encontrou pela primeira vez com Elizabeth é mostrada.
Vazia, com os mesmos coqueiros, algumas luminárias e um coreto ao fundo, ela parece muito
diferente da praça filmada no dia do comício, abarrotada de pessoas e faixas. Estas duas
imagens são intercaladas e a comparação é inevitável.
Nestas seqüências, percebemos que Coutinho está resgatando as marcas do passado
não só pelos depoimentos das pessoas, mas também pelos lugares onde as histórias se
passavam. Após a “comparação” dos dois momentos da praça, a câmera dentro de um carro
mostra uma estrada por um travelling lateral. Aos poucos a câmera se volta para a beira da
estrada e se detém em um ponto onde há marcas no chão. O narrador explica que João Pedro
Teixeira foi assassinado naquele local e construíram ali um monumento em sua homenagem,
que nos primeiros dias de abril de 1964 foi dinamitado. No monumento estava escrito “Aqui
jaz João Pedro Teixeira, mártir da reforma agrária”. Apenas neste momento são esclarecidos
alguns fatos da vida de João Pedro antes de conhecer Elizabeth. Ele nasceu em uma cidade
próxima de Sapé e ficou órfão de pai muito cedo. Sobre sua juventude pouco se sabe e não
sobrou sequer uma foto dele vivo. A foto de jornal do cadáver de João Pedro, baleado e
ensagüentado é pontuada com um fundo instrumental.
A busca continua, a música instrumental segue e vemos de perto uma porta azul. É a
casa de João Pedro quando vivo, que ele lutou para manter contra as ameaças de despejo e
venda do pai de Elizabeth. Agora a casa parece abandonada, as janelas têm escritos pichados
em giz e está tudo vazio.
A voz de Gullar marca a procura pelos filhos ainda não citados de Elizabeth. Ele
reafirma em off que haviam se passado dezessete anos da fuga de Elizabeth em 1981 e que
seus filhos não sabiam sequer se ela estava viva. Assim, a imagem da casa é cortada e vemos
um pequeno edifício, por onde chega uma mulher carregando uma criança. Coutinho explica
que estamos próximos da casa de João Pedro e a uns 200 metros do local do assassinato do
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seu pai, uma escola onde ele foi procurar Maria das Neves Altina Teixeira, conhecida como
Nevinha e professora local. Ela se aproxima de Coutinho e, sem muito espanto, ouve dele
uma pergunta sobre Elizabeth.
POLIFONIAS VI
No seu artigo A questão do herói-sujeito em Cabra Marcado para Morrer, Paulo
Menezes afirma “[...] é curioso notar que Coutinho sempre chega de surpresa em todos
os lugares mas, ao mesmo tempo, nunca surpreende ninguém”. Menezes, a partir dessa e
de outras seqüências, desenvolve a idéa de que todas as perguntas e encontros de Cabra
Marcado ocorriam para chegar em algum resultado já esperado por Coutinho e tudo era
montado de modo que não houvesse surpresas. Ele afirma que a realidade do filme não é
a realidade da vida, como argumento para retirar do filme sua idéia de verdade, mas
penso que a intenção de Coutinho não era nem igualar estas duas realidades nem
produzir uma verdade única com o filme. Deste modo, acredito que os contatos de
Coutinho com os filhos de Elizabeth já eram esperados por eles, sim, pois Elizabeth
havia escrito cartas para todos eles após seu encontro com o diretor. Ao ser questionado
por Valéria Macedo na revista de arte e humanidades da USP, Sexta-Feira, sobre esta
crítica de Menezes, Coutinho diz que: “Acho falso. Ele agrupou tudo o que eu deixei de
contradição para usar contra o filme. Eu poderia ter tirado tudo isso na montagem, mas a
minha intenção é mostrar a instabilidade do meu lugar. O problema é que eu não parto
do pressuposto de que o documentário é a busca da verdade” (1998: 20). Ouvir tais
argumentos, ou assistir a um documentário qualquer de Eduardo Coutinho é suficiente
para questionar a fundamentação deste artigo. Sem dúvida Coutinho busca em Cabra
Marcado construir uma verdade, mas esta verdade não se pretende única nem mais
verdadeira que a verdade de nenhum dos seus personagens. A verdade talvez seja que
tanto este filme como qualquer documentário é uma construção e deve ser questionado,
de modo que não há como invalidar os encontros feitos por Coutinho ao longo das
filmagens apenas pela afirmação de que ele buscava nestes encontros uma verdade
única, a sua verdade. Esta afirmação de Menezes desconsidera que se isto fosse real
qualquer idéia que fosse contra a intenção de Coutinho poderia ter sido tirada na
montagem, mas mesmo situações desconcertantes como o contato com Abraão ou o
discurso anti-revolucionário de João Mariano são mantidas. Um dos principais elogios
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que acredito poder ser feito a Coutinho é a sua ética ao filmar e em muitas entrevistas,
além é claro dos filmes, isto fica explicito. E trechos de sua fala ajudam a repensar as
afirmações de Menezes, como quando Coutinho é perguntado sobre o discurso de
Elizabeth em relação a Figueiredo, e afirma “Você não pode julgar a fala dela como
você julga a nossa, de intelectuais. É um julgamento de fora. A fala dela não está
incluída para facilitar a liberação do filme. Ela está lá porque é real, e é um troço
contraditório” (BOJUNGA et al, 1984: 7).
Nevinha conta que não vê a mãe há muitos anos e que pouco sabe dos irmãos, mas
sente saudades. Ela tinha seis anos quando João Pedro morreu. A criança que está no seu colo
é sua filha e se chama Juliana Elizabeth, “porque é o nome da minha mãe”, diz Nevinha. Ela
explica da cisma do seu Manoel Justino, pai de Elizabeth, em relação à sua filha, pois
Coutinho pergunta se seria bem recebido por ele. Mas a seqüência seguinte é de um trecho da
entrevista na casa de Manoel Justino.
Manoel Justino e João Pedro Teixeira Filho – o Peta, neto que ainda mora com ele –
aceitaram ser filmados, mas logo o pai de Elizabeth se arrependeu e vemos ele entrar em casa
sem dar a entrevista. Peta conta que foi criado por sua família quando sua mãe foi embora,
assim como todos os irmãos, mas que ele mesmo assim quer vê-la. Ele tinha dois anos quando
João Pedro morreu e quando cresceu refez o monumento em homenagem ao pai, uma pequena
estrutura de concreto com uma cruz que vemos em plano detalhe. Peta fala embolado e muito
rápido, é difícil entender o que ele está dizendo. Coutinho pergunta a ele por que seu avô não
quis ser entrevistado e ele explica que ele tem 84 anos, não é mais menino. Após muita
insistência, nos conta Coutinho, vemos Manoel Justino sair de dentro de casa e durante toda a
curta entrevista uma mulher o observa da janela, provavelmente a mãe de Elizabeth.
Manoel Justino ainda trabalha ativamente em sua pequena fábrica de farinha e Peta o
ajuda, levando-o diariamente para comprar lenha e mandioca nas redondezas do sítio.
Coutinho pergunta sobre a relação dele com o marido da filha e, sem jamais pronunciar o
nome de João Pedro, Manoel Justino deixa claro que tentou dar conselhos a ele, mas eles
nunca se entenderam e que foi até ameaçado de porrada pelo genro.
Na seqüência seguinte, Coutinho está caminhando de costas para a câmera em uma rua
de terra, mas pelas casas, pessoas e pelo barulho percebe-se que é uma cidade mais urbana do
que as vistas até então. Ele segue em direção a uma casa e nos conta em off que aquele lugar é
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Caxias, baixada fluminense, no Estado do Rio de Janeiro. Já se passaram oito meses após a
filmagem com Elizabeth e estamos em outubro de 2001. A partir de agora, o tempo será
sempre citado tendo como parâmetro o encontro com Elizabeth Teixeira.
Coutinho entra em uma espécie de armazém e pergunta por dona Marta, que está no
balcão e já sabe que Coutinho é amigo de Elizabeth Teixeira, sua mãe. Coutinho mostra
algumas fotografias para Marta e confere a luz da filmagem com o cinegrafista, enquanto ela
olha as fotos e começa a chorar. Toda a entrevista com Marta Teixeira é tensa e emocionada.
Ela vê as fotos da mãe e dos irmãos e aparece no filme em vários momentos, todos dentro do
armazém. Marta diz lembrar de Elizabeth e não ter raiva do que ela fez, mas queixa-se com
muita tristeza de ter sido abandonada pela mãe e pela família. Ela veio para o Rio em 1971
grávida do filho mais velho que agora tem dez anos. Ela tem quatro filhos e aparece rodeada
por crianças e outras pessoas na seqüência em que Coutinho mostra uma gravação em fita
cassete na qual Elizabeth diz querer agora voltar para o mundo e procurar os filhos. Marta
chora neste momento e as imagens se detêm neste primeiro plano dela com as mãos cobrindo
o rosto.
Enquanto são feitas as entrevistas com os filhos, as imagens deles em Cabra/64
sempre são intercaladas em algum momento da conversa com as imagens atuais. Primeiro
quem está sendo entrevistado aparece em primeiro plano na fotografia. Em seguida, vemos
toda a foto por um zoom out do plano, sempre a mesma na qual eles estão todos juntos,
vestidos de preto e ao redor de Elizabeth.
Corta a cena e vemos um prédio amarelo de arquitetura estrangeira e um pequeno
texto explicando que é dezembro de 1981 e estamos em Cuba. Coutinho em off explica que
esta filmagem foi realizada por uma equipe cubana e após um pequeno grupo de pessoas de
branco sair do prédio em direção à câmera, Isaac aparece em primeiro plano e faz um
depoimento sobre as suas lembranças com relação à luta do seu pai no Brasil. Sua fala é
formal e curta, quase um relato oficial sobre o movimento camponês.
NARRATIVAS VII
É interessante observar que os dois filhos mais velhos de João Pedro e Elizabeth
Teixeira são aqueles que nas filmagens de Cabra Marcado apresentam os discursos
mais aparentemente forçados, mais vinculados a uma lógica de revolta contra os
governos ou de enaltecimento da luta camponesa. São falas tão verdadeiras quanto às
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outras em sua fabulação, mas que soam falsas (no sentido de construídas para proferir
uma verdade única e externa a quem fala) e penso que isso ocorra por que estes foram os
dois filhos que tiveram maior possibilidade de recordar o seu contato com o movimento
camponês e de entender a luta dos seus pais. A outra criança que já tinha idade
suficiente para lembrar a história de João Pedro e a luta de Elizabeth seria Marluce, mas
ela se suicidou após o assassinato do pai.
Depois da fala de Isaac, corta a cena e a câmera segue Coutinho por um caminho de
barro. Passa um homem por perto, ele pede informação e os dois seguem juntos até uma porta
de metal. Coutinho está no Rio de Janeiro, em uma travessa da Avenida Brasil, em maio de
1982. Faz um ano e três meses que ele entrevistou Elizabeth e agora ele procura por José
Eudes, um dos filhos dela. A entrevista é feita no pátio do alojamento do trabalho de Eudes.
Ele não lembra de seu pai nem de sua mãe, nem conhece quatro dos seus irmãos, pois tinha
quatro anos quando João Pedro morreu, mas sente saudades e chorou quando recebeu a
primeira carta de Elizabeth. Eudes foi criado por uma madrinha e aparece em primeiro plano
depois de sua fotografia de Cabra/64 ser mostrada.
No mesmo dia da entrevista com José Eudes, Coutinho segue para outro bairro do Rio
de Janeiro para entrevistar Marinês. Ele passa por um corredor apertado e a câmera o filma de
cima, sobe uma escada e passa pelo lado dela. Vemos algumas bananeiras e a frente de uma
casa. Dentro está escuro, mas vê-se uma mulher e Coutinho pergunta por Marinês. Quando a
mulher entra para chamá-la, sem saber se ela está, Coutinho parece inquieto. Olha para cima e
fala “Que azar, hein? A janela tá fechada!”. De repente aparecem umas vozes de dentro de
casa e percebe-se uma resistência em aparecer, ao que Coutinho responde “Vem, vem sim!!
Venha!!”. Marinês aparece com um bebê no colo, animada e sorridente, e do seu lado está
uma garotinha, seus dois filhos. Na entrevista ela conta que mora no Rio há sete anos, veio
por que a sua irmã Marta mandou buscá-la. Ela tinha apenas três meses quando seu pai foi
assassinado e depois da fuga de Elizabeth foi morar com um tio. Quando Coutinho pergunta
se ela tem mágoa, Marinês fica surpresa e, risonha, diz que não tem mágoa nenhuma. Ela
pega a primeira carta que Elizabeth lhe mandara e a lê:
“Você diz que não sabe da onde veio. Então você veio de uma raiz humana,
através do amor entre eu e seu pai. Sobre sua vinda, eu concordo demais pois era
isso que eu desejava, me encontrar com todos os meus filhos, com todos vocês,
80
graças a essa abertura política que vai fazer com eu me encontre com todos os
meus filhos. Que a mim não coube conviver com vocês, criá-los e amá-los, mas
como o destino não quis, será o que Deus quiser. Mas será a minha grande alegria
passar pelo menos um dia reunida com todos os meus filhos”.
Enquanto ouvimos Marinês, uma cena de Cabra/64 aparece e nela Elizabeth está
sentada com alguns filhos embaixo de uma árvore, brincando de cinco marias com pedrinhas.
Com Marinês a busca pelos filhos de Elizabeth e João Pedro se completa. As
seqüências que se seguirão irão mostrar a vida de Elizabeth Teixeira após a fuga, a vida de
Elizabeth como dona Marta. O mesmo plano geral da cidade mostrado quando da chegada da
equipe a São Rafael é mostrado, com badaladas de sino no fundo. Há um corte e vemos um
rio com várias mulheres na margem. A câmera se aproxima e são lavadeiras, entre elas
Elizabeth esfregando roupas nas pedras da borda. Coutinho diz “Nossas filmagens em São
Rafael, em fevereiro de 1981, significara para Elizabeth Teixeira o fim de um longo período
de clandestinidade. Ao concordar em ser filmada, ela deixava de ser dona Marta e voltava a
ser dona Elizabeth”.
NARRATIVAS VIII
A fala de Coutinho no final dessa seqüência é magistral para entendermos
algumas questões muito importantes de Cabra Marcado. O significado dos filmes de
Eduardo Coutinho existe não apenas para quem os assiste, mas também para quem
participa deles. Elizabeth Teixeira estava há dezessete anos desaparecida. A sua
narrativa em apenas três dias de filmagem faz com que ela se reencontre com a mulher
militante que foi, ressignifica a sua experiência e resgata uma força adormecida
pertencente àquela personagem, que também é ela. Como isso ocorre? Através do que
Consuelo Lins chamou em seu artigo Imagens em metamorfose de fabulação, o contar a
sua história de vida para uma câmera e neste momento recriar e reviver esta história. Em
uma entrevista para a revista Sexta-Feira, Coutinho desenvolve esta idéia:
“[...] O real e o imaginário estão entrelaçados. Não existe um
cinema documentário que não seja real. Não estou preocupado se
o cara que eu entrevisto está dizendo a verdade – ele conta a sua
experiência, que é a memória que tem hoje de toda a sua vida,
com inserções do que ele leu, do que ele viu, do que ele ouviu; e
que é uma verdade, ao mesmo tempo que é imaginário. Não
81
estou preocupado com a verdade pedestre das coisas, por isso a
palavra dele me interessa”.
Não importa se o que Elizabeth disse realmente aconteceu, o que ela fala é sua
verdade e a partir disso ela conseguiu resgatar dezessete anos de sua vida. Ao narrar sua
história ela está construindo a sua verdade e a sua auto-imagem, que para Sylvia Caiuby
Novaes é uma construção feita a partir da relação com outros grupos e pessoas e, por
isso, diferente da identidade. Novaes faz essa distinção no seu livro Jogo de Espelhos e
afirma que daí advém a importância do outro para a formação da consciência de si, pois
ao se confrontar com diferentes sistemas de valores os indivíduos atuam e se
representam.
Elizabeth é mostrada fazendo as coisas que a sustentam, lavando roupa, dando aulas
particulares em sua casa, lavando louça. Ela aparece então em primeiro plano, muito
sorridente no quintal de sua casa e mal parece a mulher entrevistada no primeiro encontro. Os
vizinhos e amigos agora sabem de sua história e ela não tem mais o que esconder. No final
desta seqüência, Coutinho entrevista as amigas de Elizabeth dentro de casa com ela por perto,
emocionada. A última amiga a falar conta ter percebido desde o início que havia um grande
sofrimento em dona Marta, mas que ela não declarava o que era. Agora, diz esta senhora de
quem não sabemos o nome, ela deseja toda a felicidade para Elizabeth, pois ela é uma pessoa
muito boa e vai fazer muita falta. Uma música instrumental acompanha esta última fala, que
se conclui com o rosto de Elizabeth em primeiro plano, emocionada e chorando.
Esta parte do filme é chamada por Henri Gervaiseau de “última metamorfose de
Elizabeth”, referindo-se às muitas mudanças que Elizabeth vive ao longo destas filmagens.
Neste trecho tomamos conhecimento da situação de São Rafael, o bom retiro que abrigou
Elizabeth em sua fuga na década de 1960. Um plano detalhe mostra uma placa “Sindicato dos
trabalhadores rural de São...” tão velha que não conseguimos ler as palavras finais: São
Rafael. É uma placa em cima de uma casa e dentro dela Elizabeth e o presidente do sindicato,
Francisco Xavier, falam sobre o vale do Açu. Como não fica claro o que está sendo explicado,
o narrador diz
“São Rafael é uma cidade em extinção. O departamento nacional de obras contra
as secas está organizando um projeto de irrigação através da construção de uma
grande represa. As águas inundarão todo o município. Como não possuem o título
82
de propriedade de suas terras, os pequenos proprietários de São Rafael estão
recebendo uma indenização que não consideram satisfatória. O sindicato local
lidera a luta por uma indenização mais justa.”
DITADURA VI
São Rafael hoje é uma cidade extinta. Não está nos mapas nem pode ser achada
em uma pesquisa do site de buscas Google. Suas imagens estão gravadas em Cabra
Marcado e o filme não é capaz de restituir as casas e ruas aos moradores, mas ele deixou
registrado – quiça para sempre – a existência e o desaparecimento deste pequeno
município do Rio Grande do Norte. Bill Nichols no seu livro Introdução ao
Documentário discute como esses tipos de filme têm tratado as questões sociais e
políticas. Nichols afirma que as relações de um documentário são éticas, mas também
políticas e ideológicas: “A política do filme e do vídeo documentários aborda as
maneiras pelas quais o documentário ajuda a dar expressão tangível aos valores e
crenças, que constroem, ou contestam, formas específicas de pertença social, ou
comunidade, num determinado tempo e lugar” (2005: 181). Nichols analisa como
exemplo o cinema de Vertov da década de 20, que por suas inovações quanto ao uso de
roteiro (entre outras) teve dificuladades com o governo soviético patrocinador de toda a
produção de cinema russo do pós-revolução. Trata também dos documentários de John
Grierson, apoiados pelo governo inglês pelo seu caráter didático-pedagógico, e dos
filmes feitos nos anos de 1960/70 com o intuito de reconhecer o ponto de vista dos
marginalizados. Segundo Nichols, a década de 1980 foi o momento em que os
documentários se envolveram em uma política de identidade e trataram de questões de
grupos e movimentos. Seria o esboço de um relato histórico, mas que nos ajuda a
entender o contexto da produção de Cabra Marcado e sua inserção em uma política da
tentativa de apontar para a existência de um grupo e de um movimento esquecidos. Foi
um dos pioneiros, neste sentido, pois tal ênfase estava se construindo fora do Brasil na
década de 1980, mas no tempo exato para permitir que São Rafael e todas as histórias
esquecidas de Cabra Marcado não desaparecessem.
Segundo Francisco, Elizabeth ajudou nesta luta ao contar de sua experiência e orientálo sobre o que fazer. Há um ano ela contou para ele sua história e Francisco afirma: “(...) em
contato com ela, ela contando o sofrimento, e eu na solidariedade com ela, eu alcancei que o
83
sofrimento dela é o de todos nós, líderes sindicais, que somos perseguidos pelo latifúndio,
pelas próprias autoridades do município, do Estado e do Brasil”.
Coutinho avisa para dona Elizabeth, então, que eles precisam ir para arrumar os
equipamentos e seguir viagem. Essa seqüência da despedida é longa e de uma espontaneidade
impressionante, pois a equipe sai de dentro de casa e acompanha a saída de Coutinho seguido
por Elizabeth de tal maneira que ela não percebe que ainda está sendo filmada. Então vemos
todos se cumprimentarem em plano conjunto e da porta de casa Elizabeth começa um
discurso enfático, parecendo não saber que é filmada e diz: “Eu tinha um desengano que não
encontrava mais com vocês e nem com outros companheiros, mas que hoje vejo minha casa, a
visita dos meus companheiros passados, então prá mim é uma grande coisa, uma grande coisa.
Nunca esmureci, nunca esqueci a luta, fiquei encostada por que esse era o último jeito”. E
quando a kombi já está ligada, com toda equipe dentro, Elizabeth da janela ainda fala:
“A luta que não pára. A mesma necessidade de 64 está aí. Ela não fugiu um, um,
um milímetro. A mesma necessidade está na fisionomia do operário e do homem
do campo. A luta não pode parar. Enquanto se existem fome e salário de miséria,
o povo tem que lutar. Quem é que não luta? Por melhoras? Quem tem que viver...
não dá! Quem tem condições, né, que tiver sua boa vida, que fique, né? Eu como
venho sofrendo, eu tenho que lutar. É preciso mudar o regime, ter um regime do
povo. Que enquanto tiver esse regime, essa democracia, não” e faz sinal de não
com o dedo, para depois finalizar “Democracia sem liberdade, democracia com
um salário de miséria, democracia com o filho do operário, do camponês, sem
direito a estudar, esses dias mesmos eu tirei os menino lá prá pagar a matrícula é
não sei quanto, né? Não pode, ninguém pode.”
Um maracatu cobre a voz de Elizabeth, mas vemos que ela continua falando. Há uma
mudança de plano e enquanto o carro sai, Coutinho em off conta que um mês depois deste dia
Elizabeth foi morar em Patos, na Paraíba, com Carlos e Abraão. Até junho de 1983, quando
este último texto foi escrito, ela só tinha encontrado com Nevinha e Peta, dois de seus oito
filhos.
Este seria o final perfeito para um filme engajado e militante. Porém, Cabra Marcado
não termina aí e depois da despedida com Elizabeth, há um corte na seqüência enquanto o
maracatu continua e aparece um plano conjunto de uma festa. A música instrumental de
maracatu é agora a do ambiente, há bonecos grandes, roupas coloridas e vemos João Virgínio
ao fundo, pela primeira vez em todo o filme sem os óculos escuros. Ele se remexe em uma
quase dança, acende um cigarro e Coutinho termina o filme com a seguinte narração: “Nossa
84
última filmagem com João Virgínio foi no terreiro de sua casa, no domingo de carnaval de
1981. Dez meses depois, João Virgínio morreu de ataque cardíaco neste mesmo local. Ele foi
enterrado no cemitério de Vitória de Santo Antão, ao lado de Zezé da Galiléia”.
Fim.
NARRATIVAS IX
Para Jean-Claude Bernardet no já citado texto Vitória sobre a lata de lixo,
Cabra Marcado é um filme que pretende ultrapassar a idéia de “último”. Por ser um
filme que fala de outro filme interrompido, ele precisa resgatar a história perdida,
superar o fim através da ruptura. Durante o filme vemos algumas seqüências que são “as
últimas”: a última seqüência de Cabra/64, a última participação de Elizabeth no
comício, as últimas imagens de uma cidade que será submersa para se tornar uma
hidrelétrica. Mas sem dúvida essa seqüência final de Cabra Marcado é a mais tocante
nesse sentido. Coutinho poderia terminar o filme na hora da despedida, em que
“Elizabeth diz: 'A luta continua'. Essa frase cria uma continuidade entre o antes-golpe e
o agora, e projeta o filme para o futuro. Seria perfeito, mas esse não é o fim” (2003:
228), afirma Bernardet. Em uma de suas entrevistas, ao ser perguntado sobre a idéia de
tentar provar que a verdade “está mais embaixo” nos seus filmes dos anos 80/90,
Eduardo Coutinho responde que em Cabra Marcado
“Tem mil coisas ligadas a um momento histórico e a uma relação
pessoal que não terá outro tipo de coisa igual. Mas o fato é que o
Cabra tem um cara que é um ator que faz um herói e diz que não
é herói. O fato é que o Cabra não termina com o discurso
revolucionário da Elizabeth e sim com a morte. Sabe? Havia
coisas ali para quebrar o maniqueísmo em filmes políticos”
(EDUARDO, 2002: 07).
Assim, continuar o filme após a despedida de Elizabeth é também uma escolha
histórica e política. O filme continua e Coutinho acrescenta uma última seqüência, curta
e bem menos conclusiva, de uma festa na casa de João Virgínio, sobre a qual Coutinho
fala que aquela foi a última filmagem de Cabra Marcado com ele. Vemos João Virgínio
sem óculos, com uma leveza desconhecida ao longo de todo o filme e logo depois
ouvimos Coutinho falar em off que aquela também foi a última filmagem de João
Virgínio, pois ele morreu dez meses depois. João Virgínio era como uma memória viva
85
da tribo – como havia sido na sua apresentação – e seus relatos permeiam toda a
película. Para Bernardet, ao terminar dessa forma, o filme reafirma sua concepção de
trabalho histórico. Para mim, este final me remeteu a todos os momentos em que João
Virgínio aparecia no filme, sua narrativa sobre a criação da Liga, seus depoimentos
atordoantes sobre as torturas na prisão e, principalmente, a sua fala quando ele termina
de contar sobre os sete anos preso: “Mas não tem nada melhor que um dia atrás do outro
e uma noite no meio. E a ajuda de nosso senhor jesus cristo que vai proteger a gente, as
graças de deus tá caindo aí, de hora em hora, confie em deus que essa infelicidade, um
dia o povo tem que pensar quem são eles, não é possível a gente viver a vida todinha
debaixo desse pé de boi, não”. Não é possível.
86
CONCLUSÃO: LEITURAS, CONVERSAS E FILMES
Desde criança minha vida foi repleta de filmes. Lembro-me de que eu ainda cabia na
cama dos meus pais – junto com eles – quando pedia para passar ali com eles as noites nas
quais eles alugavam filmes. Eu deitava no meio dos dois, abria os olhos só um pouquinho e
assim fingia que estava dormindo e podia assistir também aos filmes. Este meu hábito
adquirido na infância e cultivado durante toda a vida, quando já podia ver os filmes sem
precisar fingir, me proporcionou um acervo de lembranças de seqüências de filmes, de
histórias, imagens e sensações que volta e meia me fazem incluir no meio de algum diálogo a
frase “Você viu o filme tal?”. Diante de uma resposta afirmativa, surge a curiosidade de saber
se tal cena que eu lembrei (por conta do que estava sendo discutido) era compartilhada pela
memória do outro. Se a resposta era um “não”, eu me preparo para fazer um resumo do filme
que não conte nada além do mínimo necessário para entender a lembrança, e depois narro a
cena pensada durante a conversa, tentando mostrar como ela se relaciona com o assunto em
questão.
Ao assistir Cabra marcado para morrer, algumas questões saltaram aos meus olhos,
adquiriram relevo e pareciam carecer de atenção especial. Era como como conversar um
assunto como a noção de polifonia para Bakhtin e no meio do diálogo perguntar ao
interlocutores: “Você assistiu ao filme Cabra Marcado para Morrer?”. E como se, para a
análise do filme, os assuntos que suscitavam tal pergunta pudessem ser agrupados em cinco
temáticas. Essa divisão atendeu a minha percepção das questões que seriam fundamentais no
filme, no trabalho de Eduardo Coutinho, no contexto externo e interno à narrativa, pois muitas
seqüências deste filme ficaram marcadas em mim como pontos fundamentais de análise.
Fundamentais seja por uma relevância social – uma indignação – ou por uma atenção estética
– uma admiração. Apesar da fragmentação e da profusão de discursos, algumas seqüências se
agrupavam pois em Cabra Marcado é possível definir algumas recorrências temáticas.
As muitas vozes (polifonias) de Cabra Marcado narram (narrativas) as mudanças
ocorridas no tempo e no espaço (deslocamentos) entre 1964 e 1981 (ditadura), se utilizando
do cinema não como produtor de uma verdade única sobre estas mudanças (efeito de real),
mas como uma versão – repleta de outras versões em sua narrativa interna – sobre uma
história.
Assim, Polifonias, Narrativas, Deslocamentos, Ditadura e Efeitos de Real agruparam
87
os trechos ou seqüências de Cabra Marcado para Morrer sobre os quais eu pretendia falar.
Representam um resumo do meu diálogo com o filme, diálogo este que se construiu, é claro,
pelas muitas vezes em que assisti Cabra Marcado, mas também pelos diálogos com outros
pesquisadores sobre o filme, pelos textos de outros pesquisadores sobre outros filmes e sobre
o cinema, pelo diálogo com amigos sobre estes filmes e pelo diálogo com Eduardo Coutinho
tanto na tela, em seus diversos filmes, quando nas suas inúmeras e intrigantes entrevistas.
Vale a pena, para finalizar este trabalho, ressaltar que a idéia desta separação por
temáticas surgiu durante uma das conversas com a professora Sônia Maluf, quando me
lembrei de um livro que eu havia recentemente lido: As cidades invisíveis, de Italo Calvino.
Foi fundamental nestes meses de pesquisa a leitura deste livro e de tantos outros da Literatura,
assim como ver e rever Cabra Marcado e tantos outros filmes, assim como as conversas com
a Sônia e com outros amigos. Pois é a literatura, o cinema e o diálogo que permeiam todo este
trabalho e são, simultaneamente, resultado e pré-requisito para esta monografia.
88
GLOSSÁRIO técnico dos termos utilizados na pesquisa
Análise: “Analisa-se um filme quando se produz uma ou várias das seguintes formas de
comentário crítico: a descrição, a estruturação, a interpretação, a atribuição” (AUMONT;
MARIE, 2003: 13)
Áudio: Parte sonora de um filme. Sua inclusão pode ser feita tanto no momento da filmagem
(ver: som direto) quanto durante a edição e/ou montagem.
Audiovisual: Substantivo (e, algumas vezes, adjetivo) que designa uma produção que utiliza
ao mesmo tempo imagens e sons. O cinema é, por naturaza, audiovisual.
Campo: Nome atribuído a uma porção de espaço imaginário contida dento do quadro.
Relacionado à idéia de ilusão.
Cena: Palavra de origem grega, skêné, que significa para o teatro uma construção de madeira
e a área de encenação produzida por ela. Para o cinema é a unidade dramática do filme; seção
contínua de ação dentro de uma mesma localização.
Claquete: Quadro usado para marcar cenas e tomadas. É dividida em duas partes de modo
que o som produzido no encontro das duas seja referência para a sincronização de som e
imagem durante a montagem.
Copião: É uma cópia sem som do filme, feita do negativo revelado das filmagens diárias de
uma produção. O copião é feito das tomadas escolhidas para serem copiadas, a partir do
boletim de filmagens, com as especificações das que devem ser copiados.
Corte: passagem direta de um plano para outro, por uma colagem, sem continuidade.
Decupagem: Planificação do filme, geralmente definida pelo diretor, que especifica todas as
cenas, posições de câmera, lentes a serem usadas etc.
Diegese: Significado ou conteúdo narrativo; história de um filme; universo fictício interno à
narrativa, “pseudomundo” de um filme.
Elenco: Conjunto de pessoas escolhidos para representar os personagens e figurantes de um
filme.
Enquadramento: Limites da cena filmada no visor da câmera a partir das laterais esquerda,
direita, inferior e superior.
Externo (EXT): indicação no roteiro que indica o caráter da locação. Nesse caso, indica que a
locação da cena é em local aberto.
Interno (INT): Indicação no roteiro que indica que a locação da cena é dentro de algum
89
recinto.
Montagem: Técnica de organização (seleção, agrupamento e junção) do material filmado.
Panorâmica: Câmera que se move de uma lado para o outro e permite a visão de geral do
ambiente (ver travelling).
Personagem: Aquele que vive a ação dramática de um filme. Para Bakhtin, porém, trata-se
daquele que vive a tensão e não obedece ao autor.
Plano: Ângulo a partir do qual a cena é focalizada.
Primeiro plano: Plano que mostra uma pessoa enquadrada do pescoço para cima.
Plano médio: Plano que mostra uma pessoa enquadrada da cintura para cima.
Plano conjunto: Plano evidencia tanto as pessoas quanto o ambiente de uma cenas, um
pouco mais fechado que o plano geral.
Plano geral: Plano que mostra uma área de ação ampla, sem se focar em detalhes.
Quadro: Termo originado dos quadros de pintura que designa o limite da imagem. Também é
usado para falar de todo o espaço de produção do filme, com seus técnicos, equipamentos etc.
Relacionado à idéia de ilusão.
Roteiro: Forma escrita de qualquer produção audiovisual que descreve seqüências, diálogos e
indicações técnicas do filme para serem seguidas durante a filmagem.
Seqüência: Uma série de cenas ligadas por continuidade
Som direto: Parte sonora do filme quando captada no momento da filmagem, sem inserção
posterior de áudio.
Tomada: Filmagem continua de cada segmento do filme. A partir dela irão ser selecionadas
as seqüências.
Travelling: Movimento da câmera a partir do tripé.
Tripé: Suporte da câmera que permite o seu movimento.
Voz off: É a fala proferida por alguém fora do campo visual em questão.
Voz in: É a voz de qualquer elemento que se encontre dentro do campo visual.
Zoom: Efeito de aproximação ou distanciamento de um objeto que está sendo filmado a partir
do movimento do obturador da lente.
Zoom in: Aumento da distância focal da lente da câmera que dá a impressão de aproximação
do objeto filmado.
Zoom out: Diminuição da distância focal da lente da câmera que dá a impressão de
distanciamento do objeto filmado.
90
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95
APÊNDICE A – Fichas técnicas de Cabra Marcado para Morrer e demais filmes de
Eduardo Coutinho citados na pesquisa
•
CABRA MARCADO PARA MORRER (1964-1981)
35mm, 119 min.
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Zelito Viana e Vladimir de Carvalho
Roteiro: Eduardo Coutinho e Humberto Mauro
Produtora: Mapa Filmes
Fotografia: Edgar Moura (1984) e Fernando Duarte (1964)
Música: Rogério Rossini
Distribuidora: Globo Vídeo
•
THEODORICO, IMPERADOR DO SERTÃO (1978)
16mm, 49 min.
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Rede Globo
Fotografia: Dib Luft
Som direto: Jair Duarte
Montagem: Waldir Barreto e Wilson Bruno
•
BOCA DE LIXO (1992)
Vídeo, 50 min.
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Thereza Jessouroun e Alvarina Souza Silva
Produtora: Cecip – Centro de Criação de Imagem Popular
Fotografia: Breno Silveira
Música: Tim Rescala
•
SANTO FORTE (1999)
35mm, 80 min.
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Claudius Ceccon, Dinah Frotté e Elcimar de Oliveira
Estúdio: Cecip
Distribuição: Riofilme
Fotografia: Luis Felipe Sá e Fabian Silbert
Pesquisa e Consultoria: Patrícia Guimarães
Edição: Jordana Berg
96
•
EDIFÍCIO MASTER (2002)
35mm, 110 min.
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Maurício Andrade Ramos e João Moreira Salles
Estúdio: Videofilmes
Fotografia: Jacques Cheuiche
Edição: Jordana Berg
•
PEÕES (2004)
35mm, 85 min.
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Maurício Andrade Ramos e João Moreira Salles
Produtora e distribuição: Videofilmes
Fotografia: Jacques Cheuiche
Edição: Jordana Berg
•
O FIM E O PRINCÍPIO (2005)
35mm, 110 min.
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Maurício Andrade Ramos, Eduardo Coutinho e João Moreira Salles
Estúdio: Videofilmes
Distribuição: Videofilmes
Fotografia: Jacques Cheuiche
Desenho de Produção: Raquel Freire Zangrandi
Edição: Jordana Berg
97
APÊNDICE B – Poesia de Ferreira Gullar
João Boa-Morte
Cabra Marcado para Morrer
Vou contar para vocês
um caso que sucedeu
na Paraíba do Norte
com um homem que chamava
Pedro João Boa-Morte
lavrador da Chapadinha:
talvez tenha boa morte
porque vida ele não tinha.
Sucedeu na Paraíba
mas é uma historia banal
em todo aquele Nordeste.
Podia ser no Sergipe,
Pernambuco ou Maranhão,
que todo cabra-da-peste
ali se chama João
Boa-Morte, vida não.
Morava João nas terras
de um coronel muito rico,
tinha mulher e seis filhos,
um cão que chamava “Chico”,
um facão de cortar mato,
um chapéu e um tico-tico.
Trabalhava noite e dia
nas terras do fazendeiro,
mal dormia, mal comia,
mal recebia dinheiro;
se não recebia não dava
para acender o candeeiro.
João não sabia como
fugir desse cativeiro.
Olhava pra’s crianças
de olhos cavados de fome,
já consumindo a infância
na dura faina da roça.
Sentia um nó na garganta.
Quando uma delas almoçava
as outras não, a que janta
no outro dia não almoça.
Olhava para Maria,
sua mulher, que a tristeza
na luta de todo o dia
tão depressa envelheceu.
Perdera toda a alegria
perdera toda a beleza
e era tão bela no dia
que João a conheceu.
Que diabo tem nesta terra,
neste Nordeste maldito,
que mata como uma guerra
tudo que é bom e bonito?
Assim João perguntava
para si mesmo e lembrava
que a tal guerra não matava
o coronel Benedito!
Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor
não mata quem é dono de engenho,
só mata cabra-da-peste
só mata o trabalhador.
O dono do engenho engorda,
vira logo senador.
Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do coronel Benedito
tiveram com ele um atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era tão baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.
João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
98
já era muita fraqueza.
“Não vamos voltar atrás.
Prescisamos de dinheiro,
se o coronel não dá mais
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro”.
Com o coronel foram ter
mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
“Ainda está para nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço.”
O pessoal se assustou.
Sabiam que o fazendeiro
não brinca com lavrador.
Se quem obedece morre
de fome e desespero,
quem não obedece corre
ou vira “cabra morredor.”
Só um deles se atreveu
a vender seu cereal.
Noutra fazenda vendeu
mas vendeu e se deu mal.
Dormiu mas não amanheceu.
Foram encontrá-lo enforcado
de manhã num pé de pau.
Debaixo do morto estava
um cabra do Benedito
que dizia a quem passava:
“Esse moleque maldito
pensou que desrespeitava
o que o patrão tinha dito.
Toda planta que aqui nasce
é planta do coronel,
ele manda nesta terra
como Deus manda no céu.
Quem estiver descontente
acho melhor não falar
ou fale e depois se agüente
que eu mesmo venho enforcar.”
João ficou revoltado
com aquele crime sem nome.
Maria disse: “Cuidado,
não te mete com esse homem.”
João respondeu zangado:
“Antes morrer enforcado
do que sucumbir de fome.”
Nisso pensando, João
falou com seus companheiros:
“Lavradores, meus irmãos,
esta nossa escravidão
tem que ter um paradeiro.
Não temos terra, nem pão,
vivemos em um cativeiro.
Livremos nosso sertão
do jugo do fazendeiro.”
O coronel Beneditino
quando soube que João
tais coisas havia dito
ficou bravo como o cão.
Armou dois “cabras” e disse:
- “João Boa-Morte não presta,
não quero na minhas terras
caboclo metido a besta.”
“Vou Lhe dar uma lição.
Ele quer terra, não é?
Pois vai ganhar o sertão.
Vai ter de andar a pé
desde aqui ao Maranhão.
Quando virar vagabundo
vai ter de baixara a crista.
Vou avisar todo mundo
que esse cabra é comunista.
Quem mexe com o Benedito
bem caro tem de pagar.
Ninguém lhe dará um palmo
de terra pra trabalhar.”
Se assim disse, assim fez.
João foi mandado embora
de seu casebre pacato.
Disse a Maria: “ – Não Chora,
todo patrão é ingrato.”
E saíram mundo afora,
ele, Maria, os seis filhos
99
e o facão de cortar mato.
Andaram o resto do dia
e quando a noite caía
chegaram numa fazenda:
“- Seu doutor, tenho família,
sou homem trabalhador.
Me ceda um palmo de terra
pra eu trabalhar pro senhor.”
Ao que o doutor respondeu:
“Terra aqui tenho sobrando,
todo este baixão é meu.
Se planta e colhe num dia,
pode ficar trabalhando.”
“- Seu coronel, me desculpe,
mas eu não sei fazer isso.
Quem planta e colhe num dia,
não planta, faz feitiço.”
“- Neste caso, não discuta,
acho melhor ir andando.”
E lá se foi Boa-Morte
com a mulher e os seis meninos.
Talvez eu tenha mais sorte
na fazenda dos Quintinos.”
Andaram rumo do Norte,
para além da Várzea dos Sinos:
“- Coronel, morro de fome
com seis filhos e a mulher.
Me dê trabalho, sou homem
para o que der e vier.”
E o coronel respondeu:
“- Trabalho tenho de sobra.
E se é homem como diz
quero que me faça agora
esta raiz virar cobra
e depois virar raiz.
Se isso não faz, vá-se embora.”
João saiu com a família
num desespero sem nome.
Ele, os filhos e Maria
estavam mortos de fome.
Que destino tomaria?
Onde iria trabalhar?
E à sua volta ele via
terra e mais terra vazia,
milho e cana a verdejar.
O sol do sertão ardia
sobre os oito a caminhar.
Sem esperança de um dia
ter um canto pra ficar,
à sua volta ele via
terra e mais terra vazia
milho e cana a verdejar.
E assim, dia após dia,
andaram os oito a vagar,
com uma fome que doía
fazendo os filhos chorar,
mas o que mais lhe doía
era, com fome e sem lar,
ver tanta terra vazia
tanta cana a verdejar.
Era ver terra e ver gente
daquele mesmo lugar,
amigos, quase parentes,
que não podiam ajudar,
que se lhe dessem pousada
caro tinha que pagar.
O que o coronel ordena
é bom não contrariar.
A muitas fazendas foram,
sempre o mesmo resultado.
Mundico, o filho mais moço,
parecia condenado.
Pra respirar era um esforço,
só andava carregado.
“- Mundico, tu ta me ouvindo?”
Mundico estava calado.
Mundico estava morrendo,
coração quase parado.
Deitaram o pobre no chão,
no chão com todo cuidado.
Deitaram e ficaram vendo
morrer o pobre coitado.
“- Meu filho”, gritou João,
se abraçando com o menino.
Mas de Mundico restava
100
somente o corpo franzino.
Corpo que não precisava
nem de pai nem de pão,
que precisava de chão
que dele não precisava.
Enquanto isso ali perto
detrás de uma ribanceira,
três cabras com tiro certo
matavam Pedro Teixeira,
homem de dedicação
que lutara a vida inteira
contra aquela exploração.
Pedro Teixeira lutara
ao lado de Julião
falando aos caboclos para
dar melhor compreensão
e uma Liga organizara
pra lutar contra o patrão,
pra acabar com o cativeiro
que exista na região,
que conduz ao desespero
toda uma população
onde só o fazendeiro
tem dinheiro e opinião.
Essa não foi a primeira
morte de encomenda
contra um líder camponês.
Outros foram assassinados
pelos donos da fazenda.
Mas cada Pedro Teixeira
que morre, logo aparece
mais um, mais quatro, mais seis
- que a luta não esmorece
agora que o camponês,
cansado de fazer prece
e de votar em burguês,
se ergue contra a pobreza
e outra voz já não escuta,
só a voz que chama pra luta
- voz da Liga Camponesa.
Mas João nada sabia
no desespero em que estava,
andando aquele caminho
onde ninguém o queria.
João Boa-Morte pensava
que se encontrava sozinho
e que sozinho morreria.
Sozinho com cinco filhos
e sua pobre Maria
em cujos olhos o brilho
da morte se refletia.
Já não havia esperança,
iam sucumbir de fome
ele, Maria e as crianças.
Naquela terra querida,
que era sua e não era,
onde sonhara com a vida
mas nunca viver pudera,
ia morrer sem comida
aquele de cuja lida
tanta comida nascera.
Aquele de cuja mão
tanta semente brotara,
que filho daquele chão,
aquele chão fecundara;
e assim se fizera homem
para agora, como um cão,
morrer, com os filhos, de fome.
E assim foi que Boa-Morte
quando chegou a Sapé,
desiludido da sorte,
certo que ia morrer,
decidiu que aquele dia
antes da aurora nascer
os cinco filhos mataria
e mataria a mulher
depois se suicidaria
para acabar de sofrer.
Tomada essa decisão
sentiu que uma paz sofrida
brotava em seu coração.
Era uma planta perdida,
uma flor de maldição
nascendo de sua mão
que sempre plantara a vida.
Seus olhos se encheram d’água.
Nada podia fazer.
Pra quem vive na mágoa,
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mágoa menor é morrer.
Que sentido tem a vida
pra quem não pode viver?
Pra quem plantando e colhendo
não tem direito a comer?
Pra que ter filhos, se os filhos
na miséria vão morrer?
É preferível matá-los
aqueles que os fez nascer.
Chegando a um lugar deserto
pararam para dormir.
Deitaram todos no chão
sem nada para se cobrir.
Quando dormiam João
levantou-se devagar
pegando logo o facão
com que os ia degolar.
João se julgava sozinho
perdido na escuridão
sem ter ninguém para ajudá-lo
naquela situação.
Sem amigo e sem carinho
amolava o seu facão
pra matar a família
e varar seu coração.
Mas como um louco atrás dele
andava Chico Vaqueiro,
um lavrador como ele
como ele sem dinheiro
para levá-lo para a Liga
e lhe dar um paradeiro
para que assim ele siga
o caminho verdadeiro.
Pra dizer-lhe que a luta
só agora vai começar,
que ele não estava sozinho
não devia se matar.
Devia se unir aos outros
para com os outros lutar.
Em vez de matar os filhos
devia era os libertar
do jugo do fazendeiro
que já começa a findar.
levado pela aflição,
em seis peitos diferentes
varasse o seu coração,
Chico Vaqueiro chegou:
“- Compadre, não faça isso
não mate quem é inocente.
O inimigo da gente
- lhe disse Chico Vaqueiro –
não são os nossos parentes,
o inimigo da gente
é o coronel fazendeiro.
O inimigo da gente
é o latifundiário
que submete a nós todos
a esse cruel calvário.
Pense um pouco meu amigo
não vá seus filhos matar.
É contra aquele inimigo
que nós devemos lutar.
Que culpa tem seus filhos?
Culpa de tanto penar?
- Vamos mudar o sertão
pra vida deles mudar.”
Enquanto Chico falava
no rosto magro de João
uma nova luz chegava.
E já a aurora, do chão,
de Sapé, se levantava.
E assim se acaba uma parte
da história de João.
A outra parte da história
vai tendo continuação
não neste palco de rua,
mas no palco do sertão.
Os personagens são muitos
e muita a sua aflição.
Já vão compreendendo
como compreendeu João,
que o camponês vencerá
pela força da união.
Que é entrando para as Ligas
que ele derrota o patrão,
que o caminho da vitória
está na Revolução!
E antes que Boa-Morte,
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APÊNDICE C – Mapa da decupagem de Cabra Marcado para Morrer16
16 Devido ao formato PDF, não foi possível anexar o mapa de decupagem do filme. Caso deseje recebê-lo,
escreva para [email protected]
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Download

Joana De Conti Dorea Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo