Revista da
ISSN 0102-1788
VOL 26
n. 53
Jul./Dez. 2011
NESTA CASA ESTUDA-SE O DESTINO DO BRASIL
REVISTA
DA
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
v. 26 n. 53
2º Semestre 2011
Rio de Janeiro 2011
Revista da Escola Superior de Guerra. —
v. 26, n. 53 (jul./dez.) 2011 – Rio de Janeiro : ESG, 2011.
Semestral
ISSN 0102-1788
1. Ciência Militar - Periódicos. 2. Política - Periódicos. I.
Escola Superior de Guerra (Brasil). II. Título.
CDD 320.981
Revista da Escola
Superior de Guerra
A Revista é uma publicação
semestral da ESCOLA
SUPERIOR DE GUERRA, do Rio
de Janeiro. Com tiragem de 1.000
exemplares, circula em âmbito
nacional e internacional.
Comandante e Diretor de Estudos
General de Exército
Túlio Cherem
Subcomandante e Subdiretor de Estudos
Vice-Almirante
Nelson Garrone Palma Velloso
Diretor do Centro de Estudos Estratégicos
General de Brigada R/1
João Cesar Zambão da Silva
Conselho Editorial
Presidente do Conselho
General de Brigada R/1 João Cesar Zambão da Silva
Membros do Conselho
Professor Doutor Jorge Calvario dos Santos
Professor Doutor José Amaral Argolo
Capitão-de-Mar-e-Guerra (FN-RM1) José Cimar Rodrigues Pinto
Tenente-Coronel QFO BIB Jaqueline Santos Barradas
Professora Doutora Maria Celia Barbosa Reis da Silva
Professor Doutor Fernando da Silva Rodrigues
Jornalista Maria da Glória Chaves de Melo
Editor Responsável
José Cimar Rodrigues Pinto
Capitão-de-Mar-e-Guerra (FN-RM1)
Revisão Editorial
Jornalista Maria da Glória Chaves de Melo
Funcionária Civil Ioná José dos Santos
Diagramação e Arte Final
Anério Ferreira Matos
Projeto, Produção Gráfica e Impressão
Gráfica da Escola Superior de Guerra
SUMÁRIO
Editorial
5
Constituição e Pós-Modernidade: Desconstrução do Estado Social 7
Ivens Gandra da Silva Martins
Aspectos não Convencionais para a Defesa
Jorge Calvario dos Santos
18
O Estado Brasileiro e a Questão Amazônica: Por uma Análise das
Tensões no Processo de Construção da Soberania Nacional
29
Fernando da Silva Rodrigues
Guerra Assimétrica Reversa
Reis Friede
48
Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos
Transfronteiriços
Alexandre Cassel Marques
Mobilização Nacional Para Quê?
Heleno Moreira
98
Resenha: COSTA FREITAS, Jorge Manuel. A Escola Geopolítica Brasileira
Francisco José de Matos
Revista da Escola Superior de Guerra
Rio de Janeiro
66
V. 26
n. 53
p. 1-116
108
jul./dez. 2011
Editorial
A Revista da Escola Superior de Guerra apresenta, nesta edição, todo um conjunto
de artigos correlatos à Ciência Política e à Defesa. Soma-se uma resenha elaborada pelo
mestre em Ciência Política e pesquisador Francisco José de Matos, cujo leit motiv é a
Escola Geopolítica Brasileira.
Aliás, sobre o assunto, entre os pesquisadores neste campo destacam-se os
generais Golbery do Couto Silva, Carlos de Meira Mattos e a professora Therezinha
de Castro. Todos com forte presença na ESG e com anos de profícua dedicação a esta
instituição.
Os textos selecionados pelo Conselho Editorial para publicação refletem, por
conseguinte, maturidade acadêmica e profissional, requisitos indissociáveis às tradições
da Revista. O primeiro deles: Constituição e Pós-Modernidade: Desconstrução do Estado
Social é da lavra do jurista e professor Ives Gandra da Silva Martins.
No texto, o autor parte de uma questão pontual: a chamada pós-modernidade
implica, ou não, a desconstrução do Estado Social?
Aspectos não Convencionais para a Defesa foi elaborado pelo Prof. Dr. Jorge
Calvario dos Santos (CEE-ESG/UFF). Segundo ele, a premissa de que “a cultura é o
modo de ser da sociedade e, por isso, ela mesma é o que deve ter prioridade para ser
defendido”.
Segue-se o Estado Brasileiro e a Questão Amazônica: Por uma Análise das
Tensões no Processo de Construção da Soberania Nacional, do Prof. Dr. Fernando da
Silva Rodrigues. Assoma, nesta pesquisa sobre a vastidão do Brasil, a figura monumental
do general Cândido Mariano da Silva Rondon.
Em seguida será apresentado o texto Guerra Assimétrica Reversa, elaborado pelo
desembargador e professor Reis Friede, que é um estudo sobre os desdobramentos da
confrontação indireta que permeou a Guerra Fria.
Em Os Aquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços, de
Alexandre Cassel Marques, pós-graduado pela Coppead e FGV, ressalta a importância
dos recursos hídricos como partes indissociáveis ao meio ambiente.
Mobilização Nacional para quê? do Cel R-1 do Exército Brasileiro Heleno
Moreira, chama a atenção sobre a importância desse tema para o País, cujas dimensões
continentais e compromissos assumidos perante a comunidade internacional exigem a
participação atenta e diuturna de toda a sociedade e não apenas das Forças Armadas.
General de Exército
Túlio Cherem
Comandante e Diretor de Estudos da
Escola Superior de Guerra
5
e textos integram o presente
volume da Revista da Escola Superior de Guerra. O primeiro deles
elaborado pelo Prof. Dr. Luiz Alberto Moniz Bandeira, Titular de História
da Política Exterior do Brasil da Universidade de Brasília (atualmente
residindo na Alemanha), versando sobre a importância geopolítica da
América do Sul na Estratégia dos Estados Unidos.
O assunto, registre-se, é atual e oportuno, tendo em vista as reiteradas
ações políticas embasadas por forte acidulação de natureza militar que vêm
convulsionando o subcontinente sul-americano.
Os artigos que se seguem, todos relevantes para a compreensão do
caleidoscópio de intenções geopolíticas e/ou econômicas supra-assinaladas
refletem, indubitavelmente, a liberdade acadêmica da Escola Superior
de Guerra no ano da comemoração do sexagésimo aniversário da sua
fundação.
Os temas desenvolvidos nessa edição enfeixam amplo e contemporâneo conjunto de perspectivas e complexidades de tal modo que fica
difícil atribuir a este ou àquele qualquer patamar de superioridade e/ou
importância.
Destacam-se, pois, aqui elencados numa ordem intencionalmente
aleatória, aspectos relacionados não somente à Grande Estratégia
Brasileira (estudo comparado entre Estados Unidos e Brasil), Estado e
Direito (Tendências para o Século XXI), Bases para um Projeto Educacional,
Soluções Não Letais para as Forças Armadas e de Segurança, Tecnologias
Avançadas e/ou Sensíveis, Logística no Mundo Globalizado e Mobilização
Nacional.
Mais um trabalho importante está prestes a começar, demandando
atenção e método; qual seja: a leitura de um conjunto de percepções sobre
temas latentes e do interesse de todos nós, brasileiros.
Vale registrar que este exemplar da Revista da Escola Superior de
Guerra corresponde ao período do Comando do meu antecessor, Almirante
de Esquadra Luiz Umberto de Mendonça, e cuja edição, em grande parte, é
fruto do seu esforço em prol da sua continuidade e qualidade.
6
Constituição e Pós-Modernidade: Desconstrução do Estado Social
Constituição e Pós-Modernidade:
Desconstrução do Estado Social
Ives Gandra da Silva Martins*
Resumo
Trata-se de estudo baseado em narrativas históricas que mostra como a Constituição
Federal Brasileira permitiu o equilíbrio de poderes, o que propiciou uma
estabilidade econômica com sólidos fundamentos, além de assegurar a governança
e alternância de poder sem quaisquer riscos para a estabilidade democrática. Por
outro lado, evidencia que o Supremo Tribunal Federal, nos últimos tempos, passou
a ser legislador positivo - como nos casos de cassação de governadores, fidelidade
partidária, união de pares do mesmo sexo, caso Battisti - algo que pode colocar em
risco o equilíbrio entre os poderes e, em última análise, o próprio Estado Social.
Palavras-Chave: Equilíbrio de Poderes. Estado Social. Democracia. Estabilidade.
Abstract
This study which, based on historical narratives, shows that the Brazilian Federal
Constitution allowed the balance of power, which provided an economic stability
with solid fundamentals, in addition to ensuring governance and alternation of
power without any risks for democratic stability. On the other hand, shows that
the Federal Supreme Court, in recent times, is now legislators positive - as in cases
of impeachment of partisan loyalty, Governors, Union of pairs of the same sex,
Battisti case - something that may jeopardize the balance between the powers and,
ultimately, the Social State itself.
Keywords: Balance of Power. Social State. Democracy. Stability.
O novo perfil das democracias nos países emergentes tem levado à pergunta
se a pós-modernidade implicaria uma desconstrução do Estado Social. Creio que o
problema da pós-modernidade relaciona-se ao modelo de leis superiores que os
países menos desenvolvidos têm adotado para seu Estado.
______________
* Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O ESTADO DE SÃO PAULO,
das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército - ECEME e Superior de Guerra - ESG; Professor Honorário
das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); Doutor Honoris
Causa da Universidade de Craiova (Romênia) e Catedrático da Universidade do Minho (Portugal); Presidente do
Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO - SP; Fundador e Presidente Honorário do Centro de Extensão
Universitária.
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Ivens Gandra da Silva Martins
Nos últimos 30 anos, a América Latina conheceu sensível alteração de seus
fundamentos constitucionais, com modificação de quase todos os textos vigentes e
adoção de novas Constituições.
Até mesmo a Argentina, que convivia com modelo vindo do século XIX,
reformulou seu texto maior, durante o governo Menem, proclamando uma lei
suprema mais reduzida que a brasileira, porém, aproveitando a experiência de
nosso constituinte 1.
À época, seu procurador geral, Dr. Garcia Lema, esteve, algumas vezes em
meu escritório para discutir a experiência brasileira, tendo inclusive participado
de um programa de televisão comigo e Celso Bastos, organizado pela Academia
Internacional de Direito e Economia, denominado “Caminhos do Direito e da
Economia”. Sua ideia de discussão prévia de um texto com todos os partidos foi
levada ao Governo Menem e adotada. Isto impediu que o texto fosse elaborado
exclusivamente pelos partidos, possibilitando que decorresse de um consenso
destas agremiações políticas, à luz da reflexão de juristas de cada uma, que
participaram da elaboração de um anteprojeto. Nas discussões constantes que
tivemos à época, Celso e eu já tínhamos publicado grande parte dos nossos
Comentários à lei suprema brasileira, o que viemos a completar, em 15 volumes,
pela Saraiva, em 1998. Estimulamos, pois, a adoção do modelo de tramitação do
anteprojeto que Garcia Lema sugerira ao Presidente da Argentina. A nosso ver, tal
discussão prévia permitiu a rápida aprovação pelos Parlamentares de um texto de
129 artigos apenas e 17 disposições transitórias, sendo técnica e juridicamente
inatacável. O Dr. Garcia Lema publicou, após a aprovação, um pequeno livro em
que conta o que foi o processo de elaboração da referida Constituição 2.
1 Bernardo Cabral, relator da Constituinte, escreveu para livro por Rezek e por mim coordenado, que: “Há 20
anos, após um longo e amadurecido processo de meditação sobre os mais lídimos anseios nacionais e na
sequência de mais de ano e meio de estudos e discussões, era promulgada a atual Constituição da República
Federativa do Brasil. Aquele que leia o seu texto, sem paixão e preconceito, verificará que não se pode debitar
a ela todos os equívocos — como fazem uns poucos. Isso porque é esquecer o instante histórico da sua elaboração, quando participaram da sua feitura políticos cassados, guerrilheiros, banidos, revanchistas, etc., os quais,
sem dúvida, contribuíram para o seu detalhismo condenável, como se vê nas relações de trabalho e o papel do
Estado na economia. Sem contar, à época, com a chamada dicotomia entre os regimes capitalista e comunista.
O que cabe colocar em relevo é que a doutrina consiste em ver a Constituição como lei fundamental, onde se
resguardam acima e à margem das lutas de grupos e tendências, alguns princípios básicos, que uma vez incorporados ao seu texto tomam-se indiscutíveis de novo acordo e nova decisão. Como não é todos os dias que
uma comunidade política adota um novo sistema constitucional ou assume um novo destino, cumpre extrair
da Constituição tudo o que permite a sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-lhe o texto, a
reboque de interesses meramente circunstanciais” (Constituição Federal – avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro – 20 anos – edição comemorativa. São Paulo: Ed. Centro de Extensão
Universitária e Ed. RT, 2008, última capa).
2 Celso Bastos e eu escrevemos na introdução de nossos comentários: “Conscientes de que a realidade fenomênica constitucional difere, nas técnicas exegéticas, das demais realidades dela decorrentes, entendemos
necessária uma amplitude maior em seu exame, uma vez que sua conformação jurídica surge pela apreensão
de todos os elementos sociais que pertinem às demais ciências relacionadas ao homem vivendo em sociedade,
sendo, pois, o perfil técnico o último estágio desta interação de realidades não jurídicas e o primeiro estágio de
toda a realidade mandamental que dela decorrerá.
Não se pode estudar o direito constitucional sem que se estude filosofia, política, economia, sociologia, his-
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Constituição e Pós-Modernidade: Desconstrução do Estado Social
Países como Venezuela, Bolívia e Equador preferiram moldar-se de acordo
com ensinamentos provenientes de centro espanhol de estudos socialistas. Criaram,
a rigor, um modelo diverso daquele da Argentina – em que há equilíbrio de poderes
– alicerçado em grande valorização do Poder Executivo, diretamente vinculado ao
povo, mediante consultas constantes e convocadas pelo próprio Executivo, através
de referendos e plebiscitos, passando o Poder Legislativo e Judiciário, assim como o
Ministério Público a exercer funções secundárias.
Acolitam o Executivo, que é colocado como o verdadeiro representante do
3
povo .
Honduras, como o Brasil, alterou sua Constituição na década de 80, tendo,
entre as cláusulas pétreas, a impossibilidade de reeleição. Esta cláusula é que o
presidente Zelaya pretendeu discutir em plebiscito, não autorizado pelo Legislativo
e pelo Judiciário, o que levou a sua deposição, com base no artigo 239 da Lei
Suprema4.
Logo após a publicação da Constituição brasileira, participei, a convite do
governo paraguaio, juntamente com juristas de vários países latino-americanos, de
congresso no Paraguai, quando o país preparava a alteração de seu texto maior.
A rigor, quase todos os países da América Latina alteraram seus textos neste
período, que antecedeu e sucedeu a queda do muro de Berlim, adotando um
modelo socialista. Chávez, apesar de não ter lido Marx, segundo ele mesmo, disse
ter criado um modelo marxista próprio, ou seja, bolivariano contrário aos modelos
abertos que têm melhor propiciado o desenvolvimento e integração mundial. Com
efeito, os países que adotaram os modelos abertos e não ideológicos, como Brasil,
Chile e Colômbia, têm, do ponto de vista econômico, se projetado mais no cenário
mundial do que os de modelos fechados e ideológicos, como Venezuela, Bolívia e
Equador5.
tória, geografia, estudos antecipatórios, psicologia e outras ciências correlatas, visto que todas elas esculpem
seu desenho final no texto que ordenará a vida de determinado povo, com território e poder soberano para
conduzí-lo” (Comentários à Constituição do Brasil, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. VII, v.1).
3 Nas competências do Presidente da República venezuelana o artigo 236 determina: “Artículo 236: Son atribuiciones y obligaciones del Presidente o Presidenta de la República: ....
17. Dirigir a la Asamblea Nacional, personalmente o por intermedio del Vicepresidente Ejecutivo o Vicepresidenta Ejecutiva, informes o mensajes especiales.
....
21. Disolver la Asamblea Nacional en el supuesto establecido en esta Constitución.
22. Convocar referendos em los casos previstos em esta Constitución”.
4 Está assim redigido o artigo 239: ““Articulo 239. El ciudadano que haya desempeñado la titularidad del Poder
Ejecutivo no podrá ser Presidente o Designado. El que quebrante esta disposición o proponga su reforma, asi
como aquellos que lo apoyen directa o indirectamente, cesarán de inmediato em el desempeño de sus respectivos cargos, y quedarán inhabilitados por diez años para el ejercicio de toda función pública”.
5 No dia 19/07/2010, os jornais do Brasil publicaram a notícia de que Chávez exumou o corpo de Bolívar para
saber se tinha sido assassinado ou morrera de turberculose, declarando, por outro lado, que Bolívar inspirara-o
na revolução bolivariana-marxista que, desastradamente está impondo à Venezuela, com recessão, queda do
PIB e afastamento de investimentos privados. Desconhece o Presidente Chávez que Marx considerava Bolívar
um covarde e “bom vivant”, amante de festas e especialista em retiradas e no abandonar os seus comandados.
A meu ver, a conciliação póstuma entre Bolívar e Marx é impossível.
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Ivens Gandra da Silva Martins
O modelo brasileiro merece uma reflexão à parte. A Constituição brasileira
trabalhou com oito Comissões e 24 Subcomissões de parlamentares, de
fevereiro de 1987 a setembro de 1988, para produzir um texto menor do que os
venezuelano, boliviano ou equatoriano, porém, muito maior que o da Argentina,
com incorporação de diversos princípios, normas e regras constitucionais. Tem
o texto, todavia, uma quantidade enorme de disposições que poderiam – e, a
meu ver, deveriam – ser veiculadas por legislação complementar, ordinária ou
até mesmo por atos regulamentares do Executivo6.
A Constituição promulgada em 05/10/88 foi muito criticada pela extensão
de seu texto, com 245 artigos de normas permanentes e 70 de disposições
transitórias. Hoje, são 250 artigos de normas permanentes e 97 de disposições
transitórias, com mais de 70 emendas, em 23 anos.
Apesar desta constante mutação, assim como de sua extensão – que
leva a contínua reflexão por parte dos doutrinadores, advogados, membros
do Ministério Público e magistrados, com uma certa flutuação hermenêutica,
muitas vezes comprometedora da necessária segurança jurídica – teve um
mérito indiscutível: firmar definitivamente o Estado Democrático de Direito
que o Brasil desejava desde a Constituição de 1891 e que muitos dos textos
anteriores (1934, 37, 46 e 67)7 não conseguiram.
Essa realidade permitiu ao País, pela primeira vez na história da República
brasileira, enfrentar sucessivas crises, sem que se cogitasse de rupturas
institucionais, golpes de Estado, medida de exceção, como ocorrera nos períodos
anteriores.
Assim é que o Brasil passou por um “impeachment” presidencial; crises
que atingiram diretamente os governos, envolvendo suspeita de corrupção de
6 Prova disto encontra-se no artigo 242, § 2º, do texto constitucional: “Art. 242. O princípio do art. 206, IV, não
se aplica às instituições educacionais oficiais criadas por lei estadual ou municipal e existentes na data da promulgação desta Constituição, que não sejam total ou preponderantemente mantidas com recursos públicos.
...
§ 2º - O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal”.
7 Manoel Gonçalves Ferreira Filho explica: “A expressão “Estado de Direito” é suscetível de várias interpretações.
Para uns, Estado de Direito é a mesma coisa que Estado constitucional, isto é, Estado em que o poder é limitado
por uma Constituição escrita e rígida. Para outros, Estado de Direito é aquele que é regido, em última análise,
pela lei, mas por uma lei com conteúdo de justiça, não pela mera vontade arbitrária do legislador, expressa pela
forma de lei. Não falta, porém, quem em nome da “pureza” do direito pretenda que é Estado de Direito todo
aquele que comanda por meio de leis, independentemente do conteúdo justo ou não dessas leis (ver do autor
Estado de Direito e Constituição, cit.). Certamente a intenção do constituinte ao referir-se a Estado Democrático
de Direito foi a de mostrar que ele não pretende que o Brasil seja regido por leis formais que violem eventualmente os princípios fundamentais da democracia.
Deve-se observar que, na doutrina espanhola, Estado Democrático de Direito foi expressão cunhada para significar “socialismo na democracia”, como se vê da obra de Elias Diaz (Estado de derecho y sociedad democrática).
Entretanto, esta orientação socialista a ser impressa ao Estado de Direito não foi sequer objeto de cogitação
nos debates da Constituinte. Não há dúvida alguma que a expressão “Estado Democrático de Direito” não foi
votada pelo constituinte brasileiro com a intenção de designar o socialismo na Constituição e na democracia
pátria” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, 3 ed. São Paulo: Saraiva., 2000, p. 18, v. 1).
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Constituição e Pós-Modernidade: Desconstrução do Estado Social
autoridades ocupantes de cargos elevados na hierarquia oficial, como o caso dos
anões do Congresso e do “mensalão” – com quarenta autoridades do governo
e pessoas vinculadas sendo processadas criminalmente perante o Supremo
Tribunal Federal; alternância de poder; superinflação; e crise econômica após
a implantação do real, decorrente das crises asiáticas e russa; tudo isso sendo
enfrentado com o arsenal jurídico hospedado pela Constituição de 1988.
Vale dizer, mesmo nos momentos de crises políticas e econômicas, as
instituições funcionaram bem e a democracia está solidamente enraizada no
País, a meu ver, por força da qualidade do texto de 1988 8.
Atribuo esse resultado, em primeiro lugar, ao fato de o texto ter sido
elaborado para adoção de um regime parlamentar de governo. Apenas na
undécima hora, já em plenário, e nos últimos meses de discussão, adotouse o sistema presidencial, sem tempo de alterar muitos dos dispositivos que
deram força considerável ao Congresso e ao Poder Judiciário, este podendo
exercer um controle concentrado de constitucionalidade tanto sobre os atos do
Executivo, como sobre aqueles do Parlamento. Fortaleceu-se, também, o papel
do Tribunal de Contas, com o que o equilíbrio de poderes se tornou a espinha
dorsal da lei suprema, como determina, aliás, o artigo 2º da Constituição assim
redigido: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si,
o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”9.
O quadro pode ser delineado da forma seguinte: um Legislativo forte,
8 Escrevi: “Apesar de prenhe de defeitos, seu mérito maior, todavia, em face da absoluta liberdade que os constituintes tiveram para a discussão de um modelo de lei fundamental, foi o de ter criado um sistema em que
o equilíbrio de Poderes é inequívoco. Sem equilíbrio de poderes não há segurança jurídica. Em nenhum texto
anterior (1824, 1831, 1934, 1937, 1946 e 1967, com suas emendas) tal realidade revelou-se de maneira tão
nítida como no de 1988. Nem mesmo Estados Unidos, pátria do presidencialismo, segue a teoria da tripartição
dos poderes de Montesquieu, - que a própria França não hospeda - com separação tão nítida como no Brasil,
nada obstante o instituto das medidas provisórias ofertar impressão diversa” (Revista Memorial da América
Latina n.35, p.13, 2009).
9 Pinto Ferreira assim o comenta: “Poder é a capacidade de impor a vontade própria nas relações sociais, mesmo
contra a vontade alheia, como ensina Max Weber. É a capacidade de conseguir os resultados pretendidos, di-lo
Bertrand Russell . O Estado possui a capacidade de decisão, é um poder político-social, soberano, decidindo em
última instância.
No Estado de Direito opera-se uma divisão de poderes e também de funções. O poder político é uno, indivisível,
indelegável, porém se desdobra em diversas funções, para a realização de suas tarefas.
Os Poderes da União na República Federativa do Brasil são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Poder Legislativo é o que elabora, modifica, altera e emenda as leis, como ensina Watson. O referido Poder edita normas gerais, abstratas, impessoais, a que se dá genericamente o nome de leis, que regulam o comportamento das pessoas. O processo legislativo é rico e variado, comportando diversas espécies de atos normativos,
várias espécies normativas.
O Poder Executivo administra a coisa pública e resolve casos concretos de acordo com as leis, não se limita
à simples execução delas. Ele também exerce funções de governo, com atribuições políticas. Por isso Carré
de Malberg chega a falar de uma quarta função, a função política ou de governo, apontando o exercício do
direito de graça ou o início do processo legislativo. Seria a nota distintiva da autoridade considerada como
política, a arte do governo” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, 3 ed. São Paulo: Saraiva., 2000,
p. 37-38, v. 1).
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Ivens Gandra da Silva Martins
como nos sistemas parlamentares; um Judiciário autêntico, com força maior que
nas Constituições anteriores; um Tribunal de Contas, com poderes maiores para
responsabilizar e fiscalizar o Poder; e um Executivo que não ficou fragilizado,
pois lhe foram outorgados dois instrumentos legislativos: um, de urgência
(medida provisória) sujeito à aprovação posterior do congresso em 120 dias,
com risco de caducar o ato normativo; e outro, mediante autorização prévia do
Legislativo (lei delegada). Desta forma, o texto constitucional conformando um
sistema parlamentar do governo foi transformado, à última hora, em modelo
presidencialista, sendo que os instrumentos nele previstos deram aquele
equilíbrio de poderes fundamental para uma democracia, pois, como dizia
Montesquieu, na sua formulação tripartida de Poder, é necessário que o poder
controle o poder, porque o homem não é confiável no poder10.
Estou convencido de que o sistema brasileiro funciona bem e, apesar
das 73 emendas – que o tornam, no dizer de muitos críticos, uma Constituição
provisória, cujos exemplares deveriam ser vendidos em bancas de jornais, dada
a sua periodicidade e transitoriedade –, o certo é que nunca tivemos tanta
estabilidade institucional como agora. Os direitos e garantias individuais são
respeitados; a imprensa é absolutamente livre, não sofrendo nem pressões, nem
entraves do governo – como ocorre nos países em que o Poder Executivo dita
as regras, por ser mais forte que os outros poderes; o debate político é amplo e
aberto, em igualdade de condições; além de a liberdade sindical e a econômica
serem absolutas.
Grande parte do sucesso internacional do Brasil, que vem de todos os
governos pós-Constituição, deveu-se a este equilíbrio de poderes. Collor pode
abrir o mercado brasileiro, antes fechado, propiciando a Itamar e Fernando
Henrique a instituição do Plano Real, que fez praticamente desaparecer a inflação.
Com isso, a estabilidade internacional seguida da estabilidade econômica
consolidou, definitivamente, o regime de governo e o sistema constitucional. O
mérito do Plano Real baseou-se na eliminação do déficit público, em 1993, na
acumulação de reservas cambiais e na adoção de duas moedas por seis meses
(a URV, moeda de conta, e a moeda de pagamento). Obrigou-se, nesses meses,
todos os índices corretivos da inflação a desembocarem na URV. No momento
em que mais de 95% dos contratos eram indexados pela URV, a transformação
da moeda de conta em moeda de pagamento eliminou a inflação. Com déficit
10 Escrevi: “Montesquieu intuiu a importância de tal independência, na medida em que a natureza humana é
fraca e a fraqueza a serviço da força do poder provoca, decorrencialmente, a prática de uma justiça injusta.
A necessidade, portanto, de o poder controlar o poder, fê-lo separar o exercício da feitura das leis (Poder
Legislativo), de execução das normas (Poder Executivo) e de interpretação oficial do Direito e aplicação da
Justiça (Poder Judiciário). Ao dizer: “Acontece sempre que todos os homens, quando têm poder, se inclinam a
seu abuso, até encontrar limites” e ao concluir que é necessário seria que o “poder constitua um freio para o
poder” sintetizou sua praticidade a partir da descrença na natureza humana” (Curso Modelo Político Brasileiro,
vol. IV, A separação de poderes no Brasil, ed. Programa Nacional de Desburocratização/Inst. dos Advs. de São
Paulo, Brasília-DF, 1985, p. 28).
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 7-17, jul./dez. 2011
Constituição e Pós-Modernidade: Desconstrução do Estado Social
público zerado, não houve pressão dos gastos públicos para emissão de moeda
e, com reservas cambiais mais elevadas, eliminou-se o risco da especulação
cambial, pois o governo manteve força interventiva no mercado.
Em outras palavras, a estabilidade econômica foi obtida em 1994 e até
hoje mantida 11.
Tal estabilidade foi testada em 1997/1998, com as crises asiática e russa,
assim como com o período de estagnação econômica mundial (1998 a 2002),
em que o governo Fernando Henrique manteve o controle das instituições e da
economia com fundamentos tão sólidos, que o Fundo Monetário Internacional
(FMI) garantiu, no período turbulento das eleições de 2002, um empréstimo
ponte de 30 bilhões de dólares, para ser utilizado, se preciso fosse 12. Mais do
que isto: entregou o governo Fernando Henrique ao Presidente Lula o país com
participação de 2,92% no PIB mundial, superior, portanto, à participação que o
governo Lula entregou a sua sucessora, que, segundo o FMI, seria de 2,90%.
O episódio sobre o empréstimo ponte é interessante, pois, à época, o
11 Nada obstante, tais méritos da lei suprema (equilíbrio de poderes), não se pode esquecer o alerta de Roberto
Campos, apoiando, de resto, posição minha e de Celso Bastos, ao dizer: “Num lúcido artigo em O Estado de
São Paulo, de 17 de fevereiro, Ives Gandra Martins, jurista eminente e espírito refinado como poucos, sob o
título “Inflação legislativa” toca num ponto que liberais curtidos, como eu, vemos com preocupação cada vez
mais funda. O Estado vem crescendo e ficando cada vez mais abrangente e sufocante. Até mesmo sem querer,
como no caso de Fernando Henrique, que é uma pessoa amena, de vocação para o diálogo, sem personalidade
autoritária, e certamente sem o menor traço totalitário. Também a maioria dos meus colegas do Congresso,
pelo menos na intenção, preferem os valores do convívio democrático. Entretanto, nunca se legislou tanto, tão
apressadamente, nunca se invadiu tanto os direitos individuais, nunca ficou tão irremediavelmente confusa
a noção do respeito às garantias jurídicas, nunca instituições antes respeitadas se tornaram instrumento de
ativismo ideológico, demagogia e estrelismo. O Presidente legisla por Medida Provisória. Os ativistas (e, pior
ainda, os bem-intencionados) tentam passar leis sobre tudo, acabando até com a moderada garantia representada pela autorização do juiz, acabando com a privacidade e com a defesa contra a eventual opressão da burocracia a serviço das autoridades de plantão a pretexto de diminuir a sonegação fiscal, a lavagem de dinheiro
para a droga, e por aí afora” (“A prepotência do Estado” no livro O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998,
p. 29).
12 Miguel Reale denomina o modelo atual de social-liberalismo. Tal posição Oscar Corrêa e eu já tínhamos também defendido. Escreveu: “Além disso, como bem observa Ives Gandra da Silva Martins, em seu livro Uma
Visão do Mundo Contemporâneo, que acaba de ser traduzido na Rússia, se, até agora, a globalização trouxe
benefícios ao mercado internacional, também tem sido causa de mutações e até mesmo de subversões, com
a reintrodução do capitalismo selvagem sob a forma de investimentos de caráter puramente especulativo. Daí
o temor não de um Estado evanescente, mas, ao contrário, “de um Estado mais forte e menos respeitador dos
direitos individuais, para enfrentar uma crise social inédita no passado, para a qual nem a Economia nem o
Direito atuais têm terapêutica adequada”.
De mais a mais, o Estado não deve se reduzir à economia, cabendo-lhe atuar, com igual força e dedicação, em
prol dos valores existenciais da educação, da saúde, do meio ambiente e da cultura, de preferência mediante
processos ou planos em parceria com a iniciativa privada, comprovadamente mais criadora.
Quem não vê, espelhada nessas exigências plurivalentes, a ideologia social-liberal, que, — por conferir atenção
especial à questão social, sem prejuízo das prerrogativas da liberdade individual — é a que melhor pode abrir
campo para as medidas reclamadas pela crise sem precedentes que, curiosamente, nos atinge na virada de um
novo milênio?
Se pensarmos na gigantesca dívida social brasileira, ainda mais nos convenceremos da necessidade de uma
teoria política que componha em justo equilíbrio os valores da liberdade e da igualdade, como se dá com o
liberalismo social” (O renascimento do liberalismo no livro O Estado do futuro, Ed. Pioneira/Acad. Int. de Direito
e Economia, São Paulo, 1998, p. 43/44).
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 7-17, jul./dez. 2011
13
Ivens Gandra da Silva Martins
candidato Lula, nos primeiros meses de sua campanha, atacara duramente o
FMI e as instituições financeiras, o que levou à turbulência do mercado, quando
assumiu a liderança das pesquisas para as eleições presidenciais do ano. O
Presidente Fernando Henrique, todavia, tendo acalmado os investidores e
empresários com o apoio do FMI, chamou os quatro candidatos que concorriam
ao pleito presidencial de então, e mostrou que, se quisessem receber um país
em ordem, teriam não só que respeitar o acordo feito com o FMI, como deixar
de atacar o sistema financeiro.
O candidato Lula mudou o seu discurso em 180 graus e teve o bom senso,
quando eleito, de indicar um respeitado nome para o Banco Central. Com isso,
ao adotar a mesma política econômica de Fernando Henrique, tranquilizou de
vez o mercado e, aproveitando, com habilidade, o “boom” econômico mundial
de 2003 a 2008, projetou o Brasil, sobretudo, com suas políticas anticíclicas,
superando a crise de 2009/10.
Aliás, todos os países emergentes estruturados aproveitaram-se da crise
para substituir o que perderam no mercado externo, pelo alargamento do
mercado interno, algo que os países desenvolvidos não puderam fazer, porque
seus mercados internos já estavam, praticamente, nos limites da expansão 13.
Para concluir: tais considerações, eu as faço no intuito de mostrar que
a Constituição Brasileira permitiu o equilíbrio de poderes, o que propiciou
uma estabilidade econômica com sólidos fundamentos além de assegurar a
governança e alternância de poder sem quaisquer riscos para a estabilidade
democrática.
Faço, todavia, um parêntesis, que me tem preocupado. O Supremo Tribunal
Federal, nos últimos tempos, passou a ser legislador positivo, nos casos de
cassação de governadores, fidelidade partidária, união de pares do mesmo sexo,
caso Battisti, algo que pode colocar em risco o equilíbrio por mim descrito.
13 Escrevemos: “Os emergentes desenvolvidos, de rigor, são os BRICs, acompanhados da Argentina e do México,
que sofreram na medida do seu maior ou menor envolvimento com os países desenvolvidos. O Brasil, por
exemplo, dependia do mercado exterior em 25%, enquanto o México dependia em mais de 50%. À evidência, o
impacto negativo no México foi superior ao do Brasil. No Brasil, os estímulos ao mercado interno compensaram
em parte a perda do mercado externo, que se deveu a três factores: falta de crédito, redução do preço das
mercadorias e contração do mercado exportador em resultado da crise internacional. A recuperação, todavia,
já aparenta estar em curso em meados de 2009, ajudada por uma política de estímulos fiscais para sectores
sensíveis da economia (automóveis, electrodomésticos e outros de grande impacto no consumo) capaz de
manter um nível de produção elevado. Por exemplo, venderam-se mais automóveis no ano de 2009 que em
2008, no mercado interno.
Acresce que o Brasil tem uma banca sólida, decorrente de dois factores. O primeiro é ter atrasado a sua entrada
na euforia global de criação e investimento nos títulos que acabaram por estar na origem da crise financeira.
Em segundo lugar, por mais de metade dos seus activos financeiros serem títulos públicos. É comum afirmar-se,
no Brasil, que a banca brasileira vale o que vale o governo. A manutenção de juros elevados, por outro lado,
não provocou a fuga de recursos que outros países emergentes conheceram, demonstrando que a economia
brasileira é a mais sólida que a da maior parte dos países emergentes” (A crise financeira internacional, autores:
Fernando Alexandre, Ives Gandra Martins, João Sousa Andrade, Paulo Rabello de Castro e Pedro Bação, Coimbra University Press, Portugal, 2009, p. 166/167/168).
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 7-17, jul./dez. 2011
Constituição e Pós-Modernidade: Desconstrução do Estado Social
Segue abaixo cópia do artigo que escrevi para O Estado de São Paulo, em
que expus meus receios (*).
Espero, todavia, que seja temporária tal invasão de competência,
inadmissível numa democracia.
(*) LIÇÃO DO CONSELHO CONSTITUCIONAL DA FRANÇA (O Estado de São
Paulo – 17/05/2011)
Idêntica questão proposta ao Supremo Tribunal Federal sobre a união
entre pessoas do mesmo sexo foi colocada ao Conselho Constitucional da
França, que, naquele país, faz as vezes de Corte Constitucional.
Diversos países europeus, como a Alemanha, Itália, Portugal têm suas
Cortes Constitucionais, à semelhança da França, não havendo no Brasil Tribunais
exclusivamente dedicados a dirimir questões constitucionais em tese, embora
o Pretório Excelso exerça simultaneamente a função de Tribunal Supremo em
controle difuso, a partir de questões pontuais de direito constitucional, e o
controle concentrado, em que determina, “erga omnes”, a interpretação de
dispositivo constitucional.
Pela Lei Maior brasileira, a Suprema Corte é a “guardiã da Constituição” – e
não uma “Constituinte derivada” -, como o é também o Conselho Constitucional
francês: apenas protetor da Lei Suprema.
Ora, em idêntica questão houve por bem o Conselho Constitucional
declarar que a união entre dois homens e duas mulheres é diferente da união
entre um homem e uma mulher, esta capaz de gerar filhos. De rigor, a diferença
é também biológica pois, na união entre pessoas de sexos opostos, a relação
se faz com a utilização natural de sua constituição física preparada para o ato
matrimonial e capaz de dar continuidade a espécie. Trata-se, à evidência, de
relação diferente daquelas das pessoas do mesmo sexo, incapazes, no seu
contato físico, porque biologicamente desprovidas da complementariedade
biológica, de criar descendentes.
A Corte Constitucional da França, em 27/01/2011, ao examinar a proposta
de equiparação da união homossexual à união natural de um homem e uma
mulher, declarou: “que o princípio segundo o qual o matrimônio é a união de
um homem e de uma mulher, fez com que o legislador, no exercício de sua
competência, que lhe atribui o artigo 34 da Constituição, considerasse que a
diferença de situação entre os casais do mesmo sexo e os casais compostos de
um homem e uma mulher pode justificar uma diferença de tratamento quanto
às regras do direito de família”, entendendo, por consequência, que: “não cabe
ao Conselho Constitucional substituir, por sua apreciação, aquela de legislador
para esta diferente situação”. Entendendo que só o Poder Legislativo poderia
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 7-17, jul./dez. 2011
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Ivens Gandra da Silva Martins
fazer a equiparação, impossível por um Tribunal Judicial, considerou que “as
disposições contestadas não são contrárias a qualquer direito ou liberdade que
a Constituição garante”.
Sem entrar no mérito de ser ou não natural a relação diferente entre um
homem e uma mulher daquela entre pessoas do mesmo sexo, quero realçar um
ponto que me parece relevante e que não tem sido destacado pela imprensa,
preocupada em aplaudir a “coragem” do Poder Judiciário de legislar no lugar
do “Congresso Nacional”, que teria se omitido em “aprovar” os projetos sobre
a questão aqui tratada.
A questão que me preocupa é este ativismo judicial, que leva a permitir
que um Tribunal eleito por uma pessoa só substitua o Congresso Nacional, eleito
por 130 milhões de brasileiros, sob a alegação de que além de Poder Judiciário,
é também Poder Legislativo, sempre que considerar que o Legislativo deixou de
cumprir as suas funções. Uma democracia em que a tripartição de poderes não se
faça nítida, deixando de caber ao Legislativo legislar, ao Executivo executar e ao
Judiciário julgar, corre o risco de se tornar ditadura, se o Judiciário, dilacerando
a Constituição, se atribua poder de invadir as funções de outro.
E, no caso do Brasil, nitidamente o constituinte não deu ao Judiciário
tal função, pois nas “ações diretas de inconstitucionalidade por omissão”
IMPÕE AO JUDICIÁRIO, APESAR DE DECLARAR A INÉRCIA CONSTITUCIONAL DO
CONGRESSO, intimá-lo, sem prazo e sem sanção para produzir a norma.
Ora, no caso em questão, a Suprema Corte incinerou o § 2º do art. 103,
ao colocar sob sua égide um tipo de união não previsto na Constituição, como
se poder legislativo fosse, deixando de ser “guardião” do texto supremo para se
transformar em “Constituinte derivado”.
Se o Congresso Nacional tivesse coragem poderia anular tal decisão,
baseado no artigo 49, inciso XI da CF, que lhe permite sustar qualquer invasão
de seus poderes por outro poder, contando, inclusive, com a garantia das Forças
Armadas (art. 142 ‘caput’) para garantir-se nas funções usurpadas, se solicitar
esse auxílio.
Num país em que os poderes, todavia, são de mais em mais “politicamente
corretos”, atendendo ao clamor da imprensa - que não representa
necessariamente o clamor do povo -, nem o Congresso terá coragem de sustar a
invasão de seus poderes pelo Supremo Tribunal Federal, nem o Supremo deixará,
nesta sua nova visão de que é o principal poder da República, de legislar e definir
as ações do Executivo, sob a alegação que oferta uma interpretação “conforme
a Constituição.” A meu ver, desconforme, no caso concreto, pois contraria os
fundamentos que embasam a família (pais e filhos), como entidade familiar.
É uma pena que a lição da Corte Constitucional francesa de respeito às
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 7-17, jul./dez. 2011
Constituição e Pós-Modernidade: Desconstrução do Estado Social
funções de cada poder, sirva para um país, cuja Constituição e civilização – há
de se reconhecer – estão há anos luz adiante da nossa, mas não encontre eco
entre nós.
Concluo estas breves considerações de velho professor de direito, mais
idoso do que todos os magistrados na ativa no Brasil, inclusive da Suprema
Corte, lembrando que, quando os judeus foram governados por juízes, o povo
pediu a Deus que lhes desse um rei, porque não suportavam mais serem pelos
juízes tutelados (O livro dos Juízes). E Deus lhes concedeu um rei.
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 7-17, jul./dez. 2011
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Jorge Calvário dos Santos
Aspectos não Convencionais para a Defesa
Jorge Calvario dos Santos*
Resumo
O artigo pretende analisar o que seja política e estratégia no contexto de defesa
nacional. São apresentadas considerações básicas sobre política e estratégia de
defesa, uma breve apreciação sobre o mundo atual para em seguida apresentar
algumas reflexões sobre política de defesa e estratégia de defesa. O artigo considera
a cultura, o modo de ser da sociedade e, por isso, ela mesma deve ter a prioridade
para ser defendida. Sem população, nada há para defender, ainda que esta necessite
de território para viver e sobreviver.
Palavras-chave: Cultura. Política. Estratégia. Defesa.
Abstract
The present paper try to analyze what should be politics, strategy in the national
defense context. Basic considerations are presented about politics and strategy
of defense, a short appreciation about the actual world for present some reflexes
about defense politics and strategy. The paper develop itself considering culture,
as the way to be of the society and because it itself, is that should have the highest
priority to be defended. Without population nothing has to be defended, even it
needs the territory to live and survive.
Key words: Culture. Politics. Strategy. Defense.
Ao analisarmos a Estratégia Nacional de Defesa observamos que ela possui
as seguintes e básicas características: estrutura-se sobre três eixos: reorganização
das forças armadas, reestruturação da indústria de defesa, composição dos efetivos
das forças armadas; apresenta como capacitações operacionais o monitoramento,
controle, mobilidade e presença; e define o que considera três setores estratégicos:
cibernético, espacial, nuclear.
Suas diretrizes abrangem: ciência e tecnologia; capacidade de monitoramento
aéreo, marítimo e terrestre; fortalecimento dos setores espacial, cibernético e
nuclear, indústria nacional e autonomia tecnológica de defesa.
Como medidas de implementação e ações estratégicas define: ciência e
______________
* Doutor em ciência de engenharia pela COPPE/UFRJ, Coronel Aviador, professor da pós-graduação
em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense e Assessor no Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra.
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 18-28, jul./dez. 2011
Aspectos não Convencionais para a Defesa
tecnologia, recursos humanos, indústria de material de defesa, operações de paz.
Identifica-se que a Estratégia Nacional de Defesa define sua preocupação com
a defesa territorial e a preparação para essa defesa. Seria essa a única preocupação
que deveria ter uma estratégia de defesa nacional?
Ao longo do tempo, muitas ordens se sucederam: a Ordem de Westfalia, a de
Utrecht, a de Viena, a de Versalhes, a de Yalta e a de Postdam, e, atualmente, o que
conhecemos como a Nova Ordem Mundial.
As sociedades vieram se organizando, evoluindo, até a consolidação dos
Estados como nós conhecemos hoje. Com a Ordem de Westfália, em 1648, foram
determinadas as bases da constituição do Estado nacional moderno que se efetivou
após a Revolução Francesa. A partir daí, os Estados nacionais modernos, com uma
estrutura jurídica formalizada, com todas as instituições multilaterais, compõem a
comunidade internacional. Paralelamente, muitas crises e conflitos têm se sucedido
ao longo da história, e isso é o fator primordial para que se aumente a segurança
dos Estados, daí a necessidade de garantir e de preservar a soberania das nações.
A história da humanidade tem sido caracterizada por uma sucessão de crises.
A crise generalizada que atinge o mundo neste início de século não é um fato insólito
ou singular. As transformações decorrentes atingem fortemente as estruturas política,
econômica e cultural dos Estados Nacionais.
A diferença entre a crise atual e as que a precederam está no seu
caráter massivo, na sua abrangência e simultaneidade universal. Seus agentes
desestabilizadores atuam recorrentemente na totalidade do espaço geográfico,
deixando ver o agravamento das contradições do sistema em meio à difusa
movimentação horizontal e vertical de inúmeras variáveis, causando, não raro,
perplexidades e sofrimento.
A crise que vive o mundo atual não tem razão meramente econômica. Ela
envolve toda a civilização e, por consequência, o destino da humanidade. Não é
um fenômeno simples nem uniforme. Não atinge um país ou uma região. Tem
abrangência mundial, atingindo a todas as nações de diferentes formas. Cada país
tem diferentes dificuldades e diferentes formas da crise.
A raiz da crise não é econômica, nem monetária. Decorre do
equacionamento de formas de ordem política e social, que são resultado de um
longo e lento processo de evolução histórica, para as novas forças econômicas
que têm transformado o mundo, durante cerca de quatrocentos anos. O caminho
para superar a crise depende de que, considerando o contexto internacional,
cada país, encontre sua opção, em função de sua estrutura sociológica e
histórica. (DAWSON, 1933, p. 34-36)
Por isso se torna necessária a preparação da nação para contingências.
Entretanto, pensar sobre a segurança de uma nação requer a identificação e uma
profunda análise das vulnerabilidades. Apenas depois da análise das vulnerabilidades
é possível pensar a defesa nacional.
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 18-28, jul./dez. 2011
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Jorge Calvário dos Santos
É preciso que haja a identificação das vulnerabilidades dos países frente
aos quais se prepara a defesa. Não se deve descartar as próprias vulnerabilidades.
Essas podem ser medidas pelo nível cultural da nação, pelo nível de preservação da
cultura, pelo nível de desenvolvimento científico e tecnológico, pela coesão social e
pelo nível de compromisso da sociedade com o Estado e com a nação. É necessário
que as vulnerabilidades sejam identificadas para que seja possível constituir uma
estrutura de defesa adequada ao modo de ser de uma sociedade. Não adianta
importar uma política, uma estratégia ou uma estrutura de defesa. Elas têm que
atender às necessidades de defesa da sociedade. Devem atender às necessidades
da nação.
Qualquer contribuição para a formação de uma base para formulação de
uma estratégia de superação e preservação dos interesses nacionais depende da
identificação das vulnerabilidades a que está submetido o país e do compromisso
dos nacionais com o futuro.
As nações, submetidas às decisões de seus governantes que, por vezes, são
ditadas por interesses ou pressões e impostas à sociedade, ainda que, pelo temor e
mesmo indesejadas, podem ser levadas ao conflito.
A partir do século XVII, a ciência abraçou a humanidade que iniciou a
construção de um mundo de visão mecanicista e materialista, com uma ordem
material fechada, condicionada pelas leis da mecânica e da matemática. Nesse
mundo, o ser humano era considerado como sendo de ordem mecânica, negandose-lhe valores morais ou forças espirituais. A partir de então, foi construída essa
civilização fantástica em que vivemos. Passou a haver a predominância da ciência
sobre os métodos empíricos. Por via de consequência, a humanidade se defrontou
com um mundo predominantemente material, onde o ser humano passa a ser
considerado secundário, negando, muitas vezes, seus valores morais e espirituais.
O progresso científico e material construído pela humanidade nos trouxe
benefícios fantásticos, possibilitando uma vida jamais conhecida. Entretanto, esse
progresso trouxe certa degenerescência na massa de indivíduos e pobreza, bem
como um apartheid entre países desenvolvidos e não desenvolvidos. Uma divisão
de mundos entre pobres e ricos, entre os que sabem e os que não sabem, e isso tem
sido usado em benefícios de poucos e em detrimento de muitos.
O progresso material num mundo utilitarista e de diferentes interesses
nacionais construiu uma crise, que ameaça não apenas a prosperidade, mas a própria
existência da civilização. Nesse contexto, o sistema capitalista de produção tem
levado à conquista militar e à exploração das classes e nacionalidades submetidas.
Vivemos a febre do progresso sem limites. Não percebemos que a ideia
de progresso tem sido a fé predominante há mais de três séculos, e de tal forma
integrada ao espírito do homem moderno que a simples tentativa de criticá-la se
torna um ato de negação da construção de um mundo melhor. É quase impossível
a isenção quanto a criticas sobre aquilo de que somos parte.
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Aspectos não Convencionais para a Defesa
Uma instabilidade prolongada no sistema econômico materialista tem
grandes probabilidades de levar o mundo ao colapso. Surge um problema profundo
que é a unidade moral e espiritual da cultura, da qual depende a existência externa.
Isso porque o mundo é composto por culturas ligadas por vínculos materiais que
têm perdido seus valores, suas tradições e suas características ímpares.
Vivemos em uma época em que os benefícios ou malefícios da ciência são
utilizados, em função de interesses efêmeros, como o controle social, o controle
da sociedade, e também, são muito usadas para fazer a guerra. De acordo com
Walter Benjamim, a civilização se faz bárbara, pois ela é feita sobre documentos da
barbárie. Isso faz com que o ser humano seja considerado como um ser de segunda
ordem.
Utilizamos recursos, que são promovidos pela razão humana, desenvolvendo
ciência, que, por sua vez, é utilizada contra a própria humanidade. Isso é um ato
bárbaro que devia ter ficado lá atrás e não ficou; isso tem transformado o ser
humano, de certa forma, em um ser de segunda ordem, e a sociedade é, então,
submetida a uma padronização, e a uma uniformização do pensamento; a dimensão
espiritual tem sido cerceada; o ser humano perde as características espirituais, e
enfatizam-se as características materiais.
Nessa nova sociedade, a padronização, a uniformização do pensamento, a
dimensão espiritual, característica maior do ser humano, a criação de um presente
continuado, a ausência de referenciais e de valores elevados são estimulados e
seguidos. Assim, como em Roma, em nossos dias, a população é motivada para a
diversão e para o hedonismo: o pão e circo dos dias modernos.
Já nos disse Rabelais que ciência sem consciência é a ruína da alma. Então, é
necessário alertar para o uso e o destino a ser dado à ciência. Não é negá-la, mas
alertar para que venha a ser utilizada em benefício da sociedade, da humanidade,
em função do bem comum.
Vivemos, hoje, num ambiente mundial, em processo de projeção cultural,
sujeito a fortes pressões, sejam elas militares, econômicas, políticas, etc. Mas, até
quando será possível aguentar?
Não existem propostas válidas para que se tenha o equilíbrio no relacionamento
entre os países. Nada disso funciona, porque o que prevalece são os interesses das
nações e, principalmente, os daquelas que são mais fortes. Por isso, a humanidade
atravessa uma das mais difíceis e sofrida fase da sua história, como consequência
da ciência sem controle e da secularização que envolveu toda a humanidade. E, por
séculos, essa secularização tem nos controlado e dominado. Esquecemos o outro
lado e não temos mais condições de lembrar o passado. A secularização tem nos
tirado a qualidade humana, daí vivermos sempre em conflitos.
Nesse mundo, nós constatamos que está se formando um cinturão de riqueza
e de poder, onde existe uma monopolização do processo decisório e do saber. O
monopólio do conhecimento nos leva a aumentar a disparidade, a distância entre
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Jorge Calvário dos Santos
os pobres e os ricos e entre países industrializados e não industrializados.
O mundo moderno, desenvolvido em função da ciência, construiu uma
civilização poderosa. Por outro lado, também trouxe condições para sofrimento e
possibilidades de aniquilamento da humanidade. Graças à tecnologia disponível
não mais é necessário um Estado para combater e aniquilar outro Estado. Pequenos
grupos com poucos meios e tecnologia adequada têm condições de causar sérios
prejuízos aos Estados nacionais, ainda que poderosos. Tudo isso é consequência de
características culturais, o que nos lembra Dawson, quando afirma que a “Civilização
não é o resultado de um processo natural de evolução; é essencialmente devida ao
domínio da natureza pela mente humana. Isso é uma ordem artificial, governada
pela inteligência humana e sua vontade” (DAWSON, 1998, p. xiii).
O estudo e análise das possíveis ameaças que uma nação pode vir a sofrer são
fundamentais para que as medidas adequadas à segurança possam ser eficientes.
Para a proteção da sociedade, os sistemas de segurança e de defesa da nação passam
a ter nova estrutura, novos meios e novas doutrinas, como forma de preparação
para enfrentar os novos desafios. Entretanto, ainda que necessário, não é suficiente.
Atualmente, o inimigo, necessariamente, não mais se apresenta. O inimigo externo
pode ter sua manifestação interna, e o inimigo interno pode ter sua manifestação
externa. Como forma de proteção, é necessário que a unidade nacional (cultura)
seja preservada do processo de interferência cultural a que venha ser submetida.
Dia a dia, continuadamente, a sociedade é objeto de processo sutil, atrativo, mas
que tem o propósito de transformar o seu modo de pensar, logo o modo de ser,
modificando sua identidade nacional (cultura). Assim, a vulnerabilidade passa a ser
total, pois, de modo geral, passa a defender valores e ideias que atingem o coração
da nação.
A humanidade atravessa uma das mais difíceis e sofridas fases da sua história,
consequência do uso da ciência sem controle, da secularização que a envolveu, da
cultura hegemônica em seu ápice, no momento que se projeta sobre o mundo,
econômica e militarmente, como forma de impor sua cultura.
A época em que vivemos foi denominada por Morin e Kern (1995) de
“Idade de Ferro Planetária”. Denominação que nos obriga a pensar, pois, desde há
algum tempo, constatamos um processo de ocidentalização do mundo que traz as
seguintes consequências:
• a uniformização das idéias, as quais, de modo geral, provêm, quase todas,
da mesma raiz, da mesma matriz de pensamento;
• a globalização pelas guerras, em sua maioria por razões culturais, mas
que muitas vezes atendem a interesses pelo controle dos recursos naturais não
renováveis e pelo acesso irrestrito a eles;
• a esperança da humanidade cedeu lugar à desesperança, pois se perdeu a
utopia, não mais existe referencial fixo que nos guie a um objetivo futuro;
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Aspectos não Convencionais para a Defesa
• a globalização econômica que, padronizando o mundo, viabiliza o processo
de interferência cultural que objetiva a subordinação das culturas mais frágeis;
• a virtualização do mundo que retira da pauta a realidade dos fatos,
considerando sua versão como o próprio fato; e
• a consolidação do pensamento e consciência única, que tornariam a
humanidade semelhante à protagonizada no Admirável Mundo Novo, de Aldous
Huxley.
Por tudo isso, podemos constatar que o mundo moderno possui as
seguintes e principais características: globalizador, liberalizante, integracionista,
intervencionista, coator, protecionista, policialesco, centralizador, tecnocentrista,
instável, inseguro, sem esperança, virtual.
Nesse ambiente em que os indivíduos são interditados da sua nobre condição
de pensar, é criado um sobre-pensamento que de fato é um “sub-pensamento”,
porque “lhes faltam algumas propriedades de reflexão e de consciência, que são
próprias e inerentes ao espírito e ao cérebro humano” (MORIN, 1996).
Os países mais desenvolvidos levam vantagem sobre os demais por possuírem
melhores condições de garantir suas soberanias; por terem mais conhecimento;
maior nível de evolução técnica e científica; mais armamentos; melhor e mais
dinâmica economia e um maior, mais eficiente sistema produtivo; e uma cultura
evoluída. Todos esses fatores fazem com que esses países tenham vantagem relativa
em detrimento das nações que não têm todo esse potencial. Isso cria uma divisão
entre países ricos e países pobres. Divisão entre países que detêm conhecimento e
os que não o possuem, o que aumenta a insegurança entre as nações.
Quanto mais poderosa for uma nação, maiores são suas exigências. Pelo poder
que desfrutam, procuram transformar o mundo, levando seu modelo aos demais
países. Naturalmente, as reações surgem e sua insegurança passa a crescer.
A distância já não protege, pois os conflitos se tornaram universais, e o poder
continua aumentando. Na busca para minimizar a insegurança e melhor se defender,
perante os interesses dos demais países, cada um constrói sua própria defesa.
A orientação para a defesa é importante para todos, para os que têm e para
os que não têm poder. Daí a necessidade de uma política e uma estratégia de
defesa. O que é uma política de defesa? O que é uma estratégia de defesa? O que
deve ser atendido ao se estabelecer a política e uma estratégia de defesa? Quais
os objetivos da política de defesa? O que ela deve identificar? O que devemos
fazer para essa política de defesa? Quais os objetivos da estratégia de defesa?
O que é a estratégia? Qual a relação da estratégia com a política de defesa? Isso
são questões a serem destacadas e não escondidas, e que possibilitam analisar,
teoricamente, o que deva compor uma estrutura de política de defesa e de uma
estratégia de defesa.
A defesa nacional é uma atribuição do Estado, e uma obrigação do governo,
mas é algo que pertence a toda sociedade. Os princípios fundamentais de uma
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Jorge Calvário dos Santos
política de defesa devem ser parte constituinte das políticas que existem no governo,
e são várias as políticas adotadas pelos Estados. Mas todas as políticas devem ter
como eixo central os princípios de uma política de defesa, e todas elas devem ser
articuladas e coerentes entre si, porque a defesa não é só a defesa militar. Essa é
uma questão central.
Por conta da razão, o homem pactua para sobreviver, sendo que o mais
importante desses pactos é o Estado. Por isso, o Estado tem a obrigação de defender
a sociedade, o povo e o território a que serve.
As Forças Armadas são instituições essenciais de uma estrutura de defesa
territorial. Apenas sua existência proporciona condições de vida e manutenção da
vida nacional. Uma estrutura de defesa militar deve estar alinhada com os anseios
da sociedade, com as necessidades do Estado. O descompasso entre as Forças
Armadas e a sociedade leva a uma ruptura que compromete a estabilidade nacional,
a estrutura do Estado e o aparelho do governo.
É importante que a política e a estratégia de defesa nacional sejam formuladas
por pessoas capazes, que compreendam essa questão. Devem ser políticas e
estratégias que privilegiem uma relação civil e militar conjuntamente, sem que haja
privilégios quer para a visão civil, quer para a visão militar de mundo. Deve resultar
de análises profundas e pretéritas, realizadas por militares e civis capazes dessa
formulação. Uma política de defesa não deve ser, explicitamente, privilégio da
estrutura militar, mas sim de toda a nação, de toda a sociedade, através dos setores
civis e militares, e de todas as dimensões da nação. Tal como a política de defesa, a
estratégia deve ser formulada em função do entendimento entre civis e militares.
Não deve predominar a visão do militar, como também não deve predominar a
visão do civil.
Uma defesa não se refere apenas à defesa do território. A defesa territorial
é uma parte. Por isso é necessário que a defesa seja formulada por corpo civil e
militar, com pessoas capacitadas a manterem esses diálogos.
Por isso, a formulação de uma política e de uma estratégia de defesa deve
também considerar: o ambiente nacional, o ambiente internacional, o nível de
desenvolvimento científico e tecnológico, as ideologias envolvidas de uma parte e
de outra parte na própria nação, e dos outros atores que possam estar envolvidos.
Ela deve refletir, levantar e identificar as características do cenário
internacional, o momento presente, para que esteja coerente com tudo que for
importante para o Estado no presente e no futuro, em termos do processo de
defesa da nação.
Quer queira, quer não, nós, diariamente, estamos submetidos ao processo
de interferência cultural que tem por objetivo modificar o modo de ser e o modo
de pensar da sociedade que afeta a cultura, a identidade e a unidade nacional. É
muito importante, que tenhamos consciência disso porque somos uma sociedade
ainda em processo de consolidação. Mas é fundamental preservar a unidade
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Aspectos não Convencionais para a Defesa
cultural para que possamos nos constituir como nação; para que, com visão única
de mundo, caminhemos na mesma direção. Logo, é preciso que a nação se proteja
das interferências culturais.
Um país deve ser visto como tendo duas dimensões. Basicamente, uma
dimensão política e uma dimensão cultura. A dimensão política no sentido de
organizar seu espaço juridicamente: as suas fronteiras e as suas instituições. E
a dimensão cultural, mais ou menos homogênea, não é delimitada, é difusa,
e transcende a fronteira política dos países mais evoluídos. Em um país não
desenvolvido, a dimensão cultural fica circunscrita à fronteira política. Como
é a cultura a responsável pela unidade e identidade nacional, percebe-se sua
fundamental importância para a soberania e sobrevivência da nação.
Outra questão importante é a questão da ideologia, que deve ser considerada
ao se procurar estabelecer uma política de defesa, ainda que essa política se diga
ideologicamente isenta. A ideologia é importante porque está sempre presente, e
talvez, por isso, haja uma adequada reformulação na política de defesa. A ideologia
pressupõe a estrutura, e o seu estudo como a ciência das idéias, originalmente.
Ao tratar da Estratégia Nacional de Defesa, deve-se considerar que a
complexidade atrai a estratégia. A estratégia permite avançar no incerto e no
aleatório. Ela pode caminhar no confronto e no espaço das incertezas. Somente
ela caminha no espaço da incerteza, pois pode variar conforme a necessidade, o
que a difere do programa. A estratégia precisa ter conhecimento do outro - o outro
oponente ou qualquer outro ator. Esse outro pode significar o real ou o abstrato,
daí a estratégia não pode se esquecer da existência do outro; saber o que o outro
pensa, e saber o que o outro pensa que nós pensamos. Ela é dialética e, jamais, será
uma coletânea de certezas ao longo do processo.
A estratégia define-se por oposição ao programa. O programa tem um
caminho único, ele não pode parar, ele pode ser rompido, ele tem que funcionar
por suas características no ambiente de pouca desordem, e de pouca incerteza. Ele
não funciona num ambiente aleatório, e de incertezas.
Já a estratégia não. Ela pode modificar seu roteiro, ao contrário do programa.
O programa só altera o seu roteiro quando é previamente programado, mas
não em qualquer situação. Por isso, a estratégia possui fórmulas, até mesmo,
para sua própria invenção. A estratégia prepara e aplica o poder para atingir os
objetivos desejados. Ela é uma relação entre meios e objetivos; uma relação que
tem consequências predominantes no tempo, não no espaço e no caminho. Na
tática, essas consequências são diferentes. É uma relação de meios e objetivos com
desdobramentos predominantes no espaço.
Falar em estratégia significa também falar em cultura, porque estratégia é
vinculada à cultura, a cultura daquela sociedade a que o estrategista pertence.
A estratégia deve convergir para o interesse nacional, de modo que sejam
alcançados os objetivos determinados pela política, que devem ser resultado de
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Jorge Calvário dos Santos
profundas análises entre civis e militares capacitados e dedicados a este tipo de
atividade. Há a necessidade, na formulação da estratégia, de um entendimento do
contexto em que se vive - num contexto nacional -, porque os atores são difusos,
e há muita incerteza, por isso é preciso que esses aspectos sejam, devidamente,
entendidos e analisados.
A defesa de uma nação requer o eficiente poder militar. O poder militar
consciente e disciplinado, em condições de ser preponderante e eficaz no caso de
um conflito militar. Mas também, preparado, eficiente e disciplinado, em condições
de ser coadjuvante e observador, no caso de conflito não militar.
A existência de outra força, que não seja a militar legalmente constituída,
precisa de muita cautela e cuidado, porque ela tende a ser uma guarda pretoriana
a serviço dos detentores de poder. Instrumentos legítimos de uso da força num
país democrático, livre e soberano, somente as Forças Armadas Nacionais. Não
cabe outro tipo de força, porque ela se tornaria um instrumento de poder, e estaria
comprometida com as possibilidades de um sistema despótico que possa surgir e
isso não cabe nos dias atuais.
Dois outros aspectos relevantes que precisam ser considerados: primeiro, a
cultura vem mudando padrões de coesão, integração e desintegração no mundo e,
segundo, a política mundial vem sendo configurada em linhas culturais.
A economia é um instrumento do processo de interferência cultural, na
formação de pensamentos, e nas mudanças de comportamentos, hábitos e
costumes. Somos vítimas permanentes disso e acabamos assumindo outro modo
de ser, o que nos torna vulneráveis. É preciso, então, que a política de defesa e a
estratégia de defesa considerem a cultura e suas características.
A política é feita internamente a uma cultura, sempre foi assim e vai continuar
sendo. O relacionamento entre Estados faz-se entre culturas essencialmente. É
entre culturas que as políticas se realizam: a cultura saxônica, a cultura latina e
assim por diante. É na cultura que a política funciona, por isso, o modo de ser e
de ver o mundo é diferente para cada cultura. É preciso que esses aspectos sejam
considerados na formulação da política de defesa.
Cultura significa identidade e unidade nacionais. Precisamos, portanto,
preservar e garantir suas bases fundamentais para que as estratégias de defesa sejam
eficientes, porque não adianta existir uma política de defesa se a população está
desagregada, sem perspectiva, sem unidade e sem compromisso com o seu futuro.
Daí a importância de garantir a defesa da cultura, seus valores, tradições e de
preservá-la de todas as interferências externas, especialmente, em relação ao processo
de defesa cultural. Defender e preservar a unidade, a identidade, o modo de ser da
sociedade nacional significa a preservação da cultura nacional. Isso requer atenção
redobrada, pois estamos sendo submetidos a diferentes formas de interferência,
diariamente e há décadas, e nem sequer discutimos, nem queremos saber da
existência.
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Aspectos não Convencionais para a Defesa
Em um de seus livros, Samuel Huntington diz que, por mais de dez anos,
os americanos têm discutido a identidade nacional. No Brasil, sequer a pensamos.
Para que se estabeleça qualquer política de defesa, qualquer estratégia de defesa é
preciso que sejam considerados todos esses aspectos mencionados. Antes de tudo
que nos conheçamos.
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O Estado Brasileiro e a Questão Amazônica
O Estado Brasileiro e a Questão Amazônica:
Por uma Análise das Tensões no Processo
de Construção da Soberania Nacional
Fernando da Silva Rodrigues*
Resumo
O contexto histórico e político no Brasil foi delineado pela construção do Estado
territorial, pela delimitação das fronteiras e pela construção da nacionalidade
brasileira. Será neste contexto que o General Cândido Mariano da Silva Rondon,
engenheiro por formação, mas militar por profissão, chefiará a Comissão de Inspeção
das Fronteiras, no sertão centro-oeste e norte do Brasil, no período de 1927 a 1930,
procurando integrar o meio rural ao meio urbano, através do processo civilizador
dos grupos indígenas, e pelas demarcações das fronteiras.
Palavras-chave: Estado. Território. Política.
Abstract
The historical and political context in Brazil was marked by the building of the
national territory and the establishment of the State. It was also characterized by
the setting of the borders and the construction of the Brazilian nationality. It will be
in this context that General Cândido Mariano da Silva Rondon, engineer and military,
will direct the Commission of Inspection of Borders in the backwoods mid-west and
north of Brazil, from 1927 to 1930, trying to integrate between the backwoods and
the civilized part of the country through the process of civilizing the native groups
and the setting of the borders.
Keywords: State. Territory. Politics.
1 Introdução
Esta pesquisa sobre militares e política se insere no contexto histórico
brasileiro que foi delineado pela construção da soberania nacional, pela delimitação
das fronteiras e pela construção da nacionalidade.
Destacamos a construção da soberania nacional a partir de três elementos
estudados: num primeiro momento, as fortalezas construídas em pontos estratégicos
______________
* Doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor Adjunto do
Programa de Pós-Graduação em História (Mestrado) da Universidade Severino Sombra, Professor
do UNIABEU Centro Universitário e Pesquisador do PROAPE/UNIABEU.
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Fernando da Silva Rodrigues
das fronteiras internacionais brasileiras, estabelecidas como plano de defesa do
território; num segundo momento as cidades que se projetaram a partir das fortalezas e
de colônias agrícolas, ou militares; e num terceiro momento, a presença do Exército na
região, identificados, neste caso, principalmente pelas ações da comissão de inspeção
de fronteiras, no período de 1927 a 1930, e outras expedições pela região, como foi o
caso do estudo de um anteprojeto para a defesa da Bacia Amazônica, de 1929.
Nesse contexto, os militares foram tratados como um dos principais agentes
políticos desse processo, por meio de suas missões civilizadoras no sertão Centro-Oeste
e Norte do Brasil, promovendo a integração do interior ao litoral seja pela construção
de linhas telegráficas, símbolo do progresso e da modernidade, seja pela demarcação
das fronteiras entre 1927 e 1930, como fechamento de um ciclo em que o Brasil vinha
de longa data tentando estabelecer um domínio sobre o território antes pertencente
à Espanha, incorporado ao espaço geográfico português e, posteriormente, passou a
pertencer ao Estado brasileiro, com sua independência política, em 1822.
2 As Fortalezas e as cidades na ocupação do sertão Centro-Oeste e
Norte brasileiro
Historicamente, desde os primeiros momentos do século XVI, os navegadores
portugueses, espanhóis, franceses e, mais tarde, ingleses e holandeses disputavam
o controle político e comercial das terras ao longo do Rio Amazonas, amparados
por seus estados, que percebiam possibilidades de expansão de seus domínios na
conquista da região.
Com referência aos portugueses, a primeira concessão de terras na região
data de 1553, cabendo sua posse ao fidalgo lusitano Luiz de Melo da Silva, conforme
determinação de D. João III; no entanto, na tentativa de atingir essa concessão, em
1554, veio a falecer após um naufrágio na entrada do rio Amazonas.
O Estado monárquico francês foi o último a se lançar na política de doação de
terras da Guiana, que visava a um imenso território até o litoral maranhense. Em 1616,
vencidos os estrangeiros no Maranhão e um pouco mais aliviados da pressão externa,
voltaram-se os portugueses, agora com mais atenção, para a região Norte do Amazonas.
Aproveitando o momento político do domínio filipino com a União Ibérica (1580-1640),
Alexandre de Moura, que lutou contra os franceses, enviou Francisco Caldeira Castelo
Branco ao Pará, onde ergueu, em janeiro de 1616, o fortim do Presépio, núcleo inicial da
cidade de Belém e de onde se irradiaria a força de defesa portuguesa na Amazônia.
Os resultados foram rápidos, pois, já em 1617, o Capitão Pedro Teixeira1
1
Pela orla marítima, fixaram-se os portugueses, durante o domínio espanhol, até 1640, da baía de Paranaguá ao
rio Oiapoque que, em 1580, apenas estavam contidos entre Cananéia e Itamaracá. Efetivou-se, portanto, dentro
do período de sessenta anos de união das coroas peninsulares, não só a conquista do Norte, da Paraíba ao GrãoPará, como a de quase toda a Amazônia, de Cametá, no Tocantins, ao rio Napo, em território da atual República
do Equador, com a célebre entrada fluvial do capitão Pedro Teixiera, em 1637/1639. (VIANA 1948:54)
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O Estado Brasileiro e a Questão Amazônica
apresaria uma embarcação holandesa. Em 1623, foram destruídas as fortificações
erguidas por ingleses e holandeses em Tocuju, Nassau, Mariocaí e Mataru. Em 1647,
sete anos após o processo da Restauração política portuguesa, Sebastião Lucena
de Azevedo, governador do Maranhão e do Grão-Pará, promoveu uma expedição
contra os últimos redutos estrangeiros existentes na região, destroçando as forças
batavo-britânicas que os guarneciam sob o comando geral de Beldregues, flibusteiro
flamengo.
Consolidando essas medidas, promoveu-se o reerguimento da antiga fortaleza
de Cumaú, obra concluída em 1688, sob orientação do Capitão-Mor Coelho de
Carvalho, que deu à reconstruída praça de guerra a denominação de Santo Antônio
de Macapá.
Por volta de 1738, apesar das continuadas ameaças estrangeiras nas
fronteiras estabelecidas, a fortaleza de Santo Antônio de Macapá apresentava-se
em estado de ruína. D. João V, alertado pelo Capitão-General João de A. Castelo
Branco expediu uma Carta Régia, datada de nove de fevereiro de 1740, ordenando
a construção de nova fortaleza. Em 1758, foram erguidas a vila e a povoação ao
redor do antigo forte, recebendo o nome de São José de Macapá. O forte foi
reerguido em 1759, pelo governador e Capitão-General Bernardo de Melo e
Castro, que, ainda preocupado com a vulnerabilidade de Macapá e com poucos
recursos financeiros, incumbiu, em março de 1761, o Capitão Geraldo de Gronsfeld
de planejar e executar a construção de um fortim de faxina que substituísse a
velha fortaleza em ruínas. Em julho, a modesta fortificação estava concluída.
O seu substituto, o Capitão-General Fernando da Costa de Ataíde Teive,
visitando Macapá, acompanhado do engenheiro Henrique Antônio Galúcio, teve
oportunidade de constatar a precariedade das fortificações ali existentes. Ordenou
ao engenheiro Galúcio que planejasse a construção de novo reduto fortificado. A 29
de julho de 1764, foi lançada a pedra fundamental da fortaleza de São José de Macapá.
Apesar do grande interesse do Capitão-General, as obras não se processaram com
a rapidez desejada devido às endemias, à precariedade de transportes, de material
e de mão de obra. A solução para a falta desta última foi, em parte, encontrada na
utilização do índio escravizado e no emprego de degredados.
Em outubro de 1769, faleceu o engenheiro Galúcio, vitimado pelas febres,
sendo então encarregado de continuar as obras o Capitão Henrique João Wilkens.
No entanto, ocorreu nova mudança relacionada à direção dos trabalhos, que foram
dados a Gaspar João Geraldo Gronsfeld, o mesmo que levantou, em 1761, o reduto
provisório. Já em 1771, as obras internas estavam concluídas.
Após a inauguração do forte, em 19 de março de 1782, a Vila de Macapá
recebeu as prerrogativas de importante Centro Militar, ponto estratégico na
planejada conquista e colonização da Costa do Cabo Norte, e Amazonas adentro,
até a data da independência do Brasil. Com a ausência de recursos decorrentes
da aplicação da política colonial da metrópole portuguesa, inaugurou-se um longo
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período de decadência para a localidade e para a região.
Decorrem os anos da primeira metade do século XIX, já na monarquia, quando,
em seis de setembro de 1856, foi baixada a Lei nº. 281, que deu foro de cidade à
então Vila de Macapá. A cidade e o município prosseguiram atravessando os anos,
sem receberem as atenções ou os efeitos de qualquer programa administrativo, até
a década de 1940, quando foram incluídos na forma de território federal.
Já na região junto ao rio Araguari, em 1840, foi criada a Colônia Dom Pedro II,
transferida, em 1907, para o rio Oiapoque com o nome de Colônia Militar do Oiapoque,
em Ponta dos Índios, mais tarde transferida novamente para a Vila Santo Antônio,
em frente à vila francesa de Santo Jorge. O município de Oiapoque está localizado na
parte mais setentrional do território brasileiro, no atual estado do Amapá, fazendo
fronteira com a Guiana Francesa ao longo do rio Oiapoque, um dos principais acidentes
geográficos junto com as montanhas do Tumucumaque ao sul, que, depois de fazerem
a divisa do Brasil com as Guianas, penetram no território nacional.
A ineficiência da Colônia Militar do Oiapoque, deixando a região despovoada
e desguarnecida, fora um dos motivos para a fundação da Colônia Agrícola de
Clevelândia, em 1922. Ainda na primeira metade do ano de 1921 os primeiros
colonos chegaram, sendo distribuídos ao longo da margem brasileira do rio
Oiapoque. Durante os anos de 1922 e 1924, esse local foi escolhido para receber os
presos políticos revolucionários do Movimento Tenentista. As levas de prisioneiros
chegaram ao presídio político de Clevelândia a bordo do navio Cuiabá2, e muitos
outros após os combates de Cantaduvas no Paraná, praticamente encerrando o
fluxo migratório compulsório para a região. O projeto da Colônia Agrícola acabou
entrando em decadência, em virtude da epidemia de disenteria bacilar que vitimava
muitos presos e colonos, e coincidiu com o fim da migração de presos políticos.
Em julho de 1927, quando a Comissão de Inspeção de Fronteiras esteve em
Clevelândia, havia um forte temor do General Rondon de que se abandonasse o
projeto de ocupação e desenvolvimento nessa área, persistindo ele na necessidade
de ocupação das fronteiras para garantir a soberania territorial no Norte do Brasil.
No entanto, com a Revolução de 1930 e a anistia dos presos políticos, a Colônia
Agrícola fracassou. A criação da Fordilândia, por Henry Ford, no Vale dos Tapajós,
acabou cooperando para o insucesso da Colônia de Clevelândia.
Já no Estado do Amazonas encontramos o Forte de São Joaquim, que
começou a ser construído na confluência dos rios Itacutu e Iraricoeira, em 1775,
pelo engenheiro militar F. Sturm, por ordem do governador e Capitão-General da
Província. Esse forte foi terminado em 1778, um ano após a celebração do Tratado
de Santo Idelfonso. Já em 14 de novembro de 1752, por Provisão Régia, D. José I, rei
de Portugal, determinou ao governador e Capitão-General do Grão-Pará e Maranhão
Francisco Xavier de Mendonça Furtado que construísse um forte nas margens do
2
AARÃO, Daniel. De Volta à Clevelândia. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22/3/2003
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O Estado Brasileiro e a Questão Amazônica
rio Branco. Essa ordem antecedeu em três anos a Carta Régia de cinco de março de
1755, do mesmo soberano, criando a Capitania de São José do Rio Negro, origem
do atual estado do Amazonas. No governo de Joaquim Tinoco Valente (1763-1779),
apesar de o forte não estar ainda concluído, no início desempenhara importante
papel na expulsão das invasões espanholas no vale do rio Branco e, principalmente,
na proteção dos colonos portugueses nessa região. Em 1786, serviu de base de
operações para o Engenheiro Militar Manuel da Gama Lobo D’Almada, encarregado
de levantar, mapear e organizar a defesa do vale do Rio Branco. Os militares que
o guarneceram tiveram a incumbência de penetrar, reconhecer, explorar e definir
para os portugueses esse território na região de Roraima, na forma de interesses
políticos como o estabelecimento da ordem, da proteção por meio das fortificações
e da garantia das novas fronteiras que se fixavam – legado deixado posteriormente
para os brasileiros após sua independência política e da qual sobraram apenas ruínas.
Os portugueses, com o objetivo de proteger o sertão amazônico dos interesses
internacionais, estabeleceram diversos fortes construídos estrategicamente nos
principais acessos fluviais do rio Amazonas: Forte São Joaquim, no vale do Rio
Branco; Forte São José de Marabitanas, no Cucui; Forte São Gabriel, no vale do rio
Negro; Forte de Tabatinga, no vale do rio Solimões e Forte Príncipe da Beira, no vale
do rio Guaporé.
Era uma defesa em forma de arco, complementado pelos fortes instalados
no estuário do rio Amazonas: Forte do Castelo, em Belém; Fortaleza de Macapá, no
Amapá; e Forte de Gurupá. Houve outros que aprofundaram essa defesa, instalados
nas entradas dos principais afluentes do Amazonas e nas de seu estuário: Fortaleza
São João da Barra, em Manaus; Fortes de Santarém dos Tapajós, dos Óbidos, do
Desterro e do Toere.
O Forte de São Joaquim foi desativado por volta de 1900, e parte de suas
muralhas demolidas para servirem aos alicerces e às paredes do edifício sede e da
caixa d’água do Posto de Proteção aos Índios, instalados na Fazenda São Marcos, na
foz do Tacatu com o Uraricoeira, próximo à fronteira com a Venezuela, em frente ao
local onde esteve instalada essa antiga sentinela do extremo norte do Brasil.
O próximo forte tem sua localização estratégica, pois permitia o controle por
via fluvial a todas as cidades do Baixo Amazonas, assim como à região do Rio Xingu.
O Forte de Santo Antônio de Gurupá, situado na foz do rio Amazonas, no estado
do Pará atual, tem sua origem na feitoria holandesa em um lugar chamado de
Mariocaú, de onde os holandeses foram expulsos pelos portugueses, em 1623. O
Capitão-Mor do Grão-Pará Bento Maciel Parente teria dado a ideia de fortificar esse
ponto, a fim de garantir a ocupação portuguesa na ponta da terra firme avançada
sobre o rio Amazonas, conhecida e visitada por estrangeiros traficantes, numa
região estratégica no controle da passagem do grande curso de água. Em 1623, os
portugueses iniciaram as obras de construção de fortificação, um reduto de taipa de
pilão, protegido por paliçadas de madeira pelo lado de terra, onde foram colocadas
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peças de artilharia com sua guarnição, recebendo a denominação de Forte de Santo
Antônio Gurupá e se constituindo numa espécie de base de operações para expulsar
estrangeiros invasores do rio Amazonas.
Em 1685, o Capitão-General Gomes Freire de Andrade, na condição de
governador, apresentou fundamentada exposição do péssimo estado de conservação
do forte, e da necessidade de sua imediata reconstrução, no entanto, esta não foi
nem reconhecida nem providenciada pela Metrópole.
No retorno ao governo e à função de Capitão-General do Estado do
Maranhão e Grão-Pará, Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, em 1690,
expôs novamente a necessidade da reconstrução do forte, dessa vez ordenada
por Portugal. O antigo dera lugar a um novo, cujas muralhas de pedras tiradas do
barranco marginal ao rio Amazonas correspondem à parte frontal da Vila Gurupá.
Essa reconstrução transformou o antigo forte, dando-lhe maiores dimensões e a
estrutura de pedra e cal com muralhas alçadas sobre o solo de terra firme, onde
ficou edificado, apesar de a obra não possuir perfeição nem durabilidade. Já em
1727, as fortificações no Grão-Pará estavam novamente arruinadas, permanecendo
em estado de total abandono.
Em 24 de setembro de 1751, assumiu o cargo de governador e CapitãoGeneral do Estado do Maranhão e Grão-Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
irmão do Conde de Oeiras, depois Marquês de Pombal. Durante a administração de
Mendonça Furtado foram secularizadas as missões religiosas da bacia amazônica,
pela lei de sete de junho de 1755, e, pelo Diretório de Três de maio de 1757, foi
feita a organização do novo regime dos índios, na qual Gurupá ficou sendo um
dos centros mais importantes de população indígena, estando subordinadas a ele
diversas outras aldeias.
Ao comandante da fortaleza cabia a cobrança dos dízimos da farinha, recebidos
em espécie. Ele também tinha a obrigação de fiscalizar a produção das roças e reunir
em Gurupá toda a farinha arrecadada, a fim de enviá-la para Belém, atendendo
à fortaleza de Macapá nos suprimentos que lhe fossem necessários. Além disso,
tinha a obrigação de fiscalizar as embarcações do tráfego amazônico, porquanto,
continuava Gurupá a ser posto de registro obrigatório para tudo e para todos. Em
1761, após serem examinadas por uma comissão de inspeção do Sargento-Mor,
engenheiro Gaspar João Gerhaldo de Gronfeld, constatou-se que as ruínas em nada
poderiam ser reaproveitadas, devendo apenas ser feito o serviço de demolição
de suas paredes para que fosse possível proceder ao projeto de remodelação. A
morosidade dos trabalhos na nova construção era decorrente da dificuldade na
obtenção dos materiais necessários e na carência de índios para o serviço de tirar e
carregar pedras, e para o de terraplanagem. Em agosto de 1762, o então governador
e Capitão-General Manoel Bernardo de Mello e Castro determinou a colocação das
peças de Artilharia disponíveis em posição provisória, até a conclusão das obras de
fortificação, por achar a fortaleza sem nenhum poder de ação.
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O Estado Brasileiro e a Questão Amazônica
No governo de Athayde Teive, o desinteresse pela reedificação da fortaleza de
Gurupá culminou coma saída do engenheiro Sambucetti, em fins de 1765, ficando
abandonadas tanto as obras da fortaleza como as do hospício. Depois de 1773,
não se tocou mais nessa construção, nem para conservá-la nem para remodelar ou
alterar sua configuração geométrica. Abandonada pelos governos coloniais como
fortificação, em proveito das obras da fortaleza de Macapá, a fortaleza passou a
sofrer a ação do tempo. No governo imperial, Gurupá perdeu seu valor de posto
fiscal, em consequência da nova organização dada ao fisco geral e ao provincial.
De grande importância estratégica, o Forte de Óbidos (Santo Antonio de
Pauxis) inicialmente foi edificado de taipa de pilão, em fins do século XVII, pelo
Capitão Francisco da Mota Falcão, em posição alterosa, sobre uma orla da Serra do
Peru, treze quilômetros e duzentos metros abaixo do rio Trombetas, no ponto de
menor extensão entre as margens do rio onde o Amazonas diminui de largura até
chegar a 1.890 metros – seria a área mais vulnerável numa invasão estrangeira.
A primitiva fortaleza subsistiu em bom estado até a metade do século
XIX, quando começou a desabar a cortina do lado do rio e, em 1854, estava em
completa ruína. Foi reconstruída pelo Major Marcos Pereira de Salles, que lhe deu
a forma semicircular guarnecida por dez canhões, reparada posteriormente. Foi-lhe
acrescida uma plataforma corrida, de cantaria de Lisboa. A Serra da Escama era
o ponto onde se encontrava uma Bateria de Artilharia (Bateria Gurjão), ponto de
defesa estratégico, conforme se verifica na planta do canal de Óbidos, mostrando
o alcance máximo dos canhões e os setores batidos pelos fogos em conjunto
e em separado; levantamento feito pelo 1º Tenente Arnaldo de Souza Paes de
Andrade, em agosto de 1909. A Bateria Gurjão era composta por quatro canhões
Armstrong de calibre 152 mm, cujo alcance era de 8.200 metros com pólvora EXE
e 9.600 metros com pólvora Cordite. No entanto, o Forte só servia para a defesa
do lado leste do sul, ou do lado inferior do rio, porque, do oeste ou do lado de
cima havia um monte de terra ocultando e embaraçando os fogos naquela direção,
necessitando-se de obras complementares para executar completamente o serviço,
ou seja, defender o território brasileiro, evitando a subida de vapores inimigos.
Na fronteira com a Bolívia está a cidade de Brasiléia, situada na zona
fisiográfica do vale do Alto Purus e Acre. Limita-se ao Norte com o município de
Sena Madureira; a Leste, com o município de Xapuri; ao Sul, com a Bolívia; e, a
Oeste, com o Peru. Os seus principais afluentes são: o rio Acre, afluente do Purus,
que serve de limite entre o Brasil, a Bolívia e o Peru; e o rio Xapuri, afluente do rio
Acre.
Historicamente, habitavam na região, até 1896, as tribos Catianas e
Maintenecas. A primeira penetração feita por grupos civilizados foi em 1892, quando
chegaram imigrantes nordestinos fugindo da adversidade climática de sua região e
encontraram na extração da borracha nova chance de sobrevivência. Estes já vinham
povoando as terras inexploradas da Amazônia desde a metade do século XIX.
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Fernando da Silva Rodrigues
Os primeiros imigrantes apossavam-se das terras até então inexploradas. E
assim, pouco a pouco, constituíam vários seringais: Carmem, Nazaré, Belmonte,
Quixadá, Baturité, São João, Triunfo, São Francisco, Piauí, Bahia etc. designações
que mostravam a origem nordestina desses homens. Quando da explosão da
Revolta Acreana, em 1902, as terras do município eram habitadas por brasileiros
na sua totalidade. Os seringais de Carmen e Bahia foram os locais de operações dos
combates entre as tropas de Plácido de Castro e tropas bolivianas.
Com a celebração do Tratado de Petrópolis, em 17 de Novembro de 1903, as
terras do município de Brasiléia, como todo o Acre, passaram a integrar o território
nacional. No entanto, compreende-se melhor a ocupação da região a partir do
conhecimento do fator geográfico, do povoamento e da economia do território
acreano, que faz fronteira com a Bolívia.
A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) vinha sendo
estudada desde meados do século XIX, a fim de atender à exploração da borracha
no vale do rio Madeira, e de carrear para influência brasileira a produção da zona
limítrofe da Bolívia.
Durante muito tempo, os rios eram a única via de transporte nessa região.
A necessidade de encurtamento das distâncias fez a Bolívia levantar a hipótese de
substituição dos caminhos tradicionais pelas costas do Atlântico. A descoberta de
ouro, em Mato Grosso, indicava uma ligação mais eficiente com o Pará.
O rio Madeira passou a concentrar as atenções nos planejamentos, mas o
grande número de saltos e corredeiras tornava impraticável a navegação em certos
trechos. Iniciaram-se, desde cedo, alguns estudos sobre a construção de uma
ferrovia, no entanto, sem resultados satisfatórios.
No final do século XIX, o governo boliviano contratou o coronel George
Church, engenheiro norte-americano que organizou a Public Works Construction
Co, para iniciar, em 1871, os trabalhos em Santo Antônio do Alto Rio Madeira, em
direção a Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia, mas logo foram interrompidos
por divergências entre acionistas ingleses. Em 1872, outra tentativa, agora com a
firma Dorsey & Caldwell; mas, posteriormente, houve nova desistência em virtude
do surto epidêmico de que foram vítimas os trabalhadores.
Em 1882, o Brasil assumiu a responsabilidade pela construção da Estrada de
Ferro Madeira-Mamoré, e o Imperador D. Pedro II enviou para Santo Antônio a
Comissão Morsing. A malária liquidou seus três engenheiros em menos de um ano:
Índio do Brasil, Tomás Cerqueira e Leitão da Cunha.
A obra da EFMM reiniciou-se em 1907, imposta pelo tratado de Petrópolis,
como indenização à Bolívia pela perda do território do Acre. Os planos, até então,
previam a cabeça de linha em Santo Antônio, por ser o único marco com vestígio de
civilização em toda a floresta em derredor. A estrada de ferro deveria estar toda em
território mato-grossense, uma vez que a convenção de limites entre Mato Grosso
e Amazonas assim estabelecia.
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O Estado Brasileiro e a Questão Amazônica
A construção ficou a cargo de Percival Farqhuar, cabeça do sindicato que
dominava várias ferrovias no Brasil e no mundo. Após Farqhuar realizar algumas
manobras, conseguiu a concessão. Trouxe barbadianos, granadinos, franceses,
espanhóis, portugueses, gregos, italianos e indianos. A eles se juntaram brasileiros e
bolivianos, no acelerado ritmo de construção da ferrovia, que, para trás, ia deixando
diversas baixas humanas. Alguns dos mortos eram sepultados em Candelária, outros
apenas recebiam como última morada uma cova rasa à margem dos trilhos.
Uma população ondulante, instável, de aventureiros aliciados para um
trabalho que oferecia todas as possibilidades de aventura. O dia terminava junto
com o ritmo dos trabalhos; à noite, o som da algazarra, da música, dos gritos e
das discussões era pronunciado em diversas línguas, em locais como botequins,
casas de jogos e de prostituição. As brigas e crimes eram frequentes, o beribéri
e o impaludismo abriam claros na população trabalhadora, até que o médico
sanitarista Oswaldo Cruz visitou o local e estabeleceu normas para tornar a terra
mais habitável. Nesse ambiente, cercado pelas necessidades dos prazeres, após o
ritmo alucinado dos trabalhos – pelos índios selvagens da região e pelas doenças
tropicais que dizimavam milhares de pessoas –, vão sendo construídas diversas
igrejas, talvez como fator de manutenção da ordem e do estabelecimento de um
processo civilizador para essas áreas inóspitas, visto que o Estado tinha dificuldades
de se estabelecer naquele local.
Em primeiro de agosto de 1912, na cidade de Guajará-Mirim, era cravado o
prego de ouro, símbolo da finalização da ferrovia, e, com isso, o sindicato Farqhuar
conseguiu um contrato de arrendamento por sessenta anos, adquirindo, também,
vastos seringais no Brasil e na Bolívia.
Em 1915, era aberto o Canal do Panamá, e a Bolívia encontrava um caminho
mais curto até os centros de consumo de seus produtos. A EFMM passa a atravessar
várias crises. Em 1929, a quebra da Bolsa de Nova York e a crise financeira mundial
repercutem profundamente na Madeira-Mamoré. Finalmente, em 1931, o Governo
Federal decretou a encampação da estrada.
Percebemos, nesse caso, que o Estado brasileiro buscava ampliar sua ação
intervencionista sobre o território nacional e sua população pela construção de
uma ferrovia. De fato, durante esse período houve um aumento na presença e
nas atividades do poder público central aliado ao capital privado. A construção da
ferrovia implicava um novo posicionamento diante da modernidade, das novidades
materiais e, simbolicamente, representava a chegada da civilização pelo progresso
tecnológico, que vinha combater o atraso do sertão. Era a marcha do processo
civilizador através dos trilhos de trem, que vai, aos poucos, integrando o litoral ao
sertão com a presença do Estado.
No estado de Rondônia, situa-se o Real Forte Príncipe da Beira, que foi
mandado construir, entre 1776 e 1783, pelo Capitão-General da Capitania do Mato
Grosso Luiz de Albuquerque Mello Pereira e Cáceres, no reinado de Dom José I,
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e teve o apoio do Ajudante de Infantaria em exercício, engenheiro Domingos
Sambuceti, responsável pela construção.
As ideias pertinentes à construção do Forte apareceram durante o transcurso
de uma viagem feita por Luís de Albuquerque, ao final de 1773, quando descera
o rio Guaporé, desempenhando missões determinadas por ordens régias. Entre
fevereiro e março do ano seguinte, pesquisou o curso do rio Madeira à procura
do lugar ideal a fim de instalar uma nova fortaleza. Para tal, persistia a intenção da
segurança da fronteira que o projeto no rio viria a reforçar, como forma de bloqueio
da via fluvial interior contra as investidas dos espanhóis do Peru. No decurso
da exploração no Madeira, Luís de Albuquerque encontrara-se com Domingos
Sambucetti, prosseguindo os reconhecimentos e trabalhos de campo na área do
Forte da Conceição.
Em dezembro de 1774, Luís de Albuquerque enfrentou censura do Ministro
Pombal às empreitadas administrativas a que se lançara. Os custos ultrapassavam
os recursos da Capitania. Em 20 de junho de 1776, os alicerces do novo forte
receberam a pedra fundamental, com a presença de Luís de Albuquerque.
Os quatro baluartes da fortaleza foram consagrados com nomes de santos
católicos: Nossa Senhora da Conceição, Santa Bárbara, Santo Antonio de Pádua e
Santo André Avelino.
O Forte foi assentado sobre um espigão do contraforte dos Parecis,
identificado por Rondon como Serra do Ouro Fino, que se desenvolve paralelo
ao rio Guaporé. Terreno sólido na margem direita, próximo à barranca do rio, o
local alçava-se sobre as paragens vizinhas, a cavaleiro da linha das enchentes.
A montante da velha fortificação em curto lance de mil braças constituía-se no
movimento mais elevado que se encontrava do Mamoré ao Baures. No trecho,
alargava-se o rio além dos setecentos metros. O leito pedregoso embaraçava a
navegação. Pouco distante, na margem espanhola, adensavam-se missões e
povoados do Baures e do Itonamas.
O projeto do engenheiro Sambucetti previa uma fortificação abaluartada
no sistema Vauban, preconizado à época no mesmo estilo em que se levantara a
Fortaleza de São José do Macapá, um decênio antes. O seu traçado arquitetônico
guardava os preceitos da moderna engenharia militar da época, com flanqueamento
das linhas, cruzamento de fogos e obras singulares de reforço. Consistia em uma
estrutura quadrangular de soberbas dimensões, com cento e dezenove metros e
meio de lado. Circundava-a um fosso de profundidade igual a dois metros e largura
variável, que podia alcançar os trinta metros. Baluartes alçavam-se nos ângulos,
ligando-se dois a dois por cortinas. Cada baluarte possuía guarita e quatorze
canhoneiras; três por flanco, e quatro por face.
À frente, um traçado de fortificação com ponte levadiça; ao alto do sólido
frontão, lavor com as armas portuguesas. Adentrava-se por um saguão abobado que
flanqueava a praça com os quartéis da guarnição, as dependências de governador, a
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capela, o paiol subterrâneo, os armazéns, as prisões e a cisterna. Da praça, o acesso
subterrâneo à mata da serra, como rota alternativa de fuga.
O nome do forte foi escolhido por Luís de Albuquerque em honra ao
primogênito da futura Rainha D. Maria, que ostentava o título de Príncipe da Beira.
A homenagem teria facilitado a aceitação oficial do empreendimento.
Em 1777, promulgou-se um novo tratado em que o limite ocidental retornava
ao Guaporé. Interditavam-se, também, obras de fortificação na faixa lindeira. Luís
de Albuquerque manteve o projeto do Forte Príncipe da Beira. O caráter preliminar
do acordo, e as oscilações da conduta diplomática das Coroas nos últimos decênios,
induziam-no a prosseguir a edificação ainda em suas bases. O Forte ocupava posição
proeminente no quadro da política de fronteira, cuja intenção era defender os
interesses portugueses. Com relação às tarefas executadas, a fortificação absorveu
contingente significativo de trabalhadores de todos os níveis ao longo do tempo.
A empresa demandava grande mobilização para conseguir alcançar o sucesso.
Não bastava a liderança operacional do engenheiro Sambucetti. O fornecimento de
material estava sujeito aos mais diversos percalços, nem sempre correspondia ao
ritmo de trabalho que impusera às obras. A pedra canga, arenito comum na região,
constituía-se no material básico. Levantava-se a edificação em alvenaria de pedra,
com revestimento de cantaria.
No entanto, em 1780, Domingos Sambucetti faleceu de malária, sem concluir
o Forte. Sua obra fora completada por Ricardo Franco de Almeida Serra, oficial
engenheiro que comandou o Forte Coimbra, no Mato Grosso, durante a invasão
paraguaia de 1801.
A construção do Real Forte Príncipe da Beira chegou ao fim em 1783, restando
partes internas a concluir. Em agosto, Luís de Albuquerque procedeu à inauguração
na presença dos representantes de Vila Bela e Cuiabá.
Em meados do século XIX, o Forte passava a conhecer um longo período de
abandono, sendo reencontrado por meio dos trabalhos realizados pela turma de
Inspeção de Fronteiras, chefiada pelo general Rondon, em 1929.
3 O Exército na Construção e na Defesa da Soberania Nacional
O terceiro elemento estudado insere-se no contexto histórico-político da
primeira República no Brasil. O Exército, por meio de seus serviços de engenharia,
de levantamento cartográfico e de inspeção de fronteiras, foi peça importante na
conformação de um projeto de Estado, que foi delineado pela construção e defesa
da soberania nacional. O período foi marcado pelas ações de diversos militares,
entre elas as do General Cândido Mariano da Silva Rondon, no interior do Brasil.
O General Rondon desenvolveu sua missão militar dentro de um contexto de
intenso processo civilizador promovido pelo Estado, cumprindo ações de resgate dos
sertões brasileiros, onde realizou ações relevantes como a construção das linhas e
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estações telegráficas, a criação e direção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910,
a participação da expedição científica Roosevelt-Rondon, em 1913 e 1914, a chefia
da comissão de inspeção de fronteiras, entre 1927 e 1930. Foi delegado do Brasil na
comissão mista internacional Peru-Colômbia, com sede em Letícia, em 1935.
As atividades de Rondon tinham como ideal a integração e a civilização do
sertão, principalmente dos grupos indígenas brasileiros, esquecidos no seu “atraso
cultural”, na sua condição de “sociedade inferior”.3 Rondon deveria rasgar as matas
misteriosas e resgatar seus nativos da barbárie, trazendo-os para a civilização.
Deveria unir o território, conhecer sua natureza considerada hostil e desconhecida,
ser a peça fundamental de uma articulação política à qual estava a serviço. Seria um
símbolo nacional republicano: militar, positivista, patriota e civilizado.
Ser engenheiro militar – ter formação positivista e estar a serviço do Estado
– é fator preponderante na configuração do elemento condutor desse processo
civilizatório contemporâneo. O lema “Ordem e Progresso” tem o poder simbólico
de garantir a integração do território nacional por meio de um progresso científico
desenvolvido pelo Exército, uma instituição pública a serviço do Estado. As linhas
telegráficas e a demarcação das fronteiras empreendidas pelo General Rondon
tornaram-se elementos de uma ideologia do poder, ou seja, promoveram a extensão
das ações do Estado como centro político para suas regiões periféricas.
A primeira missão que Rondon recebeu ainda como Tenente foi a de integrar
a equipe do então Major Gomes Carneiro, chefe da comissão de linhas telegráficas
de Cuiabá a Araguaia, no ano de 1890. Em 1900, retornava novamente ao Mato
Grosso, agora na condição de chefe, para a construção de uma linha telegráfica de
Cuiabá a Corumbá, com ramificações para Aquidauna e Forte Coimbra. Prosseguiu
levando o telégrafo a Nioaque, Miranda, Porto Murtinho, Margarida e Bela Vista,
na fronteira com o Paraguai, ordem que recebera do Governo, a fim de prolongar a
linha do sul do estado do Mato Grosso. Até 1900, não havia estradas contínuas nem
comunicação rápida com o sul do Mato Grosso, o que dificulta o acesso à Bacia do
Prata, área de interesse estratégico entre as nações do Cone Sul.
Foram feitas várias tentativas para levar o telégrafo até o Centro-Oeste, mas o
Pantanal e a floresta dificultavam qualquer ação do Estado com esse intuito. Ou seja,
até 1900, nossas fronteiras com o Paraguai e a Bolívia continuavam desguarnecidas
e isoladas do resto do Brasil.
No ano de 1906, o então presidente da República, Afonso Pena, incumbira
Rondon de construir a linha telegráfica que ligaria, através do sertão, o Estado do
Mato Grosso à Amazônia.
Bolívia e Brasil disputavam terras do Acre, e o Brasil propôs um acordo em troca
das terras: daríamos uma saída para o mar, através da Estrada de Ferro MadeiraMamoré, passando pelo Rio Madeira no Amazonas, até chegar ao Atlântico. No
3
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 19 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
40
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O Estado Brasileiro e a Questão Amazônica
entanto, para conseguir tal feito, o Brasil precisava estabelecer comunicação rápida
com a Amazônia, pois o Estado precisaria controlar o comércio internacional que
atravessaria nosso território.
A missão de ligar o Mato Grosso à Amazônia foi desenvolvida em três etapas:
em 1907, era estabelecida a base para o início das operações a partir do Rio Juruena,
rumo ao Rio Madeira; em 1908, chegava à Serra do Norte, cumprindo mais uma
etapa de sua missão; em 1910, chegava ao destino, no porto de Santo Antônio do
Rio Madeira.
No ano de 1910, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) pelo
presidente Hermes da Fonseca, que convidou Rondon para ser o chefe dessa
entidade. A liberdade dos índios continuava sendo vista pela ação tutelar do
Estado, dali se processara sua inserção na sociedade civilizada. Os homens do
Estado, principalmente os que pertenciam às instituições de formação cientificista,
avaliam essa inserção do índio pelo progresso dirigido: como no trecho abaixo se
fez pronunciar Luís Horta Barbosa, que exercera o cargo de diretor do SPI:
O serviço não procura nem espera transformar o índio, os seus hábitos, os seus costumes, a
sua mentalidade, por uma série de discursos ou de lições verbais, de prescrições, proibições e
conselhos, conta apenas melhorá-lo, proporcionando-lhe os meios, o exemplo e os incentivos
indiretos para isso: melhorar os seus meios de trabalho, pela introdução das ferramentas; as
suas roupas, pelo fornecimento de tecidos, e dos meios de usar a arte e de coser, à mão e à
máquina; a preparação dos seus alimentos pela introdução do sal, da gordura, dos utensílios
de ferro, etc.; as suas habitações; os objetos de uso doméstico; enfim, melhorar tudo quanto
ele tem e que constitui o fundo mesmo de toda existência social. E de todo este trabalho,
resulta que o índio não é um mísero ente sem classificação social, por ter perdido a civilização
a que pertencia sem ter conseguido entrar naquela para onde o queriam levar. (Amílcar
1946, p. 55)
O contato com a civilização foi promovido por intermédio da organização de
povoações indígenas, pelos Postos de Atrações e Postos de Pacificação, subordinados
ao SPI. Tornaram-se posições intermediárias entre a selvageria e a civilidade. Locais
próprios para iniciar o processo de aculturar os indígenas e, em seguida, inseri-los
na civilização.
A expedição Científica Roosevelt-Rondon pelo sertão da Amazônia, de 1913
a 1914, pôde sintetizar bem os interesses nacionais e internacionais do mundo
político cientificista, que pretendeu estabelecer o ideal civilizatório como forma de
articulação de poder e dominação através do eixo centro-periferia.
Theodore Roosevelt, ex-presidente dos Estados Unidos da América, no
período da política imperialista do “Big Stick”, política intervencionista voltada
principalmente para as nações latino-americanas, utilizou como instrumento de
dominação o seu poderio militar, articulado ao seu projeto civilizador de levar a
religião protestante às nações católicas consideradas atrasadas culturalmente,
resultado de sua tradição protestante, que realçava a realização individual. Civilizar
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os povos atrasados passava a constituir um dever moral da América protestante,
livrando-os da barbárie do cristianismo católico. O ex-presidente dos Estados
Unidos da América vinha agora ao Brasil, integrando uma missão científica para
caçar, estudar a fauna, a flora e a geografia física do sertão amazônico. A serviço do
Museu de História Natural de Nova York pretendia reconhecer uma região em sua
maior parte desconhecida dos brasileiros, e quase que totalmente desconhecida dos
norte-americanos. No seu processo de expansão, os Estados Unidos já dominavam
todo um território interno que antes era controlado pelos índios da América do
Norte, e uma boa parte da América Central ocupada pelo México. O Caribe tornarase Lago Americano, e o canal do Panamá tornara-se uma realidade dos interesses
econômicos norte-americanos. Faltava estabelecer o domínio na América do Sul e,
para isso, o ideal era iniciar com uma expedição científica sem demonstrar muitos
interesses políticos.
O período de 1927 a 1930 foi crucial para a História Política do Brasil, com
relação ao estabelecimento das fronteiras terrestres do centro-oeste e norte. O
telégrafo de Rondon tomou posse do Centro-Oeste e da Amazônia, mas a Comissão
de Inspeção de Fronteira completara o trabalho de consolidação de nossa soberania
territorial, ratificando as nossas reais fronteiras.
Em 1927, o então presidente da república, Washington Luiz, solicitou que fossem
inspecionadas as fronteiras do país até o final de seu governo, com o objetivo de estudar
as condições de seu povoamento e segurança, sendo, portanto, o General Rondon
nomeado Inspetor de Fronteira. A inspeção foi dividida em campanhas amplamente
registradas em fotografias, cartas topográficas, documentos escritos e filmes, que
tinham por tarefa atingir a linha de fronteiras do Brasil com a Guiana Francesa, Guiana
Holandesa, Guiana Inglesa, Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, e Paraguai.
A primeira campanha iniciou-se pelo norte do país, abrangendo as fronteiras
dos estados do Pará e Amazonas com a Guiana Francesa, Guiana Inglesa e o sul da
Venezuela. A segunda campanha partiu do estado do Pará com destino à fronteira
com a Guiana Holandesa. E, a terceira campanha, visou ao interior do país, seguindo
do Amazonas ao estado do Mato Grosso.
No acervo documental iconográfico4 produzido pela Comissão de Inspeção de
Fronteiras, percebemos uma grande parcela de imagens fotográficas privilegiando
a paisagem. Elas confirmaram uma intenção de estudar o meio natural do interior
brasileiro, o qual serviu não só para ratificar as nossas fronteiras terrestres,
como também para estudos geopolíticos visando a futuras intervenções diretas
4
Para análise deste momento utilizamos principalmente as fotografias produzidas pela Comissão de Inspeção de
Fronteiras, em que tomamos por princípio a identificação das ações dos expedicionários de forma que pudéssemos entender a construção de uma parte do processo intervencionista do Estado no sertão centro-oeste e
norte brasileiro. Nesse caso, foi dada prioridade à análise da produção fotográfica militar, que merece destaque
no contexto nacional por ter sido desenvolvida dentro de uma instituição que representa o interesse do Estado,
o Exército brasileiro. Nosso objetivo foi articular a produção cultural a uma política de Estado.
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O Estado Brasileiro e a Questão Amazônica
do Estado, ou seja, uma real intenção de conhecer o território para conquistar a
soberania.
O estudo das culturas encontradas torna-se um complemento da avaliação
territorial, visto que uma intervenção do Estado fatalmente passa por todos os
campos, desde o material ao pessoal.
Comparando com os documentos produzidos pela Inspeção de Fronteiras (19271930), chefiada pelo General Rondon, analisamos o relatório apresentado ao Ministro
da Guerra pelo Major José Agostinho dos Santos, em 1929, sobre um estudo de defesa
da Bacia Amazônica. No relato do militar, constatamos que houve restrições na execução
de seus trabalhos, por falta de recursos cartográficos, levantamentos hidrográficos,
dados estatísticos e carência de verba, de maneira que o serviço dependesse da ajuda
de algumas autoridades civis e militares das regiões trabalhadas.
Percebe-se nitidamente no relatório que o apoio administrativo era pouco,
apesar dos interesses do Estado no serviço. Um dos meios utilizados para amenizar
a falta de recursos e conhecimento da região foi lançar mão da obra estrangeira
L’Amazone Brèzillienne, de Paul Lê Cointe, uma das mais completas à época, do
ponto de vista científico. Internamente, os mapas levantados pelos governos locais
eram muito deficientes e errados, em virtude dos fracos recursos profissionais e
materiais, o que dificultava mais ainda o serviço da expedição.
Outro recurso utilizado foram as viagens feitas para as regiões, com o apoio
de informações prestadas pelos comandantes de navios fluviais, chamados de
“Gaiolas”, profundos conhecedores dos sinuosos cursos d’água do Amazonas.
Nas ideias preliminares do relatório, percebemos que apesar de toda a
dificuldade apresentada havia interesse do Estado no projeto de defesa da região
e na manutenção do território, ainda bastante desconhecido e distante do litoral,
do centro político brasileiro. Apesar das questões políticas internas, já se discutia a
condição econômica que a região poderia desempenhar em âmbito nacional, em
virtude de sua grande extensão, suas riquezas e inesgotáveis recursos naturais, o
que em parte vinha também despertando interesses estrangeiros na região.
No relatório apresentado ao Ministro da Guerra5, são expostos diversos
problemas tanto de ordem política quanto administrativa, tornando-se necessário
formular um plano mais eficaz visando à proteção da região, para que a política
comandasse medidas estratégicas de caráter permanente ou transitório. No caso
de um conflito armado, o momento analisado no contexto político internacional
definiria a lógica de defesa da Amazônia.
Por falta de interesses políticos, administrativos e pela decadência econômica,
as áreas fronteiriças do Brasil com nações sul-americanas ao Norte e a Oeste do Pará
e Amazonas encontravam-se no esquecimento e no atraso cultural, desprovidas de
5
ARQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO. Estudo dum anti-projecto para a defeza da Bacia Amazônica (Secreto).
Óbidos: Ministério da Guerra, 1929. Relatório.
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Fernando da Silva Rodrigues
estradas e de outras vias de comunicação que facilitassem o contato com outros
centros políticos mais desenvolvidos.
A região do atual estado do Amapá, historicamente teve graves problemas
fronteiriços com a Guiana Francesa e, secundariamente, com o Suriname, que
ameaçava constantemente a soberania brasileira, até 1900. Por isso, as regiões de
fronteiras mais discutidas no relatório de 1929, e documentadas pela Inspeção de
Fronteiras foram os limites com esses países. Na região inglesa foram executados
muitos melhoramentos e aplicados capitais na abertura de estradas. Os campos
do Rio Branco, situados ao Norte do Amazonas, eram excelentes produtores de
gado que abasteciam a cidade de Manaus e, havia também muitos fazendeiros
mantendo intensas relações comerciais com o estrangeiro. No tocante à Guiana
Francesa, além da contestação da população local pela perda do Amapá, verificouse pouca preocupação do governo francês em estabelecer o desenvolvimento de
sua possessão, que serviu exclusivamente na condição de Colônia Presídio para
seus detentos.
O relatório sobre estudo da Bacia Amazônica do ponto de vista de sua defesa,
apresentado ao Ministro da Guerra Nestor Passos pelo Major José Agostinho dos
Santos, foi discutido principalmente no âmbito da política externa e dos interesses
internacionais que, desde os tempos coloniais e mesmo no século XX, com o Brasil
já independente, não haviam cessado. Em sua expedição, o relator deparou-se
especialmente com o caso de descontentamento de negros da Guiana Francesa
pela perda do território do Amapá, e com a ideia de retomada pela tentativa de
criação da República de Cunnani, comentada por vários moradores na região do
Oiapoque.
Com relação aos interesses norte-americanos e ingleses, o relatório indaga
ainda na segunda metade do século XIX, sobre tensões na questão da navegação
internacional, sustentada por esses governos com base na doutrina de que os rios
percorrendo diversos países são livres a todas as bandeiras, e não à exclusividade
de um só país, concluindo que o rio Amazonas pertencia a todas as nações que
podiam reclamar seu uso.
Discordando de tais interesses, o discurso do Visconde de Abaeté, em
nota de 13 de setembro de 1854, assim se expressava com relação às pretensões
estrangeiras:
[...] o Amazonas, percorrendo o Brazil na extensão de 460 leguas, de sua foz até Tabatinga,
si tem largura considerável, em sua maior extensão, pode ser dominado por fortalezas, que,
situadas em uma de suas margens, podem impedir o transito, o que se não dá com o mar; a
navegação do grande rio não pode ser feita sem o uso das margens, e estas, na parte em questão,
pertencem, exclusivamente, ao Brazil; assim o Brazil exerce, sobre a parte do Amazonas que
lhe atravessa o território, plena e efficazmente a sua soberania. Conseqüentemente, quando
lhe parecesse chegada a opportunidade ser o grande rio aberto ao commercio do mundo, isso
se faria mediante cautelas, que lhes resguardassem o direito.
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O Estado Brasileiro e a Questão Amazônica
Portanto, desde a segunda metade do século XIX, interesses ingleses e norteamericanos projetavam-se sobre a região amazônica. No primeiro quartel do século
XX, navios dessas bandeiras desrespeitavam as leis brasileiras de soberania territorial.
Não era raro que navios da Inglaterra e dos Estados Unidos entrassem em Belém
sem esperar os práticos da barra, significando não somente desobediência, como
também prévio conhecimento dos pilotos sobre canais existentes na embocadura
do rio Amazonas.
Concluímos que esses poucos fatos, por si sós, já seriam suficientes para
justificar qualquer medida visando a prover meios de defesa adequada à região,
além do mais, os meios de comunicação terrestre para o norte, partindo do litoral e
das zonas mais povoadas e importantes do Brasil, à época, eram precários e mesmo
inexistentes.
Em 1840, foi criada a Colônia Dom Pedro II junto ao Rio Araguari, transferida
em 1907 para o rio Oiapoque com o nome de Colônia Militar do Oiapoque, em
Ponta dos Índios e, posteriormente, para a Vila Santo Antônio, em frente à Vila
francesa de Santo Jorge. O município de Oiapoque está localizado na parte mais
setentrional do território brasileiro, no Estado do Amapá, fazendo fronteira com
a Guiana Francesa ao longo do rio Oiapoque, que é um dos principais acidentes
geográficos junto com as montanhas do Tumucumaque ao sul, depois de fazerem a
divisa do Brasil com as Guianas penetram em território nacional.
A ineficiência da Colônia Militar do Oiapoque, que deixava a região despovoada
e desguarnecida, fora um dos motivos para a fundação da Colônia Agrícola de
Clevelândia, em 1922. Os primeiros colonos chegaram ainda na primeira metade do
ano de 1921, distribuídos ao longo da margem brasileira do rio Oiapoque. Durante
o ano de 1922 e 1924, esse local foi escolhido para receber militares prisioneiros
políticos dos movimentos revolucionários. As levas de prisioneiros chegaram
ao presídio político de Clevelândia6 a bordo do Cuiabá, e muitos outros após os
combates de Catanduvas, na Revolução de 1924, que praticamente encerrou esse
fluxo migratório compulsório para a região. O projeto da Colônia Agrícola acabou
entrando em decadência, em virtude da epidemia de disenteria bacilar que vitimava
muitos presos e colonos, e coincidiu com o fim da migração de presos políticos.
Em julho de 1927, quando a Comissão de Inspeção de Fronteiras esteve em
Clevelândia, havia um forte temor do General Rondon de que se abandonasse o
projeto de ocupação e desenvolvimento nessa área, insistindo na necessidade de
ocupação das fronteiras para garantir a soberania territorial no Norte do Brasil.
No entanto, com a Revolução de 1930 e a anistia dos presos políticos, a Colônia
Agrícola fracassou. A criação da Fordilândia, por Henry Ford, no Vale dos Tapajós,
acabou cooperando para o insucesso da Colônia de Clevelândia.
6
AARÃO, Daniel. De Volta à Clevelândia. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22/3/2003.
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Fernando da Silva Rodrigues
Ao chegar ao final deste trabalho, concluímos que com relação às ações pelo
sertão do General Cândido Mariano da Silva Rondon e do Major José Agostinho
dos Santos, é possível verificar certas intencionalidades do Estado ao promover
essas missões civilizadoras: defesa militar das nossas fronteiras na América do Sul;
preservação da independência política, por meio de uma soberania sobre o território,
que passou a ser reconhecido nacional e internacionalmente pelas eficientes
demarcações das fronteiras terrestres realizadas pela Comissão de Inspeções de
Fronteiras, no período de 1927 a 1930; reconhecimento do território; e a integração
sertão-litoral, via processo civilizatório, dos diversos grupos indígenas, diminuindo
as tensões existentes entre o litoral, dito civilizado; e o sertão, dito selvagem.
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 29-47, jul./dez. 2011
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Reis Friede
Guerra Assimétrica Reversa1
Reis Friede*
Resumo
O estudo relativo à denominada Guerra Assimétrica – e, mais recentemente, à moderna
(e, para alguns, inovadora) concepção de Guerra Assimétrica Reversa –, revestese de especial importância, notadamente para o desiderato último da perfeita
compreensão do fenômeno político alusivo aos conflitos bélicos, particularmente
no século XXI. Destarte, com o fim da chamada Confrontação Bipolar Indireta (típica
do período da Guerra Fria – 1947/91), não dá mais para interpretar os resultados
políticos e militares, dos mais recentes embates bélicos, por meio de uma necessária
análise de maior profundidade e com inafastável correção, sem considerar a
complexa fenomenologia da Assimetria Reversa.
Palavras-Chave: Guerra. Guerra Assimétrica. Guerra Assimétrica Reversa.
Abstract
The study related to the so-called Asymmetric Warfare - and, more recently, the
modern (and, for some, innovative) concept of Asymmetric Warfare Reverse - is of
special importance, mainly for the latter desideratum of perfect understanding of the
political phenomenon allusive to armed conflicts, particularly in the XXI century. Thus,
with the end of so-called Indirect Bipolar Confrontation (typical in the Cold War period
-1947/91), is no longer possible to interpret the political and military results, of the most
recent military armed conflicts, by means of a required analysis of greater depth and
correction, without considering the complex phenomenology of Reverse Asymmetry.
Keywords: War. Assimetric Warfare. Reverse Assimetric Warfare.
______________
* Desembargador Federal e ex-Membro do Ministério Público, Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Autor, dentre outras obras, do Curso de Ciência Política e Teoria Geral do Estado: Teoria Constitucional e Relações Internacionais, 4ª ed., Ed. Forense Universitária, 2009.
1
Fragmentos de palestra proferida na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), em 04 de junho
de 2009, para os oficiais estagiários do Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército – CPEAEx;
na Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR), em 01 de outubro de 2009, para os oficiais
estagiários do Curso de Política e Estratégia Aeroespaciais – CPEA e na Escola Superior de Guerra (ESG), em 18
de agosto de 2010, para os estagiários do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia – CAEPE.
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Guerra Assimétrica Reversa
1 Conceitos de Guerra Assimétrica e de Guerra Assimétrica Reversa
O Conceito clássico de Guerra Assimétrica, há muito conhecido, pode ser
sintetizado como “todo e qualquer tipo de conflito bélico em que, - pelo menos em
algum momento -, a superioridade militar (e, particularmente, tecnológica) de um
dos contendores resta evidente no Campo de Batalha”.
Por outro prisma, a noção central de Guerra Assimétrica Reversa poderia
ser traduzida como “todo e qualquer tipo de conflito bélico em que – pelo menos
em algum momento – existe a efetiva limitação (ou, em termos mais precisos,
autolimitação) do emprego da evidente superioridade militar (e, particularmente,
tecnológica) no Campo de Batalha”.
Desta feita, é a concepção estrutural de Assimetria Reversa (e sua perfeita
compreensão), em flagrante oposição à concepção clássica de Assimetria Básica,
que, em última análise, determinará a caracterização de uma autêntica revolução
na sociologia do emprego do Poderio Militar, no presente e, em especial, durante
todo o espaço-tempo relativo ao século XXI.
Diagrama 1: Guerra Assimétrica Reversa x Guerras Revolucionária e Irregular
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Reis Friede
1.1 Guerra Assimétrica e Guerra Revolucionária
Não obstante o reiterado equívoco histórico em se associar o conceito
de Guerra Assimétrica com a antiga noção de Guerra Revolucionária ou de
Guerra Clássica, na modalidade de estratégia revolucionária, ou, ainda, em
termos mais genéricos, de Guerra Irregular (em essência, conceito relativo
à Natureza do Conflito), é cediço concluir que não se confundem as aludidas
menções descritivas, sobretudo porque resta incorreto, em uma análise mais
aprofundada do tema vertente, afirmar a caracterização analítica de Guerra
Assimétrica com fundamento restritivamente na simples existência de alguma
modalidade de guerrilha ou mesmo de outros elementos não convencionais
de confrontação, que possam, eventualmente, traduzir, em situações pontuais
ou mesmo de ampla concretude, no cenário específico de um determinado
Teatro de Operações, algum viés de Assimetria Básica.
À luz do necessário rigor acadêmico, resta dizer, a Assimetria, em
essência, sequer poderia ser considerada uma genuína modalidade de
Guerra, porquanto dentro de um contexto de uma linguagem dotada de
maior seriedade técnica – com necessário emprego de uma maior precisão
vocabular – a mesma coaduna restritivamente, por natural intuito vocacional,
apenas e tão-somente com o modo exteriorizante pelo qual qualquer tipo
de modalidade de Guerra é efetivamente conduzida, em um dado momento
considerado ou mesmo no âmbito de sua total amplitude temporal, no Teatro
de Operações em comento.
Muito embora, estatisticamente, seria até mesmo lícito afirmar que
cerca de 90% (noventa por cento) das coloquialmente chamadas Guerras
Irregulares são de natureza Assimétrica, tal fato probabilisticamente, por si só,
a toda evidência, não possui o condão caracterizador, dotado de competência
classificatória, capaz, em última instância, de identificar a modalidade do
Conflito, precisando, em consequência, o tipo de Guerra, dentre as formas
reconhecidamente consideradas pela Academia Militar.
2 Elementos Característicos Pontuais Relativos à Assimetria
Reversa
O fenômeno da Assimetria Reversa revela, fundamentalmente, em
seu âmago, um verdadeiro conflito entre as concepções contemporâneas da
civilização humana, como bem assim, a reconhecida dicotomia de valores
associados à própria existência do gênero humano em seu atual estágio de
desenvolvimento humanístico.
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Por efeito consequente, o conceito estrutural (atual) de civilidade
(incluindo as noções de moralidade e honradez) – defendido, particularmente,
pela denominada Democracia Ocidental – se opõe frontalmente ao conceito
básico de barbárie (incluindo, neste, as ideias elementares de amoralidade e
do próprio terror), supostamente partilhadas pelos Totalitarismos Clássicos
e, em especial, pelos denominados Totalitarismos Revolucionários, como, por
exemplo, o Islamismo Radical.
Sob esta ótica, resta conclusivo afirmar que é o próprio confronto
ideológico (em seu sentido amplo), - fundado em percepções conceituais tão
diametralmente opostas (e, por esta razão, absolutamente inconciliáveis) -,
que invalidam, por si só, toda e qualquer eventual vantagem político-militar
derivada da nítida superioridade militar do protagonista democrático-ocidental
no Campo de Batalha, - fazendo surgir, em consequência, o epigrafado
fenômeno da Assimetria Reversa -, mormente se considerarmos o imperioso
respeito (autoimposto) às regras normativas de engajamento (particularmente
restritivas do pleno emprego da capacidade militar e tecnológica disponível)
que este protagonista se auto impõe em sinérgica oposição à absoluta ausência
de regras clássicas de engajamento nos conflitos bélicos (e de outras naturezas
assemelhadas) conduzidas pelos protagonistas de natureza transestatal, de
índole nacional globalizante transcendente2, como bem ainda, - em necessária
adição argumentativa -, a própria preocupação central com a preservação da
vida humana (objetividade realista), defendida pelas Democracias Ocidentais,
versus a preocupação central com a preservação de valores (pseudo) espirituais
(subjetividade concepcional), supostamente defendida pelos Entes Totalitários
Revolucionários.
2
Resta oportuno consignar que a natureza transestatal do Totalitarismo Revolucionário, típico do Islamismo
Radical, conceitualmente não se opõe à ideia de movimento nacional globalizante ínsito ao mesmo, na própria
medida em que a noção mais primitiva de Nação engloba, com toda a certeza, as vinculações comuns de cunho
religioso, ou mesmo pseudo-religioso.
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Guerra Assimétrica Reversa
3.1 Básica e Reversa
Conforme já consignamos expressamente, o fenômeno da Assimetria Básica,
umbilicalmente associado ao conceito clássico de Guerra Assimétrica, já era
conhecido e, em grande medida, estudado, desde a antiguidade clássica. Todavia,
foi somente com o advento da Guerra da Coréia – mormente em sua segunda fase
(inaugurada a partir da destituição do Gen Douglas McArthur do supremo comando
das operações, em 11 de abril de 1951) – que o fenômeno paralelo e antagônico da
Assimetria Reversa (e o consequente conceito de Guerra Assimétrica Reversa) foi
amplamente reconhecido pelos mais importantes geoestrategistas da atualidade,
ainda que através das mais diversas designações.
A exteriorização efetiva do mencionado fenômeno, em parte já registrada no
presente ensaio, vale frisar mais uma vez, em necessário reforço analítico, caracterizase, sobremaneira, pela autolimitação (ainda que eventualmente parcial) do emprego
da força militar, impedindo que a nítida e reconhecida superioridade bélica (massiva
e/ou tecnológica) possa ser utilizada, em sua plena sinergia, com o diserato último de
se conduzir à almejada vitória (política e militar) no campo de batalha.
Não é por outra razão que as Estratégias Políticas, relacionadas a praticamente todos os grandes embates bélicos, até o mencionado momento histórico
– o que, à toda evidência, inclui a própria Segunda Grande Guerra (1939-45) e
a chamada primeira fase da Guerra da Coréia (1950/51) – foram sempre pautadas pela “vitória a qualquer custo” (associada à concepção clássica de Guerra Total), sendo, portanto, desconhecido – pelo menos no que concerne à aplicabilidade histórica – a idéia central da “vitória limitada” (associada à concepção contemporânea de Guerra de Contenção) e suas derivações conceituais posteriores.
3.2 Eventos Históricos Característicos da Fenomenologia da Assimetria Reversa
Neste sentido, é oportuno registrar que somente restou perfeitamente caracterizado, no conflito coreano, o fenômeno da Assimetria Reversa, quando – ainda
que com ampla e reconhecida superioridade militar – o governo de Harry Truman
(1945-53) – o mesmo que (frise-se) autorizou o lançamento das bombas atômicas
sobre Hiroshima (6 de agosto de 1945) e Nagasaki (9 de agosto de 1945) – recusouse, terminantemente, a continuar a partilhar (direta ou indiretamente) das estratégias de vitória total (e a qualquer custo) do Gen McArthur (destituído em 11 de
abril de 1951), onde se incluíam, entre outras propostas, o bloqueio continental da
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Reis Friede
China, o substancial aumento dos efetivos, o emprego de tropas da China Nacionalista (Taiwan) e até mesmo a utilização de armas nucleares, com o fulcro último de
reunificação forçada das duas Coréias, sob a égide político-ideológica do Ocidente.
Nos anos 60, durante o controvertido embate no Sudoeste da Ásia, conhecido
genericamente como Guerra do Vietnã3, de forma até mais contundente,ficou, mais
uma vez, muito bem caracterizado o fenômeno da Assimetria Reversa, notadamente
quando se inaugurou, no âmbito da inovadora concepção de Guerra de Contenção,
a estratégia do “gradualismo desencorajante” (Doutrina de McNamara), que, em
última análise, simplesmente (e, de certa feita, de modo inédito) impediu a utilização
inicial (e, mesmo posteriormente, de forma amplamente reconhecida, em todas as
fases do conflito) da nítida superioridade militar estadunidense, particularmente,
de seu poderio aeroespacial (o que inexoravelmente restou comprovado, em uma
análise mais aprofundada ao final do conflito, através do inconteste sucesso das
operações Linebacker I (abril a outubro de 1972)4 e, posteriormente, com mais
ênfase, Linebacker II (18 a 30 de dezembro de 1972)5), eventos específicos em que
muitas das restrições de emprego do poderio aeroespacial anteriormente presentes,
sobretudo, na operação Rolling Thunder6, não foram mais observadas, pelo menos,
na mesma intensidade de outrora.
3 Na verdade, o conflito na Indochina possui raízes históricas muito anteriores e bem mais complexas. Todavia, o
maciço envolvimento norte-americano, em apoio ao governo do então Vietnã do Sul, somente ocorreu durante
o governo John Kennedy (1960-63), com o envio de milhares de assessores militares e, de modo mais objetivo,
com o início das operações de guerra (1965), durante a égide do governo Lyndon Johnson (1964-1968). Vale
registrar, por oportuno, que, além dos EUA; os países da OTSA (SEATO), Austrália, Nova Zelândia, Tailândia, Filipinas e Coreia do Sul (esta contribuindo com aproximadamente 40.000 efetivos) enviaram tropas de combate
para o Vietnã, retiradas em 1971. A OTAN (NATO) e outros aliados, incluindo o Brasil, recusaram-se a atender
a um pedido formal de envio de tropas.
4 A operação Linebacker I (a que alguns autores entendem ser uma renomeação da operação de apoio tático
e suporte Freedom Train (abril de 1972)) caracterizou-se como uma excepcional manobra (notadamente de
interdição) que logrou cortar as linhas de suprimento do Vietnã do Norte, durante a chamada Ofensiva Leste
(Nguyen Hue), conduzida entre 30 de abril e 22 de outubro de 1972, obrigando Hanói a retornar à mesa de
negociações de paz.
5 A operação Linebacker II pode ser considerada como resultado direto de um ultimato a Hanói, de iniciativa do
presidente Richard Nixon (imediatamente após o conhecimento do resultado de sua reeleição), quando aquele
governo suspendeu unilateralmente as conversações de paz de Paris. Mais de 120 bombardeiros B-52 Stratofortress (número superior ao próprio quantitativo atual de aeronaves B-52H no inventário da USAF) em 700
missões noturnas, somadas a 650 ataques diurnos, realizados através de caças-bombardeiros F-105 Thunderchief e F-111, lançaram, durante 11 dias, cerca de 100.000 toneladas de bombas (do total de 170.000 toneladas
lançadas na soma de ambas operações Linebacker I e II), obrigando o Vietnã do Norte não só a voltar à mesa
de negociações, mas também a assinar um acordo de paz em que, dentre outras obrigações, determinou o
repatriamento imediato de todos os prisioneiros de guerra norte-americanos.
6 A denominada operação Rolling Thunder (1965 a novembro de 1968) caracterizou-se pelo uso limitado e gradual do Poder Aéreo Estadunidense (tese de McNamara), não logrando danificar as capacidades de guerra do
Vietnã do Norte, em função, sobretudo, das inúmeras restrições a ataques a bases de caças MIG e sítios de
artilharia anti-aérea. Registre-se que o primeiro sítio de SAM foi localizado em abril de 1965 e o primeiro avião
americano derrubado em julho de 1965. Vale consignar também que o total de aeronaves perdidas durante
todo o conflito superou o quantitativo de 4.000 unidades.
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Guerra Assimétrica Reversa
3.2 Eventos Históricos Característicos da Fenomenologia da
Assimetria Básica
Em virtual contraposição à efetiva caracterização do fenômeno da Assimetria
Reversa – e em indispensável reforço analítico de suas reconhecidas consequências
político-militares – diversos outros episódios históricos demonstram claramente,
por outro prisma – e, em sentido diametralmente oposto – o natural resultado
da superioridade militar no campo de batalha, mormente quando empregado
em sua inteireza, sem as autorestrições, de toda e qualquer natureza, que são
inerentes ao mencionado fenômeno.
Por efeito, a denominada Assimetria Básica registrou inconteste presença,
em diversos momentos históricos, exteriorizando-se ora, excepcionalmente,
como natural reação à própria Assimetria Reversa (como, por exemplo, no caso
específico das citadas operações Linebacker I e II7), ora, em regra, como efetivo
7 Oportuno registrar, - em necessário reforço aditivo às informações já consignadas anteriormente a respeito do tema -, que no início de dezembro de 1972 as conversações de Paris (acordadas em outubro de
1972) foram suspensas unilateralmente pelo Vietnã do Norte, criando uma situação política inaceitável
para o então presidente Richard Nixon, reeleito em novembro de 1972 com a promessa de por fim à
Guerra do Vietnã. Em 14/12/72 foi, portanto, conforme mencionamos anteriormente, dado um ultimato
à Hanói exigindo o reinício das conversações em 72 horas. No mesmo dia, todos os portos norte-vietnamitas foram minados e, em 18/12/72, 123 bombardeiros B-52, partindo de 3 diferentes bases, entre
as quais Guam (Andersen) e U-Tapao (Tailândia), iniciaram os bombardeios sobre Hanói, Haiphong e
Thai Nguyen, acompanhados por 54 F-4 Phantom II (escoltas) 20 F-4 dotados de interferidores de radar:
chaff, 10 F-105 Thunderchief (com mísseis anti-radar) e A-7 Corsair II, além de 5 EB-66 Destroyer e EA-6B
Prowler, 2 EC-121H AWACs e 1 EC-135 C3 (estes escoltados por mais 20 F-4 Phantom II e F-8 Crusader).
O Vietnã do Norte possuía 36 batalhões de SA-2 Guideline (mais 9 batalhões técnicos), suplementados
por alguns batalhões SA-3 Goa, e milhares de SA-7 Grail (portáteis); além de 187 caças (71 operacionais),
sendo 31 Mig-21 PFM (incorporados em 1969 com capacidade de interceptação noturna). Mais de 1.000
mísseis SAM foram disparados contra as aeronaves norte-americanas.
Principais ataques:
18-19/12/72: 129 B-52
20-21/12/72: 93 B-52
21-22/22-23/23-24/25-26: quantitativos reduzidos em face de acentuadas perdas de aeronaves (ensejando, em consequência, alteração de táticas)
26-27/12/72: 120 B-52 (111 dos quais atingindo alvos)
27-28/12/72: 60 B-52
28-29/12/72: 60 B-52
29-30/12/72: 60 B-52
Um total de 700 missões noturnas (B-52) e 650 ataques diurnos (F-105 e F-111) foram realizados, até
7h de 30/12/1972, com um total de 170.000 toneladas de bombas lançadas (incluindo as lançadas na
Operação Linebacker I), obrigando o Vietnã do Norte a voltar às mesas de negociação em 2/1/1973 e
obrigando o mesmo a repatriar todos os prisioneiros americanos, ainda no mesmo mês. Foram perdidos
um total de 15 B-52 Stratofortress (2 interceptados por MIG-21), 2 F-111, 3 F-4 Phantom II, 2 A-7 Corsair
II, 2 A-6 Intruder e 1 RA-5C Vigilante.
Para o Vietnã do Norte, a operação custou a vida de 1.624 civis/militares, obrigando a assinatura de acordos de paz, violados unilateralmente, mais tarde, sem qualquer tipo de reação internacional de maior
monta, ou mesmo uma condenação mais severa da ONU.
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Reis Friede
instrumento de estratégia política, como, por exemplo, no caso do bombardeio
a Dresden (fevereiro de 1945) – em que, empregando-se maciça superioridade
aérea, os aliados, em um ataque ininterrupto de 14 horas de duração, destruíram
completamente a mencionada cidade alemã, com uma saldo de 35.000 mortos – ou,
mais recentemente – e de forma até mais marcante – no episódio conhecido como
Segunda Guerra da Chechênia (1999-2009), que, em apertada síntese, resultou não
só na inteira destruição da capital Grozny, como ainda num impressionante saldo de
mortos de mais de 100.000 civis, representando dez por cento da população8.
O relativo fracasso da operação, segundo críticos, decorreu, sobretudo, pelo fato de ter permitido ao ENV
manter suas posições no território sul-vietnamita e, sob o ponto de vista operacional, às restrições a eventuais danos à população civil, em significativa exteriorização fenomenológica da Assimetria Reversa.
Relatos de prisioneiros de guerra e documentos posteriormente divulgados, entretanto, mostraram que
a operação Linebacker II destruiu temporariamente a capacidade de guerra do Vietnã do Norte, quebrando seriamente o moral das tropas do ENV, demonstrando, neste sentido, a absoluta correção das críticas
do Gen. Alexander Haig (que foi, durante a primeira administração de Nixon, Consultor Sênior Militar
Adjunto para Assuntos de Segurança Nacional, - promovido em outubro de 1969 a patente de general
-, e, no segundo mandato, Vice-Chefe do Estado-Maior do Exército e Chefe de Estado da Casa Branca
e, posteriormente, Comandante Europeu e Superior Aliado da OTAN (1974-79 – governos republicano
Gerald Ford e democrata Jimmy Carter) e Secretário de Estado (primeiros 18 meses do governo Ronald
Reagan)) para quem a interrupção nos bombardeios acima do paralelo 20, no dia 30 de dezembro de
1972, sem consultar Saigon e “sem forçar Hanói a evacuar suas tropas do Sul” consistiu em um “erro terrível” (Robert Dallek; Nixon e Kissinger: Parceiros no Poder, Zahar, RJ 2009, p. 441), - ainda que a paranóia
de Nixon (que havia, a menos de dois meses, obtido uma grandiosa vitória eleitoral sobre McGovern,
- 60,7% a 37,5% -, vencendo em 49 dos 50 estados federados) o conduzisse a acreditar que se “fosse
mantido o ataque aéreo, enfrentaria um impeachment” (ibidem, p. 442) -, o que acabou por transformar
como verdadeira a denominada “paz falsa” (ibidem, p. 421), tanto alardeada pelo Presidente do Vietnã
do Sul, Van Thieu, em conversas com Haig: “você já viu algum acordo de paz na história mundial no qual
os invasores tivessem permissão para continuar no território que invadiram?” (ibidem, p. 429).
Muito embora os acontecimentos daquela época ainda possam ser classificados como um episódio, no
mínimo, “nebuloso”, a verdade é que, muito provavelmente, a primazia das ambições pessoais de Nixon
(e seu relativo desprezo por Van Thieu) tenham sido o fator primordial para uma possível (e até hoje não
comprovada) celebração de um “pacto oculto” (conhecido como “saída com honra”) com Hanói (conduzido por Kissinger, - que apregoava um “intervalo decente” para a saída das tropas norte-americanas), o
que bem explicaria a capitulação do Vietnã do Sul em 1975, não obstante Henry Kissinger ter garantido,
em entrevista de 1972, que “(...) não há nenhum acordo escrito com o Vietnã do Norte sobre qualquer
intervalo específico após o qual não nos preocuparíamos mais se eles invadissem e tomassem o controle
do Vietnã do Sul” (ibidem, p.425).
8 A 1ª Guerra da Chechênia iniciou-se em 1994 e terminou com os acordos de Khasavyunt (1996). Envolveu 40.000 efetivos russos, contabilizando 10.000 mortos (entre civis, militares e guerrilheiros). Com
a instauração do regime islâmico por Aslan Maskhadov (1999), Vladimir Putin determinou uma nova
invasão (2ª Guerra da Chechênia) com o bombardeio completo a Grozny e sua inteira destruição, em
resposta direta a explosão de prédios russos (300 mortos); a reação guerrilheira foi a tomada de um
hospital (120 mortos) (1999), a invasão de um teatro em Moscou (150 mortos) (2003) e a invasão de
uma Escola Pública Russa em Beslan (2 a 4/9/2004) (330 mortos), além de outros pequenos ataques
terroristas, inclusive no metrô de Moscou. Em 16/04/2009, O Comitê Nacional Antiterrorista da Rússia
(NKA) declarou a Chechênia “Zona Livre de Terrorismo”, iniciando a retirada dos últimos 20.000 soldados
russos, mantendo, outrossim, centenas de efetivos da FSB (KGB) e da polícia russa.
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 48-65, jul./dez. 2011
Guerra Assimétrica Reversa
4 Efeitos Sinergéticos da Assimetria Reversa
No contexto deste prisma analítico, parece incontroverso os inequívocos
efeitos sinergéticos da Assimetria Reversa, mormente quando o mencionado
fenômeno se manifesta em sua absoluta plenitude.
Portanto, a questão fundamental que deve ser colocada em necessária análise
não se restringe apenas aos eventuais resultados práticos produzidos pela presença do
fenômeno epigrafado, mas, especialmente, se existe, na história recente, comprovados
elementos analíticos que possam verdadeiramente desafiar a inconteste efetividade
da Assimetria Reversa, em sua sinérgica exteriorização no Campo de Batalha.
Destarte, resta saber, no âmbito deste debate, em necessário exercício
analítico, se, por exemplo, mesmo com o amplo emprego de toda a moderníssima
tecnologia militar estadunidense – porém, com as inerentes restrições de utilização,
no Teatro de Operações, características da denominada Assimetria Reversa – os
EUA lograriam obter, de forma objetiva, os mesmos resultados, de inconteste
vitória político-militar, reconhecidamente alcançados pelos russos, durante o já
mencionado episódio histórico conhecido como Segunda Guerra da Chechênia
(1999-2009), ocasião em que, resta oportuno consignar – não obstante as perdas
projetadas em 10.000 efetivos (incluindo forças locais pró-Moscou) – a Rússia de
Vladimir Putin, computando a completa destruição de Grozny, e o condenável
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 48-65, jul./dez. 2011
59
Reis Friede
extermínio de 100.000 chechenos (10% da população total), incontestavelmente
impôs, de forma inadjetivável – caracterizando, em virtual oposição analítica, uma
autêntica Assimetria Básica – sua vontade política, debelando, por completo, as
forças de oposição, em uma relativa repetição, ainda que em menor escala, do
massacre de chechenos perpetrado por Stalin, entre 1942 e 19449.
Ou mesmo, em outros termos de válido exercício de raciocínio comparativo,
como foi possível ao governo de Saddam Hussein (1969-2003) instaurar uma
autêntica ordem imperial, de controle praticamente absoluto, no âmbito políticosocial, de todo o território iraquiano, através da força das armas, contando,
entretanto, com recursos militares muito mais limitados (e despendendo valores
econômicos infinitas vezes inferior) comparativamente àqueles contabilizadamente
empregados pelos EUA em seu amplo esforço de guerra (objetivando, em um
segundo momento, a manutenção de uma ordem político-social mínima e, muitas
vezes, em caráter visivelmente precário).
4.1 Primazia Exteriorizante da Assimetria Reversa
Neste diapasão – a par de toda a sorte de eventuais controvérsias que
necessariamente norteiam o complexo tema em debate – forçoso concluir,
portanto, que, mesmo com a plena utilização da mais avançada tecnologia
militar (e, por derradeiro, com a obtenção de uma ampla superioridade bélica),
esta, quando associada às inerentes restrições de seu emprego (autolimitação)
no Campo de Batalha, simplesmente pode se traduzir em efeitos efetivos, de
ordem prática, muito diferentes daqueles naturalmente esperados, frustrando
expectativas por parte daqueles que simplesmente desconhecem o fenômeno sub
examen e conduzindo, em última análise, a resultados comparativos muito aquém
daqueles inexoravelmente obtidos através do emprego irrestrito da força militar
(e paramilitar), mesmo quando estas forças oponentes – vale destacar em tom
de sublime advertência – possam ser desprovidas (via de regra) de tecnologias
modernas, em função exatamente da inafastável presença do predomínio pontual
do fenômeno da Assimetria Reversa em sua plena efetividade, como muito bem
revelou a história militar, com notável ênfase, a partir da segunda metade do
século XX.
5 Anatomia Fenomenológica da Assimetria Reversa
Neste momento de necessária reflexão analítica – a par de naturais
perplexidades indagatórias – uma afirmação conclusiva não pode deixar de
9 Vale lembrar que, em 1942, os chechenos rebelaram-se contra o Regime Soviético, fazendo com que, em resposta, Stalin deportasse a totalidade dos chechenos (500.000) para o deserto da Ásia Central, ensejando a
morte de aproximadamente 200.000 pessoas, entre homens, mulheres e crianças.
60
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 48-65, jul./dez. 2011
Guerra Assimétrica Reversa
ser, todavia, muito bem compreendida, em uma magistral clareza, qual seja: a
denominada Assimetria Reversa não se constitui, per si, em um fenômeno isolado.
Muito pelo contrário, seu escopo de atuação, vale observar, encontra-se
umbilicalmente associado à própria noção de Assimetria Básica, revelando-se, em
certa medida, através de um genuíno “elemento exteriorizante” ínsito ao gênero
maior das “assimetrias”, relativas, por seu turno, às marcantes diferenças de postura
militar (e, por consequência, de índole tecnológica) – especialmente funcionais –
observáveis nos mais diferentes Teatro de Operações.
Por derradeiro, a anatomia da Assimetria Reversa somente pode ser
entendida, em sua completude, quando associada necessariamente à sua imagem
opositiva, representada, em sua mais enfática nitidez, por intermédio do fenômeno
contrastante da Assimetria Básica10.
Não é por outra razão, portanto, que em alguns episódios históricos, de
flagrante (e observável) onipotência da Assimetria Reversa, a Assimetria Básica
também se fez presente, - com maior ou menor ênfase -, modificando, em alguns
embates bélicos selecionados (muito embora não alterando o resultado final
prognosticado, na maioria dos casos históricos), a própria tendência inicialmente
verificada de previsível derrota militar (ou política).
Talvez um dos casos mais emblemáticos seja exatamente o conflito francês
na Argélia em que, em sua primeira fase (1954-57), o exército regular francês, em
conjunto com as forças policiais, utilizando notadamente táticas convencionais,
não conseguiu conter a crescente insurreição na então Colônia; situação em que,
após a introdução das forças especiais (paraquedistas franceses) em solo argelino
– desta feita utilizando todo o seu potencial militar, ainda que pese ter havido o
condenável uso de táticas de terror e tortura sistemática – os franceses, em uma
10 Merece especial registro, - em contraposição à exteriorização da fenomenologia da Assimetria Reversa, no que concerne ao comportamento das Democracias Ocidentais no enfrentamento de desafios análogos -, a dura repressão, desencadeada por Pequim, no início de julho de 2009, contra a etnia muçulmana uigur que resultou, segundo denúncia do líder uigur Rebiya Kadeer (Globo, 30/7/09, p. 29), em 10.000
mortos ou desaparecidos (1.700 feridos e 1.600 presos,segundo o governo chinês) em apenas uma noite,
durante os confrontos de forças policiais e militares chinesas em Urumqi, capital da Província de Xinjiang.
No mesmo sentido, igualmente merece menção a chamada “Guerra dos Cinco Dias”, no início de agosto de
2008, em que uma incursão armada, por parte da Rússia, na Geórgia, debelou, com força flagrantemente desproporcional (em reconhecida imposição clássica de Assimetria Básica) a aventura georgiana na Ossétia do Sul,
desincentivando, de forma sinérgica, qualquer tipo de nova empreitada político-militar naquela região contra
os interesses russos.
Ainda, mesmo que com menor ênfase, também vale registrar, em necessária comparação analítica, as duas
intervenções israelenses na Faixa de Gaza (2006, incluindo o sul do Líbano e 2009, restritivamente à Faixa de
Gaza), cujo objetivo central de eliminar, por completo, os constantes ataques terroristas ao território israelense, com foguetes QASSAN e Katyushe (iranianos), somente foi definitivamente obtido na segunda empreitada
(“Operação Chumbo Fundido”), onde o exército e a aviação judaicos foram utilizados com muito menos restrições de emprego (ocorreu um prévio bombardeio ininterrupto de oito dias com um saldo de mais de 420
mortos e 2.200 feridos) e com o nítido propósito de “aterrorizar a população civil”, além de destruir a infraestrutura do Hamas, eliminando seus principais líderes, em nítida oposição a anterior (e observável) exteriorização da Assimetria Reversa (relativa a fracassada intervenção de 2006).
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 48-65, jul./dez. 2011
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Reis Friede
segunda fase do conflito (1957-61), conseguiram, em pouco tempo, restabelecer
a ordem político-social, impondo, - através de efetiva exteriorização do fenômeno
da Assimetria Básica -, a absoluta superioridade militar nas montanhas, como bem
ainda na própria capital Argel11.
Apenas em função do verdadeiro escândalo que consternou toda a
sociedade francesa com a ampla divulgação das táticas (condenadas por toda
a comunidade internacional e rotuladas pela mesma como de índole “não
civilizadas”) empregadas pelos “lagartos” (denominação estereotipada através
da qual ficaram conhecidos os paraquedistas franceses), é que o fenômeno
paralelo da Assimetria Reversa mais uma vez se manifestou (desta feita, de forma
verdadeiramente implacável), impondo, em última análise, em apertada síntese,
a derrota francesa e a consequente retirada gradual das tropas (e mesmo, em
alguma medida, de cidadãos franceses) do solo argelino, viabilizando a plena
independência da Argélia.
6 Realidade Impositiva da Assimetria Reversa
Desconhecer ou desconsiderar o fenômeno da Assimetria Reversa, por todas
as razões já expostas, parece, hoje, destarte, um exercício hipotético simplesmente
inimaginável, posto, também, que muitas das aparentes contradições detectadas
nos Campos de Batalha (e em conflitos recentes, de modo geral) não poderiam ser
logicamente explicadas (e, acima de tudo, compreendidas), - encerrando um estudo
mais aprofundado do perceptível sucesso ou fracasso das intervenções militares no
final do século XX e início do século XXI -, sem que fosse necessariamente levado
em conta a própria sinergia que reveste a denominada Assimetria Reversa12.
De outro modo, como explicar, com alguma solidez argumentativa, os
desastrosos resultados obtidos pelos EUA particularmente na Guerra do Vietnã,
e mais recentemente, os resultados pífios da segunda intervenção estadunidense
11 Deve ser registrado que, à época, havia mais de um milhão de franceses em solo argelino, existindo, inclusive,
um tradicional bairro francês na capital Argel.
12 Não é por outra razão as recentes dificuldades que o Exército norte-americano tem observado (e se deparado)
nos Conflitos do Iraque e, notadamente, do Afeganistão não obstante as raízes da fenomenologia da Assimetria
Reversa transcenderem, em muito, as fronteiras temporais do século XXI (na verdade, ela remonta historicamente ao período do pós-segunda guerra mundial) e da própria natureza intrínseca dos conflitos, para, também, abranger grupos terroristas locais e ações de segurança interna.
Um contudente exemplo, foi a enorme dificuldade que a então República Federativa Alemã, durante o período
compreendido entre 1968 e 1977, registrou para combater um pequeno grupo de estudantes anarquistas, - mal
treinados e deficientemente armados (especialmente pela FPLP, na Jordânia) -, autodenominados inicialmente
de “Facção Exército Vermelho” e, posteriormente, “Grupo Baader Meinhof”, que simplesmente logrou aterrorizar uma aparentemente refém sociedade democrática alemã com assassinatos de juízes e policiais, além
de diversos ataques terroristas com bombas e outros artefatos explosivos. Não obstante toda a relutância do
governo alemão, à época, a verdade é que o conflito somente foi encerrado, em definitivo, com o sistemático
assassinato de seus líderes, em 1977, em uma prisão de Stuttgart, ocasião em que o Estado alemão, transcendendo as limitações típicas da Assimetria Reversa, - cumpre ressaltar -, fez valer, em última análise, a plenitude
do poderio de seus instrumentos de repressão interna.
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 48-65, jul./dez. 2011
Guerra Assimétrica Reversa
no Iraque, inaugurada em 2003, e da OTAN no Afeganistão, desde 2001, estas
duas últimas, inclusive, já desconsideradas dos tão propalados efeitos relativos ao
anterior ambiente internacional de confrontação bipolar indireta.
Portanto, o fenômeno da Assimetria Reversa – independentemente da
vontade dos principais protagonistas no cenário internacional – revela-se como
uma realidade que se impõe por si mesma, sendo certo, a toda evidência, que o
mencionado fenômeno se constituirá na tônica fundamental – e no verdadeiro
elemento plasmático irradiante – pertinente aos desafios estratégicos previstos
para o século XXI.
7 Efeitos Colaterais da Assimetria Reversa
Além de todos os já descritos efeitos, relativos à exteriorização do fenômeno
da Assimetria Reversa13 (perceptíveis e historicamente comprovados) nos principais
conflitos militares, cumpre ainda destacar a inafastável presença de autênticos
“efeitos colaterais” (diretos e indiretos) associados ao fenômeno, detectáveis, ao
longo da história militar recente, nos mais diversos Teatros de Operações.
Sob este espectro analítico, obrigatório reconhecer que, desde o primeiro
embate geoestratégico da Guerra Fria, ilustrado pelo bloqueio de Berlim (1948), as
tímidas respostas reativas norte-americanas vis-a-vis com a real capacidade militar
disponível daquela Nação, em cada momento histórico do pós-guerra, ensejaram,
como natural consequência, novos desafios geopolíticos, em que, de forma cada
vez mais contundente, fixou-se, de modo bem destacado, um novo paradigma
limitante do emprego da força militar, comumente designado por confrontação
bipolar indireta, além de, igualmente, estabelecer a presença inafastável, ainda que
de maneira inicialmente menos marcante (embora crescente), do fenômeno da
Assimetria Reversa, ambas em suas respectivas vertentes colaterais.
Desta feita, resta lícito concluir que a Guerra da Coréia (1950-53) foi, em certo
aspecto, uma consequência reflexa da ausência perceptível de uma reação mais enérgica
ao Bloqueio de Berlim (1948), como bem assim, a Crise dos Mísseis em Cuba (1962),
a Consolidação da Influência Soviética em Cuba (1962-85) e o início do Envolvimento
Estadunidense no Vietnã (1961-65) podem ser, em grande medida, creditados a falta de
uma resposta de John Kennedy à construção do Muro de Berlim (1961).
A própria Derrota no Vietnã (1975), neste sentido, teria sido grande
incentivadora do Expansionismo Soviético na África (1975-79), da Queda do
Regime do Xá do Irã (1979) (e autorizadora da humilhante invasão da Embaixada
Estadunidense em Teerã (1979-80)) e da própria Crise da América Central (1979-82),
13 A gênesis fenomenológica da Assimetria Reversa e, em termos mais amplos, da Guerra Assimétrica Reversa
pode ser, em grande parte, creditada à vitória do ideário teórico defendido por George Kennan (e incorporado
à Doutrina Truman em 1947, através das teses de confrontação indireta e sistema de alianças de defesa) em flagrante oposição às idéias de confrontação direta e guerra total de autoria de expressiva parcela da elite militar
norte-americana, particularmente do Gen MacArthur.
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Reis Friede
do mesmo modo que a Derrota Francesa na Indochina (1954) e a Derrota AngloFrancesa-Israelense em Suez (1956) teriam tido papel destacado na posterior Crise
da Argélia (1957-61).
Mais marcantes ainda, para se referir a temática estratégica de notável
atualidade, os resultados da Desestabilização do Irã (EUA/1979) e da Derrota
Soviética no Afeganistão (URSS/1979-89), que em conclusão absolutamente
indiscutível, permitiram a cristalização do Totalitarismo Radical nascente e, por
consequência, a derradeira expansão do Islamismo Radical.
Todos eventos que, em necessário reforço conclusivo, afirmaram-se como
marcas indeléveis, exemplificadoras dos inexoráveis resultados da colateralidade dos
efeitos dos fenômenos combinados da Confrontação Bipolar Indireta e da Assimetria
Reversa e, mais recentemente, com o fim da Guerra Fria, apenas deste último.
Em virtual contraposição aos efeitos (diretos e colaterais) dos fenômenos
mencionados, todavia, a própria história encarregou-se de registrar resultados
completamente distintos quando, por diferentes razões, o protagonista estatal
(ou transestatal) utilizou, em alguma medida, mesmo que pontualmente (no
aspecto tempo-espaço) de efetiva Assimetria Básica, a exemplo dos episódios
históricos da Retomada de Seul (1950) (em que ocorreu a perseguição sistemática
e a consequente morte de milhares de colaboradores comunistas (1950-51)), da
Ofensiva Francesa na Argélia (1957-61) (ocasião em que a determinação francesa,
através do emprego de paraquedistas e de táticas não convencionais, conduziu
a uma inconteste vitória militar), da Ofensiva Comunista do Exército Regular do
Vietnã do Norte (ENV), que, adicionados aos guerrilheiros vietcongs, logrou obter
excepcional êxito (político) (situação em que se viabilizou uma impensável tortura
sistemática em Huê com um saldo de 6.000 mortos (1968)), das Invasões Soviéticas
na Hungria (1956) e na Tchecoslováquia (1968) (desenvolvidas sem qualquer
reação local ou da Comunidade Internacional), destruição do Grupo Guerrilheiro
Maoísta Sendero Luminoso no Peru (pelo controvertido governo Alberto Fujimori
no final dos anos 90, não obstante algumas ações isoladas do grupo, após o término
daquele governo; em 2002 – ataque a bomba a embaixada norte-americana e, em
julho de 2003, sequestro de funcionários argentinos que trabalhavam no gasoduto
de Ayacucho), além do episódio mais recente (e amplamente mencionado neste
trabalho) da Segunda Ofensiva Russa na Chechênia (1999-2009), em que o exército
russo impôs, em termos plenos (e indiscutíveis), a sua vontade política, como ainda
da Operação Chumbo Fundido (conduzida por Israel, na Faixa de Gaza, em janeiro de
2009, em que morreram 1.387 palestinos, encerrando, em definitivo, o lançamento
de foguetes contra o território israelense), da chamada “Guerra dos Cinco Dias” (no
início de agosto de 2008, em que uma desproporcional força militar impôs uma
“pax” russa na Geórgia) e da dura repressão desencadeada por Pequim, no início
de julho de 2009, contra a etnia muçulmana uigur com um impressionante saldo de
milhares de mortos.
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 48-65, jul./dez. 2011
Guerra Assimétrica Reversa
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Alexandre Cassel Marques
Os Aquíferos Brasileiros e a Gestão de
Recursos Hídricos Transfronteiriços
Alexandre Cassel Marques*
Resumo
O presente trabalho investiga a situação dos aquíferos brasileiros no contexto das
relações internacionais e, em especial, a gestão de recursos hídricos transfronteiriços.
É resultado de uma pesquisa bibliográfica e de entrevistas de especialistas sobre
tema. Inicialmente, os recursos hídricos são analisados como parte de um sistema
maior – o meio ambiente – e submetidos a uma visão crítica à luz dos conceitos
de abundância e escassez hídrica, ressaltando-se o papel do ecologismo como
corrente de pensamento relevante na problemática ambiental internacional. Em
seguida, são estudados os aquíferos brasileiros quanto à sua importância e situação
atual, com destaque para o seu enquadramento no direito brasileiro e na gestão de
recursos hídricos. No prosseguimento, investiga-se a questão da soberania sobre
os recursos hídricos e seus impactos para as relações internacionais. Demonstrase, ainda, a importância do conflito pela água no mundo contemporâneo como
fonte de ameaças e oportunidades para o Brasil. Com inspiração no método de
planejamento da Escola Superior de Guerra (ESG), são apresentados os paradigmas
emergentes, as forças e vulnerabilidades brasileiras relativas ao problema em estudo,
donde emergem a Geopolítica e a Geoestratégia com foco nos aquíferos e suas
implicações para os destinos do Brasil. Uma conclusão encerra esta contribuição à
Escola Superior de Guerra e ao Brasil.
Palavras-Chave: Água. Aquíferos. Meio Ambiente. Gestão de Recursos Hídricos.
Relações Internacionais. Geopolítica. Geoestratégia.
Abstract
This work investigates the brazilian underground water situation in the context of
international relations, especially the transboardery water resources management.
It results of a bibliography search and specialists interview. First of all, water resources
are analyzed as a part of a major system – the environment – and submitted by a
critic view under the concepts of abundance and shortage of water, putting in the
headlines the ecology thinking. Then, the brazilian underground water are focused
concerning their importance and actual situation, headlining their position in the
______________
* Coronel do Exército, Diplomado pela Escola Superior de Guerra em 2008, Pós-graduado pelo Instituto COPPEAD / UFRJ e pela Fundação Getúlio Vargas, servindo no Escritório de Projetos do Exército.
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011
Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
brazilian constitutional law and in the water resources management system. After
that, this work investigates the sovereignty of water resouces and its impacts on
the international relations. Especial attention is given to water conflict around the
world as font of threats and opportunities to Brazil. Inspired on the “Escola Superior
de Guerra” (ESG) method of planning, the strengths and weakness concerning
the issue are presented. Geopolitics and Geostrategy considerations are given as
contribuition to ESG and Brazil
Keywords: Water. Environment. Water Resources Management. International
Relations. Geopolitics. Geostrategy.
1 INTRODUÇÃO
A escassez de matérias primas – água, alimentos, minerais
estratégicos e petróleo – esse último principalmente, é a
grande motivação por trás de ações militares, econômicas e
políticas conduzidas pelas grandes potências desde o fim da I
Guerra Mundial. (REVISTA DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA,
2007, p. 13).
A citação acima, escolhida para introduzir o presente trabalho, demonstra
sua importância para o desenvolvimento e a segurança do Brasil. É neste sentido,
também, que a Política de Defesa Nacional torna clara e inequívoca a relevância do
tema ao afirmar: “Países detentores de grande biodiversidade, enormes reservas
de recursos naturais e imensas áreas para serem incorporadas ao sistema produtivo
podem tornar-se objeto de interesse internacional” (BRASIL, 2005, p. 5).
Este trabalho estuda um dos assuntos da chamada agenda global – a água
– recurso abundante do Brasil e motivo de cobiça. Por meio de uma pesquisa
bibliográfica e de entrevistas de especialistas sobre o tema, é investigada a situação
dos aquíferos brasileiros no contexto das relações internacionais e, em especial, a
gestão de recursos hídricos transfronteiriços.
Os recursos hídricos são tratados aqui como parte de um sistema maior
– o meio ambiente – e submetidos a uma visão crítica à luz dos conceitos de
abundância e escassez hídrica, destacando-se o papel do ecologismo como corrente
de pensamento relevante no contexto ambiental internacional.
Faz-se ainda uma análise da soberania sobre recursos hídricos e seus impactos
para as relações internacionais. São objetos de estudo os conflitos pela água no
mundo contemporâneo como fonte de ameaças e oportunidades para o Brasil.
Com inspiração no método de planejamento da Escola Superior de Guerra
(ESG), são apresentados os paradigmas emergentes, as forças e vulnerabilidades
brasileiras relativas ao problema em estudo, donde emergem a Geopolítica e
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011
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Alexandre Cassel Marques
a Geoestratégia com foco nos aquíferos e suas implicações para os destinos do
Brasil.
2 OS RECURSOS HÍDRICOS E O ECOLOGISMO
2.1 ABUNDÂNCIA E ESCASSEZ HÍDRICA NO SÉCULO DA AGENDA 21
Abundância e escassez de água estão cada vez mais presentes na agenda da
comunidade internacional no último terço do século XX, a era do ecologismo1. Essas
duas dimensões antagônicas formam a moldura escolhida para o problema da água
neste artigo.
A Carta Europeia da Água2, proclamada, em 1968, pelo Conselho da Europa
em Estrasburgo, em plena Guerra Fria, já mencionava: “os recursos de águas doces
não são inesgotáveis. É indispensável preservá-los, administrá-los e, se possível,
aumentá-los”. E mais adiante: “á água não tem fronteiras. É um bem comum que
necessita uma cooperação internacional”.
Mas foi com a Declaração de Estocolmo de 1972, resultado da Conferência
das Nações Unidas sobre o Ambiente, marco do ecologismo, que a questão
da água entrou definitivamente para a agenda dos países desenvolvidos e em
desenvolvimento, impulsionada por uma “ideia força” muito mais abrangente e
poderosa – a preservação do meio ambiente.
Nos anos seguintes, diversas conferências e encontros internacionais vêm
mantendo o ecologismo na pauta das “preocupações essenciais da humanidade”.
Dentre essas atividades, destacam-se3:
a)Conferência das Águas, Mar del Plata, Argentina, 1977;
b)Conferência de Nairobi, Quênia, 1982;
c) Declaração de Dublin, Irlanda, 1992;
d)Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(Rio-92), Rio de Janeiro, Brasil, 1992;
e)19ª Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas (Rio + 5), Nova
Iorque, EUA, 1997;
f) Terceira Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas
sobre Mudança do Clima, Quioto, Japão, 1997;
g)Conferência Internacional sobre Água e Desenvolvimento Sustentável,
Paris, França, 1998;
1 Movimento que visa a um melhor equilíbrio entre o homem e seu meio natural, assim como a proteção dele.
Baseia-se na defesa de que apenas mudanças radicais na estrutura da sociedade industrial moderna podem
reintegrar o homem à biosfera. Corrente política que defende tais ideias (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 1097). Alguns autores preferem o termo ambientalismo.
2 Disponível em: http://www.comitepaz.org.br/carta_europeia.htm.
3 Compilação organizada com base em GRANZIERA (2006), GUERRA (2006) e QUINTIERE (2006).
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011
Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
h)Conferência do Milênio, Nova Iorque, 2000; e
i) Conferência de Joanesburgo, África do Sul, 2002.
Essas conferências significaram, por outro lado, marcos relevantes para o
Direito Internacional Ambiental, em especial a Declaração de Estocolmo e a Rio-92.
Nesta última foram produzidos documentos importantes, tais como:
a)a Declaração de Princípios sobre Florestas;
b)a Convenção sobre Diversidade Biológica;
c) a Convenção sobre Mudanças Climáticas;
d)a Agenda 21; e
e)a Declaração do Rio4.
A Agenda 21, concebida e aprovada durante a Rio-92, contém compromissos
da comunidade internacional (179 países à época) com a mudança da matriz de
desenvolvimento no século XXI. O termo “Agenda” foi concebido no sentido de
intenções, desígnio, desejo de mudanças para um modelo de civilização em que
predominasse o equilíbrio ambiental e a justiça social entre as nações.
Assim, “o chamado desafio ambiental trouxe uma verdadeira revolução
cultural, pois implica limitar a relação da sociedade mundial com o Planeta”
(PEREIRA, 2007, p. 287).
Com efeito, percebe-se que a problemática do meio ambiente tem sido
enfatizada em todo o mundo, suas causas econômicas, políticas e sociais e as possíveis
consequências para o futuro da humanidade. Imperam os paradigmas da Agenda 21.
Constatam-se com frequência na mídia escrita, eletrônica e digital - imprensa,
televisão, rádio e internet – notícias sobre a escassez de água5 na África subsaariana
e no Oriente Médio; a situação de desabastecimento de água potável em metrópoles
populosas, como em São Paulo e no Recife; ou mesmo a poluição de mananciais,
como é o caso da Bacia do Alto Tietê, na Região Metropolitana de São Paulo.
O discurso da escassez hídrica “[...] foi apropriado por políticos, comunicadores
e diversos segmentos do público em geral, que o reproduzem da mesma maneira
genérica e abstrata6 com que o receberam, divulgando uma visão parcial e distorcida
dos problemas que o cercam e, o que é pior, das possíveis soluções” (DOWBOR et
al., 2005, p. 38). Isso gera um efeito multiplicador e mobilizador em torno da ideia
de escassez hídrica global.
Como exemplo de números que são comumente utilizados para abordar as
questões mundiais da água e a degradação dos recursos hídricos do planeta Terra,
4 Uma avaliação acerca da implementação da Agenda 21 no Brasil está disponível em: http://www.scielo.br /
scielo.php? script = sci_arttext&pid=S0103-40141997000100019.
5 Como exemplo disso, o acesso na Internet, em 29 de julho de 2008, pelo verbete “escassez de água” retornou
1.780.000 artigos no sítio Google e 731.000 no Yahoo. Já o verbete “abundância de água” retornou 4.100.000
artigos no Google e 3.070.000 no Yahoo.
6 Que não é concreta, que resulta de abstração, que opera unicamente com idéias, com associação de ideias, não
diretamente com a realidade sensível (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 32).
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Alexandre Cassel Marques
Tundisi (2005, p. 53) aponta os seguintes dados fornecidos pela Organização das
Nações Unidas (ONU):
a) o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA)
identifica 80 países com sérias dificuldades para manter a disponibilidade de
água;
b) mais de 1 bilhão de pessoas com dificuldade de acesso à água
potável e 2,4 bilhões sem acesso a saneamento básico;
c) estima-se que entre 10 mil e 20 mil crianças morrem diariamente
vítimas de doenças por veiculação hídrica;
d) em algumas regiões da China e da Índia o lençol freático afunda de 2
a 3 metros anualmente e 80% dos rios são tóxicos demais para a manutenção
de peixes; e
e) cerca de 37% da população mundial vive próxima à costa, onde o
esgoto doméstico é a maior fonte de contaminação das águas do mar.
Neste debate, a “escassez geral e abstrata [de água] surge como ideia
determinante e geradora de um novo modelo global de gestão a ser adotado por
todos os países em todas as situações” (DOWBOR et al., 2005, p. 39). Existiria,
assim, uma verdadeira ideologia7 da escassez generalizada de água doce em todo o
mundo, segundo aqueles autores.
Segundo Dowbor et al. (2005, p. 37), o tratamento abstrato da questão da
água serviria aos interesses de grupos econômicos, que defendem a privatização
como solução global e diretriz para as estratégias nacionais de saneamento8, em
detrimento de alternativas públicas com a participação da sociedade e demais
atores interessados na questão.
Nota-se que, apesar dos efeitos pedagógicos e virtuosos da mobilização
mundial em torno da questão da falta de água doce, o discurso baseado em
abstrações tende a encobrir as diferenças peculiares de cada país em termos de
oferta e demanda, ocultando as verdadeiras origens históricas do problema e
dificultando a elaboração de políticas e estratégias consistentes para o futuro.
Percebe-se que o ecologismo tem implicações em todas as expressões do
Poder Nacional. Um exemplo marcante de sua influência está na internalização de
alguns de seus conceitos no próprio texto constitucional9 e em outras leis.
É importante mencionar também as políticas de instituições, como o
Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, que condicionam
7 Ciência proposta pelo filósofo francês Destutt de Tracy (1754-1836) nos parâmetros do materialismo iluminista.
Conjunto de ideias e valores que expressa interesses econômicos, políticos e sociais (Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa, 2001, p. 1565).
8 Neste trabalho, a expressão saneamento será empregada em seu sentido amplo, abrangendo as ações de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana e outras com o objetivo sanitário de controlar
doenças.
9 Ver a Constituição Federal de 1988, em especial o inciso VI do art. 170, o inciso II do art. 186 e o art. 225.
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Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
a concessão de crédito para projetos de infraestrutura dos países emergentes
à adequação aos critérios de sustentabilidade ambiental aceitos por aquelas
instituições financeiras.
Não obstante, um conjunto de novas disciplinas e técnicas, como a
Avaliação Ambiental Estratégica10 e a Auditoria Ambiental, apoiadas em normas
internacionais, como as ISO 14.000, foram criadas em decorrência do ecologismo e
sua aplicação em escala mundial, proporcionando embasamento técnico normativo
para a mitigação de impactos ambientais nos mais variados projetos. Citem-se
ainda engenhosos mecanismos de valoração dos danos ao meio ambiente11 e de
compensação ambiental, como os créditos de carbono, propostos com ênfase
para os países em desenvolvimento. Por outro lado, o pagamento pelos serviços
ambientais prestados12 por ecossistemas brasileiros preservados não é cogitado
pelos países desenvolvidos, os grandes poluidores.
Assim tem início o século da Agenda 21. Como será mostrado a seguir, não se
pretende negar o aquecimento global, os benefícios da proteção do meio ambiente
ou a escassez hídrica, mas discutir o assunto de forma a contribuir para uma reflexão
centrada nos interesses da segurança e do desenvolvimento do Brasil. Entende este
autor que o aproveitamento racional e a conservação da natureza devem caminhar
juntos.
2.2 ASPECTOS GERAIS SOBRE OFERTA, DEMANDA E POLUIÇÃO DE RECURSOS
HÍDRICOS
Pelo ângulo da oferta, a quantidade total de água disponível no planeta
depende do chamado ciclo hidrológico. De acordo com Rocha (2001, p. 246), o ciclo
hidrológico é o fenômeno global da circulação fechada da água entre a superfície
terrestre e a atmosfera, impulsionado pela energia solar associada à gravidade e
à rotação da Terra. Ele é o responsável pela renovação da água e compõe-se das
seguintes fases: precipitação, evaporação, transpiração, escoamento superficial e
escoamento subterrâneo.
Alemar (2006) cita ainda estudo apresentado pela Agência Nacional de Águas
(ANA), pelo qual se pode elaborar a seguinte tabela classificatória, tendo por base
a classificação adotada pela ONU:
10 Um estudo sobre a Avaliação Ambiental Estratégica encontra-se em ARAÚJO, 2007.
11 Uma descrição dos métodos de cálculo do valor econômico de um recurso ambiental está em QUINTIERE, 2006,
p. 244.
12 Estudo interessante sobre esse tema está em BENCHIMOL, 2001, p. 67.
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011
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Tabela 1 – 2ª Classificação dos níveis de oferta de água
Oferta de água: m³/pessoa/ano
Abaixo de 1.000
Entre 1.000 e 2.000
Entre 2.000 e 10.000
Entre 10.000 e 100.000
Acima de 100.000
Classificação
Estresse hídrico
Regular
Suficiente
Rico
Muito Rico
Fonte: MATOS; ZOBY (2004, apud ALEMAR, 2006, p. 118)
Segundo Dowbor et al. (2005, p. 150), a ONU considera como crítica uma
disponibilidade hídrica per capita anual de 1.500 m3/habitante/ano, um dos indicadores
utilizados para a comparação entre os países. Verifica-se que há distintas classificações
acerca da disponibilidade hídrica per capita.
Como mostra Tundisi (2005, p. 26), as estimativas para o Brasil ficam entre 12% e
16% do total da água doce existente no planeta, grande parte dela subterrânea. O autor
argumenta que o Brasil ocupa a 25ª posição dentre os países com maior disponibilidade
per capita anual, da ordem de 48.314 m3/habitante/ano.
De posse dos dados apresentados acima, malgrado as diferenças entre as escalas
de classificação, poder-se-ia concluir que o Brasil possui uma situação confortável, sendo
um país rico em termos de oferta hídrica.
Porém, Tundisi (2005, p. 26) cita o do Estado do Amazonas, entre outros, onde a
disponibilidade hídrica per capita anual é de 773.000 m3/habitante/ano, enquanto no
Estado do Rio e Janeiro a disponibilidade é de 2.189 m3/habitante/ano e em Pernambuco,
de 1.270 m3/habitante/ano. Existem diferenças marcantes entre as regiões brasileiras.
Enfocando a oferta de água no Rio Tietê, Dowbor et al. (2005, p. 150) menciona a
cidade de São Paulo, onde a Bacia do Alto Tietê conta com uma disponibilidade hídrica
da ordem de 201 m3/habitante/ano, o que pode ser classificado como situação crítica.
Portanto, conclui-se que, além das diferenças de critérios para a classificação da
oferta e da demanda hídrica, existem diferenças de disponibilidade hídrica relevantes
no Brasil, seja entre unidades da federação, seja dentro de um mesmo estado. A oferta
de água abaixo dos níveis recomendados é uma realidade em seis estados da federação
e no Distrito Federal.
Analisado sumariamente o quadro de oferta de água doce no Brasil, em se
tratando de possíveis cenários para o mundo, pode-se ter uma ideia de como a redução
da disponibilidade hídrica evoluirá no planeta até 2015 por meio da figura 1 abaixo13.
Percebe-se que a redução da disponibilidade hídrica no mundo também não será
uniforme, visto que cada país apresenta marcantes diferenças geográficas, econômicas
e sociais em seu território, levando a uma grande variação entre os países.
13 Fonte: CENTRAL INTELLIGENCY AGENCY (CIA). Global Trends 2015: a dialogue about the future with nongovernment experts, 2000.
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011
Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
Pode-se então inferir que, no futuro próximo, continuará existindo países
com abundância de água; e outros, em número crescente, com escassez. Dentre
estes últimos estarão potências econômicas e militares, como Estados Unidos,
China, Índia e União Europeia.
Figura 1 - Evolução da disponibilidade de água no mundo
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Pelo lado da demanda de água, Tundisi (2005, p. 43) aponta os principais usos
múltiplos da água, em que residiriam as mais importantes fontes de conflito14:
a) abastecimento público em áreas urbanas e em áreas rurais;
b) irrigação e agricultura;
c) usos industriais, destacando-se o resfriamento de água e máquinas,
abastecimento, diluição e limpeza;
d) navegação (hidrovias);
e) turismo e recreação;
f) produção de hidroeletricidade; e
g) pesca, piscicultura, e pecuária.
O consumo de água de cada usuário varia de país para país e de região para
região em um mesmo território. Explica Tundisi (2005, p. 39) que o uso na agricultura
é o mais importante, correspondendo a 70% do consumo total, seguindo-se os usos
na indústria (7%), no abastecimento público (13%) e para consumo animal (10%).
Conforme mostra Dowbor et al. (2005, p. 103), no Brasil, os índices de
abastecimento de água mostram que há enormes desigualdades entre regiões
e entre ricos e pobres. Os mais prejudicados são aqueles que vivem nas favelas,
periferias e pequenas cidades. Segundo levantamentos15, o saneamento básico
atinge em torno de 60% dos domicílios urbanos e 13% dos domicílios rurais,
representando um grande passivo social.
Não obstante, outro aspecto relevante a ser estudado, a qualidade da água,
depende de suas propriedades físico-químicas e biológicas, sendo afetada pela
poluição. Ao discorrer sobre os principais agentes poluidores, de maneira geral os
autores pesquisados citam os resíduos fecais, os fertilizantes usados na lavoura, os
agrotóxicos, os detergentes, os ácidos, os óleos em geral e o petróleo em particular,
os metais pesados e, finalmente, os fármacos.
Quintiere (2006, p. 50) aponta que a consequência direta da poluição da
água se traduz na necessidade das sociedades arcarem com custos cada vez mais
elevados para o restabelecimento dos níveis de qualidade considerados adequados
para cada uso.
Assim, pode-se concluir esta subseção afirmando que a escassez de recursos
hídricos não se manifesta de forma homogênea e generalizada no mundo, mas de
forma heterogênea e algumas vezes pontual.
Por outro lado, inserida no quadro mais amplo do ecologismo, a ideologia de
escassez hídrica global vem mobilizando populações e governos em torno do tema,
que, em algumas ocasiões, é tratada de forma abstrata e incompleta.
Não se trata de negar o problema da escassez de água doce, nem da poluição,
mas de aceitar que não são globais, variam de país para país, região para região,
14 Entendido como choque de interesses, de qualquer natureza, podendo ser armado ou não.
15 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/ /home/
estatistica/populacao/default_censo_2000. Acesso em: 23 jun. 2008
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Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
cidade para cidade. São questões derivadas da evolução sócio-econômica de
cada país a serem enfrentadas com dados e fatos, ciência e tecnologia, não com
abstrações.
O Brasil, que pode ser considerado uma potência hídrica em termos absolutos,
enfrenta graves problemas de escassez hídrica e poluição em determinadas regiões,
como foi visto.
Embora algumas vezes omitidos ou pouco citados, os aquíferos brasileiros
fazem parte desse contexto. Assim, suas peculiaridades, importância, tutela jurídica
constitucional e sistema de gestão serão analisados a seguir.
2 OS AQUÍFEROS BRASILEIROS E A GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS
2.1 IMPORTÂNCIA E SITUAÇÃO DOS AQUÍFEROS BRASILEIROS
Devido ao seu posicionamento ou distribuição espacial, as águas se
classificam em “superficiais (enxurradas, rios, córregos, lagos, açudes),
subsuperficiais (infiltradas a pequenas profundidades), subterrâneas (são os
aquíferos subterrâneos, lençóis freáticos) e oceânicas” (ROCHA, 2001, p. 241).
Rocha calcula que as águas subterrâneas correspondam a 35,44 vezes o
volume de águas superficiais e que “a manutenção e a pureza das águas dos
rios, pântanos (banhados) e lagos têm sua origem nas águas subterrâneas
(lençol freático).”
Este fato decorre da interrelação entre as águas superficiais e subterrâneas.
As águas dos aquíferos mais superficiais (freáticos) tendem a chegar aos rios 16,
fornecendo-lhes vazões nos períodos mais secos. Isso permite uma avaliação
preliminar sobre a importância dos aquíferos e sua conexão com os recursos
hídricos superficiais, em especial os rios.
Rocha (2001, p. 259) cita os seguintes números: somente um dos
reservatórios subterrâneos do Nordeste17 brasileiro possui um volume de onze
trilhões de metros cúbicos de água disponível para consumo humano, volume
suficiente para abastecer toda a atual população brasileira, da ordem de 170
milhões de pessoas18, por um período de 60 anos. E vai mais longe ao dizer que
o Brasil possui o impressionante volume de 111 trilhões e 661 bilhões de metros
cúbicos de água em suas reservas subterrâneas.
Segundo o autor, o Aquífero Guarani é o maior do planeta e possui um
volume de água imenso, suficiente para abastecer toda a população atual do
16 REVISTA ÁGUAS SUBTERRÂNEAS. São Paulo: Associação Brasileira de Águas Subterrâneas, ano 1, no 3, jan./fev.
2008, p. 4.
17 Ver o Projeto Cadastro da Infraestrutura Hídrica do Nordeste a cargo da Companhia de Pesquisa de Recursos
Minerais. Disponível em: < http://www.cprm.gov.br/rehi/projeto.pdf >. Acesso em 19 ago. 2008.
18 Valor correspondente ao censo 2000. Fonte: IBGE, disponível em: < http://www.ibge.gov.br/ /home/estatística/população/ default_ censo_2000 >. Acesso em 23 jun. 2008
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mundo, ou seja, seis bilhões de pessoas, até o ano de 2.400. Ocupa uma área de
840.000 Km2 do território nacional.
Cita, ainda, que no Piauí e no Rio Grande do Norte existem importantes
plantações irrigadas com água de poços profundos, com culturas de uvas e
cítricos para exportação, e que o Estado de São Paulo é o maior usuário de
águas subterrâneas, tendo cerca de 90% das indústrias abastecidas parcial ou
totalmente com esse recurso.
Os principais sistemas aquíferos do País19 são apresentados na figura 2,
com suas reservas explotáveis20 estimadas. Note-se que parte deles situa-se
na fronteira com países vizinhos, quais sejam: Uruguai, Argentina, Paraguai,
Bolívia, Peru, Colômbia e Guiana.
Conforme levantamento da Agência Nacional de Águas estima-se que
existam no País pelo menos 400.000 poços, dos quais 160.00021 se encontram
cadastrados no Sistema de Informações de Águas Subterrâneas (SIAGAS)22 da
Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM). A água subterrânea de
poços e fontes é intensamente explotada no Brasil e vem sendo utilizada para
diversos fins, como para o abastecimento humano, a irrigação, a indústria e o
lazer.
A disponibilidade hídrica subterrânea e a produtividade de poços são,
geralmente, os principais fatores determinantes na explotação dos aquíferos.
Em função “do crescimento descontrolado da perfuração de poços tubulares e
das atividades antrópicas, que acabam contaminando os aquíferos, a questão
da qualidade da água subterrânea está se tornando cada vez mais importante
para o gerenciamento do recurso hídrico no País” (BRASIL, 2007b, p. 65).
Porém, como aponta Rocha (2001, p. 277), a maior parte dos estudos de
qualidade da água subterrânea, publicada recentemente, volta-se à caracterização
de áreas contaminadas. A questão da vulnerabilidade e proteção dos aquíferos 23
é ainda um tema pouco explorado e que necessita ser incorporado à gestão das
águas subterrâneas e ao planejamento do uso e ocupação territoriais 24.
19 Disponível em: < http://www.ana.gov.br/SalaImprensa/projetos/livro_GEO.pdf >. Acesso em: 10 jun. 2008.
20 Reserva explotável do aquífero é o volume real que pode ser retirado sem prejuízo para o meio ambiente como
um todo, inclusive as restituições para os cursos d’água superficiais, a preservação das culturas implantadas, as
obras de captação já instaladas e outras demandas dependentes desse potencial (BRASIL, 2007b).
21 Dado colhido com o Engo. Humberto Albuquerque, chefe do setor de hidrogeologia da CPRM.
22 Disponível em: <http: //siagas. cprm.gov.br/ wellshow/ indice.asp? w=1024&h= 764&info =1>. Acesso em 19
ago. 2008.
23 Encontra-se em implantação o projeto da Rede Nacional de Monitoramento Integrado das Águas Subterrâneas,
a cargo da CPRM, que visa a suprir essa necessidade.
REVISTA ÁGUAS SUBTERRÂNEAS. São Paulo: Associação Brasileira de Águas Subterrâneas, ano 1, no 5, jan./fev.
24
2008, p. 18.
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Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
Figura 2 - Principais sistemas aquíferos do Brasil
Fonte: Agência Nacional de Águas
“O Brasil não possui uma rede nacional de monitoramento de águas subterrâneas.
Por isso, existe uma grande carência de informação a respeito da qualidade das águas,
especialmente de abrangência regional” (BRASIL, 2007b, p. 64).
Percebe-se que o Brasil ainda apresenta uma deficiência séria no conhecimento
do potencial hídrico de seus aquíferos, do seu estágio de explotação e da qualidade
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das suas águas. Os estudos regionais são poucos e se encontram defasados.
O Sistema Aquífero Guarani (ou Botucatu), por exemplo, muito comentado nos
últimos anos, tem recebido especial atenção dos pesquisadores, mas ainda precisa
de estudos. Sabe-se que “o sistema aquífero [Guarani] apresenta-se em vários locais
compartimentado por falhamentos geológicos expressivos e por intrusões e rochas
[...] que funcionam como barreiras hidráulicas, segmentando o aquífero, afetando
o fluxo subterrâneo e a qualidade da água” (ROSA FILHO, 2006).
O mesmo pesquisador aponta que a espessura do Aquífero Guarani é muito
variada, desde valores inferiores a dez metros até superiores a 300 m. “Em alguns
pontos são possíveis extrações acima de 400.000 l/h/poço. Em contrapartida,
existem locais onde as vazões são muito baixas” (ROSA FILHO, 2006).
E complementa Rosa Filho (2006), afirmando que, nas regiões onde o sistema
aquífero ocorre em maiores profundidades, a água (in natura), muitas vezes,
não é adequada ao consumo humano. Sob o ponto de vista hidráulico, ele não é
transfronteiriço em toda a área de ocorrência, havendo continuidade na região
entre o Mato Grosso do Sul e Paraguai, e entre o sudoeste do Rio Grande do Sul,
Argentina e Uruguai.
Concluindo, pode-se afirmar que as águas subterrâneas representam uma
riqueza natural importante para o País, para o atendimento atual e futuro de diversas
demandas, compartilhada, em parte, com vizinhos da América do Sul. Embora
careça de estudos quali-quantitativos, essa riqueza já está bastante explorada em
algumas regiões e sujeita a poluição oriunda de diversas fontes.
Assim, analisada a importância e a situação geral das águas subterrâneas
no Brasil, importa estudar como essas águas se encontram tuteladas no direito
constitucional brasileiro.
2.2. OS AQUÍFEROS NO DIREITO BRASILEIRO
Alguns autores consideram a legislação de águas, no Brasil, um verdadeiro
cipoal. Em princípio, este autor concorda, pois as dúvidas relativas à matéria
decorrem em parte da própria Constituição Federal de 1988 (CF/88). Ao definir os
bens e as competências da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
a Carta Magna dá margem a interpretações que podem levar à confusão acerca da
competência legislativa e administrativa, bem como sobre domínio dos recursos
hídricos.
Longe de querer esgotar o tema neste trabalho, cabe aqui explicar que,
em termos de águas doces, tanto a União quanto os Estados e o Distrito Federal
possuem competência legislativa e administrativa sobre a matéria, conforme o
direito constitucional brasileiro.
Via de regra, a União, ao legislar sobre águas, estabelece normas gerais,
de aplicação nacional, relativas às águas federais e estaduais, com a finalidade de
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Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
criar, alterar ou extinguir direitos. Não se confundem esses direitos com as normas
administrativas estabelecidas pelos Estados Federados, mesmo que sob forma de
lei.
Assim, a União tem competência para estabelecer as normas gerais sobre
recursos hídricos, os Estados e o Distrito Federal legislam no interesse regional e
os municípios sobre assuntos de interesse local (art. 30, I da CF/88), assim como
podem suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (inciso II).
Feitas essas considerações iniciais, é importante ressaltar que a partir da
promulgação da CF/88, todas as águas passaram a pertencer à União, aos Estados
ou ao Distrito Federal, conforme sua localização. Segundo a lei brasileira, os recursos
hídricos são bens de domínio público, de uso comum, sujeitos à escassez e, por
conseguinte, dotados de valor econômico.
Isso se deve também em função da nova Lei das Águas do Brasil, Lei no
9.433/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e, dentre diversas
inovações, extinguiu as águas particulares e introduziu novas fórmulas para a
administração dos recursos hídricos.
Comenta-se que as principais melhorias, introduzidas pela Lei no 9.433/97,
foram a transferência de uma parcela do poder de decisão acerca do uso de águas
doces aos usuários da água e à sociedade civil, bem como o conceito de bacia
hidrográfica como unidade de planejamento e gestão de águas. Isso será tratado
mais adiante.
Neste ponto, importa destacar o que prevê a CF/88, art. 20, inciso III, sobre
os bens da União:
Os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais
de um Estado, sirvam de limites com outros países, se estendam ao território estrangeiro ou
dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais (BRASIL, 1988).
Aqui reside uma questão relevante para o direito de águas e as relações
internacionais, como será discutido mais adiante, uma vez que nenhum EstadoNação detém o domínio absoluto de um corpo d’água que faz fronteira com outro
país, por tratar-se de recurso hídrico compartilhado.
Há, nestes casos, a necessidade de articulação entre as soberanias limítrofes.
A Lei no 9.984/00, que instituiu a Agência Nacional de Águas, dispõe em seu art.
4º, parágrafo 1º, que aquela autarquia deverá considerar, nos casos de bacias
hidrográficas compartilhadas com países vizinhos, os respectivos acordos e tratados
entre os países.
Sendo esse o quadro geral do ordenamento constitucional de águas no Brasil,
a pergunta que emerge é: como estão enquadrados os aquíferos?
Nos termos do art. 26, inciso I, da CF/88, incluem-se entre os bens dos Estados
e do Distrito Federal “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011
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ou em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras
da União” (BRASIL, 1988).
Granziera (2006, p. 80) explica que a CF/88, ao fixar as normas relativas à
questão das águas que pertencem aos Estados, adotou o princípio da exclusão,
ou seja, as águas estaduais são aquelas que não pertencem à União. O texto
constitucional também estabeleceu que as águas subterrâneas pertencem aos
Estados, sem citá-las ao tratar da União. Aqui reside a dúvida relativa a não existirem
águas subterrâneas de domínio da União.
Para elucidar esta dúvida, Granziera cita Vladimir Passos de Freitas:
Apesar da importância, as águas subterrâneas não vêm sendo objeto de regulamentação.
Segundo o art. 26, inc. I, da Constituição Federal, elas se incluem entre os bens dos Estados.
[...] O domínio das águas subterrâneas ordenado na Carta Magna não resolve, por
completo, as dúvidas existentes. Discute-se, por exemplo, a quem pertencem essas águas
quando se estendem pelo território de mais de um país, como por exemplo, o aquífero
de Botucatu [...]. Todavia, a meu ver, não é possível concluir que tal circunstância torne
as águas subterrâneas bens da União, pois inexiste qualquer dispositivo na Carta Magna
que disponha de tal forma. E não é possível falar-se em analogia com a situação das águas
superficiais, ou seja, os rios que dividem ou atravessam dois ou mais Estados (GRANZIERA,
2006, p. 81, grifo nosso).
Por fim, Granziera (2006, p. 81) argumenta que, de fato, não há base
constitucional para o entendimento que as águas subterrâneas, subjacentes a mais
de um Estado, sejam do domínio da União.
Portanto, pode-se afirmar que as águas subterrâneas carecem de uma melhor
regulamentação no direito constitucional brasileiro, que torne clara e transparente
a atual situação duvidosa quanto ao seu domínio, em particular devido à grande
quantidade desse importante recurso debruçado sobre as fronteiras brasileiras com
países da América do Sul, quais sejam Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru,
Colômbia e Guiana.
2.3 ASPECTOS GERAIS SOBRE A GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL
Comentou-se acima que a Lei no 9.433/97 introduziu melhorias relevantes na
administração dos recursos hídricos brasileiros. Contudo, este avanço não resultou
de medidas proativas tão somente.
Em verdade, resultou de um processo de conscientização nacional acerca
do problema da poluição hídrica e da escassez de água doce em importantes
regiões do país, particularmente em grandes metrópoles como São Paulo, e em
polos industriais. Refletiu, sobretudo, a internalização de princípios do Direito
Internacional Ambiental e, em especial, os conceitos de desenvolvimento sustentável
no ordenamento jurídico brasileiro.
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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011
Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
A esse respeito, argumenta Granziera (2006, p. 46) que nas declarações
emanadas das conferências sobre meio ambiente dois tipos de princípios se
destacam: uns a serem observados pelos Estados diante dos demais; outros a serem
adotados internamente, na busca de soluções para minimizar os efeitos da poluição
e da degradação ambiental.
Conforme afirma Tundisi (2005, p. 79), o próprio conceito de “gestão das
águas” surgiu nesse contexto, em substituição ao de “tratamento”. E, nas últimas
duas décadas do século passado, o controle da contaminação e a gestão das águas
passaram a ser integrados, ou seja, incluindo todos os componentes do ciclo, como
as águas atmosféricas, as superficiais e as subterrâneas.
Assim, a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), instituída com a Lei no
9.433/97, baseia-se nos seguintes fundamentos (art. 1º):
I) a água é um bem de domínio público;
II) a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;
III) em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o
consumo humano e a dessedentação de animais;
IV) a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo
das águas;
V) a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da
Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos;
VI) a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a
participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades (BRASIL,
1997).
Os objetivos fixados pela Política Nacional de Recursos Hídricos são (art. 2º):
I) assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de
água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;
II) a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o transporte
aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável;
III) a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem
natural ou decorrentes de uso inadequado dos recursos naturais. (BRASIL,
1997).
Para Granziera (2006, p. 117), o gerenciamento de uma bacia hidrográfica
envolve objetivos, diretrizes e instrumentos. Antes que qualquer plano de gestão
possa ser desenvolvido, os objetivos devem ser matéria de acordo entre os diversos
usuários da água, particularmente no tocante aos índices de qualidade almejados
e os compromissos que devem ser acertados entre os usos conflitantes, como, por
exemplo, entre geração de energia elétrica e navegação.
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 66-97, jul./dez. 2011
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Alexandre Cassel Marques
Resta, ainda, definir os instrumentos de planejamento e de controle da Lei no
9.433/97, que a caracterizam como um instrumento de planejamento econômico,
a saber:
a) instrumentos de planejamento: plano de bacia hidrográfica; a classificação,
o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes;
e o sistema de informações sobre recursos hídricos;
b) instrumentos de controle: a outorga; o licenciamento ambiental; e a
cobrança pelo uso dos recursos hídricos.
Desses instrumentos, cumpre destacar, por sua relevância, o plano de bacia
hidrográfica e a cobrança pelo uso dos recursos hídricos. O primeiro diz respeito
ao planejamento estratégico e integrado dos recursos hídricos dentro de uma
mesma bacia hidrográfica, cuja aprovação é competência dos comitês de bacia
hidrográfica.
É uma ferramenta moderna de gestão que pode levar a conflito. “[...] o
conteúdo do plano, na forma fixada no art. 7º da Lei no 9.433/97, não só pode
estabelecer indiretamente um zoneamento de bacia hidrográfica, como pode,
também, alterar o uso e ocupação do solo, ainda que esse tema seja de competência
municipal” (GRANZIERA, 2006, p. 144).
A cobrança é um dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos instituídos
pela Lei nº 9433, de 8 de janeiro de 1997, cujo objetivo é estimular o uso racional da
água e gerar recursos financeiros para investimentos na recuperação e preservação
dos mananciais das bacias. Não é um imposto, mas um preço público, fixado a partir
de um pacto entre os usuários de água, sociedade civil e poder público no âmbito
do comitê de bacia, com o apoio técnico da Agência Nacional de Águas (ANA).
Compete à ANA operacionalizar a cobrança pelo uso dos recursos hídricos de
domínio da União e repassá-los integralmente à agência de águas da bacia, segundo
determina a Lei nº 10.881, de 9 de junho de 2004, cabendo àquela instituição
alcançar as metas previstas no contrato de gestão assinado com a Agência Nacional
de Águas, instrumento pelo qual estes recursos são transferidos.
Citando, como exemplo, a bacia do rio Doce (MG e ES) implantou a cobrança em
2011 e se espera uma arrecadação de R 13,2 milhões em 2012. Além disso, a cobrança
está em funcionamento na bacia do Rio Paraíba do Sul (MG, RJ e SP) desde 2003; na dos
rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (MG e SP) desde 2006, e na do São Francisco (AL, SE,
PE, BA, MG, GO DF) desde 2010. Até o ano passado (2011), foram arrecadados R$ 146
milhões, utilizados em diversas ações, como recuperação de matas ciliares, preservação
de nascentes e construção de estações de tratamento de esgotos25.
Cabe, finalmente, destacar que no tocante à inserção dos recursos hídricos
subterrâneos nos Planos de Recursos Hídricos, a Resolução no 22/2002 do
25
Disponível em: http://sosriosdobrasil.blogspot.com/2011/11/bacia-do-rio-doce-comeca-cobranca-pelo.html.
Acesso em: 14 fev. 2012.
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Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
CNRH26 estabelece em seu art. 2º que: “os Planos de Recursos Hídricos devem
promover a caracterização dos AQUÍFEROS e definir as interrrelações de cada
aquífero com os demais corpos hídricos superficiais e subterrâneos e com o
meio ambiente, visando à gestão sistêmica, integrada e participativa das águas”
(BRASIL, 2002).
Caracterizado, assim, o novo paradigma de gestão para os recursos hídricos
brasileiros, um recurso ambiental estratégico e importante para o fortalecimento
do Poder Nacional, torna-se necessário abordá-lo sob a ótica das relações
internacionais, pois aí repousam questões essenciais para a segurança e a defesa
do Brasil, como será visto a seguir.
3 A PROBLEMÁTICA DOS RECURSOS HÍDRICOS TRANSFRONTEIRIÇOS
3.1 SOBERANIA, RECURSOS HÍDRICOS E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Uma breve análise da inserção e da importância dos recursos hídricos
brasileiros no cenário e no contexto mundial assinala assuntos relevantes e
singulares, principalmente no que se refere ao subcontinente sul-americano.
Segundo a CF/88, art. 1º, um dos fundamentos da República Federativa
do Brasil é a soberania. Para a Escola Superior de Guerra, em seus conceitos
fundamentais, soberania significa:
Manutenção da intangibilidade da Nação, assegurada a capacidade de autodeterminação e
de convivência com as demais Nações em termos de igualdade de direitos, não aceitando
qualquer forma de intervenção em seus assuntos internos, nem participação em atos dessa
natureza em relação a outras Nações (ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, 2008a, p. 25).
Para Reale (apud Guerra, 2006, p. 112), a soberania significa o poder de
organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade
de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência.
A CF/88, art. 4º, ao definir os princípios basilares que regem as relações
internacionais do Brasil, aponta, entre outros, a independência nacional, a
autodeterminação dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os Estados e a
solução pacífica dos conflitos.
Por outro lado, “a relativização do conceito de soberania é tida como
pressuposto para a construção e evolução do Direito Internacional. Segundo Kelsen27,
os Estados são soberanos na medida em que não exista Direito Internacional ou que
não se suponha sua existência.” (GUERRA, 2006, p. 111).
26 Disponível em: <http://www.cnrh-srh.gov.br/>. Acesso em: 28 ago. 2008.
27 O autor cita KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 526.
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Alexandre Cassel Marques
Entretanto, no âmbito internacional, “a soberania vai ser limitada pelos
imperativos da coexistência de Estados soberanos [...]” (GUERRA, 2006, p. 112).
Fica claro que o imperativo da coexistência pacífica entre soberanias cresce de
importância na manutenção da ordem internacional. Embora os Estados reafirmem
a soberania sobre os recursos naturais em seus territórios, surge a noção de
soberania compartilhada.
Assim, quanto a recursos hídricos transfronteiriços, devem ser cogitadas as
seguintes questões de destaque:
a) os Estados têm direito soberano aos recursos hídricos que ocorrem livres
na natureza e não respeitam as fronteiras políticas?
b) estaria o Estado sujeito a uma possível intervenção ou ingerência em
matéria de recursos hídricos?
c) recursos hídricos poderiam dar margem a casus beli28?
Em relação às duas primeiras questões, é sabido que durante as
conversações que antecederam a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, Rio-92, houve por parte de alguns países
desenvolvidos uma tentativa de evitar a referência ao direito soberano e aprovar
a tese do dever de ingerência, em particular em questões humanitárias e de
meio ambiente.
Graças à ação decidida de países em desenvolvimento, dentre eles o Brasil,
tal postulado não prosperou e venceu o princípio consagrado de que os Estados
têm o direito soberano de explorar seus recursos segundo suas próprias políticas de
meio ambiente e desenvolvimento.
Apesar disso, o movimento ecologista internacional vem perseguindo
o objetivo de garantir o direito de intervenção em matéria ambiental. O meio
ambiente “não foi, ainda, razão jurídica anunciada para qualquer intervenção
militar” (GUERRA, 2006, p. 120), mas atos de ingerência já foram realizados em seu
nome se considerarmos iniciativas nos campos político, econômico e diplomático.
Aí repousa grande ameaça para o Brasil.
O Brasil tem participado ativamente de importantes fóruns e iniciativas
internacionais que tratam dos recursos hídricos, nas diferentes vertentes técnicas
e políticas da abordagem de temas, tais como a universalização do acesso à água, a
conservação e a gestão dos recursos ante os problemas ambientais que os afetam,
a importância econômica e, principalmente, o papel desses recursos nas políticas
de desenvolvimento.
Buscando fortalecer essa posição no cenário internacional, o País é
signatário das mais importantes convenções e declarações internacionais que
28 Casus beli: expressão latina que significa razões que justificariam a guerra.
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Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
tratam direta ou indiretamente da questão dos recursos hídricos, conforme já
foi visto.
No contexto das relações bilaterais, de modo análogo, o Brasil tem buscado
fortalecer sua posição, principalmente no continente sul-americano, procurando
contribuir para uma análise mais racional e menos ideológica dos problemas e
dos desafios da gestão dos recursos hídricos na região que resulte em uma efetiva
articulação e em benefícios mútuos dos países.
Neste esforço nacional de contemplar e priorizar o tema de recursos hídricos
no contexto internacional, o País tem considerado como instrumentos importantes:
buscar estabelecer relação de cooperação com os países vizinhos a partir de um
compartilhamento das informações técnicas e de apoio ao fortalecimento da
capacitação técnica das instituições; priorizar ações e projetos que contemplem
as bacias dos rios fronteiriços e transfronteiriços; e contribuir com a discussão da
gestão integrada dos recursos hídricos, seja no aprimoramento de suas políticas
internas, seja na expansão de suas experiências e práticas de gestão.
Ocorre que a experiência histórica brasileira na gestão internacional de
recursos hídricos se deve exclusivamente às águas superficiais. Sobre isso, cabe
destacar os seguintes tratados:
a) da bacia da Lagoa Mirim e do Rio Quaraí, com o Uruguai (1963);
b) da bacia do Prata, envolvendo inicialmente a República das Províncias
Unidas do Rio da Prata (1828), o Uruguai (1851), a Argentina (1857); a Argentina, a
Bolívia, o Paraguai e o Uruguai (1967);
c) de Itaipu, com o Paraguai (1973);
d) da bacia Amazônica, envolvendo Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana,
Peru, Suriname e Venezuela (1978), posteriormente reafirmado, em 1998, no bojo
do Pacto Amazônico; e
e) o Acordo-Quadro sobre Meio Ambiente do Mercado Comum do Sul
-Mercosul- (2001).
Mais recentemente, uma nova iniciativa vem ganhando relevância no âmbito
do Mercosul, pela primeira vez dedicada aos recursos hídricos subterrâneos.
Trata-se do Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável
do Sistema Aquífero Guarani (PSAG)29, que se encontra em andamento desde 2000
e cujo objetivo é formular um marco legal para a gestão compartilhada dos recursos
hídricos subterrâneos pelos quatro países envolvidos (Argentina, Brasil, Paraguai e
Uruguai).
Os recursos para este projeto são do Global Environment Facility (Fundo
Mundial para o Meio Ambiente), sendo a agência implementadora o Banco Mundial
e a agência executora internacional a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Outra iniciativa relevante, no mesmo sentido, o Programa International
29 Ver Projeto Aquífero Guarani: disponível em: < http:// www.mma.gov.br/ index.php ? ido = conteúdo. Monta
&id Estrutura=73&id Menu=4213>. Acesso em: 17 jul. 2008.
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Shared (Transboudary) Aquifer Resource Management (ISARM)30 Américas, foi
lançado a partir de 2000.
No Brasil, o objetivo desse programa é elaborar diretrizes para gestão de
aquíferos transfronteiriços, identificando-os, caracterizando-os e desenvolvendo
projetos conjuntos com outros países. Abrange os aquíferos localizados em estados
que tem fronteiras com países vizinhos, a saber:
a) Amazonas (Solimões-Iça) – Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e
Venezuela;
b) Pantanal – Brasil, Paraguai, Bolívia;
c) Boa Vista / Serra do Tucano / North Savana- Brasil e Guiana;
d) Grupo Roraima - Brasil, Guiana e Venezuela;
e) Costeiro - Brasil e Guiana Francesa;
f) Aquidauna / Aquidaban - Brasil e Paraguai;
g) Litorâneo / Chui - Brasil e Uruguai;
h) Permo / Carbonífero - Brasil e Uruguai;
i) Serra Geral – Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina;
j) Guarani – Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina; e
k) Caiuá-Bauru / Acaray – Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina.
Assim, quanto às duas primeiras questões de destaque, pode-se concluir que
o Brasil tem buscado reafirmar sua soberania sobre os recursos naturais com base
em uma postura flexível e de cooperação com seus vizinhos.
Essa postura tem sido cada vez mais significativa em função da história e
da terceira questão de destaque, quanto à possibilidade de casus beli, a qual será
estudada a seguir.
3.2 A DISPUTA PELA ÁGUA: AMEAÇAS E OPORTUNIDADES
Pessoas envolvidas com a segurança e o desenvolvimento nacionais,
frequentemente se perguntam: a disputa pela água poderá levar Estados-Nações
à guerra no futuro?
Wally N’Dow (apud DOWBOR, 2005, p.105) considera que grande parte dos
conflitos políticos e sociais no futuro deixará de ter como causa o petróleo e será
provocada pelas disputas em torno da água.
Para Silva (2005), na Europa, hoje, a poluição industrial – por exemplo,
no Reno – ou a qualidade hídrica – no caso das águas calcáreas da França e da
Alemanha – obrigaram a população a aceitar a água como mercadoria vendida
em supermercados. A precificação da água e sua mercantilização são uma
realidade.
Segundo ele, coincide a existência de extensas reservas hídricas,
populações em expansão, conflitos étnicos e religiosos, além de escassez de
30 Ver Projeto ISARM Américas: disponível em: < http:// www.mma.gov.br >. Acesso em: 17 jun. 2008.
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Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
recursos para a preservação, já que a maioria dos países da região se encontra
sob forte monitoramento financeiro internacional visando à implantação de
gestões neoliberais.
E conclui dizendo que, neste sentido, a água se tornou uma questão de
segurança e de defesa do Estado Nação, devendo constar do planejamento
estratégico de todos os países, em especial daqueles considerados “fontes
hídricas”.
Já Adeodato (2008, p. 32), ao investigar a situação da água no semiárido
nordestino, registra que os projetos financiados pelo Banco Mundial, para
permitir a irrigação de cultivos agrícolas no Estado do Ceará e suprir as
necessidades de Fortaleza, vêm provocando conflitos. Isso ocorre na medida
em que as populações ao longo do Canal da Integração, em cidades como Nova
Jaguaribara, carentes de oferta de saneamento básico, desviam ilegalmente
água para sua sobrevivência.
Por outro lado, Gleik (apud ADEODATO, 2008, p.38) destaca que com o
aquecimento global a situação dos conflitos pela água tende a se agravar.
Na América do Sul, Adeodato (2008, p. 39) cita a possibilidade de
conflitos pela água da Bacia do Rio da Prata, em que pese a situação favorável
da oferta hídrica. Sustenta que o aumento da população, as culturas irrigadas
e a industrialização crescente, inclusive para a indústria florestal, podem
comprometer a oferta de água doce, em especial dos aquíferos.
Bouguerra (2004, apud ALEMAR, 2006, p. 207) declara que “é difícil
provar que a água é a causa de um conflito, pois, muitas vezes, as causas são
múltiplas”.
Já Alemar (2006, p. 207) afirma que se a utilização de um curso d’água
passa a ser motivo de discórdia entre dois ou mais Estados, é porque falharam na
avaliação de suas responsabilidades recíprocas. E mais, foram “incapazes – por
razões políticas, religiosas, éticas ou econômicas – de compartilhar e gerenciar
conjuntamente um recurso comum no interesse de todas as partes (PETRELLA,
2002 apud ALEMAR 2006, p. 207).”
A fim de apresentar uma síntese dos conflitos pela água no mundo
contemporâneo, organizou-se a tabela 2 a seguir, com base em pesquisa realizada
nas fontes citadas acima. Alguns desses conflitos foram resolvidos mediante acordos
internacionais, enquanto outros ensejaram guerras, ou contribuíram para tal.
Tabela 2 - Síntese dos conflitos pela água no mundo contemporâneo
Região
Conflito pela água
Oriente Médio – Bacia do Rio
Jordão
Israel, onde a agricultura no deserto levou à multiplicação de
colônias agrícolas, onde o padrão de vida (e logo o consumo de
água) era mais elevado do que na maioria dos vizinhos. Assim, a
garantia de controle dos aquíferos no Sul do Líbano se impunha
como objetivo estratégico nas guerras Árabes- Israelenses.
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Oriente Médio – Bacia dos
Rios Tigre e Eufrates
Tensões e negociações entre Turquia, Síria e Iraque, em
decorrência das vazões dos Rios Tigres e Eufrates. A Turquia
construiu hidrelétricas e ameaça o controle das fontes do Eufrates,
colocando a Síria e o Iraque em clara situação de dependência e
alto risco.
Oriente Médio – Bacia do
Rio Jordão
Israel, Jordânia, Síria e Líbano disputam as vazões do Rio Jordão.
A Guerra dos Seis Dias, em 1967, teve como uma de suas causas a
tentativa da Síria de desviar o curso de um de seus afluentes.
Ásia – Bacia do Rio Ganges
Tensões entre a Índia e o Bangladesh envolvendo as vazões dos
Rios Ganges, principalmente após a construção da Hidrelétrica de
Farakka pelos indianos.
Ásia – Bacia do Rio Amarelo
Tensões internas entre as províncias da China que são banhadas
pelo Rio Amarelo.
Ásia Central – Cachemira
O controle das regiões de onde provêm as fontes dos rios que
correm para a China, Paquistão e Índia agudizam os conflitos na
Cachemira, Nepal e Tibet.
África – Região do Sahel
No Sahel (a franja entre o Sahara e a savana semiárida africana)
a escassez ameaça alguns milhões de pessoas com a fome. Ali,
Chad, Mali, Niger e Líbia se enfrentam constantemente, visando
o controle de lagos e oásis do deserto.
África – Região Sul
Disputas entre África do Sul e Namíbia colocam a situação deste
último país como crítica.
África – Bacia do Rio Nilo
Tensões internacionais entre Egito, Sudão e Etiópia envolvendo as
vazões do Rio Nilo e a construção da represa de Aswan e do canal
de Jonglei.
África – Bacia do Rio
Okavango
Namíbia e Botsuana disputam as vazões do Rio Okavango, o
terceiro maior rio da África.
África – Região Norte
Tensões internacionais entre Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia
pelo uso de reservas e do lençol freático, tendo na Tunísia seu
epicentro. O setor hoteleiro bastante desenvolvido pela Tunísia e
Marrocos é acusado de oferecer água em abundância aos turistas,
enquanto a massa da população sofre a penúria. Enquanto isso,
denunciam a agricultura marroquina, tunisiana e argelina de
gastar água numa atividade de baixíssima remuneração.
América do Norte – Bacia
do Rio Bravo (ou Grande)
O aproveitamento do Rio Bravo (ou Grande), na fronteira dos EUA
com o México, é uma fonte constante de atritos, com os desvios
crescentes para a irrigação e o abastecimento das cidades e da
agricultura norte-americanas.
Conflito pela água
A escassez de água no semiárido nordestino do Brasil, os projetos
de agricultura irrigada e a situação da escassez hídrica em grande
cidades, como Fortaleza, provocam disputas pelas vazões do Rio
São Francisco e do açude Castanhão.
Argentina e Uruguai disputam as vazões do Rio Uruguai devido à
instalação de duas indústrias de papel às margens daquele rio.
Região
América do Sul – Bacia do
Rio São Francisco e Açude
Castanhão
América do Sul – Bacia do
Rio da Prata
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Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
Europa – Bacias dos Rios
Oder, Mosa e Danúbio. Além
do Lago Lanoux
No Rio Oder, disputas envolvem de um lado a Polônia, e de outro,
a Alemanha. A Dinamarca, a França, o Reino Unido, a então
Tchecoslováquia e a Suécia. Em torno do Rio Mosa enfrentaramse França e Bélgica, na década de 1930. O caso do Lago Lanoux,
entre a França e a Espanha, na década de 1950. O caso GabcikovoNagymaros, cujas origens remontam a 1977, envolvendo a Hungria
e a então Tchecoslováquia sobre a realização de obras no Rio
Danúbio, e que se estendeu até a década de 1990.
Fonte: o autor.
Alemar chama a atenção para os vários tipos de conflitos motivados pela
água. “Do ponto de vista das águas transfronteiriças, ou seja, daquelas águas
compartilhadas por dois ou mais Estados, é possível prever a ocorrência séria de
pelo menos dois deles: a) pelo direito de acesso; e b) pelo direito de uso soberano”
(ALEMAR, 2006, p. 213).
Portanto, à luz da história, da repercussão do ecologismo em âmbito mundial
(os paradigmas da Agenda 21) e da importância geopolítica dos recursos hídricos,
em especial dos aquíferos, a resposta à terceira questão de destaque (quanto
à possibilidade de casus beli) é afirmativa, conforme demonstram as fontes
pesquisadas.
Diante desse quadro, quais seriam as principais ameaças e oportunidades
para o Brasil?
No campo das principais ameaças podem ser visualizadas as seguintes, com
implicações para todas as expressões do Poder Nacional brasileiro:
a) a tentativa de ingerência estrangeira nos assuntos brasileiros concernentes
ao domínio e a gestão de recursos hídricos, em particular os transfronteiriços na
América do Sul;
b) o acirramento de conflitos em âmbito mundial e, mais especificamente,
sul-americano e interno, pela posse, uso e proteção de recursos hídricos;
c) a efetivação de pressões e constrangimentos oriundos de potências
estrangeiras tendo como argumento a preservação do meio ambiente e da água,
cuja intenção velada seria a reserva desses recursos estratégicos para seu uso
futuro, com consequências negativas para o Poder Nacional brasileiro;
d) a
superposição de vários ordenamentos jurídicos, dificultando
convergências e unanimidades de doutrina na matéria de recursos hídricos, entre
as nações sul-americanas; e
e) a dificuldade em conciliar a assimetria de políticas públicas nacionais
de meio ambiente em região de fronteira, com implicações para as soberanias
envolvidas.
No campo das principais oportunidades apresentam-se os seguintes (da
mesma forma, com impacto em todas as expressões do Poder Nacional brasileiro):
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a) o aumento da cooperação internacional, em particular a sul-americana,
em matéria de meio ambiente e de recursos hídricos transfronteiriços;
b) as condições para o Brasil tornar-se líder mundial em gestão de recursos
hídricos e em tecnologias, visando à eficiência hídrica; e
c) a implementação de diretrizes geopolíticas brasileiras relacionadas com os
recursos hídricos; e
d) o fortalecimento da Geopolítica, da Geoestratégia e do Geodireito brasileiro
no cenário internacional.
4 GEOPOLÍTICA E GEOESTRATÉGIA
4.1 PARADIGMAS EMERGENTES: FORÇAS E VULNERABILIDADES
O Brasil, detentor de reservas hídricas consideráveis e de um sistema de
ciência e tecnologia que foi capaz de produzir empresas como a Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), a Petróleo Brasileiro S.A. (PETROBRAS)
e a Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER), apresenta-se no cenário
internacional como um ator relevante em matéria de recursos hídricos, em especial
os aquíferos.
Da mesma forma, o País está apto a conceber políticas e implementar
estratégias que vão desde o domínio científico-tecnológico de vanguarda na
industrialização de produtos “hidroeficientes” de diversas naturezas, até sistemas
de gestão internacional compartilhada para recursos hídricos transfronteiriços.
Além disso, o Brasil e os demais países da América do Sul têm como um de
seus principais desafios a “transformação em realidade do extraordinário potencial
natural da América do Sul [...] pelo aumento da produtividade de [...] seus recursos
naturais” (GUIMARÃES, 2006, p. 321), com o que este autor concorda plenamente.
Quais são, então, as principais forças e as principais vulnerabilidades
brasileiras relativas aos aquíferos?
a) Forças:
- existência de recursos humanos qualificados em áreas do conhecimento
científico relacionadas com recursos hídricos subterrâneos, em especial
a hidrogeologia, destacando-se os quadros da CPRM, da ANA e da
Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental do Estado de São
Paulo (CETESB);
- existência de instituições de ensino e pesquisa voltadas para o estudo
de águas subterrâneas;
- tecnologia suficiente para implantar os programas e projetos relacionados
com aquíferos;
- marco legal para a gestão dos recursos hídricos no “estado da arte”,
destacando-se as Leis no 9.433/97 e no 9.984/00;
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Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
- recursos hídricos em quantidade e qualidade para dar suporte o
desenvolvimento nacional;
- recursos orçamentários e extraorçamentários (oriundos da cobrança
pelo uso de recursos hídricos, por exemplo) que podem viabilizar
projetos voltados para os aquíferos;
- organizações de governo em condições de desenvolver os programas
e projetos necessários ao desafio, dentre elas o Ministério do Meio
Ambiente, a CPRM, a ANA, e os órgãos do Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH);
- o projeto de Implantação da Rede Básica Nacional de Monitoramento
Integrado das Águas Subterrâneas e o Sistema de Informações de Águas
Subterrâneas da CPRM;
- o Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do
Sistema Aquífero Guarani; e
- a participação ativa no Programa International Shared (Transboudary)
Aquifer Resource Management.
b) Vulnerabilidades:
- pouco conhecimento acerca da real situação dos aquíferos brasileiros,
devido ao percentual de implementação do SIAGAS, da ordem de 40%,
e da não existência de um sistema de monitoramento e de gestão de
águas subterrâneas;
- número restrito de especialistas em aquíferos, em especial hidrogeologia;
- uso da mídia para influir na opinião pública mediante o discurso
ideológico da escassez hídrica global;
- atuação do movimento ecologista polarizado em torno das propostas
de preservação do meio ambiente a qualquer custo, com prejuízo do
desenvolvimento nacional;
- complexa e extensa base legal para a gestão de recursos hídricos no
Brasil;
- carência de uma educação ambiental mais efetiva, em todos os níveis;
- poluição de fontes hídricas de superfície, levando à superexplotação de
aquíferos;
- carência de uma cultura de reuso da água para poupar recursos hídricos
subterrâneos e superficiais: e
- ausência de dispositivo no texto constitucional tornando claro e inequívoco o domínio da União sobre aquíferos transfronteiriços.
4.2 GEOPOLÍTICA E GEOESTRATÉGIA FOCADAS NOS AQUÍFEROS
Para o General Carlos de Meira Mattos, “Geopolítica é a Política aplicada aos
espaços geográficos sob a inspiração da experiência histórica” (MATTOS, 2002, p. 33).
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Alexandre Cassel Marques
Nestas bases e de acordo com a análise das fontes pesquisadas, é possível
formular algumas premissas geopolíticas orientadas para os aquíferos brasileiros:
a) o contexto mundial recomenda considerar como ponto de partida o
cenário futuro mais provável de crescente escassez de recursos hídricos
em algumas regiões no mundo, levando a conflitos entre Estados-Nações,
de intensidade variável, cujas soluções envolverão desde acordos de
cooperação até ações bélicas;
b) o Brasil é uma potência hídrica que também enfrenta problemas de
quantidade e qualidade das suas águas doces, inclusive de seus aquíferos;
c) existem aquíferos gigantes na América do Sul que não respeitam fronteiras
políticas, implicando questões de soberania compartilhada de recursos
hídricos e recomendando flexibilidade nas negociações entre os países;
d) o Brasil deve considerar a Agenda 21 na formulação do conjunto das
políticas e estratégias nacionais. Esta é uma realidade mundial importante,
mas não deve ser um entrave para o desenvolvimento e a segurança do
país. Desenvolvimento e meio ambiente devem caminhar juntos;
e) o Brasil buscará, a médio prazo, o aumento da área plantada e da safra
de grãos, o que, combinado com o crescimento populacional e industrial,
pressionará a demanda por recursos hídricos, em especial dos aquíferos.
Assim, propõe-se a seguinte Geopolítica para os aquíferos brasileiros e a
gestão de recursos hídricos transfronteiriços:
Implementação de um sistema sul-americano de gestão compartilhada de
aquíferos transfronteiriços, com os objetivos de: (i) contribuir para a conquista e
manutenção da segurança hídrica para o Brasil; (ii) evitar conflitos pela água com
países vizinhos e, caso seja impossível fazê-lo, solucioná-los por vias pacíficas; e (iii)
cooperar para o fortalecimento da união dos países sul-americanos.
Para tanto, visualiza-se a seguinte Geoestratégia:
- constituir grupo de estudos de alto nível para propor alteração da CF/88,
por meio de emenda constitucional, que torne claro e inequívoco o domínio da
União sobre as águas subterrâneas debruçadas nas fronteiras brasileiras;
- ampliar a implantação dos instrumentos de planejamento e de controle
da Lei no 9.433/97, em particular e com urgência a cobrança pelo uso de recursos
hídricos, como forma de viabilizar financeiramente projetos para os aquíferos
brasileiros;
- concluir a Rede Básica Nacional de Monitoramento Integrado das Águas
Subterrâneas, o banco de dados do SIAGAS e desenvolver o sistema de gestão de
aquíferos brasileiros;
- concluir os projetos PSAG e ISARM;
- estabelecer os acordos internacionais, bilaterais ou multilaterais, necessários
à formação de parcerias para a gestão compartilhada de aquíferos transfronteiriços;
- expandir o sistema de gestão de aquíferos para os países com os quais o
92
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Os Arquíferos Brasileiros e a Gestão de Recursos Hídricos Transfronteiriços
Brasil firmar os acordos internacionais mencionados acima;
- efetivar vigorosa campanha para o esclarecimento da sociedade brasileira
quanto à relevância do tema a fim de contribuir para a neutralização das ameaças
visualizadas; e
- constituir grupo de estudos interministerial de alto nível para estudar
a viabilidade de criação da EMBRÁGUA, cujo papel seria o de uma empresa
de economia mista, voltada para a pesquisa e o desenvolvimento de soluções
tecnológicas, visando ao domínio completo da hidroeficiência em todas as aplicações
industriais.
5 CONCLUSÃO
Este trabalho de pesquisa apresentou um estudo crítico dos aquíferos
brasileiros sob a ótica da gestão de recursos hídricos transfronteiriços, inseridos num
sistema maior - o meio ambiente - e sujeito à dinâmica das relações internacionais
num mundo multipolar, onde as ameaças à soberania nacional se apresentam cada
vez mais difusas.
A abordagem escolhida, embora não possua o mérito de ser inédita, possui
como característica a formulação de juízo a partir de dados e fatos concretos e a
inserção da matéria nos planos da Geopolítica e da Geoestratégia como vetores da
vontade nacional em busca da conquista e manutenção dos objetivos nacionais.
O Brasil só conseguirá alcançar estes objetivos se lograr fortalecer seu Poder
Nacional. Neste mister, cabe aos estrategistas envolvidos com os destinos do Brasil
reconhecer o valor dos recursos naturais, em especial os aquíferos, indispensáveis
a todas as expressões do poder nacional, bem como as ameaças que sobre eles já
se manifestam.
Cabe, igualmente, reconhecer a importância da soberania compartilhada
de recursos hídricos transfronteiriços como estratégia para a solução pacífica de
conflitos, que a história das nações demonstrou serem inevitáveis.
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Heleno Moreira
Mobilização Nacional para Quê?
Heleno Moreira*
Se quiseres a paz, prepara-te para a guerra.
Flavius Renatus Vegetius in De Rei Militaris
Resumo
Este trabalho tem por finalidade chamar a atenção da importância da mobilização
nacional para o Brasil, país de dimensões continentais, com riquezas incomensuráveis
e que está em acelerado processo de desenvolvimento, mostrando que não se pode
pensar em defesa sem se preocupar com este tema. Defesa é um problema de toda a
sociedade brasileira e não apenas das Forças Armadas, como muitos pensam. Numa
breve análise, mostrar que, nos últimos quatro anos, surgiu um arcabouço jurídico
que permite realizar ações para a mobilização nacional. Este artigo está dividido
em cinco partes, incluindo uma conclusão e trazendo as considerações iniciais na
introdução. Inicialmente, discorre-se sobre debates conceituais. A terceira seção
apresenta a legitimação jurídica da mobilização nacional. A quarta parte apresenta
as fases da mobilização. E finalizando, a conclusão, mostrando que quanto melhor
for a sua preparação, menor serão os transtornos à população quando da sua
decretação, ao mesmo tempo em que irá contribuir de forma determinante para o
desenvolvimento nacional.
Palavras-chave: Mobilização Nacional. Desenvolvimento.
Abstract
This work is intended to draw attention to the importance of national mobilization to
Brazil, a country of continental dimensions, with immeasurable wealth and which is
undergoing rapid development, showing that one can not think of defense without
worrying about this issue, and that defense is a problem throughout Brazilian
society and not just the military, as many think. In a brief analysis, show that in
the last four years came a legal framework that allows you to perform actions for
national mobilization. This article is divided into five parts, including a conclusion
and bringing the initial considerations in the introduction. Initially, it talks about
is conceptual debates. The third section presents the legal legitimacy of national
mobilization. The fourth part presents the phases of mobilization. And finally,
the conclusion, showing that the better the preparation, the lower will be the
______________
* Coronel do Exército Brasileiro, Estagiário do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia, em
2008, e Membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra.
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Mobilização Nacional para Quê?
inconvenience to the public upon its enactment, while it will contribute decisively
to national development.
Keywords: National Mobilization. Development.
1 INTRODUÇÃO
Conforme aponta Bobbio (1986, p. 765), a proclamação de um estado de
mobilização é, normalmente, usada como meio de pressão sobre países adversários
a fim de ostentar uma clara vontade de intervir com a força, como forma de
solucionar as controvérsias pendentes.
Cabe destacar que mobilização nacional é bem diferente de mobilização
cívica.
Mas o Brasil está prestes a entrar em guerra? O Brasil tem algum inimigo
declarado? Com certeza, a resposta será negativa.
Em um cenário de curto e médio prazo, repetem-se as perguntas anteriores. E
num cenário de longo prazo? Acredita-se que as respostas continuarão negativas.
Então, para que se preocupar com mobilização nacional, se há outras medidas
bem mais importantes e necessárias a serem providenciadas?
O Brasil é um país de dimensões continentais que ocupa uma área de
8.514.876,599 km² (47% da América do Sul) e possui inúmeras riquezas. Pode-se
destacar a Amazônia, com sua fauna, flora, biodiversidade, recursos minerais, além
de possuir o maior banco genético do planeta.
O Brasil é banhado pelo oceano Atlântico, também denominado Amazônia
Azul, com suas riquezas incomensuráveis, sendo que o chamado pré-sal está hoje
em evidência. Cerca de 95% das trocas comerciais brasileiras são realizadas pelo
oceano Atlântico.
Existe muita água doce no país. Há inúmeros rios, além dos aquíferos Alter
do Chão e Guarani. Dizem alguns analistas que a água doce será causa de guerras
no futuro.
A população mundial está crescendo e, com isso, necessita-se cada vez mais
de alimentos. O Brasil possui bastante área agricultável, em condições de atender
às demandas, a cada vez que os países vão se desenvolvendo e necessitando,
consequentemente, de mais alimentos para seus habitantes. E também muita
energia considerada limpa: muita água, muito sol, muitos ventos.
Acredita-se que esses motivos já justificam essa necessidade de se preocupar
com mobilização, uma vez que o país está em pleno desenvolvimento, com objetivos
claros de chegar ao patamar do Primeiro Mundo. Rui Barbosa (1946, p. 161) já
dizia que: “A fragilidade dos meios de resistência de um povo acorda nos vizinhos
mais benévolos veleidades inopinadas; converte contra ele: os desinteressados em
ambiciosos, os fracos em fortes, os mansos em agressivos”.
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Heleno Moreira
Corroborando as palavras de Rui Barbosa, o general italiano Giulio Douhet,
um dos pais da teoria geopolítica do poder aéreo, disse, por ocasião da Primeira
Guerra Mundial: “A vitória sorri para aqueles que antecipam as mudanças no caráter
da guerra, não para aqueles que esperam se adaptar depois que as mudanças
ocorram” (Citado em MAFRA, 2006, p. 129) .
Assim, serão descritos alguns conceitos básicos para melhor entendimento
do tema, bem como seu amparo legal e as fases da mobilização nacional, mostrando
a importância da mobilização nacional para o Brasil.
2 Alguns Conceitos
O Manual Básico da Escola Superior de Guerra (ESG) no seu volume I, diz
que Poder Nacional “é a capacidade que tem o conjunto de homens e meios que
constituem a nação, para alcançar e manter os objetivos nacionais, em conformidade
com a vontade nacional.”
Já o Sistema Nacional de Mobilização (SINAMOB), conforme prescrito na Lei
no 1161, define a Mobilização Nacional como “o conjunto de atividades planejadas,
orientadas e empreendidas pelo Estado, complementando a Logística Nacional,
destinadas a capacitar o País a realizar ações estratégicas, no campo da Defesa
Nacional, diante de agressão estrangeira”.
Agressão estrangeira não significa apenas ação militar, pode ser também um
embargo econômico ou mesmo uma séria ameaça.
Um sistema político é composto pelos poderes Executivo, Judiciário e
Legislativo, além do eleitorado, dos partidos políticos e dos grupos de pressão,
como os ambientalistas, e ONGs, por exemplo.
Aqui, registro uma afirmação: o Brasil, um país em desenvolvimento, necessita de
bastante energia. E está fazendo gestões para conquistar esse objetivo. Pode-se citar a
hidrelétrica de Belo Monte, a ser construída no rio Xingu. Entretanto, devido às pressões,
como as dos ambientalistas, por exemplo - até a Organização dos Estados Americanos
resolveu tentar interferir num problema interno do país – as obras não avançam, com
recursos jurídicos a toda hora. E essa fonte de energia é considerada limpa.
Agora, provoco os leitores com outra afirmação: a hidrelétrica de Itaipu é de
fundamental importância energética para o Brasil. Para tal, imagine o Brasil sem
essa hidrelétrica. E, se ela tivesse que ser construída nos dias atuais, provavelmente
não seria construída, pela pressão de ONGs e de ambientalistas.
Quando se fala de guerra, imagina-se logo um problema dos militares. Essa ideia é
totalmente equivocada, uma vez que é uma questão de toda a sociedade, que terá que se
esforçar para dotar os militares com os melhores meios para a defesa da pátria.
“A paz é demasiadamente importante para ser cuidada somente por civis”.
(Gen Beauffre)
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Mobilização Nacional para Quê?
“A guerra é uma coisa muito importante para ficar nas mãos só de generais”.
(Clemenceau)
3 Amparo Legal
Garantir o desenvolvimento nacional está previsto no Inciso II do Art 3º da
Constituição Federal de 1988.
Já o Inciso XXVIII do Art.22 dispõe que a defesa territorial, defesa aeroespacial,
defesa marítima, defesa civil e mobilização nacional é de competência privativa da
União.
O Inciso XIX do Art. 84, dispõe que “declarar guerra, no caso de agressão
estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional, ou referendado por ele, e, nas
mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional” é de
competência privativa do Presidente da República.
O Dec Nº 5.484, de 30/06/2005 - Política de Defesa Nacional (PDN) define
algumas orientações estratégicas. Dentre elas:
- a vertente preventiva da defesa nacional reside na valorização da ação
diplomática como instrumento primeiro de solução de conflitos e em postura
estratégica baseada na existência de capacidade militar com credibilidade, apta a
gerar efeito dissuasório.
- o desenvolvimento de mentalidade de defesa no seio da sociedade brasileira
é fundamental para sensibilizá-la acerca da importância das questões que envolvam
ameaças à soberania, aos interesses nacionais e à integridade territorial do País.
Assim, fica bem claro a necessidade de disseminar e divulgar a importância
da “defesa” na sociedade brasileira, mostrando que esse importante tema é de
responsabilidade de todos os segmentos, de todas as expressões do poder nacional1,
e não apenas dos militares, uma vez que eles dependem da política, da economia,
da ciência e tecnologia. E que tudo isso será revertido para a população brasileira
como um todo, seja de maneira negativa ou positiva, na denominada expressão
psicossocial do poder nacional.
A mesma PDN traça alguma diretrizes, dentre elas:
- implantar o Sinamob e aprimorar a logística militar;
- fortalecer a infraestrutura de valor estratégico para a Defesa Nacional,
prioritariamente a de transporte, energia e comunicações;
- promover a interação das demais políticas governamentais com a Política
de Defesa Nacional; e
- incentivar a conscientização da sociedade para os assuntos de Defesa
Nacional.
Esta última diretriz corrobora a orientação estratégica da conscientização da
sociedade para os assuntos de Defesa.
1
Expressões Política, Econômica, Psicossocial, Militar e Científica-Tecnológica
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 98-107, jul./dez. 2011
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Heleno Moreira
Destaca-se também o fortalecimento da infraestrutura, prioritariamente a
de transporte, energia e comunicações. Entendo isso como uma simples tradução
de desenvolvimento nacional. A partir do momento em que o Brasil tiver todas
as suas estradas em excelentes qualidades de pavimentação, com suas ferrovias
em ótimas condições, interligando todo o território nacional, com sua estrutura
aeroportuária em excelentes condições, com navegação de cabotagem de 1ª linha,
com excesso de energia, com diversas plantas energéticas em pleno funcionamento,
com excepcionais padrões de comunicações em todo o território nacional, sem
depender de apoio estrangeiro, poderá ser dito que o Brasil está desenvolvido.
Dessa forma, a logística será muito aprimorada e se tornará mais eficiente,
evitando os desperdícios causados pelas estradas em péssimas condições,
diminuindo os custos de manutenção dos meios de transporte, proporcionando um
frete competitivo.
Como um simples exemplo, o Brasil é atualmente o 6º maior produtor
mundial de urânio, mineral estratégico que está em evidência devido ao acidente
nuclear ocorrido no Japão, causado pelos terremotos e tsunamis. Mas ressalta-se
que o país só tem 30% desse mineral prospectado. Ao alcançar sua totalidade de
prospecção, atingirá a posição de 2º maior produtor.
Cabe destacar a teoria geopolítica do Limes ou do Limite, do francês Jean
Christophe Rufin, na qual ele divide o mundo em norte e sul (o Brasil aqui incluído)
numa linha imaginária. O norte é o império e no sul estão os novos bárbaros. Ele
diz que os novos bárbaros serão eternos fornecedores de matéria-prima para o
império. Quando se observa que o Brasil tem sua pauta de exportações baseadas
em comodities, sem um planejamento estratégico para agregar valor aos grãos e
ao minério de ferro, por exemplo, devemos nos preocupar em estarmos aportando
conteúdo a essa teoria geopolítica.
A Lei Nº 11.631, de 27/12/2007 criou o Sinamob, cumprindo uma das
diretrizes da PDN.
O Sinamob é composto pelos seguintes órgãos:
- Ministério da Defesa (MD), atuando como órgão central;
- Ministério da Justiça (MJ);
- Ministério das Relações Exteriores (MRE);
- Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG);
- Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT);
- Ministério da Fazenda (MF);
- Ministério da Integração Nacional (MIN);
- Casa Civil da Presidência da República;
- Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI); e
- Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da PR (SeCOM).
Observam-se todas as expressões do Poder Nacional aqui representadas. Na política,
a Casa Civil da Presidência da República e o MRE; na econômica, o MF; na psicossocial, o
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Mobilização Nacional para Quê?
MJ e o MIN; na militar, o MD; e na científica e tecnológica, o MCT. Fica caracterizada a
participação de todo o poder executivo nesse processo da mobilização nacional.
Dentre as competências do Sinamob, destaca-se:
- formular a Política de Mobilização Nacional; e
- elaborar o Plano Nacional de Mobilização e os demais documentos
relacionados com a Mobilização Nacional;
Menos de 01 (um) ano após a criação do Sinamob, o Dec. nº 6.592, de
02/10/2008, regulamentou-o. De sua composição e organização, encontram-se os
Órgãos de Direção Setorial que serão organizados de acordo com os subsistemas,
destacando-se na mobilização, o Subsistema Setorial de Mobilização Política, sob
a direção, na área interna, da Casa Civil da Presidência da República e, na área
externa, do Ministério das Relações Exteriores;
Os subsistemas destinam-se a coordenar as ações necessárias para a
preparação dos planos, bem como a sua execução, com os seguintes Subsistemas
na expressão política, objetivando:
- Subsistema Setorial de Mobilização de Política Interna: coordenar a
adaptação do ordenamento jurídico, criando instrumentos legais que garantam ao
Estado o atendimento das necessidades de Mobilização Nacional;
- Subsistema Setorial de Mobilização de Política Externa: desenvolver a
cooperação internacional possibilitando obter apoio, recursos e meios fora dos
limites territoriais do País;
O preparo da Mobilização Nacional é desenvolvido de modo contínuo,
metódico e permanente, desde a situação de normalidade, ou seja, desde já,
buscando-se o desenvolvimento do país. A expressão política é muito importante
nesta fase de formulação de um arcabouço jurídico necessário para os assuntos
de mobilização nacional, uma vez que é de responsabilidade de toda a sociedade.
Política significa “o que fazer”, significa “definir objetivos”, demonstrando uma vez
mais que o tema “defesa” não é exclusivo dos militares.
Ainda na regulamentação do Sinamob, propõe-se que o preparo também
contemplará a execução de ações dirigidas à sociedade, destinadas ao esclarecimento
a respeito da Mobilização Nacional.
Seu Art. 25 dispõe que as ações governamentais, durante o preparo, devem
estimular o desenvolvimento da infra-estrutura nacional e incentivar a pesquisa e a
inovação em setores que, também, atendam aos interesses da Defesa Nacional. No parágrafo único do artigo acima, esclarece que as medidas de incentivo
que trata o caput poderão contemplar, dentre outras, conforme previsto em lei, as
seguintes modalidades:
I - condições favoráveis de crédito, financiamentos, juros e prazos de
pagamento;
II - compensações, isenções e reduções tributárias; e
III - bolsas de estudos e programas de capacitação científica e tecnológica. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 98-107, jul./dez. 2011
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Heleno Moreira
Um simples exemplo para ilustrar os incisos acima: imagine que a Marinha do
Brasil receba R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) para comprar aço para construir
uma embarcação. Se este aço for adquirido no mercado brasileiro, na realidade não
estará comprando um milhão, e sim, apenas R$ 600.000,00 (seiscentos mil), uma
vez que cerca de 40% serão cobrados através de impostos. Já no mercado exterior,
alguns países não cobrarão esse imposto. Isto tem que ser estudado e revertido
para o bem da indústria de defesa brasileira, e para o Brasil como um todo, porque
a mesma fonte que dá o recurso, toma-o na forma de impostos.
Para atenuar esse problema, foi aprovada a Lei no 12.598, em 22 de março
de 2012, que estabelece normas especiais para as compras, as contratações e o
desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa. A mesma está sendo
regulamentada para começar a produzir os resultados esperados.
As relações internacionais são caracterizadas pela cooperação, competição e
conflito. Em se tratando de desenvolvimento do país e do preparo da mobilização,
o Brasil deverá buscar independência do exterior, para reduzir o hiato tecnológico
existente quanto ao material de defesa em relação aos países desenvolvidos. Por
isso, a compra dos aviões caça para a Força Aérea Brasileira deve estar associada
à transferência de tecnologia, pois, em se tratando de material de defesa, não
pode haver qualquer tipo de dúvidas com compras normais de outras áreas,
determinando a dependência do país em relação aos países desenvolvidos.
Outro caso que está ocorrendo é a construção do submarino de propulsão
nuclear, numa parceria com a França, que irá, pelo acordo, transferir a tecnologia
necessária. O Brasil já domina totalmente o ciclo do urânio; entretanto, não possui
recursos tecnológicos para construir tal meio de navegação. A partir dessa construção,
terá condições de, no futuro, ficar independente de países desenvolvidos que já
dominam essa tecnologia.
O Dec. nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008, criou a Estratégia Nacional de
Defesa (END), que na sua introdução, dispõe:
[...] se o Brasil quiser ocupar o lugar que lhe cabe no Mundo, precisará estar preparado para
defender-se não somente das agressões, mas também das ameaças. Vive-se um Mundo em
que a intimidação tripudia sobre a boa fé. Nada substitui o envolvimento do povo brasileiro no
debate e na construção de sua própria defesa.
O Brasil está em franco desenvolvimento e tem objetivo de chegar ao nível
de país desenvolvido. Assim, cabe destacar que a defesa dos interesses brasileiros
e das riquezas nacionais só será possível, caso o país disponha de Forças Armadas
capazes de respaldar seus posicionamentos, aptas a gerar efeito dissuasório diante
das demais nações.
A END pauta-se, dentre outras, pela seguinte diretriz: desenvolver o
potencial de mobilização militar e nacional para assegurar a capacidade dissuasória
e operacional das Forças Armadas.
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Mobilização Nacional para Quê?
O Dec. nº 7.294, de 06 de setembro de 2010, criou a Política de Mobilização
Nacional (PMN), consistindo no conjunto de orientações do Governo Federal
com o objetivo de impulsionar o Estado brasileiro para o preparo e a execução
da mobilização nacional e da consequente desmobilização nacional. Ressalta-se
também que é uma resposta a uma das competências do Sinamob.
Observa-se, ainda, o curto espaço de tempo em que toda essa
legislação surgiu, proporcionando o amparo legal necessário para a
mobilização nacional, que também significa superar a condição de país
subdesenvolvido para a de desenvolvido, reduzindo esse hiato que é marcante,
devendo ser ultrapassado para que o Brasil conquiste o nível de 1º mundo.
A PMN prevê que para atingir o objetivo geral (o preparo e a execução da
mobilização nacional), concorrem os seguintes objetivos específicos:
- implementação de ações que visem dotar a mobilização nacional de um
arcabouço jurídico-institucional adequado às suas necessidades;
- desenvolvimento da cooperação internacional em proveito da mobilização
nacional;
A mesma política ainda dispõe que as diretrizes governamentais de
mobilização nacional deverão ser observadas para a elaboração das diretrizes e dos
planos setoriais dos órgãos componentes do SINAMOB, conforme se seguem:
- incentivar a adequação de organizações públicas e privadas para a atividade
de mobilização nacional;
- promover o desenvolvimento da doutrina de mobilização nacional.
A Portaria Normativa Nº 185/MD, de 27 de janeiro de 2012 aprovou a Doutrina
de Mobilização Militar, cuja finalidade é estabelecer os fundamentos doutrinários a
serem considerados pelo Ministério da Defesa e pelas Forças Armadas no preparo e
na execução da mobilização militar, desde a situação de normalidade até a iminência
ou efetivação de uma Hipótese de Emprego (HE) ou situações de crise (catástrofes,
desastres naturais, etc.) e posterior retorno à normalidade.
Pode-se afirmar que, com todo esse arcabouço legal, o Brasil definiu a
mobilização nacional como um dos seus objetivos prioritários. Agora já existem
ferramentas para serem usadas nos assuntos relativos à mobilização nacional.
Fases da Mobilização Nacional
A Mobilização Nacional se realiza em duas fases:
- 1ª fase: o preparo, que é permanente, contribuirá de forma marcante para
o atingimento do desenvolvimento nacional e
- 2ª fase: a execução, que será eventual, só ocorrendo em caso de agressão
estrangeira, só podendo ser decretada pelo Presidente da República, referendado
pelo Congresso Nacional.
O Manual Básico da ESG diz que o preparo da mobilização nacional é “o
conjunto de atividades planejadas, empreendidas ou orientadas pelo Estado, desde
a situação normal, visando a facilitar a Execução da Mobilização Nacional”.
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Vale enfatizar que, quanto melhor se der este preparo, menos traumática será
a execução da mobilização e maior será a resposta das Forças Armadas à agressão
estrangeira. Isso pode ser observado nos países que enfrentaram guerra em seus
territórios, onde ficou nítido os transtornos que a guerra levou à população.
Além disso, ao tornar público os empreendimentos do preparo da mobilização,
a nação adquire, automaticamente, elevado poder dissuasório no cenário mundial.
Em resumo: a preparação da nação para a guerra acaba por gerar condições mais
favoráveis para a manutenção da paz, por mais paradoxal que isso possa parecer.
Ainda o Manual Básico da ESG diz que a execução da mobilização nacional é
“ o conjunto de atividades que, após decretada a Mobilização, são empreendidas
pelo Estado, de modo acelerado e compulsório, a fim de transferir meios existentes
no Poder Nacional e promover a produção oportuna de meios adicionais”.
Cabe ressaltar que a execução da mobilização, por ato do poder executivo,
devidamente referendado pelo Congresso Nacional, imporá medidas amargas à
sociedade, quanto piores forem as ações do preparo da mobilização. As necessidades
da expressão militar do poder nacional imporão a celeridade do processo.
Em síntese, se as forças armadas estiverem em estado de carência, com uma
logística mal estruturada, a exigências do esforço de mobilização serão muito mais
elevadas, o que, consequentemente, irá exigir um esforço nacional de enormes
proporções.
4 CONCLUSÃO
O Brasil é um país de dimensões continentais e em franco desenvolvimento,
com objetivos de alcançar o chamado “Primeiro Mundo” num futuro bem próximo.
Apesar de não ter inimigos declarados e nem hipóteses de guerra num cenário de
médio ou longo prazo, é rico e abundante em água doce, terras agricultáveis e energia
considerada limpa, além de sua fauna, flora, recursos minerais e biodiversidade,
sendo o maior banco genético do planeta. Ou seja, está começando a incomodar
seus concorrentes no cenário internacional, virando “vitrine”.
A mobilização nacional se divide em 2 fases: o preparo e a execução. Assim,
é lícito que o Brasil se preocupe com mobilização nacional, particularmente no seu
preparo. Desta forma, irá contribuir cada vez mais com o seu desenvolvimento
do país. E a execução é de exclusiva competência do Presidente da República,
referendado pelo Congresso Nacional.
Da mesma maneira, esse é um tema de toda a sociedade brasileira. Há que
se quebrar o paradigma de que assuntos de guerra e de defesa, são exclusivos dos
militares ou da expressão do poder nacional. Nada disso, pois somente a fase do
preparo da mobilização nacional necessita do envolvimento de todos os brasileiros,
que serão os principais beneficiários, uma vez que o país estará caminhando a
passos largos para o seu desenvolvimento. Mas sem se descuidar da sua defesa.
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Mobilização Nacional para Quê?
E no caso de uma provável execução da mobilização nacional, aí sim, o
principal beneficiário serão as forças armadas que necessitam, desde o tempo
de paz, de um poder dissuasório, para manter o país cada vez mais respeitado na
comunidade internacional.
Nos últimos 4 anos, o governo federal proporcionou um arcabouço jurídico,
um amparo legal do qual o Brasil necessitava para sua agenda de mobilização
nacional. Torna-se imperioso informar e mudar o pensamento da sociedade, uma
vez que deve ser uma preocupação de todos os brasileiros.
Quanto melhor for realizado o preparo da mobilização nacional, menor serão
os transtornos causados pela sua decretação.
Referências
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BARBOSA, Rui. Obras Completas. Cartas da Inglaterra. Lição do Extremo-Oriente. t.
1. v. 23. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946.
BOBBIO, Norberto; MANTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1986.
MAFRA, Roberto Machado de Oliveira. Geopolítica: introdução ao estudo. Editora
Sicurezza. São Paulo. 2006.
Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.
htm.> Acesso: em 04 abr. 2011.
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______. Regulamenta o Sistema Nacional de Mobilização. Brasília, 2008. Disponível
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______. Sistema Nacional de Mobilização. Brasília, 2007. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11631.htm. Acesso em:
04 abr. 2011.
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Francisco José de Matos
Resenha
A Escola Geopolítica Brasileira
COSTA FREITAS, Jorge Manuel.
Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2004.
Francisco José de Matos
Capitão de Mar-e-Guerra (RM1) da Marinha do Brasil, possui os cursos de Comando e Estado-Maior
(EGN-1992), Política e Estratégia Marítimas (EGN-2005), Guerra Naval e Estratégia (Escuela de
Guerra Naval de Espanha-1996), Gestor Internacional pela COPPEAD-UFRJ (2005) e Mestrado
em Ciências Políticas pela UFRJ (2010), atualmente é Coordenador de Estudos Comparativos
e Prospectivos do Núcleo de Estudos de Doutrina de Operações Conjuntas da Escola Superior de
Guerra.
Jorge Manuel da Costa Freitas nasceu no Distrito de Viana do Castelo,
Portugal, em 2 de novembro de 1969. Licenciado em Relações Internacionais pela
Universidade Lusíada de Lisboa, é mestre em estratégia pelo Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. Foi colaborador da
Revista Militar, de Portugal, e da Revista da Escola Superior de Guerra, do Brasil.
No livro, editado em 2004, o autor faz uma análise sobre a escola geopolítica
brasileira, principalmente no que concerne às obras de Carlos de Meira Mattos,
Therezinha de Castro e Golbery do Couto Silva. Apesar da distância temporal
entre o lançamento do livro e a resenha, esta se torna bastante oportuna pela
vigente ascensão brasileira, nas discussões entre países, nos foros de decisão do
poder mundial e também pela necessidade de ser desenvolvido o pensamento
geopolítico brasileiro com vistas aos novos desafios que se apresentarão em um
futuro próximo.
Costa Freitas, ao longo do livro, aponta um conjunto de obras que configuram
uma escola geopolítica brasileira, a qual classifica a geopolítica como ciência auxiliar
na formulação de uma política de Estado e que, elaborada no Brasil, caracteriza-se
por uma tradição histórica de defesa intransigente da soberania.
Inicialmente, são feitas algumas considerações sobre os fundadores da
geopolítica brasileira, que o autor chama de founding fathers. Nesse sentido,
defende que esses primeiros pensadores valorizaram o espaço geográfico nacional,
dado sua grandeza e valor.
A partir dessa apresentação inicial, o autor discorre sobre Golbery do Couto
e Silva. Primeiramente, destaca a biografia de Golbery, oficial do Exército Brasileiro,
que teve sua carreira militar pautada em uma participação, efetiva e constante,
nos acontecimentos políticos do Brasil, entre os anos 1940, 1950 e 1960. Quanto
à carreira militar, em seus principais cargos e funções, esteve ligado a Escolas
de Altos Estudos, a serviço de Estados-Maiores e Institutos de Pesquisa. Este
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Resenha - A Escola Geopolítica Brasileira
binômio, de participação política e carreira voltada para a área de estudos e de
planejamento, possibilitou a Golbery exercitar um sólido conhecimento científico
traduzido na autoria de livros e trabalhos ligados ao planejamento estratégico e
a geopolítica. A partir dos anos 1960, quando passa para a reserva do Exército,
já como General, não abandona a vida política. Exerce vários cargos nos governos
que se seguiram, sempre voltados para as áreas de assessoramento, inteligência e
planejamento estratégico. Avesso aos eventos sociais, Golbery usou da discrição
como característica e pautou sua atuação “no esforço de materialização das idéiasforça ao programa de governo...” (COSTA FREITAS, 2004, p. 28).
Costa Freitas, após descrever, de forma sucinta e precisa, a biografia e a
atuação na área política de Golbery, discorre sobre o pensamento do General.
Aponta, então, três marcos fundamentais que constituem a base de suas ideias:
“a publicação em 1955 da obra Planejamento Estratégico; o surgimento em 1967
da célebre Geopolítica do Brasil; e o programa de transição político elaborado em
1980 sob o título Conjuntura Política Nacional – O Poder Executivo” (Costa Freitas,
2004, 34). Nessas obras, estão presentes os conceitos de segurança nacional e
de planejamento da atividade governamental que vão desembocar na Política de
Segurança Nacional. Segundo o autor, Golbery conclui que o planejamento da
segurança nacional implica a “preservação atual ou futura da soberania nacional,
na garantia da liberdade do povo e na certeza de que poderá ele livremente eleger
o sistema de vida que mais o seduzir” (COSTA FREITAS, 2004, p. 37).
Apresentado o pensamento, Costa Freitas passa a escrever sobre as teses
geopolíticas de Golbery do Couto e Silva. É apresentada, então, a tríade que
compões essas teses: doutrina, perspectiva e diretrizes gerais para a ação. Dessa
forma, Costa Freitas ressalta na obra de Golbery que política e geopolítica guardam
uma proximidade entre si e que a segunda elabora as proposições políticas tomando
por base a realidade geográfica, sendo assim, auxilia o Estado na elaboração dos
objetivos nacionais permanentes. As análises do espaço político e da situação no
âmbito mundial possibilitarão a formulação das diretrizes gerais para a ação.
Na década de 1950, por não estarem ainda ocupados, na visão de Golbery,
todos os espaços brasileiros, é necessário conceber o Brasil como um vasto
arquipélago. Ele projeta então “um conjunto de tarefas visando à coesão, integração
e valorização do território a que dará o nome de manobra geopolítica concêntrica”
(COSTA FREITAS, 2004, 43). Em 1960, em sua obra Aspectos Geopolíticos do Brasil,
Golbery aperfeiçoa a obra anterior introduzindo novos conceitos definindo a noção
de um heartland central e a de áreas geopolíticas. A ideia-chave da manobra
geopolítica “se resume na incorporação efetiva e na vitalização de amplas zonas
vazias de enriquecimento humano” (COSTA FREITAS, 2004, p. 46).
Definidas as diretrizes internas, Costa Freitas enumera as diretrizes externas
e um vetor-chave é considerado na análise da posição brasileira: a conjugação
da extensa faixa marítima com a ampla massa territorial a integrar. Além disso,
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Francisco José de Matos
as diretrizes externas são fortemente influenciadas pela conflitualidade bipolar
existente na época. Nesse sentido, Costa Freitas ressalta a existência de outros
vetores importantes usados por Golbery:
- um núcleo central altamente sensível a ameaças externas vindas do mar e a
perturbações internas instigadas de fora;
- uma zona de vulnerabilidade máxima: o Nordeste;
- a fronteira com o Uruguai até o Mato Grosso, vulnerável a ameaças regionais;
e
- o Atlântico Sul como elemento imprescindível a manutenção da segurança
e do desenvolvimento brasileiro.
Costa Freitas ressalta ainda três destaques importantes na obra de Golbery:
- sobre análise da América do Sul uma conclusão bastante atual: “a formação
de uma comunidade sul-americana que tudo terá a ganhar de uma união sincera
e ativa de energias na luta contra o subdesenvolvimento e a fraqueza econômica”
(COSTA FREITAS, 2004, p. 50);
- a Teoria dos Hemiciclos: que, a partir do centro a noroeste do núcleo central,
projeta uma série de hemiciclos em direção ao Atlântico e ao Leste. A partir destes
hemiciclos, Golbery define as ameaças ao Brasil existentes em sua época, concluindo
que a principal ameaça provinha de um agressor potencial: a União Soviética; e
- a previsão da assunção do Brasil como potência emergente do Sistema
Internacional.
Sistematizando o que já foi dito anteriormente, Costa Freitas afirma que
Golbery, em seus estudos, considerou como propósitos: o nacionalismo; a adoção
da doutrina de contenção como meio de deter a expansão soviética; a elaboração da
teoria dos hemiciclos concêntricos para definir prioridades; e a adoção do conceito
de Ocidente como elemento-programa de geopolítica.
Seguindo-se o livro, Costa Freitas passa a tratar da obra de Carlos de Meira
Mattos. Como antes, inicia fazendo uma breve biografia de Meira Mattos, em que
são ressaltados os elementos que permitiram que este desenvolvesse sua obra.
Meira Mattos foi ilustre militar do Exército Brasileiro que chegou a Generalde-Divisão. Fez todos os cursos de carreira e, como Golbery, exerceu cargos políticos
como: Interventor Federal em Goiás e subchefe do Gabinete Militar da Presidência
da República. Como capitão integrou a Força Expedicionária Brasileira, na Itália
e, mais tarde, como General, comandou o Destacamento Brasileiro e a Brigada
Latino-Americana da Força Interamericana de Paz, na República Dominicana, em
1965. Esteve ligado à pesquisa e ao ensino tendo sido chefe de assuntos políticos
da Escola Superior de Guerra e vice-diretor do Colégio Interamericano de Defesa,
em Washington. Já, na reserva, doutorou-se em Ciência Política pela Universidade
Mackenzie de São Paulo sendo Diretor do curso de pós-graduação em Estudos
Brasileiros daquela universidade. É autor de várias obras e foi conferencista em
múltiplas instituições brasileiras e estrangeiras.
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Resenha - A Escola Geopolítica Brasileira
Costa Freitas assinala que Meira Mattos defendia as relações geográficas,
compreendidas politicamente, que deviam estar contidas na política de governo.
Quanto ao enfoque da obra, aponta como fundamentais: a integração da Amazônia;
o Brasil como potência mundial em expansão; e a capacidade do homem brasílico
de construir uma civilização dos trópicos. Nesse sentido, Meira Mattos diferenciava
claramente a Amazônia, pensada em termos nacionais, da Pan-Amazônia, visão
global dessa macro-região.
Costa Freitas descreve como Meira Mattos inicia sua obra lançando as bases
de uma geopolítica brasileira que, com origem em estudos geoestratégicos, define
“conceitos-operativos diretamente ligados ao despertar de uma continentalidade
que paulatinamente vai saindo de uma letargia através da superação crescente dos
estímulos ambientais pelo elemento humano” (COSTA FREITAS, 2004, 67). Nesse
sentido, Meira Mattos aponta a vontade política de vencer o desafio colocado pelo
espaço amazônico como fundamental para a incorporação da Amazônia legal ao
espaço nacional. São, por exemplo, medidas ligadas a essa decisão, a transferência
da capital do litoral para o interior e a criação da Superintendência para o
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA).
Os conceitos-operativos usados por Meira Mattos, apontados por Costa
Freitas, giram entorno das premissas segurança e desenvolvimento, marcando de
“forma indelével todas as eventuais estratégias tendentes à solidez e progresso
político-econômico interno e à projeção internacional do país” (COSTA FREITAS,
2004, p. 70). Sendo assim, a confiança nas qualidades e capacidades do homem
brasílico é fundamental para vencer os desafios da geopolítica de continentalização.
Já em relação a Pan-Amazônia, a teoria tem por característica “o respeito à soberania
dos Estados da região e o incitamento à solução comunitária na programação
dos projetos de índole integradora” (COSTA FREITAS, 2004, p. 72). O Tratado de
Cooperação Amazônico, estabelecido em 1978, é um marco importante de
efetivação de sua teoria.
Costa Freitas apresenta outra importante teoria de Meira Mattos, a Projeção
Mundial do Brasil, que afirma as condições brasileiras de aspirar um lugar entre as
grandes potências. Brasil e China são vistos, na década de 1970, como as nações
que reúnem, comparativamente, maiores condições de subir de categoria. Mas,
para tal, “a prossecução e a manutenção do progresso econômico-social, assente
na democracia com autoridade, têm como preço a segurança externa e interna”
(COSTA FREITAS, 2004, 80).
Costa Freitas menciona ainda outra teoria: a Civilização dos Trópicos. A
integração Pan-Amazônica potencializará a assunção do Brasil como potência,
podendo o país construir uma civilização dos trópicos. Meira Mattos refuta
apreciações de que o clima da região e a miscigenação de raças sejam um fator
impeditivo do progresso da região. Seu paradigma de pensamento é que o homem
brasílico, orgulhoso de sua mistura racial, com propósito realista e capacidade
Revista da Escola Superior de Guerra, v. 26, n. 53, p. 108-114, jul./dez. 2011
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Francisco José de Matos
empreendedora, será capaz de superar qualquer desafio do meio que a ele se
apresente.
Resumidamente, Costa Freitas enumera os princípios básicos do pensamento
de Meira Mattos:
- interesse devotado à posição geográfica do Brasil;
- discrepância entre potencialidades e condição de desenvolvimento
econômico;
- planos de ação e diretrizes para corrigir vulnerabilidades básicas;
- existência de cerco hispânico ao Brasil na América do Sul;
- importância do Atlântico Sul para o Brasil; e
- reafirmação da tese que o Brasil pode se tornar potência mundial.
Finalmente, Costa Freitas aponta como inovação temática na obra de
Meira Mattos a projeção mundial brasileira que trará alguns efeitos em relação à
segurança do país causando o alargamento do perímetro defensivo que deve incluir
os países africanos lindeiros ao Atlântico e também a Antártica. Além disso, aponta a
cooperação regional como fator de segurança fazendo com que as ameaças passem
a ter sua origem em blocos extracontinentais.
A continuação do livro traz a análise da obra de Therezinha de Castro. Nascida
no Rio de Janeiro, diplomada em Geografia e História pela Faculdade Nacional de
Filosofia, trabalhou no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) junto
com Delgado de Carvalho, que foi seu mestre e exerceu influência em seus estudos
de geopolítica. Professora do Colégio Pedro II, foi autora de diversas obras, fez parte
do corpo permanente da ESG e foi conferencista durante vários anos em vários
institutos de ensino superior militares.
Costa Freitas classifica Therezinha de Castro como componente de uma
terceira geração de autores da Escola Geopolítica Brasileira. Caracteriza seu
pensamento como “brasileiro, analítico, pragmático e direcionado para a definição
de linhas de força operativas, passíveis de servirem de orientação à sede do poder
político” (COSTA FREITAS, 2004, 89). O núcleo central da obra de Therezinha de
Castro observa dois importantes elementos: o reforço do papel histórico-político
a ser desempenhado pelo Brasil na América e no mundo; e a elaboração de uma
geopolítica e geoestratégia para a Amazônia e para a Antártica.
Segundo Costa Freitas, ela concebe a região amazônica como um subsistema
dentro da América do Sul, ressaltando a importância do Brasil nesse subconjunto
classificando-a como primordial e clara. Reservada para o país a posse exclusiva
da foz e da maior parte da bacia desse complexo hídrico lhe é dado o controle do
hinterland amazônico. Nesse sentido, com base no contexto político-econômico,
condicionado pelas assimetrias socioeconômicas e pelos baixos índices de
ocupação humana, a diretriz geopolítica principal, visualizada por Therezinha, é “...
estruturar-se-á, pois, entorno da obra colossal de integração a ser desenvolvida e
implementada...” (COSTA FREITAS, 2004, p. 95). Ela traz ainda, para a discussão, uma
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Resenha - A Escola Geopolítica Brasileira
dupla valoração, interna e externa: “De um lado, o princípio da soberania nacional
sobre a Amazônia, e de outro, a crescente afirmação de uma responsabilidade
mundial quanto à gestão desse patrimônio da humanidade” (COSTA FREITAS, 2004,
96).
Costa Freitas observa que Therezinha vislumbra um novo ciclo geopolítico
caracterizado pelo fim da Guerra Fria, ocorrendo a substituição do imperialismo
militar por um neocolonialismo econômico definido em termos de um eixo NorteSul. Com a redescoberta da Amazônia, aguça a cobiça internacional sobre a região.
Para amenizar este fato e contribuir para o relacionamento mundial é necessário
que se incremente a transferência de tecnologia feita no sentido Norte-Sul e de
financiamento externo de projetos na área de preservação. Na perspectiva interna,
a adoção de medidas práticas que acelerem o desenvolvimento da região ajustandose ao preceito integrar para não entregar. Perante esse cenário “a geoestratégia da
Amazônia deve manter-se fiel ao princípio da salvaguarda dos interesses nacionais”.
(COSTA FREITAS, 2004, p. 102).
Outro importante item da obra de Therezinha de Castro ressaltado
por Costa Freitas é a Antártica. Considerando o ambiente caracterizado pelo
imperialismo econômico, a Antártica, por suas potencialidades, constitui “base
de alerta, interceptação e partida em qualquer emergência que venha afetar a
defesa do Atlântico Sul” (COSTA FREITAS, 2004, p. 104). Nesse sentido, Therezinha
desenvolveu sua teoria da defrontação, que se baseia em fatores estratégicos e
aspectos relacionados a poder-prestígio e provê a ocupação de um setor brasileiro
na Antártica, que reforça a projeção internacional do Brasil.
Costa Freitas aponta ainda a análise pragmática desenvolvida por Therezinha
em relação à nova ordem internacional de sua época, pós-Guerra Fria, que alerta
para os perigos que afetam o Brasil em face da futura configuração de poderes,
dentre eles:
- imposição de políticas neoliberais em países em desenvolvimento;
- destruição do conceito de Estado nacional soberano;
- imposição de apartheid tecnológico; e
- desvalorização e sucateamento das Forças Armadas.
Em consequência desses perigos Therezinha de Castro só via duas linhas de
conduta possíveis de serem empregadas pelo governo brasileiro: a acomodação em
relação à exigência dos promotores da nova ordem ou o resgate de uma política
independente e soberana nas relações internacionais assim como o respeito ao
princípio da igualdade das nações. Na análise desses três grandes autores, Costa
Freitas pode observar que existe um fio condutor entre suas obras, o que configura
a existência de uma Escola Brasileira de Geopolítica, em que fica caracterizada a
existência de uma propensão de se traçar estratégias que vão orientar o poder
político em suas decisões. Espaço, posição e fronteiras são elementos fundamentais
nos estudos que determinam a importância do Brasil em sua região e sua ascensão
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Francisco José de Matos
nos foros mundiais de poder, mostrando que o país tem condições de desempenhar
um papel de primeira grandeza na nova ordem internacional.
A grande reflexão proporcionada no livro A Escola Geopolítica Brasileira,
de Costa Freitas, não se encontra nas considerações acerca de uma possível
Geopolítica, mas sim na análise do impacto da obra dos três principais autores
comentados e a consequência de seus pensamentos para a política brasileira.
A atualidade das questões abordadas, considerando que as principais teorias
geopolíticas apresentadas podem ser reestudadas, aliada a uma argumentação
direta e de fácil compreensão, faz da obra em pauta uma leitura obrigatória para
aqueles interessados em ampliar a compreensão acerca da geopolítica na nova
ordem decorrente da reconfiguração dos pólos de poder nas diversas estruturas
(econômica, militar, ideológica e cultural) do sistema internacional.
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