Dia-Logos
___________________________________________________
REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Nº 5 | OUTUBRO DE 2011
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Reitor
Ricardo Vieiralves de Castro
Vice-Reitora
Maria Christina Paixão Maioli
Sub-Reitoria de Graduação
Lená Medeiros de Menezes
Sub-Reitoria de Graduação e Pesquisa
Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron
Sub-Reitoria de Extensão e Cultura
Regina Lúcia Monteiro Henriques
Diretor do Centro de Ciências Sociais
Domênico Mandarino
Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
José Augusto de Souza Rodrigues
Coordenadora Geral do Programa de Pós-Graduação em História
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/ REDE SIRIUS/ CCS/ A
____________________________________________________
D536
Dia-Logos - RJ. - vol.1 nº1 (2004) .- Rio de Janeiro:
UERJ, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2004 –
v.
Anual
Dia-Logos - Revista dos alunos de Pós-Graduação em História da UERJ,
nº5, 2011.
ISSN 1414-9109
1.
História - Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
CDU: 981 (05)
Dia-Logos
___________________________________________________
REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Nº 5 | OUTUBRO DE 2011
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Conselho Consultivo (UERJ)
André Nunes de Azevedo; Eliane Garcindo de Sá; Lená Medeiros de Menezes; Lúcia
Maria Bastos Pereira das Neves; Lucia Maria Paschoal Guimarães; Márcia de Almeida
Gonçalves; Maria Regina Candido; Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos; Oswaldo
Munteal Filho; Tânia Maria T. Bessone da Cruz Ferreira.
Conselho Consultivo (professores convidados)
Álvaro de Oliveira Senra (CEFET/RJ); Anita Correia Lima de Almeida (UNIRIO);
Bernardo Kocher (UFF); Carlos Gabriel Guimarães (UFF); Célia Cristina da Silva
Tavares (UERJ-FFP); Cláudia Regina Andrade dos Santos (UNIRIO); Daniel Pinha (PUCRIO); Felipe Charbel Teixeira (UFRJ); Fernando Luiz Vale Castro (UFRJ); Gelsom
Rozentino de Almeida (UERJ-FFP); Georgina da Silva Santos (UFF); Icléia Thiesen
Magalhães Costa (UNIRIO); Iza Terezinha Gonçalves Quelhas (UERJ-FFP); Laura Nery
(UERJ); Márcia Regina Romeiro Chuva (UNIRIO); Maria da Glória de Faria Leal
(CEFET/RJ); Maria Letícia Corrêa (UERJ/FFP); Mário Fernandes Correia Branco (UFF);
Patrícia Wolley Cardoso Lins Alves (FIS); Rebeca Gontijo Teixeira (UFRRJ); Ronaldo
Vainfas (UFF); Sérgio Chahon (FIS/GAMA FILHO); Sônia Wanderley (CAP-UERJ);
Surama Conde Sá Pinto (UFRRJ); Sydenham Lourenço Neto (UERJ-FFP); Tânia Salgado
Pimenta (COC/FIOCRUZ); Thiago Rodrigues (CEFET/RJ); Tereza Fachada Levy Cardoso
(CEFET/RJ); Vágner Camilo Alves (ICFH-UFF).
Comissão Editorial 2010-2011:
Gustavo Pinto de Sousa, Roberta Ferreira e Shelia Conceição Silva Lima
Comissão Editorial 2011-2012:
Beatriz Piva Momesso, Carlos Eduardo da Costa Campos, Manuela Brêtas Medina,
Sheila Conceição Silva Lima.
Designer gráfico
Tricia Magalhães Carnevale
Desenho de capa
Gabriel Costa Labanca
Correspondência
Rua São Francisco Xavier, 524 - Bloco F - 9º andar - sala 9037
Maracanã - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20550-013
Tel./Fax.: 21 2587-7746 - e-mail: [email protected]
Site: www.revistadialogos.net
Todos os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem
necessariamente a posição da editoria ou da instituição responsável por esta
publicação.
ÍNDICE
7
Apresentação
Tania Bessone
9
Editorial
Conselho Editorial
11
Eduardo Prado: um monarquista em tempos republicanos
Amanda Muzzi Gomes
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
33
Letras Revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante
Aragão
Anderson da Silva Almeida
Universidade Federal Fluminense
51
Os Quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
André Inácio de Assunção Neto
Universidade Federal do Rio de Janeiro
69
O Modelo político de Alexandre, o Grande na Roma do século II
d.C: Perspectivas teóricas na Anábase de Alexandre Magno de
Arriano de Nicomédia
André Luiz Leme
Universidade Federal do Paraná
89
A Vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira: um exemplo
de biografia moderna em terras brasileiras
Andréa Camila de Faria
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
107
Academia dos Renascidos: o saber como poder na Bahia
setecentista
Bruno Casseb Pessoti
Universidade Estadual de Santa Cruz
127
Os perigosos Domínios de Hespanha: contatos e tensões na
fronteira luso-espanhola da Capitania do Rio Negro (1780-1808)
Carlos Augusto de Castro Bastos
Universidade de São Paulo
147
O Conhecimento aplicado do Historiador Islâmico Medieval: O
poder, a sociedade e a erudição na Muqaddimah de Ibn Khaldun
(1332-1406)
Elaine Cristina Senko
Universidade Federal do Paraná
167
Memória social, memória coletiva e História: um mapeamento da
questão
Fábio Osmar de Oliveira Maciel
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
185
Fritzmac e o ano de 1888: A revista de ano como palco de
discussões políticas na corte
Flávia Ferreira de Almeida
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
205
Os segredos da nação: o IHGB e a criação da "arca do sigilo"
Isadora Tavares Maleval
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
225
Éramos "Oito": A Trajetória da Dissidência Comunista da
Guanabara/ Movimento Revolucionário Oito de Outubro (19641973)
Izabel Priscilla Pimentel da Silva
Universidade Federal Fluminense
247
Polícia Política em Minas Gerais: Fabricação de crimes políticos e
imaginário anticomunista no regime militar de 1964
Júlia Letticia Camargos
Universidade Federal de São João Del Rei
265
O Cultural Change Institute: a cultura como via única para o
progresso
Samantha Cintra Magnanini
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
285
Sociedades Mercantis e as práticas de articulação comercial entre
Pará e Mato Grosso (179-1820)
Siméia de Nazaré Lopes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
307
Resumos | Abstracts
323
Normas Editoriais
APRESENTAÇÃO
A quinta edição da revista Dia-logos traz muitas expectativas positivas
para todo o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História do
IFCH. O periódico tem cada vez mais corpo e alma e demonstra grande
qualidade e maturidade intelectual dos discentes empenhados em dar à
publicação o impacto que merece. Dentro da categoria do complexo
universo de revistas acadêmicas, vinculadas a diversos programas de pósgraduação em História no Brasil, Dia-logos destaca-se pelo excelente
desempenho que tem apresentado e por ser uma ótima oportunidade de
divulgação de artigos articulados às pesquisas realizadas em diversos
programas de Mestrado e Doutorado. Mantém periodicidade, exige
avaliação por pares e é indexada, o que preenche exigências atuais quanto à
avaliação de qualidade.
Os quinze textos selecionados para compor o número formam um rico
mosaico de temas que, para além da diversidade e de parâmetros
temporais, aproximam-se quanto a questões teórico-metodológicas
recentes e tão caras à historiografia contemporânea.
Por fim, deve-se destacar que o projeto da revista encontra-se em
perfeita sintonia com as linhas de pesquisa do programa de Pós-graduação
em História da UERJ, vinculando-se com pertinência não só à linha de
pesquisa Política e Cultura, como também àquela denominada Política e
Sociedade, ambas muito bem representadas neste número. Além disso, os
artigos aqui veiculados articulam-se a diversos grupos de pesquisa nacionais
– e às diversas instituições que, através dos textos de seus alunos,
apresentam resultados de pesquisa neste periódico.
7
Apresentação
Ao participarem dos eventos anuais, organizados em conjunto pelo
Programa de Pós-Graduação em História da UERJ e seu corpo discente, se
estabelece o primeiro vínculo entre os pós-graduandos e seu público. Isto
ocorre na já conhecida Semana de História, atualmente em sua sexta edição,
quando os pesquisadores têm a oportunidade de submeter seus textos à
comissão editorial e aos pareceristas ad hoc, outros elementos
fundamentais para seleção dos trabalhos que melhor desenvolvem
abordagens teórico-metodológicas no âmbito da história política.
Desta forma, o periódico viabiliza as publicações, criando instâncias
que possibilitam a discussão das idéias de pesquisadores de variadas
instituições e com múltiplos temas de interesse, enriquecendo sua
elaboração. Por conseguinte, na publicação, veiculam-se a pesquisa
empírica com a reflexão teórica, transformando-se em uma opção sólida e
original, não só para os estudos da história e da historiografia, quanto para
temas políticos e culturais que são o eixo central do projeto do PPGH.
Longa vida à revista Dia-logos!
Tania Bessone, pela
Coordenação do PPGH/UERJ
8
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
EDITORIAL
Chegamos a mais uma edição da revista Dia-Logos. A cada ano consolidamos
nossa posição e estilo junto aos grandes periódicos acadêmicos de nosso país! Dessa
forma, nos alegramos por poder divulgar a excelência de nosso Programa de PósGraduação em História Política da UERJ. Esse esforço se deve ao trabalho voluntário
e árduo de alunos, professores e servidores do supracitado programa, como a
colaboração de docentes de outras instituições que nos privilegiam com sua
presença e participação.
Essa trajetória de sucesso tem início na Semana de História Política/ Seminário
Nacional de História dos alunos do PPGH/UERJ, que, a cada ano, abrange um número
expressivo de participantes de todos os Estados do Brasil. Esse processo tem
beneficiado professores e jovens pesquisadores, que tem a oportunidade de dialogar
com seus pares e o público em geral, acerca de suas pesquisas e sobre a produção
histórica. O resultado desse debate se expressa nessa quinta edição de nosso
periódico, que inaugura o acréscimo de cinco artigos, pois superamos a marca de 50
textos aprovados para a análise dos pareceristas. Sendo assim, a partir dessa edição,
contaremos com 15 artigos na composição da Revista.
Esse ano de 2010, alcançamos a marca dos 200 inscritos. Estamos primando
pela qualidade e respeito aos artigos dos proponentes que, a cada ano, vem
depositando sua confiança em nosso trabalho. Artigos de excelência envolvendo um
profundo diálogo com a História Política, o que muito nos tem feito avançar
enquanto Programa e espaço de difusão, discussão e consolidação de novos
pesquisadores. É importante ressaltar, que essas variedades de proposições
contribuem diretamente para o aprimoramento das trocas intelectuais, feitas no
Seminário, o que influencia diretamente na qualidade da Revista Dia-Logos. Aqui se
encontram os artigos de maior qualidade, selecionados após criteriosa análise
realizada por nosso Conselho Consultivo, formado por professores doutores de
instituições de excelência.
Como revista discente, a Dia-Logos cumpre o papel de difundir e fazer circular
alguns dos melhores trabalhos historiográficos, apresentados pelos nossos jovens
pesquisadores. Dessa forma, não se delimita temáticas para esse periódico. A nós
9
Editorial
cabe o papel de promover o conhecimento dos novos trabalhos que se desenvolvem
na academia, as mais interessantes pesquisas desenvolvidas por jovens talentos, da
mais variada gama de assuntos, de acordo com os pareceres de especialistas nos
mesmos temas. Sendo assim, a Dia-Logos comporta artigos que tratam da
abordagem da História Política, como dos demais domínios da História. E essa edição
brinda o seu leitor com dois trabalhos dos períodos da Antiguidade e do Medieval,
além do enfoque da História Moderna ou da História Contemporânea, sobre
conceitos, ideias ou movimentos de longa duração. Nesse quinto ano de revista,
somos brindados com cinco textos de Estados coirmãos: Bahia, Minas Gerais, Paraná
(2) e São Paulo.
Imprimir uma revista acadêmica no mundo virtual de hoje pode parecer
ultrapassado. Contudo, sem nostalgias e retrocessos, queremos resguardar a história
como há milênios os papiros do Egito e do mar Morto se conservam. Apesar da
importância do aparato tecnológico, o livro ainda guarda todo o seu encanto e
permanece como o maior suporte de memórias. No entanto, também não queremos
nos afastar do processo da internet, pelo contrário. Nosso trabalho e empenho
foram reconhecidos pela CAPES e, desde o ano passado, nosso periódico encontra-se
indexado no Qualis, contando com a avaliação B5. Nosso site já está disponível para
consulta em endereço próprio www.revistadialogos.net, onde, igualmente, se
disponibiliza os números das revistas passadas e as novas produções.
Portanto, é muito relevante imprimir, anualmente esse periódico, difusor de
novas pesquisas e pesquisadores, e distribuí-lo entre os principais programas de pósgraduação em História do país e quiçá do exterior.
Esperamos que apreciem a revista e mais uma vez agradecemos a todos que
participaram desse imenso e árduo trabalho, mas de grande importância para a
divulgação da pesquisa científica no Brasil.
Boa Leitura!
Conselho Editorial
10
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
Amanda Muzzi Gomes
Sem estimar consideravelmente os métodos do
Império, Prado amava o trono imperial pela
antiguidade que lhe davam, não os anos, mas a
hereditariedade, a continuidade histórica, como
ramo mais poderoso e mais frutífero do velho tronco
colonial
que
apodrecera.[...]
Com
o
desaparecimento do Império ele temia o
desaparecimento do velho Brasil, da sua sociedade
esmerada e culta, dos seus costumes graves e doces,
da sua disciplina social, da sua segurança legal, da
sua harmonia econômica, da sua autoridade entre
as nações de toda aquela ordem famosa que o
erguia na América como o representante mais alto
da civilização latina. 1
Inserções sociais e trajetória monarquista
Eduardo Paulo da Silva Prado foi um dos mais
expressivos intelectuais monarquistas da década de 1890. Filho
do senador Martiniano da Silva Prado e de Veridiana Prado,
membros da aristocracia cafeeira paulista, ele nasceu, em 1860,
em berço no qual se destacavam a fortuna e o prestígio, tendo
vários familiares influentes na política imperial. Entretanto, ele
não chegou a ocupar cargos políticos durante a monarquia.2
Nos tempos de estudante Eduardo Prado dirigiu revistas
literárias e jornais políticos e foi repórter do Correio Paulistano,
Amanda Muzzi Gomes
órgão da União Conservadora, chefiada pelo conselheiro
Antônio Prado, mas não produziu obras políticas antes da
instauração da república.
Após formar-se bacharel em ciências sociais e jurídicas
pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1881, Eduardo
Prado viajou pela Europa, América do Sul e África. O seu livro
Viagens, cujo primeiro tomo saiu em 1896, como o título indica,
relata suas impressões com as viagens realizadas. Ao retornar ao
Brasil, Prado foi nomeado adido à Legação Brasileira em
Londres, chefiada por Francisco Inácio de Carvalho Loiola, o
barão de Penedo.
Foi com a queda da monarquia que Eduardo Prado
iniciou de fato sua militância política, em reação aos excessos de
arbítrio e violência da república recém instalada. Como já estava
morando em Portugal, ele escreveu uma série de artigos de
crítica ao Governo Provisório, de novembro de 1889 a junho de
1890, na Revista de Portugal. Prado fazia parte do grupo
literário luso-brasileiro “Vencidos na vida”, que incluía
intelectuais como Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Guerra
Junqueiro, Afonso Arinos e Rio Branco. Sob o pseudônimo de
Frederico de S., ele pode atacar o novo regime, tendo na revista
dirigida pelo amigo Eça de Queiroz, a liberdade que jamais teria
aqui. Esses artigos foram reunidos em livro sob o título Fastos
12
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
da Dictadura Militar no Brazil, publicado em Lisboa, em 1890.
No Brasil a obra não sofreu a mesma censura que A Ilusão
Americana sofreria posteriormente durante o governo de
Floriano Peixoto, mas também foi cerceada durante o governo
de Deodoro da Fonseca.
Fastos da Dictadura Militar no Brazil foi o primeiro
conjunto organizado de críticas ao regime republicano e
imediatamente após a sua instalação. Além das críticas pontuais
aos ministros Rui Barbosa e Benjamin Constant, os seus
principais alvos de ataque eram: o militarismo, o positivismo e o
jacobinismo. Esses elementos passaram a ser ainda mais
execrados por todos os monarquistas durante o governo de
Floriano Peixoto. Além disso, segundo Janotti, seus artigos
sistematizaram o próprio discurso monarquista, pois “as idéias
de Prado serviram como uma plataforma de base ideológica do
grupo em formação”.3
Eduardo Prado ainda estava em Portugal quando o
visconde de Ouro Preto, presidente do último Conselho de
Ministros, e sua família para lá foram exilados. Desde os tempos
de faculdade, Eduardo Prado era amigo de seu filho mais velho,
Affonso Celso de Assis Figueiredo Júnior. Foi Ouro Preto quem
o apresentou à família imperial. Eduardo Prado acabou sendo
13
Amanda Muzzi Gomes
um dos monarquistas que mais auxiliou financeiramente o
Imperador destronado no exílio.4
Quando retornou da Europa, Prado intensificou sua
atuação jornalística. Inicialmente ele foi redator de A Tribuna,
novo título da Tribuna Liberal, jornal que havia sido lançado
por membros do Partido Liberal em dezembro de 1888, dirigido
por Carlos de Laet, mas que teve sua circulação suspensa em
novembro de 1889. Desde que o jornal ressurgiu a 1º de julho de
1890, sob a direção de Antonio de Medeiros, Eduardo Prado
atacava efusivamente Deodoro e os oficiais beneficiados pela
ditadura. Foram os corrosivos artigos de Prado que motivaram o
famoso ataque de militares e civis ao jornal, a 29 de novembro,
em que houve muitos feridos e foi atingido mortalmente o
revisor João Ferreira Romariz. O Ministério do Governo
Provisório pediu demissão coletivamente. A imprensa da capital
se reuniu na redação do Jornal do Comércio e lavrou um
manifesto público contra a arbitrariedade do governo.5
Prado continuou a escrever artigos nos quais combatia a
nova situação política em sua colaboração na seção “Opiniões”,
de assuntos gerais, do Commercio de S. Paulo, dirigido por
César Ribeiro. Eduardo Prado adquiriu esse jornal em 1895,
com seus próprios fundos, para que se tornasse órgão da
propaganda monárquica. Os seus artigos publicados nessa folha
14
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
foram reunidos, entre outros escritos, na série sob o título
Collectaneas,
composta
de
quatro
volumes,
publicados
postumamente, de 1904 a 1906.
Prado fez do Comercio de São Paulo um órgão de
denúncia aos abusos do governo republicano, como na ausência
de repressão aos envolvidos em empastelamentos de jornais de
oposição ao governo, bem como de suas más gestões em
assuntos tópicos, como os subsídios à lavoura cafeeira. Prado
travou
alentadas
polêmicas
com
eminentes
publicistas
republicanos, como Ferreira de Araújo, e desenvolveu idéias de
obras suas anteriores, como a crítica à tendência brasileira em
imitar os Estados Unidos, que já havia feito em A Ilusão
Americana.
Prado também transformou o jornal no mais eficaz
instrumento de propaganda da causa monárquica na cidade de
São Paulo. Em suas colunas ele divulgava as realizações dos
monarquistas, como o banquete de 15 de outubro de 1895,
organizado por ele mesmo e Rafael Correia em homenagem ao
aniversário de D. Pedro de Alcântara, filho mais velho da
Princesa Isabel. Outro feito que Prado destacou foi o Manifesto
do Partido Monarchista de S. Paulo, propositalmente lançado a
15 de novembro do mesmo ano, redigido por João Mendes de
Almeida, com quem ele dividia a liderança do grupo
15
Amanda Muzzi Gomes
monarquista de São Paulo. Pouco depois, os dois líderes
organizaram o Partido Monarchico, o que estimulou os
monarquistas do Rio de Janeiro para a criação do Diretório
Monarchico no ano seguinte.
Eduardo Prado foi o maior aglutinador de seguidores à
causa restauradora na cidade de São Paulo. Por isso, nos
momentos de crise política ele foi bastante perseguido por
republicanos. Prado foi também um dos ativistas que mais
investiu financeiramente no movimento monárquico. Além do
círculo
paulista,
ele
mantinha
estreitos
contatos
com
monarquistas do Rio de Janeiro, entre os quais Joaquim Nabuco,
com o qual partilhava certas idéias, como a da tradição
monárquica no Brasil e a anglofilia.
Do final de 1889 até ser obrigado a fugir do Brasil em
1896, em razão das perseguições que sofreu pelas ruas de São
Paulo, sobretudo por parte dos jacobinos, Eduardo Prado
dedicou-se quase que exclusivamente à causa monárquica. Entre
os
jovens
monarquistas
ele
foi
o
mais
expressivo
intelectualmente, secundado pelo companheiro Affonso Celso
Júnior. A propaganda monarquista absorvia quase todo o seu
tempo, o que não impediu, todavia, que ele ajudasse na fundação
da Academia Brasileira de Letras, na qual ocupou a cadeira de
número 40, e se tornasse sócio do Instituto Histórico e
16
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
Geográfico Brasileiro. Ele também foi membro do Instituto
Histórico de São Paulo e do Conselho Superior da Sociedade de
Etnografia
e
Civilização.
Seus
méritos
literários
eram
reconhecidos também na Europa, tendo sido laureado pela
Academia Francesa.
Foi em Paris, ainda em 1896, que ele se dedicou à
segunda edição de A Ilusão Americana, sua obra política de
maior repercussão, até mesmo por ter sido a primeira obra
apreendida pela polícia na república brasileira, no mesmo dia
em que foi posta à venda nas livrarias de São Paulo, a 4 de
dezembro de 1893.6 Nabuco atribui a si a idéia inicial de A
Ilusão Americana. Ele diz que algumas vezes expôs a Eduardo
Prado as linhas gerais do livro, que ele inicialmente havia
denominado A perda de um continente, e desejava que alguém o
escrevesse.7 De todo modo, em 1893, quando o Brasil ainda
estava sob a presidência militar de Floriano Peixoto, ambos
tinham ardor europeísta; eram anglófilos; preferiam a forma de
governo monárquica e combatiam a república, sobretudo a
norte-americana, para eles objeto de exemplo e mesmo imitação
pelos países latino-americanos, o que só aumentava a desordem
e a anarquia dos mesmos. Ambos consideravam que a
civilização européia é que lhes devia servir de exemplo,
especialmente o parlamentarismo inglês.
17
Amanda Muzzi Gomes
Contudo, na segunda metade da década de 1890, embora
tenham prosseguido a amizade e troca de idéias, as opiniões
ficaram divergentes a esse respeito. Nabuco aderiu ao
monroísmo e pan-americanismo, ao passo que Prado continuou
crítico a esses, tanto que ele não faz alterações de conteúdo à
segunda edição de A Ilusão Americana. Todavia, por causa das
perseguições sofridas, mesmo após retornar ao Brasil, Prado não
voltou a fazer propaganda monárquica, apesar dos contatos com
os amigos monarquistas. Ele não tinha mais rígidas posições
como antes. Prado foi um dos poucos, por exemplo, a apoiar
Nabuco na aceitação do cargo diplomático oferecido por
Campos Salles, colocando-se contrariamente à opinião da velha
guarda monarquista: visconde de Ouro Preto, João Alfredo
Correia de Oliveira, Lafayette Rodrigues Pereira e Andrade
Figueira.8
Eduardo Prado tornou-se profundamente católico, tendo
organizado a série de conferências sobre José de Anchieta. Seus
últimos escritos foram de teor religioso. 9 Em A bandeira
Nacional, obra póstuma publicada em 1903, como ela começou
a ser escrita em outubro de 1890 em Paris, ele até defende a
monarquia como o governo representativo e constitucional, mas
se concentra no combate às alterações feitas pelos republicanos
18
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
na bandeira do país e na refutação à Apreciação Philosophica,
de Teixeira Mendes.10
Apesar de sua morte prematura, em 1901, com 41 anos,
Eduardo Prado foi um dos monarquistas mais atuantes não
apenas em termos de produção intelectual, como em aglutinação
de seguidores ao movimento monárquico.
A mudança de regime e o Segundo Reinado nos textos de
Prado
Eduardo Prado não chegou a escrever uma obra
específica sobre a monarquia, ou mesmo de algum assunto a ela
referente. No entanto, seus textos de crítica à república são
pincelados por avaliações sobre a monarquia. De modo similar a
boa parte dos intelectuais monarquistas, Prado adotou a reflexão
retrospectiva como recurso narrativo para as críticas à república.
Dessa maneira, as realizações monárquicas eram contrapostas
aos erros republicanos. As mazelas da República eram
confrontadas às proezas do Império. Portanto, a finalidade,
causticar o novo regime, era uma marca forte em suas
ponderações sobre o antigo regime.
Prado costumava representar o Período Regencial e o
Segundo Reinado de maneira homogênea e unificada, como os
sessenta anos de paz, ordem e liberdade que abriram crédito na
19
Amanda Muzzi Gomes
opinião universal ao Brasil e o colocaram em supremacia sobre
os latino-americanos. As palavras do amigo Eça de Queiroz, que
foram utilizadas como epígrafe a esse artigo, bem demonstram o
papel civilizador que Prado atribuía à monarquia após a
Independência. Essa imagem aparece já na introdução aos
artigos de Fastos da Dictadura Militar11, atravessa A Ilusão
Americana e prossegue nos artigos do Commercio de S. Paulo.
Contudo, para Prado, um dos culpados pela queda da
monarquia foi o próprio governo. O Partido Republicano dia a
dia tornou-se mais numeroso, ruidoso e ansioso por dominar o
país. Além do excesso de liberdade ter permitido esse ímpeto
por parte do partido adverso à monarquia, o Exército estava
esquecido, mal organizado, pessimamente remunerado e
erroneamente instruído, de modo que lhe foi permitido criar uma
situação dissolvente de toda a disciplina e destruidora de todo o
respeito.
Prado
ainda
acrescenta
que
era
justo
o
descontentamento do exército. Para ele, “o acordo entre essas
duas forças” foi fatal, até mesmo porque lógico.12 Além da
conjugação desses fatores, ele responsabiliza pessoalmente
Pedro II, já que ele “caiu pelo excesso de algumas virtudes que
hão de immortalisal-o”, como a liberdade concedida a todos,
mesmo aos opositores, e a abolição da escravidão. 13
20
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
A imagem de D. Pedro II que Eduardo Prado
compartilha é a do monarca cidadão, construída na década de
1870.14 Prado defende que o Imperador elevou o nível
intelectual do país como um rei civil, constitucional e sábio,
sendo um famoso freqüentador de bibliotecas, museus e
universidades. No entanto, a virtude criou um problema, pois “o
divórcio do Imperador das coisas militares, entendidas à
hespanhola, foi o que salvou a civilização brasileira, mas foi o
que perdeu a monarchia”. 15
O rei sábio soube projetar a imagem do Brasil como o
país sul-americano mais civilizado e livre. No entanto, ele não
utilizou de seus conhecimentos em relação às classes militares e
tampouco cuidou do ensino em relação a essas. Prado defende
que “o governo monarchico commeteu um erro imenso
deixando ao ensino militar o seu caracter exclusivamente
theorico”. Assim, “o Sr. D. Pedro II, tão ocupado das ciências,
não fez senão abacharelar o official do exercito que agora
naturalmente revela um tão pronunciado furor politicante,
discursante e manifestante”.16
O excesso de liberdade  de imprensa, reunião e
pensamento – permitiu aos civis do Partido Republicado almejar
a tomada de poder. Já o bacharelismo desviou os militares de
suas funções precípuas e, somado com as péssimas condições
21
Amanda Muzzi Gomes
em que o governo deixava o Exército, originou o desejo de
conquista do poder também por parte desses elementos.
Deste modo, Eduardo Prado, além de admitir a
responsabilidade da monarquia em sua própria queda, e
inclusive esclarecer sobre erros pontuais do Imperador, também
entende que o ato de 15 de novembro de 1889 foi mais do que
um simples levante militar, tendo sido a conjugação de esforços
de civis e militares. Por isso, ele explica que aquilo que a
princípio seria apenas uma revolta militar acabou se tornando
uma revolução.
Por outro lado, Eduardo Prado não se preocupou em
explicar o abolicionismo e nem mesmo a extinção da
escravidão. O abolicionismo teria apenas servido de derivativo
para o “nervosismo especial” que ele diz acometer os militares e
parte da população civil do Rio de Janeiro, já que ele via a
população
da
Corte
como
mais
barulhenta
em
suas
manifestações. Em razão da atmosfera abolicionista, o
Imperador foi delirantemente saudado tanto em sua partida para
viagem à Europa, como em seu retorno, em agosto, pouco após
a abolição.17
Todavia, Prado não vê participação popular em relação
ao abolicionismo e nem menciona fatores relacionados, como o
surgimento de jornais abolicionistas. Tampouco ele destaca a
22
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
atuação de intelectuais no movimento, como o amigo Joaquim
Nabuco.
A própria abolição é retratada por ele como um ato do
trono: por vezes da Princesa Isabel, mas principalmente do
Imperador.18 Ele define Isabel como chefe libertadora, sem
atentar ao caráter interino de sua regência. Mais tarde, com o
exílio e o martírio de ter que viver longe da pátria, ela foi
consagrada.19 Todavia, não há nos escritos de Prado um culto à
Princesa Isabel. O representante da dinastia dos Bragança de sua
adoração é D. Pedro II. Ainda que lhe aponte defeitos e erros no
governo, o Imperador era a personificação do monarca justo e
exemplar. São constantes em sua obra os elogios à “nobre
personalidade” do Imperador e ao seu modo de vida, simples e
comedido.20 A elevação de caráter de Pedro II fazia-o
desinteressado pelo dinheiro e pelo luxo, como o demonstrava o
próprio Paço de São Cristóvão, com modestos aposentos. Prado
até defende que os republicanos resolveram transformar a
residência em museu nacional justamente para que a posteridade
não se lembrasse “da simplicidade da vida e do desinteresse que
tanto honram o velho Imperador”. 21
Em relação ao Poder Moderador, apesar de fazer uso do
poder pessoal, Prado argumenta que, pelo próprio sistema
parlamentar, o Imperador tinha bem menos poderes do que os
23
Amanda Muzzi Gomes
presidentes republicanos.22 As intervenções do Pedro II em sua
maioria visavam atender aos desejos da opinião pública. Até a
escolha dos presidentes do Conselho de Ministros era feita
segundo esse critério. Para Eduardo Prado, não havia
rotatividade dos partidos no poder. O que ocorria era que
quando o partido dominante gastava-se no poder, a oposição
tinha total liberdade para agitar a opinião pública. Caso esta
simpatizasse com os oposicionistas, o Imperador, sempre atento
às movimentações políticas e sociais, chamava logo a oposição
para o governo.23
Curiosamente, apesar de reafirmar que o Imperador fazia
concessões em relação aos seus súditos como um todo, Prado
em nenhum momento se indaga sobre as pouquíssimas
manifestações populares em prol da monarquia ou mesmo de
Pedro II imediatamente após o ato de 15 de novembro. Essa foi
uma questão que afligiu muitos de seus correligionários, como o
conselheiro Tito Franco d’Almeida 24 e o amigo Affonso Celso.25
Outra questão que não é objeto de indagação ou
reflexões por parte de Prado era por que o Imperador, tão justo e
solícito aos anseios gerais, não acabou antes com a escravidão.
A explicação, para ele, era muito simples: a culpa era dos
Estados Unidos. Ao argumentar acerca da superioridade da
monarquia em relação à república, e no rol de criticas à
24
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
república norte-americana, Prado compara os Estados Unidos e
o Brasil face ao mesmo problema: a abolição da escravatura. A
“solução genuinamente republicana e norte-americana” ocorreu
pela violência, pela força, no fragor da guerra fratricida.
Diferente foi a “solução genuinamente monárquica e brasileira”,
feita de forma pacífica e que “excedeu os sonhos dos otimistas
mais humanitários”. Por esse motivo, “a monarquia brasileira
teve a glória de ser punida por uma ação libertadora”.26 E para o
fato do Brasil ter sido o último país em extinguir a escravidão a
explicação é a mesma: a culpa foi dos Estados Unidos.
Prado escreve A Ilusão Americana para desmistificar a
noção da fraternidade americana, ou seja, a visão dos EUA
como protetor das nações do continente. Por isso, ele arrola as
muitas influências negativas dos EUA sobre a América Latina e
o Brasil, como a própria adoção da forma de governo
republicana. O seu alvo de críticas indireto é a república
brasileira: que estaria imitando a norte-americana em vários
aspectos, como na própria carta constitucional. Entretanto,
contraditoriamente, Prado acaba, ainda que de maneira mais
indireta ainda, criticando a própria monarquia brasileira: esta se
deixou levar também pelas más influências norte-americanas,
que começaram logo após a Independência. Prado explica que o
Brasil conservou por tanto tempo a escravidão por causa dos
25
Amanda Muzzi Gomes
Estados Unidos. Segundo Prado, o Brasil só manteve
demasiadamente a “instituição iníqua” porque a maior nação da
América a legitimou, e de sua parte escravocrata nos veio o
incentivo, inclusive pelas notícias aqui chegadas sobre o que se
fazia e se dizia nos EUA para defender a escravidão. Entretanto,
não foi só pela “força danosa do seu exemplo” que a escravidão
demorou a ser extinta no Brasil, mas também “por ter inspirado
aos tímidos o receio de que a solução do problema no Brasil
fosse a mesma tragédia da América do Norte”. Prado cita
documentos, como a mensagem do presidente Taylor de 4 de
dezembro de 1849, que comprovam que o tráfico de africanos
para o Brasil era feito por navios construídos nos EUA,
pertencentes a americanos e comandados e tripulados por
americanos.27
Assim, a culpa pela demora em resolver a principal
“questão social” do Brasil, como Prado a entendia, é atribuída
aos Estados Unidos. Já a solução, a abolição, é vista como um
gesto do trono, ou seja, uma concessão de cima para baixo, da
monarquia aos súditos.
A intensificação da campanha abolicionista não é
analisada por Prado, possivelmente mesmo porque destacá-la
implicaria em acentuar a ação de outros atores, como os próprios
escravos. Ele não menciona nenhuma das atuações da Princesa
26
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
Isabel em favor da abolição, como a acolhida de escravos
fugidos no Palácio Real, a participação em quermesses que
visavam arrecadar fundos para a causa abolicionista e a
organização da primeira “batalha das flores”.28 Até a
representação da Princesa como a redentora não é muito
destacada, fator que até o ajudaria na argumentação da abolição
como um feito do trono. No máximo ele a vê como redentora,
mas todo o destaque que ele é confere é ao Imperador, símbolo
maior da monarquia.
Enfim, em relação a certos fatores, como no tratamento
dado ao Exército, Prado vê erros no reinado de Pedro II. Já para
outros, como a abolição, a visão é unilateral, apontando apenas a
benevolência governamental.
Por ter escrito na década de 1890, com a república já
instalada, Eduardo Prado não dedica atenção a fatores candentes
do final do Segundo Reinado, como as reformas políticas
propostas pelos Liberais e cada vez mais demandadas nos
últimos anos monárquicos. Essa ausência em suas análises
também se deve ao fato de que ele mesmo não foi político
durante a monarquia. A sua preocupação é menos com o que a
monarquia poderia ter feito para não cair do que com os
problemas, alguns originados da própria virtude do Imperador
em manter as liberdades políticas, que a fizeram desmoronar.
27
Amanda Muzzi Gomes
Como Prado escreve em um momento em que a monarquia não
mais vigorava, ele não tinha apelo salvacionista, embora visasse
fortalecer o movimento restaurador com suas denúncias e
combates aos governos republicanos. Nos ataques à república
recém-implantada Prado foi um publicista da monarquia. No
momento tenso da primeira década republicana ele trouxe à tona
elementos da tradição imperial. Retoricamente esses elementos
foram mobilizados como instrumental de crítica em sua
argumentação contra a república. Por outro lado, na prática
restauradora essa tradição se inseria em um passado recente que
se queria reinstalado em futuro próximo.
Contudo, Prado não efetuou construções discursivas que
tencionassem vitimizar o Imperador destronado e eximir sua
administração de qualquer culpa na queda da monarquia.
Intelectual refinado, Prado admitiu imperfeições majestáticas. O
maior erro do Imperador, para utilizar uma expressão de
Joaquim Nabuco29, foi marcar o seu reinado pelo excesso de
liberdades. Assim houve abertura de espaço para as contestações
e confabulações diversas que levaram à queda do regime. O
mesmo fator, a liberdade, servia para marcar positivamente o
regime findo e em sentido inverso o recém instalado. Justamente
a liberdade era o que menos existia no novo regime, impetrado
pela força militar, coadjuvado pela civil, e que só pelo arbítrio
28
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
poderia se sustentar. Esse foi o eixo de denúncias de Fastos da
Dictadura Militar no Brazil. As obras de Prado ficaram
conhecidas como de combate à república brasileira, porque de
fato o eram, além de terem sido as primeiras cerceadas pelo
novo regime. No entanto, de maneira subliminar ele tentou
traçar certa memória do regime monárquico. E memória ligada
às incertezas de um turbulento presente. Memória, apropriandonos de Gilberto Velho, que tinha em vista projeto, ação de
futuro. Memória e projeto esses que davam significado a uma
trajetória individual. 30
Contudo, Eduardo Prado sofreu obliteração. Sua atuação
política foi ofuscada até pela de seus familiares ilustres, como
Paulo Prado e Antonio Prado, inclusive porque ele não ocupou
cargo na política institucional. Ademais, sua militância
praticamente se circunscreveu a um movimento político
fracassado, conforme foi o ativismo monárquico. Raramente se
encontrará estudo sobre o limiar da república, principalmente de
história intelectual, que não mencione seu nome ou suas obras,
até pela repercussão que tiveram na época. Mas quase não há
estudos sobre Eduardo Prado. Ele é um dos atores/intelectuais
mais comentados e menos analisados pela historiografia. Esse
artigo visou ajudar a preencher essa lacuna, em um primeiro
plano. Já num segundo, tencionou destacar a riqueza de
29
Amanda Muzzi Gomes
experiências políticas deste momento ímpar de nossa história: o
da transição entre as suas duas formas de governo, monarquia e
república.
Notas de Referência

1
2
3
4
5
6
7
8
9
30
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação de História Social da
Cultura da Pontifícia Católica do Rio de Janeiro (PUC), orientada pelo
Professor Doutor Marco Antônio Villela Pamplona. Contato:
[email protected] Bolsista CNPQ.
QUEIROZ, José Maria Eça de. Notas contemporâneas. Apud: JANOTTI,
Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da República. São Paulo:
Brasiliense, 1986, p. 34.
As informações biográficas de Eduardo Prado foram extraídas de:
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco, op. cit., p. 29-35; das Fichas
Técnicas de Arquivos e Coleções Particulares do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e do Anexo “Sobre o autor” para a quinta edição
de PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. São Paulo: Ibrasa, 1980, p.
189-190.
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Op. cit., p. 34.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um
monarca nos trópicos. 2ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 484.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de
Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1966, p. 290-293. JANOTTI,
Maria de Lourdes Mônaco. Op. cit., p. 37-41.
Os detalhes sobre a proibição da venda, a apreensão dos demais
exemplares na tipografia em que o livro foi impresso logo no dia
seguinte e a opinião de Eduardo Prado sobre o sucesso do livro e sua
proibição encontram-se na entrevista que ele concedeu à Platéia, a 5 de
dezembro. A matéria com a entrevista foi reproduzida como Apêndice à
5ª ed. de A Ilusão Americana, p. 183-188.
NABUCO, Joaquim. Joaquim Nabuco: Diários. Rio de Janeiro: Bem-tevi, 2006, 5 de dezembro de 1893, p. 346.
Id., ibid.,7 de janeiro e 8 de março de 1899, p. 400-402.
PRADO, Eduardo. Collectaneas. São Paulo: Escola Typograhica
Salesiana, 1906, vol. I.
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Eduardo Prado: Um Monarquista em Tempos Republicanos
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
Id., A bandeira Nacional. São Paulo: Escola Typograhica Salesiana,
1903.
PRADO, Eduardo. “Introdução”. Fastos da Dictadura Militar no Brazil.
4ª ed. Pelotas: Americana, 1894, p. II.
Id., ibid., p. 2.
Id., ibid., p. 7.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit., p. 319-343.
PRADO, Eduardo. Fastos da Dictadura Militar no Brazil, op. cit., p. 7-8.
Id., ibid., p. 29.
Id., ibid, p. 26.
Id., Fastos da Dictadura Militar no Brazil, p. 22-23 e A ilusão
americana, p. 50.
Id., A ilusão americana, p. 50.
Id., Fastos da Dictadura Militar no Brazil, p. 7, p. 145.
Id., ibid., p. 145.
Id., “Moreira de Barros”, Commercio de S. Paulo, 11.7.1896, in:
Collectaneas, vol. II, p. 282.
Id., “Uma lição de Aristóteles”, Commercio de S. Paulo, 12.12.1895,
ibid., p. 110.
FRANCO, Tito. Monarquia e Monarquistas. Prefácio de Manuel Correia
de Andrade. 2ª ed. rev. e atual. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana,
1990. Série República, vol. 14.
CELSO, Affonso. O Imperador no exílio. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves, 1893.
PRADO, Eduardo. A ilusão americana, p. 131.
Id., ibid., p. 166-175.
Sobre as participações da Princesa Isabel no abolicionismo, A. O.
Mattos, Guarda Negra: A Redemptora e o Ocaso do Império e R.
Barman, Princesa Isabel do Brasil, p. 236-237.
NABUCO, Joaquim. O erro do Imperador. Rio de Janeiro: Typ. de G.
Leuzinger & Filhos, 1886. Propaganda Liberal: série para o povo.
Primeiro opúsculo.
VELHO, Gilberto. “Memória, identidade e projeto”. In: Projeto e
metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor. 1994, pp. 97 a 105.
31
Amanda Muzzi Gomes
32
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante
Aragão
Anderson da Silva Almeida
Não faz muito tempo que a escrita epistolar passou a
fazer parte do conjunto de fontes analisadas pelos historiadores
brasileiros em suas pesquisas. De acordo com Angela de Castro
Gomes, “não são ainda muito numerosos os estudos que se
dedicam a uma reflexão sistemática sobre esse tipo de escritos
[cartas, diários íntimos e memórias] na área da história do
Brasil”. Acrescentando que “as iniciativas que constituem
exceções provêm muito mais do campo da literatura e,
recentemente, de estudos de história da educação”.1 Estando
necessariamente associadas à emergência do indivíduo moderno
que se sobrepõe a uma lógica coletiva tradicional, as escritas de
si ou práticas de produção do eu, vão paulatinamente ganhando
terreno no campo analítico da historiografia brasileira. 2 Ainda
sobre a questão do indivíduo e a construção do eu, Gomes
pontua que:
A correspondência pessoal, assim como outras
formas de escritas de si, expande-se pari passu ao
processo de privatização da sociedade ocidental,
com a afirmação do valor do indivíduo e a
construção de novos códigos de relações sociais de
intimidade (...). A escrita de cartas expressa de
forma emblemática tais características, com uma
particularidade: elas são produzidas tendo, a priori,
Anderson da Silva Almeida
um destinatário. Assim, tal como outras práticas de
escrita de si, a correspondência constitui,
simultaneamente, o sujeito e seu texto. Mas,
diferentemente das demais, a correspondência tem
um destinatário específico com quem se vai
estabelecer relações. Ela implica uma interlocução,
uma troca, sendo um jogo interativo entre quem
escreve e quem lê – sujeitos que se revezam,
ocupando os mesmos papéis através do tempo.
Escrever cartas é assim „dar-se a ver‟, é mostrar-se
ao destinatário, que está ao mesmo tempo sendo
„visto‟ pelo remetente, o que permite um tetê-à-tête,
uma forma de presença (física, inclusive) muito
especial.3
De acordo com Rebeca Gontijo, a carta “trata-se de um
tipo de comunicação escrita, que varia conforme o uso a que se
destina”.4 Citando Cécile Dauphin, Gontijo acrescenta que o
termo é polissêmico, significando “traço, o „vestígio de uma
realidade complexa‟; texto produzido e objeto trocado,
testemunha das trocas afetivas, profissionais e intelectuais entre
os indivíduos”. 5 O conceito é ampliado pela análise de Brigitte
Diaz, para quem as correspondências são “textos híbridos, que
transitam entre categorias distintas como o arquivo, o
documento e o testemunho”.6 A carta que iremos analisar nas
linhas seguintes, poderia ser compreendida facilmente com esse
sentido híbrido destacado por Diaz e pela polissemia pontuada
por Dauphin. Ou seja, ela é um traço, um rastro, um vestígio de
um momento histórico da política brasileira, e ao mesmo tempo
34
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão
– e por isso mesmo – pode ser vista como um documentotestemunho de um determinado personagem da história recente
do Brasil, como também das aspirações e visões políticas do seu
destinatário, o almirante Cândido da Costa Aragão.
No que diz respeito à questão metodológica, Gomes
chama a atenção para o fato de que “trabalhar com cartas, assim
como com outros documentos, privados ou não, implica
procurar atentar para uma série de questões e respondê-las”.
Dentre as principais questões levantas pela autora, destacamos
as seguintes: Quem escreve/lê as cartas? Em que condições e
locais foram escritas? Onde foram encontradas e como estão
guardadas? Qual ou quais o(s) seu(s) objetivo(s)? Quais as suas
características como objeto material? Que assuntos/temas
envolvem? Como são explorados em termos de vocabulário e
linguagem?7
É a partir dessas questões que construiremos nossa
análise.
A Carta
Encontramos a missiva quando pesquisávamos no
Arquivo Público do Estado de São Paulo, no fundo Ordem
Social, a presença de marinheiros na luta armada depois de
35
Anderson da Silva Almeida
terem sido excluídos da Marinha após o golpe de 1964.
Chamou-nos a atenção o fato de o almirante Cândido da Costa
Aragão - o comandante dos fuzileiros navais que se recusou a
reprimir a rebelião dos marinheiros em março de 1964 e que era
muito ligado a Leonel Brizola – aparecer como um dos
personagens mais vigiados pelo sistema de informações do
período ditatorial. O remetente era ninguém menos que Carlos
Marighella, o qual na época em que escreveu a missiva, já era
histórico militante do Partido Comunista Brasileiro.8 Em suas
letras revolucionárias, datilografadas em pouco mais de duas
folhas simples, e com todas as formalidades possíveis,
comunicava sua decisão definitiva de romper com o Partido e
mergulhar de vez nas ações armadas contra a ditadura civilmilitar. O tipo de suporte utilizado (papel ofício e letras em
datilografia) nos passa a ideia de que o emissor não queria correr
o risco de que alguma palavra, expressão ou frase do seu texto
fosse mal compreendida. Ou seja, a mensagem teria que ser
passada sem gerar dúvidas quanto ao objetivo desejado, o que
poderia ocorrer caso enviasse um texto manuscrito. As
formalidades e estrutura de uma carta, também não foram
ignoradas pelo remetente:
36
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão
Havana, 28 de setembro de 1967
Ao Almirante Cândido Aragão
Prezado Patrício
Depois de nossas conversações e após o exame que
fizemos dos problemas políticos do nosso país, estou
remetendo esta carta para dizer-lhe que concordo
com a sua posição em termo de unidade das forças
populares e revolucionárias brasileira. (sic)
Suas posições sobre a recente Conferência da Olas,
sobre a frente popular revolucionária, sobre a luta
armada e outras questões contam com o meu apoio. 9
Já nessa abertura, temos vestígios significativos do
momento específico e dos objetivos de Carlos Marighella ao
escrever a Aragão. Escrevendo de Cuba em setembro de 1967, o
comunista baiano cita conversações anteriores entre os dois, nas
quais discutiram necessariamente a conjuntura política brasileira
e a busca de soluções para a derrubada da ditadura instalada em
abril de 1964. Outro fator de relevada importância nessa
introdução é a referência à conferência da OLAS [Organização
Latino-Americana de Solidariedade]. Esta conferência ocorreu
entre 31 de julho e 10 de agosto de 1967 e foi organizada por
Cuba com o objetivo de fazer da Ilha um centro revolucionário
na América Latina. De acordo com Jean Rodrigues Sales, “entre
outras formulações, a OLAS criticou a política defendida pelos
partidos comunistas e indicou a luta guerrilheira como estratégia
adequada para a maior parte dos países latino-americanos,
37
Anderson da Silva Almeida
proclamando que o dever de todo revolucionário era „fazer a
revolução‟”.10
Esse encontro aparece comumente lembrado pela
historiografia como o momento no qual Marighella rompeu com
o PCB e passou a defender abertamente a solução armada para a
derrubada da ditadura. O que de fato ocorreu.11 E já a partir
daquele ano, iriam desembarcar na Ilha vários militantes
articulados com a nova organização, que tinha em Marighella
seu grande líder, a Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo
guerrilheiro que enviou o maior números de militantes para o
treinamento guerrilheiro em Cuba. 12 No entanto, naqueles dias,
o que mais ganhou destaque na imprensa brasileira foi a
presença em Cuba de José Anselmo dos Santos, o cabo
Anselmo.13 Desaparecido desde sua fuga do Alto da Boa Vista
em 1966, Anselmo foi a maior estrela da delegação brasileira
presente na conferência, então chefiada por Aloísio Palhano, exdirigente
sindical.
Ambos
representavam
o
Movimento
Nacionalista Revolucionário (MNR). Anselmo, inclusive, foi
escolhido como o orador da delegação do Brasil. Marighella
estava apenas como observador.14
O indisciplinado militante comunista havia participado
do encontro sem a autorização do PCB e por isso sua expulsão
já tinha sido decidida pela cúpula do Partidão. Dessa forma,
38
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão
escrita apenas um mês após a Conferência, é possível que a carta
escrita a Aragão tenha sido um dos primeiros sinais da decisão
definitiva do ex-deputado, já com mais de cinquenta anos de
idade, em partir para as ações armadas. Em dezembro ele
regressou e começou a colocar em prática questões que já vinha
sinalizando há algum tempo e que também estavam na carta de
setembro:15
Penso que os revolucionários brasileiros têm o dever
de procurar unificar suas forças. Sem tal unidade,
nosso povo não pode libertar-se do domínio do
imperialismo norte-americano e da opressão dos
gorilas que assaltaram o poder com o golpe de abril.
O empenho na luta pela unidade das forças
revolucionárias brasileiras merece o aplauso e a
colaboração de todos os que não se conformam com
o atual estado de coisas em nossa Pátria.
Secundando sua opinião, participo também da ideia
de que concentrar os esforços em termo da luta de
guerrilhas como genuína expressão da luta armada
popular, é a melhor forma de pugnar pela unidade
das forças revolucionárias brasileiras.16
Escrevendo a um militar de alta patente e tendo em seu
remetente um dos mais expressivos militares que foi preso e
processado por ter ficado fiel ao presidente João Goulart,
Marighella teve a preocupação e o cuidado de fazer referência
ao imperialismo norte-americano, de matizar a expressão forças
revolucionárias brasileiras - com destaque ao adjetivo pátrio –
39
Anderson da Silva Almeida
ratificando ainda a questão nativa com a expressão nossa Pátria.
Para um experiente militante comunista, fazer uso de um
vocabulário próprio ao seio militar foi também uma estratégia,
uma escolha, uma tentativa de se aproximar ao máximo do
mundo e da cultura política de um oficial conhecidamente
nacionalista e antiimperialista, como era o caso de Aragão.
Nesse trecho, interessante também é a expressão nosso povo,
tendo em vista que o destinatário da carta era conhecido no seio
das esquerdas no início da década de 1960 como o “almirante do
povo”, devido ter começado sua carreira na Marinha como
soldado, nascido na Paraíba, e ter chegado ao posto de vicealmirante. No entanto, para seus opositores
- intra e extra
Marinha – Aragão era considerado o “almirante vermelho”.
Outro trecho da carta-documento expõe um Marighella
teórico da revolução, mas acima de tudo pragmático. A ação
salta em seu texto e é possível visualizarmos, sentirmos e
compreendermos melhor porque sua organização foi batizada de
Ação Libertadora Nacional:
O que nós – os revolucionários brasileiros –
precisamos, é fazer unir nossas forças, partindo da
luta de guerrilha e a criação de um núcleo armado
com base na aliança operário-camponesa, a qual
devem se juntar o combativo movimento estudantil,
a intelectualidade, a juventude, a mulher brasileira,
os funcionários públicos, e os militares
40
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão
revolucionários de dentro e fora das forças armadas.
(...) É chegado o momento de fazer a coleta de
fundos, comprar e capturar armas e munições,
fabricá-las clandestinamente e, selecionar e adestrar
combatentes, preparar médicos, enfermeiras,
recolher remédios, roupas, calçados e alimentos,
estabelecer o apoio logístico a guerrilha (sic).17
Esta passagem ilustra bem e corrobora algumas análises
que apontam a participação de Marighella na OLAS como o
momento crucial de sua “conversão” à luta de guerrilhas.
Segundo Denise Rollemberg, há ainda certa polêmica em
relação à sua adesão ou não à teoria do foco guerrilheiro naquele
momento.18 Porém, a autora interpreta a concepção do líder da
ALN, em sua visão da luta revolucionária, como sendo de “uma
maneira bem mais ampla e complexa do que o foquismo
propunha, supostamente legitimado na Revolução Cubana”. 19
A nosso ver, ao fazer menção na carta à aliança
operário-camponesa,
ao
movimento
estudantil,
à
intelectualidade, à juventude, à mulher brasileira, aos
funcionários
públicos
e
aos
militares
revolucionários,
Marighella expressa sim uma forma mais sofisticada e mais
abrangente que o tipo de luta proposta pelo foquismo. Sem
dúvida, esta correspondência contribui de sobremaneira no que
diz respeito à interpretação do que seria [foi] o pensamento
embrionário dos militantes de uma das mais importantes
41
Anderson da Silva Almeida
organizações armadas que atuou no período da ditadura civilmilitar. Fica ainda a impressão, neste trecho da missiva, que o
almirante Aragão poderia ser um valoroso colaborador em
relação à logística da nascente organização, afinal, eles
precisariam de armas, munições, remédios etc. Naquele
contexto, o seu interlocutor não seria um dos mais indicados
para intermediar também adestramento de combatentes? Quem
sabe até seus antigos homens, os fuzileiros navais – muitos deles
expulsos da Marinha após o golpe - não poderiam somar forças
e agregar conhecimento militar sobre armamentos, táticas e
treinamentos específicos para a nova organização guerrilheira?
Ou seja, há demandas nas letras, nas palavras.
Na epístola também há, um tempo. 20 Apressado,
imediato, inadiável, corrido, que fica bem explícito na
passagem: “É chegado o momento(!)”. É um tempo individual,
próprio do remetente, do “eu”, de si, mas necessariamente
provocado e inspirado nos problemas da sociedade, da
coletividade: “o dilema é realmente submissão ou rebelião,
pacificismo ou luta armada, organizar o povo para a violência,
legítima e necessária, ou ficar no conformismo, a reboque da
burguesia”, prossegue Marighella, para em seguida, se declarar,
mostrar um “eu” decidido, assumindo sua posição: “Diante deste
dilema já temos uma posição definida. Somos pela luta armada e
42
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão
pela unidade das forças revolucionárias, e por isso mesmo
estamos juntos”.21 Este trecho deixa claro que o autor
compromete-se, assina um contrato, dá sua palavra [escrita] de
honra sob condições estabelecidas entre as partes em contatos
anteriores. Daí a sua característica principal ser um documentotestemunho, que fica ainda mais explícita pelo fato de estar
arquivada como pertencente ao acervo da antiga Delegacia de
Ordem
Política
e
Social
de
São
Paulo
(DOPS-SP),
provavelmente encontrada com algum militante preso.
O futuro mostraria que as letras revolucionárias escritas
por Carlos Marighella em setembro de 1967 eram mesmo para
valer. Em dezembro daquele ano, sua organização guerrilheira
dava início às ações, interceptando um carro que transportava
dinheiro em São Paulo. Nos anos seguintes, ações contra
instituições financeiras foram a principal marca da ALN, sendo
uma das mais impressionantes, a efetuada contra o trem pagador
em agosto de 1968.22 A morte física de Meneses – codinome
utilizado na guerrilha – aconteceria em novembro de 1969
depois de ter sido emboscado pela equipe do delegado Sérgio
Paranhos Fleury, em São Paulo. 23
Seu Patrício, a quem escreveu a carta, não entraria em
ação propriamente, mas foi um dos personagens mais
emblemáticos do período da ditadura civil-militar no Brasil,
43
Anderson da Silva Almeida
sendo constantemente vigiado no exílio – inclusive pelo Centro
de Informações do Exterior (CIEX), pertencente ao Itamaraty. 24
Aragão permaneceu quinze anos exilado, passando por países
como Uruguai, Cuba, China, Argélia, Chile e Portugal. Ao
retornar ao país, em outubro de 1979, foi preso no Aeroporto,
mesmo com a lei da anistia já aprovada. Seu passado como excomandante dos fuzileiros navais do governo João Goulart ainda
pesava naquele momento. No entanto, não é absurdo
pontuarmos que ter sido um dos destinatários de uma carta tão
emblemática escrita por aquele que é considerado por muitos o
maior nome da esquerda armada brasileira – ao lado de Carlos
Lamarca –, contribuiu para sua prisão. Aragão faleceria em
novembro de 1998, no ostracismo.
Naquele mesmo ano, em março, um livro histórico dos
fuzileiros navais já havia o “assassinado”. Entre dezembro de
1963 e março de 1964, período no qual Aragão foi o
comandante máximo daquela tropa, ninguém. Nenhum nome,
nenhuma pintura, nenhuma medalha. Silêncio, só o silêncio.
Silêncio das letras, silêncio das imagens, silêncio na imagem.
Aragão é a foto que falta no álbum. 25 O álbum dos exemplos a
serem seguidos. O panteão dos que foram escolhidos pela
instituição como símbolos de liderança, de inteligência, de amor
44
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão
à pátria e de dedicação à Marinha, ou seja, a galeria dos heróis.
Os heróis construídos.
Carlos Marighella já teve sua trajetória recuperada em
livros, reportagens e filmes. Logicamente como mártir das
esquerdas e inimigo das direitas. Aragão, talvez por não ter
entrado em ação, ainda permanece no ostracismo. Diga-se de
passagem, que é um caso emblemático de silêncios ambidestros.
Curioso é que em sua conclusão epistolar, o comunista
baiano já refletia sobre o futuro [do Brasil e de ambos] ao
pronunciar sua vontade de deixar por escrito sua decisão:
Era este o pronunciamento que eu desejava deixar
por escrito nas mãos do estimado patrício e
companheiro, com o pensamento voltado para a
libertação do Brasil e confiante em que não será em
vão o esforço em favor da unidade das forças
revolucionárias e patrióticas.26
Saudações Revolucionárias
Carlos Marighella.
Conclusão
Mais uma vez, cabe aqui a referência a Angela de Castro
Gomes, no sentido de que o historiador ou o pesquisador que se
propor a ver a escrita epistolar como fonte e como objeto, terá
um rastro multiplamente rico em vários aspectos.27 A carta em
45
Anderson da Silva Almeida
análise trouxe o extraordinário, uma decisão, um testemunho.
Mas explicita também relações pessoais, ideias, culturas
políticas, demandas, posicionamentos, segredos, linguagens,
vocabulários, imagens. Ela é também um documento – em todos
os seus aspectos de significados, materiais e de arquivamento.
No entanto, interessa principalmente aos historiadores e
pesquisadores do período e interessados também na metodologia
e epistologia da História, a questão das temporalidades. E nesse
sentido, nós temos nessa fonte, pretérito e presente; presente e
futuro, dialogando constantemente, sem linearidade. Tudo o que
caracteriza uma boa fonte histórica, levando-se em conta, é
claro, o contexto e as condições em que foi produzida,
reproduzida e preservada.
Notas de Referência

1
2
46
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense (UFF), orientado pela Professora
Doutora
Samantha
Viz
Quadrat.
Contato:
[email protected]
GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da História. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 08.
Para uma introdução refinada desse indivíduo moderno, ver GOMES,
op. cit. p. 11-14; HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e
resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Felinto
Müller. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – PPGAS/UFRJ, Rio
de Janeiro, 1997. Já para a produção historiográfica, cito como exemplo
o próprio livro organizado por Angela de Castro Gomes, Escrita de Si,
escrita da história, que já se tornou referência nos estudos das práticas
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
de produção do eu, como também as obras: Refúgios do eu: educação,
história, escrita autobiográfica, organizada por MIGNOT, Ana
Christina; BASTOS, Maria Helena C. e CUNHA, Maria Teresa Santos.
Florianópolis: Mulheres, 2000; e Memórias e narrativas (auto)
biográficas, organizada por GOMES, Angela de Castro e SCHMIDT,
Benito Bisso. Rio de Janeiro: Editora FGV/ Porto Alegre: UFRGS,
2009.
GOMES, op. cit. 2004, p. 19. Grifos do original.
GONTIJO, Rebeca. “„Paulo amigo‟: amizade, mecenato e ofício de
historiador nas cartas de Capistrano de Abreu”. In GOMES, Angela de
Castro (org.). Escrita de Si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004, p.164.
Ibid. Grifo do original.
Ibid. Grifo do original.
Ibid, p. 21. Além das questões citadas, temos: Qual o seu ritmo e
volume? Tendo em vista que temos somente uma carta, essa estratégia
não se aplica a este texto.
Carlos Marighella entrou para o Partido Comunista aos 18 anos e como
deputado, participou da elaboração da Constituição de 1946. Ver
ROLLEMBERG, Denise. “Carlos Marighella e Carlos Lamarca:
memórias de dois revolucionários”. In FERREIRA, Jorge e REIS
FILHO, Daniel Aarão (orgs.). As esquerdas no Brasil. Revolução e
democracia. Vol. 3. 1964...Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
Versão
eletrônica
disponível
em:
http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/Carlos_Marighella_e_C
arlos_Lamarca.pdf, p. 01-02.
Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social,
documento 30-Z-160-12.269.
SALES, Jean Rodrigues. A luta armada contra a ditadura militar: a
esquerda brasileira e a influência da revolução cubana. São Paulo:
Perseu Abramo, 2007, p.60-61.
Ver GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – as esquerdas
brasileiras: das ilusões perdidas à luta armada. 2ª ed. São Paulo: Ática,
1987; SALES, Jean. op. cit.; ROLLEMBERG, Denise. O apoio de
cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de
Janeiro: Mauad, 2001.
ROLLEMBERG, Denise. op. cit. 2001, p.40.
José Anselmo dos Santos – o “cabo” Anselmo – era sergipano de
nascimento e ingressara na Marinha em 1958 na Escola de AprendizesMarinheiros da Bahia. Em maio de 1963, foi eleito para a presidência da
47
Anderson da Silva Almeida
14
15
16
17
18
19
48
Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB). Em
25 de março de 1964, quando se comemoraria o segundo aniversário da
entidade, cerca de dois mil marinheiros e fuzileiros rebelaram-se em
virtude de o ministro da Marinha, almirante Sylvio Motta, ter mandado
prender membros da diretoria dias antes. A rebeldia dos marinheiros em
não regressar para os navios exigia ainda que a AMFNB fosse
reconhecida e outras inúmeras reivindicações. Após o Golpe de 1964,
Anselmo foi expulso, exilado e fez treinamento guerrilheiro em Cuba.
No entanto, o que marcaria seu nome na história recente do Brasil, seria
sua traição aos membros das organizações armadas, atuando como
agente duplo.
BN- Jornal do Brasil, 04 de ago. 1967, p.02. Para outra cobertura da
imprensa, ver também Jornal Última Hora, dias: 02 de ago. 1967, capa
e p.08; 04 de ago. capa e p.07. Disponível em:
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/uhdigital/pesquisa.php. Consultado
em 21 out. 2009.
Marighella já havia escrito Por que resisti à prisão, em 1965, sobre o
episódio em que foi ferido em 1964 após o Golpe, e A crise brasileira,
escrito em 1966. Neste último, ele já propunha [mas não decidira aderir
na prática] a luta de guerrilhas acopladas ao movimento camponês.
GORENDER, op. cit, p.95.
Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social,
documento 30-Z-160-12.269.
Ibid.
ROLLEMBERG, Denise. op. cit. 2007 p. 04. Nota do autor: De acordo
com a teoria do foco guerrilheiro, este deveria ser desencadeado a partir
de uma região estrategicamente favorável ao desencadeamento da luta
armada, onde um pequeno grupo de guerrilheiros realizaria as primeiras
ações armadas do processo revolucionário. A partir das ações do
contingente e do apoio das massas camponesas entre as quais se
realizaria a propaganda armada, seriam criadas as condições necessárias
para a transformação da região numa zona de guerrilhas, permitindo o
surgimento de novas zonas de guerrilhas e ampliando sua zona de ação,
dando-se assim os primeiros passos para a construção do Exército
Popular Revolucionário (...). Dois livros teriam influenciados a esquerda
brasileira a aderir ao foquismo: A guerra de guerrilhas de Che Guevara
(1961) e Revolução na revolução (1967), do francês Régis Debray. Cf.
SALES, Jean Rodrigues. op. cit. 2007, p.69; 91-92.
Ibid.
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante Aragão
20
21
22
23
24
25
26
27
Ver HÉBRARD, Jean. “Por uma bibliografia material das escrituras
ordinárias”. In MIGNOT, Ana Cristina V.; BASTOS, Maria Helena C. e
CUNHA, Maria Teresa Santos (orgs.). Refúgios do eu: educação,
história, escrita autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000, p.30.
Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social,
documento 30-Z-160-12.269.
GORENDER, Jacob. op. cit. p. 98.
Ibid, p. 175.
SEQUEIRA, Cláudio Dantas. “O serviço secreto do Itamaraty”. Correio
Brasiliense,
22
de
jul.
2007.
Disponível
em:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2007/07/757-o-itamaratycolaborando-com.html. Consultado em 10 ago. 2010.
A imagem em questão encontra-se em: FUZILEIROS NAVAIS:
combatentes anfíbios do Brasil. Rio de Janeiro: Action Editora, 1997,
p.143.
Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ordem Social,
documento 30-Z-160-12.269.
GOMES, Angela de Castro. op. cit. 2004, p.21.
49
Anderson da Silva Almeida
50
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
André Inácio de Assunção Neto
A diversidade complexa
Na metade final da década de 1970 algumas publicações
de histórias em quadrinhos na Espanha trazem na capa um
registro (“para adultos” – Ilustrações 1 e 2) que pode ser tomado
como emblemático de uma série de mudanças editoriais,
artística e de consumo, mas também de mudanças sociais e
políticas em uma Espanha que vivia quarenta anos sob regime
autoritário. O registro em si não diz muita coisa, mas se
voltarmos a atenção para os diversos elementos ligados à
impressão na capa das revistas das palavras “para adultos”,
poderemos entender melhor essa reificação que alcançará seu
ápice nos anos oitenta.
O lançamento de revistas como “1984”, “Totem”, “El
Víbora”, “Cimoc”, “Cairo” demonstram um novo cenário
insólito de publicações na Espanha. Mas esse processo de
publicações mais ousadas se torna possível muito pelo fato da
censura já estar em seu processo de definhamento, apesar de
ainda ter força suficiente para gerar diversos constrangimentos.
Em 1972 já é possível observar uma ampliação da circulação de
André Inácio de Assunção Neto
quadrinhos satíricos, como é o caso do semanário sobre esportes
“Barrabás”, onde através de narrativas gráficas se dava um
novo tratamento à crítica ao mundo dos esportes; tratamento que
no ano seguinte se aplicou a crônica da atualidade por meio da
revista “El Papus”, nascida na mesma fonte que a anterior,
aproveitando o que naqueles anos se chamou popularmente de
“a abertura” do regime franquista, já no fim, para canalizar o
humor até a sátira político-social e erótica, limitada ainda pelas
travas que o sistema político seguia impondo. 1 As revistas
underground, em geral auto-produzidas, também passam a se
arriscar com publicações de histórias centradas na sátira ácida,
com as temáticas preferidas desse segmento: drogas, sexo e
crítica social. É o caso de “El Rrollo enmascarado”, que tinha
entre sua equipe criativa Nazario; escritor que se tornaria
bastante conhecido anos depois por seu personagem travesti
Anarcoma, publicado nas páginas de “El Víbora”.
Nos anos sessenta houve algumas tentativas de
publicações exclusivas para adultos que, entretanto, eram
amortizadas pela ferrenha censura. É o caso das revistas “Can
Can”, “El DDT” e “Mata Ratos” (e outras publicações que
seguiram seus traços) de 1963, 1964 e 1965, respectivamente,
que se auto-apresentavam como revistas para adultos, embora o
52
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
conteúdo, basicamente humorístico, não trouxesse, como
diferencial, nada além de inocentes e distantes pitadas eróticas.
De forma crítica, podemos dizer que os verdadeiros
quadrinhos para adultos são os com conteúdo mais complexo,
dotados de exposições explicitas de uso de drogas, pornografia,
críticas aos diversos elementos que constituem o status quo da
sociedade espanhola da época. Essas publicações assumiam,
estrategicamente,
uma auto-representação
que situava a
narrativa desenhada como forma legítima de arte, com
abordagens mais esteticistas em narrativas fantásticas, com
elementos da ficção-científica ou de histórias de espada e magia,
bem como de histórias satíricas com composições burlescas e
escatológicas, para citar apenas alguns elementos, de forma
reducionista, haja vista a diversidades de conteúdos. Os
quadrinhos para adultos, de fato uma novidade na Espanha do
final dos anos setenta, só vão se materializar na leva de
publicações que surgem por impulsos editoriais específicos, e
praticamente minoritários, se pensarmos a baixa tiragem dos
títulos; no entanto, dizer que a força desse cenário que surge
esteja apenas nos investimentos editoriais (abrindo também
possibilidades para incrementações artísticas) que se arriscam a
publicar quadrinhos para adultos, seria desconsiderar que essas
publicações vão interessar a leitores, que vão consumi-las e
53
André Inácio de Assunção Neto
tornar esse um segmento fértil e lucrativo para as editoras e para
os artistas.
Ilustrações 1 e 2 – Nas capas o
registro “para adultos” que,
além de advertência, é
também
uma
estratégia
editorial. Arte de Nazario
(acima) e de Richard Corben
(abaixo) para os primeiros
números das revistas “El
Víbora” (1979) e “1984”
(1978),
respectivamente.
Barcelona:
Ediciones
La
Cúpula, 1979; Barcelona:
Tourtain Editor, 1978.
Um desvio esclarecedor
Façamos um desvio momentâneo para esclarecer uma
questão. Não existem conteúdos que em si sejam mais
adequados para adultos ou para crianças. A própria noção de
infância – com todo o conjunto de relações que a torna um
período diferenciado da vida humana, que traz inclusive regras
que limitam e orientam, sugerindo atitudes e conteúdos mais ou
menos adequados para esse período da vida – deve ser pensada
54
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
como um processo de atribuição de sentido, datado, onde dentro
de um meio cultural, através de diversas práticas, os homens
passam a enxergar um objeto através de uma configuração
particular, sobre o qual constituem suas ações. Em outras
palavras, em uma época específica, o conjunto das práticas
engendra, sobre tal ponto material (o corpo humano na
“primeira fase” da vida), um rosto histórico singular em que
acreditamos reconhecer; mas em outra época, será um rosto
particular muito diferente que se formará no mesmo ponto, e,
inversamente, sobre um novo ponto, se formará um rosto
vagamente semelhante ao precedente.2
“Não existe a infância através da história” é algo que
pode ser categoricamente dito da mesma forma que não existe
adolescência ou juventude através da história. A infância é uma
invenção “recente” e está sujeita ao “desaparecimento”, basta
que as práticas mudem de tal forma que isso que entendemos
por infância não faça mais nenhum sentido, já que em uma nova
configuração de práticas os sentidos serão outros. No livro O
grande massacre de gatos Robert Darnton escreve algo que
pode tornar mais claro o que quero dizer com a questão da
recusa a um objeto natural. Ele propõe que no século XVIII
famílias inteiras se amontoavam em duas camas e se cercavam
de animais domésticos para se manterem aquecidos.
55
André Inácio de Assunção Neto
Assim, as crianças se tornavam observadores
participantes das atividades sexuais de seus pais.
Ninguém pensava nelas como criaturas
inocentes, nem na própria infância como uma
fase diferente da vida, claramente distinta da
adolescência, da juventude e da fase adulta por
estilos especiais de vestir e de comportar. As
crianças trabalhavam junto com os pais quase
imediatamente após começarem a caminhar, e
ingressavam na força de trabalho adulta como
lavradores, criados e aprendizes, logo que
chegavam à adolescência.3
Dessa forma, os conteúdos produzidos na Espanha nos
anos setenta, inegavelmente originais tendo em vista tudo
produzido até então, são objetivados como conteúdos para
adultos, não porque esses conteúdos são naturalmente para
adultos, mas por que em um contexto social específico (portanto
histórico) uma série de elementos funciona como apropriados
para a leitura de adultos e não para crianças.
Algumas proposições
A compreensão do porquê o surgimento de quadrinhos
para adultos na Espanha (com tudo o que os acompanha em
termos artísticos) ser considerado algo tão original, ao ponto de
ser amplamente valorizado como um momento áureo da história
da narrativa desenhada nesse país, se explica muito pelo fato de
56
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
que nunca se produziu e publicou nada com tanta qualidade
estética, narrativa e amplamente livre de qualquer restrição dos
aparelhos de censura.
Vejamos
alguns
aspectos
da
especificidade
que
diferencia a conjuntura dos anos setenta, onde surgem as HQs
para adultos, em relação aos anos anteriores.
Desde seu surgimento, a produção dos quadrinhos esteve
atrelada a uma necessidade de mercado, ou seja, os meios
editoriais4 visando produzir histórias mais comerciais e de fácil
degustação, para alcançar o máximo de leitores, encomendavam
determinados “formatos” aos artistas (em muitos casos os
editores solicitavam aos artistas uma mimetização de estruturas
que estavam em evidencia e, portanto, vendendo mais), que
produziam, então, sob essa “tensão”. É verdade também que os
artistas podiam produzir suas histórias sem imposições editoriais
diretas, embora se quisessem vender seu material, as histórias
tinham que estar de acordo com as possibilidades de publicação
dentro do território espanhol; por outro lado, alguns preferiam
enviar suas histórias para o exterior na esperança de
reconhecimento e de melhor remuneração.
A hegemonia da editora Bruguera entre as décadas de
1950 e 1960, com sua política bastante comercial, arrebanhou
praticamente uma geração inteira de roteiristas e desenhistas.
57
André Inácio de Assunção Neto
Em um texto da revista Historia de los comics, o desenhista
Manuel Vázquez, em tom irônico, diz algo sobre a situação dos
produtores de histórias em quadrinhos nos anos sessenta:
Transcorria a década de 1960. Em Barcelona,
onde no momento eu completava meus bons 11
anos de martírio editorial, a indústria de comics e
de livros de bolso estava praticamente
monopolizada por uma editora em que eu
colaborava (como absolutamente quase todos os
desenhistas da época) e de cujo nome não
gostaria de me lembrar jamais. Naqueles tempos
qualquer desenhista podia trabalhar naquela
santa casa, já que seu editor era um verdadeiro
pai para nós todos. Pai postiço, porém pai. Se
não pagava muito, tenho que reconhecer que
jamais quis fazer valer seu direito “senhorial” e
se conformava humildemente apenas com que
lhe cedêssemos os direitos; todavia, o desenhista
tinha a satisfação de ver seus trabalhos
publicados na mesma editora, não uma, mas
várias vezes. Pedir que pagassem por cada vez
que o trabalho era publicado seria abusar de sua
boa fé, coisa que, por outro lado, seria
impossível, já que do assunto cuidava uma
espécie de robô com forma quase humana, o
gerente da editora, e do qual me lembro só de
uma demonstração de humanidade: quando ficou
sabendo da morte de Hitler, deixou escapar uma
lágrima. Entretanto, tenho que reconhecer que
apesar da escassa remuneração pelos trabalhos,
os desenhistas conseguiam ir vivendo [...] e ao
longo dos anos conseguiram duas coisas: 1ª,
demonstrar que ninguém era original e que todos
se copiavam uns aos outros; 2ª,dar-me uma fama
internacional de acomodado (homologada em
Nova York, Hong-Kong e Badalona) que perdura
até os dias atuais. Obrigado pessoal, nunca os
esquecerei.5
58
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
O texto de Vazquez demonstra alguns aspectos que nos
interessam: 1) o monopólio editorial das publicações de
quadrinhos, que certamente se trata da editora Bruguera, para
quem Vázquez publicou até os anos setenta; 2) as regras em
relação aos direitos autorais estavam configuradas de forma que
os direitos sobre as produções pertenciam às editoras, que então
podiam fazer o que bem entendessem com o material; 3) o
pagamento pelas produções não era dos melhores, o que
demonstra a situação marginal da profissão no período; e
finalmente, 4) a falta de originalidade nos trabalhos publicados,
onde, se alguém publicasse algo em algum aspecto mais original
era logo rigidamente copiado – a cópia em si não é a questão,
afinal, o mimetismo é um processo imanente a produção
artística, mas nesse caso o uso dos discursos (em algum sentido
mais originais) produzidos resultavam em cópias, isto é, eram
usados como modelos que resultavam em apropriações nada
originais - salvo raros casos.
Nos anos setenta a situação é outra. Além de serem
reconhecidos os direitos autorais dos artistas sobre seus
trabalhos (que antes ficavam sob a tutela da editora), novas
editoras investem em produções mais ousadas, pondo em
circulação no mercado revistas e livros com maior qualidade
59
André Inácio de Assunção Neto
gráfica e dão liberdade para os artistas produzirem suas
histórias. Duas editoras lideraram a renovação: por um lado, a
Editora Ikusager – sob o comando de Ernesto Santolaya –
promove basicamente criações de artistas espanhóis e se centra
em livros com alta qualidade gráfica; em 1981, depois de uma
expansão, a editora lança a revista “Cimoc”, com periodicidade
mensal, que traria em suas páginas os mais diversos gêneros,
indo do western a histórias de guerra, passando do policial ao
histórico. Por outro, a agência de Josep Toutain, um editor
bastante experiente, e há anos envolvido com o envio de
material de artistas espanhóis para o exterior, funda seu próprio
selo de publicações e lança na Espanha revistas com histórias já
consagradas no exterior e até então desconhecidas dentro do
território espanhol (por razões de censura, mas também
industriais). Sob o selo e os investimentos de Toutain títulos da
Warren Publishing 6 e produções de Moebius, Milo Manara,
Hugo Pratt, Guido Crepax, Will Eisner, Robert Crumb, Richard
Corben puderam então ser publicadas na Espanha nas páginas
das revistas “1984”, “Creepy”, “Totem”, “El Víbora”, etc., e em
encadernados especiais; além disso, autores que posteriormente
seriam consagrados no cenário espanhol, e também no
internacional, publicam suas histórias nos títulos da editora: é o
caso de Josep Maria Beá e de Fernando Fernández, que além da
60
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
arte belíssima e extremamente realista, produzem histórias no
solo do fantástico e da ficção-científica que estão entre as
melhores dessa geração de escritores.
Ilustração 2 – O protesto em prol de liberdade de
expressão na segunda edição de “El Víbora” é
demonstrativo de que em 1979 a censura, mesmo que já
bastante enfraquecida, ainda mantinha forças e atuava
efetivamente. “El Víbora”, nº2, 1979.
61
André Inácio de Assunção Neto
A possibilidade de criar suas histórias sem as imposições
editoriais de outros tempos permite aos escritores explorar a
diversidade de gêneros literários e cinematográficos em
apropriações
inegavelmente
anteriormente
nas
histórias
astuciosas,
em
jamais
quadrinhos
vistas
espanholas.
Concomitante às produções mais autorais, vão aparecer os
discursos situando a narrativa desenhada como forma legítima
de arte.
O próprio Toutain na primeira edição de “El Víbora”
tenta definir o que é essa linguagem e afirma, no intuito de
legitimação, que é um meio artístico tão digno quanto qualquer
outro; pode ser superado em muitos aspectos, embora seja
insubstituível em outros. Esse parece ser um impulso comum
nos anos setenta em diversas partes do mundo. É possível ver
esforços similares anos antes na revista francesa Metal Hurlant,
e anos depois no livro de Will Eisner Comics and sequential art,
onde o autor norte-americano, há anos discutindo o assunto na
Escola de Artes Visuais de Nova York, procura chamar os
comics de sequential art, buscando positivar a relevância
artística das histórias em quadrinhos.
62
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
Ilustração 3 – Nazario escreve um dos personagens mais
ousados do período. Em uma história detetivesca que se
passa no subúrbio de Barcelona, aborda, sem pudores, o
universo homossexual onde a personagem principal é
um travesti. Roteiro e Arte de Nazario para
“Anarcoma”. “El Víbora”, nº2, 1979.
Ainda enumerando questões para entendermos o
ambiente que torna possível a emergência dos quadrinhos para
adultos na Espanha é preciso lembrar a censura, que é outro
fator que constrangeu fortemente o aprimoramento da narrativa
desenhada. Alguns conteúdos eram expressamente proibidos –
63
André Inácio de Assunção Neto
como aconteceu a em 1966 com a longeva série “El guerrero del
antifaz”, de Manuel Gago García, que ficou proibida de
representar armas em suas histórias 7 – e mesmo na década de
1970, quando o regime autoritário definhava e dava lugar a
democracia,
várias
perseguições
e
condenações
foram
perpetradas a artistas que se arriscavam a conteúdos vetados
pela censura. No segundo número da revista “El Víbora”, de
1979, a quarta página traz um protesto contra prisões de artistas
realizadas por “atentado contra a religião” (Ilustração 2).
O fato de aparecer um protesto estampado nas páginas da
revista, sem falar em todos os conteúdos produzidos nesse
período, indo do pornográfico ao escatológico, mostra que a
censura já não era tão feroz e temível como em outros tempos,
embora ela existisse e freqüentemente mostrasse suas garras. A
própria “El Víbora” foi vítima da censura; seu nome seria
Goma-3 (uma tiragem com esse título chegou a ser impressa),
mas o título foi vetado por se tratar do nome de um explosivo.
Por fim, há ainda um ponto que merece atenção. Essa
evolução das histórias em quadrinhos na Espanha se dá em um
contexto de luta por liberdade após quarenta anos do regime
franquista. Uma parcela da população – principalmente jovens,
intelectuais e estudantes – insatisfeita com a situação social e
política do país se põe a agir das mais variadas formas e, mais
64
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
intensamente após a morte de Francisco Franco, desafia os
diversos níveis de imposições restritivas que até então
vigoravam. O resultado disso é um amplo processo efervescente
de busca por prazeres (aos moldes da tríade contracultural norteamericana: sexo, drogas e rock’n’roll) e de produções nas mais
variadas áreas artísticas: cinema, teatro, quadrinhos, literatura,
pintura e etc. Nasce daí Pedro Almodóvar, Fernando Márquez
(El Zurdo), Millás, Carlos Berlanga, entre outros.
Esse momento de efervescência cultural no final dos
anos setenta, que se deu de forma efetiva em algumas capitais
espanholas, foi batizado de La Movida (ou também Rollo ou
Reinaixença, variando de acordo com a região). Almodóvar em
uma entrevista para o jornalista Rafael Cervera diz algo sobre o
que foi La Movida:
É difícil falar de La Movida e explicá-la para os
que não viveram estes anos. Não éramos uma
geração, nem um movimento artístico, nem um
grupo com ideologia concreta, éramos
simplesmente um montão de gente que vivia em
um dos momentos mais explosivos do país, e de
Madri em particular. [...] Como dizia, houve um
momento em que de repente as pessoas perdem o
medo da polícia, dos vizinhos, da própria família,
do ridículo, e delas mesmas. Constata-se que
Franco morreu de verdade há dois anos e isso
provoca uma explosão de liberdade enorme em
todo o país, ainda que eu me refira sempre a
Madri e ao pequeno círculo no qual eu me
movia.8
65
André Inácio de Assunção Neto
É dentro desse turbilhão de acontecimentos que os
quadrinhos na Espanha alcançam sua maturidade. Algumas
produções trazem, de forma mais explícita, as marcas das
mudanças sócio-políticas do período e da sensação de liberdade
que acomete essa geração de escritores e desenhistas. Embora
haja também artistas mais preocupados em aprimoramentos
estéticos e gráficos, ou na utilização original de gêneros e da
própria linguagem por qual narram suas histórias.
Logicamente que não quero sugerir aqui que qualquer
artista gráfico que produzia comics para adultos na Espanha nos
anos setenta possa ser enquadrado no que se chama de La
Movida, que é um nome genérico para uma série de práticas
bastante localizadas de grupos distintos, no entanto, não se pode
desconsiderar que diversos artistas de quadrinhos estivessem
envolvidos com esses grupos. De outra forma, se La Movida for
pensada como uma espécie de “renascença” cultural espanhola,
no sentido de que as pessoas não se preocupavam mais com a
censura e simplesmente produziam o que bem entendessem, de
acordo com a disposição e as possibilidades, talvez a explosão
da narrativa desenhada para adultos possa ser enquadrada aí;
mas isso não diria muita coisa sobre as particularidades desse
gênero específico e da configuração particular do campo com
agentes distintos, muitas vezes desarmônicos, buscando produzir
66
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
suas histórias e conquistar não só capital monetário, mas
também simbólico.
As histórias em quadrinhos na Espanha no final dos anos
setenta até meados dos oitenta vivem momentos de tamanha
expressividade por meio dos títulos para adultos, abrindo novas
possibilidades editoriais e artísticas. O interesse dos leitores por
essas publicações também estão entre os motivos centrais para o
triunfo dos novos tipos de histórias. Entretanto, como vimos ao
longo do texto, são diversos os elementos, todos importantes,
que constituem o espaço de possibilidade para a emergência dos
quadrinhos para adultos e tudo o que representam no universo
de produtores e leitores no território espanhol.
Notas de Referência

1
2
3
4
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), orientado pela
Professora Doutora Andréa Casa Nova Maia. Contato:
[email protected] Bolsista CAPES.
COMA, Javier (org.). História de los comics. Barcelona: Toutain Editor,
1984, Fascículo 41.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a
história. 4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988.
DARNTON, Robert. Histórias que os camponeses contam: o significado
de Mamãe Ganso. In: O grande massacre de gatos e outros episódios da
história cultural francesa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 47.
É importante deixar claro que “meios editoriais” são pensados aqui não
como uma unidade essencial que funciona harmoniosamente, mas sim
os indivíduos-agentes em toda a sua diversidade se relacionando imersos
67
André Inácio de Assunção Neto
5
6
7
8
68
em uma conjuntura contingencial particular, sobre qual agem, e onde
alguns são mais talentosos que outros.
COMA, Javier (org.). História de los comics. Barcelona: Toutain Editor,
1984, Fascículo 41.
Editora norte-americana que durante a década de 1960, pouco se
importando com o Comics Code Authority, retomou a linha editorial
popularizada pela EC Comics com publicações dos gêneros de ficção
criminal, horror, sátira, ficção militar e ficção científica.
COMA, Javier (org.). História de los comics. Barcelona: Toutain Editor,
1984, Fascículo 38.
CERVERA, Rafael. Alaska y otras historias de La Movida. Barcelona:
Plaz & Janés, 2002.
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Modelo Político de Alexandre, O Grande na Roma do
Século II d.C.: Perspectivas Teóricas na Anábase de
Alexandre Magno de Arriano de Nicomédia
André Luiz Leme
Quando realizamos a leitura da obra Anábase de
Alexandre Magno, composta pelo grego Arriano de Nicomédia
(cerca de 90 – após 145/6 d.C.) 1 na primeira metade do século
II d.C., nossa primeira impressão é a de uma narrativa que
simplesmente ordenou os acontecimentos da notável expedição
militar do rei macedônio. No entanto, tal escrito possuía, no
tempo de Arriano, uma inteligibilidade própria, atribuindo-lhe
um potencial teórico instrutivo em relação à discussões sobre a
política e o poder em seu tempo. Consideramos, portanto, a obra
de Arriano enquanto uma proposta historiográfica. Desde
Tucídides o discurso histórico sobre o passado ganhava uma
espécie de função social: servia de amparo aos homens que, no
presente ou no futuro, deveriam lidar com situações semelhantes
ou iguais àquelas já ocorridas no passado 2. Políbio também
ressaltou a importância do paralelo passado/presente quando se
avaliava as circunstâncias do momento3, novamente ressaltando
a idéia de utilidade do discurso histórico. Este, para ser útil e
servir aos homens, deveria, necessariamente, apresentar relatos
André Luiz Leme
verdadeiros, amparados no rigor crítico e metodológico do
historiador. Arriano, logo ao início de sua obra, deixa claro aos
leitores que seu escrito era verdadeiro, tendo em vista a crítica e
manuseio das fontes que fez4; além disso, propunha através dele
servir à humanidade com alguma utilidade 5.
Podemos, a partir dessas considerações, propor um olhar
diferenciado sobre a obra de Arriano, buscando entrever uma
narrativa que, através da escrita historiográfica, levantava
perspectivas teóricas sobre o comportamento e as ações de um
governante.
Boas
ou
ruins,
tais
perspectivas
seriam,
invariavelmente, pertinentes e adequadas em relação ao
panorama político de seu tempo de composição. Como, então,
poderíamos encontrá-las na obra? Devemos, antes de tudo,
procurar as regularidades: momentos no quais Arriano atribua
uma mesma característica ao personagem Alexandre. Dessa
forma, vislumbramos a subjetividade do autor na construção de
seu trabalho, bem como seu desejo em incutir no leitor
determinado pensamento. No seguimento realizamos tal
exercício de análise tendo por base uma questão principal: quais
aspectos legitimavam Alexandre em sua posição no poder? Para
tal, vejamos alguns momentos da expedição de Alexandre,
especialmente indicativos para o tema de estudo.
70
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Modelo Político de Alexandre
Nosso
primeiro
caso
de
interesse
aconteceu
imediatamente após a ascensão de Alexandre ao poder. De fato,
após a morte de seu pai, Filipe II, o novo rei macedônio
enfrentou grandes dificuldades para assegurar sua ascensão e
legitimação no poder. Durante esse momento, Alexandre teve de
se direcionar à região da Trácia, onde algumas tribos, até então
dominadas pelos macedônios, acabaram se rebelando. No
desenrolar dessa campanha, um momento específico nos
chamou atenção: a batalha do monte Hemo. Nesse instante, o rei
macedônio e seu exército encontravam-se em perigo devido à
ação de alguns rebeldes que, a partir de uma posição estratégica
(o monte Hemo), ameaçavam jogar carros de guerra sobre eles.
Diante dessa situação:
Alejandro estudió otras maneras de atravesar por el
monte con mayor seguridad para sus tropas, pero,
convencido de que no existía otra opción, decidió
arrostrar el peligro, ya que por ninguna otra parte
había acceso. Con todo, hizo a sus hoplitas las
siguientes prevenciones: cuando vieran que los
carros se despeñaban cuesta abajo contra ellos, todo
el que tuviera vía libre debía romper la formación y
apartarse para dejar que los carros pasaran entre las
filas de soldados y fueran a estrellarse peñas abajo.
Les recomendó igualmente, que si algún grupo se
veía sorprendido y los carros se les venían encima,
debían agazaparte y echarse justo en que los carros
cayeran sobre ellos, pues así cabría esperar que los
carros saltaran por encima, debido al impulso que
llevaban, y pasasen de largo sin causarles daño.
Efectivamente, ocurrió tal y como Alejandro había
71
André Luiz Leme
supuesto, de suerte que parte de sus hombres, que
siguieron en todo sus consejos, rompieron la
formación; respecto a los demás, apenas sufrieron
daño, pues los carros rodaron sobre sus escudos. Ni
un solo hombre murió aplastado bajo ellos. 6
Nesse relato militar, vemos um Alexandre que agiu de
modo consciente, estudando suas opções de ação. Diante de uma
situação que não proporcionava muitas opções de ação,
Alexandre demonstrou coragem e se decidiu por enfrentar uma
situação perigosa. No entanto, essa decisão veio acompanhada
de várias prevenções e recomendações às suas tropas, momento
no qual Alexandre demonstrou que não agia por impulso,
possuindo sempre o controle da situação e das possíveis
adversidades que poderiam dificultar seu plano. Sua estratégia
compreendeu dois movimentos: 1) quando os carros fossem
jogados, os soldados deveriam se afastar, abrindo colunas,
justamente para que os carros passassem pelo meio deles e não
os atingissem diretamente; 2) se por algum motivo o choque
contra algum carro fosse inevitável, os soldados deveriam se
abaixar, esperando que os carros passassem por cima deles. O
segundo movimento é uma espécie de “plano B” para a situação,
mas o que nos chama atenção foi sua concepção: Alexandre
orientou suas tropas pautando-se em critérios racionais advindos
de uma observação e estudo da natureza, e por isso considerou
que os carros de guerra, devido ao impulso que levariam ao
72
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Modelo Político de Alexandre
descer o monte, poderiam muito bem saltar sobre os macedônios
e, assim, não infligir dano algum a eles.
Toda essa versatilidade do rei macedônio teve como
conseqüência o sucesso de sua empreitada, pois, como Arriano
assinalou, tudo ocorreu como ele, Alexandre, havia suposto que
ocorreria. De fato, não houve quaisquer surpresas imprevisíveis
para o rei macedônio. Mas ainda notamos outro aspecto
interessante ao final dessa passagem, uma espécie de lição
moral: aqueles que obedeceram ao rei macedônio, seguindo
totalmente os seus conselhos, conseguiram avançar de modo
seguro; quanto aos demais, que provavelmente não seguiram à
risca o plano principal e tiveram de se utilizar do “plano B”,
estes já sofreram alguns pequenos danos. Através dessa
interessante contraposição que acabamos de salientar, fica
também implícita a lição da obediência, a qual não pode faltar e
que só pode prejudicar àqueles que não a praticam e seguem
rigorosamente – especialmente em relação à um líder que se
demonstrava tão apto para enfrentar situações como essas.
Nosso próximo momento de análise também ocorreu
durante a perseguição aos povos rebeldes da região da Trácia.
Nessa empreitada, Alexandre teve de enfrentar uma situação
inusitada: perseguir bárbaros, trácios e ilírios, que haviam se
refugiado em uma ilha, no rio Istro, buscando proteção. Ainda
73
André Luiz Leme
que alguns poucos barcos tenham vindo, partindo de Bizâncio,
para ajudar Alexandre em sua chegada até a ilha, a situação
demonstrou-se muito mais complexa, como Arriano ressaltou:
La mayor parte de la isla era muy escarpada para
intentar un desembarco, y la corriente del río en
exceso impetuosa (y ello era natural, ya que en ese
punto el cauce del río se estrangula y se hace mucho
más estrecho). A la vista de ello, Alejandro decidió
retirar las naves, cruzar al otro lado del Istro, y
marchar contra los getas que por allí habitaban
(podía verlos en gran número sobre la otra orilla, y
calculó que serían unos cuatro mil jinetes y más de
diez mil infantes).7
Os aspectos naturais da região tornavam o desembarque
uma tarefa inviável na perspectiva do autor, o qual reiterou, a
partir de uma observação própria, o estreitamento natural que o
rio apresentava naquele lugar. Alexandre, consciente dessas
adversidades e do perigo real que elas representavam, decidiu
então cruzar o rio Istro e enfrentar outro povo bárbaro que
habitava a região, os chamados getas. No entanto, antes calculou
a dificuldade da tarefa pela quantidade de inimigos que ele
mesmo observara na margem oposta do rio. No seguimento,
Alexandre estabeleceu um procedimento para enfrentar a
situação, apresentado por Arriano da seguinte forma:
El plan de Alejandro era dispersarlos para poder
atravesar el río, empresa por la que sentía vivo
interés, y para la cual él mismo se había embarcado
74
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Modelo Político de Alexandre
en una de sus naves. Para llevar a cabo su plan,
realizó la siguiente operación: llenó de paja las
tiendas de cuero con las que solía construir el
campamento, y reunió todas las canoas hechas de un
solo tronco de árbol que solían utilizar los ribereños
(y de las que había conseguido un buen número, ya
que los indígenas las emplean para la pesca, para
hacer expediciones río arriba, y porque muchos se
dedican con ellas a la piratería); reuniendo, pues de
éstas el mayor número que pudo, comenzó así con
ellas la travesía de su ejército. Consiguió de esta
forma que pasaran a la otra orilla mil quinientos
jinetes y unos cuatro mil infantes.8
O Alexandre desse momento demonstrou-se movido por
um interesse peculiar, uma motivação especial que derivava da
sua própria vontade de alcançar objetivos e, conseqüentemente,
a vitória. Para isso, ele estabeleceu um plano, o qual
compreendia uma série de operações. O primeiro aspecto de seu
planejamento foi garantir a travessia segura de suas tropas pelo
rio Istro – assegurada por meio da busca e recolhimento de
canoas. Durante e depois desse momento, Alexandre continuava
demonstrando seu controle sobre a situação, orientando suas
tropas para as ações certas:
Llevaron a cabo la travesía durante la noche, por
donde había un crecido trigal que llegaba hasta el
mismo río, y gracias al cual pudieron pasar
desapercibidos. Bajo los primeros rayos del sol,
Alejandro condujo a sus hombres a través del trigal,
recomendando a los infantes igualar con sus sarisas
inclinadas la altura del trigo, e irse así abriendo
camino hacia el terreno no labrado.9
75
André Luiz Leme
O momento da travessia foi apresentado por Arriano
através de uma narrativa nitidamente dramática e repleta de
tensão. A estratégia de Alexandre compreendeu uma travessia
noturna: desse modo, passariam despercebidos. Quando do raiar
do sol, Alexandre fez recomendações aos seus soldados,
assegurando a marcha deles por um campo de trigo. Finalmente,
o momento do ataque do exército macedônio foi descrito por
Arriano de modo exaltado, como um grande trunfo do gênio de
Alexandre e de seu plano:
Los getas no resistieron siquiera el primer ataque de
la caballería; en efecto, la osadía de Alejandro (que
con toda facilidad había cruzado en una sola noche
el Istro, que es el mayor de los ríos, y eso sin tener
que tender un puente para su paso) les pareció
increíble, como terrible les pareció el cerco de la
falange y violento el ataque de la caballería.10
O termo “ousadia” utilizado por Arriano não pressupõe
uma atitude inconseqüente de Alexandre, pela contrário: o modo
como o rei macedônio lidou com a situação, organizou e
preparou racionalmente seu ataque tornou uma tarefa,
supostamente difícil, fácil. Arriano dimensionou a vitória de
Alexandre como uma superação da própria natureza, nesse caso
o rio Istro – o “maior” em seu pensamento. No desfecho dessa
ação vitoriosa, Arriano comenta que Alexandre ofereceu “un
sacrifício sobre la ribera del Istro a Zeus Salvador, a Heracles, y
76
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Modelo Político de Alexandre
al próprio rio Istro, cuya travesía le había resultado tan cômoda.
Aquel mismo día hizo retornar a todos sanos y salvos al
campamento”.11 Portanto, vemos que o zelo de Alexandre para
com seus companheiros garantiu a segurança de todos e o
sucesso de seu plano.
Nosso próximo momento de análise, comparado aos
anteriores, é bem posterior: ocorrera após o confronto entre
Alexandre e Dario. O rei macedônio, após sua vitória sobre o rei
persa e conseqüente perseguição de seu assassino, Beso, buscou
fortalecer sua posição de comando na longínqua região da
Sogdiana, enfrentando diversos grupos rebeldes e construindo
fortes militares. Nesse ínterim, surge uma situação interessante,
um grupo havia se estabelecido numa praça forte, uma
montanha, visando proteção frente à Alexandre, como
verificamos na seguinte passagem da narrativa de Arriano:
No hizo más que despuntar la primavera, cuando
Alejandro se dispuso a avanzar hacia la Roca
Sogdiana, en la que habían encontrado seguro
refugio, según informaciones a él llegadas, buen
número de sogdianos. La propia mujer de Oxiartes el
bactrio y sus hijas estaban en este refugio, según se
decía; allí las había llevado Oxiarte por ser un lugar
algo apartado e inexpugnable y que él mismo había
sublevado antes contra Alejandro. Estava
convencido Alejandro de que una vez tomada esta
posición fuerte nos les quedaría nada que hacer a los
sogdianos que pretendieran sublevarse. A medida
que se aproximaba a la roca, observó Alejandro con
gran sorpresa que resultaba prácticamente
77
André Luiz Leme
inexpugnable por todas partes, y que los bárbaros
habían conducido a su interior suficientes
provisiones para un largo asedio. De otra parte, una
gran nevada que había caído recientemente
dificultaba el acceso a los macedonios, al tiempo que
aseguraba aprovisionamiento de agua a los
bárbaros.12
O local onde se encontravam os rebeldes, entre os quais
se incluíam familiares do nobre bactrio Oxyartes, era
denominado de a “Rocha Sogdiana”. Esta fortaleza era tida
como inexpugnável, uma ótima posição estratégica de defesa.
Justamente por isso, Alexandre acreditava que, se tomada, não
haveria outras opções de proteção para aqueles sogdianos que
pretendessem se rebelar – uma visão prática para se acabar,
finalmente, com as revoltas.
No entanto, o olhar atento de Alexandre fez com que ele
percebesse uma série de obstáculos para a conquista dessa
fortaleza: ela era praticamente inacessível, não importando qual
parte dela se planejasse atacar; as pessoas em seu interior
estariam preparadas para um longo sítio, tendo em vista terem
conduzido grandes provisões alimentícias para o interior da
praça; por fim, havia acontecido uma grande nevada
recentemente, a qual dificultaria ainda mais o acesso para os
macedônios, ao mesmo tempo em que assegurava um melhor
fornecimento de água para os bárbaros. Alexandre, portanto,
levou em consideração todos esses fatores que, de certo modo,
78
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Modelo Político de Alexandre
dificultavam e muito a conquista da fortaleza na montanha.
Porém, mesmo diante dessas circunstâncias, Alexandre optou
sim por conquistá-la:
Aun con todos estos inconvenientes, Alejandro
decidió el asalto a la fortaleza. Habían hecho los
bárbaros declaraciones en extremo jactanciosas que
habían provocado en Alejandro un vivo interés por
alcanzar gloria en esta afanosa empresa. En efecto,
en el transcurso de unas entrevistas mantenidas para
procurar la salvación e retirada de los sitiados a
cambio de abandonar el fuerte, éstos, en tono de
burla, dijeron en su jerga bárbara a Alejandro que
buscara soldados con alas, con los que talvez podría
capturar la plaza, en la convicción de que ningún
otro mortal podría hacerla suya. Ante esto, hizo
proclamar Alejandro que para el primero que subiera
habría una recompensa de doce talentos, para el
segundo un segundo premio, otro para el tercero, y
así sucesivamente hasta el último que subiera, que
obtendría uno no menor de trescientos daricos. El
efecto de esta proclama no hizo sino avivar aún más
los ánimos de los macedonios, ávidos como ya
estaban por escalar la roca.13
Arriano transmitiu a idéia de que Alexandre estava sim
consciente de sua ação, pois sabia das dificuldades que
enfrentaria ao tentar conquistar a Rocha Sogdiana. O que
realmente teria motivado Alexandre a enfrentar o perigo foram
as declarações bárbaras, demasiadamente presunçosas: eles
teriam dito, em tom de chacota, que os macedônios precisariam
encontrar “soldados com asas”, pois somente assim teriam
condições de conquistar a praça – ato que nenhum outro mortal
79
André Luiz Leme
conseguiria. Mas Alexandre, diante disso, compreendendo o
aspecto moral da questão, encontrou uma estratégia de incentivo
para vencer a dificuldade do momento: aqueles que escalassem a
íngreme parede ganhariam, em termos da ordem de chegada,
uma recompensa financeira. O ânimo, diante disso, aumentaria,
bem como a possibilidade de conquista. Esse incentivo veio
acompanhado de algumas recomendações por parte de
Alexandre, as quais tornavam a escalada uma atitude viável:
Se reunieron a propósito los hombres que ya en otros
asedios habían adquirido práctica en escalar
posiciones
difíciles,
unos
trescientos
aproximadamente. Se equiparon con unas pequeñas
estacas de hierro, las mismas que se utilizan para
fijar los vientos de las tiendas, y las fueron hincando
en la nieve cuando ésta tenía suficiente consistencia,
o en las calvas de roca que entre la nieve aparecían;
las enlazaron luego con resistentes cordeles de lino,
avanzando así durante toda la noche por la parte más
abrupta de la roca, que era precisamente la menos
vigilada. Clavando, como queda dicho, las estacas
sobre la roca donde ésta se hacía visible, y la mayor
parte de ellas sobre la nieve que resistía sin hacerse
polvo, fueron ascendiendo uno tras otro por la roca.
En la escalada perecieron unos treinta hombres
cuyos cuerpos cayeron despeñados por distintos
lugares, sin que fueran jamás localizados para darles
sepultura. Sin embargo, los demás consiguieron
culminar la ascensión del monte antes del amanecer.
Desde allá arriba agitaron unas banderas para
hacerse visibles al ejército macedonio, siguiendo con
ello las instrucciones que Alejandro les diera. Envió
entonces Alejandro un heraldo a las primeras filas de
los bárbaros, no a conversar por más tiempo, sino a
decirles que se rindieran, ya que él había conseguido
80
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Modelo Político de Alexandre
los hombres con alas que necesitaba (al propio
tiempo el mensajero debía señalar a la cima del
monte para que vieran que los macedonios tenían
copada las alturas). Ante esto, los bárbaros quedaron
estupefactos, no dando crédito a lo que sus ojos
veían. Temiendo que los que ocupaban las alturas
fueran más de los que en realidad eran y estuvieran
perfectamente pertrechados, se entregaron sin
ofrecer resistencia. Tal fue el miedo que sintieron a
la vista de aquel reducido número de macedonios.
Fueron hechos prisioneros mujeres y niños, y entre
ellos la mujer e hijas de Oxiartes.14
Os mais experientes em matéria de sítio e escalada foram
selecionados, pois era deles que se esperava a conquista da
parede. Através do uso de estacas de ferro, iniciaram a escalada,
mas não a partir de qualquer ponto – partiram do lado onde a
vigilância
era
menor
por
parte
dos
bárbaros,
sendo
intencionalmente empreendida na escuridão da noite. Pela
manhã, alguns já haviam conquistado a parede. Seguindo as
instruções de Alexandre, assinalaram com o agitar de uma
bandeira este feito. Os bárbaros, quando questionados pelo
mensageiro de Alexandre sobre a rendição ou não deles,
demonstraram-se surpresos pela atitude de conquista que
presenciavam, como se Alexandre tivesse realmente conseguido
os tais “soldados alados”.
Frente ao temor que surgiu no
momento, os bárbaros se entregaram sem oferecer resistência.
Em suma, percebemos que esse momento da expedição de
Alexandre provou novamente que o rei macedônio, mesmo
81
André Luiz Leme
diante de certas dificuldades naturais, era plenamente capaz de
obter a vitória, tendo em vista que os obstáculos foram vencidos
pelo seu raciocínio e planejamento.
Tendo em vista esses três momentos de análise no
documento, verificamos que a narrativa de Arriano construiu em
Alexandre um modelo de governante que possuía características
singulares no comando. Quando o rei macedônio enfrentava
obstáculos naturais em sua jornada, não contava com a sorte
para superá-los: apoiava-se em seu amplo conhecimento e
raciocínio para compreender cada circunstância atenuante,
avaliando a melhor ação para garantir a inevitabilidade de seu
sucesso. A partir dessas perspectivas, entrevemos o âmago da
proposta teórica de Arriano: o governante deveria ser um
homem preparado, possuindo uma formação adequada e
experiência no campo da liderança. São, portanto, princípios
que legitimam a posição de alguns e não de outros no governo.
Isso posto, de que forma essa proposta teórica tornava-se
inteligível na época de Arriano? Poderíamos dizer, no que se
refere ao ambiente de poder do Império Romano de inícios do
século II d.C., que tal pressuposto encontrava sua utilidade
quando direcionada como elemento de reivindicação por parte
do grupo senatorial15 em relação a escolha de quem seria o
princeps. De fato, essa questão remonta aos constantes conflitos
82
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Modelo Político de Alexandre
entre o grupo senatorial e o princeps durante o primeiro século
depois de Cristo: o Imperador era muitas vezes acusado de
despótico e tirânico, ou seja, um homem que governava sem dar
ouvidos à instituição que representava o Senado.16 Para os
membros desse grupo, não bastava o personagem ter sido
aclamado17 pelas legiões: era preciso estar em consonância com
o pensamento deles, governando para o interesse deles. Os
historiadores Engel e Palanque destacam três formas de
ascensão ao principado que foram claramente rejeitadas pela
opinião senatorial:
Não se quer um imperador “imposto pelos soldados”
e escolhido fora de Roma. Recusa-se o imperador
surgidos das obscuras tramas de uma imperatriz que
houvesse subjugado o esposo. Desconfia-se dos
ambiciosos que tenham ou possam ter segundas
intenções de abusar da monarquia.18
Nesse sentido, não seria qualquer um que poderia
almejar tal posição no poder. Dentre aqueles que poderiam,
estariam justamente e principalmente os senadores. Estes
defendiam
a
prerrogativa
da
tradição
política
que
representavam, ressaltando o critério teórico de uma formação
especial que eles adquiriam, exemplificada no cursus honorum,
e que lhes garantiam a experiência necessária para exercer uma
boa liderança. Portanto, enquanto parte do universo mental do
grupo senatorial, a proposta teórica que encontramos na obra de
83
André Luiz Leme
Arriano vem no sentido de reforçar um demanda em relação ao
poder: os mais bem preparados deveriam governar, sendo os
legítimos detentores do poder para o bem de todos.
No que se refere a tal perspectiva, não podemos deixar
de entrever uma aproximação, em termos teóricos, para com
certos aspectos do modelo de governo denominado basiléia.
Segundo o historiador Renan Frighetto, esse modelo foi
proposto
“por
pensadores
gregos
do
século
IV
a.C.,
especialmente por Isócrates e Platão, em que os melhores e mais
bem preparados cidadãos exerceriam as tarefas de governo em
prol de toda a comunidade política”. 19 Domingo Plácido Suárez,
em seu artigo Las formas del poder personal: la monarquia, la
realeza y la tirania, reforça que tal perspectiva da basiléia
esteve sim presente na caracterização do governo de Alexandre
na Anábase de Alexandre Magno. Segundo ele, ao apresentar
Alexandre como modelo de bom governante, Arriano teve por
base uma forma de realeza tradicionalmente grega, ou seja,
“heredera de la realeza antigua, la que se identifica con la
aristocracia heróica, la βασιλεία homérica”.20 De fato, a teoria
em torno desse modelo de governo pressupunha, visando o bem
da comunidade política, que apenas os melhores e mais bem
preparados homens – entenda-se, advindos de uma elite
tradicional e aristocrática – é quem poderiam assumir posições
84
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Modelo Político de Alexandre
no governo com autoridade e boa liderança. Nesse sentido, o rei
deveria ser exatamente o melhor dentre esses homens: o mais
virtuoso e o de maior conhecimento.
Ao mesmo tempo, ressaltamos também a intenção de
resgate, por parte de Arriano, de toda uma tradição helenística
que prezava, dentro de uma ideologia de realeza, pela excelência
na educação daqueles que iriam governar – aspecto este que
também foi personificado no personagem de Alexandre, como
aponta Victor Alonso Troncoso em artigo intitulado La paidéia
del príncipe y la ideología henelística de la realeza:
[…] junto a las imágenes del Alejandro
conquistador, y explorador, y estadista, la
historiografia helenística consagró asimismo la del
rey bien educado, empezando por Marsias de Pela y
Onesícrito de Astipalea, y en consecuencia también
la del fomentador de la paideia a escala de la nueva
ecúmeno grego-oriental.21
Portanto, a contraposição passado/presente que a
Anábase de Alexandre Magno projeta no tempo de Arriano
constrói e fortalece uma idéia de continuidade entre uma
herança helenística e romana. 22 Ao servir de exemplum, o
modelo de governo de Alexandre estabelecia preceitos teóricos
inteligíveis ao universo senatorial e à tradição que esse grupo
representava, os quais podemos entender enquanto demandas
85
André Luiz Leme
em relação ao poder no que se refere ao panorama político do
Império Romano de inícios do século II d.C.
Notas de Referência
*
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
86
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Paraná (UFPR), orientado pelo Professor Doutor Renan
Frighetto. Contato: [email protected]
Nascido em Nicomédia, na província romana da Bítinia-Ponto, era
membro de uma importante família da aristocracia local. Cidadão
romano, seguiu o cursus honorum senatorial, tornando-se cônsul em 129
d.C. e chegando à posição, no ano de 131/32 d.C., de legatus Augusti
pro praetore na província da Capadócia. Dentre suas obras, encontramos
escritos de cunho historiográfico (Bithyniaca, Partthica, To meta
Alexandron), filosófico (Diatribai, Encheiridion) e militar (Periplous
Euxeinou Pontou, Techne taktike, Ektaxis kata Alanon).
TUCIDIDES. Historia de la guerra del Peloponeso: libros I – II. Trad.
Juan José Torres Esbarranch. Madrid : Gredos, 1990, pp. 164-166.
POLÍBIO. Historias: livros V-XV. Trad.de M. B. Recort. Madrid:
Gredos, 1981, p.503.
ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Tradução de
Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 117.
ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Tradução de
Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 255.
ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Tradução de
Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 122.
Idem, p. 127.
Idem, pp. 127-128.
Idem, p.128.
Idem, p. 129.
Idem, p. 129
ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Tradução de
Antonio Guzmán Guerra. Madrid: Editorial Gredos, 1982, pp. 48-49.
Idem, pp. 49-50.
Idem, pp. 50-51.
Segundo P. Stadter, “A book like the Anabasis was addressed to the elite
of the Roman Empire – those administrators, senators, officers, and
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Modelo Político de Alexandre
16
17
18
19
20
21
22
intellectuals who could appreciate the restrained classicism of his style,
the careful reconstruction of military operations, the interest in
Alexander’s moral development. […] the intended audience […] is
much more knowledgeable and refined”. In: STADTER, P. A. Arrian of
Nicomedia. Chapel Hill, 1980, p.168.
Verificamos aqui a influencia do estoicismo, corrente de pensamento
ético e filosófica predominante no grupo senatorial, em relação à
construção dessa crítica, tal como aponta a seguinte afirmação de
Rostovtzeff: “O governante, príncipe ou rei, não era um senhor, segundo
o ensinamento estóico, mas um servo da humanidade e devia trabalhar
para o bem de todos, e não em prol de seus interesses próprios e de sua
manutenção no poder”. In: ROSTOVTZEFF, Michael Ivanovich.
História de Roma. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar,
1967, p.205.
Segundo Frighetto, “ao fim e ao cabo o poder imperial estava associado
ao efetivo controle do mando militar através de um dos mais importantes
e significativos símbolos da auctoritas do princeps, a aclamatio imperii,
aclamação das forças legionárias sem a qual nenhum pretendente ao
poder supremo, que traduzimos por império, poderia manter-se”.
FRIGHETTO, Renan. “Imperium et orbis: conceitos e definições com
base nas fontes tardo-antigas ocidentais (séculos IV-VII)”. In: Andréa
Doré; Luís Filipe Silvério Lima; Luiz Geraldo Silva. (Org.). Facetas do
Império na História: Conceitos e métodos. 1ª ed. São Paulo: Editora
Hucitec, vol.1, p.159, 2008.
ENGEL, J. M.; PALANQUE, J. R. O Império Romano. São Paulo:
Atlas, 1978, p.71.
FRIGHETTO, Renan. “Imperium et orbis: conceitos e definições com
base nas fontes tardo-antigas ocidentais (séculos IV-VII)”. In: Andréa
Doré; Luís Filipe Silvério Lima; Luiz Geraldo Silva. (Org.). Facetas do
Império na História: Conceitos e métodos. 1ª ed. São Paulo: Editora
Hucitec, vol. 1, p.149, 2008.
PLÁCIDO, D. “Las formas del poder personal: la monarquía, la realeza
e la tiranía”. Geríon, Madrid, v.25, n.1, p. 153, 2007.
ALONSO TRONCOSO, V. “La paideia del príncipe y la ideología
helenística de la realeza”. Gerión, Madrid, v.23, n.9, p. 200, 2005.
Segundo a historiadora Maria José Hidalgo de La Vega, “La fundación
de este Imperio como régimen político, en algunos aspectos, pretendía
ser el heredero del imperio alejandrino y continuador de su programa
civilizador y conquistador”. In: HIDALGO DE LA VEGA, María José.
87
André Luiz Leme
“Algunas reflexiones sobre los límites del oikoumene en el Imperio
Romano”. Gerión, Madrid, v.23, n.1. p. 275, 2005.
88
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira: um
exemplo de biografia moderna em terras brasileiras
Andréa Camila de Faria
A escrita biográfica não se apresentou sob um modelo
contínuo ao longo da história e suas variações dialogam, embora
não coincidam, com as variações na história da escrita da
História. O processo de laicização interferiu na forma de
conceber a natureza humana, interferindo desta forma na
maneira de escrever as ações humanas. Nesse sentido, os
debates contemporâneos sobre a escrita biográfica contribuíram
para o desenvolvimento de uma história do gênero, caminho
percorrido, por exemplo, por Daniel Madelénat 1.
Para o autor, dizer que algo tem uma história significa
relacioná-lo a uma tradição, nesse caso, uma tradição vinda da
cultura escrita do ocidente europeu, cujas heranças e
desdobramentos estão ligados aos valores e práticas do mundo
clássico, ou seja, da Antiguidade Greco-Romana. Ao dizer isso
Madelénat estabelece uma tradição, mas também determina a
historicidade da escrita da vida individual, criando uma chave de
leitura através da periodização da escrita biográfica segundo três
paradigmas, a saber: o paradigma clássico, que perduraria da
Andréa Camila de Faria
Antiguidade ao século XVIII; o paradigma romântico, em vigor
na virada do século XVIII para o XIX; e o paradigma moderno,
iniciado no século XIX e consolidado no XX.
Pensando nessa renovação do biográfico ocorrida no
século XX, Aguirre Rojas nos aponta que dentro do âmbito da
chamada história innovadora desenvolvida no período, o gênero
biográfico não gozava de muito prestígio, o que se dava pelo
fato de as historiografias renovadoras da Europa Ocidental
procurarem se afirmar em uma oposição direta à chamada
historiografia positivista, dominante entre o final do século XIX
e o início do XX. Oposição essa que levou a uma valorização
dos processos coletivos em detrimento dos grandes homens, mas
que isso, na esfera exterior a da historiografia não significou, de
maneira alguma, que o gênero tivesse caído em desuso.
Rojas ressalta também que se a biografia tem como
tarefa reconstruir a vida de um indivíduo, é preciso que se
compreenda antes o que é um indivíduo, e nesse ponto ele,
citando Marx, nos lembra “que el individuo y la individualidad
no son un punto de partida de la historia, sino por el contrario,
más bien un resultado creado por ella”2. E nesse sentido ele
afirma não ser possível construir uma biografia adequada sem se
conhecer os níveis de progresso da individuação que os sujeitos
conquistaram na curva evolutiva das civilizações humanas.
90
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira
Essa ressalva de Rojas atenta para o cuidado para que a
biografia não caia numa tentação de normalizar a vida do
biografado, pois segundo ele, quando se conhece um
determinado percurso biográfico tende-se a introduzir nele seu
resultado desde sua origem. Mas atribuir naturalidade ao
desenvolvimento individual de um sujeito não é ou era
exclusividade dos biógrafos, Gonçalves Dias (1823-1864), o
sujeito da biografia que será analisada aqui, queixava-se deste
fato nos seguintes termos: “para os outros é muito natural: é
muito natural que eu indo a Coimbra seja Bacharel, que eu
sendo brasileiro esteja no Rio de Janeiro, e que enfim eu faça
versos tendo nascido poeta: ó santa natureza!”3.
Nosso objetivo aqui é, então, não apenas problematizar
uma natureza de Gonçalves Dias, mas principalmente pensar a
imagem que dele foi construída por Lúcia Miguel Pereira em
obra publicada em 1943 e que é hoje a biografia mais conhecida
do poeta, sendo também aquela em que a autora pôde contar
com maior vastidão documental, possuindo assim a marca das
biografias modernas e estando sua produção inserida no
chamado boom biográfico ocorrido em solo brasileiro na
primeira metade do século XX.
Marcia Gonçalves, em seu estudo sobre a obra de Otávio
Tarquínio de Sousa, comenta que entre finais da década de 1920
91
Andréa Camila de Faria
e os anos de 1930 e 1940 houve uma epidemia biográfica
associada a uma renovação da biografia, levando alguns a
teorizarem sobre a emergência, em terras brasileiras, da
chamada biografia moderna 4. De acordo com seus argumentos,
na metade inicial do século XX “a escrita de biografias passou a
usufruir de significados e usos alargados entre os intelectuais,
letrados, empreendedores do mundo dos livros e seus
respectivos leitores” 5.
Ela nos aponta que esse processo não configurava apenas
uma renovação do biográfico, era também uma renovação da
própria história, um novo entendimento e a busca pela
renovação da escrita da história nacional. Em suas palavras:
Se a história, enquanto conhecimento disciplinar era,
por excelência, um instrumento basilar na edificação
da identidade nacional, a discussão de como ela
deveria ser escrita, e de que sujeitos deveriam
protagonizá-la – os indivíduos, os grupos, ou as
forças sociais –, acabava por cruzar com o debate
sobre quem de fato construía ou havia construído a
nação. Nesse cruzamento tenso, o lugar do texto
biográfico era buscado e, por vezes, entendido como
a panacéia que poderia resolver tantos impasses.6
Longe de pretender tratar a fundo destas questões aqui, o
que buscamos é situar que a obra de Lúcia Miguel Pereira sobre
Gonçalves Dias encontra-se inserida neste contexto, até porque
Lúcia foi uma das que esteve envolvida nos debates sobre essa
92
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira
renovação da história e da biografia, chegando a afirmar que a
biografia seria o melhor meio de se fazer história, pois era o
único meio “capaz de fazer com que os brasileiros se
interessassem pelas grandes figuras da terra”7, atribuindo assim
ao gênero um caráter pedagógico que ainda que distinto daquele
empregado pelos biógrafos do século XIX não deixava de se
pautar em certo tipo de exemplaridade.
Lúcia Miguel Pereira nasceu em Barbacena (MG) em 12
de dezembro de 1901, e mudou-se ainda menina para o Rio de
Janeiro, realizando seus estudos no Colégio Notre Dame de
Sion. Segundo Marcia Gonçalves, suas amizades com Alceu
Amoroso Lima e com o grupo católico organizado em torno do
Centro Dom Vital interferiram em sua estréia no mundo das
letras com a atuação na Revista Elo em 1927-19298. Mais
reconhecida por sua atuação como crítica literária em periódicos
como a Gazeta de Notícias, o Boletim Ariel e o Correio da
Manhã, Lúcia foi também autora de romances – entre eles
Amanhecer (1938) e Cabra-cega (1954) – e de livros infantojuvenis como A fada menina (1939) e A floresta mágica (1943).
Entretanto, nesse estudo, daremos enfoque a sua atuação
enquanto biógrafa.
Em 1936 Lúcia lança Machado de Assis: estudo crítico e
biográfico9, onde apresenta ao leitor um novo tipo de biografia,
93
Andréa Camila de Faria
uma biografia onde a narrativa é conduzida por uma busca da
autora em “fazer viver” e ao mesmo tempo compreender o seu
biografado, nesse caso específico, através das “pistas” deixadas
por Machado em sua obra. Quem está em cena neste sentido não
é o sujeito pré-condicionado a algo e sim o sujeito humano
fragmentário, com todas as suas dúvidas e inquietações; era
assim, uma busca por apresentar o biografado no máximo de sua
condição humana10. Após percorrer este caminho na busca por
um entendimento de Machado de Assis, Lúcia decide-se então
por (re)conhecer Gonçalves Dias, e é esse o ponto que nos
interessa aqui.
A vida de Gonçalves Dias11 é publicado em 1943 pela
editora José Olympio como volume integrante da Coleção
Documentos Brasileiros, dirigida então por Otávio Tarquínio de
Sousa, também biógrafo (autor das biografias dos Fundadores
do Império do Brasil) e marido de Lúcia. No prefácio ao livro,
escrito em dezembro de 1941, Lúcia justifica a obra dizendo que
já acalentava o projeto há cinco anos, pois depois de escrever
sobre Machado de Assis ficara tentada a “estudar o nosso
primeiro grande poeta depois do nosso maior romancista, de
unir de algum modo esses dois mestiços admiráveis”12, deixando
claro assim, logo no início, que seguiria uma abordagem onde a
94
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira
questão da raça seria crucial em sua interpretação de Gonçalves
Dias, como o fora em Machado.
Tento consultado não só o arquivo de Antonio Henriques
13
Leal , que havia sido recém doado por seu filho, o general
Alexandre Leal, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), como o arquivo pessoal de Nogueira da Silva, este
último constituindo-se, segundo ela, em mais do que um arquivo
de raro valor, mas em um ambiente de culto a Gonçalves Dias14,
ela deixa claro que foi sua intenção, desde o início, citar a maior
parte dos documentos a que teve acesso, ainda que isso tornasse
“pesado” o livro e por vezes quebrasse a unidade da narrativa.
Procedeu assim por entender que era o mais correto e até mais
honesto, deixando “sempre que possível, falar o próprio
Gonçalves Dias”15.
Lúcia afirma ainda que apenas na transcrição do Diário
do Rio Negro – texto inédito, resultado da viagem de Gonçalves
Dias ao Amazonas, quando da sua participação na Comissão
Científica de Exploração e que é apresentado por ela em
apêndice à biografia – adotou o critério de resumir16. Já no caso
do diário da última viagem à Europa, transcrito no Pantheon
Maranhense17, e que segundo ela, se resumido perderia muito do
valor causado pelas emoções descritas no relato, optou por
apresentá-lo na integra em meio à narrativa. Das cartas diz que
95
Andréa Camila de Faria
aproveitou o máximo possível embora, pelo fato de serem
numerosas não pudessem ser reproduzidas integralmente. Dessa
forma, ela diz que
com tantas citações, perdeu certamente o livro
aquela coesão estrutural das biografias bem
delineadas, mas Gonçalves Dias ficou mais em
valor, dominando – e até acachapando, se quiserem
– a obra que lhe é consagrada18.
Vemos assim ela expor o seu entendimento de qual seria
o melhor modelo de biografia, fundamentalmente estruturada
em base documental – tal como a história –, deixando o
biografado “falar”. Entendimento esse pautado em certo modelo
da chamada biografia moderna que segundo Marcia Gonçalves,
ao recuperar os critérios defendidos por André Maurois, deveria
entender o biografado como “uma verdade a ser construída a
partir de um método de investigação pautado no abandono de
quaisquer idéias preconcebidas e no levantamento de toda a
documentação disponível”19. Nesse tipo de biografia, o biografo
deveria ainda utilizar-se da estética do romance para sensibilizar
o leitor e “fazer viver” o biografado, mas sem cair no mero
elogio dos panegíricos comuns no século XIX.
Lúcia entendia que a biografia era o melhor meio de se
fazer história e para Marcia Gonçalves, dentro destes
desdobramentos
da
biografia
renovada
existiria
um
redimensionamento dos valores da identidade nacional, onde a
96
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira
biografia, enquanto “melhor forma de se fazer história” deveria
também edificar a fisionomia nacional20. Parece-nos então que
Lúcia com suas duas biografias – Machado de Assis e
Gonçalves Dias – tinha a intenção de ressaltar a característica
mestiça do país, apresentando-nos dois “mestiços admiráveis”
para ao mesmo tempo demarcar a singularidade da nação, no
que diz respeito ao povo que a constitui e as particularidades
destes notáveis, que como indivíduos e brasileiros são
apresentados com todas as incompletudes e dilemas do ser
humano, aumentando assim o grau de identificação do leitor.
No caso particular de Gonçalves Dias, Lúcia desenvolve
a chave do homem de meia cor e meia classe, para caracterizar o
homem filho de pai português e mãe de origem indefinida (não
se sabe se índia ou cafuza), fruto de relação ilegítima e por tudo
ou, além disso, sem posição social definida. É com essa chave
que ela vai tentar compreender o “estado d’alma” de Gonçalves
Dias, de buscar conhecer, ao máximo, sua personalidade,
apresentando ao leitor muito mais o homem, em sua condição de
sujeito fragmentário, do que a obra ou o gênio transcendente,
empreendendo
uma
biografia
psicologizante
com
certa
21
inspiração de autores como Lytton Stranchey .
Nesse caminho, Lúcia percorre a vida de Gonçalves Dias
do nascimento à morte, começando por ressaltar a importância
97
Andréa Camila de Faria
de sua origem ao falar tanto da nota autobiográfica escrita pelo
poeta a pedido de Ferdinand Denis, onde ele relaciona seu
nascimento ao “nascimento” de sua pátria e que ela usa como
ponto inicial de sua narrativa, quanto da natureza que o cercou
na primeira infância e do sofrimento a se ver afastado da mãe
ainda menino, quando seu pai, João Manuel, “despede-se” de
Vicência (a mãe do poeta) para casar-se com D. Adelaide (a
madrasta). Construindo uma narrativa repleta de referencias
pessoais de Gonçalves Dias, seu cuidado é em tentar ao máximo
expor o biografado em seu íntimo, com suas dores, angustias,
sofrimentos, alegrias e esperanças.
Assim, ao falar da partida de Gonçalves Dias para
Coimbra, para onde ia com o fim de dar prosseguimento aos
estudos, ela diz que
Ia cumprir o seu destino intelectual, fugindo ao
estreito meio em que nascera... e ia também cumprir
seu destino de sofredor, enfrentando sozinho a vida,
devendo à generosidade alheia o pão que comia, as
roupas que vestia, os livros em que estudava, o
jovem Gonçalves Dias, possuidor de seis moleques,
de um apaixonado e sofredor temperamento poético,
de uma lúcida, positiva inteligência, e de uma
imensa, invencível ambição.22
Sua interpretação de Gonçalves Dias é profundamente
marcada pelos estudos de Gilberto Freire, principalmente no que
diz respeito às questões sociais e de raça. Baseia-se nele
98
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira
inclusive para analisar a obra do poeta, chegando a afirmar que
“seu indianismo teria de fato o caráter de reação contra a
superioridade do branco que o sociólogo do Recife denuncia no
romantismo brasileiro”23. Seguindo este caminho, Lúcia
estabelece ainda a interpretação de que em sua condição
mestiça, Gonçalves Dias identificava-se muito mais aos índios
ou mesmo aos negros (cuja “influência” em sua origem não é
confirmada) do que ao português, cujo sangue, segundo ela, ele
desprezava.
É com base nesses critérios que ela analisa, por exemplo,
O canto do índio, poema de Gonçalves Dias datado de 15 de
março de 1845 e que para ela é chave também para interpretar
suas impressões ao retornar a Caxias (no Maranhão) depois dos
anos de estudo em Portugal24. Nestes versos Gonçalves Dias
canta a paixão de um índio por uma mulher branca que ele vira
banhando-se em um rio. Para Lúcia, que o interpreta como único
documento deixado sobre este retorno a sua terra natal,
Não é pois impossível que este tivesse uma origem
real, que uma bela banhista descuidada houvesse
sido percebida pelo poeta; a indicação do momento
em que a viu, o por do sol, não parece apenas fruto
de imaginação. E nada mais natural do que deixar-se
o poeta, tão sensível aos encantos femininos,
empolgar pela visão, e em torno dela tecer todo um
poema de amor. O que é estranho, interessante,
talvez sintomático, é ter sentido essa mulher branca
como se fora um índio. Teria sido o filho de
99
Andréa Camila de Faria
Vicência dominado pelo sangue indígena ao pisar na
terra de seus avós? Ter-se-ia sentido índio o moço
mestiço, a despeito da cultura coimbrã e do canudo
de bacharel? Essa viagem, essa navegação solitária
pelo rio que cortava a bravia terra maranhense, ainda
tão povoada de índios era uma tomada de contacto
com tanta coisa esquecida, uma volta ao passado, ao
próximo passado da infância, ao longínquo passado
da raça. E Gonçalves Dias, subindo o rio numa
piroga, reagiu como índio às impressões que o
assaltavam.25
A biógrafa também tenta encontrar explicações para a
tristeza e melancolia infindável do poeta. Sentimentos que
transparecem em suas cartas, poemas, diários... e que em seu
entender era marca indelével de sua personalidade romântica,
tomando por romântico, efetivamente a sua vinculação ao
movimento literário do qual hoje é símbolo no que diz respeito à
poesia brasileira, marcadamente em sua vertente indianista.
Encontra ainda outro motivo, segundo ela condicionado pela
reunião de todos os outros fatores – dos preconceitos
românticos, da insatisfação de mestiço, da instabilidade social e
da saúde precária – e que o marcaria profunda e definitivamente:
a incapacidade de fixar amor em contraste com uma necessidade
vital de afeto, de constância na amizade e um profundo horror a
solidão. Novamente em uma interpretação psicológica Lúcia
aponta nesse sentido que
100
Muito sensível à sedução feminina, Gonçalves Dias
correu a vida toda atrás de uma mulher ideal, só
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira
tendo sido fiel ao amor que não realizou26– talvez
justamente porque o não tenha realizado.27
Notamos assim as particularidades da biografia feita por
Lúcia Miguel Pereira. Sintoma de uma época, como o foram
também todas as outras biografias do poeta, e como o é todo tipo
de escrito, seja ele histórico, biográfico ou literário, ela é ainda
importante por reunir em si como fonte e bibliografia as
narrativas escritas por Bulhão Pato, Antonio Henriques Leal e
Joaquim Manuel de Macedo, além de tantas outras. Nela
percebemos o trabalho minucioso de alguém que buscava a
excelência na escrita da história e da biografia, chegando a
afirmar que
(...) a pesquisa não basta; sem a sensibilidade para
poder se pôr no lugar dos homens do passado, para
compreendermos a situação, sem espírito de crítica e
de síntese para apreender o sentido dos
acontecimentos, o ensaio histórico não passará de
relatório. Afinal, escrever história, e sobretudo
escrevê-la em forma de biografia, pondo em
primeiro plano um homem, é uma forma de
criação.28
Nas palavras de Marcia Gonçalves, Lúcia Miguel
Pereira, como escritora e crítica “sublinhava as interfaces da
biografia com a literatura e dessa, por sua vez, com o imaginário
nacional” 29, ação que sem dúvida estava de acordo com o
movimento da chamada biografia moderna, que uma vez
101
Andréa Camila de Faria
“humanizando” seus personagens, serviria de estratégia para a
renovação da escrita da história nacional30.
Nesse sentido, parece-nos sintomático que ao escolher
aqueles que iria biografar, Lúcia não tenha se detido aos nomes
do cenário político e militar, ao contrário, tenha voltado-se não
só para o mundo das letras, mas principalmente para “dois
mestiços admiráveis”, para dois homens que em suas vidas
enfrentaram dificuldades de todas as ordens e ainda assim
conseguiram construir através de suas obras um nome que era e
é reconhecido dentro e fora de seu país.
Se considerarmos que como aponta Márcia Gonçalves,
no entender dos intelectuais do início do século XX, as
biografias, uma vez que desenhassem as contradições de uma
vida individual, em suas mediações sociais e culturais,
cumpriam um papel de redescobrimento do homem e do
Brasil31, podemos entender que Lúcia parecia caminhar no
sentido de apresentar ao Brasil os brasileiros, através de dois
nomes notáveis sim,
mas de notáveis que tinham a
particularidade de provirem de origem humilde e que expostos
em todas as suas incompletudes, fragilidades e desafios
superados, serviriam para conquistar o leitor pela semelhança,
cumprindo assim a função que ela mesma havia atribuído à
102
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira
biografia, que era a de fazer com que os brasileiros se
interessassem pela história.
Para Luís Viana Filho, a chamada biografia moderna
tinha a finalidade de nos proporcionar, em traços vivos e claros,
o retrato de um homem considerado sob todos os seus aspectos e
nela tanto interessariam as questões históricas que estivessem
ligadas ao biografado, quanto os simples atos de sua vida, desde
que estes fornecessem elementos necessários ao conhecimento
da individualidade do personagem. Para ele, na busca por esses
elementos, a biografia lançaria mão da história, da crítica e da
psicologia, mas sem se subordinar a nenhuma delas, pois
encontraria fim em si mesma, na busca por oferecer-nos uma
visão de conjunto de uma vida considerada em sua totalidade 32.
Foi esse então o método utilizado por Lúcia para
escrever A vida de Gonçalves Dias. Lançando questões a si
própria e ao leitor a medida que ia descrevendo as passagens da
vida do poeta, Lúcia utilizava-se da psicologia para fundamentar
suas interpretações e argumentos sobre as ações de Gonçalves
Dias, construindo uma narrativa onde a indagação, a dúvida, o
talvez, adquirem grande valor, principalmente ao levar o leitor a
se sensibilizar com o biografado. É esse, por exemplo, o recurso
utilizado por ela ao narrar o naufrágio do Ville de Boulogne no
qual o poeta vem a falecer em 1864, comentando já na
103
Andréa Camila de Faria
penúltima página que “Talvez houvesse palmeiras no trecho da
costa que avistou, talvez ao menos isso – apenas isso – lhe haja
concedido o destino”33, para finalizar sua biografia com as
seguintes palavras:
Teria o espírito intrépido conservado a lucidez?
Teria Gonçalves Dias morrido como desejava, como
tantas vezes pedira, com o nome de Teófilo e da
Amada nos lábios? Não lhes pôde legar o último
sorriso, e sua última lágrima, como desejara – mas,
se estava em si, legou-lhes certamente o seu último
pensamento. Teófilo e Ana Amélia, a amizade e o
amor, eram o que de melhor lhe dera a vida.
Amando e sofrendo cumprira o seu destino de
homem e de poeta.34
Lúcia usou assim das melhores técnicas do romance para
tornar envolvente a narrativa, usou a psicologia para tentar
desvendar os “estados d’alma” de Gonçalves Dias e a história,
para mostrar como este letrado esteve inserido nos processos de
construção e consolidação da identidade nacional. Em sua
narrativa ela conseguiu ao mesmo tempo o que se espera da
história, ao dar voz ao poeta através de seus documentos, e o
que se espera da literatura, ao abrir espaço para sua criação
literária indagando-se sobre seus sentimentos. Assim, Lúcia fez
de sua biografia de Gonçalves Dias aquilo que ela almejava,
uma forma de criação.
104
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira
Notas de Referência

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela Professora Doutora
Márcia de Almeida Gonçalves. Contato: [email protected]
MADELÉNAT, Daniel. La biographie. Paris. PUF, 1984.
IDEM. Pág. 16. Grifo no original.
DIAS, Gonçalves. Carta n° 43 a Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, de
11 [13] e setembro de 1847. In: ANAIS DA BIBLIOTECA
NACIONAL. Correspondência Ativa de Gonçalves Dias. Vol. 84. Rio
de Janeiro: Divisão de Publicações e Divulgação, [1964] 1971. Pág. 91.
Grifo nosso.
GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço: biografia e
história na obra de Otávio Tarquínio de Sousa. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2009. Pág. 97.
IDEM, Pág. 103.
IDEM, Pág. 128.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Apud GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em
terreno movediço. Op. Cit. Pág. 125.
GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Mestiço, pobre, nevropata:
biografia e modernidade no Machado de Assis de Lúcia Miguel
Pereira”. In: GOMES, Angela de Castro e SCHMIDT, Benito Bisso
(Orgs.). Memória e narrativas (auto)biográficas. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2009. Pág. 192.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e
biográfico. 6. Ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1888.
Para maiores informações sobre o Machado de Assis de Lúcia Miguel
Pereira ver: GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Mestiço, pobre,
nevropata”. Op. Cit.
PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1943.
IDEM. Pág. 05.
Amigo de Gonçalves Dias e autor do Pantheon Maranhense, obra onde
se encontra a primeira biografia do poeta.
PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 06.
IDEM. Pág. 7.
Vale ressaltar que Lúcia não foi simplesmente a responsável por levar a
conhecimento público este material, foi também a responsável por
transcrevê-lo do manuscrito original, escrito a lápis por Gonçalves Dias
e em condições que tornam sua leitura um verdadeiro exercício de
decifração.
105
Andréa Camila de Faria
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
106
LEAL, Antônio Henriques. Pantheon Maranhense: ensaios biográficos
dos maranhenses ilustres já falecidos. Rio de Janeiro: Editorial
Alhambra, 1987. 2ª edição. Tomo 2.
PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 07.
GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Mestiço, pobre, nevropata”. Op.
Cit.Pág. 201.
GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Op. Cit. Pág.
132.
Lytton Stranchey (1880-1923) tornou-se nome emblemático na
Inglaterra ao escrever biografias onde os homens e mulheres desciam de
seus panteões para personificarem a grandeza e a miséria de suas
condições humanas, como em Eminent Victorians, publicado em 1918.
Sua casa foi um dos pontos de encontro do grupo de Bloomsbury, nome
de um bairro de Londres e que passou a designar um grupo de amigos
que, compondo um círculo de escritores, intelectuais e artistas, do qual
participavam Leonar e Virginia Woolf, Arthur Waley, Clive e Vanessa
Bell, entre outros. Cf. GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno
movediço. Op. Cit. Págs. 157-158.
PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 31.
IDEM. Pág. 110.
Gonçalves Dias chegou a Portugal em outubro de 1838 e lá permaneceu
até fevereiro de 1845.
IDEM. Pág. 56.
Lúcia refere-se aqui a Ana Amélia Ferreira do Vale, prima e cunhada
Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, melhor amigo do poeta, e por
quem ele se apaixonou, mas cujo pedido de casamento feito por ele a
mãe da jovem foi recusado, ao que parece, por ser ele um mestiço de
origem ilegítima.
IDEM. Pág. 110.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Apud. GONÇALVES, Marcia de Almeida.
Em terreno movediço. Op. Cit. Pág. 124.
GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Op. Cit. Pág.
128.
IDEM. Pág. 128.
IDEM. Pág. 131.
VIANNA FILHO, Luis. Apud. GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em
terreno movediço. Op. Cit. Pág. 196.
PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Op. Cit. Pág. 380.
IDEM. Pág. 381.
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Academia dos Renascidos: O Saber como Poder na Bahia
Setecentista
Bruno Casseb Pessoti
As mercês e a relativização das razões fundadoras
Nas sociedades do Antigo Regime, as relações de poder
estavam intimamente associadas a um sistema de trocas
alimentado por uma cadeia de obrigações calcada na tríade dar,
receber, retribuir, equação que envolvia a comunhão das noções
de generosidade e obrigação.1 Luciana Gandelman afirma que os
monarcas eram instados “a gastar para além das capacidades de
suas fazendas” o que teria como contrapartida a manutenção e a
consolidação de um poder que “derivava justamente da
capacidade de conceder dádivas e angariar, por meio destas,
gratidão e obrigação.”2 Ainda que tudo o que os súditos
recebessem do rei fosse considerado fruto da benevolência e do
amor paterno demonstrados pelo monarca, havia uma avaliação
dos serviços prestados pelos vassalos, na qual a relação
serviços/mercês seria mensurada e o resultado final dependia
inteiramente da vontade do soberano.3 Aos vassalos restava
esperar que o valor dos serviços oferecidos fosse reconhecido e,
conseqüentemente, considerado merecedor de mercês a serem
contempladas pela benevolência régia. Há que se considerar que
Bruno Casseb Pessoti
aqueles que reivindicavam, assim procediam, por acreditarem
ter feito jus a alguma recompensa pelas ações realizadas em
nome da grandeza e dos interesses da coroa a que serviam.
Na América portuguesa vigorava uma realidade na qual o
que realmente contava para a elite colonial era “o processo de
nobilitação e não, como em Portugal, a reprodução social da
nobreza.”4 Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, o ato de
nobilitar era uma moeda de troca interessante aos monarcas do
Antigo Regime, pois através dela objetivos eram alcançados de
uma forma que não acarretava grandes despesas à Fazenda Real
já que os “vassalos se contentavam com honras e privilégios
inerentes à condição de nobre.”5
No Brasil, durante o período colonial, a nobilitação que
surgiu atrelada aos feitos militares de expulsão de estrangeiros e
apropriação do território em nome da Coroa, foi gradativamente
estendida e passou a ser utilizada “para incentivar a busca e a
extração do ouro, para solidificar o corpo mercantil e aumentar
as transações comerciais, e para compensar aqueles que
ajudavam financeiramente os reis nas ocasiões de crise.” 6 Nesse
sentido, o consulado pombalino aparece como tempo de
mudanças importantes, período em que diversas medidas foram
tomadas no sentido de facilitar a mobilidade social. Foi no
reinado de D. José I, por exemplo, que os homens ligados ao
108
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Academia dos Renascidos
comércio tiveram seu estatuto modificado. Pombal concedeu aos
comerciantes os direitos de nobreza estabelecendo, nos estatutos
das companhias de comércio, que a nobilitação poderia ser
utilizada como atrativo para incentivar os investimentos.7 Nizza
da Silva assevera que “a legislação Josefina marca sem dúvida
uma ruptura ao permitir que as elites mercantis das principais
praças (Bahia e Rio de Janeiro) tivessem acesso a mercês
honoríficas concedidas pelo monarca.”8
A Academia dos Renascidos surgiu em um momento
histórico em que certas peias que entravavam as possibilidades
de ascensão social e de acesso a cargos nobiliárquicos estavam
sendo paulatinamente eliminadas. Crescia, assim, o número de
súditos que poderiam almejar novas posições na hierarquia
social, ao passo em que aumentava a quantidade de
oportunidades em que serviços e préstimos oferecidos pelos
vassalos poderiam gerar a requisição de mercês e recompensas.
Do estatuto renascido pode-se inferir que os acadêmicos nutriam
a expectativa de serem agraciados com benesses decorrentes dos
préstimos que a Academia ofereceria ao rei.
A produção erudita era uma atividade subsidiária de
outras funções que os membros desempenhavam no corpo
administrativo ou na hierarquia eclesiástica colonial e nenhum
dos sócios se dedicava exclusivamente aos trabalhos acadêmicos
109
Bruno Casseb Pessoti
o que faria da produção intelectual renascida, um novo elemento
que poderia vir a aumentar a folha de serviços prestados ao rei.
Ronald Raminelli afirma que nas sociedades do Antigo Regime,
as redes de informação se inseriam na lógica hierárquica que
retroalimentava a procura por privilégios e distinção e que
“como qualquer serviço prestado à realeza, o conhecimento era
parte de uma troca, de um negócio entre o rei e seus súditos.”9
Os membros da Academia estavam dispostos a mostrar que os
seus trabalhos intelectuais poderiam figurar na economia das
trocas como serviços diretamente relacionados aos interesses da
monarquia e, como tais, passíveis de serem convertidos em
elemento de barganha e solicitação de mercês.
Sintomático que durante a segunda reunião da Academia
dos Renascidos, após a leitura dos estatutos, foi apresentada,
pelo diretor da academia, uma carta encontrada por um sócio
supranumerário na qual o rei, D. Pedro II, concedia a Diogo
Gomes Carneiro o cargo de cronista-mor do Brasil. Na ocasião
da leitura da carta foram enaltecidos o estipêndio que lhe caberia
e as instituições que deveriam prover a quantia. 10 A apresentação
desse documento trazia à tona a idéia de que o trabalho que os
acadêmicos se propunham a fazer – agora em caráter coletivo –
que em alguma medida poderia ser associado àquele
desempenhado
110
pelos cronistas,
era digno
de honrarias
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Academia dos Renascidos
pecuniárias.
A produção intelectual, certamente, poderia ser
considerada como uma modalidade que complementava “as
praxes e os usos do pedir.” 11 A academia, nesse caso, se
apresentaria como um centro no qual esforços de um tipo
específico seriam feitos em nome da glória e dos interesses da
Coroa portuguesa, tendo como fim a busca por prestígio e
favorecimento.12 Para o dia da inauguração oficial do grêmio,
que foi, de fato, a terceira reunião, os temas escolhidos para as
dissertações foram devotados ao monarca D. José I. Não apenas
a reunião fora marcada para o dia de seu aniversário – 6 de
junho – como todos os trabalhos convergiram para homenageálo. Assim, foram apresentados poemas líricos e versos heróicos
em honra ao rei13 e com as dissertações não foi diferente.
Dissertou-se sobre
Qual he a mayor gloria para o nosso monarcha,
contar os seus felicissimos annos depois do
terremoto e geral perigo de 1º de novembro de 1755,
ou contar depois do sucesso de 3 de setembro do
anno passado de 1758? Discorrendo-se em qualquer
destes horrorosos acontecimentos se mostrou a
Providencia Divina, mais empenhada em conservar a
preciosa vida do nosso Fidelissimo Rey e Pay da
Patria.14
Houve ainda uma dissertação dedicada a responder a
questão sobre o que seria mais glorioso para o rei, ser celebrado
em Lisboa ou na Bahia, 15 bem como uma que propunha a
comparação entre D. José I e o rei-sol francês, Luiz XIV.16 A
111
Bruno Casseb Pessoti
última dissertação do dia versou sobre “o grande affecto d‟El
Rey Nosso Senhor, ás Sciencias e Bellas Lettras.” 17 Esse
trabalho,
especificamente,
exige
uma
atenção
mais
pormenorizada. Nesse caso, para facilitar a diligência dos
discursos, ou mesmo para incentivar os tópicos a serem
contemplados, foi distribuída uma advertência a todos os
acadêmicos. Ela prenunciava:
Que entre muitas outras provas, se mostra que S. M.
Fidelissima favorece tanto ás sciencias, que
carecendo todas da sua real attenção para as
innumeraveis providencias determinadas pelo
tremendissimo terremoto de 1º de novembro de
1755, o não embaraçaram estas, para ordenar
tambem pouco depois do mesmo terremoto, que a
Academia Real da Historia Portugueza, concorresse
em corpo de tribunal, ao paço, mandando que para
isso tivesse carta de aviso em todas as funções, e que
continuasse as suas litterarias conferencias em uma
de suas casas reaes do campo de Belém, assistindo o
dito senhor a muitas, pessoalmente, para por este
modo, restaurar com as obras d‟aquelles sabios
academicos, as memorias que se extinguiram no
incendio e mostrar o quanto são uteis e estimaveis
estes illustres Corpos litterarios, concorrendo
igualmente, para que o pontifice estabelecesse
rendas á academia Litúrgica, composta dos mais
illustres sabios do Reino, sem embargo de que esta
Academia não é Real.18
Optamos pela reprodução da advertência completa, pois
acreditamos que se trata de um documento que consegue
evidenciar com bastante propriedade o espírito de algumas das
112
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Academia dos Renascidos
aspirações da Academia dos Renascidos. Aqui, tentou-se
conjugar a glória do monarca e os interesses dos acadêmicos.
Mesmo por que, a celebração do rei era um dos caminhos para
que se tivesse acesso à materialização desses interesses. Em uma
dissertação sobre os incentivos régios às ciências e letras os
renascidos fizeram uma referência à Academia Real da História,
centro do qual os acadêmicos brasílicos haviam emprestado a
sua base estatutária e boa parte dos objetivos. A escolha da
academia histórica portuguesa como exemplo não foi casual,
uma vez que a academia brasílica se propunha a fazer no
universo luso-americano o que a metropolitana propusera para a
realidade da metrópole. Houve ainda, a referência à recuperação
da memória que fazia dos sabios acadêmicos, úteis e dos
illustres
Corpos
litterarios,
estimáveis.
Significativo,
principalmente quando se considera que a Academia dos
Renascidos apresentava propostas de junção de letrados e de
produção intelectual calcadas nas mesmas bases. Exaltar a
relevância desse tipo de trabalho foi uma estratégia, necessária,
que não passou despercebida aos acadêmicos renascidos. Nada
melhor, para cercar o grêmio de legitimidade, do que enaltecer o
valor que o monarca, em pessoa, conferia a esse tipo de
iniciativa. Sua utilidade na metrópole poderia ser facilmente
transposta para a colônia uma vez que aqui, reuniam-se todos os
113
Bruno Casseb Pessoti
elementos a justificar uma produção histórica em moldes
parecidos, mesmo sem terremotos ou incêndios devastadores.
Além disso, foi necessário evidenciar a concessão de
rendas, o que, aliás, certamente estava nos horizontes de
expectativa da reunião dos „mais illustres sabios‟ da América
portuguesa. A advertência destacou que, mesmo não sendo Real,
à Academia Litúrgica não haviam sido colocados embargos que
a impedissem de receber rendas por parte do Pontífice.
Interessante que quando da votação que colocou em pauta se a
Academia dos Renascidos deveria ou não pleitear a dignidade
do título de Real, trinta e seis dos quarenta acadêmicos foram
contra, o que impediu que a requisição fosse encaminhada ao
rei.19 Talvez houvesse entre os acadêmicos o receio de que o
monarca recusasse a concessão do título de Real a uma
academia fundada em território colonial, sendo então melhor
não fazer o pedido do que arriscar a sua recusa, evitando a
depreciação da sua imagem. Mas, como vimos na passagem
acima, mesmo que uma academia não dispusesse dessa honrosa
alcunha, não haveria embargo de que ela fosse contemplada com
rendas.
Podemos então identificar a conjugação de dois fatores
bastante marcantes da produção intelectual: louvar o rei e
solicitar mercês. Em se tratando desse documento em particular
114
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Academia dos Renascidos
não foi uma requisição direta, mas uma referência que
relacionou a produção intelectual ao recebimento de favores.
Desde o começo, datando do primeiro encontro em caráter
oficial, os renascidos contemplaram a celebração do monarca,
dedicada a enaltecer suas ações públicas e episódios de sua vida
privada, o que pode ser visto como uma forma de fazer se
manifestarem seus interesses em meio a atividades que na
aparência eram apenas laudatórias.
É preciso ter em mente que cativar o monarca era apenas
um dos trunfos em poder da Academia dos Renascidos. O outro
era o oferecimento de um serviço que fez com que suas
similares metropolitanas fossem reconhecidas como úteis e
estimáveis e que estava, comprovadamente, atrelado aos
interesses régios. Essas funções, que poderiam ser associadas ao
conjunto de propostas elaboradas pelo grêmio renascido, eram
as moedas de troca que poderiam redundar na concessão de
mercês pelo soberano aos membros da Academia. Tornar-se
digno do reconhecimento régio foi um dos objetivos que os
acadêmicos renascidos acalentaram e se esforçaram para
alcançar quando da fundação do congresso e que marcou a
Academia durante sua breve existência. Houve membros,
inclusive, que mesmo depois do encerramento das atividades
utilizaram-se da alcunha de membros da Academia dos
115
Bruno Casseb Pessoti
Renascidos para oferecer suas produções intelectuais ao rei. O
acadêmico Jose de Mirales ofereceu sua obra Historia Millitar
do Brazil desde o anno de mil quinhentos e quarenta enove, em
q’ teve principio a fund.am da Cid.e de S. Salv.or Bahia de todos
os Santos até o de 1762 ao monarca nos seguintes termos
“offerecida a EL REY FIDEL.MO D. Ioze o I.º composta por D.
Ioze de Mirales Ten.e Cor.el
de hum dos Regimentos da
Goarnição da mesma Cidade do Salv. or; e Academico numer.º da
Accademia Brazilica dos Renascidos”20, depois do fim das
atividades acadêmicas. Destarte, o texto que antecedeu a
apresentação dos estatutos, evidenciou a causa que teria
originado a fundação da Academia:
Os fieis vasslos d‟elrei nosso senhor, que habitaõ
n‟esta capital dos seos estados do Brazil, aos quaes
nenhum da Europa poderá exceder na lealdade e
sincero amor ao soberano, viveraõ na maior
consternaçaõ dêsde que receberaõ a noticia da
perigoza enfermidade de S. M. Fidelissima (...) em
que
conseguiraõ a
certeza
do perfeito
restabelecimento da importantissima vida, e precioza
saude do mesmo senhor. Foraõ ainda mais os jubilos
nos coraçoens, que os repiques nas igrejas, e com
innumeraveis festas publicas repetidas vezes
manifestou-se o gosto que tinhaõ no peito.21
Os súditos residentes da América portuguesa enalteceram
a recuperação da precioza saude do rei como fato que fez nascer
neles a motivação para criar a Academia dos Renascidos, que foi
representada nos estatutos como sendo uma forma de celebrar o
116
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Academia dos Renascidos
restabelecimento da importantissima vida do monarca. Com a
finalidade “de perpetuar na memoria p.ª os séculos futuros sua
imcomparavel alegria alimentada da pureza da sua fidelidade” 22,
os súditos buscavam um “novo modo de dar ao mundo hua
prova demonstrativa da sinceridade desses obzequios.” 23 O
documento não se furtou de enaltecer que a escolha fora feita
com base na afeição que os acadêmicos sentiam
por seu
monarca. Considerando as oferendas que poderiam ser dignas do
rei, eles ponderaram que “os Soberanos saõ Senhores das vidas,
honras, e fazendas dos seus Vassalos, e q‟ offerecer lhes tudo
isso he mais prova de sugeiçaõ, q‟ do affecto”24 e então
decidiram estabelecer “hua Academia q‟ tenha por principal
Instruçaõ escrever a Historia Universal Ecles.ª e Secular da
America Portuguesa.”25 Os idealizadores do projeto almejavam
expressar “hum perpetuo padraõ de sua alegria e do seu
affecto”26 para com o rei que seria homenageado, ainda, pelo
começo das atividades “no feliz dia em q‟ se celebra o
Anniversario da nossa maior fortuna, dedicando a este sublime
objecto as primeiras produçoens dos seus engenhos.”27
Na apresentação de todas as propostas de dissertações
que se seguiriam aos estatutos, o monarca seria, ainda, objeto de
outra dissertação sobre, “As Memorias para a Historia do nosso
Augusto Soberano e Protector da Academia dos Renascidos, o
117
Bruno Casseb Pessoti
Muito Alto, Muito Poderozo Rey e Pae da Patria.” 28 A
linguagem, submissa e reverente, deu o tom da homenagem
prestada ao monarca e da justificativa dada para a fundação da
Academia. Há aqui duas representações interessantes. Primeiro a
da Academia enquanto forma mais digna encontrada pelos
vassalos para mostrar ao rei – e ao mundo – seu agradecimento e
seu júbilo pela recuperação da saúde da sua maior fortuna.
Diante de várias possibilidades que se apresentavam, os
renascidos representaram a Academia como a melhor alternativa
possível para dignificar e louvar o rei. Importante ressaltar que
os membros responsáveis pela elaboração dos estatutos
descreveram o congresso renascido, desde as primeiras linhas
escritas sobre sua fundação, como local a partir de onde se
pretendia evidenciar ao mundo a fidelidade devotada ao
monarca lusitano através de manifestações calcadas em práticas
de escrita.
Conferindo dimensão internacional ao desejo de mostrar
o amor e o afeto que direcionavam a seu rei, os acadêmicos
estenderam esse alcance transnacional à sua produção escrita
uma vez que esta seria a ferramenta usada para que se
materializasse esse desejo. Extrapolar os limites do universo
metrópole/colônia era uma estratégia retórica que serviria tanto
para enaltecer e superdimensionar a devoção dos súditos luso118
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Academia dos Renascidos
americanos como para ampliar a circunscrição dos préstimos
que a Academia oferecia ao rei, que pela sua própria natureza
necessitavam de uma dimensão intercontinental. A segunda
representação foi a dos acadêmicos, na verdade uma autorepresentação que os descreveu como vassalos depositários de
uma fidelidade pura dotados de uma alegria incomparavel, que
encontraram na Academia a forma, não apenas mais digna de
louvar ao rei, mas também a que mais deixaria transparecer o
apreço afetivo que tinham por ele. Assim, além dos objetivos
práticos que se propunha a perquirir atinentes aos interesses
régios, a Academia era a expressão sentimental de uma
homenagem que fora originada a partir de sensações de afeição
que os vassalos de além-mar nutriam pelo seu soberano.
Desde o primeiro parágrafo do documento ficou
evidenciado que a lealdade para com S. M. F. não seria mitigada
pela distância que o separava fisicamente de seus súditos
americanos, aos quaes nenhum da Europa poderá exceder na
lealdade e sincero amor ao soberano. Os estatutos se
encarregaram de mostrar, ainda, todas as utilidades que uma
iniciativa como a fundação do congresso renascido poderiam
oferecer aos interesses do monarca. Assim, “sendo certo que dos
congressos
litteratos
rezultaõ
á
republica
inexplicaveis
utilidades, que só se reconhecem com a experiencia, e se
119
Bruno Casseb Pessoti
premeaõ as ações ilustres, perpetuando-se a memoria das que
obraraõ os vassalos mais dignos.”29 Os fiéis vassalos reunidos
descobriram a fórmula mais digna para dar mostras de sua
fidelidade e sujeição estando em perfeita consonância com os
interesses do rei que
(...) fará mais estimaçaõ d‟este obzequio, que
levantar-lhe em cada praça publica um estatua
equestre do mais preciozo metal. (...) uma academia,
que tomou por empreza escrever a nossa historia
d‟este continente, e tem por obrigação averiguar a
verdade, podia fazer eterno o seo agradecimento aos
reaes beneficios, colocando no templo da Fama a
glorioza memoria das ações de um rei, que pode ser
o prototipo de todos os príncipes perfeitos. 30
Ao “Poderozo Rey D. Joze N. Sn. e Pay da Patria” 31 os
acadêmicos alçaram à condição de Protector da Academia, “a
quem se dedica esse utilissimo estabelecim.º” 32 bem como a
quem “seraõ sempre dedicadas” 33 as obras produzidas. Os
membros da Academia jogavam assim com seus interesses. Na
passagem acima ficaram explicitadas as razões da superioridade
do tipo de serviços e homenagens oferecidos por uma academia
histórica diante de outros gêneros de reverência típicos do
período. Esse parágrafo já era uma proposta bastante direta ao
rei: imortalizar o monarca a partir da colocação de suas ações no
templo da Fama, o que certamente ajudaria a elevá-lo à
condição de príncipe prefeito – o que por si só já justificaria a
120
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Academia dos Renascidos
criação da academia – em troca de algumas retribuições. A
imortalidade régia se transformava em algo tangível através de
um serviço oferecido ao rei pelos acadêmicos. Seu preço? A
concessão de alguns reaes beneficios. A história deveria ser o
recurso intelectual através do qual se enalteceria a glória real
legando o monarca e suas ações à posteridade. A disciplina
histórica
necessitaria,
assim,
de
certos
méritos
que
corroborassem a dignidade da empresa-proposta, e tinha, além
disso, a função tácita de contribuir para convencer o monarca e
comprovar a viabilidade da empreitada.
Destarte, a iniciativa – de esforço conjunto para fundação
da academia – se justificava apoiada no mecanismo erudito – a
história – a ser colocado em prática na construção do trabalho
intelectual a serviço da memória. Sem a primeira “ficaraõ
injustamente sepultadas as maiores façanhas, ou pelo irreparavel
ocio
dos eruditos, ou pela
ignorancia
invencivel dos
vindouros”34 e sem a segunda “nem se temeria a infamia pela
facilidade, com que se poderia esquecer, nem seria muito
estimavel a gloria de emprehender açoens grandes, durando
pouco tempo a lembrança das heroicidades.”35 Os acadêmicos
apresentavam suas credenciais para fazer com que chegasse à
posteridade uma imagem gloriosa do soberano. Apesar do amor
e do afeto que sentiam por ele, os renascidos acalentavam a
121
Bruno Casseb Pessoti
expectativa de que essas propostas fossem contempladas por
benefícios régios que seriam a comprovação de que o serviço
oferecido havia despertado o interesse e o reconhecimento do
rei. Na economia das trocas os acadêmicos luso-brasileiros
ofereciam uma passagem para o céu, caberia ao rei julgar a
qualidade do translado.
A busca por prestígio e benefícios era uma moeda de
dois lados. O beneplácito e a generosidade poderiam ser
recompensas para os fiéis e devotados servidores dos interesses
régios. A proscrição poderia ser a contrapartida que vitimava
mesmo aqueles que já haviam desfrutado da confiança do rei ou
do seu ministro. José Mascarenhas foi prova cabal disso.
Mascarenhas foi designado para conter os motins ocorridos em
1757, no Porto, por ocasião da fundação da Companhia de
Comércio das Vinhas do Alto Douro. Em 1758, chegou ao Brasil
na condição de Conselheiro Ultramarino, cheio de incumbências
políticas e administrativas importantes como fundar dois
conselhos e orquestrar a expulsão dos jesuítas da América
portuguesa. Além de ter cumprido rigorosamente com as
determinações que lhe haviam sido atribuídas, Mascarenhas
fundou uma academia que tinha como uma de suas principais
funções render homenagens às figuras de D. José I e de seu
ministro.
122
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Academia dos Renascidos
Mas, não importava a folha de serviços prestados
anteriormente, punições severas eram a praxe para com quem
descumpria determinações de Pombal. Acusado de estabelecer
relações cordiais com um navio francês que aportara na Bahia,
Mascarenhas foi encarcerado e condenado à prisão perpétua.36
Nem as funções que desempenhara ao longo de sua vida como
funcionário do aparelho administrativo português, ou os serviços
prestados por sua academia no sentido de glorificar o rei e de
ajudar a comprovar a legitimidade da soberania portuguesa no
Brasil, foram suficientes para salvá-lo. O reflexo foi sentido na
Academia dos Renascidos que, na ausência de seu diretor
perpétuo, encerrou precocemente suas atividades o que terminou
por antecipar o fim das propostas de ação e intervenção da sua
produção intelectual.
Conectado
ao
ideário
reformista
do
consulado
pombalino, a produção da Academia dos Renascidos foi
influenciada por conceitos ilustrados. Ainda que seja necessário
relativizar o grau de amadurecimento desses conceitos, sua
influência
no
círculo
renascido
parece
inegável.
O
reconhecimento da necessidade de melhor conhecer as riquezas
e as potencialidades da colônia se fez presente nos anseios
desses acadêmicos que para isso lançaram mão de algumas das
disciplinas mais valorizadas pelo cientificismo setecentista
123
Bruno Casseb Pessoti
europeu. Apesar da efemeridade das atividades renascidas, suas
ações no campo intelectual ajudaram a aperfeiçoar os ideais
reformadores que seriam incorporados com mais força e
maturidade pelos intelectuais que participaram do cenário
político e cultural brasílico do último quartel do século XVIII.
Notas de Referência

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
124
Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Professor Assistente da UFBA. Contato:
[email protected] Este artigo é parte da dissertação de mestrado,
que teve apoio financeiro do CNPq: PESSOTI, Bruno Casseb. Ajuntar
manuscritos, e convocar escritores: o discurso histórico institucional no
setecentos luso-brasileiro. 2010. 283 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2009.
GANDELMANN, Luciana. “As mercês são cadeias que não se
rompem”: liberalidade e caridade nas relações de poder do Antigo
Regime Português. In: SOIHET, Raquel, BICALHO, Maria Fernanda B.
e GOUVÊA, Maria de Fátima S. Culturas políticas: ensaios de história
cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro, Mauad,
2005, p. 109-110.
Ibidem, p. 113.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia.São Paulo,
UNESP, 2005, p. 221.
Ibidem, p. 7.
Ibidem, p. 7-8.
Ibidem, p. 7.
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998, p. 77.
SILVA, op. cit., p.11.
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas. Monarcas, vassalos e
governo a distância. São Paulo, Alameda, 2008, p. 20.
LAMEGO, Alberto. A Academia Brazilica dos Renascidos. Bruxelas,
D´Art Gaudio, 1923, p. 17.
SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra. São Paulo, Cia. das Letras,
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Academia dos Renascidos
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
2007, p. 384.
MUNTEAL FILHO, Oswaldo. Uma sinfonia para o Novo Mundo: a
Academia Real das Ciências de Lisboa e os caminhos da ilustração lusobrasileira na crise do Antigo Sistema Colonial. 1999. 453 f. Tese
(Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999, p. 74.
Estatutos da Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos,
estabelecida na cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos, capital
de toda a América portuguesa, da qual há de escrever a História
Universal. Salvador, 21 de julho de 1759. (Em anexo, relação da
distribuição dos empregos para os quais a Academia dos Renascidos
elegeu por votos). BNRJ, seção de manuscritos – 04, 03, 007,
Fundo/Coleção: Real Biblioteca. Original Manuscrito, 41 p.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
LAMEGO, op. cit., p. 18-20.
TALHE, Regina Duarte. A Academia Brasílica dos Renascidos da Baía:
sua importância histórico-cultural. 1964. Tese (Doutorado em Letras),
Universidade Clássica de Lisboa, Lisboa, 1964, 1ºv, p. 11.
MIRALES, José de. Historia Militar do Brasil. Rio de Janeiro,
Typographia Leuzinger, 1900, folha de rosto.
Estatutos da Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos..., op. cit..
Ibidem.
Ibidem.
Estatutos da Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos..., op. cit..
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
José Mascarenhas fora encarcerado em uma prisão em Santa Catarina.
Com a subida de D. Maria ao poder, em 1777, e a conseqüente
deposição do Marquês de Pombal, Mascarenhas foi libertado.
125
Bruno Casseb Pessoti
126
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os perigosos Domínios de Hespanha: contatos e tensões na
fronteira luso-espanhola da Capitania do Rio Negro (17801808)
Carlos Augusto Bastos
Considerações iniciais
As relações diplomáticas entre Portugal e Espanha no
século XVIII foram caracterizadas principalmente por conflitos,
ocorridos de modo visível nos domínios das duas Coroas na
América. No continente americano, desenrolaram-se avanços
militares mútuos nas zonas fronteiriças, bem como contestações
dos dois lados sobre os direitos de ocupação de vastas áreas.
Nesse século, as disputas internacionais entraram em uma nova
fase, com o acirramento das concorrências entre os impérios
ultramarinos europeus pela hegemonia no mundo colonial, o que
influenciou as medidas visando delimitar e proteger os domínios
de Espanha e Portugal no Novo Mundo. Assim, para dirimir as
disputas territoriais na América, as Coroas ibéricas assinaram
em 1750 o acordo diplomático que ficou conhecido como
Tratado de Madri. 1 Em 1760, contudo, o monarca espanhol
Carlos III determinou a anulação do tratado e, em 1761, o
Tratado de El Pardo estabeleceu que a linha divisória dos
domínios sul-americanos voltaria à situação anterior à 1750.
Entre 1761 e 1776, travou-se nos limites hispano-portugueses da
América uma “guerra de frontera”, na avaliação de Manuel
Carlos Augusto Bastos
Lucena Giraldo.2 A partir do final da década de 1770, deu-se um
movimento de aproximação entre as duas Cortes.3 Em 1777, as
duas Cortes firmaram em San Ildefonso de la Granja um tratado
preliminar de limites para as possessões americanas e asiáticas,
determinando a interrupção das hostilidades nas fronteiras e
oficializando a intenção de resolver futuramente as pendências
territoriais. Em 1778, portugueses e espanhóis assinaram o
Tratado de Amizade, Garantia e Comércio, pelo qual a Coroa
portuguesa se comprometeria, entre outros pontos, a não intervir
em um possível conflito entre Espanha e Inglaterra. A partir de
1780, e até princípios do século seguinte, as autoridades ibéricas
iniciaram os trabalhos de delimitação dos limites entre as
Américas espanhola e portuguesa, almejando com isso definir os
espaços de seus impérios no continente.
As comissões demarcadoras espanholas e portuguesas
tinham como objetivos reconhecer os espaços fronteiriços e,
evidentemente, representar os interesses de suas respectivas
Coroas na configuração do mapa final dos domínios de Espanha
e Portugal na América do Sul. Além disso, a longa interação
entre as comissões possibilitou o aumento do intercâmbio de
informações entre os domínios portugueses e espanhóis na
América. Essas informações eram relevantes não apenas para
conduzir os trabalhos das comissões, mas também se mostravam
128
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os perigosos Domínios de Hespanha
essenciais para conhecer, mesmo que de modo fragmentário, o
que se passava nos espaços vizinhos. E, ao acompanhar a
movimentação de tropas e o estado político e econômico dos
territórios contíguos, portugueses e espanhóis orientaram seus
planejamentos de defesa nas regiões de fronteira.
Neste artigo, será analisado o caso da Capitania do Rio
Negro,4 no extremo norte da América portuguesa, entre a década
de 1780, quando tem início os trabalhos de demarcação de
limites da Quarta Partida ou Comissão Demarcadora lusoespanhola,5 até antes da crise política dos impérios ibéricos
iniciada no ano de 1808. A permanência das comissões
espanholas e portuguesas nessa Capitania permitiu a circulação
pela fronteira de pessoas envolvidas nos trabalhos de
demarcação, assim como de informações. Em relação às
autoridades portuguesas do Rio Negro, as informações que
chegavam do lado espanhol foram importantes na orientação da
política a ser adotada com relação aos trabalhos de demarcação,
mas também na tomada de decisões sobre a defesa militar da
região. Neste texto, serão abordadas as leituras e interpretações
dos oficiais portugueses sobre o contato com os espanhóis e as
ameaças representadas pela proximidade com os domínios de
Espanha.
129
Carlos Augusto Bastos
A guerra como possibilidade nos confins da América
Mesmo em um contexto de aproximação diplomática, as
autoridades portuguesas permaneceram bastante cautelosas
sobre o que ocorria no outro lado da fronteira e suas possíveis
repercussões e ameaças para os domínios de Portugal no vale
amazônico. Os acordos assinados pelos monarcas ibéricos não
eliminaram a preocupação com conflitos armados que poderiam
se desenrolar futuramente. Esses possíveis conflitos, por sua
vez, certamente envolveriam as possessões americanas. A
experiência acumulada de décadas de tensões e guerras era um
fator importante para alimentar o temor das autoridades
portuguesas que serviam nos territórios americanos. Além
dessas experiências, a circulação de informações no espaço
fronteiriço também embasava a leitura política desses sujeitos,
influenciando as ações voltadas para o controle da fronteira.
Assim, o chefe da Partida demarcadora portuguesa, João
Pereira Caldas, ao oficiar em 1783 para Martinho de Mello e
Castro, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, admitia não
ter naquele momento indícios suficientes para desconfiar do
procedimento dos espanhóis nas províncias vizinhas, mas
lembrava que o Estado do Grão-Pará era confinante “com os
espanhóis, franceses e holandeses, e que a atual aliança das ditas
130
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os perigosos Domínios de Hespanha
três grandes potências”, assim como a “revolta da América
inglesa, tudo isto [deveria] contribuir para com o tempo se
disporem e tomarem as convenientes precauções de defensa.”6
Ao mesmo tempo em que a Partida portuguesa buscava barrar as
reivindicações territoriais espanholas, seus oficiais tentavam
acompanhar a movimentação de tropas espanholas na América.
Tratava-se de uma tarefa essencial para evitar possíveis
agressões dos espanhóis contra os Domínios de Portugal. Em
1784, um oficial português informou que ficara sabendo, a partir
de conversas mantidas com os espanhóis, que dois regimentos
“bem disciplinados”, e que haviam participado da guerra contra
os ingleses, haviam sido enviados para Cartagena de Indias e
Santa Fé; parte dessa tropa deveria também reforçar a cidade
Quito para a defesa contra as “freqüentes sublevações de
Índios.”7 Temia-se, contudo que essas tropas pudessem mais
tarde ser mobilizadas para fazer a guerra aos portugueses. 8
Da parte das autoridades de Castela, as inquietações
eram semelhantes. Para o Primeiro Comissário da Partida
espanhola de demarcação, Francisco Requena, os trabalhos de
sua comissão deveriam atentar, entre outras coisas, para os
prováveis movimentos de tropas portuguesas em uma guerra,
protegendo-se os espaços mais sensíveis a um ataque inimigo.
Os limites dos domínios hispano-americanos deveriam ser
131
Carlos Augusto Bastos
guarnecidos, evitando-se que forças portuguesas alcançassem
partes centrais das terras de Sua Majestade Católica no Novo
Mundo. Assim, no ano de 1781, no início dos trabalhos das
Partidas de demarcação, Francisco Requena escreveu sobre a
necessidade de reforçar as defesas do rio Putumayo contra as
incursões vindas do lado português da fronteira. Na boca do
Putumayo deveria ser estabelecido um “respetable destacamento
mandado por un oficial de juicio, entereza y buena conducta,”
devendo ser colocado outro posto militar na “boca más
occidental del río Japurá” com a finalidade de criar obstáculos
aos ataques lusos. Requena destacou que as medidas eram
importantes caso viesse a ocorrer “alguna guerra” com Portugal,
visto que os sobreditos rios possuíam “fáciles comunicaciones
con nuestras Provincias de Quito, Popayan, Napo y otros
territórios de nuestro domínio.”9
Diante das possíveis ameaças vindas dos domínios
espanhóis, o reconhecimento do território pelos portugueses
deveria ser oportunamente aproveitado para protegê-lo de
possíveis invasões. Os comissários portugueses determinaram,
em várias ocasiões, que se averiguassem as ligações fluviais
entre a Capitania do Rio Negro e os territórios espanhóis, para
assim reforçar a presença de tropas nos pontos estratégicos. Esse
era o caso do Rio Branco, onde já havia ocorrido uma invasão
132
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os perigosos Domínios de Hespanha
espanhola. Segundo recomendações dos oficiais da Partida
Portuguesa, o Rio Branco poderia servir de rota de uma nova
invasão que, partindo da Capitania Geral da Venezuela, poderia
ameaçar o Estado do Grão-Pará e mesmo a Capitania do MatoGrosso.10 Era necessário, assim, conhecer melhor quais rotas
ligavam a região do Rio Branco à colônia espanhola, assim
como ao também limítrofe estabelecimento colonial dos
holandeses no Suriname.
O reconhecimento do território, essencial na formulação
de planos de defesa e ataque, deveria ser vedado aos espanhóis
que atuavam no
Rio
Negro durante as demarcações.
Recomendava-se constantemente o controle sobre a circulação
no território rio-negrino dos oficiais e outros membros da
Partida Espanhola. Havia o receio de que, nesses deslocamentos,
esses sujeitos pudessem formar um conhecimento mais balizado
sobre a terra e os povos sob domínio de Portugal. As autoridades
portuguesas procuraram regular o deslocamento dos oficiais
espanhóis através da concessão de passaportes, objetivando
assim limitar o espaço a ser percorrido por esses homens apenas
às áreas onde atuavam as comissões de demarcação.11
Na avaliação das autoridades espanholas, a exigência de
passaportes para os oficiais de sua Partida era mais uma
artimanha portuguesa para a prática da usurpação de terras
133
Carlos Augusto Bastos
americanas de Sua Majestade Católica. Em 1787, o Primeiro
Comissário espanhol afirmou que os passaportes eram mais um
dos entraves enfrentados pela Partida de seu comando, entraves
esses que visavam impedir que os espanhóis acompanhassem as
expedições de reconhecimento e demarcação dos limites iberoamericanos. As poucas rotas permitidas aos espanhóis eram
acompanhadas pelos oficiais portugueses, que destacavam
soldados ou canoas para seguir as embarcações espanholas que
circulavam entre a Capitania do Rio Negro e a Província de
Maynas (pertencente à Audiência de Quito). Outros caminhos
eram interditados às canoas espanholas, como a ligação com o
Orinoco, enquanto que o fornecimento de víveres e o serviço de
correio com a Corte espanhola eram dificultados pelos
portugueses, em um claro procedimento de sabotagem da
Partida espanhola.12
Contatos e temores na fronteira
O cuidado em controlar o conhecimento dos espanhóis
sobre os Domínios portugueses não significou a interseção de
qualquer comunicação entre os homens envolvidos nos trabalhos
demarcatórios. Ao contrário, a troca de informações entre
autoridades portuguesas e espanholas foi constante durante os
134
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os perigosos Domínios de Hespanha
trabalhos das comissões demarcadoras de fronteiras, pois era
essencial para instruir sobre os procedimentos a serem tomados
nas demarcações, e para a resolução de conflitos entre as partes
envolvidas. Além desses casos, havia igualmente o intercâmbio
de informações políticas mais gerais, geralmente divulgadas
através de impressos. A remessa de gazetas era uma
demonstração
de
cordialidade
entre
as
partes,
mas
principalmente um recurso de instrução sobre o contexto
político internacional e suas possíveis implicações nas
negociações sobre os limites territoriais. Em dezembro de 1789,
o Comissário da Partida espanhola, Francisco Requena, enviou
aos oficiais portugueses “uma coleção de gazetas de Madri” que
ele havia recebido de Quito. A coleção compreendia o período
de maio de 1788 a março daquele ano, e uma das gazetas trazia
a notícia sobre o falecimento do monarca espanhol, ocorrida no
final de 1788.13
No caso acima, a demora do Comissário espanhol em
informar a morte do rei certamente se devia não apenas às
dificuldades de contato da área de fronteira com outras partes do
império, mas também à cautela dos oficiais em selecionar o que
contar aos portugueses, e em qual momento fazê-lo. O oficial
português da Partida de demarcação já soubera da morte de
Carlos III através das “canoas vindas da confinante Província
135
Carlos Augusto Bastos
[espanhola] de Maynas,”14 portanto antes de ser formalmente
comunicado pelas autoridades espanholas. Desse modo, a troca
de impressos era evidentemente selecionada, buscando-se
controlar o que deveria ou não ser informado às autoridades
vizinhas. O diálogo entre as autoridades deveria ser pautado pela
cautela, visto que certas notícias poderiam influenciar a
condução do trabalho das comissões demarcadoras e a própria
definição dos espaços imperiais na América.
Contudo, o fluxo de informações na fronteira não era
alimentado somente pela troca de ofícios ou conversações
mantidas pelos oficiais de ambas as partidas. O período de
trabalho das comissões demarcadoras caracterizou-se pelo
intenso deslocamento de homens entre os domínios portugueses
e espanhóis, como militares, comerciantes, índios recrutados
para os serviços nas canoas de reconhecimento do território.
Além desses sujeitos, foi igualmente comum o trânsito pela
fronteira de escravos fugidos e desertores. Com relação aos
desertores, eles eram uma importante fonte de informações para
autoridades espanholas e portuguesas. Muitos desses soldados
relataram dados essenciais sobre o que se passava nos domínios
confinantes, como rotas de viagem, movimentação de tropas,
estado político e econômico das áreas limítrofes. Desse modo,
dados significativos sobre as terras confinantes, e que por isso
136
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os perigosos Domínios de Hespanha
eram geralmente ocultados nos diálogos mantidos entre as
autoridades, eram transmitidos pelos desertores. Por isso, uma
das preocupações mais presentes na documentação gerada pelas
autoridades portuguesas era protestar contra a fuga de desertores
para os Domínios espanhóis, assim como proteger os soldados
espanhóis que buscavam abrigo nas terras do Rio Negro.
Segundo
quatro
desertores
espanhóis
que
se
apresentaram aos portugueses em Tabatinga, o Comissário
espanhol Francisco Requena havia determinado que se
prestassem todos os auxílios aos soldados portugueses que
fugissem para o lado espanhol da fronteira; os desertores
deveriam também ser encaminhados para Quito, certamente para
dificultar que eles retornassem para a América portuguesa.15 Ao
abrigar os desertores portugueses, os espanhóis poderiam
inquiri-los sobre diferentes informações a respeito do território
vizinho. Assim, um oficial espanhol confidenciou a outro da
Partida portuguesa que gostaria de conhecer o “Pará pelas boas
notícias que tinha ouvido daquela Cidade” em Guayaquil de um
desertor português. Esse desertor lhe havia dito que a cidade
“era bastantemente grande” e que “tinha muita Tropa.”16
O contato diário entre portugueses e espanhóis também
proporcionava o acúmulo de dados sobre o território vizinho.
Uma das descrições que os portugueses dispunham sobre a
137
Carlos Augusto Bastos
cidade de Quito foi construída a partir das conversações
mantidas pelo ajudante de cirurgia José Ferreira com alguns
oficiais e soldados espanhóis que serviam na vila de Ega, na
capitania do Rio Negro. O documento sintetiza algumas notícias
conseguidas durante conversas, consistindo um pequeno
relatório com informações sobre número de soldados na cidade,
principais construções militares e impressões dos oficiais
espanhóis sobre seus subordinados. 17 Esses fluxos cotidianos de
informação acabavam, assim, se revelando valiosos para
conhecer, mesmo que de maneira parcial e fragmentada, o outro
lado da fronteira.
Em certos momentos, porém, a manutenção da segurança
interna requeria o contato com as autoridades do outro lado da
fronteira. Assim, a grande sublevação indígena liderada por
Túpac Amaru, no Vice-Reino do Peru no início da década de
1780, foi objeto de atenção nos documentos enviados aos
portugueses. Os espanhóis encaminharam aos oficiais da Coroa
portuguesa diversos informes sobre a guerra que estavam
travando contra os índios no Peru e Alto Peru. Francisco
Requena informou João Pereira Caldas que ocorrera em Cuzco a
“escandalosa y muy sensible novedad de haber sublevado un
Indio rebelde y traidor llamado José Gabriel Túpac Amaru.”
Requena alertou também que a rebelião indígena iniciada em
138
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os perigosos Domínios de Hespanha
Cuzco poderia afetar a Província de Moxos, e a partir desta “los
territorios de Mato Grosso.” Por fim, lembrou Requena a João
Pereira Caldas de que ele deveria informar seus “Súbditos y
Jueces Subalternos” que, segundo o “espíritu del Tratado de
Amistad” de 1778, não deveriam dar “auxilio, ni acogida alguna
a los rebeldes.”18
A comunicação do Comissário Requena foi recebida
com desconfiança, como fica evidente nos documentos trocados
entre as autoridades portuguesas do Rio Negro e do Mato
Grosso. Pereira Caldas remeteu a Luis Albuquerque de Melo
Pereira e Cárceres, governador do Mato Grosso, o documento do
Comissário espanhol. Em resposta, o governador afirmou
estranhar o “esquisito zelo, e lembrança que afetou” Requena,
pois as autoridades portuguesas não poderiam agir da maneira
solicitada por ele sem receberem antes “muitas [ordens]
expressas da nossa Corte”.19 Em outro ofício, Pereira e Cárceres
informou a Pereira Caldas que a Comissão espanhola ainda não
havia iniciado os trabalhos de demarcação na fronteira de sua
capitania, possivelmente devido aos “embaraços da sublevação
indígena.” Mas ele também supunha que os espanhóis não
haviam iniciado o trabalho de demarcação porque esperavam
conseguir melhores compensações territoriais no Rio Negro, o
que não ocorreria na fronteira com a Capitania do Mato
139
Carlos Augusto Bastos
Grosso.20 As comunicações mantidas pelos espanhóis sempre
deveriam ser recebidas com desconfiança, as boas relações então
mantidas com a Corte espanhola não eliminavam a experiência
de disputas que caracterizaram a fronteira luso-espanhola na
América.
As relações entre as Cortes de Portugal e Espanha
tornaram a ser caracterizadas pela ameaça do conflito armado a
partir de meados da década de 1790. Depois da amenização do
“perigo espanhol” pelos tratados de 1777 e 1778, e da
participação portuguesa na aliança de espanhóis e ingleses
contra a França revolucionária, o tratado franco-espanhol da
Basiléia, assinado em 1795, assinalou a retomada das
hostilidades contra Portugal. França e Espanha declararam
guerra aos ingleses e pressionaram os portugueses a renunciar à
sua posição de neutralidade.21 A retomada das tensões
diplomáticas foi debatida pelas autoridades portuguesas na
América. Em relação ao Rio Negro e ao Pará, a extensa zona
fronteiriça das duas capitanias com franceses e espanhóis
alimentava ainda mais o temor de uma invasão. Mais do que
nunca, era necessário reforçar as tropas em pontos estratégicos,
e manter a vigilância sobre o que se passava nas possessões de
Espanha e França no continente. As autoridades do Grão-Pará e
Mato-Grosso debatiam sobre o perigo de uma ofensiva
140
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os perigosos Domínios de Hespanha
espanhola em todos os pontos da América e a necessidade de
uma contra-ofensiva coordenada das forças portuguesas. No
final do ano de 1800, o governador do Grão-Pará, Francisco de
Sousa Coutinho, recebeu notícias do governador de Mato
Grosso sobre a movimentação de tropas espanholas no
Paraguai;22 em outra oportunidade, o governador do Mato
Grosso solicitou ao do Grão-Pará o envio de soldados para
reforçar a guarnição do Forte Príncipe da Beira. 23
A eclosão da guerra parecia mais concreta no final do
século XVIII, levando as autoridades da América a avaliar as
possibilidades de sustentar o conflito armado contra os
espanhóis. Em 1797, Manoel da Gama Lobo d’Almada,
governador do Rio Negro, apresentou ao governador do Pará um
plano de defesa para sua Capitania, que previa também a
ofensiva contra os territórios espanhóis. Segundo alguns pontos
de seu plano, seria possível tomar, através de uma ação rápida,
as principais fortificações espanholas na fronteira, cortando as
ligações entre o Orenoco e o Rio Negro.24 A rápida ofensiva
espanhola contra a fronteira portuguesa, na chamada Guerra das
Laranjas em 1801, também foi seguida de ofensivas contra
fortificações portuguesas no Mato Grosso, o que foi comunicado
pelo governador desta capitania ao do Estado do Grão-Pará.25
141
Carlos Augusto Bastos
Da parte dos oficiais que serviam no Rio Negro, também
houve a preocupação de saber se os espanhóis estariam
preparando um ataque. Para avaliar se haveria uma ofensiva, o
oficial militar José Antonio Franco visitou o forte espanhol de
San Carlos. Ao conversar com um dos soldados que servia em
San Carlos, este lhe informou que haviam chegado notícias da
guerra entre Espanha e Portugal, com invasões portuguesas à
Galícia e à Estremadura, enquanto que espanhóis e franceses
haviam respondido com a tomada de Algarves, Extremoz, Elvas
e Olivença. Além disso, segundo as informações repassadas pelo
soldado, “Portugal fizera pazes com Castela e com o partido de
declarar guerras aos ingleses, e os portugueses não pegarem
mais nunca em armas contra Castela.”26 Ainda segundo o relato
de José Antonio Franco, os índios que que serviam no forte
espanhol afirmaram que “os castelhanos tinham tomado na
Europa do Nosso Príncipe duas Fortalezas”, e que o Príncipe
português “já as tornara a comprar a peso de muito dinheiro,
também disseram que os castelhanos querem vir tomar [as
fortalezas portuguesas de ] Marabitanas e S. Gabriel.” Disseram
também os índios que eles já estavam ocupados em “fazer roças
para a gente quando viessem para a guerra,” e que os
castelhanos tinham ao seu lado muitos índios, e que os
portugueses, “não tinham ninguém, e que se os castelhanos não
142
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os perigosos Domínios de Hespanha
tivessem valor não tomariam Marabitanas, nem S Gabriel, e se
os portugueses também não tivessem ânimo, também não
tomariam S Carlos.” 27
Considerações finais
Dentre os temas que se faziam marcantes nos discursos
das autoridades portuguesas e espanholas com relação às áreas
de fronteira na parte norte da América do Sul, é possível elencar
como um dos mais recorrentes a defesa militar dos limites
territoriais desse espaço. A abordagem por parte dos oficiais
demarcadores dessa questão ressaltava a experiência de conflitos
envolvendo Espanha e Portugal. O futuro de paz anunciado pelo
Tratado de Santo Ildefonso não apagava o passado de guerra que
envolveu as duas Coroas. Desse modo, as desavenças e conflitos
que opuseram historicamente espanhóis e portugueses na
América deveriam ser levados em consideração na conjuntura
das demarcações de limites, de modo que a delimitação e
ocupação dos espaços coloniais assegurassem vantagens
militares em uma guerra futura.
Assim, a movimentação de tropas nos domínios da
Coroa espanhola na América deveria ser acompanhada pelas
autoridades
portuguesas.
As
informações
prestadas
por
143
Carlos Augusto Bastos
desertores espanhóis precisavam ser acolhidas de maneira
cuidadosa pelos oficiais a serviço de Sua Majestade Fidelíssima.
Na virada do XVIII para o XIX, as notícias sobre as campanhas
na Europa eram discutidas pelos sujeitos que habitavam as zonas
fronteiriças. Oficiais, soldados e indígenas tinham conhecimento
da guerra em curso, e estavam cientes de que ela provavelmente
envolveria as terras americanas em breve. A partir das
informações disponíveis, os homens das fronteiras dos impérios
ibéricos na América formulavam suas interpretações sobre a
conjuntura em que viviam, e sobre o futuro das áreas coloniais.
Além disso, a dinâmica das relações na fronteira, com
aproximações e trânsito dos homens que habitavam a região,
possibilitava a troca de informações essenciais para a orientação
das políticas de defesa. A cotidiana interação entre os homens da
fronteira se mostrava estratégica para a condução da política
portuguesa para suas fronteiras coloniais, como o caso da
Capitania do Rio Negro no período em questão.
Notas de Referência

1
144
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade de São Paulo (USP), orientado pelo Professor Doutor João
Paulo Garrido Pimenta. Contato: [email protected]
LUCENA GIRALDO, Manuel (Editor). Francisco Requena y otros:
Ilustrados y bárbaros. Diario de la exploración de límites al Amazonas
(1782). Madrid: Alianza Editorial, 1991, pp. 9-11.
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os perigosos Domínios de Hespanha
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
LUCENA GIRALDO, Manuel. “La Expedición Imaginaria: La
ejecución del Tratado de San Ildefonso en la Guayana Española (17761784).” In: SOLANO, Francisco de, BERNABEU, Salvador (coord.).
Estudios (Nuevos y Viejos) Sobre la Frontera. Madri: CSIC, 1991, pp.
249-276.
VIDAL, Josep Juan, MARTINEZ RUIZ, Enrique. Política Interior y
Exterior de los Borbones. Madrid: Ediciones Istmo, 2001, pp. 317-318.
Área administrativa ligada ao Estado do Grão-Pará, o Rio Negro era
fronteiriço com os Vice-Reinos de Nova Granada e do Peru, e com a
Capitania Geral da Venezuela
ROJO GARCÍA, Maria Loreto. “La Línea Requena: Fijación científica
de la frontera brasileña con Venezuela, Nueva Granada y Perú (17771804)”. In: SOLANO, Francisco de, BERNABEU, Salvador (coord.).
Estudios (Nuevos y Viejos) Sobre la Frontera. Madri: CSIC, 1991, pp.
217-247.
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Rio Negro, Documento 276,
14/05/1783. Optou-se nesse artigo por atualizar a ortografia das fontes
citadas.
AHU, Rio Negro, Documento 347, 03/09/1784.
AHU, Rio Negro, Documento 330, 30/07/1784.
Archivo General de Indias (AGI), Santa Fe, 663B. Carta de Francisco
Requena a Jose de Galvez. Ega, 30/01/1781.
AHU, Rio Negro, Documento 291, 26/09/1783.
AHU, Rio Negro, Documento 322, 28/07/1784.
AGI, Santa Fe, 663B. Carta de Francisco Requena ao Marques de
Sonora. Ega, 12/02/1787.
Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Códice 461, 22/12/1789;
Primeira Comissão Demarcadora de Limites (PCDL), Coleção Pontes
Ribeiro (CPR), A-36, p. 15.
PCDL, CPR, A-36, p. 15.
APEP, Códice 482, 19/11/1791.
AHU, Rio Negro, Documento 347, 03/09/1784.
APEP, Códice 493, 12/01/1792.
AHU, Rio Negro, Documento 227, 21/09/1781.
AHU, Mato Grosso, Documento 1361, 02/07/1782.
AHU, Mato Grosso, Documento 1364, 25/07/1782.
ALEXANDRE, Valentim. Os Sentidos do Império: Questão Nacional e
Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português. Porto: Edições
Afrontamento, 1993.
APEP, códice 577, 19/11/1800.
APEP, Códice 577, 8/9/1801.
145
Carlos Augusto Bastos
24
25
26
27
146
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Lobo d’Almada: Um estadista colonial.
Manaus: Editora Valer, 2006, pp. 256-260.
APEP, Códice 579, 10/10/1801.
APEP, códice 577, 24/11/1801.
APEP, códice 577, 24/11/1801.
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico
Medieval: O Poder, a Sociedade e a Erudição na
Muqassimah de Ibn Khaldun (1332-1406)
Elaine Cristina Senko 
Introdução
Em sua obra Muqaddimah, o historiador muçulmano Ibn
Khaldun (1332-1406) empreendeu uma análise histórica em
torno das noções de sociedade, poder e erudição nos principais
núcleos da sociedade islâmica medieval (Norte da África junto a
Península Ibérica e o Oriente islâmico). Khaldun desejava,
através de seu trabalho, compreender o modo como os grupos
sociais se mantinham coesos e fortes, buscando estabelecer
quais
parâmetros
orientavam
os
homens
a
viverem
conjuntamente – a idéia de umran.1 Nesse sentido, Khaldun põe
em prática uma metodologia historiográfica crítica e reveladora,
a qual se utilizava de uma técnica advinda do tradicionalismo
islâmico do tadil wa tajrih (improbatio et justificatio).2 O
presente artigo busca justamente delinear o raciocínio de
Khaldun no que se refere ao seu entendimento da sociedade –
em torno de suas noções de sociedade, poder e erudição –,
entrevendo quais seriam os principais aspectos, na justificativa
Elaine Cristina Senko
do autor, que orientavam a união dos grupos sociais e que
caracterizavam o movimento típico das sociedades islâmicas no
tempo.
Metodologicamente, para compreender sociedade dos
homens, Khaldun recorreu à fontes tais como Galeno em seu
tratado de medicina Sobre o uso dos membros (Períkreias tón
Anthrópou sómati moríon). Khaldun resgatou nessa fonte o
sentido da força que o ser humano poderia se utilizar para buscar
meios ao seu sustento. Ao mesmo tempo, o historiador
muçulmano buscou apoio em fontes que trabalhavam com
aspectos da geografia, tais como o Tratado sobre Geografia de
Ptolomeu; além disso, fez um estudo detalhado acerca do
planisfério de Idrissi. Assim, Khaldun passa a observar a teoria
dos sete climas e inicia seu estudo no Mediterrâneo, seguindo
até o Oriente. Nesse sentido, passo a passo, o historiador
muçulmano demonstra seu conhecimento sobre astronomia e
astrologia, tendo em vista que necessitava de orientação
geográfica para identificar alguns povos: por exemplo, os
chamados povos da meia noite (os negros que estão abaixo do
Magreb e que também foram estudados por Al-Maçudi) e os
esclavões (os povos do norte). Dentre os homens mais fortes e
qualificados para sobreviverem na sociedade estão aqueles que
habitam os desertos, tendo em vista que possuem uma
148
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval
alimentação austera e não oriunda da cidade (com sua
abundância). Esse pensamento de Khaldun, no entanto, é mais
desenvolvido em outra obra sua, A História dos Berberes.
Para legitimar o estudo da sociedade, Khaldun também
nos traz uma análise sobre a natureza da revelação do Profeta,
bem como sua diferença com certas práticas, tal como magias e
leituras de augúrios (estas pertencentes aos pagãos). As fontes
de informação utilizadas por Khaldun nessa parte são o Sahih de
Al-Bukhari (tradicionalista), Kitab Al Gayat de Maslama
(tradicionalista) e também reflexões oriundas de fatos históricos,
da filosofia islâmica, da matemática aristótelica e islâmica, das
bases da religião sunita e da medicina. Para alcançar um
entendimento claro, Khaldun com base em seus estudos, indica
que nos utilizamos da seguinte série: faculdade estimativa –
faculdade memorativa – faculdade reflexiva –, assim chegando
ao chamado intelecto puro.
Por uma análise que compreenda a sociedade
A sociedade para Ibn Khaldun está dividida entre os
nômades (berberes e nômades árabes) e os sedentários (os
citadinos). A questão da corrupção está ligada à luxuosidade que
as famílias adentram quando alcançam a vida citadina. Para
149
Elaine Cristina Senko
Khaldun há primeiro a vida no campo ou no deserto, e depois
pode se alcançar a vida nas cidades. É exatamente nestas
localidades que a austeridade se perde, os homens se corrompem
e acabam por pagar impostos ao governante. Na vida do campo
ou do deserto, os homens são mais corajosos em relação aqueles
que já habitam as cidades e que se submetem ao poder.
O aspecto que mantém essas sociedades unidas e fortes
seria uma espécie de espírito de grupo, denominado por
Khaldun de assabya. 3 O espírito de grupo seria o principal fator
de ânimo aos homens, em sociedade, para empreenderem a
conquista. Nesse pensamento, aqueles que fazem parte de
grupos no deserto tem maior chance de serem os conquistadores
da cidades já corrompidas pelo luxo. Um homem poderoso
como um sultão deve zelar pelo espírito de grupo em seus
súditos: “Com efeito, a reunião dos homens em sociedade e o
espírito de clã, podem ser considerados como os elementos
constitutivos do temperamento do corpo político”.4 Além disso,
o poder necessita do espírito de grupo por conta de sua auto
proteção e manutenção:
150
Temos já dito que o espírito de clã ou de grupo é o
meio pelo qual os homens garantem a defesa mútua,
rechaçam o inimigo, se desforram das ofensas e
realizam os projetos que necessitam esforço comum.
Qualquer sociedade de homens tem necessidade de
um chefe para manter nela a ordem e impedir que
uns agridam aos outros.5
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval
A nobreza (charaf) seria alcançada pelas virtudes da
conquista, pela sua legitimação por parte do exército e sua
defesa da religião, sendo transmitida pelas gerações da dinastia
em que o espírito de grupo deve estar vivo. Por isso Khaldun
critica a interferência, por exemplo, do barkamida Jafar no
governo muçulmano de Harun Al-Raschid. O parentesco é o
elemento essencial do espírito de grupo para se alçar a nobreza,
pois a charaf e a ilustração são elementos fugazes se não bem
administradas pelo poder. Por outro lado, os povos que acabam
submetidos
acabam
copiando
os
costumes
de
seus
conquistadores, tal como observa Khaldun entre os andaluzes
conquistados
pelos
cristãos
de
Leão
e
Castela
permaneceram na Península Ibérica, perecendo de
que
suas
tradições e identidades rapidamente. Caso contrário dos
andaluzes refugiados em Norte de África, que levaram consigo a
tradição do sul peninsular e de certa maneira impuseram seu
modelo aos berberes magrebinos.
O poder deve ser digno e nobre
O soberano, segundo Ibn Khaldun, deve ser digno e
nobre. Para que o soberano exista precisa-se fundar um império,
prática levada a cabo por meio da conquista, animada pelo
espírito de grupo, e por uma religião, responsável por conduzir à
151
Elaine Cristina Senko
retidão de comportamentos. Esse é o exemplo deixado pelo
início da história do islamismo: o Profeta tinha por missão
propagar a religião e seus adeptos, com forte motivação
religiosa, empreenderam as guerras de conquistas.
Depois que um império conquista muitas regiões deve-se
tomar cuidado com as fronteira, pois é muito arriscado tê-las e
não as conseguir proteger. Isso deve ser uma preocupação maior
quando o império apresentar os primeiros sinais de senilidade.
Entretanto, enquanto o espírito de grupo exista e as mílicias do
sultão forem fortes nestes lugares, a proteção ainda continuará
garantida.
Para Ibn Khaldun o modelo de governo que deve-se
implantar depois da conquista animada pelo espírito de grupo é
a autocracia. O homem possui, de modo natural, o desejo de
ascender. Quando da conquista, a tribo de maior força de grupo
domina as outras, freia os atos de insubmissão delas e escolhem
um único chefe para os liderar, pois assim ele pode controlar a
sociedade no melhor desenvolvimento e na retidão dos
costumes. As fases de ascensão ao poder de acordo com
Khaldun são: a conquista animada pelo espírito de grupo; o
soberano retém toda a autoridade; a sociedade sente a vida
tranquila; daí vem um período de contentamento e depois um
152
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval
momento de esbanjamento que corrobora para a ruína da
dinastia.
Os descendentes do primeiro soberano entraram na
corrida em busca do luxo corrompido e assim chegará o fim do
império. Nesse momento, quando o governo já está entregue a
vida citadina luxuosa, na qual o membro de poder da dinastia
não se lembra mais de suas tradições fundadoras e suas tropas de
homens de armas já não é mais bem cuidada, o sultão tenta
remediar a situação. O homem de poder convida estrangeiros
para fazerem parte de suas tropas e elas vêm animadas pelo
espírito de grupo com seus olhos fixados no poder que as
contratou: “Isto demonstra que, no espaço de três gerações,
chegam os impérios à decrepitude, completam o ciclo de sua
evolução, mudando completamente de natureza”. 6 Tal é o caso
dos mamelucos no Egito: Khaldun criticou a desorientação do
antigo governo ayubbida que, dominado, acabou por perder seu
poder para os estrangeiros. No entanto, o erro consiste em que
os antigos governantes, tendo criado rivalidades internas,
importaram os de fora e os trataram como membros de sua
própria família, assim desestruturando todo e qualquer espírito
de grupo da dinastia reinante. Por outro lado Khaldun indica que
um procedimento de conquista que se utilizou dos estrangeiros,
empreendido pelo sultão granadino Ibn Al-Ahmar, foi de
153
Elaine Cristina Senko
procedência correta e sua ação resultou na efetiva resistência
islâmica na Península Ibérica.
Khaldun estuda os monumentos de algumas dinastias e
suas receitas fiscais para explicar que esses documentos podem
revelar a grandiosidade de um poder. Cita as viagens de Ibn
Batuta e o quanto esse aventureiro de seu tempo pôde ver coisas
maravilhosas, mas chama a atenção para os acontecimentos
fantasiosos novamente:
Isso acontece muitas vezes aos homens que
pretendem falar de coisas novas; deixam-se
influenciar tão facilmente por suas prevenções, a
respeito dos fatos extraordinários, como pela mania
de exagerá-los, com o fito de torná-los mais
surpreendentes, como já notámos no começo deste
livro. É por isso que devemos procurar os princípios
das coisas e precaver-nos contra as primeiras
impressões. À luz dos princípios, poder-se-á
distinguir, estados de bom senso e num espírito reto,
o que entra ou não nos domínios do possível como
também se reconhecerá como verdadeira toda a
história que não ultrapasse os limites do possível. 7
Quando um sultão é posto sob tutela devido à sua
menoridade para governar e quando disso decorre que um vizir
ambicioso toma o seu lugar, deve-se observar que esse fato é um
acidente social produzido, conforme Khaldun, por uma dinastia
que está entregue aos hábitos de luxo. Porém a retidão nos
154
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval
ensina que tal vizir nunca poderia ter subtraído o poder ao ponto
de se auto denominar o homem de poder de determinada região.
Diferente dos emires e vizires, o sultão é um governante
completo, pois tem virtudes e é apoiado pelos homens em
sociedade que possuem o espírito de grupo e que praticam
diante dele a bi’a (juramento). Segundo Khaldun: “A realeza,
pois, é uma nobre instituição; solicitada de toda a parte, invejada
por muitos defensores, e, para ser útil a todos, precisa de força e
da cooperação”.8 Um dos exemplos de homem de poder no
contexto muçulmano de Khaldun é o sultão: “O sultão é, na
realidade, o dono, o possuidor do rebanho, aquele que apascenta
e cuida de tudo o que lhe diz respeito”.9 O sultão deve ter
doçura, bondade, não ser tirânico e possuir indulgência:
O soberano que governa seus súditos com doçura e
os trata com indulgência ganha sua confiança e atrai
seu amor; cercam-no de devoção, prestam-lhe sua
ajuda contra os inimigos, e sua autoridade é
prestigiada em toda parte. O bom gênio do príncipe
manifesta-se na sua bondade de que usa no trato de
seu povo e no zelo com que cuida de sua defesa. A
essência da soberania é a proteção dos súditos. A
doçura e a bondade do sultão aparecem na
indulgência com que os trata e no empenho de lhes
assegurar os meios de subsistência; é a melhor
maneira de grangear sua afeição. Agora, é preciso
saber que um príncipe dotado de um espírito vivo e
sagaz é pouco inclinado à doçura. Esta qualidade é,
habitualmente, própria do monarca bonacheirão e
despreocupado. O menor dos defeitos de um
soberano dotado de viva inteligência é impor a seus
155
Elaine Cristina Senko
súditos tarefas e empreendimentos acima de suas
forças; porque as suas miradas alcançam muito além
do que os súditos podem fazer, e quando começa
uma empresa, crê e pensa adivinhar, por sua
perspicácia, as consequências remotas do que
empreende. Sua administração é, pois, nociva ao
povo. Disse o Profeta: Regulai vossa marcha pelo
passo do mais fraco entre vós.10
Acima do governo do sultanato existe o Califado, um
poder que é orientado pelas leis divinas prescritas no Al Corão.11
De acordo com Khaldun, o Califado tem uma qualidade própria
e é ligada à dois poderes: o temporal e o espiritual. Para
sustentar o poder do califado temos os cargos de cádi (juiz) e
emir (príncipe guerreiro); para o sultanato temos o cargo do
vizir (ministro) que auxilia o poder e de hajib (aquele que
guarda o acesso ao sultão). Mas vamos apresentar esse modelo
de governo tão caro ao historiador Khaldun ao lado do sultanato
(realeza pura), tendo em vista que ambos deveriam defender o
islamismo e a verdade:
Vê que a realeza pura é uma instituição conforme a
natureza humana, e que obriga a comunidade a
trabalhar para executar os projetos e satisfazer as
paixões do soberano. Reconhece que o governo
regido por leis tem por fim dirigir e orientar a
comunidade segundo os preceitos da razão, para que
o povo desfrute dos bens deste mundo e se garanta
contra o que lhe pode ser prejudicial. Sabe o
benévolo leitor que o califado dirige os homens
segundo a lei divina, para assegurar-lhes a felicidade
da outra vida; porque, aos bens deste mundo, o
legislador inspirado12 os considera na dependência e
156
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval
através do prisma da vida futura. O Califa é, pois, na
realidade, o lugar-tenente do legislador inspirado,
encarregado de manter a religião e de se servir dela
para o governo do mundo. [...] O sapiente, o
prudente, é Allah.13
No pensamento de Khaldun são os homens que decidem,
através do uso da razão, quem deveria ser o seu sultão. Os
abusos dessa soberania são a tirania, a injustiça e a sensualidade;
e as virtudes são a justiça, a moderação e o zelo. Essa virtudes
permanecem uma constante até o tempo de Khaldun, porém o
califado já foi se transformando em realeza, misturando-se ao
sultanato.
Para Ibn Khaldun a „umran‟ é a substância cujo trabalho
e forma é o governo. Para assegurar esse governo, o sultão deve
agir com brandura, moderação, tomar cuidado com as fronteiras
e com a quantidade de homens preparados em suas tropas. Se
este governo ainda for incipiente é necessário ter tempo para
formar uma coalisão de muitos indivíduos para formar sua tropa
e se inspirarem através do espírito de grupo. No caso do governo
realizar a conquista, saindo da vida nômade e entrando numa
vida nas cidades (sedentária), deve-se observar no mundo
muçulmano as diretrizes apontadas pela lei religiosa. Depois de
preparado esse terreno funda-se, enfim, o império: “O homem é
citadino por natureza. Esta máxima, muito conhecida dos que
ouviram explicar os livros dos filósofos, é citada (pelos mestres)
157
Elaine Cristina Senko
[...] o termo citadino deriva de cidade, vocábulo servindo para
designar a reunião dos homens em sociedade”. 14 Depois da
conquista deve-se escolher um homem para o poder e este que
seja ciente das palavras divinas para guiar a conduta moral de
seus súditos – estes que devem ser em grande quantidade para
justificar um legitimo governo. Nesse ínterim religioso Khaldun
nos traz a discussão do mahdi (o fatímida esperado) por meio
dos debates de tradicionalistas islâmicos.
Nesse âmbito do poder Khaldun nos explica o
movimento histórico de ascensão, tempo que a dinastia durará, e
sua queda também pelos seus conhecimentos astronômicos e
astrológicos, os quais parecem que se misturam na sua
hermeneutica. Nas cidades os homens ricos devem zelar por sua
existência, que logo pode ser abalada pela decadência da
dinastia vigente. A civilização nasce nesse escopo das cidades,
que tem costumes diferentes dos nômades, como cita Khaldun:
Eis aí a civilização da vida sedentária. Compreendese agora porque, nas províncias afastadas da capital,
os usos da vida nômada predominam naquelas
cidades, embora contendo cada uma numerosa
população, e que seus habitantes se afastem, em
todas as suas práticas, das formas de civilização
sedentária. O caso se apresenta sob um aspecto
diverso nas cidades situadas no centro dos grandes
impérios, dos quais são sede e metrópoles. O fato se
prende a uma causa única: a presença do sultão.15
158
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval
A civilização, de vida sedentária,
estaria pois nas
cidades, tendo em vista que lá está o limiar de uma dinastia – no
caso o auge do comércio e da vida faustuosa. Nas cidades
também poderia existir o espírito de grupo quando uma família
com força nos meios sociais suprimia as demais. No Norte de
África, por exemplo, os considerados citadinos são os
emigrantes andaluzes que trouxeram consigo toda uma
civilização, enquanto os Banu Hilal são os árabes nômades que
viviam sob tendas no deserto: “A civilização da vida sedentária
tomou então, no Magrib, uma certa consistência e se estabeleceu
alí de uma maneira sólida; mas o Magrib a deve, em grande
parte, aos Andaluzes”. 16 Os andaluzes, segundo Khaldun,
levaram os costumes peninsulares ao território norte-africano e
estes se misturaram com outros costumes, tais como dos
inúmeros viajantes e do Egito.
Ibn Khaldun entendia, de maneira filosófica, que a
dinastia serve de forma para sua civilização, enquanto que a
matéria seria o ato de governar os súditos e as cidades. Depois
da existência de uma forte dinastia, que possui o significado de
civilização pelo número de seus habitantes e pela ênfase no
comércio, pode ocorrer nela um período de senilidade: “Ora, a
razão e a História nos ensinam que, no espaço de quarenta anos,
as forças e as energias do homem atingem seu derradeiro
159
Elaine Cristina Senko
limite”.17 Khaldun nos lembra que quarenta anos foi o tempo em
que os israelitas ficaram no deserto até que a nova geração, rica
em espírito de grupo, conseguisse cumprir a vontade divina em
direção à terra prometida.
Por uma concepção de tempo e história pautada na sociedade,
poder e erudição
A análise da sociedade e do poder feita por Khaldun
revela a grande erudição do historiador, tendo em vista seu
conhecimento amplo sobre todos esses temas. No entanto, de
que modo podemos entender tal estudo à luz da proposta
historiográfica que ele busca estabelecer em sua obra? Nossa
análise detida dos tópicos anteriores ganha sentido quando
passamos a seguinte reflexão: Khaldun estabelece um padrão de
movimento para todas as sociedades, caracterizando diferentes e
progressivas etapas pelas quais a história de um povo pode ser
analisada. Vejamos a ordem de seu pensamento: primeiro o
espírito de grupo anima uma dada coletividade, a qual parte para
a conquista; depois, quando estabelecida a dinastia, ela pode se
deixar abrandar pelo sedentarismo e a luxuosidade; tão logo isso
ocorrer, perderá progressivamente o seu espírito de grupo, pois o
bisneto da família esquecerá sua tradição e a decadência
tornaria-se eminente. Dessa forma, o que Khaldun deseja
160
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval
demostrar com seu estudo histórico do movimento das
sociedades são etapas onde o poder ascende, depois se acomoda
e acaba dando margem para uma reviravolta, porque outra
dinastia animada pelo espírito de grupo a domina e controla seus
costumes.
Através desse movimento inerente a sociedade, pautado
no estudo das relações de poder e da cultura (erudição) que lhe
caracterizam, entrevemos na perspectiva histórica de Khaldun
uma concepção cíclica do tempo. Segundo o historiador Rogelio
Blanco Martínez, a influencia da concepção clássica grega de
História18
em
Khaldun
é
notória
em
sua
construção
metodológica, e o que a deixa mais à vista é a sua noção de
tempo cíclico:
Cierto es que la concepción histórica de Ibn Jaldún
es cíclica, y con su dialéctica entre las formas de
vida rural, nómada y urbana contempla la inexorable
decadencia a la que abocan los crecientemente
complejos entramados entre sociedad humana y
civilización, siendo también en ello precursor de las
más pesimistas, fatalistas e incluso „apocalípticas‟
visiones históricas occidentales, desde Frobenius y
Spengler a nuestros días. Y, sin embargo, Ibn Jaldún
no es propriamente ni pesimista, ni fatalista, ni
menos aún apocalíptico, pues, como vamos a
comprobar en la cita final que haré de él, desde el
seno mismo de la devastación, en las más profunda
noche, encuentra que renace la creación, la aurora. Y
en este punto, las primeras „miradas españolas‟ a Ibn
Jaldún fueran ya muy clarividentes; comezando por
las de Rafael Altamira o la de Ortega, quien
161
Elaine Cristina Senko
calificaba en El espectador de „mente clara, toda luz,
pulidora de ideas como la de un griego (y que) va a
introducirnos en el orbe histórico donde nuestro
espíritu no logra hacer pie.19
Para Ibn Khaldun o tempo não é providencial, para ele a
História é feita pelos homens e tendo como objeto a sociedade. 20
Também nos indica Juan Martos Quesada que Ibn Khaldun teve
uma vida intensa, que a sociedade diante dele não era somente
motivo de observação, mas que ele estava mais interessado em
encontrar leis que marcassem o nascimento, a vida e a morte das
sociedades humanas21:
Para llegar a este objetivo, Ibn Jaldún no duda en
consultar todas las fuentes escritas de las que podía
disponer, ya fueran autores latinos o griegos,
bizantinos o musulmanes. Actor y testigo
privilegiado de su tiempo, contrasta su visión, sus
opiniones y valoraciones con los datos que le
ofrecen los grandes viajeros de Asia y África; y no
sólo se limita a hacer una comparación de a
información recabada, sino que es consciente de la
implicación que sufre el historiador en su narración;
según Ibn Jaldún: „el informador se introduce
naturalmente en la información histórica‟.22
Portanto, Ibn Khaldun, ao estudar e estabelecer um
conjunto de preceitos em relação à política, a sociedade e
erudição no mundo islâmico, entrevê uma concepção cíclica de
tempo. Observando uma regularidade de movimento (ascensão e
queda) nas sociedades islâmicas do passado, o autor fortalece
162
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval
uma perspectiva historiográfica que o auxilia a compreender o
próprio presente: um período inconstante para os diferentes
núcleos de poder (sultanatos) no Norte da África. Ao mesmo
tempo, o trabalho de Khaldun estabelece uma noção de grande
importância àqueles que se dedicavam ao estudo do passado:
seriam detentores de um conhecimento que os tornavam aptos
para lidar – da melhor forma possível, seguindo os bons
exemplos do passado – com as circunstâncias práticas do
presente. Nesse sentido, o erudito encontrava seu espaço
próximo ao poder, orientando políticas ao desvendar o ritmo da
sociedade.
Notas de Referência

1
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR), orientada pela Professora
Doutora
Marcella
Lopes
Guimarães.
Contato:
[email protected]
O conceito de “umran” de Khaldun está vinculado ao de civilização e
politéia.
Khaldun escolhe um panorama para discutir a formação de uma
sociedade que é necessária para uma dinastia existir, passa a observar o
poder quando já assentado em uma vida sedentária (citadina) e como o
homem de poder deveria ou não agir para se comportar diante do tempo
cíclico. Nesse sentido, Khaldun nos demonstra claramente os métodos
dos jurisprudentes, dos filósofos e da arte da linguística. A História está
entremeada em toda essa discussão, pois Khaldun a todo momento busca
nos fatos do passado os exemplos à serem seguidos ou refutados. A
própria análise da filosofia é um estudo que poderíamos denominar
história da filosofia. É no sentido de legitimidade do escrito que a
História é apropriada por Khaldun e através dela demonstrou o quanto é
163
Elaine Cristina Senko
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
164
importante a investigação em busca da verdade se utilizando da técnica
do tadil wa tajrih (improbatio et justificatio), de demonstrar que o poder
perscruta um tempo cíclico e como a sabedoria em diversas áreas é
essencial como base para um pesquisador da História.
O conceito de assabyia ou espírito de grupo é o que mantém os homens
em sociedade. Os berberes foram os que possuíam a assabyia com
exemplaridade. Essa ligação entre os homens é tida pelos laços de
sangue e de família (clã). O espírito de grupo favoreceu as conquistas
para o Império Muçulmano.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). Tradução
integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach
Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1958, p.226.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,
p.243.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,
p.306.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,
p.326.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,
p.336.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,
p.338.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,
p.339.
Os primeiros Companheiros do Profeta Muhammad estavam acima da
condição de Califas, mesmo sendo nomeados pelos seus como tais, eles
eram os corretamente guiados: Abu Bacr, Umar Ibn Al-Khattab, Uthman
Ibn Affan e Ali Ibn Ali Tahib.
O Legislador Inspirado é o Profeta Muhammad.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op.cit,
p.342.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). Tradução
integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach
Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1959, p.384.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op.cit,
p.255.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op.cit,
p.258.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). op.cit,
p.260.
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico Medieval
18
19
20
21
22
“Y con ello, Ibn Jaldún – de cierto, como un „griego‟, como le viera
Ortega – busca hacer la historia inteligible, deduciendo sus leyes
generales; pero no sin antes haber hecho que el logos griego descendiese
lo más sutilmente posible hasta las „entrañas‟ mismas de las redes de
pasiones que rigen la vida social. Se le ha comparado especialmente con
Tucídides, señalando cómo incluso „aventaja‟ a éste en la percepción de
lo puramente social, más allá de la incidencia de individuos y héroes”.
BLANCO MARTÍNEZ, Rogelio. “Ibn Jaldún: entre el saber y el poder”.
Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, pp.13-22, 2008.
BLANCO MARTÍNEZ, Rogelio. “Ibn Jaldún: entre el saber y el poder”.
Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p.17-18, 2008.
Segundo Martos Quesada: “Y en este punto considero que la visión
lienal y providencial cristiana y de su secularización ilustrada en el
racionalismo occidental, que – quizá tenga razón Marái Zambrano – ha
hecho de la Historia su último y único dios, su ídolo. Ibn Jaldún, lejos de
divinizar a la Historia, la separa drásticamente de la trancendencia que él
sólo ve en lo supranatural, y de cualquier tipo de providencia que sólo
acepta para lo puramente individual”. In: MARTOS QUESADA, Juan.
“Presentación”. Miradas españolas sobre Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p.
20, 2008.
MARTOS QUESADA, Juan. “Presentación”. Miradas españolas sobre
Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p. 11, 2008.
MARTOS QUESADA, Juan. “Presentación”. Miradas españolas sobre
Ibn Jaldún. Madrid: Ibersaf, p. 11, 2008.
165
Elaine Cristina Senko
166
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Memória social, memória coletiva e História: um
mapeamento da questão
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
A memória e as ciências sociais trilham caminhos
próximos. Um marco nesse sentido é a publicação de “Matéria e
memória”, ainda em 1897, pelo filósofo francês Henri Bergson.1
Anos mais tarde, nas primeiras décadas do século XX, outro
autor inaugurou uma “sociologia da memória”. Maurice
Halbwachs, inicialmente discípulo de Bergson2, introduziu uma
questão importante e nova ao apresentar a memória como um
fenômeno constituído coletivamente. Contrariando Bergson,
observou que a materialidade da memória não estava no corpo,
mas na sociedade.3
A obra de Halbwachs pode ser compreendida a partir
de seu vínculo com as correntes reformistas do
socialismo de sua época, bem como as teorias
Durkheimianas. Sempre esteve presente em seus
escritos a ênfase no conceito de solidariedade e a
rejeição à noção de que a natureza humana fosse
animada por impulsos subjetivos ou egoístas. A
crença no progresso democrático e social fazia parte
de seu mundo e a ela foi acoplada a defesa do
espírito coletivo e da possibilidade de sua apreensão
pelo método científico. A teoria funcionalista,
portanto, oferecia uma alternativa não só teórica,
mas também política a diversos pensadores.4
Assim, a memória passou a interessar a diversas áreas,
como a filosofia, a sociologia e a psicologia. Contudo, pela
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
História, só foi abordada a partir da terceira geração dos
Annales, notadamente Jaques Le Goff e Pierre Nora5, embora
Marc Bloch6 já houvesse se referido a memória ao criticar
Halbwachs:
[...] Bloch [...] escreveu um artigo sarcástico
criticando a tentativa de aplicar os critérios de
objetividade e comprovação empírica aos estudos
sobre o passado. Bloch defendia que fatos históricos
eram produto da construção ativa do historiador e
rejeitava a perspectiva teórica adotada por
Halbwachs. Para os historiadores dos Annales, os
estudos de memórias coletivas, como quaisquer
outros, voltavam-se para a compreensão da
causalidade inerente às ações sociais e não poderiam
ser derivados de estudos empíricos sobre padrões de
comportamento. Apesar da proximidade entre os
historiadores da École des Annales com as teses de
Durkheim, intelectuais como Bloch defenderam a
história enquanto ciência interpretativa
e
estabeleceram uma demarcação teórica importante
no debate da época.7
A relação entre História e Memória é normalmente
entendida a partir de uma dicotomia. Para alguns autores a
História é um saber científico, onde há rigor e controle, e a
Memória uma construção social e emocional a partir de
lembranças.8 Algumas críticas caminham no sentido de que as
convergências entre Memória e História são superficiais e
poucas. Embora o objeto seja o mesmo, a sua apropriação é
realizada de forma diferente. Para outros autores, a Memória é
“simplificadora”, reduzindo os processos ao que lhe parece mais
168
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Memória social, memória coletiva e História
importante, possui uma temporalidade indefinida e simples, tem
a necessidade da eleição de espaços emblemáticos, e é
repetitiva. Diferente, a História é complexa, com uma
temporalidade precisa e uma interpretação da sociedade
dinâmica. Possui espaços relativizados, e é elaborada a partir de
problematizações.9
Nos estudos para a compreensão da Memória, Maurice
Halbwachs tem um papel importante. Nas primeiras décadas do
século XX desenvolveu seu trabalho sobre a Memória
Coletiva10, contrariando o pensamento da época que via a
memória como uma ação individual e subjetiva. Para o autor, a
memória é fundamental para a constituição do grupo, e nele é
formada. O sociólogo afirma que a memória individual existe
apenas a partir da memória coletiva, apresentando-se como um
ponto de vista dentro da memória do grupo. Assim, ela é
fundamental e necessária para a formação das lembranças
individuais, mesmo em eventos que apenas nós estivemos
envolvidos. Nunca estamos sós, pois “sempre levamos conosco
e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem”.11
Na sua concepção, o indivíduo compartilha das
experiências, impressões e lembranças dos outros. Contudo, é
necessário que vestígios de um determinado evento do passado
permaneçam, sendo importante manter contanto com o grupo,
169
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
estabelecendo um elo de identificação. Devemos lembrar na
qualidade de membro desse grupo, uma participação breve num
grupo efêmero não é capaz de evocar lembranças uma vez que
ele não existe mais. Mais do que participar é necessário procurar
um ponto de contato para que as lembranças se constituam a
partir de uma base comum. A descontinuidade leva ao
esquecimento, durando a memória enquanto o grupo existir.
Assim, a “representação das coisas evocada pela memória
individual não é mais do que uma forma de tomarmos
consciência da representação coletiva relacionada as mesmas
coisas”. 12 Ou seja, toda lógica de percepção, compreensão ou
lembrança é dada pela lógica do grupo.
Sobre a História, Halbwachs a identifica como uma
espécie de cemitério, limitada apenas aos eventos mais
marcantes da história nacional, é sintética e não contínua,
tecendo com o indivíduo uma relação artificial e de
distanciamento. Os acontecimentos ligados a “memóriahistórica” nacional ocorridos num passado muito distante da
existência da pessoa, não estão relacionados com a sua vida, são
descontextualizados e em nada enriquecem a memória
individual, isto pode ser chamado de “história aprendida”. 13
Contudo, o indivíduo é marcado por outra história, pela
“história vivida”.
170
Ou seja, determinados fatos e eventos da
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Memória social, memória coletiva e História
história, inseridos no seu contexto de acontecimentos – tempo e
espaço – marcam determinada geração de uma forma que
passam a modelar as personalidades e identidades daqueles
contemporâneos aos acontecimentos.
Nossa memória não se apóia na história aprendida,
mas na história vivida. Por história, devemos
entender não uma sucessão cronológica de eventos e
datas, mas tudo o que faz com que um período se
distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas
em geral nos apresenta apenas um quadro muito
esquemático e incompleto.14
Para o sociólogo, as noções históricas desempenham um
papel secundário, pois serviriam de ponto de apoio, não gerando
também nenhuma relação íntima. O indivíduo se forma a partir
do meio social em que estava inserido, é neste “passado vivido”
que ele constituirá sua memória, e não na “história escrita” ou
“aprendida”. No caso da história vivida, “ela tem tudo o que é
necessário para constituir um panorama vivo e natural sobre o
qual se possa basear um pensamento para conservar e
reencontrar a imagem de seu passado”. 15
A História, explica o autor, é uma compilação de fatos,
selecionados,
comparados
e
classificados
conforme
a
necessidade. A História começa onde acabam a tradição e a
memória. A memória é continua e “natural”, pois ela retém o
passado que ainda está vivo no grupo. A história para
171
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
Halbwachs é descontínua, dividida por períodos, cada um
encarado como um todo, sem ligação com os demais. A História
é só uma, diferente da Memória Coletiva, que são muitas,
existindo tantas memórias quantos grupos existirem. 16
Apesar da importância de Halbwachs, a idéia de
Memória Coletiva traz um problema, uma vez que existe
sobreposta e separada dos indivíduos. A memória coletiva
relaciona-se às recordações comuns, hegemônicas e oficiais,
dando uma idéia de uma única concepção de passado, presente e
expectativa de futuro.17
Falar em memória coletiva é mascarar conflitos, pois ela
é dotada de um caráter uniformizador.18 Nesse sentido a
memória coletiva é apenas o somatório das memórias
individuais a partir de uma espécie de identidade coletiva.
Melhor é o uso da categoria “memória social”, por se entender
que são os atores sociais que elaboram e processam as
memórias, dando sentido a comunidade e a construção de
identidades sociais. 19
172
[...] não podemos esperar uma relação direta e linear
entre o individual e o coletivo. Os registros
subjetivos da experiência nunca são reflexos de
eventos públicos, de modo que não podemos esperar
encontrar uma “integração” ou “ajuste” entre as
memórias individuais e memórias públicas, ou a
presença de uma memória única. Há contradições,
tensões, silêncios, conflitos, lacunas, disjunções,
bem como lugares de encontro e até mesmo
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Memória social, memória coletiva e História
“integração”. A realidade social é complexa,
contraditória, cheia de tensão e conflito. A memória
não é uma exceção.20
Halbwachs não identifica a Memória Coletiva como uma
imposição ou sendo coercitiva, mas sim observa nela uma
função positiva, de coesão social realizada através de uma
adesão afetiva.21 Contudo, podemos verificar que a memória
coletiva, assim como a memória nacional, trabalha com
processos de enquadramentos e, conseqüentemente, inserem-se
em espaços de disputas.
A partir da década de 1960-70 algumas concepções
foram mudando, principalmente com a emergência das fontes
orais. A memória, assim, não deve ser simplificada a idéia de
que é “redutível a um pacote de recordações”. A memória é um
processo constante de construção e reconstrução, ela é fluída e
mutável. 22 É importante mencionar também que falar em
memória e falar em esquecimento e silêncio.23
Se a memória costuma ser automaticamente
correlacionada a mecanismos de retenção, depósito e
armazenamento, é preciso apontá-la também como
dependente de mecanismos de seleção e descarte.
Ela pode, assim, ser vista como um sistema de
esquecimento programado. Sem o esquecimento, a
memória humana é impossível.24
A interpretação de Maurice Halbwachs sobre a memória
é limitada pelo seu contexto de elaboração. Sua análise não dá
173
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
conta de elementos inerentes da contemporaneidade, nem da
diversidade de memórias cada vez mais fragmentárias.
[...] as velhas abordagem sociológicas da memória
coletiva – tal como a de Maurice Halbwachs, que
pressupõe formações de memórias sociais e de
grupos relativamente estáveis – não são adequadas
para dar conta da dinâmica atual da mídia e da
temporalidade, da memória, do tempo vivido e do
esquecimento. As contrastantes e cada vez mais
fragmentadas memórias políticas de grupos sociais e
étnicos específicos permitem perguntar se ainda é
possível, nos dias de hoje, a existência de formas de
memória consensual coletiva e, em caso negativo, se
e de que forma a coesão social e cultural pode ser
garantida sem ela. Está claro que a memória da
mídia sozinha não será suficiente, a despeito de a
mídia ocupar sempre maiores porções da percepção
social e política do mundo.25
Ampliando o debate, nos apropriando das considerações
de Pollak26, podemos verificar que além da memória constituída
a partir de acontecimentos vividos pessoalmente, há também
aquela constituída a partir de acontecimentos que “vivemos de
tabela”. Há nesses casos, por meio de uma socialização política
ou histórica, uma projeção, funcionando como uma espécie de
“memória herdada” que está relacionado ao sentimento de
identidade. Aí a importância dos “lugares de memória”,
categoria elaborada por Pierre Nora.27 Esses lugares são espaços
onde a memória se cristaliza, abrigando-se. Nora assinala o fim
da memória a partir da aceleração da História. Como não mais
174
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Memória social, memória coletiva e História
habitamos nossas memórias, há a necessidade de lhe consagrar
“lugares”.28
Em Nora, o debate sobre a relação História e Memória é
retomado ao apresentá-las como opostos. A memória é viva, em
permanente mudança, afetiva e espontânea, vivida sempre no
presente. É fruto da interação entre lembrança e esquecimento. A
história, por outro lado, é uma representação incompleta e
problemática do passado, é laicizante. Diferente, a memória se
alimenta das lembranças, é múltipla, relacionada a quantos
grupos existirem. A história tem um caráter universal, é relativa,
deslegitimadora e dessacralizadora do passado vivido.
O uso da memória pela História consolidou-se, nos
primeiros anos da década de 80 do século vinte, com
a organização, pelo historiador francês Pierre Nora,
de uma grande coletânea de artigos sobre o que ele
denominou lugares de memória [...]. Na introdução
deste trabalho [...] Nora contrastou as abordagens ao
passado pela história e pela memória. Enquanto a
história estaria associada a narrativas lógicas e
lineares, mas vazias de conteúdo sobre o passado, as
memória coletivas seriam aquelas que resultariam de
movimentos vivos e lembranças transmitidas entre
gerações. A proposta do historiador passa a ser a de
estudar os “lugares de memória”, ou seja, os lugares
simbólicos constituídos pela e constitutivos da
nação francesa. Para ele, como para diversos outros
historiadores, fala-se muito em memória, porque
nada mais restou do passado.29
175
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
Contudo, a concepção de Nora dos “lugares de memória”
deve ser relativizada. Andreas Huyssen, além de criticar a
limitação da concepção de Halbwachs, reavalia a construção de
“lugares de memória” pensados por Pierre Nora, uma vez que
esses lugares são compensatórios e nostálgicos, o que passa uma
idéia de engessamento da memória.
Essa visão pessimista do esfacelamento da memória
apresentada por Nora passa por uma reavaliação, pelo próprio
autor, que passa a evidenciar uma “emergência da memória”.
Entre os fatores que levaram a essa mudança em relação ao
passado, o autor descreve:
[...] Uma crítica das versões oficiais da história; a
recuperação dos traços de um passado que tenha
sido apagado ou confiscado, as raízes culturais;
ondas comemorativas do sentimento; conflitos em
torno lugares simbólicos ou monumentos; a
proliferação de museus; forte sensibilidade para a
retenção de acesso ou de exploração de arquivos, um
acessório renovado para que em inglês é chamado de
"heritage", e em francês “patrimoine”; a decisão
judicial do passado. Seja qual for a combinação que
estes elementos possam ter, é como uma onda de
recolhimento que quebrou em todo o mundo e que,
em todos os lugares, elos de lealdade para com o
passado - reais ou imaginários - e do sentimento de
pertencimento, a consciência coletiva e autoconhecimento . Memória e identidade.30
O autor assinala também o processo de “aceleração da
história”, que sobrecarrega o presente com essa imperiosa
176
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Memória social, memória coletiva e História
“obrigação
de
recordar”,
assim
como
o
processo
de
“democratização da história”, que representa a emergência das
memórias de grupos minoritários, no qual a recuperação do
passado está diretamente ligada com as afirmações de
identidades. Enquanto a história está relacionada aos grupos
poderosos e hegemônicos, a memória dá voz às minorias.
O trabalho de Andreas Huyssen também identifica a
emergência da memória como um fenômeno presente nas
“preocupações culturais e políticas centrais das sociedades
ocidentais”. Esse “passado presente” se dá principalmente a
partir da década de 1960, num contexto do processo de
descolonizações e de surgimento de movimentos sociais, como
uma forma de procurar histórias alternativas e revisionistas,
passando por uma aceleração na década de 1980, impulsionada
em torno dos debates sobre o Holocausto, principalmente
através da mídia. A história para o autor possui um caráter
positivo, mas desde que seja um novo modo de “escrever a
história”. É essa História que será capaz de garantir “um futuro
de memória”.31
No cenário mais favorável, as culturas de memória
estão intimamente ligadas, em muitas partes do
mundo, a processos de democratização e lutas por
direitos humanos e à expansão e fortalecimento das
esferas públicas da sociedade civil. Desacelerar em
vez de acelerar, expandir a natureza do debate
177
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
público tentando curar feridas provocadas pelo
passado, alimentar e expandir o espaço habitável em
vez de destruí-lo em função de alguma promessa
futura, garantindo o “tempo de qualidade” – estas
parecem ser necessidades culturais ainda não
alcançadas num mundo globalizado, e as memória
locais estão intimamente ligadas às suas
articulações.32
Uma aproximação entre Memória e História pode ser
vista também em Michel Pollak O sociólogo observa a
importância de uma área específica da história, a História Oral.
Seu objetivo é de utilizar a história para trazer para a superfície
as “memórias silenciadas”. A oposição para o autor não está na
relação História/Memória, mas entre a memória oficial e as
“memórias subterrâneas”, e desta forma abrindo espaço para os
excluídos e marginalizados pela versão oficial.
Ao privilegiar a analise dos excluídos, dos
marginalizados e das minorias, a história oral
ressaltou a importância de memórias subterrâneas
que, como parte integrante das culturas minoritárias
e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso
a memória nacional. Num primeiro momento, essa
abordagem faz da empatia com os grupos dominados
estudados uma regra metodológica e reabilita a
periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice
Halbwachs, ela acentua o caráter destruidor,
uniformizador e opressor da memória coletiva
nacional. Por outro lado, essas memórias
subterrâneas que prosseguem seu trabalho de
subversão no silêncio e de maneira quase
imperceptível afloram em momentos de crise em
sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória
entra em disputa. Os objetos de pesquisa são
178
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Memória social, memória coletiva e História
escolhidos de preferência onde existe conflito e
competição entre memórias concorrentes.33
A memória é uma construção realizada a partir de um
“trabalho de enquadramento”, muitas vezes realizado por
historiadores.34 A memória é construída social e individualmente
e assim como qualquer documento é uma reconstrução passível
de
crítica
pelo
historiador.35
Há
nesses
processos
de
enquadramento da memória, através, por exemplo, das criações
de datas cívicas e comemorações, a formatação daquilo que
deve ser lembrado ou esquecido. Há hoje uma “preocupação
documental de nossa sociedade e a preparação da memória
futura”. Há com isso uma expansão da memória no campo da
cultura material, seja ela em coleções privadas ou institucionais
e museus. 36 A memória não deve ser identificada como um
“almoxarifado” do passado, ela é subordinada a uma dinâmica
social. Sua elaboração se dá no presente a partir de questões do
próprio presente, onde recebe incentivo e se efetiva.37
Desta forma, “a memória é filha do presente. Mas, como
seu objetivo é a mudança, se lhe faltar o referencial do passado,
o presente permanece incompreensível e o futuro escapa a
qualquer projeto”.38 Sobre sua relação com a História, vale
transcrever as considerações de Menezes:
179
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
A memória, como construção social, é formação de
imagem necessária para os processos de constituição
e reforço da identidade individual, coletiva e
nacional. Não se confunde com a História, que é
forma intelectual de conhecimento, operação
cognitiva. A memória, ao invés, é operação
ideológica, processo psico-social de representação
de si próprio, que reorganiza simbolicamente o
universo das pessoas, das coisas, imagens e relações,
pelas legitimações que produz. A memória fornece
quadros de orientação, de assimilação do novo,
códigos para classificação e para o intercâmbio
social.
Mas do exposto também fica patente que, após o
divórcio, nas instâncias acadêmicas, entre memória e
História, sobretudo depois que esta passou, cada vez
mais, de História-narração e História-problema, as
condições atuais de gestão da memória de novo
contaminam a História. Se dúvida, na prática
profissional, as exigências políticas e os
compromissos científicos não deixarão de colocar
dilemas eventuais embaraçosos. Entretanto, é
possível continuar fixando balizas claras para evitar,
não a conspurcação de uma hipotética e indefensável
pureza, mas a substituição da História pela memória:
A História não deve ser o duplo científico da
memória, o historiador não pode abandonar sua
função critica, a memória precisa ser tratada como
objeto da história.39
Nas últimas décadas, principalmente a partir dos anos 80
no Brasil, o debate sobre a Memória vem se consolidando. Após
longos períodos autoritários, há a necessidade de se “fazer
lembrar”, intensificando desta forma os debates sobre a(s)
memória(s).40 Essa mudança pode ser verificada nos diversos
seminários e congressos sobre o tema 41, nas pesquisas
acadêmicas e nos programas de pós-graduação42 que tem como
180
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Memória social, memória coletiva e História
o objeto ou área de pesquisa a memória social. Essa
aproximação com a História se dá, principalmente, a partir dos
estudos da História Oral, na busca por histórias alternativas e
revisionistas e nas questões relacionadas a constituição da
identidade social. Memória e História não significam a mesma
coisa, contudo podemos dizer que não há História sem memória,
cabe ao historiador problematizá-la. Ambas estão sujeitas as
prescrições do presente.
Notas de Referência

1
2
3
4
5
6
7
8
9
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Memória Social pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), orientado
pela
professora
Doutora
Leila
Ribeiro.
Contato:
[email protected]
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do
corpo com o espírito.
São Paulo: Editora Martins e Fontes, 1990.
SANTOS, Myrian Sepúlvida dos. Memória coletiva e teoria social. São
Paulo: Annablume, 2003. p. 36.
Ibidem, p. 49.
Ibidem, p. 36.
BUSTILO, J. C. “Memoria e historia”. Un estado de La question. In:
_______. Memória y Historia. Madrid: Marcial Pons, 1998. p. 200-201.
BLOCH, Marc. “Memória coletiva,tradição e costume: a propósito de
um livro recente”. In: História e historiadores. Lisboa: Teorema, 1995.
SANTOS. op. cit. p. 38-39.
BUSTILO, J. C. op.cit. p. 201.
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. de Macedo. “Memória e
história. Fundamentos, convergência, conflitos”. In: _______. Memória
Social e Documento: Uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro:
181
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
Universidade do Rio de Janeiro. Mestrado em Memória Social e
Documento, 1997.
10
Fizemos nossas reflexões a partir da obra A memória coletiva, publicada
em 1950 após a morte do autor.
11
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro,
2006. p. 30.
12
Ibidem, p. 61.
13
Ibidem, p. 74.
14
Ibidem, p. 78-79.
15
Ibidem, p. 90.
16
Ibidem, p. 101.
17
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memória. Buenos Aires: Siglo XXI
editores, 2002.
18
POLLAK, Michel. “Memória, esquecimento e silêncio”. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989. p. 4.
19
MAUAD, Ana Maria. História e Memória, TVE Brasil, [20--].
Disponível
em:
<
http://www.tvebrasil.com.br/salto/entrevistas/am_mauad.htm>. Acesso
em 5 jun. 2010.
20
JELIN, Elizabeth. op. cit. p. 37.
21
POLLAK, Michel (1989). op. cit. p. 3.
22
MENEZES, Ulpiano Bezerra de. “A História, cativa da memória? Para
um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais”. Revista
do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 34, 1992, p. 10.
23
POLLAK, Michel (1989). op. cit.
24
MENEZES, Ulpiano. op. cit. p. 16.
25
HUYSSEN, Andreas. "Passados presentes: mídia, política, amnésia".
In: ______. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos,
mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. p. 19.
26
POLLAK, Michel. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, n.10, 1992. p. 201-202.
27
NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”.
Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, dez. 1993.
28
Ibidem, p 8-9.
29
SANTOS. op. cit. p. 87-88.
30
NORA, Pierre. “Memory: from freedom to tyranny”. Memory and
History in French Historical Research During the 1980´s the 1990´s,
South
Africa,
12-19,
aug.
2000.
Disponível
em:
<http://www.celat.ulaval.ca/histoire.memoire/histoire/cape2/nora.htm>.
Acesso em: 6 set. 2010.
31
HUYSSEN, Andreas. op. cit.
182
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Memória social, memória coletiva e História
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
Ibidem, p. 34-35.
POLLAK, Michel (1989). op. cit. p. 4.
POLLAK, Michel (1992). op. cit. p. 206.
Ibidem, p. 207.
MENEZES, Ulpiano Bezerra de. op. cit. p. 12.
Ibidem, p. 11.
Ibidem, p. 14.
Ibidem, p. 22-23.
MAUAD, Ana Maria. op. cit.
Apenas como ilustração, podemos citar o XIV Encontro Regional da
ANPUH-RIO, ocorrido no mês de julho deste ano, que teve como tema
“Memória
e
Patrimônio”.
Disponível
em:
<
http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/>. Acesso em: 6 set. 2010.
Através do portal da Capes, podemos encontrar cinco programas de pósgraduação, todos pertencentes à área “multidisciplinar”. Disponível em:
< http://www.capes.gov.br/>. Acesso em: 6 set. 2010.
183
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
184
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Fritzmac e o ano de 1888: A revista de ano como palco de
discussões políticas na corte
Flávia Ferreira de Almeida
“Outros colegas falaram da minha
parcialidade na apreciação de certas
personalidades políticas. Muito respeitosamente
observei que, em política, desde que haja
opinião, não pode deixar de haver parcialidade.
Eu receiava tal censura, e por isso mesmo só
muito instalado escrevi uma revista de 1894,
revista que necessariamente devia tocar em
alguns fatos políticos ou não prestar para nada
(...).” Arthur Azevedo. 2
O presente artigo tem como objetivo pensar a revista de
ano Fritzmac, escrita por Arthur e Aluísio Azevedo em 1889,
como lugar de expressão de importantes debates políticos que
ocorreram na sociedade brasileira, em fins do século,
particularmente no ano de 1888.
As revistas de ano3 eram peças teatrais que reuniam
música e dança para apresentar no início de cada ano um resumo
cômico dos principais acontecimentos do ano anterior. Esse
gênero teatral se destacou por ter sido voltado para grupos mais
“populares”4 da sociedade carioca.
Flávia Ferreira de Almeida
Fritzmac foi representada, pela primeira vez, na cidade
do Rio de Janeiro, no Teatro Variedades Dramáticas5, em 1º de
maio de 1889 e teve quarenta e nove encenações; sendo a última
no dia 24 de junho do mesmo ano.
A revista de ano teve como cenário a cidade do Rio de
Janeiro, e seu enredo contou a história do Diabo Pero Botelho,
que, com a ajuda do alquimista Fritzmac, criou Mademoiselle
Fritzmac da infusão dos sete pecados capitais, incumbida de
corromper o país. Contra ela, o Amor criou Amorosa da infusão
das sete virtudes opostas aos pecados. Ao chegar à capital do
Império, Mademoiselle Fritzmac decidiu por corromper o Barão
de Macuco, que passeava pela cidade. Na tentativa de protegêlo, Amorosa travou uma batalha com Mademoiselle Fritzmac,
que terminou com a vitória da primeira e a condenação da
segunda a ficar no Brasil, vendo o país prosperar. Como se pode
ver, o texto incluía questões que incorporavam práticas
medievais populares, como o alquimista, temas muito afeitos á
literatura romântica, ou seja, a construção de criaturas por
homens, com recursos muito impalpáveis como os pecados e as
críticas políticas de fundo – à corrupção.
Por se dedicar aos acontecimentos do ano de 1888,
Fritzmac apresentou em muitas de suas cenas questões
relacionadas ao fim da escravidão. Entre essas questões, destaco
186
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Fritzmac e o ano de 1888
a nova condição social dos negros no pós-abolição, a imigração
chinesa e a implementação da república. A forma como essas
questões foram representadas em revista de ano evidenciaram,
por vezes, o posicionamento dos autores em relação a esses
debates que tomaram a sociedade carioca naquele momento.
Arthur e Aluísio Azevedo eram típicos intelectuais
oitocentistas, contudo, entendo essa intelectualidade brasileira
baseando-me na definição de Angela Alonso, em Ideias em
movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil Império, que
defende a não existência de uma definição muito clara
separando o campo intelectual do político e vice-versa. Segundo
a historiadora, a concepção de atuação política era ampliada, não
restrita apenas a funções representativas institucionais, e tal
atuação podia ser alargada para a defesa de ideias e a
formulação de projetos político-culturais, que se manifestavam
em obras literárias, revistas, conferências populares, institutos
de pesquisa, jornais, teatro, entre outros meios.6
Os irmãos, juntamente com outros homens letrados que
viviam na corte, formavam o grupo dos “boêmios”7. Uma das
preocupações comuns a esses homens era “pensar a nação” e
estabelecer o papel que eles ocupariam nesse processo. Segundo
seus ideais, havia a necessidade de superar um passado colonial,
entendido como arcaico, e investir no alcance de um futuro,
187
Flávia Ferreira de Almeida
pautado nos princípios do progresso e da civilização. Para a
concretização desta “nova nação”, era indispensável a conquista
da abolição da escravatura e da implementação da república.
Esses processos eram entendidos como etapas cruciais para o
alcance de uma sociedade moderna formada por homens livres
tanto civil quanto politicamente. Suas ideias passaram a ser
divulgar, principalmente em jornais, entendidos, naquele
momento, como local privilegiado de intervenção, e em obras
literárias.
A Rua do Ouvidor, no momento em que atuou a geração
“boêmia”, caracterizou-se por ser um espaço vivo tanto cultural
quanto politicamente. As redações dos jornais, os cafés e os
teatros compunham a atmosfera cosmopolita da capital política e
cultural no país.
Arthur Azevedo foi o principal teatrólogo do gênero
revisteiro no século XIX, suas revistas de ano eram sucesso de
bilheteria. Durante o período em que esteve na capital do
Império, Fritzmac foi divulgada e comentada por colunas de
jornais cariocas destinadas aos palcos. As notícias sobre a peça
saíam quase que diariamente nos jornais.
A estreia de Fritzmac foi relatada como um sucesso de
espectadores. O Jornal O Paiz noticiou tal evento na coluna
Teatro, em 3 de maio de 1889:
188
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Fritzmac e o ano de 1888
Frotzmac.
O teatro Variedades Dramáticas apanhou anteontem
a maior casa que tem conseguido desde a sua
inauguração. O povo acotovelava-se nas galerias, no
poleiro, por trás dos camarotes, nos jardins, em todas
as dependências públicas do pequeno edifício de
espetáculos.8
No período no qual Fritzmac esteve em cartaz, a lotação
do Teatro Variedades apareceu como uma constante nos
periódicos cariocas. Pesquisei notícias referentes à revista de
ano nos seguintes periódicos: Gazeta de notícias, O Paiz,
Cidade do Rio e Revista Illustrada. Todos foram unanimes em
comentar o sucesso da revista de ano entre os espectadores.
O gênero cômico e musicado havia caído nas graças do
público carioca no século XIX. O cotidiano da cidade levado
para os palcos de maneira satírica contribuía para o sucesso das
peças.
Assuntos políticos eram ingredientes indispensáveis para
a construção de uma revista de ano. Em Fritzmac, as cenas
relacionadas ao término da escravidão evidenciaram, inúmeras
vezes, o posicionamento abolicionista de seus autores, pois o
evento foi representado como uma grande conquista, muito
festeja pela população carioca em geral.
A escravidão era vista por muitos abolicionistas
oitocentistas como um empecilho ao desenvolvimento do país,
189
Flávia Ferreira de Almeida
visto que, refletia uma estrutura arcaica e distante dos ideais de
progresso e civilização pautados nos princípios de liberdade dos
homens e política. Vejamos um trecho da revista de ano que
aborda essa questão:
Primeiro Vendedor de Canivetes – Meus senhores,
comprai o canivete-abolição!
Todos – Bravo! Bravo!(...) Primeiro Vendedor
(Mostrando um canivete.) (...) Comprai, comprai
todos o canivete! O canivete-abolição extrai, destrói,
extirpa, extermina esse calo chamado escravidão,
com o qual o país não pode dar um passo para
adiante!(...)9
A popularização do projeto abolicionista em cena cria
uma ideia de unidade na opinião pública e homogeneiza os
habitantes da cidade do Rio de Janeiro, construindo um discurso
de que a manutenção do escravismo era algo cada vez mais
questionado e indesejado na sociedade.
Com o fim da escravidão, muitos debates já existentes
acerca da nova condição social do negro começaram a se
intensificar. As categorias e identidades socioculturais que
compunham o universo escravista deixaram de existir. A
estrutura de funcionamento desse universo, caracterizado pela
dominação e subjugação da mão de obra cativa, não
correspondia mais à nova realidade que se apresentava. Desta
190
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Fritzmac e o ano de 1888
forma, novas identidades sociais começaram a ser elaboradas em
uma tentativa de reorganizar novas relações de poder. Segundo
Hebe Maria de Mattos, em Das cores do silêncio: os
significados da liberdade no sudeste escravista: Brasil século
XIX10, no período posterior ao fim a abolição da escravatura, a
liberdade dos ex-escravos passou a ser encarada como
ameaçadora da ordem, pois existia o medo da perda do controle
daquela massa de libertos e a ideia de que fora do controle do
sistema escravista emergiria uma “massa de vadios”.
Esse debate foi abordado em Fritzmac. Arthur e Aluísio
Azevedo levaram para a peça alguns dos pressupostos que
permearam essa discussão na sociedade da época. Na cena a
seguir, retirada de um quadro dedicado a representar os cortiços
da cidade e seu cotidiano, destaco essa questão:
A Mulata (Entrando.) – Me dê uma cama, seu Zé do
Beco!
(Dando-lhe dinheiro.) – Tem aí mais dois vintém pro
café de menhã.
Zé – Então tem festejado muito o Treze de Maio?
A Mulata – Eu? Ixe! (Traçando o chale sobre o
ombro.) Pra cá, mais pra cá! Não sou multa de Treze
de Maio, nem dos livros de ouro. Esta aqui para ser
livre não precisou de leses. O pai de meu filho pagou
minha carta. Eu até acho os brancos faz mal em
acabá cos escravo. Agora é que vai se vê o que é
vadiação! (Saindo)11
191
Flávia Ferreira de Almeida
O discurso de que o término da escravidão geraria a
desorganização do mundo do trabalho e a desordem na
sociedade aparece no trecho destacado. Na cidade do Rio de
Janeiro, no ano de 1888, o ministro Ferreira Vianna elaborou um
projeto de repressão à ociosidade. Esse ministro obteve a
aprovação quase unânime da Câmara, o que demonstrou uma
preocupação por parte de algumas autoridades políticas do país
com o posicionamento dos libertos na urbe carioca. Tais
autoridades não conseguiam pensar como seria a organização e
manutenção do mundo do trabalho sem a política escravista,
entendida como provedora da ordem pública. Juntaram-se
também a essa questão os argumentos raciais, que classificavam
os negros de “incivilizados” e “inferiores”. Sidney Chalhoud, no
trecho que se segue, discute a forma como os libertos eram
inferiorizados por autoridades políticas e intelectuais do país:
(...) Em primeiro lugar, os libertos eram em geral
pensados
como
indivíduos
que
estavam
despreparados para a vida em sociedade. A
escravidão não havia dado a esses homens nenhuma
noção de justiça, de respeito à propriedade, de
liberdade. A liberdade do cativeiro não significava
para o liberto a responsabilidade pelos seus atos, e
sim a possibilidade de se tornar ocioso, furtar,
roubar, etc. Os libertos traziam em si os vícios de
seu estado anterior, não tinham a ambição de fazer o
bem e de obter um trabalho honesto, e não eram
“civilizados” o suficiente para se tornarem cidadãos
plenos em poucos meses (...)12.
192
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Fritzmac e o ano de 1888
A ideia de que os libertos não estavam aptos para viver
sob as normas que regiam a vida dos cidadãos livres foi
amplamente difundida na sociedade carioca, em fins dos
oitocentos. Dentro dessa perspectiva, a vida no cativeiro teria
comprometido esses indivíduos a um estado de barbárie, no qual
os princípios de civilidade não teriam sido difundidos.
A discussão sobre o lugar do negro liberto na sociedade
juntou-se a outros debates no ano de 1888, que refletiam
preocupações com os rumos da nação brasileira.
A imigração foi um tema que ganhou grande destaque na
imprensa e no parlamento da época, sobre tudo a imigração
chinesa. Nesses espaços, discutiu-se a vinda dos imigrantes
chineses. Posicionamentos favoráveis e contrários rechearam as
páginas dos periódicos. Aqueles que se posicionaram favoráveis
à política de imigração alegaram a necessidade de “braços para a
lavoura”. Em contraposição, surgiram movimentos de rejeição
aos chineses, pautados nos argumentos raciais de construção de
uma nação e de uma identidade nacional.
Os
apologistas
da
imigração
chinesa
estavam
preocupados com a lavoura e com a economia agrícola do país,
pois viam tal imigração como uma medida provisória e não
193
Flávia Ferreira de Almeida
como uma iniciativa permanente. Dessa forma, posicionavam-se
contrários ao povoamento e à nacionalização dos chineses.
Aqueles que eram contrários à imigração chinesa
utilizavam a ideia de “inferioridade da raça asiática”, que era
respaldada na medicina e em pesquisas que recebiam o status de
científicas na época. Rejeitavam-se os chineses como possíveis
imigrantes para o país, devido a um medo de que tal imigração
pudesse corromper as futuras gerações com a “mongolização da
raça” e a aquisição dos hábitos e costumes dos chineses,
percebidos como “defeituosos”.
Uma questão era consenso entre os opositores e
apoiadores da imigração chinesa: ambos consideravam o povo
chinês como pertencente a uma “raça inferior”. Respaldados
nesse argumento, eles traçavam suas estratégias para brigar pela
defesa dos seus ideais políticos.
De acordo com Celia Maria de Azevedo, em Onda
branca, medo negro: o negro no imaginário das elites – Século
XIX, os argumentos raciais eram utilizados tanto pelos
apoiadores quanto pelos opositores da imigração chinesa. Para
os primeiros, o chinês era ruim e ponto final. Para os segundos,
apesar do “defeito inerente à raça chinesa”, esse tipo de
imigrante oferecia garantias ao atuar somente como elemento
transitório de trabalho; atuação essa garantida pela sua “índole
194
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Fritzmac e o ano de 1888
inferior”, caracterizada pelo “egoísmo”, “atraso” e “aversão” à
civilização ocidental. Outro discurso utilizado foi o de que os
chineses tendiam à própria autodestruição; portanto, não eram
tão ameaçadores. Contudo, a grande assertiva que os
proponentes do projeto encontraram para tentar persuadir os
contrários foi a de que o chinês era, sim, de raça inferior, mas
não tão inferior quanto à do africano.13
Como esse debate marcou o ano 1888, a questão da
imigração chinesa apareceu representada na revista de ano
Fritzmac. O quadro que abordou a temática reproduziu o
discurso racista da época, a partir de uma perspectiva satírica.
Destaco a primeira cena do quadro dedicado à imigração
chinesa, no qual os personagens Barão de Macuco e Amorosa
discutem sobre tal imigração:
(Atravessa a cena um grupo de jornalistas, falando
todos a um tempo.)
[Jornalistas] – Não entendi palavra!
O Barão – Discutem a imigração chinesa.
Amorosa – Qual é a sua opinião sobre esse assunto?
O Barão – A minha?
Amorosa – Sim.
O Barão – Homem, menina, eu não sou muito contra
os chins. Dizem que são ótimos agricultores.
Amorosa – Não há dúvida, mas não passam disso.
Levam miséria e a corrupção a toda parte (...).14
195
Flávia Ferreira de Almeida
No trecho em destaque, o personagem Barão de Macuco
se coloca favorável aos imigrantes chineses e defende seu
posicionamento com o argumento de que eles eram bons
agricultores. Ele representa os fazendeiros que defendiam a
vinda da mão de obra asiática para a lavoura brasileira como
forma de substituição da mão de obra negra. A personagem
Amorosa,
contrária
posicionamento,
à
imigração,
utiliza-se
de
para
argumentos
justificar
seu
baseados
em
pressupostos raciais oitocentistas, nos quais o preconceito contra
os chineses fica evidente.
O quadro prossegue com uma cena que, simbolicamente,
representa um dos argumentos mais utilizados por aqueles que
eram contrários à imigração chinesa, o da formação de uma
nação brasileira “degenerada” pela miscigenação com o povo
chinês, que traria para o país os “vícios” e “mazelas”
provenientes da raça mongol:
Amorosa – Pois deixe mostrar-lhe qual será o futuro
da sociedade brasileira, se a sua terra proteger de
semelhante imigração.
(Agita o braço. Forte na orquestra. Ergue-se o pano
do fundo e aparece uma sala no gosto chinês,
lembrando ao mesmo tempo as nossas casas
atualmente. Fonseca-Tching está assentado, num
coxim, fumando ópio e abanando-se com uma
ventarola. Continua a música em surdina na
orquestra durante o quadro suplementar.) (...)15
196
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Fritzmac e o ano de 1888
Arthur e Aluísio Azevedo representam, de maneira
bastante pejorativa e preconceituosa, os hábitos e costumes do
povo chinês. A referência ao “vício do ópio” estava em total
consonância com os argumentos racializados da época, que
classificaram os chineses como um povo corrompido pelo vício
e, desta forma, propensos à autodestruição.
O grande medo daqueles que eram opositores à vinda dos
imigrantes chineses para o país era a da formação de uma nação
“mongol” com hábitos da cultura chinesa, vistos, naquele
momento, como “defeito” e “inferioridade” de raça.
O fim da escravidão potencializou os debates que
existiam no Brasil desde a entrada das teorias raciais importadas
da Europa. Nesses debates, o país era entendido como um
espaço de mestiçagem. Tal característica podia implicar
possibilidades ou impossibilidades de progresso e alcance da
civilização, ou seja, ao mesmo tempo em que a mescla de raças
podia significar a degeneração e a ameaça ao futuro do país.
Os debates relacionados aos rumos da nação também
diziam respeito ao regime político vigente, ou seja, a monarquia.
Nas últimas décadas do século XIX, criou-se uma visão
de que os indivíduos que defendiam a escravidão não
partilhavam das “novas ideias” difundidas na sociedade.
Almejava-se um futuro que visava destruir um passado e tudo o
197
Flávia Ferreira de Almeida
que ele implicava. Nesse contexto, a monarquia foi associada à
mesma ideia de atraso que caracterizou o sistema escravista.
Esse embate político também foi apresentado aos espectadores
de Fritzmac:
Terceiro Vendedor de Canivetes (Entrando e
vendo-se logo rodeado de povo.) – Meus
senhores, comprai o canivete-república! Tem
uma infinidade de folhas, e mais balança, em que
se pesam os direitos do homem, e mais este sacarolhas, que se chama Princípios de 89. O
canivete-república extrai, destrói, extirpa,
extermina esse velho calo – a monarquia!(...)16
De acordo com Maria Tereza Chaves e Mello, em A
república consentida: cultura democrática e científica do final
do Império, os canais de propaganda republicana, no Rio de
Janeiro, especialmente a partir da década de 80 do século XIX,
foram variados. Charges e caricaturas foram utilizadas pela
imprensa para fazer crítica ao imperador e ao regime
monárquico. Essa propaganda se espalhava na literatura e pelas
ruas da cidade, atingindo um público muito mais amplo do que o
alfabetizado, reduzindo o prestígio do imperador, criticando a
figura real e favorecendo o desapreço pelo regime. 17
A revista de ano Fritzmac foi apresentada aos
espectadores cariocas no ano de 1889, meses antes da
proclamação da república no país. Ao historicizá-la, aproximei198
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Fritzmac e o ano de 1888
me de importantes debates políticos da época e pude observar
como esses debates estavam sendo pensados e reapropriados por
membros da intelectualidade carioca oitocentista.
Acredito que as revistas de ano eram um espaço de
circulação de alguns dos principais debates políticos da época,
contribuindo para a divulgação dos mesmos na sociedade
carioca.
Elas eram instrumentos em potencial para levar as
vozes de seus autores para as ruas; atuação característica do
grupo ao qual pertenceram Arthur e Aluísio Azevedo, visto que
o público das revistas de ano se caracterizava por ser
heterogêneo,
incluindo
indivíduos
menos
abastados
economicamente e analfabetos.
As revistas de ano contribuíram na formação de um
espaço público politicamente vivo na corte, demonstrando que
setores menos abastados da sociedade podiam ter acesso ao que
era discutido pelos intelectuais do país. Contestando, desta
forma, uma historiografia que defende a alienação de setores
mais populares do cenário político carioca oitocentista.
Notas de Referência

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela Professora Doutora
Tânia Maria Bessone. Contato: [email protected] O presente
artigo pertence a minha dissertação de mestrado intitulada Fritzmac e o
199
Flávia Ferreira de Almeida
ano de 1888: A revista de ano como palco de discussões políticas no Rio
de Janeiro oitocentista.
2
AZEVEDO, Arthur. O theatro, em A Notícia. Rio de Janeiro, 10-051895.
3
Segundo o historiador Fernando Mencarelli, o surgimento da revista de
ano no seu formato moderno e com tal nomenclatura em Paris, na
França, em fins do século XVIII. Descendente direta da Commedia
dell’Arte italiana e dos teatros das feiras de Paris, as revistas de ano
nasceram voltadas para um público amplo e variado que, em sua grande
maioria, era formado por grupos menos abastados socialmente. Ao
longo do século XIX, as revistas de ano tornaram-se um gênero de maior
escala mundial, espalhando-se pela Europa. Foi via Portugal que o
gênero revisteiro chegou ao Brasil. A primeira revista de ano no Brasil
foi As surpresas do Sr. José da Piedade, datada de 1859. Tal revista
surgiu na cidade do Rio de Janeiro, de autoria controversa. Foi
anunciada sem designação dos autores que, hoje sabemos, eram
Figueiredo Novais, um funcionário do Tesouro Nacional e membro do
Conservatório Dramático, e outro companheiro desconhecido. Cf.
MENCARELLI, Fernando Antonio. Cena Aberta: a absolvição de um
bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo. Campinas SP: Editora
da Unicamp, 1999.
4
O teatro de revista, juntamente com outros tipos de peças pertencentes à
comediografia ligeira nacional, foi classificado por estudos destinados a
analisar o gênero como um teatro “popular”, de “entretenimento” e
“comercial”. No entanto, há estudos que comprovam que o teatro de
revista carioca também era assistido por grupos mais abastados
economicamente e não se restringia apenas aos grupos mais populares;
por isso, as discussões que envolvem a análise do público que assistia às
peças deve evitar generalizações.
5
O Teatro Variedades Dramáticas foi inaugurado em 21 de maio de 1888,
na Rua da Constituição, 3 / fundos com a Travessa da Barreira – Centro
do Rio de Janeiro.
6
ALONSO, Angela. Ideias em Movimento: a geração de 1870 na crise do
Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 38.
7
Geração boêmia foi um termo utilizado para fazer referência a um grupo
de intelectuais que viveu na cidade do Rio de Janeiro, nas últimas
décadas do século XIX. Tal grupo se identificava por ter adotado uma
postura de engajamento político e de intervenção social, principalmente
na luta pelo fim do regime monárquico e da escravidão. Seus
instrumentos de críticas políticas se davam através do humor.
8
Teatro, em O Paiz. Rio de Janeiro, 03-05-1889.
200
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Fritzmac e o ano de 1888
9
10
11
12
13
14
15
16
17
AZEVEDO, Arthur. Fritzmac, em: Teatro de Arthur Azevedo - Tomo
III. Rio de Janeiro: INACEN, 1987, p. 411.
MATTOS, Hebe Maria de. Das cores do silêncio: os significados da
liberdade no sudeste escravista: Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998.
AZEVEDO, Arthur. Fritzmac, em: Teatro de Arthur Azevedo - Tomo
III. Rio de Janeiro: INACEN, 1987, p. 416.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim. O cotidiano dos
trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2001, p. 41 – 42.
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda branca, medo negro: o
negro no imaginário das elites – Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987, p 150-152.
AZEVEDO, Arthur. Fritzmac, em: Teatro de Arthur Azevedo - Tomo
III. Rio de Janeiro: INACEN, 1987, p. 434.
Idem, ibidem, p. 435.
Idem, ibidem, p. 412.
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura
democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora
FGV: Editora Edur, 2007, p. 50.
201
Flávia Ferreira de Almeida
202
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação: o IHGB e a criação da “arca do
sigilo”
Isadora Tavares Maleval
[...] falar do passado é o mais fácil que há, está tudo
escrito, é só repetir, papaguear, conferir pelos livros
o que os alunos escrevam nos exercícios ou digam
nas chamadas orais, ao passo que falar de um
presente que a cada minuto nos rebenta na cara, falar
dele todos os dias do ano ao mesmo tempo que se
vai navegando pelo rio da História acima até às
origens, ou lá perto, esforça-nos por entender cada
vez melhor a cadeia de acontecimentos aonde
estamos agora [...], dá muito trabalho, exige
constância na aplicação [...]1.
Tertuliano Máximo Afonso, professor de história do
ensino secundário, propôs uma modificação no ensino da sua
disciplina ao diretor de sua escola. A história deveria, então, ser
ensinada e até mesmo reescrita partindo do presente para o
passado, não o oposto, comumente adotado.
Tanto o autor da proposta em questão, quanto a própria,
são “criaturas” da mente do escritor português José Saramago,
em O homem duplicado. Apesar de a narrativa do livro não ser
direcionada à problemática da história2, o romancista aproveitou
em diversas ocasiões a oportunidade de elaborar noções sobre o
tema – como foi feito na passagem com a qual se iniciou este
artigo.
Isadora Tavares Maleval
Para o professor-personagem, a história mais recente –
o presente – teria uma importância incontestável para o ensino
dos estudantes, mesmo sendo de mais difícil exposição do que o
passado, devido à inconstância que lhe é característica.
A reflexão do prêmio Nobel português3 sobre o
presente na história não deixa de ter validade para as páginas
que se seguirão. A ideia de um não lugar do presente na história
– ou, ao menos, a grande dificuldade resultada dessa abordagem
– nos é cara por também ter uma história, por assim dizer. O
projeto de Tertuliano Máximo Afonso fora aqui mencionado por
seu caráter inovador, por ser uma ideia demasiado estranha aos
nossos olhos, o que se deve a todo um modelo de pensar sobre a
história, sua escrita e seu ensino, extremamente moderno, como
se verá.
Eis aqui o objeto central deste estudo: a história da
história contemporânea. Apesar da repetição que torna essa
delimitação redundante, poderíamos ir além e dizer que nosso
artigo diz respeito à história dos limites de uma história mais
recente ao tempo de escrita e, por que não, de ensino. E essa
“história
da
história”
que
propomos
se
concentrará
principalmente na segunda metade do século XIX no Brasil –
bem distante do “nosso” presente, portanto.
204
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação
A partir de 1838, com a fundação do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB), a história, juntamente com a
geografia, passou a ser vista como um problema. Escrever a
história da nação independente havia menos de duas décadas era
a questão levantada pelos letrados envolvidos na fundação da
instituição. Essa tarefa, contudo, longe de ser simples, merecera
as mais diversas e assíduas discussões, o que demonstra que
“escrever história” naquele momento ainda era algo que carecia
de maiores definições.
Muito rapidamente, podemos definir a problemática
sobre a historiografia, ou seja, a história da escrita da história,
até meados do século XIX, tomando emprestadas algumas
noções delineadas pelo historiador alemão Reinhart Koselleck.
Em seus trabalhos sobre a história dos conceitos, Koselleck
demonstra a validade no estudo de conceitos-chave para a
compreensão de um período caro da história alemã 4, o advento
da modernidade com início na década de 1750 até 1850. Isso
significa dizer que conceitos como história, por exemplo,
indicariam determinadas concepções de mundo mais gerais para
as pessoas que viviam aquele tempo histórico. A maleabilidade
daquele conceito, assim como a de outros, permitiriam ao
historiador o entendimento de uma dada realidade do passado.
Uma mesma palavra, semanticamente inalterada, passaria,
205
Isadora Tavares Maleval
então, a agregar variadas significações, compreensíveis a partir
de fontes que permitiriam “dar voz” a essas mudanças – tais
como dicionários, enciclopédias, entre outras5.
No século XVIII, a história ainda era vista como mestra
da vida, pautada em exemplos que não só explicariam o
presente, como garantiriam um determinado futuro, através da
imitação de atuações tidas como positivas e do esquecimento
das
negativas.
Haveria
uma
compreensão
prévia
das
possibilidades humanas em um continuum histórico6. Passado,
presente e futuro estariam unidos e indissociáveis, segundo essa
concepção. Tendo como parâmetro a antiguidade clássica, e
autores como Cícero, os homens daquele período entendiam que
os grandes feitos do passado deveriam ser contados no presente
porque ensinariam alguma coisa às novas gerações.
Ao estudar o final daquele século, o historiador alemão
percebeu uma modificação interessante. O entendimento sobre o
que seria história mudara; o caráter de “mestra da vida” passou,
pouco a pouco, a se tornar obsoleto devido a um fator de
aceleração do tempo.
Naquele momento, passado, presente e futuro se
tornavam instâncias separadas. A história apresentava-se, então,
sobretudo filosófica. Ocorria a destruição do caráter modelar dos
acontecimentos passados, para perseguir em seu lugar “[...] a
206
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação
singularidade dos processos históricos e sua progressão”7. A
ênfase deslocava-se, portanto, do interesse pelas coisas para o
interesse pelos processos8.
Aliada a essa modificação, podemos partir do princípio
de que, durante as primeiras décadas do século XIX, a história
começou a galgar espaço entre as disciplinas “científicas”, tais
como as ciências da natureza. Para demonstrar certo
distanciamento das artes literárias, ou mesmo da poesia, sua
grande companheira na antiguidade clássica, a história carecia
de procedimentos teóricos e metodológicos que pudessem
legitimá-la dentro desse novo modelo. Aos poucos, e essa é um
pouco a história que pretendemos trabalhar, esses procedimentos
técnicos seriam configurados e passariam a ser incorporados por
todos aqueles que pretendessem “fazer” história.
Nesse novo modelo, a crença nos sentidos humanos
tornava-se cada vez mais obsoleta. A história-ciência tomaria
para si critérios típicos das ciências biológicas, como, por
exemplo, a ideia de que o mais importante não era mais o que
“olho via”, mas sim o que os experimentos críticos ofereciam ao
estudioso. Em outras palavras, o que vigorava nesse modelo
científico era a desconfiança nas faculdades humanas e a perda
da capacidade reveladora dos sentidos9.
207
Isadora Tavares Maleval
Grosso modo, a verdade tornou-se uma categoria
apenas tangível a partir de operações bem definidas, e os
estudiosos da disciplina histórica deveriam recorrer a técnicas
que foram, aos poucos, sendo legitimadas. Em primeiro lugar,
um esforço de catalogar as fontes, que, naquele momento,
tiravam o lugar da testemunha ocular, tão importante para a
historiografia
antiga.
Essa
documentação
deveria
ser
colecionada para, em um momento posterior, servir de fonte
para as grandes sínteses da história, a partir de abordagens
críticas bem rígidas. Essa crítica, por sua vez, só poderia ser
atingida através de critérios de objetividade específicos, dentre
os quais o ideal de imparcialidade. Notamos que esse “passo-apasso” foi seguido firmemente pelo IHGB, desde o discurso de
sua fundação realizado em 183810.
Além disso, o IHGB pode ser tomado como exemplo
para a identificação de outro tipo de premissa moderna para a
concepção de história. Todo o trabalho descrito anteriormente,
de catalogar fontes e produzir sínteses, deveria também ser feito
a partir de um lugar. O historiador passaria a ser identificado a
um grupo, uma instituição que o legitimaria enquanto
profissional11. De acordo com Valdei de Araujo,
[...] novas expectativas exigiam também novos
talentos do “historiador”, que já não poderia ser
apenas o panegerista ou o cronista seco que se
limitava
ao
relatório
dos
“sucessos”
208
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação
contemporâneos. [...] sobrecarregado de novas
exigências, o “historiador” vê-se ameaçado de
julgamento. A qualidade de sua obra está em jogo,
pois age apenas como o instrutor de um processo,
cujo trabalho deve ser avaliado no que concerne à
imparcialidade, fontes e crítica12.
Assim, para garantir que o ideal de imparcialidade
fosse respeitado dentro dessa operação historiográfica13, o
presente deveria ser mantido fora do alcance da historiografia. O
lugar de onde se narrava deveria ser um não-dito, jamais
explicitado em uma história científica 14.
Para Koselleck, à medida que o moderno conceito de
história (Geschichte) consolidou-se, o registro de uma “história
do presente” tornou-se cada vez menos digna: a testemunha
ocular, tão marcante na historiografia antiga, perdia a posição
central dentro da escrita da história. Uma nova crença indicava
que a distância temporal entre o objeto da história e seu
pesquisador não era fator dificultoso para a criação do
conhecimento histórico. Muito pelo contrário: quanto maior o
distanciamento dos fatos estudados, melhor a apreensão
imparcial do conhecimento desejado. A história do presente
tornava-se fraca, e o passado deixava de ser mantido na
memória e na tradição oral, passando a ser reconstruído apenas
através de procedimentos críticos 15.
209
Isadora Tavares Maleval
Por outro lado, uma questão que assume força quando o
assunto é o lugar do presente em narrativas historiográficas é a
temeridade política que emerge desse assunto. Explicando
melhor: se hoje, em pleno século XXI, tratar da história do
tempo presente ainda é visto por alguns acadêmicos como algo
problemático e contraditório, isso se deve também a uma visão
de que o presente não deve ser objeto da história por causa da
proximidade com eventos que podem ser ainda muito
traumáticos. O caso da Segunda Guerra Mundial demonstra bem
essa questão. Apesar de passadas algumas décadas desde o fim
daquele conflito bélico, foi somente na década de 1970 que os
arquivos sobre o período foram abertos aos pesquisadores 16. O
trauma causado pelo conflito, além do fato de pessoas –
“agredidos” e “agressores” – ainda estarem vivas complexificou
o processo de abertura dos arquivos17. O mesmo pode ser
identificado com os arquivos do período da ditadura militar aqui
no Brasil18.
Ora, nos dois exemplos citados acima, o que fica
perceptível é o receio que se tem, ainda hoje, de falarmos de um
contexto político e social problemático que nos é próximo. Até
mesmo nosso contemporâneo Eric Hobsbawm fez referência às
dificuldades pelas quais passou ao escrever sobre o tempo
presente em A era dos extremos. Se, de um lado, dizia que “Se o
210
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação
historiador tem condições de entender alguma coisa deste século
é em grande parte porque o viu e ouviu” 19, recriando de certo
modo o paradigma antigo de Tucídides, de outro lado, assume
os riscos de contar com a própria experiência, tendo em
consideração que a falta de parcialidade pode ser tomada como
algo que desmerecesse a função de historiador20.
Se até hoje essa é uma visão que permanece (sobre a
dificuldade que existe para o historiador trabalhar com o tempo
presente), podemos dizer que esse é um paradigma consolidado
em meados do século XIX. No caso do Brasil, os eventos pósIndependência foram demasiadamente dramáticos e reveladores
de uma falta de coesão entre os diferentes cantos do país. As
revoltas do período regencial, caso fossem narradas em histórias
do Brasil escritas pouco tempo depois, acabariam demonstrando
a falta de unidade do Império, e unidade era palavra cara para
aquele contexto.
A construção e a consolidação do estado imperial
necessitavam também de esquecimentos21. Ao presente (ou ao
passado recente) turbulento restava a posteridade, à qual era
conferida o papel de juíza dos acontecimentos. Os exemplos da
Revolução Pernambucana (1817) e da Farroupilha (1825-1835)
deveriam ser relegados ao “tribunal da posteridade” 22, pois “[...]
rememorar os acontecimentos históricos recentes implicaria em
211
Isadora Tavares Maleval
trazer à tona uma série de contradições, dúvidas e até mesmo
rivalidades pessoais, que em nada poderiam contribuir para o
fortalecimento das debilitadas instituições monárquicas” 23.
Soma-se a isso o fato de que nessa “sucessão de
conflitos internos mal resolvidos” desde antes do Primeiro
Reinado, tiveram em grande medida envolvidos os fundadores
do próprio Instituto Histórico 24. No dizer de Lúcia Guimarães,
na Revolução de 1817, por exemplo, “[...] figuravam dois
ilustres confrades: o brigadeiro Francisco Soares de Andréa e o
marechal Cunha Matos, este último um dos fundadores do
IHGB”25. Isso explicaria, inclusive, o “esquecimento” produzido
pelo instituto com relação ao evento revoltoso em Pernambuco.
De acordo com a mesma historiadora, a Revolução de 1817 seria
mantida em segredo até 1853, quando, pela primeira vez na
Revista da instituição um manuscrito relacionado ao tema foi
tornado público26.
Tendo em vista essa situação, desde o discurso de
fundação do IHGB, Januário da Cunha Barbosa já aventava a
possibilidade da conservação em arquivos para documentos
relacionados aos tempos recentes. Dizia ele:
O circunspecto gênio do historiador, sentando-se
sobre a tumba do homem, que aí termina suas
fadigas, despreza argumentos de partido e conselhos
de lisonja, portando-se em seus juízos como austero
sacerdote da verdade. A forma dos grandes homens,
rompendo as trevas da antiguidade, tem chegado a
212
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação
nós com os documentos de seus méritos acrisolados
pela história: ela assim premia a virtude muitas
vezes perseguida, restituindo à veneração dos
homens a memória daqueles que dela se fizeram
dignos27.
O historiador deveria, então, sentar sobre a “tumba do
homem” para poder, aí sim, explorar a documentação resultante
daquele momento. Deveria ser, portanto, imparcial e desprezar
“argumentos de partido”.
Na 24ª sessão do instituto, datada do dia 22 de outubro
de 1839, era feita a leitura da carta do general José Inácio de
Abreu e Lima, que, além de ofertar uma obra de sua autoria – o
Bosquejo historico, politico e litterario do Brazil – oferecia um
manuscrito “[...] cujo valor é hoje inestimável; pelo que muito
desejaria vê-lo quanto antes publicado, para que não se perdesse
a relação de um acontecimento tão extraordinário, e tão notável
em a nossa moderna história”28. O documento em questão era
uma carta escrita pelo capitão-general da província de
Pernambuco Caetano Pinto de Miranda Montenegro (depois
marquês da Praia Grande), endereçada ao então secretario de
estado,
conde
da
Barca,
no
contexto
da
Revolução
Pernambucana. Apesar de recebidas com “especial agrado” pela
instituição, as ofertas de Abreu e Lima não tiveram o destino
que o doador esperava. Pelo menos não a segunda. A Comissão
213
Isadora Tavares Maleval
de História do instituto, reunida com o fito de dar pareceres a
obras de cunho historiográfico ou mesmo a documentos desse
porte, foi desfavorável à publicação do documento. Em sessão
do dia 19 de dezembro de 1839, Manoel Ferreira Lagos,
segundo secretário da instituição, representava a opinião da
Comissão, ao dizer que a publicação da documentação que
consiste na participação do governador de Pernambuco na
revolução de 1817 havia sido vetada, pois
[...] conquanto um tal documento seja na verdade
de muito apreço, não convém publicá-lo já, pelo
comprometimento que sua publicação poderia
levar a pessoas ainda existentes; [...] que seja
guardado nos Arquivos do Instituto, até que
todos os nomes nesse mencionado documento
tenham comparecido perante o tribunal da
posteridade29.
Foi
nesse
contexto
que
surgiu
uma
proposta
interessantíssima entre os sócios do Instituto Histórico. O
botânico Francisco Freire Allemão, sócio correspondente da
instituição desde 16 de fevereiro de 1839 (e depois sócio
efetivo), teve poucas participações relevantes na instituição.
Podemos citar apenas duas: em 1847, dando parecer às
memórias de Karl Von Martius que acabaram ganhando o
prêmio da instituição sobre o melhor plano para escrever a
história do Brasil; e, em 1850, quando entrou em discussão com
214
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação
Manoel Joaquim Pereira da Silva sobre os vocábulos da língua
geral brasiliense30.
Apesar dessa aparente pouca notoriedade de Allemão
como membro da instituição no que dizia respeito às discussões
sobre a escrita da história nacional, foi dele que partiu, em
dezembro de 1847, a proposta sobre uma arca “fechada com
duas chaves”, uma das quais ficaria a cargo do Ministro do
Império e a outra ao diretor do Arquivo Público, para que nela –
na arca – “[...] se conservem debaixo de sigilo as notícias
históricas contemporâneas que alguém queira enviar ao mesmo
Instituto, notícias que virão lacradas em cartas, e só serão
abertas no tempo em que seu autor o determinar” 31.
A “arca do sigilo”, como daí por diante seria chamada,
longe de ser uma abstração para designar o papel relegado ao
futuro de documentos que versassem sobre o tempo recente da
nação brasileira, tal como a expressão “tribunal da posteridade”,
possuía uma materialidade inquestionável. Seria um “cofre
forte” onde documentos e obras sobre eventos do presente, ou de
um passado ainda muito recente e traumático, deveriam ser
resguardados para não ocasionar perigo à paz que se queria
reinante, naqueles tempos ainda turbulentos. Vale lembrar o
pouco tempo de existência do Segundo Reinado, iniciado após a
Maioridade de D. Pedro II em 1840.
215
Isadora Tavares Maleval
A proposta sofreu julgamento por parte dos sócios da
instituição, mas parece que foi aceita sem grandes sofrimentos.
Naquela mesma sessão houve a aprovação, ficando apenas em
aberto a maneira com que seria desenvolvida daí para frente a
construção da arca e os demais tópicos relacionados ao assunto.
Tal posição só apareceria, contudo, dois anos mais
tarde, em sessão do dia 16 de fevereiro de 1850, honrada com a
presença do Imperador do Brasil. Em discussão, a proposta de
Freire Allemão foi mais uma vez tomada como imprescindível
para a instituição, pela “[...] máxima utilidade de haver um
depósito particular para os escritos cuja publicação não se deve
fazer antes de um tempo determinado”32. A Comissão de
História parecia não duvidar que a proposta em questão devesse
ser posta em prática logo. Nas palavras dos sócios Manoel de
Araujo Porto-Alegre, Francisco Freire Allemão e Manoel
Ferreira Lagos,
A comissão crê que um utilíssimo resultado se
colherá da criação deste arquivo secreto, além dos
que já teve a honra de ponderar: a arca do sigilo vai
ser o depósito da consciência íntima de muitos
escritores, que não levarão à sepultura verdades
essenciais à história de um país, vai ser o juiz
póstumo do caráter de todos os autores principais da
cena do nosso mundo, e revelar fatos que tornariam
a história obscura, forçando os escritores futuros a
tatearem no mundo das conjecturas e das
probabilidades. Além disto, o temor dos escritos
secretos dos contemporâneos, da divulgação de
crimes documentados, o pressentimento de uma
216
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação
funesta herança para os descendentes daqueles que
souberam iludir seus contemporâneos, fará com que
muitos homens recuem e que procedam mais
assisadamete [sic] nos seus atos alistando-se de
preferência no mundo do idealismo, no domínio da
razão, do que num pernicioso e temporário
individualismo33.
Os artigos que regulamentariam a “arca do sigilo”
foram postos em votação alguns meses mais tarde. Após longa
discussão, foram aprovados os artigos com algumas emendas. O
material a partir do qual seria feita a arca, por exemplo, que
antes constava como sendo de “[...] madeira incorruptível,
precintada [sic] de ferro”, agora deveria ser totalmente de
ferro34.
Toda essa discussão visava garantir um consenso sobre
a importância de um cofre desse porte. Informações como o
material que deveria ser utilizado para a feitura da arca, bem
como a forma como deveriam ser embalados os documentos,
demonstram todo um ritual em torno de escritos que deveriam
ser mantidos em segredo naquele momento, só podendo ser
revelados na época que o autor considerasse pertinente.
Ainda há muito a ser desvendado sobre a “arca do
sigilo”. Temos, porém, alguns indícios que mostram que ela foi
efetivamente utilizada por homens que tinham relação próxima
com o instituto.
217
Isadora Tavares Maleval
Um exemplo disso escapa ao período aqui exposto, mas
permanece de nosso interesse não só pela utilização da “arca”,
quanto pelo fato de o doador do documento ter sido um homem
de extrema relevância para o estado Imperial.
Após a queda da família real e o início do período
republicano, um monarquista assumido resolvera escrever suas
memórias sobre os mais distintos fatos que permearam sua
própria vida. Esse homem era Alfredo D‟Escragnolle Taunay, e
sua obra fora intitulada Trechos de minha vida, encetada em
1890, e que posteriormente ganharia o título de Memórias. Os
manuscritos deveriam, contudo, ser abertos ao público somente
após um lapso de tempo, conforme o próprio autor indicava:
“Estas Memórias só podem, só devem ser entregues à
publicidade depois de 22 de fevereiro de 1943, isto é completos
cem anos da época do meu nascimento, ou cinquenta anos de
1893 [...]”35.
Para isso, teve a ideia de confiar os manuscritos aos
auspícios do IHGB, depositando-os na “arca do sigilo”. O
instituto
deveria
conservar,
“sob
zelosa
custódia”,
os
documentos, até a data indicada para a publicação – depois de
1943. Isso não sem antes consultar também o descendente mais
direto do escritor. Os manuscritos foram, então, pouco a pouco –
na medida em que eram escritos por Taunay –, guardados na tal
218
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação
“arca” do instituto: “Foram os livros envoltos em papel
impermeável, arsenicado [sic], e, novamente, em papel
alcatroado, sendo o invólucro, em diferentes pontos, lacrado,
com o sinete do depositante, sobre uma rede de fios
metálicos”36.
Motivos diversos fizeram com que as Memórias de
Taunay fossem retiradas do depósito no IHGB algum tempo
depois daquele prazo estipulado pelo autor, em 1946. Naquele
mesmo ano, seriam publicadas através do esforço dos filhos do
memorialista, Afonso e Raul de Taunay.
O fato é que, para o Taunay-pai, trazer a público uma
série de memórias suas sobre o período monárquico parecia-lhe,
apesar de sua aparente falta de ligação com o novo regime
institucional republicano, perigoso. Também neste caso, o
“tribunal da posteridade” é acionado – pelo próprio autor, não
pela instituição histórica.
***
Os exemplos aqui citados tiveram como objetivo
demonstrar como, em determinadas ocasiões, homens ligados ao
Instituto
Histórico
e
Geográfico
Brasileiro
acabaram
colaborando com uma visão de história que percebia o
afastamento temporal com o objeto de estudo – a nação
brasileira – como parte dos métodos que deveriam adotar para a
219
Isadora Tavares Maleval
constituição de uma história-ciência. Claro está, por outro lado,
que propostas como a da “arca do sigilo” muito tinham a ver
com a situação política vivida pelo Brasil imperial, e com o
temor que existia entre os letrados de comentar sobre os fatos
recentes da vida política do Estado.
Notas de Referência

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
220
Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), doutoranda na mesma Instituição, orientada pela Professora
Doutora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Contato:
[email protected]
SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009, p. 71.
No caso, o romance conta a saga de Tertuliano Máximo Afonso que, ao
assistir um filme em vídeo, encontra um homem igual a ele, seu
duplicado, e resolve desvendar tal mistério.
Reflexão muito provavelmente inspirada nas ideias do filósofo e
historiador marxista Benedetto Croce (1866-1952).
Podendo ser, contudo, utilizado em outras realidades, como a brasileira.
Como exemplo, ver, entre outros, o trabalho de ARAUJO, Valdei Lopes
de. A experiência do tempo. Conceitos e narrativas na formação
nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos
tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
Idem. Ibidem, p. 43.
Idem. Ibidem, p. 54.
ARENDT, Hanaah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
2009, p. 88: “[...] [processos] dos quais as coisas iriam em breve se
tornar subprodutos quase que acidentais”. De acordo com a autora, a
idéia de processo seria o grande diferencial da concepção moderna de
história. Idem. Ibidem, p. 95.
Idem. Ibidem, p. 84-85.
De início, o Instituto procurava realizar um trabalho arquivístico, fato
que demonstraria a boa receptividade de uma noção mais antiga de
história, pautada mais no trabalho antiquário do que na crítica
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação
11
12
13
14
15
documental. De acordo com Lúcia Guimarães, a instituição, naquele
primeiro momento, estava mais preocupada em coletar dados e
documentos relativos ao Brasil nos arquivos do país ou do exterior, do
que em analisar esse tipo de documentação nos termos de uma história
moderna. Em um segundo momento, após a apreensão de certa
quantidade de artefatos documentais, procurava-se interpretar as fontes.
Essa fase seria caracterizada pelo início da produção de síntese histórica,
anunciada na segunda sessão pública, ocorrida no dia 27 de novembro
de 1840. Apesar disso, o próprio imperador D. Pedro II, nove anos mais
tarde, ainda indicava a necessidade de uma mudança na produção do
IHGB: a coleta de dados deveria ceder lugar à escrita da história
nacional. Nesse sentido, alguns pressupostos tornavam-se indispensáveis
ao labor historiográfico. Estes, contudo, ainda não haviam sido
especificados em termos práticos no Brasil, motivo pelo qual se fazia
necessário listar objetivos e métodos que pudessem direcionar o trabalho
do escritor de uma obra de cunho histórico. Ver MOMIGLIANO,
Arnaldo. “O surgimento da pesquisa antiquária”. In ____. As raízes
clássicas da historiografia moderna. Bauru: Edusc, 2004, p. 90;
GUIMARÃES, Lúcia M. P. “Debaixo da imediata proteção de Sua
Majestade Imperial: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (18381889)”. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, a. 156, nº 388, jul-set. 1995, p.
459-613; e ROCHA, João Cezar de Castro Rocha. “História”. In:
JOBIM, José Luís (org.). Introdução ao Romantismo. Rio de Janeiro:
Eduerj, 1999, p. 45.
Sobre o “lugar social” do historiador, ver CERTEAU, Michel de. “A
operação histórica”. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História:
Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 18.
ARAUJO, Valdei Lopes de. Op. cit., 2008, p. 39.
Para a expressão, ver CERTEAU, Michel de. Op. cit., 1988.
Idem. Ibidem, p. 18-20.
KOSELLECK, R. “Ponto de vista, perspectiva e temporalidade.
Contribuição à apreensão historiográfica da história”. In: Op. cit., 2006,
p. 174: “O registro de um „história do tempo presente‟ [Zeitgeschichte]
foi perdendo pouco a pouco sua dignidade. Plank foi um dos primeiros a
observar que as chances de se atingir o conhecimento da história não
diminuíam, ao contrário, aumentavam, à medida que aumentava também
a distância temporal. Com isso, a testemunha ocular foi derrubada de sua
posição privilegiada [...] a idéia de que quanto mais o tempo avança
mais compreensível se torna o passado é um produto da filosofia do
progresso pré-revolucionária”.
221
Isadora Tavares Maleval
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
222
Havia um acordo para deixar um espaço de 30 anos após o fim da guerra
para a abertura dos arquivos.
HOUSSO, Henry. La hantise du passé. Entretien avec Philippe Petit.
Paris, Les Éditions Textuel, 1998.
Lembrando que hoje, no ano de 2010, há uma grande manifestação
política para a abertura desses arquivos, com abaixo-assinados e
propaganda massiva dos meios de comunicação.
HOBSBAWM, E. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991.
São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 8.
Idem. Ibidem.
A respeito da associação entre esquecimento e consolidação do ideal
nacional, ver RENAN, Ernest Renan. O que é uma nação? In:
ROUANET, Maria Helena (org.). Nacionalidade em questão, Cadernos
da Pós/Letras: UERJ, 1997.
Pelo menos essa era a posição tomada com relação à escrita da história.
Temos exemplos que comprovam que, naquele período, podia ser válido
escrever crônicas ou memórias sobre os acontecimentos recentes.
GUIMARÃES, Lúcia. “O „tribunal da posteridade‟”. In: PRADO, Maria
Emília; GUIMARÃES, Lúcia Maria P. (orgs.). O Estado como vocação
– idéias e práticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acces, 1999,
p. 34-35.
_____. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Ed. Museu da República, 2006,
p. 116.
Idem. Ibidem, p. 117.
Lúcia Guimarães afirma ainda que apenas em 1917, ou seja, no
centenário do movimento, é que ele teria sido realmente resgatado para a
história produzida pela instituição inclusive como precursor ao 7 de
setembro de 1822. Idem. Ibidem, p. 120.
BARBOSA, Januário da Cunha. “Discurso”. Revista Trimestral do
Instituto Histórico e Geographico do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, t. 1, n. 1, p. 13-14, 1908 (1839).
“Ata da 24ª sessão em 22 de outubro de 1839”. RIHGB. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, t. 1, n. 4, p. 282, 1908.
“Ata da 29ª sessão em 19 de dezembro de 1839”. RIHGB. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, t. 1. n.4, p. 294-295, 1908.
Sobre Freire Allemão, ver SOUZA, João Francisco de. Freire Alemão, o
botânico. Rio de Janeiro: Pongetti, 1948.
“Ata da 183ª sessão em 9 de dezembro de 1847”. Revista Trimensal de
Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geograhico
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Os segredos da nação
32
33
34
35
36
Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, t. 9, p.
567, 1869.
“Ata da 213ª sessão em 16 de fevereiro de 1850”. Revista Trimensal de
Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geograhico
Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, t. 13,
p. 133, 1872.
Ibidem, p. 134.
“Ata da 216ª sessão em 30 de agosto de 1850”. Revista Trimensal de
Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geograhico
Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de João Ignacio da Silva, t. 13,
p. 415-416, 1872.
TAUNAY, Alfredo D‟Escragnolle. Memórias. Rio de Janeiro: Edições
Melhoramentos, 1946, p. 9.
Idem. Ibidem, p. 10.
223
Isadora Tavares Maleval
224
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”: A Trajetória da Dissidência Comunista da
Guanabara/
Movimento Revolucionário 8 de Outubro (1964-1973)
Izabel Priscila Pimentel da Silva
O
golpe
civil-militar
que
derrubou
o
governo
democrático do presidente João Goulart em 1964 colocou o
Brasil sob uma ditadura que, a rigor, duraria mais de vinte anos
e iria perseguir, cassar, censurar, prender, banir e matar as vozes
dissidentes. Os partidos e movimentos de esquerda brasileiros
sofreram profundamente o impacto do golpe e da derrota sem
resistência das forças progressistas, sobretudo o Partido
Comunista Brasileiro (PCB), que, mesmo permanecendo na
ilegalidade, viveu seu período de apogeu na década de 1960,
representando o principal expoente das esquerdas.1 No entanto,
embora o PCB fosse a maior força no seio das esquerdas
consideradas mais radicais, o “Partidão” – como era apelidado –
passou a sofrer a concorrência de grupos políticos mais à
esquerda.
A contestação ao PCB e o questionamento à sua
hegemonia no campo das esquerdas eram feitos por diversas
organizações
como
o
Partido
Operário
Revolucionário
(Trotskista), o POR(T), surgido em 1952; a Organização
Izabel Priscila Pimentel da Silva
Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-POLOP),
fundada em 1961; a Ação Popular (AP), formada a partir de
quadros
da
Juventude
Universitária
Católica
(JUC)
e
constituída entre 1962 e 1963 e o Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), criado em 1962 a partir de um “racha” no próprio
PCB.2
No imediato pré-64, de uma maneira geral, todos esses
grupos – do PCB, então a principal força das esquerdas, até as
organizações que rivalizavam com ele – confiavam na força das
esquerdas. Contudo, o otimismo das esquerdas foi sobrepujado
pelo golpe civil-militar das direitas. Um golpe que, praticamente,
não enfrentou resistências. Após a vitória dos golpistas, iniciouse um processo de “autocrítica”, de levantamento dos “erros” e
busca por “culpados” pela derrota, provocando “sangrias
orgânicas irreparáveis nos partidos e movimentos clandestinos
atuantes, sobretudo no PCB, principal força das fileiras
derrotadas”. 3 Nesse doloroso processo, o mais antigo partido
comunista do país assumiria um novo papel – o de bode
expiatório.4 Acusado de cautela excessiva e conservadorismo, o
PCB perdeu prestígio e influência política, sendo abalado por
sucessivas e desgastantes cisões internas. O partido partia-se... O
meio estudantil também não passou incólume pelas lutas
internas das esquerdas nos anos 1960: entre 1965 e 1968, as
226
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”
bases universitárias, em várias partes do país, romperam com o
PCB, constituindo as Dissidências Estudantis (DI’s).
E, para além dessa oposição externa, o PCB também era
pressionado, questionado e confrontado internamente. E seria de
dentro das fileiras do “Partidão” que surgiriam rebeldes – dos
mais diversos matizes – que iriam desafiar abertamente a
direção partidária. As divergências se aprofundariam e
tornariam a relação com e a permanência no partido
impraticáveis. Um abismo intransponível, onde foram gestados
os embriões de organizações revolucionárias que, em pouco
tempo, iriam ofuscar o velho partido comunista. “Velho” não só
no sentido de antigo, mas de arcaico, ultrapassado, retrógrado,
na concepção dessas organizações. Se não era possível mudar o
PCB, era preciso mudar-se dele, sair, romper, “rachar”, ir além,
partir pra outra e consolidar um novo campo de “novas”
esquerdas – dissidentes, alternativas, radicais, revolucionárias.
As divergências no interior do PCB – de onde surgiram
algumas das organizações da “nova esquerda” brasileira –
podem ser divididas em duas vertentes: a primeira era a
chamada Corrente Revolucionária, que reuniu nacionalmente
diversos setores que se opunham à direção do partido 5; a outra
vertente das divergências internas do PCB estruturou-se em
torno das chamadas Dissidências, basicamente formadas por
227
Izabel Priscila Pimentel da Silva
setores estudantis. As DI’s, como ficaram conhecidas, surgiram
em vários Estados, com destaque para Rio de Janeiro, São Paulo,
Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul. Contudo, seria no
então Estado da Guanabara que a Dissidência do PCB alcançaria
maior relevância no cenário político e estudantil dos anos 1960.
As origens da Dissidência Universitária da Guanabara,
que, posteriormente, ficaria conhecida como Dissidência
Comunista da Guanabara (DI-GB), remontam ao pré-1964 e às
acirradas divergências internas que abalaram o Partido
Comunista Brasileiro, em especial suas bases universitárias.
Ainda em 1964, surgiu uma fração, reunindo militantes
comunistas universitários, contrários aos rumos sugeridos pela
direção do PCB. Segundo a definição proposta por Daniel Aarão
Reis, o termo “fração”, no jargão comunista, refere-se a um
“agrupamento, reunindo militantes de diferentes células, que se
juntam para articular posições políticas, à revelia das direções
estabelecidas”.6 Os fracionistas eram aqueles que não aceitavam
as decisões das maiorias e tentavam articular, por fora das
instâncias autorizadas pelo estatuto partidário, determinadas
atividades secretas. Como nos estatutos do “Partidão” as frações
eram formalmente proibidas, o chamado fracionismo era
considerado um grave “desvio”. No caso concreto, quando os
estudantes comunistas começaram a organizar sua dissidência
228
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”
em relação ao PCB, o fizeram sob a forma de uma fração,
clandestina aos olhos da direção partidária. Assim, só sabiam da
existência dessa fração os militantes que nela estavam.
Essa “fração” era basicamente constituída por estudantes
comunistas da Faculdade Nacional de Filosofia e da Faculdade
de Direito (pertencentes à atual Universidade Federal do Rio de
Janeiro) 7 , unidades onde o PCB contava com um número
razoável de militantes que, no entanto, passaram a contestar as
orientações teóricas e práticas do Partido. Essa fração difundiuse nas universidades cariocas, atraindo um número cada vez
maior de estudantes comunistas, muitos calouros, que já eram
convocados a travar a luta interna no “Partidão”. Além disso, os
fracionistas chegaram a estabelecer contatos com militantes
universitários comunistas de outros Estados. Para tanto,
contribuíram a “Ação Popular” e a “POLOP”, que apresentaram
contatos e conexões, em outras faculdades na Guanabara e
demais Estados. Como estas organizações também discordavam
das orientações gerais do PCB e queriam seu enfraquecimento
ou desagregação, eram simpáticas ao fortalecimento dos
dissidentes do Partido. Não tardaria e essa dissidência
clandestina viria à tona, consolidando o abismo que já se
instalara entre os pecebistas e os dissidentes.
229
Izabel Priscila Pimentel da Silva
Finalmente,
em 1966,
por ocasião
das eleições
parlamentares, inserida no contexto de crescente radicalização
estudantil e de aprofundamento das divergências com as táticas
e estratégias propostas pelo PCB, a recusa em obedecer as
orientações do partido culminou no rompimento definitivo dos
dissidentes com o Partido Comunista Brasileiro. Assim sendo,
em novembro de 1966, o “Partidão” partia-se, novamente. Neste
“racha”, muitos militantes – que, na prática, já estavam
desvinculados da direção do PCB – abandonaram as fileiras do
velho partido comunista e fundaram, agora oficialmente e não
mais como fração, uma nova organização.
A partir de então, no contexto de crescente mobilização e
radicalização do movimento estudantil, a Dissidência da
Guanabara encontrou terreno fértil para sua organização e
consolidação no meio estudantil e político nacional, garantindo
seu lugar entre as organizações de esquerda mais atuantes e
combativas no pós-1964 e cuja atuação, um pouco mais tarde,
romperia os limites universitários.
Após superar, em 1967, um processo de luta política
interna8, a DI-GB traçou uma trajetória ascendente, inserida no
contexto de ebulição do movimento estudantil brasileiro,
sobretudo no emblemático ano de 1968, quando, em todo o
mundo, a revolução ganhava corações e mentes. Ao privilegiar
230
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”
as reivindicações de caráter estudantil, sem perder de vista as
bandeiras da luta política mais geral, a DI-GB viu seu prestígio
aumentar, juntamente com seu poder de mobilização, que, em
1968, alcançou seu maior grau. Assim sendo, a Dissidência da
Guanabara
exerceu
liderança
inconteste
no
movimento
estudantil carioca, ao mesmo tempo em que ampliou sua
expressão nacionalmente.9
A década de 1960, e em especial o ano de 1968, foi
marcado também por uma verdadeira efervescência cultural, que
desafiava as normas e costumes estabelecidos. A rebeldia
ultrapassava os limites da política e a contestação ao sistema
significava também a contestação de um estilo padrão de vida.
Revolução
sexual,
pílula
anticoncepcional,
emancipação
feminina, Cinema Novo, Tropicalismo, psicodelismo, hippies,
“paz e amor”... Os projetos e aspirações desta geração que
experimentou conjuntamente novas formas de criar, na arte e na
vida, eram tão revolucionários quanto as propostas das
organizações de esquerda, sobretudo as que pegaram em armas.
Mas, logicamente, tratava-se de um outro projeto de revolução.
E esse projeto alternativo foi absorvido de forma restrita pelas
organizações da esquerda armada, que, em sua maioria, embora
radicalizadas politicamente, eram conservadoras do ponto de
vista comportamental. Nesse sentido, a DI-GB destacou-se
231
Izabel Priscila Pimentel da Silva
como a organização que mais se apropriou dos valores de 68, ou
seja, os dissidentes cariocas podem ser considerados os mais
“moderninhos”
revolucionários.
Ainda
assim,
o
conservadorismo também estava presente na DI-GB, sobretudo
nas suas lideranças mais radicalizadas. Constatamos, portanto,
que a organização conseguia ser, concomitantemente, tão
sectária e preconceituosa quanto revolucionária e libertária.
A Dissidência Comunista da Guanabara também se
notabilizou pela valorização da formação teórica de seus
militantes. Assim sendo, ela pode ser considerada, entre as
demais organizações revolucionárias, um dos grupos mais
intelectualizados do período. A maioria de seus militantes –
como acontecia com as demais organizações – era formada por
homens, jovens, oriundos das camadas médias, residentes em
grandes cidades e, sobretudo, por estudantes. Além disso, foi
possível observar que a Dissidência da Guanabara, ao longo de
sua trajetória, vislumbrava a integração numa organização maior,
com bases sociais mais amplas e penetração em outros Estados.
Contudo, apesar das tentativas ou expectativas, não foi possível
viabilizar uma articulação nacional com as demais Dissidências
do PCB – que, em cada Estado, seguiram rumo próprio – nem
tampouco uma fusão orgânica com outras organizações
revolucionárias como a “Vanguarda Armada Revolucionária
232
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”
Palmares” e a “Ação Libertadora Nacional”. Assim sendo, a DIGB seguiu trajetória própria,
semelhantes
aos
traçados
mas percorreu caminhos
pelas
demais
organizações
revolucionárias, caminhos que por vezes se entrelaçavam.
A partir do segundo semestre de 1968, quando o
movimento estudantil entrou em refluxo e a ditadura reprimiu
sem clemência os que insistiram em organizar o movimento, as
lideranças estudantis e os que compunham a chamada “massa
avançada” – que já militavam em organizações de esquerda
comprometidas com a idéia de preparar a luta armada 10 –
passaram à militância política além das fronteiras escolares,
convertendo-se
às
ações
armadas
e
abandonando,
paulatinamente, o movimento estudantil. Segundo os dados
levantados pelo Projeto Brasil: Nunca Mais11, mais de quarenta
organizações clandestinas atuaram no Brasil ao longo das
décadas de 1960 e 1970. A trajetória destas organizações foi
marcada por múltiplas cisões, que fragmentaram a esquerda
armada, diluindo o número de militantes em dezenas de
pequenos grupos.12
Inserida no contexto marcado pelo refluxo do movimento
estudantil e radicalização das lideranças, onde diversas
organizações da esquerda brasileira optaram pelo recurso às
armas, a Dissidência da Guanabara, que já defendia a
233
Izabel Priscila Pimentel da Silva
perspectiva da luta armada, também adotou formas mais radicais
de luta. Em fins de 1968, a DI-GB já se envolveu em ações
armadas, mas seria em abril de 1969, por ocasião da realização
(clandestina) de sua III Conferência, que os dissidentes cariocas
se definiram enquanto “organização comunista empenhada na
guerra revolucionária”
13
e adentraram, efetivamente, na
guerrilha urbana.
Se até 1968, a DI-GB estava voltada basicamente para o
movimento estudantil, a partir de 1969, seus recursos, seus
militantes e seus projetos voltar-se-iam também, e sobretudo,
para a preparação da luta armada. Contudo, é importante
destacar que a organização defendia que a adoção da luta
armada não deveria excluir outras formas de luta não armadas,
ao contrário, estas diferentes formas de luta deveriam caminhar
lado a lado no bojo do processo revolucionário. Assim sendo, a
Dissidência da Guanabara, apesar de ter se engajado nas ações
armadas, não pode ser considerada uma organização militarista,
pois ao contrário de outros grupos, a DI-GB nunca menosprezou
nem abandonou as lutas de massas. 14
Em 1969, a DI-GB alterou sua estrutura interna e foram
criadas três frentes de trabalho. A Frente de Trabalho das
Camadas Médias, dado o refluxo do movimento estudantil, que
dera fôlego e projeção à organização, concentrava-se na
234
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”
distribuição clandestina do jornal Resistência, mas os trabalhos,
há muito, não conquistavam apoio de setores expressivos da
sociedade. A Frente de Trabalho Operário atuava basicamente
em ações de propaganda armada nas portas de fábricas, tentando
recrutar operários para a organização. No entanto, apesar de seus
esforços, a Dissidência da Guanabara não conseguiu conquistar
apoio junto aos operários. Os contatos eram escassos e nenhum
militante da organização era efetivamente operário. Por sua vez,
a Frente de Trabalho Armado continuava com força total,
realizando importantes ações de expropriações de bancos e
armas. Mas seria em setembro de 1969 que a organização
alcançaria notabilidade nacional e internacional, após conceber e
realizar – com auxílio da Ação Libertadora Nacional (ALN) – a
captura do embaixador dos Estados Unidos, a mais ousada ação
realizada pela esquerda armada brasileira. 15 O sucesso da ação,
do ponto de vista dos guerrilheiros – suas exigências foram
cumpridas pelos militares; ninguém saiu ferido ou preso durante
a operação e o embaixador foi libertado, em perfeitas condições,
após a chegada ao México dos presos políticos selecionados –,
parecia imprimir no horizonte um vermelho revolucionário.
Foi no curso da ação da captura do embaixador
estadunidense que a Dissidência Comunista da Guanabara
empreendeu outra importante guinada em sua trajetória: a
235
Izabel Priscila Pimentel da Silva
mudança do nome da organização, que passou a se chamar
Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Na hora de
assinar, junto com a ALN, o manifesto revolucionário, redigido
por Franklin Martins, em que os guerrilheiros expuseram suas
razões e exigências, surgiu a dúvida: como assinar? Como
destacou Gorender, se assinassem como “Dissidência da
Guanabara” surgiria uma interrogação para o público não
iniciado: Dissidência de quê?16 Já Alberto Berquó, com base em
entrevistas com os participantes da ação, informa que a direção
da DI-GB questionou-se: “como a organização assinaria?
Dissidência da Guanabara? DI? Soava ridículo. Isso não era
nome público de organização revolucionária”. 17
Na realidade, a DI-GB adotou o nome de MR-8 para
desafiar a ditadura. Quando a repressão desbaratou uma pequena
célula de militantes políticos 18 , anunciou triunfantemente que
destruíra o grupo terrorista MR-8 – nome criado pela própria
repressão a partir do título de um jornalzinho encontrado com os
militantes.
19
Ao assumir o suposto nome da organização
recentemente aniquilada, a DI-GB objetivava fazer uma jogada
publicitária,
uma
espécie
de
contra-propaganda,
para
desacreditar o sucesso que a repressão anunciara. Os jovens da
Dissidência Comunista da Guanabara, ao assinarem o manifesto
que foi entregue à imprensa após o rapto, rebatizaram-se de MR236
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”
8, provando à ditadura que a revolução continuava viva e forte.
Na continuidade do nome, estava a continuidade da luta: “De
agora em diante nos chamaríamos MR-8. O MR-8 éramos
nós”.20
Portanto, o ano de 1969 representa um “divisor de
águas” na história da DI-GB: a opção oficial pela luta armada, a
captura do embaixador, a notabilidade entre as organizações
revolucionárias, a mudança de nome. A organização afastava-se
cada vez mais de seu passado recente de grandes mobilizações
estudantis, manifestações de rua e articulação com os
movimentos sociais e enveredava-se nas ações armadas urbanas,
esboçando tentativas (frustradas) de deflagrar a guerrilha rural e
caminhando para um crescente isolamento social. De 1969 até o
início da década de 1970, a trajetória da Dissidência Comunista
da Guanabara, agora chamada de Movimento Revolucionário 8
de Outubro, possuiu um traço de continuidade, ou seja, tratavase, na prática, da mesma organização, ainda que tenha adotado
um novo nome, empregando novos métodos e vivenciando uma
nova etapa em sua história.
Nos primeiros anos da década de 1970, o MR-8 (como
passou a ser conhecida a DI-GB) viu seu prestígio aumentar,
mas ao mesmo tempo, teve de enfrentar – junto com as demais
organizações – a intensificação da repressão ditatorial. Logo
237
Izabel Priscila Pimentel da Silva
após a ação da captura do embaixador, o governo editou dois
novos atos institucionais (nº 13 e nº 14), que decretavam,
respectivamente, a pena de banimento para os presos políticos
trocados pelo embaixador e a adoção da pena de morte para
crimes de “guerra subversiva”. A repressão tornou-se ainda mais
feroz. Em pouco tempo, a prisão, a tortura, a morte ou o exílio
tornaram-se destinos quase certos para os participantes da luta
armada no Brasil.
Nesse contexto, o Oito, como se apelidara a organização,
“cercado nas cidades, e, nas cidades, cercado”21, agonizava. 22 A
organização, que então contava com a militância “ilustre” do
Capitão Carlos Lamarca, procurou fugir do cerco da repressão
nas cidades e tentou esboçar a tão sonhada guerrilha rural no
sertão da Bahia. A tentativa fracassou. O sertão não virou mar.
Morte
do
capitão
guerrilheiro.
Morte
de
um
projeto
revolucionário. Ainda havia saída? O exterior. O Chile de
Salvador Allende e da Unidade Popular enchiam os corações das
esquerdas sul-americanas de esperanças revolucionárias. Um
novo fracasso. Um novo golpe. Brasil, 1964. Chile, 1973.
Concomitantemente à derrocada da via chilena de construção do
socialismo, a organização enfrentava um amplo processo de
redefinição de rumos. Autocrítica. Polêmicas. Abandonar a luta
armada? Novas formas de luta? Que caminho seguir?
238
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”
No desenrolar destes debates, o Oito “rachou” em duas
partes: de um lado, o MR-8 Direção Geral (MR-8/DG), que
reunia o núcleo dirigente que abandonara o Brasil (como Sergio
Rubens, João Salgado e Juca Oliveira) e mais alguns dirigentes
já no exílio (como Franklin Martins e Carlos Alberto Muniz),
que criticavam a luta armada empreendida até então e
inspiravam-se nas teses da “Política Operária” (PO) – uma
espécie de refundação da ORM-POLOP – que, “situando-se
numa perspectiva leninista ortodoxa, criticava sem reservas as
ações armadas em curso, consideradas vanguardistas e
esquerdistas, defendendo a centralidade da classe operária e a
necessidade de concentrar esforços políticos no trabalho junto
ao proletariado” 23 ; e de outro lado, o MR-8 Construção
Partidária (MR-8/CP), que reunia alguns militantes exilados,
entre eles Vladimir Palmeira e Daniel Aarão Reis, que também
faziam a autocrítica da luta armada, mas recusavam-se a se
aproximar das propostas da PO. O MR-8/CP teve vida curta:
após o golpe militar no Chile em setembro de 1973, liderado
pelo general Augusto Pinochet, seus militantes espalharam-se
por diversos países e não foi possível manter os vínculos
políticos. Já o MR-8/DG chegou a realizar, antes do golpe, uma
conferência onde decidiu encerrar as ações armadas e concentrar
seus esforços nos trabalhos em sindicatos operários e
239
Izabel Priscila Pimentel da Silva
associações populares no Brasil. A partir de então, reativou
contatos e conseguiu articular um trabalho político no interior do
país. Junto com a “Ação Popular Marxista-Leninista” (APML) e
a “Política Operária”, o MR-8 editou no exterior a revista Brasil
Socialista, que circulou clandestinamente no Brasil. Ao longo
das décadas de 1970 e 1980, este “novo” MR-8 participou
ativamente da reorganização dos movimentos sociais e do
processo eleitoral, apoiando candidatos “progressistas” do MDB
(atual PMDB), partido ao qual acabou integrando-se, e onde
ainda hoje forma um pequeno núcleo.24
Assim sendo, o ano de 1973, marcado pelo golpe militar
no Chile, também representa mais um importante marco
temporal na trajetória do MR-8 – e, dessa vez, um marco final,
pelo menos para esse MR-8 que estamos analisando. Em 1969,
como vimos, a Dissidência Comunista da Guanabara (DI-GB),
já empenhada nas ações armadas, adotou o nome de Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). A mudança de nome,
entretanto, não representou uma ruptura em suas táticas e
estratégias revolucionárias. DI-GB e MR-8 eram a mesma
organização. No entanto, o mesmo não se pode dizer das
guinadas empreendidas pela organização a partir de 1973, após
os “rachas” sofridos no exterior. Os poucos militantes que
restaram do antigo MR-8, após acirradas divergências com seus
240
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”
outrora camaradas, condenaram as ações armadas e iniciaram
um novo capítulo na história da organização. Anos mais tarde, o
MR-8 seria reorganizado no Brasil, assumindo, porém, uma
orientação política bastante diferente da anterior. Nesse caso, ao
contrário do que ocorrera em 1969, o nome ainda era o mesmo:
Movimento
Revolucionário
8
de
Outubro.
Contudo,
consideramos que por suas novas formulações e práticas
políticas tratava-se, na verdade, de uma nova organização, que
se afastou cada vez mais de seu passado revolucionário. Com
outra inspiração, novas palavras de ordem e novas formas de
luta, entre este MR-8 e seu predecessor medeia um verdadeiro
abismo.
Notas de Referência

1
2
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Contato: [email protected]
Para uma análise mais aprofundada acerca do programa político
defendido pelo PCB no período que antecedeu o golpe de 1964 e o papel
exercido por ele no seio das esquerdas no início da década de 1960, cf:
AARÃO REIS, Daniel. “Entre reforma e revolução: a trajetória do
Partido Comunista no Brasil entre 1943 e 1964”. In: RIDENTI, Marcelo
& AARÃO REIS, Daniel (orgs.). História do marxismo no Brasil:
partidos e organizações dos anos 20 aos 60. volume 5. São Paulo: Ed.
UNICAMP, 2002.
Para maiores informações sobre as organizações de esquerda que
atuavam no Brasil às vésperas do golpe de 1964 e sua contestação ao
PCB, ver, entre muitos outros: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS,
Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007 (Coleção As esquerdas no Brasil, volume 3);
241
Izabel Priscila Pimentel da Silva
RIDENTI, Marcelo & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). História do
marxismo no Brasil: partidos e organizações dos anos 20 aos 60.
volume 5. São Paulo: Ed. UNICAMP, 2002.
3
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Ed.
UNESP, 1993, p. 28.
4
Vale destacar que, no imediato pós-golpe, pouco se questionou sobre
porque as alternativas de esquerda ao PCB, como a AP, a ORM-POLOP,
o PCdoB e os nacionalistas de esquerda, identificados com o
“brizolismo”, também não foram capazes de evitar ou amenizar os
efeitos devastadores da intervenção militar.
5
A Corrente Revolucionária era encabeçada por Carlos Mariguella, de
São Paulo; Jacob Gorender, no Rio Grande do Sul; Mário Alves, em
Minas Gerais; e Apolônio de Carvalho, no antigo Estado do Rio de
Janeiro. A luta interna no PCB se intensificou a partir de maio de 1965,
quando o Comitê Central reuniu-se pela primeira vez após o golpe de
1964 e reafirmou a linha política de 1960, atribuindo a derrota aos
chamados desvios de esquerda. Em 1967, os principais membros da
Corrente Revolucionária foram formalmente expulsos do “Partidão” e,
junto com as levas de militantes que os seguiram na saída do PCB,
dariam origem, posteriormente, ao Partido Comunista Brasileiro
Revolucionário (PCBR) e à Ação Libertadora Nacional (ALN). Sobre a
trajetória destas organizações, ver, entre muitos outros, GORENDER,
Jacob. Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das ilusões perdidas
à luta armada. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1999.
6
CAMURÇA, Marcelo Ayres & AARÃO REIS, Daniel. “O Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Da luta armada contra a ditadura
à luta eleitoral no PMDB”. In: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS,
Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 145 (Coleção As esquerdas no Brasil, v.
3)
7
Em 1965, a Universidade do Brasil teve sua denominação alterada para
Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas o novo nome não “pegou”
de imediato. Além disso, as faculdades da antiga Universidade do Brasil
eram chamadas de “nacionais” e assim continuaram a ser conhecidas ao
longo da década de 1960.
8
Alguns militantes da organização defendiam a integração na Corrente
Revolucionária, que ainda estava travando a luta interna dentro do PCB;
outros propunham a adesão ao PCdoB e, por fim, figuravam os que
almejavam consolidar a nova organização, na expectativa de formar uma
organização nacional, com as demais dissidências. Dessa forma, cerca
de um ano após o “racha” com o PCB, foi a vez da própria Dissidência
242
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”
9
10
11
12
13
rachar-se nestas três vertentes, além da criação um pouco mais tarde,
por alguns militantes, da Dissidência da Dissidência da Guanabara
(DDD). Os que debandaram para a Corrente Revolucionária
posteriormente ingressariam no Partido Comunista do Brasil (PCdoB)
e/ou no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Por sua
vez, os que fundaram a DDD, defensores do “foquismo” e, em grande
parte, presentes no movimento estudantil secundarista, integrariam,
posteriormente, os Comandos de Libertação Nacional (COLINA).
Para uma análise detalhada da atuação e consolidação da DI-GB no
cenário estudantil e político nacional ao longo da década de 1960, cf:
SILVA, Izabel Priscila Pimentel da. Os filhos rebeldes de um velho
camarada: a Dissidência Comunista da Guanabara (1964-1969).
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.
A opção pelas armas por parte das esquerdas brasileiras não foi uma
inovação da década de 1960. Ademais, já na década de 1960, as
propostas e tentativas – fracassadas – de luta armada surgiram antes
mesmo do golpe civil-militar de 1964.
Trata-se de um amplo projeto, organizado pela Arquidiocese de São
Paulo, que procurou recuperar as regras do sistema jurídico que vigorou
no Brasil a partir de 1964, quando da implantação da ditadura civilmilitar, elegendo como fonte básica os autos dos processos judiciais
instaurados durante o regime autoritário para apuração dos crimes de
natureza política. A partir de mais de 700 processos completos reunidos
pela equipe do projeto, localizados, sobretudo, no Superior Tribunal
Militar, foi possível analisar as instituições jurídico-políticas no regime
militar, a estrutura do aparelho repressivo, a legislação de segurança
nacional, o perfil dos atingidos e as práticas de tortura sistemática.
Para um breve painel das organizações da esquerda armada brasileira e
sua atuação política ao longo das décadas de 1960 e 1970, cf: RIDENTI,
Marcelo. “Esquerdas revolucionárias armadas nos anos 1960-1970”. In:
FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS, Daniel (orgs.). Revolução e
democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007
(Coleção As esquerdas no Brasil, volume 3) e RIDENTI, Marcelo.
“Esquerdas armadas urbanas (1964-1974)”. In: RIDENTI, Marcelo &
AARÃO REIS, Daniel (orgs.). História do marxismo no Brasil: partidos
e movimentos após os anos 60. volume 6. São Paulo: UNICAMP, 2007.
AARÃO REIS, Daniel & SÁ, Jair Ferreira de (orgs.). Imagens da
revolução – documentos políticos das organizações clandestinas de
esquerda, 1961-1971. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p.
440.
243
Izabel Priscila Pimentel da Silva
14
Organizações esquerdistas militaristas eram aquelas que adotavam
formas de luta e de propaganda armada e desprezavam as formas de luta
de massas. A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e a Ação
Libertadora Nacional (ALN) são consideradas as organizações que mais
extremaram o militarismo em sua prática revolucionária.
15
Em troca do embaixador, os guerrilheiros conseguiram, além da
publicação de um manifesto revolucionário nos principais veículos de
comunicação do país, a libertação de 15 presos políticos, banidos – esta
foi a figura jurídica “inventada” pela ditadura para legalizar a saída dos
presos do país – e levados ao México, a bordo do avião Hércules 56 da
FAB. Para um relato detalhado da ação de captura do embaixador e seu
desfecho, cf.: BERQUÓ, Alberto. O seqüestro dia-a-dia. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997.
16
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas – a esquerda brasileira: das
ilusões perdidas à luta armada. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1999, p.182.
17
BERQUÓ, Alberto. O seqüestro dia-a-dia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997.
18
Tratava-se da Dissidência Estudantil do Rio de Janeiro (DI-RJ), surgida
em Niterói e que, desde o final de 1968, tinha optado pelo afastamento
das cidades, transferindo seus militantes para duas fazendas em
Cascavel e Montelândia, no Paraná, onde organizariam um foco
guerrilheiro, que deveria atuar na região de Foz do Iguaçu.
19
O nome “Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)” fazia
referência à data da morte do líder revolucionário Ernesto “Che”
Guevara, em 08 de outubro de 1967, na Bolívia. No entanto, hoje se
sabe que “Che” foi capturado no dia 8 de outubro, mas só foi
assassinado no dia seguinte, em 9 de outubro de 1967.
20
GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982, p. 96.
21
CAMURÇA, Marcelo Ayres & AARÃO REIS, Daniel. “O Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Da luta armada contra a ditadura
à luta eleitoral no PMDB”. In: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS,
Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 137 (Coleção As esquerdas no Brasil, v.
3)
22
Referência à expressão, empregada na época, de autoria de Carlos
Vainer, então militante da direção do MR-8.
23
CAMURÇA, Marcelo Ayres & AARÃO REIS, Daniel. “O Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Da luta armada contra a ditadura
à luta eleitoral no PMDB”. In: FERREIRA, Jorge & AARÃO REIS,
Daniel (orgs.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro:
244
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Éramos “Oito”
24
Civilização Brasileira, 2007, p. 138 (Coleção As esquerdas no Brasil, v.
3)
Idem, p. 138-145. Para maiores informações sobre a trajetória do MR-8
nas décadas de 1970 e 1980, cf. CAMURÇA, Marcelo Ayres. Os
“melhores filhos do povo”: um estudo do ritual e do simbólico numa
organização comunista – o caso MR-8. Tese (Doutorado em
Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 1994.
245
Izabel Priscila Pimentel da Silva
246
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Polícia Política em Minas Gerais: Fabricação de
crimes políticos e imaginário anticomunista no regime
militar de 1964
Júlia Lettícia Camargos
(...) Basta uma testemunha / (verdadeira ou
falsa)
basta um simples indício / para torná-lo – o
indiciado
Os verdugos farão tudo / conforme leis e
tratados
Infâmias não proferidas / ideais de fé frustrados
sonhos um dia sonhados / serão crimes sem
saída (...)
(Lara de Lemos – Inventário do Medo) 1
Polícia Política e Anticomunismo, algumas
considerações
O golpe que inaugurou o regime militar no Brasil em
1964 gerou significativas mudanças na ordem política
econômica e social do país, colocando fim ao curto período
democrático experimentado pela sociedade desde o fim do
Estado Novo em 1946. O arranjo governamental elaborado pelos
militares a partir de 1964 caracterizou-se pela imposição de um
Estado de exceção fundamentado na Doutrina de Segurança
Nacional
que
atrelava
a
legitimação
do
Estado
ao
desenvolvimento econômico e, sobretudo à segurança interna.
Um vasto esquema de informação e segurança destinado ao
Júlia Lettícia Camargos
controle social e político foi criado transformando-se num dos
sustentáculos da estruturação deste sistema ditatorial. A
militarização do Estado implicou na institucionalização de um
aparato repressivo atuando constantemente na manutenção da
ordem social com a função de coibir quaisquer manifestações
antagônicas à ordem instalada.
A polícia política teve papel fundamental na execução da
segurança interna do país. Num estudo sobre Polícia e Polícia a
socióloga Martha K. Huggins salienta que toda “ação policial é
política” Segundo a autora, mesmo em situações em que a
polícia não está diretamente ligada à repressão política, ou seja,
em suas atividades “normais” ela se configura como tal porque
se encontra sustentada pelo Estado no exercício de manutenção
do poder. 2
De fato todas as ações policiais estão ligadas à política
do Estado, todavia, há distinções que separam a polícia política
de outras modalidades convencionais de polícia, primeiramente,
trata-se de um corpo especializado treinado para prevenir e
combater crimes contra o Estado. René Rémond elucida que a
política é uma atividade relacionada ao exercício, conquista e
prática do poder sendo assim, as funções da polícia política
estão vinculadas a estes níveis próprios das relações de poder,
todas e quaisquer atividades que possam vir a comprometer o
248
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Polícia Política em Minas Gerais
exercício de autoridade do Estado são da competência da polícia
política.
Em segundo lugar, a especificidade do treinamento, a
especialização em crimes de natureza política incluía itens como
espionagem, vigilância, técnicas de interrogatório, sabotagem,
em alguns casos técnicas de tortura dentre outros. A
profissionalização policial era requisito fundamental para a
solidificação da instituição, segundo Max Weber este tipo de
organização burocraticamente estruturada exige alto grau de
especialização de seus funcionários, a competência técnica está
ligada ao treinamento especializado para o exercício das
atividades, pois somente o pessoal qualificado vincula-se ao
quadro administrativo dessas organizações.3
A formação de um corpo burocrático especializado
responsável pela segurança do Estado e manutenção da ordem
política e social implicou não só na estruturação racional de um
sistema de regras e padrões de operações, mas também na
utilização de dispositivos mentais capazes de assegurar o
comprometimento e lealdade dos funcionários.
Sustentamos, em sintonia com as ideias de Bronislaw
Baczko, que qualquer instituição social ou política faz parte de
um universo simbólico que a envolve e constitui seu quadro de
funcionamento orientando a adesão a um sistema de valores
249
Júlia Lettícia Camargos
capazes de intervir nos processos de interiorização pelos
indivíduos e de modelar comportamentos coletivos. 4 A
legitimação do poder representado pelos militares dependeu não
só de normas burocraticamente fundadas, mas também na
utilização de dispositivos mentais, o anticomunismo foi um forte
elemento ideológico que moldou comportamentos, sustentou
ações coercitivas e definiu os contornos da práxis da polícia
política no Brasil.
Chamamos a atenção para o fato de que mesmo fora dos
limites burocráticos os funcionários militares propalavam o
ideário engendrado no interior da corporação, tamanha a
assimilação dos valores recebidos dentro da instituição. Nota-se
isto claramente na formação de organizações clandestinas
oriundas do aparelho policial formal, os chamados Esquadrões
da Morte grupos de extermínio que utilizavam de meios
violentos contra criminosos comuns e políticos no intuito de
“limpar” as cidades ilegalmente. Em vários estados da federação
houve ações destes grupos, Huggins em sua pesquisa sobre o
treinamento de polícias estrangeiras pelos Estados Unidos
revelou que este tipo de instrução especializada contribuiu para
a degenerescência da polícia brasileira e favoreceu a formação
de organizações paralelas. Neste caso ressalta-se a intercessão
entre
250
racionalidade
sistemática
e
imaginário
social,
a
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Polícia Política em Minas Gerais
especialização profissional aliada aos valores anticomunistas
favoreceu ações hediondas por parte do corpo de policiais.
Em estudo sobre a polícia política em Minas Gerais de
1935 a 1964, Rosângela Assunção ao analisar a trajetória desta
instituição nos mostra que esta sofreu inúmeras alterações
estruturais ao longo do tempo tendo como finalidade maior
controle político/social, ao passo que o anticomunismo
permaneceu como elemento norteador das ações policiais e
subterfúgio para “justificar e legitimar as ações de cunho
autoritário sob a sociedade civil.” 5 Assunção argumenta que em
diferentes conjunturas políticas as funções da polícia política
permaneceram inalteradas e mesmo em períodos democráticos
suas
atribuições
estavam
voltadas,
não
só,
mas,
fundamentalmente para a supressão do comunismo, o Partido
Comunista era considerado o único merecedor de intensa
vigilância, a manutenção da ordem pública estava estritamente
ligada à eliminação dos comunistas.
As atividades de polícia política em Minas Gerais
iniciaram-se em 1922 com a criação do “Gabinete de
Investigações e Capturas” para o combate de desordens sociais
geradas pelo anarquismo ou comunismo sua profissionalização
iniciou-se nos anos 1930 num esforço do governo estadual em
aprimorar a estrutura funcional da polícia frente consolidação da
251
Júlia Lettícia Camargos
esquerda no Brasil como o Partido Comunista e a Aliança
Libertadora Nacional (ALN). Nos anos do governo Vargas de
1935 a 1940 o anticomunismo se firmou na polícia mineira
determinando os contornos da ação da polícia contra os inimigos
da ordem e do Estado6. Quando sobreveio o golpe da coalizão
civil-militar de 1964 a polícia política mineira já se encontrava
consolidada e estruturada e tinha como base ideológica o
anticomunismo componente essencial da cultura política que
envolveu o Estado autoritário brasileiro durante o regime
militar.
O fenômeno do anticomunismo surgiu após a Revolução
de Outubro de 1917, quando o comunismo concretizou-se como
movimento político organizado configurando-se como uma
possível
alternativa
aos
sistemas
políticos
tradicionais.
Entretanto, não se trata de uma simples oposição ao comunismo,
mas um fenômeno político e ideológico estimulado por
conjunturas, valores e interesses variados, no plano ideológico é
entendido como corrente de pensamento que agrega valores e
representações,
no
plano
político
traduz
a
sistemática
organização da oposição comunista. É importante frisar que o
anticomunismo não é necessariamente um movimento de direita,
foi incorporado por diversas correntes como as de cunho
252
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Polícia Política em Minas Gerais
clerical, reacionário, fascista, de princípios liberais ou da socialdemocracia. 7
No Brasil, como aponta Rodrigo Patto Sá Motta8, houve
a construção de uma tradição anticomunista apropriada por
diferentes setores da sociedade que se empenharam para sua
consolidação e difusão, o que levou à constituição de um
verdadeiro imaginário anticomunista, três matrizes ideológicas
sustentaram as bases do anticomunismo no Brasil: o catolicismo,
o nacionalismo e o liberalismo.
A matriz católica via o comunismo como uma ameaça à
moral cristã, pois agregava valores contrários aos preceitos do
catolicismo, negava a existência de Deus preconizando o
materialismo ateu, e objetivava a destruição da instituição da
família, o comunismo concorria com a religião apresentando
outras vias de percepção sobre mundo. O nacionalismo, por sua
vez, estigmatizava o comunismo como inimigo estrangeiro,
agente desagregador da coesão e centralização nacional, uma
ameaça internacionalista que não poderia ter espaço na
sociedade brasileira. Por fim, o liberalismo defendia os
princípios da propriedade privada, reverberava o autoritarismo
político dos regimes comunistas criticando o intervencionismo
estatal e supressão de liberdades individuais. O anticomunismo
253
Júlia Lettícia Camargos
foi reproduzido e apropriado pela polícia política mineira de
maneira expressiva.
Em relatório sobre as atividades da Aliança Libertadora
Nacional (ALN) de 1971 em Minas Gerais o encarregado do
Inquérito Policial Militar faz uma “incursão no terreno
ideológico” como ele mesmo menciona, explicitando algumas
dessas vertentes anticomunistas. Vejamos como de fato estas
correntes estavam presentes no ideário político. Lança mão do
modelo básico da lógica do marxismo para criticar as
organizações de esquerda, fala em uma tese uma antítese e uma
síntese, examinemos as palavras do Capitão Osmar Vaz de
Mello da Fonseca, encarregado do IPM:
A certeza de nossa tese democrática é um obstáculo
instransponível à antítese de nossos contrários, que
continuam lutando, teimosamente, em busca do
“momento histórico”, a síntese, que Karl Marx
sonhou e Lenine vem perseguindo através de seus
seguidores, utilizando-se para isto, da covardia, do
assassinato e de tantos outros atos abomináveis.
Partimos, fundamentalmente, da teoria do “ser e do
vir a ser”, do materialismo versus espiritualismo;
partimos dos princípios que regem os direitos
fundamentais do homem e da imortalidade da
alma humana sem o que estaríamos sendo, por
254
conveniência, submissos aos ideais dos outros e
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Polícia Política em Minas Gerais
não conscientes das tradições democráticas e
cristãs na Nação brasileira. 9
Primeiramente, critica o comunismo como “o momento
histórico” pelo qual seus adeptos lutam em vão, expõe a face
autoritária dos regimes comunistas caracterizando seus atos
como “atos de covardia” e “abomináveis”, neste caso a crítica
ao autoritarismo demonstra seus limites, uma vez que no Brasil
ocorreram atos que violaram e violentaram os indivíduos
privando-os de suas liberdades individuais e coletivas. E por fim
os últimos argumentos expressam claramente a tradição cristã e
a defesa da Nação brasileira.
Assunção evidencia que estes valores anticomunistas
estavam presentes no imaginário da polícia política mineira,
onde as vertentes católica, nacionalista e liberal se misturavam e
combinavam e nos discursos policiais havia predominância
especialmente dos argumentos nacionalistas de defesa da ordem
contra o inimigo10.
Nossa pesquisa revela alguns estratagemas utilizados
pelos policias no processo de investigação e reunião de provas
contra os suspeitos, utilizamos a expressão de “fabricação de
crimes políticos”, como um dispositivo coerente com a lógica
da suspeição que revela o processo de construção de um
arcabouço de evidências com a intenção de incriminar
255
Júlia Lettícia Camargos
elementos ou segmentos hostis ao regime de forma tendenciosa.
Motta lança mão do termo “Indústria do anticomunismo” para
demonstrar o uso oportunista do “perigo vermelho” na
legitimação das ações coercitivas 11, a fabricação dos crimes está
relacionada à utilização do anticomunismo como princípio
norteador da manipulação das provas contra os indiciados.
A Fabricação de crimes políticos dentro do quadro
ideológico do anticomunismo
O policiamento das atividades ditas “subversivas” em
Minas Gerais ficou sob a alçada do Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS) responsável pela execução da
segurança interna do estado. Este órgão atuou no sentido de
apurar
movimentações
suspeitas
no
território
mineiro,
identificou células de organizações e partidos clandestinos no
Estado, investigou segmentos da sociedade civil; esteve atento
ao movimento estudantil ao clero e a todos aqueles assinalados
como
elementos
que
representavam
“periculosidade
subversiva”.
256
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Polícia Política em Minas Gerais
Os Inquéritos Policiais Militares - IPMs foram
mecanismos implantados em 27 de abril de 1964 para
identificar, a princípio, funcionários civis e militares envolvidos
em atividades “subversivas” em toda a esfera pública, com o
endurecimento do regime constituíram-se num mecanismo legal
para busca sistemática de segurança absoluta. Um IPM era
aberto para averiguar denúncias e suspeitas, envolvia o
recolhimento de materiais comprobatórios de crimes políticos,
prisões de elementos chave e de mentores intelectuais de
organizações clandestinas, identificação de células dessas
organizações, interrogatório de suspeitos. Após a conclusão o
inquérito era remetido ao procurador do Ministério Público
Militar que denunciava o crime ao juiz, caso fosse aceita a
denúncia iniciava-se o processo na Justiça Militar 12.
O crime político tomou grandes dimensões durante o
regime militar, principalmente após o Ato Institucional número
dois (AI2) em 1965 que criou a Justiça Militar para o
julgamento de crimes de natureza política contra o Estado. Leis
subseqüentes como os decretos nº 314 e nº 510 de 1967 e 1969
respectivamente, definiram os crimes contra a Segurança
Nacional incluindo na esfera dos crimes políticos os crimes
comuns.
257
Júlia Lettícia Camargos
A fabricação do crime político consistia na produção, por
parte dos policiais, de indícios e evidências que pudessem
comprovar a existência do crime político, ancorados não só na
legislação repressiva, mas também no plano ideológico do
anticomunismo. Como sugere Carlos Fico o anticomunismo
definiu os contornos da ação da polícia:
(...)
tomados
sistemática,
inteiramente
os
pela
desconfiança
de
informações
agentes
desenvolveram algumas técnicas de trabalho capazes
de gerar culpados em quantidade compatível com o
forte sentimento anticomunista de que estavam
tomados.13
Fabricar, no sentido literal denota a produção de algo a
partir de matérias-primas a construção de alguma coisa, o termo
também figura ideação, ou seja, imaginação de maneira ideal,
inventar ou forjar. Em nossa perspectiva de análise estes dois
sentidos estão imbricados. Encaramos a elaboração dos
argumentos e a reunião de provas contra os indiciados como
construções feitas a partir de escolhas tendenciosas largamente
influenciadas pelos valores e referenciais da cultura política
autoritária.
Ao
reunir
um
arcabouço
de
provas
para
fundamentação das acusações os agentes aglomeravam variados
258
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Polícia Política em Minas Gerais
indícios, faziam o entrelaçamento de informações no intento de
traçar uma rede de significados que incriminasse o indiciado.
Às vezes o indivíduo era apontado como criminoso antes
mesmo de cometer o crime. A produção da suspeita era um
mecanismo
frequentemente utilizado
na
construção
dos
argumentos contra os investigados, sob a lógica da suspeição os
indiciados eram tratados com desconfiança como podemos
constatar no relatório do inquérito sobre a Ação Popular (AP),
“a militância da AP não visa imediatamente um movimento
armado, todavia não fugirá dele no momento oportuno”.14
Podemos notar também que o inquérito tinha um caráter
preventivo que procurava assegurar o controle de segmentos que
pudessem vir a se tornar futuras ameaças, como por exemplo, a
vigilância sob parte do clero da diocese de Itabira por incitar a
“subversão” em suas paróquias, neste inquérito as acusações
segundo o encarregado, são baseadas em depoimentos de
testemunhas que “sentiam o clima gerado pelas atividades dos
padres”, além de matérias da imprensa católica conservadora
que criticava posturas políticas e sociais dentro da Igreja como o
jornal “Catolicismo” órgão oficial da Defesa da Tradição
Família e Propriedade, extrema direita fascistizante da Igreja no
Brasil, o que mostra o recolhimento de provas selecionadas de
acordo com a intenção e motivação do agente. Em outra
259
Júlia Lettícia Camargos
passagem deste relatório podemos observar a produção de
suspeitas, vejamos:
Observa-se que no presente e particularmente após
iniciado o Inquérito Policial Militar, está o referido
clero em clima de tranquilidade, seja por precaução,
seja por acomodação, seja porque a maioria dos
implicados deixou o ministério, seja ainda por ter
sido modificada a orientação atual do Bispo da
Diocese, o fato é que nem por isso devam ser
considerados elementos dignos de confiança.
Estão como que aguardando o resultado do
julgamento
da
justiça
para
medirem
a
capacidade do combate à subversão e verificarem
se devem ou não continuar ostensivamente no
apoio a elementos que se contrapõem ao governo,
identificados, atualmente, dentre os que militam
na subversão.15(grifo nosso)
Ao fabricar o crime político, os encarregados atrelavam a
construção de seus argumentos às tendências psicológicas e à
afinidade do criminoso com seu delito; como aponta Michel
Foucault16 em sua análise sobre o conceito de delinqüência
elaborado pelas instituições penais no século XIX, a existência
do criminoso pressupõe a existência do crime. O crime não é
260
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Polícia Política em Minas Gerais
somente um ato ou um fato, mas um conjunto de tendências e
intenções relacionadas à trajetória do indivíduo. Distribuir
panfletos, ou participar de reuniões a princípio não se
configuram como ações criminosas, mas quando a intenção
dessas ações é desvelada como parte de um projeto
“revolucionário” de tomada do Poder por organizações
clandestinas elas são concebidas crimes de natureza política.
O inquérito aberto para averiguar as atividades do
Partido comunista (POC) na cidade de Montes Claros relata a
prisão de alguns membros, apreensão de material subversivo e
desarticulação da Secretaria Regional do POC naquela cidade.
Entre os indiciados estava o estudante da Faculdade de Ciências
Econômicas da UFMG Nilmário de Miranda, foi enquadrado
pelos seguintes crimes:
Pertencer
ao
Partido
Operário
Comunista,
organização clandestina e revolucionária de caráter
marxista- leninista que visa a tomada do poder e
implantação do regime socialista através da greve
geral e da guerra de guerrilhas. Ocupar cargo de
coordenador geral da Secretaria Regional do POC,
promovendo
reuniões
e
doutrinando
outros
indivíduos. Aliciar indivíduos para militar no POC
visando a ampliação dos quadros do partido.
Distribuir material doutrinário do POC. Participar de
261
Júlia Lettícia Camargos
reuniões fora de BH, tendo viajado especialmente
para este fim. Participar de greve proibida.17
Veja que os crimes arrolados partem da premissa da
clandestinidade da organização e qualquer atividade vinculada a
ela consequentemente é de caráter ilegal. O cerceamento das
organizações de caráter marxista-leninista pode ser considerado
um exemplo do uso oportunista do anticomunismo para a
repressão da oposição, o que dá margens para atuação
deliberada da polícia em relação aos crimes dos opositores.
Neste mesmo IPM no momento em que relata a
desarticulação da célula do Partido Operário Comunista em
Montes Claros, verificamos o forte sentimento anticomunista
dos agentes e o juízo de valor a respeito dos investigados.
(...) O POC teve identificado todos os seus
elementos-chave responsáveis pela orientação e
direção da organização em nosso estado. Alguns se
acham presos. Outros de importância se encontram
foragidos, pois assim como os ratos são os
primeiros a abandonar o barco que naufraga, nas
organizações marxistas, normalmente, são os
chefes os primeiros a debandar ao menor sinal de
perigo18 (grifo nosso)
Observa-se que os textos dos relatórios são construídos a
partir de uma narrativa bastante subjetiva os encarregados dos
262
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Polícia Política em Minas Gerais
IPMs emitem opiniões e juízos de valor, exprimindo referentes
que caracterizam a ideologia difundida pelo Estado autoritário, o
que nos leva ao conhecimento ao tipo de apropriação de
significados feita pelos agentes.
No campo político o imaginário social funciona como
controlador da vida social principalmente quando relacionados
ao exercício e prática do poder tornado-se objeto de conflitos
sociais. A legitimação do poder está estritamente ligada ao
imaginário social, no Brasil a legitimação do Estado autoritário
e as práticas coercitivas estão ligadas à difusão e apropriação do
anticomunismo.
Notas de Referência

1
2
3
4
5
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de São João Del Rei (UFSJ), orientada pelo Professor Ivan de
Andrade Vellasco. Contato: [email protected]
“Da Tortura” poema escrito pela poetisa e jornalista Lara de Lemos
presa durante o regime militar. In: LEMOS, Lara de. Inventário do
Medo. São Paulo: Massao Ohno editor,1997.
HUGGINGS. Martha K. Polícia e Polícia: Relações Estados Unidos/
América Latina. Tradução: Lólio Lourenço Ferreira.São Paulo: Cortez
Editora.1998 pp.10-11
WEBER, Max. “Os fundamentos da organização burocrática: uma
construção do tipo ideal”. In: Edmundo. (org) Sociologia da Burocracia.
Op cit.p.17.
BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social”. In: Enciclopédia Einaudi.
Lisboa:
Imprensa
Nacional:
Casa
da
Moeda:
Ed.
Portuguesa,11985.v.5.Antroppos Homen.
ASSUNÇÃO, Rosângela. p. 53
263
Júlia Lettícia Camargos
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
264
Para entendimento mais detalhado sobre a trajetória da policia em Minas
Gerais ver MOTTA, Rodrigo. et. al. República, política e direito à
informação: os arquivos do DOPS/MG. In: Varia história, Belo
Horizonte: UFMG / Departamento de História, v 29,p.126-153, 2003.
BONET, Luciano. “Anticomunismo”. In: BOBBIO, Norberto. et .al.
Dicionário de Política. 4ª edição. Brasília: Editora Unb,1992.p.34.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o
anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva: Fapesp,
2002.
Arquivo Público Mineiro (APM) - Fundo DOPS/MG – Rolo 0043 {1}
004
ASSUNÇÃO, Rosângela. Op cit.p.114
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”:
Op.cit.
JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: os interrogatórios na
Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). 2008. Tese
(Doutorado em História). Pós-Graduação em História Social,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.p.96
FICO, Carlos. Como eles agiam, os subterrâneos da Ditadura Militar:
espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record. 2001.p.100
APM - Fundo DOPS/MG, Rolo 0038 pasta 004.
APM- Fundo DOPS/MG, Pasta 0041, Rolo 004.
FOUCAUT, Michel. Vigiar e Punir.Petrópolis: Vozes, 1986 p.224.
APM – Fundo DOPS/MG, Pasta 0038, Rolo 004.
APM- fundo DOPS/MG Pasta 0038 rolo 004. Outubro de 1969.
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Cultural Change Institute: a cultura como via única para
o progresso
Samantha Cintra Magnanini
Os atentados terroristas aos Estados Unidos no dia onze
de setembro de dois mil e um deixaram o mundo estarrecido. As
cenas de ataque ao território norte-americano que tanto
divertiam no cinema hollywoodiano tornavam-se realidade e
desconcertavam cientistas sociais do mundo todo. O discurso
proferido pelo presidente George W. Bush, horas após os
atentados, apontava qual seriam os rumos adotados para a
política externa do país: uma vez que a democracia e a liberdade
foram atacadas, os Estados Unidos iniciavam uma guerra contra
o terror a partir do que nomearam como ataque preventivo.
A enigmática frase de George W. Bush em seu discurso
após os atentados, afirmando que “os ataques terroristas podem
estremecer as fundações de nossas construções, mas elas não
podem tocar nas fundações da América” 1, demonstra a crença
de que existe um bem característico da sociedade norteamericana que não pode ser destruído, que é um bem moral,
oriundo da formação identitária norte-americana, um traço
cultural característico dos Estados Unidos que provoca, neste
Samantha Cintra Magnanini
contexto
com
ainda
mais
potencialidade,
orgulho
e
nacionalismo.
Existe um debate historiográfico muito intenso sobre a
questão da formação da identidade nacional norte-americana.
Embora não seja consensual que o mito da excepcionalidade é
um fator constitutivo da identidade nacional dos Estados
Unidos, alguns estudiosos, como Mary Ann Junqueira,
acreditam que esse mito é utilizado nos momentos de crise para
reforçar a coesão entre os integrantes da nação. Para a autora,
existiram vários momentos históricos em que os chefes de
Estado utilizaram referenciais que remetem à fundação da nação
norte-americana com este objetivo. Através do resgate da
memória coletiva e do imaginário, construídos a partir de
símbolos e mitos específicos, George W. Bush em seu
inflamado discurso relembra aos norte-americanos que eles
fazem parte de uma comunidade excepcional. 2
Convém pontuar, contudo, que a presente análise não
defende a hipótese de que existe um consenso dentro do
universo político norte-americano, lembrando que o campo
político, sob a ótica de Pierre Bourdieu, é um lugar de luta onde
os atores sociais disputam lugar hegemônico através do capital
simbólico que possuem em determinado momento histórico.3
Desta forma, o projeto entende e reforça a fluidez do campo
266
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Cultural Change Institute
político, mas chama atenção um momento muito particular da
história dos Estados Unidos, o momento posterior aos ataques
terroristas, onde o resgate da formação nacional é utilizado pelo
Estado para legitimar um novo rumo para a política do país.
Através do discurso de que os Estados Unidos
representam a liberdade e a democracia, George W. Bush
preconiza uma política externa que reforce o poder dos Estados
Unidos no contexto global, adotando medidas unilaterais que
muitas vezes rejeitam as resoluções dos órgãos internacionais
para travar uma luta contra o “terror” e o “eixo do mal”. Por
este motivo, a conjuntura histórica criada a partir dos ataques
terroristas serve como pano de fundo para a análise do instituto
escolhido visto que é neste momento em que o setor
neoconservador exerce maior influência no governo de George
W. Bush, com seu programa para a política externa possível
através do impacto dos ataques terroristas. É neste momento de
mudança do quadro político da nação que é possível identificar
uma alteração no espaço do discurso neoconservador, tanto no
âmbito stricto senso da política quanto no âmbito intelectual,
que ganham força e legitimidade nesta época, apesar da
participação dos neoconservadores não ser exatamente nova
dentro dos quadros políticos.
267
Samantha Cintra Magnanini
É importante pontuar que os neoconservadores integram
o universo político dos Estados Unidos há algumas décadas e
sua origem é datada pela grande maioria dos intelectuais na
década de cinqüenta do século XX, onde se formam seus
primeiros postulados teóricos. Inicialmente sem expressão
política significativa, os neoconservadores começam a ganhar
espaço através dos consecutivos fracassos dos governos
democratas e da crescente adesão do setor privado, que
coadunava com a proposta de redução da interferência do Estado
na economia. O governo de Reagan é tido como o momento de
maior influência desta cultura política que entra em declínio
durante os mandatos de Bill Clinton para retornar com toda a
força no momento imediatamente posterior aos ataques
terroristas de dois mil e um. 4
Da mesma forma com que os ataques possibilitam aos
neoconservadores revisitar o argumento de que os Estados
Unidos garantiriam seu poder hegemônico através da exportação
dos valores norte-americanos para o resto do mundo, os
argumentos de viés culturalistas também ganham amplo
destaque após os atentados terroristas. A mídia, de maneira
geral, tende a construir o “eixo do mal” a partir dos argumentos
de que existe um abismo entre o “Ocidente”, categoria
amplamente utilizada na época, e o “mundo islâmico”, que
268
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Cultural Change Institute
dentro desta perspectiva configura-se como uma cultura
atrasada, injusta e autoritária. O que ocorre, precisamente, é a
junção destas duas correntes originando um tipo de pensamento
que
coaduna
os
postulados
neoconservadores
com
os
argumentos culturalistas. O princípio norteador desta vertente
neoconservadora culturalista é a idéia de que a cultura é
determinante para o sucesso ou fracasso das nações e os valores
norte-americanos de cidadania, democracia e liberdade podem
ser transplantados para as sociedades que eles consideram
atrasadas como forma de acelerar o progresso das mesmas.
É importante pontuar que este tipo de argumento não é
exatamente novo e esteve presente em outros momentos da
história da relação entre Estados Unidos e outras regiões do
mundo, em especial, a América latina 5, expressas, por exemplo,
na Aliança para o Progresso e nos movimentos sanitaristas das
décadas de trinta e quarenta. No entanto, o discurso culturalista
neoconservador se destaca pelo peso que coloca na cultura,
como esfera determinante e único ponto a observar, para o
desenvolvimento das nações em detrimento de análises
históricas e sociológicas como o impacto causado pelo
colonialismo e imperialismo nas regiões analisadas.
É baseado neste argumento, reforçado pela forma com
que os ataques aos Estados Unidos em onze de setembro de dois
269
Samantha Cintra Magnanini
mil e um foram apropriados pela mídia e pela opinião pública de
maneira geral é que o Cultural Change Institute foi criado, em
dois mil e sete. Chefiado pelo expressivo intelectual norteamericano Lawrence E. Harrison, este think tank 6 vem
produzindo teoria e prática neste sentido. Harrison tem longa
caminhada política e intelectual dentro dos Estados Unidos e
desde o início de sua trajetória acadêmica produz pesquisas que
colocam a cultura como assunto principal dentro de seu foco de
investigação, os assuntos externos aos Estados Unidos.
Associado da Academy for International and Area Studies, em
Harvard, Harrison publica títulos como “O subdesenvolvimento
é um estado de espírito: o caso da América Latina” 7 em 1985,
onde afirma que o principal empecilho para o progresso na
America Latina estava em sua cultura, e The Pan-American
Dream Do Latin America's Cultural Values Discourage True
Partnership With The United States And Canada?8, publicado
em 1996, analisando sempre a impossibilidade de construção de
uma parceria entre Estados Unidos e o resto do continente
americano por incompatibilidade cultural entre os mesmos.
Harrison defende o argumento de que a democracia e
livre mercado são traços culturais positivos para todos, porém
não se apresentam como valores suficientes para ultrapassar as
diferenças culturais que separam Estados Unidos e América
270
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Cultural Change Institute
Latina. Harrison busca rejeitar a idéia da teoria da dependência,
tratando o embate cultural entre “América anglo-saxã” e
“América ibérica”, que seria toda a América central e do sul,
independente de seus diferentes processos históricos de
colonização. Segundo ele, a tradição “ibero-católica” é
particularmente inclinada ao autoritarismo, à injustiça e
contrária ao livre mercado. Em contraponto, Harrison destaca os
valores culturais que, afirma, levaram os países do primeiro
mundo ao sucesso: ética do trabalho, educação e senso de
comunidade.
É importante pontuar, entretanto, que embora Harrison
tenha se estabelecido como um intelectual de expressão
considerável
no
meio
acadêmico
norte-americano,
suas
formulações estão longe de ser consenso dentro e fora dos
Estados Unidos, sofrendo duras críticas de pesquisadores
reconhecidamente
dedicados
ao
estudo
dos
países
lationoamericanos, como por exemplo, Kenneth Maxwell, que
rejeita por inteiro a teoria de Harrison9. No entanto, o autor
consegue seu espaço no cenário político, como diretor de alguns
programas de assistência no USAID10, e espaço no campo
intelectual, construindo uma parceria crucial com Samuel P.
Huntington, que origina o livro “A cultura importa: os valores
que definem o progresso humano”, livro paradigma da fusão
271
Samantha Cintra Magnanini
dos argumentos culturalistas e neoconservadores. As teses,
embora controversas, ganham amplo destaque com os ataques
terroristas e justificam a criação do Cultural Change Institute,
que carrega em seu nome a proposta que defende: transformar a
cultura dos países subdesenvolvidos para que eles não mais
sejam ameaça latente à segurança dos Estados Unidos. Esse
impulso, no entanto, consiste em inserir nas culturas que
estudam características que julgam serem precisamente aquelas
que fomentaram o progresso dentro do cenário norte-americano.
A partir desta lógica, o Cultural Change Institute se
define em sua página eletrônica como um instituto de pesquisa
criado para produzir conhecimento acerca da importância da
cultura para o desenvolvimento das nações, chefiando, por isso,
pesquisas ao redor do mundo na tentativa de comprovar a
preponderância da esfera cultural em detrimento de outras
variantes dos processos sociais. Filiado a Fletcher School, uma
das mais prestigiadas escolas de graduação em assuntos
internacionais
localizada
na
Tufts
University,
em
Massachussetts, o instituto lidera de seu escritório estudos de
caso no mundo todo, em parceria com intelectuais que tem sua
origem geralmente no país estudado. Como pontuado em seu
endereço eletrônico, o Cultural Change Institute se apresenta da
seguinte maneira, em termos de propostas e objetivos:
272
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Cultural Change Institute
O Instituto de mudança cultural trabalha para
promover uma consciência da importância da cultura
e da mudança da cultura em sociedades atrasadas
através de estudos de casos em países, estudos dos
instrumentos e instituições responsáveis pela
transmissão da cultura (ex: histórias infantis, sistema
educacional, religião, mídia), projetos pilotos,
11
pesquisas sobre valores e atitudes e conferências.
Harrison explica que o impacto das teorias criadas e
publicadas em A cultura importa não foram suficientes para
responder a todas as questões propostas no simpósio que
originou o livro.12 A partir das lacunas criadas pelo simpósio é
que ao autor cria o CCI, explicando que a pesquisa, dentro do
instituto, tem como objetivo estudar casos de fracasso e sucesso
das nações bem como implementar projetos pilotos de mudança
cultural. O Cultural Change Institute possui atualmente um
comitê executivo composto por dez intelectuais filiados as
principais universidades dos Estados Unidos e possui uma rede
de cento e seis intelectuais filiados ao instituto que provem de
várias regiões do mundo, inclusive do Brasil.
O instituto já possui três publicações significativas sobre
o argumento proposto. Duas delas são coletâneas de artigos
produzidos pelos intelectuais filiados ao instituto que levam o
nome de Developing Cultures: case studies13 e Developing
cultures: essays on cultural change14. A terceira obra é de
273
Samantha Cintra Magnanini
autoria de Lawrence E. Harrison e foi publicada, em 2008, pela
Oxford University Press, com o nome de The central liberal
truth: how politics can change a culture and save it form itself.15
A primeira coletânea publicada com o nome de
Developing Cultures: essays on cultural change reúne vinte e
um artigos produzidos com o intuito de analisar os principais
veículos eleitos pelo instituto como propagadores e modeladores
de cultura. São eles: histórias infantis, educação, religião, mídia
e políticas públicas. São analisados, a partir destes blocos
temáticos, conjunturas que não se restringem a Estados
transbordando, por isso, as fronteiras físicas, tratando, por
exemplo, da “America anglo-saxã”, ou de judeus, budistas,
protestantes, islâmicos, etc.
A segunda coletânea, Developing cultures: case studies,
é composta por vinte e sete artigos que trabalham os estudos de
caso produzidos pelo CCI, divididos nas seguintes categorias:
África, Países Confucianos, Índia, Islã, América Latina,
Ortodoxo/Leste Europeu e O Oeste. Neste livro, são discutidos
os valores culturais que permitiram o progresso de algumas
nações bem como os valores culturais que trouxeram o
subdesenvolvimento para outras, com destaque ao artigo de
Vera Lucia Victor Barbosa denominado “The Importance Of
Culture: The Brazilian Case”, onde é atribuído aos brasileiros
274
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Cultural Change Institute
uma atitude cultural passiva oriunda de uma visão personalista
do poder que foi construída pela dependência que os escravos e
a população geral tinham em relação ao senhor, atitude que,
segundo a autora, permanece até hoje.
Vera Lucia Barbosa elenca as principais características
do brasileiro da seguinte forma: pessoas pobres geralmente
esperam resolver suas necessidades baseadas na esperteza ou
com a ajuda paternalista das autoridades. Os governos, federais
ou municipais, são paternalistas e clientelistas em sua grande
maioria, o pode político é exercido para beneficiar o próprio
poder e não o bem comum de forma que a maioria dos políticos
enxergam no populismo a forma de ganhar as eleições e no
nepotismo a principal forma de conseguir empregos. Além
disso, a autora segue afirmando que a corrupção reina não só
nos governos mas em toda a sociedade, as pessoas não confiam
nelas mesmas, não possuem idéia precisa de cidadania e que
atrás da cordialidade dos brasileiros existe uma sociedade com
grande potencial de violência. Estes, segundo a autora, seriam os
principais empecilhos para o desenvolvimento e progresso do
Brasil, não sendo discutidos nenhum outro aspecto que não os
valores culturais que foram atribuídos ao brasileiro no artigo da
pesquisadora brasileira.
275
Samantha Cintra Magnanini
O terceiro livro, The Central Liberal Truth, também é
vinculado ao Cultural Change Institute, mas é escrito
inteiramente por Lawrence E. Harrison. O primeiro capítulo
intitulado “o enigma da Hispaniola” 16, tem como objetivo
comparar o Haiti com a República Dominicana para entender
como a cultura explica o fracasso de um e o sucesso da outra. O
livro segue tratando dos seguintes temas, divididos em partes
assim denominadas: “Cultura desagregadora”, “modelos e
instrumentos de transmissão e mudança cultural”, “religião e
progresso”, “padrões de mudança cultural”, entre outros. A
parte mais curiosa, porém, reside na implantação dos projetos
pilotos que buscam alterar a cultura de alguns países para
confirmar a teoria de que a cultura pode fomentar o progresso.
Para isso, o Cultural Change Institute planeja implementar
projetos pilotos de mudança cultural ao redor do mundo,
iniciando dois modelos principais até o momento. Os principais
projetos pilotos estão localizados no México e Costa Rica, com
o objetivo de alterar hábitos e costumes como, por exemplo, a
forma com que as histórias infantis são contadas e a mudança do
currículo educacional destas regiões.
No México, o estudo vai analisar o impacto de duas
abordagens diferentes de ensino do conhecimento, com o
objetivo, segundo o instituto, de fomentar as habilidades para
276
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Cultural Change Institute
construção de uma cidadania democrática entre jovens de baixa
renda em duas cidades: Nuevo Leon e Guerrero. A intervenção
cultural vai dividir grupos de estudantes, oferecendo acesso a
duas modalidades diferentes de ensino da cidadania: para o
primeiro grupo será oferecido somente a educação acadêmica e
para o segundo, a integração da educação acadêmica com a
aprendizagem de serviços. Esses dois tipos de ensino estão
sendo implementados em sessenta escolas secundárias na área
de Monterrey e em outras sessenta escolas secundárias na área
de Acapulco.
O estudo no México é dirigido por Fernando Reimers,
que também integra o Cultural Change Institute e é professor de
educação internacional do departamento de educação de
Harvard. Além dele, existe uma parceria com colegas 17de duas
instituições locais do México além da chamada “VIA
educacion”, uma organização sem fins lucrativos situada em
Monterrey especializada em desenvolvimento profissional do
professor, na Universidade Iberoamericana no México. Existe
também uma firma especializada em pesquisa que está
responsável
pelo
desenvolvimento
e
administração
questionários, sob a direção de uma equipe de pesquisa.
dos
18
Em Costa Rica, o objetivo do estudo é medir o impacto
de uma recente intervenção cultural implementada pelo CCI nas
277
Samantha Cintra Magnanini
famílias Costa Riquenhas. A intervenção é um currículo dirigido
de valores a serem incutidos nas histórias contadas para as
crianças e tem como objetivo aguçar as habilidades que os pais
precisam para criar crianças que possam posteriormente
apresentar progressivos atributos culturais, como por exemplo, a
crença na importância da educação, empreendedorismo,
democracia e justiça social. O projeto está acontecendo em
centros de puericultura no vale central de San José, na Costa
Rica. O estudo foi criado por Jerry Kagan, um professor emérito
de psicologia de Harvard em parceria com Martha Julia GarcíaSellers, professora de desenvolvimento infantil da própria Tufts
University e é dirigido por Luis Diego Herrera Amighetti, um
psiquiatra costa-riquenho.
A grande crítica que atua hoje no campo acadêmico em
relação a estas teses é o reducionismo destas formulações, que
tendem a ignorar fatores importantes como a dinâmica e a
pluralidade existente em cada uma destas categorias culturais e
as disputas e as diferenças que o campo da cultura carrega em si.
Não é possível, no entanto, entender estas teorias apenas como
mero exercício intelectual visto que trata-se, no caso, da
transformação de argumentos teóricos em prática e por isso os
usos políticos deste tipo de argumento aparecem de forma mais
explícita. A própria lógica dos chamados think tanks nos
278
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Cultural Change Institute
Estados Unidos, como mostra Tatiana Teixeira em seu estudo
sobre a importância destes institutos no cenário político norteamericano, passa pela formulação de teorias que busquem
corroborar políticas de governo.19
Outra crítica bastante coerente é entender que ao tratar a
cultura como uma segunda natureza imutável em sua essência, o
discurso que se produz hoje através desta percepção se iguala
muito ao discurso utilizado no século XIX, este munido, porém,
do conceito de raça para justificar as práticas de dominação da
época. Ao utilizar o racismo como justificativa ideológica de
que era necessário aos povos não-europeus, sistematicamente
tidos como selvagens, atrasados e desorganizados, a inserção de
valores europeus como progresso econômico, política liberal, e
outros é que o discurso do colonialismo se legitimou e assim a
subjugação da África e Ásia neste período.20 Ou seja, o que se
observa é que o termo cultura dentro desta perspectiva opera
com muito sucesso, substituído pelo termo raça de outrora, já
que a idéia de que a raça delimita o futuro de um sujeito ou um
grupo social está mais do que ultrapassada entre o meio
intelectual. Através desta nova reformulação, o processo
remonta à antiga questão do fardo do homem branco e à questão
civilizadora do século XIX, na medida em que a cultura também
se caracteriza, na perspectiva destes neoconservadores, como
279
Samantha Cintra Magnanini
algo que pode ser recortado, excluindo o que não serviria e
colado o que estaria de acordo com a busca do desenvolvimento
e da prosperidade. Cabendo lembrar, obviamente, que esta
prosperidade é alcançada via Ocidente ou representantes deste.
Assim, a justificativa atual para explicar a natureza da
desigualdade entre os povos e a inevitabilidade da intervenção
do Ocidente em áreas como o Oriente Médio, por exemplo, é
construída
através
de
um recurso
a
um
culturalismo
descomprometido com as demais questões inerentes aos
processos e as conjunturas nos campos de disputas de força.21
Não é possível, até o presente momento da pesquisa,
fornecer análises mais consistentes relativas ao conteúdo dos
artigos publicados pelo Cultural Change Institute visto que o
trabalho com as fontes está muito recente, porém, a proposta do
artigo está na identificação do instituto enquanto instrumento
político, formulando teorias com propósitos específicos para a
conjuntura pós onze de setembro. Ao eleger como tema os
Estados Unidos, a pesquisa busca produzir um tipo de
investigação que rejeite a idéia do senso comum de que existe
uma intenção de dominação mundial por parte dos Estados
Unidos visto que esse tipo de análise reducionista não acrescenta
em nada a produção de conhecimento sobre o tema. É
interessante, contudo, analisar como um momento ou uma
280
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Cultural Change Institute
condição extrema dentro da história dos Estados Unidos, e
considerando o impacto dos atentados de onze de setembro, até
mesmo dentro da história mundial, pode revelar aspectos
importantes de relações de poder, ideologia, identidade e muitos
outros traços das relações sociais que estavam latentes e que se
manifestam de forma mais contundente quando uma existe uma
situação de confronto direto. O Cultural Change Institute, dentro
desta perspectiva, mais do que um órgão de investigação,
demonstra-se um produtor de políticas governamentais com o
poder simbólico necessário para fazer valer suas teorias não de
forma pontual, mas alcançando objetivos em escala global.
Notas de Referência

1
2
3
4
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Política da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientada pela
Professora
Doutora
Eliane
Garcindo
de
Sá.
Contato:
[email protected]
Retirado do site que reúne todos os discursos do presidente George W.
Bush, traduzido por mim. O original pode ser encontrado na página
eletrônica
http://www.presidentialrhetoric.com/speeches/bushpresidency.html.
Acesso em 20/05/2010.
JUNQUEIRA, Mary Anne . "Os discursos de George W. Bush e o
excepcionalismo norte-americano". Margem (PUCSP), São Paulo, v. n
17, p. 163-171, 2004
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de janeiro, Bertrand Brasil,
2009.
DEMANT, Peter. Exportação da democracia: hegemonia do modelo
neoconservador na política estadunidense para o oriente médio? In:
Cena Internacional, Ano 7, número 2, 2005. Pág. 37.
281
Samantha Cintra Magnanini
5
É importante considerar que o próprio termo “América Latina” deve ser
desnaturalizado, considerando grandes estudos sobre as implicações
políticas do termo como é o caso do estudo de Feres Jr, A história do
conceito de "Latin America" nos EUA , Bauru SP, EDUSC, 2005.
6
Think tanks que são institutos de pesquisa muito consultados pelo
governo norte-americano em suas decisões. Para melhor contemplar a
grande importância destes órgãos dentro do cenário norte-americano,
consultar a pesquisa de Tatiana Teixeria, Os think tanks e sua influência
na política externa dos EUA: a arte de pensar o indispensável. Rio de
Janeiro, Revan, 2007.
7
HARRISON, Lawrence E. Underdevelopment is a state of mind: the
latin american case. University Press of America, 1985.
8
O título traduzido significa: “O sonho panamericano: os valores
culturais lationamericanos desencorajam a verdadeira parceria com
Estados Unidos e Canadá?”. Tradução minha.
9
A resenha pode ser encontrada em sua forma integral no site do
periódico
da
Foreign
Affairs
através
do
link
http://www.foreignaffairs.com/articles/52971/kenneth-maxwell/the-panamerican-dream-do-latin-americas-cultural-values-discour Acesso em
10/08/2010.
10
A partir da constatação da importância geopolítica que o USAID teve
para os Estados Unidos no momento posterior à Revolução Cubana,
estabelecendo relações com diversos governos latino-americanos da
década de sessenta, o projeto busca investigar melhor essa relação,
atentando, inclusive, para o alcance desta agência no Brasil, a partir da
aliança MEC-USAID, amplamente criticada pela esquerda da época.
11
Tradução minha de um trecho do texto encontrado na página eletrônica
do CCI, através do link http://fletcher.tufts.edu/cci/studies.shtml Acesso
em 10/08/2010.
12
HARRISON, Lawrence. Introduction. In: HARRISON, Lawrence e
BERGER, Peter. Developing cultures: case studies. Routledge, 2006.
Pág. XIV.
13
HARRISON, Lawrence e BERGER, Peter. Developing cultures: case
studies. Routledge, 2006.
14
HARRISON, Lawrence e KAGAN, Jeorme. Developing cultures:
essays on cultural change. Routledge, 2006.
15
Harrison, Lawrence. The central liberal truth: how politics can change a
culture and save it from itself. Oxford University Press, 2006.
16
Neste capítulo, Harrison descreve a região onde se encontra Haiti e
República Dominicana como “the island of hispaniola”, a ilha de
Hispaniola, afirmando que as diferenças de clima, geografia e meio
282
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
O Cultural Change Institute
17
18
19
20
21
ambiente são neutralizadas em sua explicação que busca provar que a
diferença de desenvolvimento entre as duas é apenas de caráter cultural.
Embora cite a participação destes “colegas”, o site não informa nomes
nem cita quais seriam estas instituições.
Também não é citado o nome da empresa responsável pela pesquisa.
TEIXEIRA, Tatiana. Os think tanks e sua influência na política externa
dos EUA: a arte de pensar o indispensável. Rio de Janeiro, Revan,
2007.
FACINA, Adriana. De volta ao fardo do homem branco: o novo
imperialismo e suas justificativas culturalistas. In: História e luta de
classes. Ano 1. Edição n°2. 2006. Pág. 66.
Idem. Pág. 72.
283
Samantha Cintra Magnanini
284
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
entre Pará e Mato Grosso (1790-1820)
Siméia de Nazaré Lopes
Introdução
Entre o final do século XVIII e princípio do XIX, a praça
mercantil de Belém articulava diferentes circuitos comerciais.
Os negociantes da capitania do Pará entretinham relações
comerciais com as vilas próximas à cidade de Belém. As
relações comerciais com outros comerciantes para o interior do
Estado do Grão-Pará abrangiam também a capitania do Rio
Negro, que se configurava em uma das áreas abastecedoras dos
gêneros que eram comercializados e remetidos para a Europa. O
porto da cidade de Belém também funcionava como um
entreposto comercial interligando as capitanias de Mato Grosso
e Goiás aos portos da Europa, como Lisboa e Londres.
A proposta desse artigo é discutir como se estruturou
esse circuito mercantil em que Belém se apresenta como o eixo
de ligação entre as vilas do interior do Estado do Grão-Pará e as
capitanias de Mato Grosso e Goiás. Assim como, investigar a
configuração de uma comunidade mercantil e a sua articulação
com outros sujeitos, os quais não se restringiam a Belém, mas
estabeleciam redes de negociação com outras áreas comerciais.
Siméia de Nazaré Lopes
Os estudos recentes sobre a temática relativa à América
colonial visam analisar as especificidades presentes na
articulação
entre
as
diferentes
economias
coloniais,
relativizando as discussões cristalizadas nas ações da Metrópole
e do sistema colonial. Os estudos voltados para as relações de
poder e de governação para o contexto hispano-americano têm
contribuído para a renovação dessas abordagens para as
diferentes áreas da América ibérica. Repensar as relações de
tensão e de conflito e atentar para a importância que os
“governos locais haviam contribuído para a formação [do]
complexo imperial nas Américas” tem sido valorizado nas novas
abordagens historiográficas sobre sociedades coloniais. 1 Para
tanto, essas análises propõem a importância de articular as
práticas comerciais nas colônias da América portuguesa, com as
outras possessões européias e com as capitanias do Império
português.2
Em análise sobre a praça mercantil do Rio de Janeiro
entre fins do século XVIII e início do XIX, João Fragoso
investigou as conexões de negociantes e as rotas comerciais
existentes entre o Rio de Janeiro e os circuitos mercantis
internos, assim como entre as outras margens do Império
português, como o Oriente e a África, que seriam possibilitadas
por práticas do Antigo Regime, como o sistema de mercês, “as
286
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
redes de reciprocidades e a formação de clientelas que cruzaram
e uniram as diferentes searas do mar lusitano.” 3 Para o autor, a
praça do Rio de Janeiro articulava as rotas transoceânicas aos
“mercados consumidores do interior” da América portuguesa.
Essas relações comerciais, sustentadas a partir do mercado
interno, assumem uma maior complexidade, não se constituindo
apenas numa colônia com práticas determinada pelas demandas
no mercado externo. Fragoso elabora uma perspectiva de análise
sobre a existência das conexões imperiais entre as redes
comerciais e os seus negociantes para além da América
portuguesa, atentando para as rotas comerciais que se
estabelecem entre esses circuitos, assim como para outros
mercados do interior do Império português.
As indicações apresentadas pelo autor favorecem a
elaboração de um estudo sobre essas conexões para a capitania
do Pará, atentando para as relações mercantis entre a praça
comercial de Belém e as vilas do interior. Pode-se considerar
também as redes de comercialização que os negociantes de
Belém constituíram com outras áreas como Maranhão, Mato
Grosso e Goiás. Além disso, é possível visualizar as práticas
comerciais dos circuitos estabelecidos entre o porto do Pará e os
outros portos do Atlântico, como Lisboa e Londres.
287
Siméia de Nazaré Lopes
Essas
abordagens
são
possíveis
com
base
na
documentação notarial pesquisada. Nesse artigo serão utilizadas
as Escrituras de Sociedade e as Procurações contidas no Livro
de Notas do Tabelião Perdigão,4 assim como os documentos
avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino (Projeto Resgate)
para as capitanias do Pará, Mato Grosso e Goiás. Os códices dos
comboios e de passaportes da Província do Pará serão utilizados
por conterem as descrições das pessoas que transitavam pelas
províncias do Maranhão, Mato Grosso e Goiás, os quais
complementam as informações apresentadas nos Livros de
Notas selecionados para a presente análise.
A praça de Belém e as relações com os negociantes das vilas
do interior
Para o porto de Belém escoava a produção das vilas
situadas na região dos altos rios (Santarém, Gurupá, Cametá,
Barra do Rio Negro). O porto de Belém desempenhava o papel
de abastecer de produtos as canoas que seguiam em direção a
outros pontos do Pará, assim como Rio Negro, Mato Grosso e
Goiás.5 O comércio realizado em canoas ou em embarcações
maiores conectava essas regiões e permitia a circulação de
gêneros negociados em diferentes áreas da capitania do Pará e
capitanias vizinhas. Esse movimento comercial foi descrito por
288
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
diversos viajantes que passaram por Belém, onde a própria
topografia condicionava essa grande circulação de embarcações
nos rios da região.6
As casas comerciais estabelecidas em Belém possuíam as
suas embarcações para negociar os produtos que importavam
dos portos estrangeiros para as vilas do interior. Os caixeiros das
casas comerciais seguiam para os altos rios de onde traziam as
drogas do sertão para serem remetidas para o porto de Belém,
porém não havia garantias de que os caixeiros trariam em suas
canoas os gêneros suficientes para assegurar o lucro de uma
viagem para áreas tão distantes. Uma das formas de garantir esse
comércio era o contrato com os comerciantes dessas vilas,
permitindo ter exclusividade na compra de todos os gêneros
arrecadados nos altos rios, o que passou a ser realizado por meio
dos contratos de sociedades mercantis firmados entre os
negociantes de Belém de outras vilas.
Fernando Braudel afirma que a partir do estudo das
sociedades e companhias é possível ver “o conjunto da vida
econômica e do jogo capitalista”. 7 Nesse sentido, pretende-se
analisar as sociedades mercantis como um indicador da vida
comercial na capitania do Pará e das relações entre os sujeitos
envolvidos no comércio. O estabelecimento de sociedades
comerciais garantiria a compra e venda de mercadorias nessas
289
Siméia de Nazaré Lopes
áreas afastadas de Belém. Em outras situações, os negociantes
de
Belém
firmavam
sociedades
com
negociantes
já
estabelecidos nos Sertões do Pará ou na capitania do Rio Negro
para ampliar a sua atuação naquelas áreas e diversificar as suas
relações econômicas. Em 1808, os negociantes8 João Pedro
Ardasse e Francisco Ricardo Zani estabeleceram sociedade
comercial de uma canoa denominada “Águia do mar” com
carregamento de fazendas para negociar na capitania do Rio
Negro.9 O negociante Ardasse entrava para sociedade com a
quantia de 2:665$854 reis, enquanto o negociante Zani, “que
costuma negociar na capitania do Rio Negro,” entrava para a
sociedade apenas com a sua “argúcia,” entretanto os lucros
seriam divididos em partes iguais. A sociedade funcionaria da
seguinte forma: o sócio Ardasse enviaria da cidade de Belém
para o sócio Zani as fazendas secas e molhadas para serem
vendidas nos Sertões e de lá seriam remetidos os “gêneros do
Pais” (as drogas do sertão) para que o sócio Ardasse as
comercializasse na casa comercial que possuía em Belém.
A sociedade mercantil firmada entre os negociantes
Ardasse e Zani é representativa das relações comerciais que se
estabeleceram na cidade de Belém. A partir dela foi possível
construir uma trajetória 10 da atuação deles na praça mercantil de
Belém, o que lhes permitiu usufruir de prestígios nas áreas em
290
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
que se fixaram. Nesse caso, destacar-se-á a atuação do
negociante Francisco Ricardo Zani na capitania do Rio Negro,
como também a sua ascensão política por meio dessas relações
comerciais.
A identificação de Francisco Ricardo Zani no contrato da
sociedade é reveladora da sua atuação no Rio Negro. Em 1819,
o negociante Francisco Ricardo Zani foi descrito pelos viajantes
Spix e Martius como “capitão de milícias hoje chefe do Estado
Maior, oriundo de Livorno, domiciliado havia 14 anos no Rio
Negro, que, por feliz encadeamento de circunstancias, foi meu
companheiro (por 7 meses) na maior parte da viagem ao interior
do Pará e Rio Negro.”11 O que permite inferir que o negociante
Zani já estava no Rio Negro desde o início do século XIX. O
“capitão Zani” possuía uma embarcação grande com a qual
transportava salsaparrilha e cacau da região do Rio Negro para a
cidade de Belém, mas não eram apenas essas informações que
os viajantes ofereciam. 12 Zani também foi encarregado pelo
Imperador de organizar 2 regimentos na capitania do Rio Negro,
o que foi efetivado no início da década de 1820, quando as
capitanias do Pará e Rio Negro passaram por “tempestades
políticas,” e concluem afirmando que Zani havia estabelecido no
Amazonas, diversas “posições fortificadas, (...) e, contribuiu
grandemente para a pacificação daquelas regiões, valor que lhe
291
Siméia de Nazaré Lopes
mereceu uma Comenda da Ordem de Cristo e a confiança do
Imperador D. Pedro que o encarregou agora, como coronel, da
formação dos regimentos de milícias.”13
Diante dessas informações, pode-se pensar a trajetória de
ascensão política que o negociante Zani teve, na região do Rio
Negro, no decorrer dessas duas décadas. Estabelecendo redes de
relações que não perpassavam apenas pela esfera do comércio,
mas se apoiou na conquista de cargos políticos relevantes para a
administração daquela capitania. 14 Isso é um indicativo da
ascensão dele dentro daquela sociedade e igualmente um
reconhecimento público de sua atuação na capitania do Rio
Negro.
Outro negociante que também teve ascensão política por
meio das suas relações comerciais foi o capitão João Lopes da
Cunha,15 nesse caso, ele era estabelecido em Belém, mas
possuía sociedades mercantis na vila de Santarém (Pará) e em
Cuiabá (Mato Grosso). Em 1820, ainda para a área do interior da
capitania do Pará, os negociantes da cidade de Belém, o capitão
João Lopes da Cunha e Manoel de Almeida Oliveira,
contrataram uma sociedade mercantil para a venda de fazendas
secas e molhadas. O sócio Oliveira recebeu do sócio Cunha, que
ficaria estabelecido na cidade de Belém, as fazendas, a canoa,
escravos e demais utensílios de que viesse precisar para o seu
292
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
deslocamento para a vila de Santarém. Mesmo sem entrar com
capital algum, o negociante Oliveira receberia metade dos lucros
da sociedade, mas ficava obrigado a “ir residir na vila de
Santarém desta comarca pondo aí uma loja de fazendas secas e
molhadas para vender por conta da sociedade entrando em
iguais ganhos ou prejuízos sem levar comissão alguma ou
salário pela sua administração.”16
Nesse período, a vila de Santarém era considerada, nas
palavras dos viajantes Spix e Martius, “o empório do comércio
entre a parte ocidental da Província do Pará e a capital” (Belém).
Continuam afirmando que das margens do rio Tapajós, “trazem
cacau, salsaparrilha, cravo-do-Maranhão, algum café, algodão e
borracha,”17 produtos que eram comercializados na cidade de
Belém e exportados para a Europa. A vila de Santarém também
servia de entreposto comercial para a capitania de Mato Grosso,
sendo mais viável a negociação das mercadorias que saíam de
Belém para aquela área e vice-versa. A relação comercial que se
estreitava entre os negociantes de Santarém se realizava a partir
da “navegação do (rio) Tapajós até a província de Mato
Grosso.”18
Ainda como cláusula dessa sociedade, o negociante
Cunha afirmava que havia contratado outra sociedade para a
cidade de Cuiabá com o tenente Antonio Peixoto de Azevedo. 19
293
Siméia de Nazaré Lopes
Para incrementar o comércio com aquela cidade, Cunha
precisava “fazer em Santarém um depósito de fazendas secas e
molhadas para que de Cuiabá, ou sua parte superior, do Rio
Santarém ali as vierem buscar e ter prontas em Armazéns.”
Nesse caso, o negociante Oliveira ficaria responsável de receber
as mercadorias e as guardaria em separada das suas “para as
entregar quando de cima lhes pedirem e receber os gêneros e
dinheiros que devem lhe entregarem para as fazer regressar para
esta cidade do Pará a ele sócio Cunha,” para tanto receberia um
livro em separado para fazer nota das despesas e ganhos da
sociedade de Cuiabá.20 Mas para realizar essa transação em
nome do negociante Cunha, Oliveira não receberia ganho algum
por isso, ao tenente Antonio Peixoto de Azevedo cabia fazer o
pagamento das despesas com “armazém, canoas, índios e mais
precisos para a referida sociedade do sócio Cunha.”21
Em 1821, o capitão João Lopes da Cunha continuou
diversificando a sua atuação comercial para o Sertão da
província, firmando outra sociedade com outro negociante da
vila de Santarém. Ressaltando-se que ainda estava em vigor o
contrato assinado em agosto de 1820 com o negociante Manoel
Joze de Oliveira, a nova sociedade que firmava com o
negociante Francisco Xavier da Silva era de um engenho. Nesse
estabelecimento, deveriam “fazer aguardente, mel e mais
294
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
plantações de arroz.” Nessa sociedade, “o gêneros provenientes
do mesmo engenho e lavoura serão vendidos em Santarém e o
seu produto poderá vir para esta cidade (Belém), empregado em
cacau ou em outro gênero do Sertão.” Entretanto, nesse novo
estabelecimento que abria ficava firmado que “não se poderão
fiar para o Rio Negro e o sócio que o fizer, o fará por sua conta
particular e não da sociedade,” caso precisasse fiar os produtos,
que o fizesse para “pessoas que tenham bens de raiz, (...) porque
querendo executar o devedor, se ele não tem estabelecimento de
bens está a dívida perdida.”22 No Estado do Pará, a prática de
aviar mercadorias através da permuta era muito comum, visto
que na região havia escassez de moeda.
O
negociante
João
Lopes
da
Cunha
continuou
estabelecendo as suas atividades comerciais entre as duas
regiões. Em 1822, ele também aparece exercendo cargos
políticos na capitania do Rio Negro, a qual ele representaria
como “deputado substituto às Cortes Constituintes” em Lisboa,
para onde se dirigia.23 Em junho do mesmo ano, solicitava
“confirmação de carta patente no posto de tenente-coronel do
Corpo de Tropa de Milícias da vila de Cametá, na província do
Pará.24 Outro registro desse negociante é uma requerimento
“solicitando passaporte para seguir viagem para a província do
Pará,” no qual foi possível conhecer um pouco da trajetória dele.
295
Siméia de Nazaré Lopes
Na solicitação consta que João Lopes da Cunha é “Cavaleiro da
Ordem de Cristo, Negociante e Lavrador no Pará, solteiro de
idade de 51 anos, natural de Lisboa e morador.” 25
Diante disso, pode-se inferir que as redes de relações
tecidas pelos negociantes de Belém foram estabelecidas em
diferentes pontos e portos da região, não se limitando apenas à
praça de Belém. Nesse caso, a diversificação das relações
econômicas desses sujeitos estendeu-se às capitanias vizinhas ao
Pará, como a de Mato Grosso, onde o porto de Belém
representava um entreposto comercial para a cidade de Lisboa.
Além disso, esse comércio possibilita uma ascensão política nos
locais em que esses negociantes atuavam, seja através do
reconhecimento por serviços prestados, seja através das alianças
familiares que se firmavam.
Pará e as redes de comercialização com o Maranhão, Mato
Grosso e Goiás
As práticas comerciais desenvolvidas no Pará também se
articulavam com outras áreas da América portuguesa, onde
Maranhão, Goiás e Mato Grosso, configuraram-se em vetores de
dinamização para as trocas comerciais e ocupação da região. As
providências26 para a comunicação entre as capitanias do Pará,
do Mato Grosso (pelo rio Madeira) e de Goiás (pelo rio
296
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
Tocantins) ocuparam ponto importante no planejamento dos
governadores da capitania do Pará. As autoridades viam nessas
rotas os mais adequados caminhos para promover a integração
comercial e administrativa da capitania ao resto do império
português na América. Entretanto, essas demandas para
dinamizar as trocas comerciais entre Pará, Mato Grosso e Goiás
também foram ponto de discussão entre os governadores das
capitanias acima citadas. 27
Ainda em 1799, o governador da capitania de Mato
Grosso, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, trocou
correspondências com o governador do Pará, Francisco de
Souza Coutinho, discutindo a importância de incrementar o
comércio entre as duas capitanias, mas também o cuidado que
deveria ter com os negociantes de Mato Grosso na hora de
cobrar o frete das fazendas secas e molhadas, 28 a bem da
Alfândega. Alertava que a proposta de Francisco Souza
Coutinho em cobrar pela importação o valor de 30%,
compreendendo o “valor, o peso, e o volume de cada gênero.
Será preciso fixar-se primeiro o valor das fazendas o qual é
diverso no Reino, nessa cidade (Belém) e nesta vila, sendo
também diverso nas Alfândegas e nas praças, pois nestas ultimas
todos os dias esta variando.”29
297
Siméia de Nazaré Lopes
O cuidado em definir um valor para a cobrança do frete
das importações que se fizesse do Mato Grosso para Belém
consistia em não causar embaraços ao comércio ou “constranger
os negociantes a mostrarem as suas carregações ou facturas,”
pois disso dependeria a boa arrecadação dos fretes. Para tanto,
enviava um cálculo que o negociante de Mato Grosso, capitão
Joze Antonio Gonçalves Prego,30 havia feito por ser ele “o único
negociante que nesta capitania tem arranjo e método no seu
negócio.” A partir do cálculo enviado pelo governador, seguia a
sugestão para se fazer com que as fazendas que seriam
importadas para Belém “venham a ficar agora a melhor preço do
que quando eram conduzidas pelos particulares, e que não
venham a exceder o preço do Rio de Janeiro, porque de outra
sorte seria impossível virar o comércio para essa praça como
requer a felicidade das duas capitanias.”31
Em 1805, o governador do Estado do Pará e Rio Negro,
Conde dos Arcos, enviou um ofício para o secretário de estado
da Marinha e Ultramar, Visconde de Anadia, no qual informava
a saída de um comboio do porto de Belém com destino à Vila
Bela (no Mato Grosso). O comboio seguia composto por 4
embarcações pertencentes aos negociantes da praça de Belém,
estas eram acompanhadas por outras 3 canoas, mas tripuladas
por oficiais, “com o objetivo de criar a nova Junta de Comércio
298
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
na capitania do Mato Grosso a fim de por termo às dificuldades
de circulação de bens e pessoas entre essas capitanias e a evitar
o perigoso caminho terrestre entre o Rio de Janeiro e a Bahia.” 32
Nota-se que o comércio realizado nessas áreas acima
citadas apresenta especificidades dos gêneros e produtos
negociados, sendo viável tanto o comércio com o Pará, por
Santarém, como também pelas capitanias do Rio de Janeiro e
Bahia. Sendo negociados com a capitania do Pará outros artigos
como: “objetos de ferro, aço e latão, pólvora e chumbo miúdo,
vinho, aguardente, medicamentos.”33 Para o Mato Grosso era
remetido: breu do reino e da terra, sal, ferro, aço, machados,
enxadas, pregos, remédios de botica, varas de pano, linha, linho,
frasqueiras de aguardente de uva, vinho, azeite de oliva, vinagre
e material para a secretaria do governo.34
Em 1807, em ofício do governador de Goiás, Francisco
de Assis Mascarenhas, ao Visconde de Anadia informava sobre
as contínuas “expedições mercantis com a capitania do Pará.”
Para animar essa atividade, o governador havia auxiliado os
negociantes daquela praça “com embarcações, que (mandou)
construir e equipar por conta da Real Fazenda, a quem pagam
frete” e carregavam nas embarcações “um número considerável
de arrobas de açúcar e algodão, e também outros gêneros de
menor importância.” Sendo a produção do algodão muito
299
Siméia de Nazaré Lopes
próspera, resultado do grande incentivo que fez aos lavradores
que se estabelecessem nas margens dos rios Maranhão, Araguaia
e Tocantins. Entretanto, toda essa produção pouco era enviada
para os portos de Lisboa. Para otimizar esse transporte dos
gêneros produzidos naquela capitania, voltava a solicitar que
mandassem organizar em Belém uma sociedade mercantil
“destinada a começar metodicamente o comércio desta capitania
pelos rios. Conceda-lhes S. A. R. os privilégios que julgar a
propósito animem-se os negociantes que eu da minha parte
prometo aprontar sempre os gêneros que me forem pedidos.” 35
A capitania do Pará se tornava a saída mais viável para
os produtos de Goiás, como também para os de Mato Grosso.36
O incremento das relações comerciais com as capitanias de
Goiás e Mato Grosso fora colocado desde a criação da
Companhia de Comércio do Pará e Maranhão 37. Na virada do
século XVIII para o XIX, essa questão torna a ser presente nos
debates entre os representantes dessas capitanias.
Enquanto
as
ações
administrativas
para
o
desenvolvimento dessas trocas mercantis eram discutidas pelas
autoridades administrativas, a ação de negociantes dessas
capitanias era sempre incentivada e para ela concorriam todos os
esforços para que nada causasse embaraços a “um objeto de
tanta
300
importância.”
Essas
solicitações
de
auxílios
às
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
embarcações comerciais eram reforçadas nos passaportes de
negociantes que saíam de Belém para as suas cidades de destino.
Quando saiu de Belém em direção à capitania de Mato Grosso,
Antonio Roiz do Amaral, “que dali havia descido a tratar de
suas negociações mercantis, retornava com “2 botes, equipados
com
20
índios”
e
ordens
expressas
recomendando
“positivamente toda a proteção para promover e facilitar este
comércio tão interessante ao bem das duas capitanias.” 38
Tratava-se de um comércio de grandes dimensões para aquelas
áreas, visto serem as 2 embarcações que contavam com um
equipagem bastante numerosa, 20 índios.
As relações comerciais que se teceram entre essas duas
capitanias foram pautadas por incentivos das autoridades
administrativas, mas também muito concorreu para a sua
implementação a atuação dos negociantes estabelecidos tanto na
praça de Belém (Pará), como na praça de Vila Bela (Mato
Grosso). O que se percebe são as ações de negociantes de Belém
se articulando com outras praças mercantis da América
portuguesa, onde a localização de seu porto permitia que esses
negociantes de Belém pudessem sustentar redes de relações
comerciais com os portos de Lisboa.
As escrituras de contrato de sociedades mercantis são
reveladoras das áreas onde o trato comercial se mostrava
301
Siméia de Nazaré Lopes
relevante para os negociantes estabelecidos em Belém. As
sociedades firmadas na vila de Santarém garantiam além o
contato com o interior de Mato Grosso, o abastecimento de
gêneros e mercadorias para o porto de Belém, como também o
estreitamento das relações dos comerciantes fixados nessas áreas
com os negociantes de Belém.
Notas de Referência

1
2
3
4
302
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), orientada pelo
Professor Doutor Antônio Carlos de Jucá Sampaio. Contato:
[email protected]
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. “Diálogos historiográficos e cultura
política na formação da América Ibérica”. In: SOIHET, Raquel,
BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.).
Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino
de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 68.
FRAGOSO, João. “A noção de economia colonial tardia no Rio de
Janeiro e as conexões econômicas do Império português: 1790-1820”.
In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de
Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001, pp. 319-338.
Idem, p. 329.
O Livro de Notas do Tabelião Perdigão (LNTP) é composto de
Procuração Bastante e Geral, de Escrituras de Venda, de Escrituras de
Sociedade, de Escrituras de Obrigação de Dívida e de Escrituras de
Doação. Serão utilizados os livros que compreendem os anos de 1803 a
1834, privilegiando para a discussão proposta apenas as procurações e as
escrituras de Sociedade. Os Livros de Notas do Tabelião Perdigão estão
contidos na documentação do Arquivo Público do Estado do Pará
(APEP). Ressalta-se que para alguns anos a documentação está
completamente ilegível ou danificada.
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS. Viagem pelo Brasil: 1817-1820.
São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981, p. 32.
LOPES, Siméia de Nazaré Lopes. “O „reflorescimento‟ da economia
pós-Cabanagem”. In: COELHO, Mauro; GOMES, Flávio dos Santos;
MARIN, Rosa Acevedo (orgs.). Meandros da História: trabalho, e
poder no Pará e Maranhão, séculos XVIII e XIX. Belém: UNAMAZ,
2005.
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo
(séculos XV-XVIII): os jogos das trocas. São Paulo: Martins Fontes,
1996, p. 383.
O termo “negociante” é utilizado tal como esses sujeitos são
apresentados na documentação utilizada.
Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, n. 1187, d. 46, (18071808).
De acordo com Revel, as indicações de trajetórias individuais
possibilitam pensar a articulação entre os sujeitos e, a partir de
diferentes informações sobre eles, “tentar compreender de que maneira
esse detalhe individual, aqueles retalhos de experiências dão acesso a
lógicas sociais e simbólicas que são as lógicas do grupo, ou mesmo de
conjuntos muito maiores”. REVEL, Jacques (org.),”Apresentação”,
Jogos de escalas: a experiência da microanális, Rio de Janeiro: FGV,
1998, p. 13.
Spix e Martius. Op Cit, p. 38
Idem.
Idem. p. 252.
Em 1827, o viajante inglês, Henry Lister Maw, quando passou pela
capitania do Rio Negro, também fez referência à atuação do negociante
Francisco Ricardo Zani naquela região. Segundo suas informações, Zani
havia alcançado o posto de coronel por ter, entre outras coisas, ajudado
os doutores Spix e Martius na viagem que realizaram para o Rio Negro,
em 1819. MAW, Henry Lister. Narrativa da passagem do Pacífico ao
Atlântico, através dos Andes nas províncias do norte do Peru, e
descendo pelo rio Amazonas, até ao Pará. Manaus: Associação
Comercial do Amazonas/Fundo Editorial, 1989, p. 209.
Em 1800, consta que o negociante João Lopes da Cunha solicitou uma
licença para viajar à cidade de Lisboa onde iria tratar de seus negócios.
No documento se afirmava que ele vinha “comerciando até agora nesta
cidade (de Belém) e nos Sertões deste Estado e conservando ainda o
mesmo negócio para benefício e precisão do mesmo negócio necessita ir
à Lisboa”. O que pode se inferir que a atuação dele na cidade de Belém
e nos sertões da capitania ocorria desde fins do século XVIII, sendo o
303
Siméia de Nazaré Lopes
contrato que ora assinava uma confirmação dessas atividades.
AHU_ACL_CU_013, Cx. 117, d. 9029. Pará, 14/05/1800.
16
Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, n. 1152, d. 359, (18201821).
17
Op Cit, p. 99.
18
Spix e Martius, Op Cit, p. 100.
19
Em junho de 1821, o capitão João Lopes da Cunha e o tenente Antonio
Peixoto de Azevedo passaram procuração para a cidade de Cuiabá para
o brigadeiro Gabriel da Fonseca de Souza, para João Gonçalves dos
Santos Crus e para o tenente Joze da Costa Leite. Procuração Bastante e
Geral, APEP, LNTP, n. 1152, (1820-1821). Infere-se que esse comércio
para Mato Grosso tenha persistido por toda a década de 1820, visto que
em 1830, o negociante Cunha, agora “Ilustríssimo Coronel”, passava
procuração ao “Ilustríssimo Comendador” Joaquim Joze Lopes, para
representá-lo naquela província. Procuração Bastante e Geral, APEP,
LNTP, n. 1183, (1833-1834).
20
Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, n. 1152, d. 359, (18201821).
21
Idem.
22
Escritura de Sociedade Mercantil, APEP, LNTP, s/n, d. 98, (1816).
23
AHU_CU_013_Cx.154, d. 11855 e 11861. Pará, 22/06/1822.
24
AHU_CU_013_Cx.154, d. 11938. Pará, 20/09/1822.
25
AHU_CU_013_Cx.154, d. 12311. Pará, 10/12/1823.
26
A respeito dessas providências, o governador Francisco de Sousa
Coutinho informava sobre as implementações que seriam adotadas para
tornar regular a comunicação entre as capitanias, através das rotas de
navegação, do estabelecimento de povoações nas margens do rio e de
fazendas de gado. Estabelecendo-se assim, algumas relações comerciais
de negociantes de Belém com as praças daquelas capitanias.
AHU_ACL_CU_013, Cx. 116, d. 8955, Pará, 22/11/1799.
27
Cf: AMARAL LAPA. J. R. “Do comércio em área de mineração”. In:
Economia Colonial. Série Debates, Ed. Perspectiva: São Paulo, 1973,
pp. 28-30; Spix e Martius. Op. Cit., p. 107.
28
O próprio governador de Mato Grosso explica a diferenciação que faz
entre secos e molhados para poder cobrar os direitos, visto não haver lá
Alfândega e pessoas capacitadas para fazer tais cálculos e arrecadações.
“Fazenda seca vai a balança, e cada arroba para 1:125 reis, ou esta
arroba seja de cambraias finíssimas, ou de estopa a mais grossa, ou de
metais preciosos ou de ferro. E dos molhados, que segundo se declara
nas condições do contrato das entradas, é tudo o que se consome ou
bebe, paga cada carga, por exemplo, cada frasqueira de líquidos, cada
304
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
saco de sal, 750 reis”. AHU_ACL_CU, Cx. 37, d. 1862. Vila Bela,
23/06/1799.
Idem.
O capitão Joze Antonio Gonçalves Prego era negociante que costuma
seguir para Belém em comboio com outros negociantes de Mato Grosso.
Segundo o registro dos comboios, Gonçalves Prego realizou 3 viagens
para Belém nos anos de 1775, 1778 e 1781. APEP, Códice 297.
AHU_ACL_CU, Cx. 37, d. 1862. Vila Bela, 23/06/1799
AHU_ACL_CU_013, cx. 133, d. 10130. Pará, 18/03/1805. Um ano
antes, O conde dos Arcos e o visconde de Anadia trocaram ofício se
reportando às “novas possibilidades de relações comerciais entre a
capitania do Mato Grosso e o Estado do Pará, e o socorro militar
oferecido ao governo daquela capitania”. AHU_ACL_CU_013, cx. 133,
d. 10065. Pará, 02/12/1804.
Idem, Ibdem.
AHU_ACL_CU, Cx. 39, d. 1964. Vila Bela, 09/04/1802.
AHU_ACL_CU_008, Cx. 52, d. 2917.
Em 1804, o Conde dos Arcos, governador do Pará, remeteu ofício ao
Visconde de Anadia informando sobre o “destacamento de pessoas para
aquele território (Mato Grosso), com o objetivo de ali criar uma Junta da
Fazenda Real.” Pará, 07/08/1804.
Cf: CARREIRA, Antonio. A companhia geral do Pará e Maranhão. São
Paulo:Editora Nacional, 1988.
APEP, códice 297, Pará, 25/06/1808.
305
Siméia de Nazaré Lopes
306
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Resumos | Abstracts
Eduardo Prado: um monarquista em tempos republicanos
Amanda Muzzi Gomes
Resumo: Eduardo Prado foi um dos mais líderes monarquistas
na década de 1890. Filho de aristocratas cafeeiros paulistas, ele
teve vários familiares influentes na política imperial, mas não
chegou a ocupar cargos políticos, tendo iniciado sua militância
política como reação à proclamação da República. Nesse artigo,
abordamos suas inserções sociais e trajetória monarquista. Por
fim, analisamos sua interpretação para a mudança de regime e
como, em textos de combate à política republicana, ele avaliou,
por vezes até criticamente, o Segundo Reinado.
Palavras-chave: Eduardo Prado – monarquistas – primeira
década republicana
Abstract: Eduardo Prado was one of the leading monarchists in
the 1890s. As he was born in a family of coffee aristocrats, he
had several influential relatives in imperial policy. However, he
does not occupied positions politicians. He started his political
activism as reaction the announcement of the Republic. In this
article, we approach his social insertions and monarchist
trajectory. We also analyze his interpretation for political
transition from monarchy to republic. Finally, we analyze his
evaluations about D. Pedro II government, in texts of antiRepublican politics.
Keywords: Eduardo Prado  monarchists  the first decade of
Brazilian Republic
307
Resumos | Abstracts
Letras revolucionárias: a carta de Marighella ao almirante
Aragão
Anderson da Silva Almeida
Resumo: O presente artigo explora o uso da carta pessoal como
fonte para o historiador. Tentando articular questões teóricas e
metodológicas, é um exercício de análise da escrita epistolar
como um documento possível de ser analisado na tarefa do
historiador de compreender o processo histórico, como também
é um rastro essencialmente constituído de temporalidades.
Palavras-chave: Indivíduo, Escrita epistolar, Fontes históricas
Abstract: This article explores the use of the personal letter as a
source for the historian. Trying to articulate theoretical and
methodological issues, it is also an exercise in analysis of
epistolary writing as a document can be analyzed from the
historian's task of understanding the historical process, but also a
trail consisting essentially of temporalities.
Keywords: Individual, Epistolary writing, Historical sources
308
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Resumos | Abstracts
Os quadrinhos para adultos na Espanha dos anos setenta
André Inácio de Assunção Neto
Resumo: Em um setor da cena editorial na Espanha da década
de 1970 incursões, por um lado, pelo terreno da sátira
caricaturesca realista, construindo duras críticas à sociedade
espanhola ou, por outro lado, as abordagens mais esteticistas e
fantásticas, constituem as principais configurações de uma
novidade: os quadrinhos para adultos. Quais são os processos
sociais (portanto históricos) particulares, as diversas práticas,
sejam editoriais, artísticas ou políticas, que explicam a
especificidade desse segmento de na década de 1970 no
território espanhol?
Palavras-chave: Quadrinhos para adultos, Espanha, Práticas
Abstract: In a section of the scene editorial in Spain of the
decade of 1970 incursions, on one side, for the land of the
realistic caricatural satire, building hard critics to the Spanish
society or, on the other hand, the approaches more beauticians
and fantastic, they constitute the main configurations of an
innovation: the comics for adults. Which are the social processes
(therefore historical) matters, the several practices, be editorials,
artistic or political, what do explain the specificity of that
segment of in the decade of 1970 in the Spanish territory?
Keywords: Adult Comics, Spain, Practice
309
Resumos | Abstracts
Modelo Político de Alexandre, O Grande na Roma doSéculo
II d. C.: Perspectivas Teóricas na Anábase de Alexandre
Magno de Arriano de Nicomédia
André Luiz Leme
Resumo: Enquanto proposta historiográfica, a obra Anábase de
Alexandre Magno trouxe aos contemporâneos de seu autor,
Arriano de Nicomédia (90 – após 145 d.C.), um modelo
idealizado e exemplar de governante através do resgate da
memória de Alexandre Magno (356 – 323 a.C.). Destarte, da
inevitável comparação passado/presente que a obra oferece,
indicando uma análise reflexiva do autor acerca do
comportamento do rei macedônio, poderíamos também entrever
perspectivas teóricas em relação ao poder no ambiente do
Império Romano do século II d.C.
Palavras-chave: Arriano de Nicomédia, Império Romano,
Anábase de Alexandre Magno
Abstract: While a historiographical proposal, the Anabasis of
Alexander the Great brought to the contemporaries of the
author, Arrian of Nicomedia (90 - after 145 AD), an idealized
and exemplary model of ruler through the retrieval of the
memory of Alexander the Great (356-323 BC). Thus, from the
inevitable comparison past/present that the work offers,
indicating a reflective analysis of the author about the behavior
of the Macedonian king, we could also glimpse theoretical
perspectives in relation to the power of the Roman Empire in the
environment of the second century AD.
Keywords: Arrian of Nicomedia, Roman Empire, Anabasis of
Alexander the Great
310
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Resumos | Abstracts
A vida de Gonçalves Dias de Lúcia Miguel Pereira: um
exemplo de biografia moderna em terras brasileiras
Andréa Camila de Faria
Resumo: Como sintoma de uma época em que os pressupostos
da chamada biografia moderna se disseminavam em solo
brasileiro, A vida de Gonçalves Dias, publicada por Lúcia
Miguel Pereira em 1943, apresenta-se para nós como fonte rica
não apenas para a investigação de um novo tipo de escrita
biográfica, mas também como fonte de uma construção de uma
imagem de Gonçalves Dias pautada, sobretudo, em sua condição
humana e muito influenciada pelas teorias psicanalíticas e
sociais do século XX.
Palavras-chave: Gonçalves Dias, biografia, história.
Abstract: As a symptom of a time when the assumptions of the
nominated modern biography disseminated in Brazilian soil, The
life of Gonçalves Dias, published by Lúcia Miguel Pereira in
1943, presents us itself as a rich source not only for the
investigation of a new type of biographical writing, but also as a
source of building an image of Gonçalves Dias guided mainly in
his human condition and very influenced by social and
psychoanalytic theories of the twentieth century.
Keywords: Gonçalves Dias, biography, history.
311
Resumos | Abstracts
Academia dos Renascidos: O Saber como Poder na Bahia
Setecentista
Bruno Casseb Pessoti
Resumo: Esse trabalho analisa a produção intelectual da
Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos, instituição
fundada na Bahia, em 1759, cujo principal objetivo era escrever
a história geográfica e natural, política e militar, eclesiástica e
secular da América portuguesa. Através da produção intelectual
destes indivíduos identificamos a defesa da legitimidade da
soberania portuguesa em suas terras do continente americano e a
busca por mercês, como alguns dos principais usos do discurso
histórico durante o século XVIII luso-brasileiro.
Palavras-chave: Academia dos Renascidos, história da América
Portuguesa, século XVIII
Abstract: This work is detained in the intellectual production of
the Academia Brasílica dos Renascidos. This institution was
founded in Bahia, in 1759 and its principal objective was to
write the geographical and natural, political and military,
ecclesiastical and secular history of Portuguese America.
Through the intellectual production of these individuals, we
identify the defense of the legitimacy of the Portuguese
sovereignty in its possession of the American continent and the
search of mercy as some of the main uses of the historical
speech during the Luso-Brazilian century XVIII.
Keywords: Academia dos Renascidos, history of Portuguese
America, eighteen century
312
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Resumos | Abstracts
Os perigosos Domínios de Hespanha: contatos e tensões na
fronteira luso-espanhola da Capitania do Rio Negro (17801808)
Carlos Augusto de Castro Bastos
Resumo: A partir da década de 1780, Portugal e Espanha
organizaram comissões demarcadoras para definir as fronteiras
de suas possessões americanas. Embora as demarcações
estreitassem o intercâmbio de informações entre autoridades,
essa aproximação também gerou desconfianças. Em relação à
Capitania do Rio Negro, as autoridades temiam o avanço militar
dos espanhóis e a perda territorial. Nesse artigo serão discutidas
as leituras e ações políticas das autoridades portuguesas quanto
às possíveis ameaças representadas pela aproximação com os
domínios espanhóis no continente.
Palavras-chave: Rio Negro, fronteira, América Espanhola
Abstract: From the 1780s, Portugal and Spain have organized
expeditions to delimit the boundaries of their American
dominions. Although theses commissions had straitened the
exchange of information between authorities, this contact had
also generated distrust. Regarding the Capitania do Rio Negro,
the authorities feared a Spanish military attack and the loss of
territory. This paper discusses the actions and political readings
of the Portuguese authorities about the possible threats posed by
the proximity to the Spanish dominions on the continent.
Keywords: Rio Negro, boundary, Spanish America.
313
Resumos | Abstracts
O Conhecimento Aplicado do Historiador Islâmico
Medieval: O Poder, a Sociedade e a Erudição na
Muqassimah de Ibn Khaldun (1332-1406)
Elaine Cristina Senko
Resumo: O historiador Ibn Khaldun (1332-1406), em sua obra
Muqaddimah, desenvolveu um estudo acerca do poder, da
sociedade e da erudição no ambiente islâmico medieval.
Destarte, Khaldun estabeleceu reflexões acerca da politica
islâmica medieval no norte da África junto a Península Ibérica e
o Oriente islâmico. Através de uma análise desses tópicos,
podemos entrever uma proposta historiográfica que buscava
encontrar e revelar perspectivas reguladoras em torno de um
certo movimento da sociedade – o qual corresponderia à uma
noção de tempo cíclico.
Palavras-chave: historiador Ibn Khaldun, Muqaddimah, história
medieval
Abstract: The historian Ibn Khaldun (1332-1406), in his work
Muqaddimah, developed a study of the power, society and
scholarship on medieval Islamic environment. Thus, Khaldun
established ideas about the medieval Islamic politics in North
Africa, as well as in the Iberian Peninsula and the Islamic East.
Through an analysis of these main topics, we can glimpse a
historiographical proposal that sought to find and reveal
regulatory perspectives around a certain movement of society which would correspond to a notion of cyclical time.
Keywords: Historian Ibn Khaldun, Muqaddimah, Medieval
History
314
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Resumos | Abstracts
Memória social, memória coletiva e História: um
mapeamento da questão
Fabio Osmar de Oliveira Maciel
Resumo: A obra de Halbwachs estabeleceu um marco na
década de 30, ao criar a categoria Memória Coletiva. Ainda hoje
os debates sobre a memória estão presentes no âmbito
acadêmico e em ações políticas. Neles, os enquadramentos são
fundamentais para as construções das identidades. Cabe a
história a problematização destas questões. Desta forma, é nosso
objetivo traçar um breve mapeamento sobre o tema a partir da
relação memória e História, procurando estabelecer o espaço de
atuação dessas duas áreas.
Palavras-chave: História, Memória Coletiva, Memória Social.
Abstract: Halbwachs's work established a milestone in the 30s
to create the category Collective Memory. Even today, debates
about memory are present in the academic and political
action. In them, the frameworks are fundamental to the
construction of identities. It is up to the problematic history of
these issues. Thus, it is our goal to provide a brief mapping on
the theme from the connection memory and history, trying to
establish the space of action of these two areas.
Keywords: History, Collective Memory, Social Memory.
315
Resumos | Abstracts
Fritzmac e o ano de 1888: A revista de ano como palco de
discussões políticas na corte
Flávia Ferreira de Almeida
Resumo: O presente artigo tem como objetivo pensar a revista
de ano Fritzmac como lugar de expressão de importantes
debates políticos que ocorreram na sociedade brasileira, em fins
do século XIX, particularmente no ano de 1888. Entre esses
debates, destaco o fim da escravidão, a nova condição social dos
negros no pós-abolição, a imigração chinesa e a implementação
da república. Demonstrando que a revista de ano serviu como
espaço de circulação e divulgação dessas questões na sociedade
carioca.
Palavras-chave: revista de ano – Rio de Janeiro – abolição.
Abstract: This paper aims to reflect the year magazine
Fritzmac as an expression of important political debates that
took place in Brazilian society in the late nineteenth century,
particularly in 1888. Among these debates, I emphasize the end
of slavery, the new social status of blacks in post-abolition, the
chinese immigration and the implementation of the republic.
Showing that the year magazine used to be a space for
circulation and dissemination of these issues in Rio society.
Keywords: year Magazine - Rio de Janeiro – abolition.
316
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Resumos | Abstracts
Os segredos da nação: o IHGB e a criação da “arca do
sigilo”
Isadora Tavares Maleval
Resumo: A constituição da história como disciplina foi matéria
de intensas discussões no IHGB, fundado em 1838. Entre os
assuntos de destaque naquele contexto, importa-nos o (não)lugar destinado às narrativas sobre o tempo presente. A criação
de uma “arca do sigilo”, onde se guardaria documentos do
passado recente da nação demonstra tanto a emergência de uma
concepção moderna de história, quanto questões políticas
referentes ao período: a participação, por exemplo, de sócios da
instituição em movimentos rebeldes do início do oitocentos.
Palavras-chave: historiografia – século XIX – IHGB.
Abstract: The constitution of history as discipline was subject
of intense discussions in IHGB (1838). Among the issues
highlighted in that context is important to us the (non-)place for
their narratives about the present. The creation of an "ark of
secrecy", which would keep the documents of nation's recent
past shows the emergence of a modern conception of history and
political issues relating to the period: the participation, for
example, of partners in rebel movements at the beginning of
nineteenth century.
Keywords: historiography – nineteenth century – IHGB
317
Resumos | Abstracts
Éramos “Oito”: A Trajetória da Dissidência Comunista da
Guanabara/Movimento Revolucionário 8 de Outubro (19641973)
Izabel Priscila Pimentel da Silva
Resumo: Nosso objetivo principal é analisar a trajetória da
Dissidência Comunista da Guanabara (DI-GB), posteriormente
conhecida como Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), cujas origens remontam às acirradas divergências internas
que cindiram o Partido Comunista Brasileiro, sobretudo após o
golpe civil-militar de 1964. Esta organização exerceu liderança
inconteste no movimento estudantil carioca e nacional e, a partir
de 1968, converteu-se às ações armadas, alcançando grande
notabilidade ao conceber e realizar a captura do embaixador dos
Estados Unidos, em setembro de 1969.
Palavras-Chave: Movimento Estudantil, Luta Armada, Ditadura
Abstract: The main objective of this paper is to analyze the
trajectory of the Dissidência Comunista da Guanabara, or DIGB (Guanabara’s Communist Dissidence), latley known as
Movimento Revolucionário 8 de Outubro, or MR-8,
(Revolutionary Movement 8th of October), as origins bring back
the unyielding internal disagreements that originated the
Brazilian Communist Party, specialy after military coup of
1964. This organization was an undisputed leader amongst the
students in Rio and Brazil and, after 1968, adopted armed
actions, becaming highly notable for planning and executing the
capture of the United States ambassador in September 1969.
Keywords: Student Activism, Armed Conflict, Dictatorship
318
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Resumos | Abstracts
Polícia Política em Minas Gerais: Fabricação de crimes
políticos e imaginário anticomunista no regime militar de
1964
Júlia Lettícia Camargos
Resumo: O trabalho explora a atuação da polícia política de
Minas Gerais – DOPS/MG- no combate aos crimes políticos
durante o regime militar de 1964. Elegemos os procedimentos
do DOPS a fim de explicitar mecanismos utilizados no controle
de segmentos hostis à ordem instaurada, como a fabricação de
crimes políticos dentro dos parâmetros anticomunistas. O
anticomunismo foi um forte elemento ideológico que moldou
comportamentos, sustentou ações coercitivas e definiu os
contornos da práxis da polícia política no Brasil.
Palavras-chave: Anticomunismo, Crime político, Polícia política
Abstract: This work analyzes the political police of Minas
Gerais operation – DOPS/MG – on wiping political crimes out
during the military regime of 1964. We have pick DOPS
proceedings in order to adduce the mechanisms used in control
of antagonistic segments to the established order, like
production of political crimes within the anticommunist
parameters. Anticommunism was an intense ideological element
which held sway over behaviors, sustained coercive actions and
determined the praxis outline of political police in Brazil.
Keywords: Anticommunism, Political crime, Political police
319
Resumos | Abstracts
O Cultural Change Institute: a cultura como via única para
o progresso
Samantha Cintra Magnanini
Resumo: O artigo aborda o instituto de pesquisa chefiado por
Lawrence E. Harrison para entender como a cultura, sob esta
ótica, aparece como único caminho para o progresso das nações.
Ao tratar das teorias e práticas empreendidas pelo CCI, é
possível entender como, a partir das condições criadas pelos
ataques de onze de setembro, foi possível resgatar, em parte, o
discurso missionário norte-americano através da exportação dos
valores que defendem como seus para o resto do mundo, sob
uma perspectiva cultural.
Palavras-chave: Intelectuais – Neoconservadorismo – Cultura
Abstract: The article discusses the research institute headed by
Lawrence E. Harrison to understand how culture, on this
perspective, appears as the only path to national progress. When
dealing with theories and practices produced by the CCI, it is
possible to understand how, from the conditions created from
the attacks of September 11, it was possible to recover, in part,
the american missionary discourse and the practice of exporting
the american values from a cultural perspective.
Keywords: Intelectuals – Neoconservatism – Culture
320
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Resumos | Abstracts
Sociedades mercantis e as políticas de articulação comercial
entre Pará e Mato Grosso (1790-1820)
Siméia de Nazaré Lopes
Resumo: A proposta dessa comunicação é analisar a formação de
sociedades mercantis na cidade de Belém e as propostas das
autoridades administrativas para estreitar as relações comerciais entre
Pará e Mato Grosso de 1790 a 1820. A troca de correspondências
entre os governadores das duas capitanias apresenta as discussões que
pautaram e definiram a articulação comercial entre Belém e Vila Bela.
Para além desse planejamento, será também discutido algumas ações
concretas dessa articulação comercial entre essas duas áreas da
América portuguesa.
Palavras-chave: Sociedades mercantis, Pará e Mato Grosso
Abstract: The purpose of this communication is analyzing the
formation of commercial societies in Belem and the policy of local
authorities to strengthen trade relations between Para and Mato
Grosso from 1790 to 1820. The exchange of correspondence between
the governors of two capitanias presents the discussions that dedfined
the relationship between trade of Belém and Vila Bela. Beyond this
political planning will be also discussed some concrete actions that
made possible the commercial relation between these two areas of
Portuguese America.
Keywords: Commercial Companies, Para and Mato Grosso
321
Resumos | Abstracts
322
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Normas Editoriais
1. Só serão aceitos artigos de pós-graduandos e pósgraduados que tenham sido aceitos, apresentados e
entregues de acordo com as regras estipuladas pela
Semana de História Política da UERJ.
2. Será feita uma seleção entre os artigos enviados para a
Semana de História Política, onde os contemplados terão
seus textos publicados na Revista Dia-Logos. Os
trabalhos serão apreciados por dois pareceristas, que
poderão solicitar modificações nos artigos aceitos.
Havendo disparidade nos pareceres, os artigos serão
encaminhados a um terceiro parecerista. Será garantido o
anonimato de autores e pareceristas no processo de
avaliação dos artigos. O Conselho Editorial compromete
a não enviar artigos de orientandos para orientadores e
direcionar os artigos de acordo com a especialidade do
parecerista.
3. Os trabalhos devem ser enviados em arquivo digital para
o e-mail da Semana de História Política divulgado no
endereço eletrônico www.semanahistoriauerj.net, no
qual deve conter título do trabalho, nome completo do
autor, títulação, vínculo institucional, identificação do
Normas Editoriais
orientador (a), e-mail, telefone e endereço completo para
correspondência. Também deve ser enviado duas cópias
impressas empapel que não exibirão os dados de
identificação do autor, para o endereço: Semana de
História Política, Programa de Pós-Graduação em
História/UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, 9º andar,
bloco F, sala 9.037, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, CEP:
20550-900.
4. Os artigos devem ter a extensão máxima de dez laudas,
digitados na fonte Times New Roman, corpo 12, espaço
1,5 e margens de 2,5cm. As notas devem ser colocadas,
numeradas, no final do texto. O arquivo deverá ser
enviado no formato word. A revista não publica
bibliografias.
5. Os artigos devem ser encaminhados de resumos (em
português e inglês), com no máximo oitenta palavras e
três palavras-chave (em português e em inglês). Caso a
pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição
esta deverá ser mencionada.
324
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Normas Editoriais
6. As citações com mais de três linhas deverão respeitar
tabulação a 3,5cm da margem esquerdas, corpo 10,
espaço simples. As citações com menos de três linhas
deverão estar incorporadas, com aspas, ao texto.
7. As notas devem ser colocadas no final do artigo, com a
seguinte apresentação:
7.1. SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico.
Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p.
7.2. SOBRENOME, Nome. “Título do capítulo ou parte do
livro”. In: Título do livro em itálico. Tradução. Edição.
Cidade: Editora, ano, p.
7.3. SOBRENOME, Nome. “Título do artigo”. In: Título do
periódico em itálico, cidade, vol. (fascículo, nº): 00-00,
ano, p.
8. O número de artigos em cada edição será definido pelo
Conselho Consultivo e pelo Conselho Editorial de
acordo com a disponibilidade de verbas.
9. Os dados e conceitos emitidos nos artigos são de única e
exclusiva responsabilidade dos autores. Os direitos
325
Normas Editoriais
autorais
sobre
os
originais
publicados
são
automaticamente cedidos à revista, ficando a mesma
autorizada a republicá-la em diferentes mídias.
10. Cada autor receberá gratuitamente três exemplares do
número da revista com o seu artigo.
11. Um mesmo autor não poderá publicar em duas edições
consecutivas da revista.
12. Os autores serão notificados da aceitação dos artigos.
13. Serão desclassificados automaticamente aqueles artigos
que não se adequarem às normas de publicação,
incluindo os artigos cujos autores não se apresentaram na
Semana de História Política (proponente de comunicação
faltoso).
326
Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.5, Outubro de 2011
Esta Revista foi impressa pela Fábrica do Livro em Outubro de
2011
Download

Baixar Revista Dia-Logos 2011 - X Semana de História Política