1 A leitura na escola estadual júlio césar de moraes passos em manaus: um relato de experiência Ana Algina Cruz (Profª de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino fundamental de Manaus/ Pesquisadora da FAPEAM) Ivelize Fausto da Silva (Profª de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental e Ensino Superior em Manaus/ Mestre em Educação-UFAM) Zilma Ramos (Profª de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino fundamental de Manaus/ Pesquisadora da FAPEAM) Resumo: Entendendo a leitura como resultante de um processo histórico-cultural, este artigo descreve uma experiência de leitura que deu certo em uma escola da rede pública estadual de Manaus. O projeto intitulado “Clube do livro”, que hoje pode ser visto como uma política pública estadual de fomento à leitura, foi criado, inicialmente, para inverter a falta de incentivo à leitura na Escola Estadual Júlio César de Moraes Passos, e surgiu em virtude da inquietação das professoras da disciplina Língua Portuguesa do ensino fundamental desta escola com os índices de reprovação dos alunos na disciplina que chegava aos 77%. Este artigo descreve detalhadamente quatro ações do projeto: Entre um conto e outro me encontro, Correio do Clube, De verso em verso... O encanto e Gincana Literária e explica como, através da implantação do projeto na escola, que teve o apoio da FAPEAM, conseguiu diminuir a reprovação escolar para menos de 20% e conseguiu estimular nos alunos e nos professores o gosto pela leitura literária. Palavras-chave: leitura, escola, língua portuguesa, projeto Clube do Livro. Leitura na escola estadual júlio césar de moraes passos: um relato de experiência O começo da jornada A escola estadual Júlio César de Moraes Passos, localizada na Zona Norte da cidade de Manaus (AM), passou por um momento de inquietação e reflexão a partir dos dados divulgados, em 2007, pelo IDEB e pelo índice de aprovação e reprovação da escola naquele ano na disciplina de Língua Portuguesa. Segundo dados da secretaria da escola, mais de 77% dos alunos tinham sido reprovados na disciplina no ano de 2007. Além disso, a nota alcançada no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) foi de 2,5 pontos. Isso causou um profundo mal-estar nas professoras de Língua Portuguesa da escola, uma vez que, como profissionais da área, precisávamos com urgência tomar uma atitude, fazer um movimento em direção à mudança. Precisávamos sair da zona de conforto e modificar hábitos, até então, enraizados nas nossas práticas pedagógicas. Para tanto, era preciso assumir a condição de sujeito dessa mudança, pararmos de 2 esperar que as coisas melhorassem como num passe de mágica. Segundo Bakhtin (2004), a pessoa só pode ser agente da mudança ao colocar-se como sujeito do processo. Nas palavras desse autor: O sujeito como tal não pode ser percebido nem estudado como coisa, posto que sendo sujeito não pode, se quiser continuar sê-lo, permanecer sem voz; portanto seu conhecimento só pode ter um caráter dialógico [...] Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade, é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor (p. 113). Pela citação, infere-se que os professores, seja qual for a disciplina, precisam se ver e se colocar como sujeitos no processo de ensino-aprendizagem. Isso quer dizer que só haverá aprendizado se tanto o professor quanto o aluno estiverem envolvidos com a palavra, com o processo de aprendizagem para, depois, percorrerem os caminhos das possibilidades, das interações. A palavra precisava ser difundida em nossa escola, nossos alunos e professores precisavam ser impregnados da palavra e, para nós, ficou muito claro que isso só poderia ser feito com um movimento, com uma ação que incentivasse a leitura na escola. A partir dessas inquietações e dessas reflexões, surgiu o Projeto “Clube do livro” para ser desenvolvido na escola no ano de 2008 pelas professoras de Língua Portuguesa do ensino fundamental. A princípio, o projeto foi pensado como uma intervenção para tentar solucionar a falta de incentivo à leitura que ocorria na escola, pois acreditamos que o incentivo à leitura, traz melhoria no ensino da disciplina Língua Portuguesa. Nesse sentido, o objetivo geral do projeto foi estimular o gosto pela leitura e tornar esse hábito um momento de prazer a ser desfrutado pelos alunos e pelos professores na escola. Disposta a buscar parcerias para inverter a falta de incentivo à leitura, a escola, em cooperação com seus profissionais, começou a trilhar caminhos desconhecidos, para proporcionar à sua comunidade escolar o acesso à leitura, acreditando que ela é a porta de entrada à informação e ao conhecimento. Buscando parcerias A primeira parceria aconteceu dentro da própria escola com a descoberta da biblioteca. Segundo Silva (2009) “a biblioteca escolar precisa se fazer necessária na escola, ou seja, ela precisa ser entendida como de vital importância para o sistema 3 educacional [...] ensino e biblioteca se complementam” (p.194). Temos que confessar que a biblioteca sempre existiu em nossa escola, mas como um objeto de decoração, a “bela adormecida” precisava ser acordada e coube a nós, professoras de Língua Portuguesa, dar o “beijo” de despertamento. Sendo assim, a biblioteca passou a ser o primeiro espaço de leitura na escola. Em parceria com a bibliotecária, catalogamos livros que passaram a ser emprestados pelos alunos que, por sua vez, passaram a frequentar a biblioteca, visto entendermos que “a conquista e a organização de uma biblioteca dentro das escolas, recheada de literatura crítica e com serviço democrático de circulação, certamente servirão como um outro patamar educacional para a produção de um ensino de qualidade” (SILVA, 2009, p. 195). A segunda parceria foi com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM). Esta Fundação, juntamente com a Secretaria de Estado de Educação e Qualidade do Ensino do Amazonas (SEDUC), disponibilizou para todas as escolas públicas estaduais o Programa Ciência na Escola (PCE) com o objetivo de incentivar a pesquisa nas escolas. De imediato, vislumbramos a possibilidade de comprovar cientificamente que a leitura contínua e prazerosa proporcionada pela escola poderia influenciar positivamente no desempenho dos alunos na disciplina de Língua Portuguesa. Sendo assim, inscrevemos um projeto, que foi aceito, e a partir dos recursos financeiros proporcionados pela FAPEAM pudemos implantar o “Clube do livro” que passou a ser um espaço dentro da escola reservado exclusivamente à leitura. No Clube, todos os alunos e professores do ensino fundamental dispõem de uma variedade de livros, desde gibis até os Clássicos da literatura que eles podem tocar, ler, folhear, emprestar. A ideia é proporcionar aos alunos uma ampla diversidade de títulos para que eles adquiram a maturidade de leitor. “Ainda que a escola não possa garantir a formação integral e definitiva dos leitores, cabe a ela a responsabilidade de inserção formal das crianças no universo da leitura” (idem, 2008, p. 09), ou seja, cabe à escola inserir as crianças e os jovens no universo dos livros para que a maturidade de leitor possa ser adquirida. Essa maturidade não tem nada a ver com idade; segundo Lajolo (1984), “leitor maduro é aquele para quem a cada nova leitura desloca e altera o significado de tudo o que ele já leu, tornando mais profunda a sua compreensão dos livros, das gentes e da vida (p. 53). Para que isso 4 aconteça, entendemos que é preciso ampliar as leituras de nossos alunos, fornecendo a eles todos os gêneros e, a partir disso, eles possam formar o gosto pelo literário. Mas o Projeto “Clube do livro” não se resume apenas a proporcionar aos alunos de ensino fundamental a ida à sala de leitura; o projeto possui outras ações que são desenvolvidas no decorrer do ano letivo. Vale ressaltar que este projeto foi pensado para ser desenvolvido somente no ano de 2008, mas como ele deu muito certo, ainda existe até os dias de hoje em nossa escola, daí porque usamos em alguns momentos os verbos no presente. As ações e dinâmicas estão embasadas em um planejamento pedagógico elaborado especialmente para o desenvolvimento de estratégias que promovem a dinamização da leitura, fortalecendo o objetivo do projeto; a saber: a)O conto se apresenta (Entre um conto e outro me encontro...); b)O correio do clube; c)Leitura na biblioteca; d)Dramatização de histórias; e)Leitura no clube e empréstimos de livros; f)Rodas de leitura; g)O Clube vai à comunidade ( visita às casas dos pais dos alunos); h)Tapete ambulante; i)De verso em verso... O encanto!; j)Escola leitora; k)Gincana literária; Todas as atividades acima citadas têm importância peculiar para o processo de dinamização da leitura em nossa escola. Mas escolhemos quatro delas para compartilhar em detalhe. O conto se apresenta: entre um conto e outro me encontro... O projeto “Clube do livro” resgata uma ação antiga que se perdeu com o advento da televisão, computador, internet, celulares. Estamos nos referindo à arte de contar história. Essa atividade, a princípio lúdica, tem despertado o interesse dos alunos para a arte de contar. A ação é desenvolvida no próprio “Clube”; os alunos leem os contos conversam com os professores sobre os textos e podem encená-los ou simplesmente recontá-los. 5 É interessante que a nossa proposta vai além do aluno ler e contar. Ele pode também criar o seu próprio conto fundamentado na sua história de vida. Com isso, valorizamos tanto a oralidade do aluno quanto a escrita, que também é importante porque ele não é uma “folha em branco”, ele tem a sua história que, no “Clube”, pode se transformar em um conto. A cada bimestre, dois contos inéditos são selecionados por série para fazerem parte da gincana literária que é uma outra ação do projeto. Correio do clube Uma outra ação do Clube é o correio. Trata-se de um momento em que os alunos escrevem cartas e enviam aos “sócios” do Clube. Mas não são simples cartas, são compartilhamentos de experiências de leitura, indicações de livros, histórias de autores e até “críticas literárias”, o aluno é livre para escolher o seu interlocutor. É um momento único no Clube, todos os alunos ficam muito eufóricos para receber as correspondências e poder enviar a sua cartinha. É interessante que o correio conseguiu estimular ainda mais o gosto pela leitura porque o aluno quer ler vários títulos para poder ter o que dizer em suas cartas. Com isso, proporcionamos aos “sócios” uma nova dimensão na produção e leitura de textos. É importante ressaltar o diferencial dessa ação, os alunos começaram a se interessar pela boa escrita, para poder se comunicar com os outros colegas e até com os professores de forma compreensível. Assim, conseguimos que nossos alunos entendessem melhor as normas gramaticais como também as qualidades inerentes ao texto que são a unidade, coesão e coerência. De verso em verso... O encanto! Consideramos esta ação um dos pontos altos do nosso projeto, isso porque a poesia não tem sido muito valorizada nas escolas públicas de nossa cidade. Nossos alunos se intimidavam com os poemas, não compreendiam e alguns achavam maçantes. Essa realidade mudou, quando os alunos foram desafiados a ler os poemas em voz alta e a serem “escritores” de textos poéticos. Não há nenhum autor específico para o aluno ler, mas ele tem acesso a uma seleção de livros e de coletâneas de poemas de diversos autores e então, escolhe o que quer lê, declama poemas, canta, escreve ou reescreve textos inspirados no que leu e no que sugere sua história de vida. Além disso, os alunos podem levar tanto os livros quanto seus textos para casa, onde compartilham com a família para que todos também possam desfrutar da poesia. 6 Para nós, esta ação é fundamental porque cria no ambiente familiar o gosto pela leitura de poemas. Nas palavras de Klebis (2008): Os adultos, sejam os pais em casa, sejam os professores na escola, são também elementos de influência na constituição das crianças ou dos adolescentes como leitores ou não-leitores. Crianças que convivem com adultos leitores, entre livros e discussões acerca das leituras que os adultos fazem, que são embaladas por histórias ao pé da cama antes de pegar no sono, obviamente crescem em condições mais favoráveis à construção de uma relação positiva e familiar com os livros e leituras para o “envolvimento” (p. 35) A citação traduz bem a importância de compartilhar a leitura com os pais dos nossos alunos, não basta oferecer os livros apenas ao educando ou ao educador dentro dos muros da escola, se queremos formar leitores literários, precisamos ampliar essa partilha para fora da escola, precisamos trazer a comunidade do entorno para mais perto do que se tem discutido no espaço escolar, precisamos tornar a leitura acessível a todos aqueles que de alguma forma estão ligados à instituição escola. Gincana literária A quarta ação que resolvemos compartilhar neste relato é a Gincana Literária. Trata-se de uma ação desenvolvida ao final de cada ano letivo. No primeiro bimestre, os alunos tomam conhecimento dos autores que serão homenageados na gincana. Orientados pelas professoras cabe a eles lerem as obras selecionadas desses autores, conhecerem a vida dos mesmos para poder formar equipes e competir na gincana. São várias provas desde exposições, passando por caracterizações, caricaturas, pinturas, danças, músicas, teatro, soletrando, concurso de contos, perguntas e respostas, enfim são muitas provas a que os alunos se submetem para poder vencer a gincana. Com isso, eles ficam mais familiarizados com a literatura, além de conhecerem mais a vida e a obra desses ilustres nomes da literatura brasileira . A nosso ver, a gincana estimula a leitura dos Clássicos da literatura como também aproxima esses autores literários do mundo de nossos alunos. O término da jornada Intitulamos este tópico como “o término da jornada” não porque o projeto acabou, mas porque já é possível ver os resultados do desenvolvimento do Projeto 7 “Clube do livro” em nossa escola. Os primeiros resultados chegaram ainda no ano de 2008 com o resultado do índice de aprovação e reprovação na disciplina Língua Portuguesa. De 77% de reprovados, conseguimos cair para 45% e hoje estamos abaixo dos 20%, mas nosso objetivo é chegar a 0%, pois queremos exímios leitores e falantes da língua portuguesa. Com esses resultados comprovamos cientificamente que a leitura contínua e prazerosa no ambiente escolar influencia de forma positiva no desempenho dos alunos na disciplina de Língua Portuguesa. Com relação ao resultado do IDEB, passamos de 2,5 para 3,4 e estamos acima da meta para a nossa escola que é de 2,9. Acreditamos que o projeto fez e faz a diferença na vida dos nossos alunos. Sabemos que incentivar a leitura na escola não é uma tarefa fácil porque requer sair da zona de conforto, requer dedicação, requer buscar parcerias, ir ao encontro da comunidade do entorno da escola para chamá-la a participar. Não são atividades muito fáceis de serem colocadas em prática, mas é a partir delas que é possível construir uma leitura na escola e formar leitores literários. Sendo assim para o término deste tópico, fiquemos com a reflexão de Carvalho (2008) que nos adverte: Quando lemos e oferecemos textos para os nossos alunos lerem impede que sejamos “unilaterais” em vivenciarmos a leitura somente como instrumento para algo: lê-se para saber, lê-se para decorar, lê-se para responder. A leitura não se resume em ser instrumento, para algo que se vai aprender depois; ela é o próprio espaço de conhecimento, de aprendizagem. Ler e escrever são atividades criadoras em qualquer área do conhecimento se forem concebidas e vivenciadas como tal (p. 63). Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 11ª ed. São Paulo: HUCITEC, 2004. CARVALHO, Daniela Cristina de. Leitura na escola: caminhos para a sua dinamização. In: SILVA, Ezequiel Theodoro da (org). Leitura na escola. São Paulo: Global editora, 2008. KLEBIS, Carlos Eduardo de Oliveira. Leitura na escola: problemas e tentativas de solução. In: SILVA, Ezequiel Theodoro da (org). Leitura na escola. São Paulo: Global editora, 2008. LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto.In: ZILBERMAN, Regina (org). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984. 8 SILVA, Ezequiel Theodoro da. Biblioteca escolar: da gênese à gestão. In: ZILBERMAN, Regina; ROSING, Tânia M. K. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global editora, 2009.