Volume 33 Issue 2 us $7.50/CAN $9
Jaimiro e Azima Xavante no Warã, patio central da aldeia Pimentel Barbosa no Cerrado. Foto: Laura R. Graham
Cultural Survival
Antes que o dia termine, um indígena será
morto ou deslocado de sua terra. Antes
que o mês termine, uma terra indígena
será desapropriada, desmatada ou
inundada. Antes que o ano termine, dúzias
de línguas indígenas desaparecerão para
sempre. Governos e interesses econômicos
poderosos perpetuarão essa devastação
humana e cultural. Cultural Survival
trabalha para inverter essa situação. Nós
nos unimos aos povos indígenas para
proteger suas terras, línguas e culturas, e
lutar contra sua marginalização,
discriminação, exploração e abuso.
Fortalecimento Indígena
Educação e Difusão
A Cultural Survival se associa às
comunidades indígenas para ajudá-las na
suas lutas pela proteção de suas terras,
línguas e cultura. Como exemplos dos
vários programas que realizamos, estamos
apoiando uma coligação de Organizações
de Nativos Americanos (Estados Unidos)
para salvar suas línguas; e uma rede de
rádios comunitárias na Guatemala, com
objetivo de ajudar povos Mayas a
reconstruir suas culturas depois de 30 anos
de genocídio.
As publicações de Cultural Survival
buscam promover o entendimento do
público e apoiar os povos indígenas em sua
luta. Além dessa revista, nós produzimos
relatórios de pesquisa sobre as ameaças
governamentais que pairam sobre os povos
indígenas, como suporte para a análise
periódica do Conselho de Direitos
Humanos da ONU dos informes sobre
direitos humanos relativos aos diferentes
países. Nós também mantemos uma página
web que inclui um grande número de
dados sobre povos indígenas em todo
mundo; e realizamos uma série de bazares
de comércio igualitário, permitindo que
mais de 30.000 pessoas por ano entrem em
contato direto com artesões indígenas, ao
mesmo tempo gerando recursos
financeiros para as comunidades indígenas.
Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas
O trabalho da Cultural Survival é pautado pelos princípios estabelecidos pela ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
INVERNO 2010
3
O Cerrado Brasileiro
4
A invasão dos tratores
Enquanto o mundo se concentra na proteção da Amazônia, os povos indígenas do
Cerrado estão lutando para preservar suas terras da destruição
LAurA r. GrAhAm
Todos os povos têm o direito de viver em um meio-ambiente limpo, com água
fresca para beber e se banhar. Para os povos indígenas que vivem no Cerrado, a
recente e massiva invasão do agronegócio constitui uma ameaça a esses direitos
humanos básicos.
11 marãnã Bödödi – Caminho Pela mata
recuperação do Território Tradicional Xavante
12 Salvem o Cerrado
CiPASSé XAvAnTE
O que o Cerrado significa para mim
14 Porque devemos proteger o Cerrado
hiPAridi TOP’TirO
unamo-nos para proteger o Cerrado!
19 O nosso Cerrado
PAuLO SuPrETAPrã
A ameaça que paira sobre a nossa Comunidade Eténhiritipa
20 O que a mOPiC pode fazer por nós
TABATA KuiKuru, ELCiO TErEnA, TErEzA CriSTinA KEzOnAzOKErO
Testemunhos indígenas sobre a mOPiC
21 Povos indígenas do Cerrado: Territórios e Culturas ameaçadas
A mobilização dos Povos indígenas do Cerrado – mOPiC
24 Terra indígena raposa do Sol
AnA PAuLA CALdEirA SOuTO mAiOr
O que acontece quando o Supremo Tribunal e a Constituição discordam? é o que
estão descobrindo os povos indígenas ao constatar que correm o risco de perder o
controle sobre suas terras
26 A FunAi sob a mordaça do STF: e agora?
GiLBErTO AzAnhA
A responsabilidade atribuída ao Supremo Tribunal Federal de decisão sobre um
processo de homologação de terra indígena é uma ameaça ao trabalho da FunAi
28 marãnã Bödödi
mAriA LuCiA CErEdA GOmidE
marã é a mata, marãnã é através da mata, e bödödi é caminho...
caminho através das matas... Caminho através das matas do ró...
30 O caminho da lei….uma entrevista com a Procuradora da república
dEBOrAh mACEdO duPrAT dE BriTTO PErEirA
A Constituição Brasileira prevê a proteção das terras indígenas, mas o processo de
reconhecimento legal é ainda complicado
31 O que diz a lei?
A Legislação em matéria indígena
Preparação do milho para estocagem feita por Batika
Dzutsi´wa Xavante, anciã da aldeia Idzõ´uhu- T.I.
Sangradouro/Volta Grande – MT. Foto: Daniela Lima
COnSELhO TéCniCO-AdminiSTrATivO
COnSELhO dirETOr
Presidente
Sarah Fuller
vice-presidente
richard Grounds (Euchee)
Tesoureiro
Jeff Wallace
Secretários
Jean Jackson
Suzanne Benally (navajo)
marcus Briggs-Cloud (miccosukke)
Westy Egmont
Laura r. Graham
James howe
Cecilia Lenk
Pia maybury-Lewis
Les malezer (Gabi Gabi)
P. ranganath nayak
vincent nmehielle (ikwerre)
ramona Peters (Wampanoag)
Stella Tamang (Tamang)
martha Claire Tompkins
roy Young
Fundadores
david and Pia maybury-Lewis
Ellen L. Lutz, Diretora Executiva
Mark Camp, Diretor de Operações e Coordenador do
Projeto Rádio Guatemala
Mark Cherrington, Diretor de Comunicações
Paula Palmer, Diretora do Projeto Resposta Global
Jamie Malcolm-Brown, Designer Gráfico
David Michael Favreau, Diretor de Marketing
Kristen Dorsey (Chickasaw), Relações públicas com
Doadores
Sofia Flynn, Gerente de finanças
Cesar Gomez (Pocomam), Coordenador de Conteúdo e
Training do Projeto Rádio Guatemala,
Polly Laurelchild-Hertig, Diretor de Recursos para
Programas
Agnes Portalewska, Gerente de Programasr
Rosendo Pablo Ramirez (Mam), Coordenador Assistente do
Projeto Rádio Guatemala
Alberto Recinos, Coordenador Jurídico do Projeto Rádio
Guatemala
Jennifer Weston (Lakota/Standing Rock Sioux), Gerente de
Programas e de Comunicação
Ancelmo Xunic (Kaqchikel), Contador do Projeto Rádio
Guatemala Radio
Phoebe Farris (Powhatan-Renape),Colaboradora de Edição e
Arte
COnSELhO EdiTOriAL
Kristina Allen
Kim Burgess
Duane Champagne
Brian Ferguson
Robert Gordon
Lotte Hughes
Neil Jarman
Theodore Macdonald, Jr.
Fergus MacKay
Ian S. McIntosh
Sally Engle Merry
Chris Rainier
Tim Sieber
rESPOnSávEiS dESTE númErO:
Cultural Survival
215 Prospect Street
Cambridge, mA 02139
t 617.441.5400 f 617.441.5417
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Editora: Laura R. Graham, Antropóloga Professora Assistente,
University of Iowa, EUA
Editora Assistente: Rebecca Igreja, Antropóloga
COnSELhO dE PrOGrAmAçãO
Theodore Macdonald, Jr.
Jessie little doe (Wampanoag)
Jacob Manatowa-Bailey (Sac and Fox)
ESTAGiáriOS E vOLunTáriOS
Keisha Brice, Manasi Gupta, Sarah Habtermarian, Zachary Tate
inFOrmAçãO GErAL
Copyright 2010 Cultural Survival, Inc. A Revista Cultural Survival
Quarterly(ISSN 0740-3291) é publicada trimestralmente pela Cultural
Survival, Inc. Endereço: 215 Prospect St., Cambridge, Massachusetts,
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Correios adicionais. Para uso dos Correios: eventuais mudanças de endereço, reenviar para Cultural Survival, 215 Prospect St., Cambridge,
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Sibupa Xavante, habitante da T.I. Pimentel Barbosa, era muito próximo do fundador da Cultural Survival, David Maybury-Lewis. “Eu voltei para vê-lo”, Maybury-Lewis disse, “meu irmão da tribo. Um homem sábio. Eu me dei conta do
que ele ainda possui, do que eu deixei para trás. Pertencer a essa grande e complicada teia da vida. Participar de sua longa, longa construção”. Foto de Millenium series, Meech Grant Productions, Inc.
mEnSAGEm
dA
dirETOrA EXECuTivA
O Cerrado Brasileiro
uando pensamos em indígenas e em
florestas imediatamente vem a nossa mente
a imagem da Amazônia e dos povos que lá
vivem. Esquecemos, contudo, de um “outro” Brasil
representado pela exuberância natural do Cerrado e
pela presença de povos indígenas diversificados que
nele habitam.
O Cerrado brasileiro cobre uma área de
aproximadamente 2.000.000 km2, quase um quarto
do território brasileiro. Apesar de se estender por
vários Estados do país, sua área nuclear está na
região do Planalto Central, um platô com dimensão
de 486.311 hectares. Trata-se de uma das regiões de
Savana tropical com maior biodiversidade do
mundo e do segundo maior bioma da nação, depois
da Floresta Amazônica. Essa sua diversidade é
propiciada pela presença dos rios que constituem
três grandes bacias hidrográficas da América do Sul:
Amazônica, Paraná/Paraguai e do São Francisco,
garantindo índices pluviométricos regulares.
Apesar de sua enorme riqueza natural, as taxas
de desmatamento no Cerrado têm sido
historicamente superiores às da floresta Amazônica,
ao mesmo tempo em que o esforço de conservação
do seu bioma é muito inferior: apenas 2,2% da área
do Cerrado se encontra legalmente protegida.
Segundo dados da Organização Conservação
Internacional, diversas espécies animais e vegetais
estão ameaçadas de extinção e estima-se que 20%
delas não ocorram nas áreas legalmente protegidas.
As principais ameaças à biodiversidade do Cerrado
são: a erosão dos solos, a degradação dos diversos
tipos de vegetação presentes no bioma e a invasão
biológica causada por gramíneas de origem
africana. Outro fator de ameaça é o uso de
queimadas para a abertura de áreas virgens e para
estimular o rebrotamento das pastagens. Para a
organização “Conservação Internacional”, o
Cerrado pode ser considerado como região de
“Hotspot”, ou seja, com grande presença de
biodiversidade e onde as ações de conservação são
mais urgentes.
O Cerrado atualmente é visto como uma região
de grande potencial agrícola. Suas áreas estão sendo
Q
invadidas por plantações de soja e recentemente de
cana-de-açúcar, e por pastos para a criação de gado.
Essas atividades agrícolas e pecuárias estão
crescendo em um ritmo intenso e exigem cada vez
mais uma melhor infra-estrutura para baratear os
custos do transporte da safra. Os impactos dessas
atividades sobre o Cerrado têm sido imensos e têm
deixado apreensivos todos aqueles que se dedicam a
defesa da natureza.
Povos indígenas social e culturalmente diversos
vivem no Cerrado há séculos. Calcula-se que a
região do Centro-Oeste sozinha é habitat para mais
de 53 mil indígenas que pertecem a mais de 42
etnias diferentes. Todos esses grupos estão
enfrentando sérios desafios para que possam
preservar o Cerrado e nele permanecer. Lutam pela
defesa da natureza e de suas terras. Buscam apoio de
todos aqueles que possam lhe amparar nessa luta.
Como o líder Xavante Cipassé diz: “A luta para
salvar o cerrado não é só nossa, é de toda a
humanidade”. O que está acontecendo no Cerrado
provoca efeitos a nível planetário, prejudicando
toda humanidade.
ONGs nacionais e internacionais buscam apoiar
os indígenas na luta pela manutenção de suas terras
e pela preservação do Cerrado. Com este fim, o
célebre antropólogo David Maybury-Lewis e sua
esposa Pia criaram a Organização Cultural Survival.
Maybury-Lewis realizou seu trabalho etnográfico
na região na década de 1960, momento em que pôde
testemunhar os vários abusos de que os indígenas
eram vítimas. A situação atual não é diferente.
Desde então, os indígenas têm visto a fragmentação
de suas terras e a destruição de suas culturas
diluídas e ameaçadas pela assimilação e pelo
desenvolvimento.
Nessa edição de Cultural Survival Quartely, nós
enfocamos o cerrado e as ameaças que pairam sobre ele.
Ellen L. Lutz, Diretora Executiva
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010
3
A invasão dos
Tratores
Laura r. Graham
O avanço do Agronegócio
que está desmatando o
Cerrado. Foto: Laura R.
Graham
4
www.cs.org
Todos os povos têm o direito de viver em um
meio-ambiente limpo, com água fresca para
beber e se banhar. Para os povos indígenas
que vivem no Cerrado, a recente e massiva
invasão do agronegócio constitui uma ameaça
a esses direitos humanos básicos.
s Xavante, indígenas pertencentes à família
lingüística Jê, vivem na área de Cerrado do
Estado do Mato Grosso. Historicamente, os
xavante buscaram evitar o contacto com a sociedade
nacional, atitude essa que os levou a serem conhecidos
como povos orgulhosamente isolacionistas. Não
obstante, alguns grupos estabeleceram contatos
pacíficos a partir de 1946 e de maneira mais intensa e
generalizada, nos anos 60. Mesmo depois de cinqüenta
anos de intenso contacto, os Xavante mantêm muitos
aspectos de sua vida tradicional. Ainda nos dias de hoje,
observamos a grande riqueza de sua vivência espiritual
e cerimonial.
Os Xavante, no entanto, estão enfrentando
atualmente grandes desafios. Suas terras estão agora à
somente 12 horas de Brasília, situadas no coração do
novo pólo agrícola e econômico do país. As nove
pequenas reservas que o governo começou a delimitar
nos anos 70 parecem hoje ilhas perdidas em um mar de
soja. O agronegócio demonstra seu interesse sobre essas
pequenas reservas, nas quais o rico ecossistema do
Cerrado ainda está intacto.
Meu acercamento aos problemas enfrentados pelos
Xavante não é recente. Há mais de 25 anos atrás, como
aluna de pós-graduação, iniciei minha etnografia sobre
os grupos Xavante na comunidade de Eténhiritipa no
centro do país, na Serra do Roncador. Desde então
tenho sido testemunha das mudanças e dos novos
desafios que esses grupos estão enfrentando, sobretudo
com relação à defesa de seus direitos sobre as terras que
ocupam. Esse artigo foi inspirado por minhas
observações em uma viagem que realizei recentemente
as comunidades em companhia de Ellen Lutz, diretora
executiva da organização “Cultural Survival”.
Compartilhamos com os indígenas suas preocupações e
para isso, junto com eles estamos buscando a melhor
maneira de apoiá-los.
Enquanto latifundiários e corporações nacionais e
multinacionais estão obtendo seus benefícios da
crescente produção de soja no Mato Grosso e fazendo
planos
de
desenvolvimento
de
projetos
multimilionários, muitos Xavante não possuem o
suficiente para comer, sobretudo os que se encontram
instalados em pequenas áreas e que, portanto, não
dispõem de suficiente caça ou inclusive de palmeiras
necessárias para construir suas casas. A situação de
saúde nas áreas Xavante é chocante! A mortalidade
infantil é extremamente alta, muito acima da média
regional e nacional e perto da existente no Nordeste.
Essa taxa resulta da exposição dos indígenas a muitas
doenças infecciosas e a uma atenção médica precária. É
iminente o aparecimento de epidemias de hipertensão e
de diabete.
Xavante é somente um dos muitos grupos do
O
Centro-Oeste cujas terras e sobrevivência têm sido
severamente afetados nas últimas duas décadas pela
proliferação da colossal agroindústria. Em algumas
áreas, vê-se a produção da soja, outras de cana-deaçucar para bio-diesel, e ainda, a invasão das plantações
de eucalipto destinadas a alimentar as fornalhas das
fábricas de processamento de óleo de soja.
“O cerrado é uma fonte de vida para a comunidade
indígena”, diz Elcio, índio Terena da cidade
Cachoeirinha. “Nossa preocupação atual é com sua
devastação, principalmente na nossa região onde os
fazendeiros estão desmatando muito. O Cerrado tem
uma biodiversidade muito grande e é onde nós
conservamos a nossa vida, porque ali encontramos o
quê comer: a caça, pesca, frutas, mel. Todas as coletas de
matéria-prima são feitas no cerrado; ele fornece nossa
alimentação. Por isso se a gente não proteger o Cerrado,
a gente vai acabar com a nossa alimentação. As
queimadas estão acabando com a diversidade do
Cerrado. São um problema pois estão acabando com a
guavira, que é uma fruta saborosa, de grande valor no
mercado.”
Os Xavante podem ser considerados afortunados
pois vivem em reservas protegidas legalmente, mesmo
que sejam de pequena extensão e invadidas de maneira
frequente. Muitos outros grupos, por sua vez, vivem em
terras que ainda não foram demarcadas. Em geral, as
demandas de reconhecimento de suas terras ficam
décadas perdidas nas gavetas dos escritórios das
agências governamentais responsáveis pela demarcação
e homologação de terras indígenas.
A viagem que realizamos juntamente com Hiparidi
Top’tiro, um dos líderes da comunidade Abelhinha
localizada na Terra Indígena Sangradouro, e Daniela
Lima, ativista dedicada a defesa dos direitos indígenas,
durou menos de um dia. Estradas asfaltadas nos
conduziram até aproximadamente 60 km da reserva
Pimentel Barbosa. Uma jornada como essa era realizada
em 1982 no mínimo em três dias (às vezes mais), em
uma resistente camionete 4X4, atravessando estradas
difíceis e passando por pontes instáveis, normalmente
construídas com duas tábuas colocadas sobre as aguás.
Na época de chuvas, quando aguaceiros torrenciais
golpeavam o cerrado, as rodovias eram praticamente
intransitáveis. Em nossa viagem vimos imensas carretas
que transportavam produção agrícola, particularmente
grãos de soja, para fora do Mato Grosso em direção aos
portos e centros comerciais onde a carga seria exportada
principalmente para os mercados na Europa, China e
Japão.
Viajamos quilômetros em meio de um cerrado
desmatado, terras que agora eram propriedades de
poderosos fazendeiros e corporações agrícolas. Vimos
grandes armazéns de grãos, silos e outros complexos de
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010
5
Mapa elaborado e
cedido gentilmente
pelos produtores do
documentario
“Os Donos da Água”.
6
www.cs.org
armazenagem; e placas imensas com nomes de grandes
transnacionais, como Cargill, Bunge, Monsanto, Maggi,
ADM. Pequenos povoados tinham se transformado em
cidades de tamanho considerável, classificadas entre as
que mais crescem no país.
O galopante crescimento da agroindústria exerce
grande pressão sobre os povos indígenas. A atitude
predominante na região é pró-desenvolvimento e próagronegócio. Qualquer pessoa que busque uma posição
alternativa se depara com antagonismos e forte
indignação. Isso é especialmente verdade para os povos
indígenas que ao defender os seus direitos territoriais
garantidos pela Constituição, a proteção do meioambiente e a habilidade de viver de acordo com suas
tradições, são comumente considerados como entraves
para o progresso.
A agroindústria de soja começou a se expandir
agressivamente pelo Cerrado Ocidental no final dos
anos 80, quando variedades de soja adaptadas ao clima
tropical tornaram-se disponíveis comercialmente. O
crescimento agrícola acelerado junto com o aumento de
megaprojetos de desenvolvimento de infra-estrutura
(construção de rodovias, hidroelétricas, hidrovias), a
exploração de minas e a extração de madeiras ilegais
estão destruindo o meio-ambiente frágil do Cerrado e
causando efeitos devastadores para os habitantes das
comunidades indígenas.
O aumento da colonização
Durante os anos 60 e nos anos 80, o governo
brasileiro utilizou esquemas de colonização de largaescala e generosos incentivos fiscais para atrair novos
posseiros e pecuaristas do sul para regiões remotas do
Cerrado. Com a fronteira avançando em direção ao
Oeste, houve um aumento de conflito entre indíos e
fazendeiros. O contato interétnico intenso teve como
resultado a devastação de muitas comunidades causada
por novas doenças como sarampo, para as quais elas não
tinham imunidade. Aproveitando-se desse momento,
agentes governamentais ou missionários conduziram os
grupos sofredores para locais específicos como postos
oficiais ou missões, para receberem tratamento médico
e sanitário, enquanto o Estado vendíam suas terras,
como se fossem terras “livres” de habitantes indígenas.
Um dos exemplos mais flagrantes de desapropriação
de terras Xavante aconteceu na área conhecida como
Marãwaitsede, localizada na região do rio de SuyaMissu perto do Parque Nacional do Xingu. Depois de
comprar terras dessa região por meios fraudulentos, um
fazendeiro paulista promoveu vôos estratégicos sobre a
área, lançando comida para os indígenas, deslocando os
grupos várias vezes até situá-los em uma localização
próxima da área onde foi estabelecida a produção.
Pouco a pouco, os indígenas foram levados a trabalhar
por comida e sujeitos ao assédio contínuo dos
empregados não indígenas. As condições dos Xavante
deterioram tão severamente que, em 1966, os
proprietários – então o poderoso grupo italiano
Ometto cuja corporação alcançou aproximadamente
15 mil km2 -, em colaboração com missionários
Salesianos, do Serviço de Proteção aos Índios - SPI e da
Força Área Brasileira, resolveram o “problema índio”
transportando- os para uma Missão Salesiana em São
Marcos, aproximadamente à 400 km de suas terras. Em
duas semanas mais de 100 Xavante morreram de
epidemia de sarampo no novo local de estabelecimento.
Em 1996, os Xavante dessa área finalmente
ganharam a longa batalha para recuperar um pouco de
sua terra, com a demarcação e homologação oficial da
Terra Indígena de Marawãitsede. Não obstante,
desconsiderando as leis, fazendeiros que tinham se
mudado para a àrea se recusaram a sair ou a permitir a
volta dos Xavante. Ao contrário, encorajaram posseiros
a ocupar completamente a àrea deflorestando grandes
extensões. Em 2004, quando Xavante tentaram retomar
suas terras, foram impedidos por homens armados. Os
indígenas se refugiaram assim em um acampamento
improvisado do lado oposto da rodovia (BR-158) e
viveram neste lugar por 11 meses. As condições
precárias do acampamento -- parecida aos dos Guarani
causaram mais problemas de saúde para os indígenas,
como por exemplo as três mortes de recém-nascidos por
pneumonia agravada pela incessante poeira da estrada.
Quando uma equipe responsável de realizar um estudo
para o Alto Comissariado da ONU para Direitos
Humanos tentou alcançar o acampamento por via
terrestre encontraram pontes queimadas pelos
fazendeiros que queriam dificultar seu acesso. A equipe,
finalmente, teve de alugar aviões para chegar ao lugar
por via aérea. Essa área ainda está marcada por conflitos
e fazendeiros poderosos continuam desafiando os
direitos dos Xavante nos tribunais.
Pecuaristas continuam desmatando imensas áreas do
Cerrado para pastagem em torno e mesmo no interior
das áreas indígenas. O desmatamento e a formação do
pasto abalam severamente a flora e a fauna do Cerrado,
reduzindo a disponibilidade de animais para caça, uma
importante fonte de proteínas para a dieta dos povos
nativos. Além disso, sendo a caça central para muitas
cerimônias, a falta de animais pode levar muitos grupos,
tais como os Parecís do Oeste do Mato Grosso, a
abandonarem atividades fundamentais para sua
organização social e cultural.
Antes da nova Constituição de 1988, a política do
Estado brasileiro se dirigia a assimilação dos povos
indígenas à estrutura social e econômica nacional (veja
entrevista com Deborah Macedo Duprat de Britto
Pereira..pág.30). Na área do Cerrado, o governo
procurou transformar os indígenas em fazendeiros
capitalistas e agricultures comerciais. Por exemplo, em
1970, quando muitos fazendeiros estavam realizando o
cultivo comercial de arroz para o mercado doméstico, a
FUNAI implementou um projeto colossal de seu cultivo
mecanizado nas áreas Xavante. A implementação desse
tipo de projeto foi a forma encontrada pelo Estado para
justificar a criação de reservas indígenas, uma vez que
assim não se estaria “desperdiçando” a terra ocupada.
Dessa forma, com o trabalho indígena, essas terras
poderiam contribuir para o Produto Nacional Bruto PNB, como já fazem as outras fazendas comerciais da
região. De fato, muitos latifundiários e agricultures se
opõem a criação ou ampliação das reservas indígenas
porque, segundo eles, impediría que terras
potencialmente produtivas contribuissem para o
desenvolvimento do país.
Para os Xavante, o projeto de cultivo de arroz foi
imensamente destrutivo pois criaram uma massiva
dependência tecnológica, além de exacerbar as tensões
dentro e entre as comunidades por causa das mudanças
que provocou em suas estruturas, especialmente pela
disputa pelos recursos disponibilizados pela instituição.
Ademais, a substituição dos nutritivos alimentos
tradicionais pelo arroz alterou dramaticamente a dieta
traditional. Ma nutrição é agora um sério problema e
novas doenças se tornaram endêmicas, especialmente a
hipertensão e a diabete, doenças associadas a excessiva
dependência de alimentos refinados e ao novo estilo de
vida sedentário. Os projetos também abriram portas
para que intermediarios não indígenas, principalmente
funcionários da FUNAI, agindo de maneira corrupta,
desviassem os recursos das transações financeiras, da
restauração dos equipamentos, até da venda das
colheitas das terras Xavante. Embora esses projetos
tenham sido abandonados a finais dos anos 80, muitos
dos problemas criados ainda persistem.
1990 – O boom da soja...
A agricultura comercial no Centro-Oeste começou
com arroz e poucas plantações de soja nos anos 70,
expandindo-se com força nos finais dos anos 80 e nos 90
com a massiva agroindústria voltada para a exportação.
O cultivo de soja é altamente mecanizado, de capital
intensivo e usa grandes proporções de fertilizantes,
herbicidas e pesticidas. Essa explosão agrícola no
Cerrado coincidiu com o aumento da demanda global
na época assustadora da doença da vaca-louca,
momento em que os europeus necessitaram de soja para
substituir a alimentação animal altamente protéica; e
com a expansão do mercado mundial de óleo de soja,
especialmente na China e no Japão. Em 2000, Mato
Grosso tornou-se o estado maior produtor de soja, e em
2004, o Brazil suplantou os Estados Unidos na liderança
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010
das nações maiores produtoras de soja. No Mato Grosso
a área dedicada ao cultivo de soja aumentou 81% entre
os anos de 1991 e 1994. Essa área quase dobrou de novo
em 2003, e a estimativa indica que o estado tem
potencial para plantar 10 vezes mais essa quantidade.
As consequências ambientais e sociais dessa rápida e
imensa explosão agrícola são assombrosas,
principalmente para os vuneráveis indígenas da região
que ainda não possuem a titulação de suas terras.
Embora a Constituição brasileira garanta os direitos dos
povos indígenas em ocupar permanentemente as terras
onde tradicionalmente habitavam, o governo tem sido
lamentavelmente incapaz no cumprimento de sua
obrigação de identificar e demarcar essas terras. Em
muitos casos, latinfundiários e corporações agrícolas
suspendem os processos de homologação de terras
impondo recursos legais que podem levar anos ou
mesmo décadas para serem julgados como no caso da
reserva “Serra Raposa do Sol” em Roraima (ver pág.24).
Obviamente que enquanto os casos estão sendo
decididos (ou não decididos), os fazendeiros continuam
tirando proveito das terras indígenas. Eles constroem
estradas, cercas, silos, armazéns, edifícios e inclusive
cidades nas áreas reclamadas pelos indígenas. Esses
“melhoramentos” sem duvida influenciam de maneira
negativa na vontade política do governo em resolver a
questão ou mesmo na sua capacidade para indenizar os
proprietários pelo custo do investimento feito,
aumentando assim a possibilidade de que ceda para a
parte mais poderosa.
São muitos os casos que demonstram as dificuldades
que enfrentam os indígenas para reocupar suas terras.
Isso aconteceu, por exemplo, com os Xavante de
Marãwaitsede, que tiveram de acampar ao longo da
rodovia, já que os fazendeiros se recusaram a deixar as
suas terras, inclusive depois de terem recebido a
indenização. Outro caso notável aconteceu na Ilha do
Bananal em meio do Rio Araguaia, terra dos indígenas
Karajá, Javaé e Ava Canoeiro. Mesmo depois de
receberem a indenização que cobria a sua transferência
para outra área, pecuaristas deixaram o gado na ilha,
degradando o ambiente e poluindo as águas.
Os grupos indígenas que desafiam o poder dos
latifundiários estão sujeiros a uma enorme pressão. Por
Os Donos da Água
uma colaboração original entre dois cineastas indígenas e uma antropóloga, “Os donos da água” é um
documentário convincente, com imagens etnográficas inovadoras. um xavante do Centro-Oeste do Brasil
(Waiassé) , um wayuu da venezuela (Palmar) e uma antropóloga dos Estados unidos (Graham) exploram
uma manifestação indígena para proteger os rios dos efeitos devastadores do cultivo descontrolado da
soja no Cerrado. “Os donos da água” destaca um protesto cívico no qual os indígenas bloquearam uma
rodovia e uma ponte, e fizeram o uso estratégico da cultura indígena para chamar a atenção para o
desmatamento e para o uso excessivo de agrotóxicos no cultivo predador da soja. O documentário
demonstra a diversidade de opiniões dos xavante, evidencia que os membros não-indígenas da população
local tanto apóiam quanto se opõem às exigências xavante e também destaca os esforços indígenas para
construir redes solidárias entre diferentes povos nativos e entre distintos países.
Para mais informações sobre o documentário visite as páginas web:
http://www.der.org/films/owners-of-the-water.html
POrTuGuÊS:http://www.youtube.com/watch?v=umvB1mO5zYw
Foto: David Hernández Palmar
8
www.cs.org
conta disso, muitas comunidades sofrem de uma
extrema desorganização e em algumas delas,
especialmente no Mato Grosso do Sul, a incendência de
suicídio é alarmante. Muitos indígenas se transformam
em mártires de sua causa. Em 2007 e 2008, por exemplo,
três líderes Xacriabá foram assassinados em uma
disputa de terra. Especificamente no Mato Grosso do
Sul, onde comunidades Guarani Kaiowá, Nãndeva e
outras comunidades nativas estão confinadas em
pequenas áreas, foram presos 80 indígenas. Eliso da
Lopez é um desses líderes que, por causa da perseguição
de fazendeiros, está impedido de ver sua família há mais
de um ano. “ Nós queremos nossa casa de volta, então
nós poderemos plantar e produzir”, ele diz. “Ainda que
está terra seja nossa, nós estamos vivendo na beira da
estrada. Essa situação é muito triste mas não voltaremos
atrás. Mesmo que os fazendeiros matem um líder
indígena, mil outros vão aparecer”.
Alguns fazendeiros, não obstante, foram mais astutos
ao se ocuparem do “problema” indígena. Por exemplo,
fazendeiros vizinhos convenceram indígenas Parecís do
Mato Grosso a formarem uma “parceria agrícola”,
embora a agricultura comercial em área indígena seja
ilegal. Em vez de apoiar os direitos indígenas, o
governador do estado Blairo Maggi, fazendeiro
milionário cujo grupo Maggi é um dos maiores
produtores de soja no mundo, consentiu e oficialmente
reconheceu esse tipo de acordo. Em 1995, os Parecís
concordaram em permitir a plantação de 130 acres, em
uma área que tem expandido a cada ano. Apesar de
usarem o termo “parceiros” para descrever o acordo,
segundo alguns informes, os fazendeiros ficam com
98% dos lucros, deixando somente 2% para os
indígenas, que, com seu trabalho, cultivam a soja na sua
terra.
Governador Maggi é conhecido no Brasil como o
“Rei da Soja”, mas ambientalistas o chamam de “Rei do
Desmatamento”. Mato Grosso lidera os estados
brasileiros em número de queimadas e de
desmatamento. Aproximadamente 300.000 km2 de
floresta e savana foram substituidos por plantações nos
últimos 20 anos, de acordo com a WWF.
O desmatamento, especialmente em torno das
cabeceiras dos rios e riachos, está causando grande
erosão e aumento de poluição. Durante a temporada de
chuva, temporais levam os resíduos químicos usados na
agricultura de soja- como o herbicida Roundup da
Monsanto – diretamente para os rios onde os povos
indígenas se banham, bebem água e pescam. Como o
solo do cerrado é ácido e pobre em nutrientes, demanda
grandes quantidades de cal e de fertilizantes químicos
para ser produtivo. Os fertilizantes junto com os
herbicidas usados em monoculturas intensivas vão
escorrendo para os reservatórios de água e
contaminando os lençois subterrâneos, tornando toda
água perigosa. No Aquífero Guarani, o maior do
mundo, contaminantes já alcançaram 80% do nível
aceitável para o consumo humano.
Químicos são levados e deixados pelo vento nas
terras indígenas. Isso aconteceu na última temporada de
plantação no território Xavante de Sangradouro, e Paulo
Supretaprã, lider de Etéñhiritipa, informou que também
está acontecendo na terra indígena de Pimentel
Barbosa. Além disso, desde que o Presidente LULA
retirou a proibição dos organismos geneticamente
modificados em agosto de 2003, os fazendeiros de soja
plantaram imediatamente variedades modificadas
próximo ou mesmo dentro das áreas indígenas, embora
seus impactos ambientais e humanos sejam ainda
desconhecidos. Como Cipassé diz (veja pág.12) os
Xavante estão preocupados com os animais que eles
caçam e comem e que podem estar ingerindo
substâncias tóxicas fora das áreas indígenas. Com
planos de expansão de plantação de Cana-de-açucar e a
instalação de fábricas para converter as safras em
biocombustível, as pressões sobre os territórios
indígenas provavelmente vão aumentar ainda mais no
futuro.
Remodelando o Cerrado
Com a produção de soja se intensificando, mais de
4.5 milhões de toneladas por ano somente no Mato
Grosso, e com as previsões de que a produção ainda
crescerá mais, o Estado brasileiro está planejando um
grande projeto de infra-estrutura integrado ao plano
estatal “Avança Brasil”, para fazer a região mais acessível
e transportar as imensas colheitas para os portos e
centros comerciais. A hidrovia Tocantins-Araguaia,
também conhecida como o Corredor de Transporte
Multimodal Centro-Norte, é um projeto multimilionário que transformará a bacia hidrográfica mais
extensiva do centro do país e do leste da Amazônia em
uma hidrovia comercial que sustente os comboios de
barcaças de transporte de soja e também de toxinas
agrícolas. Esses projetos deixam os indígenas
preocupados. No total, serão alterados mais de 2 700 km
do sistema hidroviário Tocantins-Araguaia-Rio das
Mortes. Isso inclui obras de engenharia em larga-escala,
como hidrelétricas que serão construídas em ou
próximo as zonas Xavante de São Marcos e
Sangradouro, e que também afetará diretamente os
territórios de Areões e Pimentel Barbosa. Uma recente
barragem construida próxima da reserva Parabubure,
uma das muitas planejadas nas cabeceiras do rio Xingu
já está operando.
Além disso, o projeto afetará no mínimo seis outros
grupos indígenas: Apinajé, Javaé, Karajá, Krahó, Krikati
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010
9
Expulsos de suas terras,
índios Guaranis vivem
atualmente em
assentamentos provisórios
situados à beira de estradas,
enquanto esperam pela
solução de seus problemas.
Muitos povos do Cerrado se
encontram nessa mesma
situação. Foto: Naqillum
(Flickr).
10
www.cs.org
e Tapirapé. No total, a hidrovia poderá ter impacto
direto nas vidas de mais de 10.000 indígenas que
dependem do rio, da flora e da fauna para sua
sobrevivência. Os indígenas estão lutando contra o
projeto, e um processo judicial aberto por um Xavante
de Pimentel Barbosa, em colaboração com o Instituto
Sócio-Ambiental, logrou atrasá-lo; mas nada garante,
no entanto, que será possível interrompê-lo.
Sem desânimo, os indígenas empreendem esforços
para melhorar suas condições. São diferentes projetos que
estão sendo criados nesse sentido. Cipassé, líder da
comunidade Wederã da T.I. Pimentel Barbosa, oferece
como exemplo a criação de uma nova escola na
comunidade, construída com fundos governamentais,
equipada com moderna cozinha, biblioteca e sala de
informática (ainda não tem os computadores ). Apresenta
também o projeto da comunidade para criar, e com
objetivo eventual de aumentar, a população de Queixadas
( Tayassu Pecari) em suas terras (ver artigo de Cipassé, pág
12). Wederã e muitas outras comunidades Xavante estão
também desenvolvendo projetos, frequentemente com
apoio de ONGs, que atestam o conhecimento tradicional
das plantas do Cerrado e suas propriedades medicinais.
Eles querem revitalizar as práticas de colecta e de
processamento que foram abandonadas e estimular a
alimentação de frutos nutritivos do Cerrado. Os Krahós
também estão ajudando a melhorar o meio-ambiente
através da participação em projetos de fruticultura no
cerrado. Pequenos projetos como esses que podem fazer
uma enorme diferença na vida de muitos indígenas estão
em andamento em muitas comunidades espalhadas pelo
Cerrado.
Destaca-se entre os muitos projetos desenvolvidos
pelos indígenas, o projeto Marãna Bödödi, ou Caminho
pela Mata, que pretende unir os diversos grupos
Xavante e indígenas Bororos que se encontram em
pequenos territórios ao longo do Rio das Mortes, em
uma área protegida comum.
Em nosso esforço de encontrar a melhor maneira
pela qual a organização “Cultural Survival” poderia
apoiar os Xavante, contactamos funcionários da
Coordenação de Assuntos Fundiários da FUNAI e da 6ª
Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal, responsáveis por Assuntos Indígenas.
As autoridades que encontramos parecem apoiar de
maneira animadora os esforços que os grupos indígenas
estão fazendo para proteger suas terras. Não obstante,
sabemos que qualquer reivindicação dos grupos
indígenas ainda encontrará uma forte oposição do
Estado e dos poderes políticos locais, de agricultores e
daqueles que se opõem de maneira feroz a ampliação
dos territórios indígenas.
A Constituição brasileira é a uma importante arma
para os povos indígenas, mas garantir que os direitos
indígenas previstos nela sejam colocados em prática
exige muita dedicação e um longo e árduo trabalho. A
Associação Xavante Warã e a rede extensa de alianças
denominada Mobilização dos Povos Indígenas do
Cerrado – MOPIC estão agindo para avançar na luta
dos indígenas para a proteção do Cerrado. Como afirma
Kuiusi Kisêdjê, líder da comunidade Ngojwere do
Xingu: “Nós lutamos para recuperar nossa terra porque
ela é sagrada para nós; nossos ancestrais estão
enterrados aqui. Muitas pessoas pensam que nós
estamos só interessados em dinheiro, mas o que nós
queremos é a nossa terra”.
marãnã Bödödi – Caminho Pela mata
recuperação do Território Tradicional Xavante
ssociação Xavante Warã é uma organização sem
fins lucrativos que, nos seus doze anos de
história, vem desenvolvendo diferentes projetos
voltados para a auto-sustentabilidade do povo Xavante
através da preservação/manutenção do Cerrado. A
princípio, a Associação Warã atuava apenas em algumas
aldeias da Terra Indígena Sangradouro, mais
especificamente na comunidade Idzo´uhu, (Abelhinha),
no entanto, devido ao sucesso obtido na execução de suas
ações, tornou-se um modelo para as demais Terras
Indígenas Xavante, o que a levou a ampliar sua atuação,
articulando as distintas propostas apresentadas pelas
diferentes T.I com o objetivo de constituir um
movimento forte e unificado do povo Xavante.
Atualmente, a Associação Warã tem como proposta
principal, um projeto de recuperação do território
Xavante, projeto MARÃNÃ BÖBÖDI – "Caminho pela
Mata”. O território indígena Xavante localizado no
cerrado do Estado do Mato Grosso está fragmentado em
nove Terras indígenas, fato ocasionado pelo intenso
processo de ocupação de seu território pela sociedade
envolvente e que gera, até os dias de hoje, inúmeros
impactos sócio-ambientais e culturais para esse povo. As
T.I. Sangradouro, São Marcos, Areões e Pimentel Barbosa
têm como eixo de ligação o Rio das Mortes, portanto,
Marãnã Böbödi – O Caminho pela Mata - deve ser
implantado na bacia do Rio das Mortes e parte da bacia
do Xingu, interligando essas T.I e recuperando assim
parte do território Xavante.
O objetivo maior do projeto é consolidar a
territorialidade Xavante nos cerrados mato-grossenses,
através da revisão das terras indígenas, que embora
demarcadas, não constituem o território Xavante. A
ruptura causada pela fragmentação das terras Xavante
em ‘ilhas isoladas’ gerou graves impactos na cultura, na
perpetuação dos valores tradicionais e até mesmo na
sobrevivência física deste povo. O Marãnã Bödödi é o
caminho da territorialidade Xavante, com fundamento
nos cerrados e nas matas, constituindo um território
contínuo através da ligação das terras indígenas
fragmentadas.
Para desenvolver o projeto, será feita a sistematização
dos conhecimentos Xavante relativos ao Cerrado, a caça,
os rituais e a cosmologia, considerando o território
Xavante como princípio. Os diversos ambientes - Amhu,
Mara, Itehudu, Ape, Tsirãpré , Tsõwahu, Buru’rã,
Tsinõ’rõtõ, Padzaiho’repré, Oto- que compõem o
Cerrado, ao qual os Xavante denominam como Ro,
detêm suas peculiaridades quanto ao tipo de vegetação ,
A
animais , frutos e ervas medicinais, além de ser
distinguido pela sua importância cosmológica e
espiritual. Neste sentido, será realizado um levantamento
detalhado dos conhecimentos Xavante para a criação do
Marãnã Bödödi. Também será realizado um diagnóstico
do entorno das terras indígenas que estejam
contempladas pelo projeto a fim de propor estratégias de
recuperação das áreas degradadas, contemplando um
planejamento específico para regiões críticas, como as
cabeceiras e o pantanal do Rio das Mortes. Os dados
obtidos na elaboração do projeto fundamentarão os
relatórios preliminares de revisão das T.I Xavante que
serão enviados para a FUNAI e que fundamentaram um
demanda de regularização fundiária das áreas
delimitadas.
A identificação do território tradicional Xavante será
realizada por uma equipe de antropólogos, geógrafos e
auxiliares Xavante e abarcará viagens de campo, coleta de
depoimentos, visitas aos locais considerados relevantes e
sistematização de dados através de relatórios que
considere os seguintes aspectos: habitação permanente,
atividades produtivas e de subsistência, recursos
ambientais, reprodução física e cultural segundo usos,
costumes e tradições.
O Marãnã Bödödi é um projeto concebido pela
Associação Xavante Warã e será coordenado em parceria
com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), entidade
com 30 anos de existência e com várias ações em prol da
regularização fundiária de dezenas de terras indígenas no
Brasil. A coordenação do projeto será da Associação
Warã e do CTI. O projeto também conta com o apoio da
Organização “Cultural Survival”. A Fundação Nacional
do Índio - FUNAI, como ente oficial responsável pelo
processo de identificação, é um parceiro necessário.
Cultural Survival Quarterly
Crianças Xavantes da aldeia
Idzô´uhu segurando os
alimentos oriundos da roça.
Foto: Daniela Lima
inverno 2010
11
Salvem o Cerrado
Cipassé Xavante é líder da comunidade Wederã localizada
na T.I. Pimentel Barbosa no Mato Grosso. Essa T.I Xavante
está localizada no município de Canarana. A aldeia de
Cipassé, Wederã, conta com uma população de 70 pessoas.
Cipassé Xavante e seu pai
Urãwẽ diante da placa de
inauguração da nova escola
na aldeia Wederã, T.I.
Pimentel Barbosa. Foto:
Laura R. Graham.
12
www.cs.org
Cerrado é visto nos dias de hoje como uma
região para desenvolver a agroindústria e a
pecuária. Com este fim, tem sido desmatado
intensamente. Não só a criação de gado ou a produção de
soja são as causadoras dessa devastação, mas também a
plantação de cana-de-açúcar para a produção de
biocombustível, atualmente incentivada no meio político
brasileiro. O Mato Grosso é considerado um estado com
grande potencial para o desenvolvimento da indústria do
biocombustível.
Nos anos 80, a soja foi introduzida na região em nome
do “progresso” e acabou devastando o Cerrado e as terras
indígenas, incluindo áreas do território de Pimentel
Barbosa. Agora o cultivo da cana-de-açúcar também é
incentivado com a mesma justificativa de promover o
“progresso” para a região, mas igualmente destrói a
vegetação para abrir espaço para as lavouras.
O governo está promovendo o biocombústivel através
de uma grande campanha na qual difunde a idéia de que
é um combustível alternativo ao petróleo. As pessoas
pensam que é uma alternativa “verde”. Quem realmente
O
vai sofrer com isso é o Cerrado que está sendo mais uma
vez ameaçado de extinção. Nós também, os povos
indígenas, estamos sendo ameaçados. Além disso, os
fazendeiros nos pressionarão ainda mais tentando
arrendar nossas terras para as lavouras. Eles tentarão nos
convencer de que a cana é uma boa alternativa, mas nós
iremos discutir e nos preparar para evitar ceder aos seus
interesses. Os fazendeiros pensam que as pessoas que
plantam soja vão querer plantar cana-de-açúcar porque é
mais lucrativa e representa “progresso”. Três companhias
paulistas já estão instalando suas usinas na região, em
Xavantina, em Água Boa e outra próxima a Cascalheira,
perto de Vila Rica. O governo federal e pequenos e
grandes empresários estão incentivando e financiando
essas instalações.
Apesar dos problemas que traz a agroindústria que
nos rodeia, continuamos como caçadores e coletores de
frutas e vegetais do Cerrado. Tem sido assim por mais de
60 anos, desde que os Xavante tiveram o primeiro
contato com os brancos. Não houve muita mudança,
somente a diminuição do nosso espaço, do nosso
território que hoje não passa de 300 mil hectares numa
região cheia de relevo. Nós integrantes da comunidade
Wederã não somente continuamos a caçar e coletar, mas
também persistimos na realização de nossas cerimônias e
nossas festas, repassando assim o conhecimento dos
nossos ancestrais para as gerações mais novas e
garantindo a continuação do nosso povo guerreiro e
caçador.
Mesmo que o espaço seja pequeno, ainda resta um
pouco da fauna e da flora. O cerrado ainda está intacto
em nossa área, mas o futuro depende de como nós
usamos esse espaço. Quando vemos a terra em volta do
nosso território, vemos tudo destruído. Os rios estão
arruinados. Em volta dos córregos, só se vê
desmatamento. Isso está começando a acontecer dentro
da reserva, mas estamos tentando promover o manejo de
nossos recursos para que possamos contar com eles por
mais de 50 ou mesmo mais de 100 anos.
Como a população de Pimentel Barbosa está
crescendo, é difícil encontrar caça suficiente para as
nossas necessidades de carne. Para isso, há cinco anos
reativamos um projeto de manejo de caça que havia sido
elaborado há uns 20 anos. O objetivo é realizar um
diagnóstico sobre a disponibilidade de caça na região.
Estamos nos concentrando agora na “Queixada” porque
essa espécie vive em grupo e se reproduz muito
facilmente. Além disso, é uma carne muito apreciada
pelos Xavante, já que a usamos muito em nossas
cerimônias, festas e casamentos.
Estamos sendo apoiados em nosso projeto por
pesquisadores e biólogos, que acompanham nossos
caçadores para verificar se além das Queixadas, há outras
espécies para a caça como, por exemplo, a anta, o catitu e
o cervo. Além de verificar se ainda são muitos, queremos
também ver se esses animais têm alimento suficiente e
habitat adequado para se reproduzirem. As queixadas,
por exemplo, viajam muito. Elas se movem em busca de
comida mais farta. Se nossa terra não possui alimento
suficiente para elas, elas vão embora. Estamos
preocupados com isso e por isso estamos
conscientizando nosso pessoal. Conversamos com todos
na nossa praça central, warã, sobre a necessidade de
pensar nesse projeto em longo prazo, ou seja, com
resultados para 10, 15 ou 20 anos.
Já estamos vendo os resultados. A caça é mais
abundante agora e já observamos muitos grupos de
Queixada. Devemos garantir a continuação dessa caça.
Estamos preocupados agora com o uso das queimadas
como estratégia. Caçadores devem controlar o uso do
fogo porque quando queimamos muito afetamos o
Cerrado. Então, as árvores que alimentam os animais,
como pequi, jatobá, baru e macaúba, não dão frutos.
Estamos resolvendo isso porque queremos que os
animais fiquem aqui na nossa terra. Necessitamos plantar
em áreas específicas para alimentar esses animais;
verificar quais frutas existem na região; onde os animais
estão ficando durante a estação de chuva que começa em
abril e maio e que é a época de reprodução deles e por
fim, onde vão durante a estação seca, quando começam a
se deslocar para outras áreas. As queixadas começam a
deixar o seu habitat na floresta em torno dos rios e ir para
espaços mais abertos. Estamos observando esses
movimentos.
O Cerrado não é somente um lugar de onde tiramos
o nosso alimento. É também a fonte da nossa força
espiritual. É onde ensinamos as novas gerações como se
tornarem grandes guerreiros, grandes caçadores.
Conduzimos nossos jovens, os pré-iniciados wapté, e os
grupos iniciados ritai’wa, em expedições de caça
juntamente com seus padrinhos para marcar sua
passagem de uma fase de vida para outra. Nós fazemos
expedições de caça em família e também entre homens.
Nossa relação com o Cerrado é muito profunda.
Nossos vínculos físicos e espirituais são muito fortes.
Muitas das nossas cerimônias são realizadas nas suas
matas. Lá, nós preparamos os wapté para a cerimônia de
furar as orelhas que os transformará em adultos, e só
então caçaremos juntos.
As pessoas vêem o Cerrado como um espaço para a
agroindústria. Nós queremos que elas entendam que o
Cerrado possui outros valores. É muito valioso por
exemplo, pela rica biodiversidade de seus recursos
naturais. Em geral, quando pensam em biodiversidade
não se lembram do Cerrado, só da Amazônia, e
esquecem que a maioria dos rios nasce na nossa região e
só depois se dirige para o Norte. O Cerrado é a fonte de
água para muitos rios brasileiros, e não só, para o mundo.
Vivemos em um tempo de crise climática e a
responsabilidade é de todo o mundo. A mudança
climática está acontecendo não só aqui, mas na África,
na Ásia, em todos os países, portanto, não é um fato
isolado. Temos de estar conscientes desse problema e
podemos começar a nos preocupar pelo desmatamento
que está acontecendo aqui no Brasil. O governo não
tem a consciência devida disso, mas é o que está
acontecendo, sobretudo no Cerrado. O processo de
desmatamento está acelerado e cada vez mais grave.
Temos de pressionar o governo, porque do jeito como
as coisas vão, os recursos naturais e mesmo as pessoas
vão desaparecer.
Nós temos muito carinho por essas terras e nos
comprometemos com a sua sobrevivência, mesmo
porque poucas pessoas conhecem o cerrado como nós. A
gente tem uma relação muito especial com o Cerrado que
é muito querido por nós. No entanto, todas as pessoas são
responsáveis por cuidar dele. O mundo sempre existiu.
Seres humanos foram criados, mas o mundo- a água, o
céu e a terra- sempre existiram. É a humanidade que
desaparecerá se não tomarmos cuidado.
Essa é a minha mensagem. Esse é o motivo pelo
qual convidamos a todos a apoiar nossa luta, a luta do
povo do Cerrado.
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010
13
Porque devemos proteger o
Cerrado - Hiparidi Top ´Tiro
Hiparidi Top´Tiro é líder Xavante do
Estado do Mato Grosso. Por meio da
Associação Xavante Warã, vem
lutando desde 1998 contra o avanço do
agronegócio, especialmente ligado ao
cultivo de soja, no interior e no entorno
das terras indígenas do Cerrado. Em
novembro de 2006 assumiu a
coordenação da MOPIC – Mobilização
dos Povos Indígenas do Cerrado
Hiparidi Top¹tiro participa de
uma reunião de homens
Xavante para discutir
sobre como proteger os rios
da região da poluição
causada pela intervenção
massiva e desregulamentada
do agronegócio. Foto: Laura
R. Graham
14
www.cs.org
inha aldeia, Abelhinha – Idzö’u in Xavante está localizada na Terra Indígena
Sangradouro no leste mato-grossense,
próxima à Primavera do Leste, cidade considerada
como uma das maiores produtoras de soja do Brasil.
Grandes multinacionais como Bunge, Cargill e ADM e
a Amaggi estão instaladas na região. Essas empresas
estão destruindo todo o Cerrado. Além disso, quando
os seus aviões passam fumigando as plantações acabam
deixando cair agro-tóxicos sobre as nossas terras,
envenenando nossos rios, nossa gente e nossas crianças.
Nossas terras estão completamente rodeadas pelas
plantações. Meu tio foi morto em 2003, lutando para
recuperar parte de nosso território ainda ocupado por
fazendeiros produtores de soja. Há uma guerra aqui.
Outro grande problema é o desmatamento que
causados pelos fazendeiros redor de nossas terras.
Nossas áreas são tão pequenas que limitam nosso acesso
aos recursos naturais que necessitamos para viver. Não
há mais animais para a caça, aves cujas penas usamos
para fazer os enfeites para os nossos rituais, matéria
prima para construir nossas casas, palhas de indaiá e
buriti para fazer nossos cestos, ervas medicinais, frutos
dos cerrados, raízes como a batata, o cará. Tudo está
desaparecendo! Assim, a nossa alimentação ficou
restrita aos alimentos comprados na cidade já que a
terra não é suficiente para o roçado.
A Funasa calcula que atualmente nossa população é
de 15 mil pessoas. O meu povo está todo fragmentado
M
em nove terras indígenas que são: Sangradouro, São
Marcos, Areões, Pimentel Barbosa, Parabubure,
Ubawawe, Marechal Rondon e Marãiwatsede, todas elas
localizadas no Mato Grosso. Antes, cerca de 60 anos
atrás, havia um único território contínuo localizado em
torno do Rio das Mortes e a concentração de alguns
Xavante em um território localizado em uma parte da
bacia do Xingu, próximo ao Rio Culuene.
O território Xavante era grande e vivíamos uma vida
de semi-nômade, como os waradzu (não indígenas)
chamam; isto é, vivíamos fazendo o zömori, longas
expedições de caça e coleta que duravam vários meses.
Toda comunidade caminhava unida pelo Cerrado
caçando animais que naquela época eram muitos; ao
contrário de hoje, quando eles estão desaparecendo por
causa dos waradzu. Nós não queríamos o contato com
os waradzu , então por isso fomos migrando do Estado
de Goiás para o que hoje os brancos chamam de Mato
Grosso, atravessando os rios Araguaia, Cristalino e
depois o Rio das Mortes, onde nos estabelecemos e
conseguimos ficar longe dos waradzu até na década de
1930.
Nessa época os brancos fizeram varias tentativas de
contato com meu povo, mas nós resistimos e
guerreamos por muito tempo. Nós matamos padres,
uma equipe do Serviço de Proteção ao Índio e
colonizadores que invadiram o nosso território. Em
alguns momentos distintos tivemos diferentes formas
de contato. Uma vez foi em 1946, quando por meio do
apoio de Francisco Meireles do Serviço de Proteção aos
Índios, minha família subiu o Rio das Mortes, chegando
à missão dos Salesianos em 1956. Outro grupo chegou
mais tarde, em 1957. Fizemos contacto com os padres
porque estávamos sendo massacrados e muitos de nós
estávamos doentes com epidemias típicas dos waradzu.
O Cerrado é onde caçamos, onde conseguimos
nossos alimentos, onde estão os espíritos e a aldeia dos
mortos e onde fazemos os nossos rituais. O mundo
Xavante é o Ró ( Cerrado). O Ró é formado por varias
partes que nós denominamos de marã, itehudo, amhu,
apê e de outros nomes, que formam um grande
conjunto. Conforme nós jovens vamos realizando
determinados rituais, adquirimos maior conhecimento
o lucro e o capitalismo. Para eles, nem o Cerrado, os
animais, o povo, as crianças e a cultura das próximas
gerações importam. Eu acredito que é possível pensar
em outra forma de geração de renda para as
comunidades.
Quando nossa família mudou da Missão Salesiana
em Sangradouro e fundou a aldeia da Abelhinha em
1998, nós constituímos a Associação Xavante Warã. Eu
fui o presidente até 2007, quando meu sobrinho
Tseredzaro assumiu o cargo. Os primeiros projetos da
Associação foram pequenos e enfocados na
sustentabilidade. Por exemplo, nós aprendemos a criar
abelhas e a colher o mel para venda. Nós também
realizamos um projeto que catalogou as frutas e a flora
Tseredzaro Ruri´õ pinta o
garoto do clã Xavante
Poredza´õno para o ritual
Oi´ó. Foto: Daniela Lima
de Ró, que será maior ainda na medida em que vamos
envelhecendo, já que os mais velhos têm maior domínio
das coisas, do conhecimento. Assim, para que o nosso
conhecimento continue, o Cerrado não pode
desaparecer. Como vamos ser bons caçadores se não
tivermos os animais do Cerrado para caçar? Como
seremos bons curandeiros se não tivermos as ervas do
Cerrado para curar? Como seremos bons guerreiros se
os espíritos do Ró não tiverem mais onde ficar? Nossas
cerimônias de casamento, nossos rituais de furações das
orelhas para transformar nossos jovens em adultos,
tudo isso vem do Ró, do Cerrado.
O Agronegócio de soja já está invadindo nossa terra
porque alguns parentes têm a ilusão de que plantar soja
é bom pois pode trazer muito dinheiro e melhoria de
vida para a comunidade. Eles se submetem aos
fazendeiros e não percebem que estão sendo enganados
por eles e pelo governo do Estado, que só têm em mente
do Cerrado. Esse projeto se fundamentou
principalmente no conhecimento das mulheres.
Nós também realizamos eventos na cidade para
atrair a atenção para a destruição do meio-ambiente que
ameaça o nosso modo de vida causada pelo
agronegócio, especialmente a soja. Em 2006,
realizamos um protesto em Nova Xavantina, por meio
do bloqueio de uma ponte sobre o Rio das Mortes,
impedindo assim o trânsito de caminhões que carregam
os produtos agrícolas para as grandes cidades. O
cineasta Xavante Caimi Waiassé fez um filme sobre o
protesto : “Os Donos da Água.”
Quando eu era presidente da Associação Xavante
Warã, em 2005, convidamos nossos parentes Krahó
para se juntarem a nós em um evento em São Paulo.
Nós nos demos conta que devíamos nos unir para
proteger o futuro do Cerrado. Essa idéia que nos
motivou a criar a MOPIC (ver pág 21)
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010 15
A Convenção n° 169 da OIT
sobre Povos Indígenas e Tribais
Mulheres Xavante do T.I.
Parabubure transportando
cachos de bananas através
do Rio. Foto: Laura R.
Graham
A
Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais
em Países Independentes da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) foi aprovada
em 1989, durante sua 76ª Conferência. Trata-se de um
instrumento internacional primordial no tratamento dos
direitos dos povos indígenas. A Convenção vem sendo
fonte para a implementação dos direitos dos povos
indígenas em seus mais diversos âmbitos: político,
econômico, territorial, social e cultural, em muitos países
da América Latina. No Brasil, após mais de dez anos de
debate, a Convenção foi finalmente ratificada em 2002,
por meio do Decreto Legislativo nº 143, em vigor desde
2003. Sua implementação integral ainda enfrenta muitos
desafios e obstáculos impostos por aqueles que a vêem
como uma ameaça à integridade nacional.
Selecionamos a seguir alguns artigos da convenção
que são fundamentais na nossa luta pela proteção da
sobrevivência dos indígenas que habitam o meioambiente do Cerrado.
Artigo 2°
1.Os governos deverão assumir a responsabilidade de
desenvolver, com a participação dos povos interessados,
uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger
os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua
integridade.
2.Essa ação deverá incluir medidas:
a) que assegurem aos membros desses povos o gozo,
16
www.cs.org
em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades
que a legislação nacional outorga aos demais membros
da população;
b) que promovam a plena efetividade dos direitos
sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando
a sua identidade social e cultural, os seus costumes e
tradições, e as suas instituições;
c) que ajudem os membros dos povos interessados a
eliminar as diferenças sócio - econômicas que possam
existir entre os membros indígenas e os demais membros
da comunidade nacional, de maneira compatível com
suas aspirações e formas de vida.
Artigo 4°
1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que
sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as
instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos
povos interessados.
2. Tais medidas especiais não deverão ser contrárias
aos desejos expressos livremente pelos povos
interessados.
Artigo 7º
I. Os povos interessados deverão ter o direito de
escolher suas próprias prioridades no que diz respeito
ao processo de desenvolvimento, na medida em que
ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bemestar espiritual, bem como as terras que ocupam ou
utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida
do possível, o seu próprio desenvolvimento
econômico, social e cultural. Além disso, esses povos
deverão participar da formulação, aplicação e
avaliação
dos
planos
e
programas
de
desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de
afetá-Ios diretamente.
2. A melhoria das condições de vida e de trabalho
e do nível de saúde e educação dos povos
interessados, com a sua participação e cooperação,
deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento
econômico global das regiões onde eles moram. Os
projetos especiais de desenvolvimento para essas
regiões também deverão ser elaborados de forma a
promoverem essa melhoria.
3. Os governos deverão zelar para que, sempre que
for possível, sejam efetuados estudos junto aos povos
interessados com o objetivo de se avaliar a incidência
social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente
que as atividades de desenvolvimento, previstas,
possam ter sobre esses povos. Os resultados desses
estudos deverão ser considerados como critérios
fundamentais para a execução das atividades
mencionadas.
4. Os governos deverão adotar medidas em
cooperação com os povos interessados para proteger
e preservar o meio ambiente dos territórios que eles
habitam.
TERRAS
Artigo 13˚
1. Ao aplicarem as disposições desta parte da
Convenção, os governos deverão respeitar a
importância especial que para as culturas e valores
espirituais dos povos interessados possui a sua
relação com as terras ou territórios, ou com ambos,
segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de
alguma maneira e, particularmente, os aspectos
coletivos dessa relação.
Artigo 14˚
1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os
direitos de propriedade e de posse sobre as terras que
tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos
apropriados, deverão ser adotadas medidas para
salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar
terras que não estejam exclusivamente ocupadas por
eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso
para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse
particular, deverá ser dada especial atenção à situação
dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.
2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam
necessárias para determinar as terras que os povos
interessados ocupam tradicionalmente e garantir a
proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.
3. Deverão ser instituídos procedimentos
adequados no âmbito do sistema jurídico nacional
para solucionar as reivindicações de terras formuladas
pelos povos interessados.
Artigo 15˚
1. Os direitos dos povos interessados aos recursos
naturais existentes nas suas terras deverão ser
especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o
direito desses povos a participarem da utilização,
administração e conservação dos recursos mencionados.
2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos
minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos
sobre outros recursos, existentes nas terras, os governos
deverão estabelecer ou manter procedimentos com
vistas a consultar os povos interessados, a fim de se
determinar se os interesses desses povos seriam
prejudicados, e em que medida, antes de se empreender
ou autorizar qualquer programa de prospecção ou
exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os
povos interessados deverão participar sempre que for
possível dos benefícios que essas atividades produzam, e
receber indenização equitativa por qualquer dano que
possam sofrer como resultado dessas atividades.
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010
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Os Parinai’a ainda vivem no ‘ró
Uma música sonhada, como é descrita por Hiparidi Top’tiro
Dzahadu te mo
Dzahadu te mo
‘rópoto mono mono wa hã dzahadu te mo
‘rópoto mono mono wa hã dzahadu te mo
Dzahadu te mo
Dzahadu te mo
Os Parinai’a ainda vivem no ‘Ró
Eles ainda vivem no ‘Ró
Os que criaram o ‘Ró
Os que criaram o ‘Ró
Eles ainda vivem no ‘Ró
Eles ainda vivem no ‘Ró
Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra
Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra
Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra
Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra
Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra
Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra
Nós celebramos para agradá-los
Nós celebramos para agradá-los
Nós celebramos para agradá-los
Nós celebramos para agradá-los
Nós celebramos para agradá-los
Nós celebramos para agradá-los
Dzahadu te mo
Dzahadu te mo
‘rópoto mono mono wa hã dzahadu te mo
‘rópoto mono mono wa hã dzahadu te mo
Dzahadu te mo
Dzahadu te mo
Eles ainda vivem no ‘Ró
Eles ainda vivem no ‘Ró
Os que criaram o ‘Ró
Os que criaram o ‘Ró
Eles ainda vivem no’ Ró
Eles ainda vivem no’ Ró
Essa música conta que os Paranai’a não partiram para
viver na aldeia dos Mortos, eles continuam nos
olhando e nos protegendo. Realizamos muitas
cerimônias para agradá-los e outros seres que vivem no
Cerrado, nosso Ró.
Parinai’a são duas figuras que vivem desde o inicio do
mundo. Eles apareceram e cantaram no sonho de
Adão’s Sa’ãmri. Os Parainai’a fizeram surgir muitas
coisas no Mundo dos Xavante ao transformarem-se
prazerosamente nas plantas e animais do Cerrado. Eles
fizeram surgir os alimentos do Cerrado que nós
comemos: raízes mo’õni, a’õ (jatobá), abari(piqui), a’ódó
(macaúba), e muitos outros.
Nota do Editor: Essa música é baseada no sonho de um
Xavante chamado Adão’s Sa’ãmri, narrado a Hiparidi
Top’tiro em uma tarde em que eles trocavam idéias sobre
os projetos da comunidade. A tradução não é literal, mas
relata o conteúdo do sonho de Adão. Um áudio registro
dessa música pode ser encontrado no site da Cultural
Survival, www.cs.org. Letra transcrita por Laura R.
Graham e traduzida por Hiparidi Top’tiro e Laura R.
Graham. Música transcrita por T.M. Scruggs.
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www.cs.org
O nosso Cerrado
depoimento Paulo Supretaprã, líder
da comunidade Eténhiritipa localizada
na T.i. Pimentel Barbosa.
cerrado é muito importante para nós. Ele é
fonte de tudo para nós. O cerrado nos dá a
energia, o alimento e os remédios que
necessitamos. No cerrado, nós caçamos, celebramos
nossos rituais, nossos casamentos e nossas festas. Há
muitos animais no Cerrado, caça que usamos para fazer
nossos casamentos e nossas festas, isso é muito
importante também. No Cerrado, colhemos nossas
frutas, raízes e as batatas que nos alimentam. Ali tem
muitas frutas para gente colher, tanto no verão quanto
no inverno, pois dá no ano todo. Também tem uma área
de plantação onde as mulheres colhem as raízes e
plantas medicinais. O cerrado é a nossa vida. Em nossa
comunidade o Cerrado ainda está vivo e em saúde, mas
infelizmente, ao nosso redor, ele está sendo destruído
pelas plantações de soja e pela pecuária.
Em torno da nossa reserva há uma grande fazenda
de agropecuária e outra de plantação de soja. Os
fazendeiros estão desmatando toda a região,
derrubando as árvores para abrir espaço para o pasto e
para as plantações. Outras terras já estão sendo
preparadas para o plantio de cana-de-açúcar, como nos
municípios de Canarana e Água Boa. Já há um plano de
construção de uma usina de álcool na região para a
produção de biodiesel. Assim estão quebrando o
Cerrado. Além disso, para o escoamento da produção,
estão levando adiante o projeto de construção de uma
hidrovia. Isso destruirá nosso rio, nossas terras e nosso
modo de vida. Em outras áreas, em Areões e São
Marcos estão planejando hidrelétricas. São muitas
mudanças que estão ocorrendo no Cerrado. As pessoas
pensam que porque temos nossas terras, o que acontece
ao nosso redor não nos afeta. Tudo bem se nosso
território ainda está intacto, mas o rio está aí, na nossa
divisa, e sendo contaminado pela destruição ao nosso
redor. Isso afeta a nossa terra que é a nossa vida.
Nós temos de ser firmes, nós estamos nos
preparando para enfrentar esses problemas. Nós temos
de mostrar ao mundo que essa é a nossa terra, nosso
mundo. Sabemos que muita gente está do nosso lado.
Temos de procurar aliados para a nossa luta, pessoas
que gostem de natureza, dessa água gostosa, que se
preocupem com a sobrevivência de todos. O mais
importante é que nós, Xavante, temos de nos entender
bem, dar as mãos porque agora estamos no meio do
mundo dos brancos. E nós não somos diferentes, somos
da mesma família, portanto, temos de unir para poder
brigar, defender nossos direitos, nosso anciãos,
O
mulheres, crianças. Temos de nos unir e trabalhar
juntos. Nós teremos de trabalhar muito para obter o
apoio de que necessitamos.
Nós enfrentamos muitos problemas. A saúde, por
exemplo, é muito ruim nas aldeias. Não temos meio de
transporte para levar os doentes para o hospital. Não
temos remédios, enfermeiras, nenhum apoio para a
assistência dos doentes. Muito dos recursos que
deveriam ser encaminhados pela Funasa foram
desviados. Estamos muito preocupados com a questão
da saúde. Do cerrado tiramos muitos medicamentos.
Em nossa comunidade, por exemplo, não temos tido
muitos casos de diarréia e outras doenças mais simples
porque tratamos com as ervas do Cerrado. Nós temos
de voltar a viver como antigamente, e assim estamos
fazendo. Como resultado, nossas crianças estão mais
sadias.
É nosso rio, no entanto, que sofre a grande ameaça.
O agrotóxico está descendo para água. Temos sorte de
que a nascente do riozinho perto da aldeia está na nossa
terra, mas durante a estação de chuva, quando chove
muito e o rio transborda, as águas vão lavando os
agrotóxicos das plantações, contaminando todo o rio e
a água que bebemos. Além disso, quando os aviões
passam fumigando plantações, acabam jogando
agrotóxicos sobre a nossa terra. Já não sabemos mais
com que reclamar. Tentamos reclamar com o governo
ou com o IBAMA, mas nem todo mundo quer nos
defender. Eu escrevi em português tanto para a FUNAI
quanto para o IBAMA para reclamar da hidrovia que
estão construindo, mas eles não responderam.
Está tudo destruído, há muito desmatamento. Nunca
somos consultados pelo governo antes que alguma
medida seja tomada. Nosso rio é contaminado, nossa
terra é desmatada, e nunca somos avisados, ouvidos ou
consultados. Este mundo não pode ser acabado. Aonde
vamos beber água, pescar? Não é só a pesca não. Os
brancos pescam muito também, pescam muito pintado
para ganhar algum dinheiro, então, todo mundo tem de
entender que a questão do Cerrado não é só nossa. Nós
só estamos defendendo o nosso território.
Cultural Survival Quarterly
Paulo Supretaprã Foto: Laura
R. Graham
inverno 2010
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O que a MOPIC pode fazer por nós
Testemunhos de líderes de povos indígenas do Cerrado
Tabata Kuikuru – Kuikuro do Parque Indígena do
Xingu - Mato Grosso
á mais de 100 anos atrás, os brancos contactaram
nosso povo. Quando eu nasci já havia relação dos
brancos com os índios no Alto Xingu. Orlando Villas
Boas foi quem salvou o Xingu. Ele foi quem nos ensinou o
português e quem nos ajudou a todos do Alto, Médio e Baixo
Xingu. Nossa população era pequena e estávamos todos
morrendo de sarampo, mas agora está crescendo muito, pois já
se vê em três aldeias quase mil pessoas.
Há muitas coisas que nós retiramos do Cerrado, como as
nossas matérias primas e os nossos remédios. Esse colar que
estou usando, por exemplo, é feito de caramujos do cerrado. Da
região também tiramos as frutas, como o pequi, que servem para
a nossa alimentação. Infelizmente agora estamos tendo muitos
problemas com as plantações de soja, porque os pesticidas que
usam, principalmente na época de chuva, escorrem para os rios.
No ano passado, morreram muitos peixes. Esse é um grande
problema com o qual nos confrontamos. Tem soja demais,
estamos cercados por plantações, e por causa delas, de estradas
para todos os lados. Além disso, estão construindo muitas
barragens nas redondezas. Paranatinga II é uma dessas barragens
que já estão em funcionamento. Não vai sobrar nenhuma área
verde do Xingu.
Eu penso que o que está acontecendo ao nosso redor é um
problema de todas as aldeias. É necessária a união de todos os
povos. Por esse motivo é que a MOPIC tem de existir para nos
fortalecer. Nós temos que avançar na nossa luta para proteger
nossas aldeias, nosso rio e nossa floresta.
Elcio Terena – Terena da aldeia Cachoeirinha, município
Miranda, Mato Grosso do Sul
O contato do povo Terena com o homem branco é muito
antigo, tem origem no século XVII. No final do século XIX,
tivemos uma maior relação com o governo que, apoiando os
novos colonizadores, juntava os indígenas para trabalharem nas
fazendas instaladas em suas terras. Esses anos são conhecidos
por nós Terenas como anos de escravidão. Logo depois o SPI foi
criado propondo um projeto de integração dos indígenas à
sociedade branca. Até hoje os Terenas não contam com o apoio
de uma política definida para os interesses da sua comunidade.
O objetivo sempre foi nos retirar das aldeias convertendo-nos
em trabalhadores escravos.
Nossa terra está localizada no Cerrado. O Cerrado é a fonte
de vida para a comunidade indígena. É muito importante para
nós e por isso estamos tão preocupados com a devastação que se
observa atualmente. Sua biodiversidade é grande e dela tiramos
nossa alimentação: animais de caça, peixes, frutas e mel. Todas
as matérias-primas que necessitamos se encontram no Cerrado.
Ao redor da nossa comunidade só vemos fazendas, criação
de gado, pastos, só devastação dos campos. Eles abatem todas
as árvores, mesmo as frutíferas como os coqueiros. Usam
muitos venenos para matar as palmeiras contaminando todas
as águas ao redor, ou promovem queimadas destruindo mais
ainda o Cerrado.
Nós somente conseguiremos melhorar a vida da nossa
H
Tabata Kuikúru Foto: Daniela
Lima
20
www.cs.org
comunidade através de um projeto econômico alternativo. O
governo necessita criar uma política voltada para o
desenvolvimento econômico das nossas comunidades, nos
apoiando com projetos educacionais que nos ajudem na
elaboração de um projeto econômico alternativo. São várias as
possibilidades, como por exemplo, a produção de artesanatos ou
projetos ambientais como o manejo de frutas do cerrado.
Necessitamos conscientizar a comunidade da importância
desses projetos, porque só mendigamos o tempo todo e o
governo não faz nada, só nos envia cestas básicas que não
alimentam ninguém. Toda ajuda é temporária, e em geral
clientelista, pois só chega em época de eleição atrás de votos.
A participação na MOPIC é importante porque é uma
entidade voltada para a defesa dos nossos direitos e da
continuidade do Cerrado. O Mato Grosso do Sul está se
tornando uma terra de agronegócio afetando diretamente a
sobrevivência das comunidades indígenas. Estão destruindo o
Cerrado. Precisamos apoiar a MOPIC para nos fortalecer.
Tereza Cristina Kezonazokero – Pareci – Aldeia Rio
Verde, Tangara da Serra – Mato Grosso
O contacto do nosso grupo com os brancos se intensificou
com a chegada do então Coronel Rondon no início dos anos
1900. A expedição chegou com muitos presentes, mas
trouxeram também muitas doenças. Nos anos 30, muitos
Parecís morreram por causa do sarampo. Antes, não sabíamos
como viver com os não-indígenas e fomos muito prejudicados
pelo contato, afetando a nossa cultura e a nossa organização
social. Não há como fugir do contato porque estamos cercados,
por isso é preciso aprender a se defender para manter a nossa
vida tradicional ao mesmo tempo em que interagimos com os
não indígenas. Daniel Kabixi hoje nos ajuda na nossa luta.
Para os Parecís, o Cerrado é a vida do seu povo, mas há
entre nós algumas pessoas que estão destruindo o
pensamento dos povos tradicionais e se deixando levar por
novas idéias, influenciadas e manipuladas pelos não
indígenas. Elas esquecem que sem o Cerrado não temos
como sobreviver.
No entorno da Terra Parecí tem muita plantação de soja e
criação de gado. O maior problema que enfrentamos na aldeia
da qual faço parte é com a água. A nascente do nosso rio está
em terras de fazendeiros e, portanto, essa água chega para nós
já contaminada pelos agrotóxicos que eles usam. Além disso,
nossa Terra tem diminuído de tamanho cada vez mais.
Antigamente, nossa relação com os não indígenas que estão
ao nosso redor era boa, mas agora, não podemos mais confiar.
A vida do Pareci só vai melhorar se nós conseguirmos
juntar todo o nosso povo que se encontra dividido em nove
sub-grupos. Há muita discórdia e isso nos prejudica.
Precisamos nos unir para lutar por um modo de vida com
dignidade. Como liderança e professora indígena Pareci, fico
muito preocupada, mas agora, com a MOPIC, sei que posso
continuar lutando pelos nossos direitos porque percebi que
apesar de povos diferentes, nossa luta é uma só. A MOPIC é
uma organização muito importante e através dela poderemos
alcançar os nossos objetivos.
A
Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado –
MOPIC - é um movimento político constituído a
partir da Corrida de Toras de Buriti, que tem
como objetivo chamar a atenção da opinião pública e dos
governantes para os problemas decorrentes do
desmatamento no Cerrado brasileiro, fruto das atividades
predatórias causadas sobretudo pelo avanço do
agronegócio e pela construção de barragens que afetam
diretamente os territórios indígenas.
Criada com a finalidade de promover uma articulação
política para garantia dos direitos dos Povos Indígenas do
Cerrado, a MOPIC tem como objetivos específicos:
promover o diálogo com as bases por meio das
associações locais e lideranças das aldeias; recolher as
demandas das comunidades para pressionar e cobrar
ações do Governo; intermediar o diálogo entre as bases e
os órgãos governamentais, organismos internacionais e
ONGs; cobrar e incentivar ações de auto-sustentabilidade;
exigir a segurança territorial das terras indígenas do
Cerrado e finalmente, apoiar e promover a valorização
cultural dos Povos Indígenas do Cerrado.
Para entendermos a situação atual na qual se encontra o
Cerrado brasileiro assim como as populações indígenas ali
residentes, é necessário remeter-nos à história de ocupação
do bioma, que com o incentivo do governo e atuação de
alguns setores da sociedade, é caracterizada pela
intensificação da concentração fundiária e pela destruição
do modo de vida das populações locais, dependentes
diretas dos recursos naturais advindos do Cerrado.
Desde os anos 80, o Cerrado tem sido objeto de
programas governamentais, tais como Polocentro e
Prodecer (Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para
o Desenvolvimento dos Cerrados), programas que
tinham como objetivo a ocupação do bioma por meio de
incentivos financeiros, isenção fiscal e baixo custo da
terra, promovendo uma migração massiva de agricultores
sulistas para a região central do Brasil. A Embrapa Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária desempenhou função vital neste processo de
transformação do Cerrado em “celeiro agrícola”, com a
introdução de tecnologias para correção do solo e para a
produção de grãos em grande escala, especialmente a
monocultura de soja.
É no Cerrado onde há maior predominância do
agronegócio e onde se encontram as transnacionais
Bunge, Cargill e ADM, detentoras do monopólio de
alimentos no mundo, e a nacional Amaggi, de
propriedade do Blairo Maggi, atual governador do estado.
Essas empresas dominam o mercado produtor de soja e
lideram uma cadeia produtiva que envolve grande parte
dos produtores da região. As atividades produtivas
desenvolvidas e monopolizadas pelas transnacionais
acima referidas são em grande parte dirigidas para a
exportação, para a qual contam com a colaboração,
parceria e incentivo dos governos municipais, estaduais e
federal.
É importante ressaltar, no entanto, que essa prática
produtiva tem causado fortes impactos sociais, culturais e
ambientais às Terras Indígenas do Cerrado. As
Cultural Survival Quarterly
Hiparidi Top’Tiro
cumprimenta homens Krahó
vencedores da corrida
esportiva realizada no
Encontro de líderes
indígenas em São Paulo, em
2004. Foto: Sylvia Caiuby
Novaes.
inverno 2010
21
Desenho retratando o
Cerrado, o ‘Ró, como um
espaço físico e espiritual
integrado onde os Xavantes
vivem, caçam e colhem os
frutos que eles necessitam.
Autor: Öwa’u, ano 1999.
Imagem: Associação
Xavante Warã.
22
www.cs.org
monoculturas de grãos e os inúmeros armazéns das
empresas produtoras de soja estão localizados nas
proximidades de diversos territórios indígenas do
Cerrado, e por não cumprirem as legislações ambientais
brasileiras, causam graves impactos ambientais, sócioculturais e à saúde dos povos indígenas. Problemas como
desnutrição, desidratação, anemia, diarréia ocasionados
pela contaminação resultante do uso excessivo de
agroquímicos são agora comuns nas aldeias. Ainda como
conseqüência dessa forma predatória de produzir,
observam-se fenômenos de erosão e contaminação dos
solos, desaparecimento de rios, extinção de animais de
caça e plantas medicinais, o que compromete fortemente
o modo de vida e a sobrevivência física e cultural das
populações indígenas.
A política desenvolvimentista de ocupação do
Cerrado iniciada nos anos 80 e ratificada pelo atual
governo com ferocidade e desrespeito ante as populações
indígenas é reforçada pelo anúncio do PAC - Programa de
Aceleração de Crescimento-, programa cujos benefícios
estão voltados exclusivamente para o setor agrícola e
hidroelétrico e cujos empreendimentos suscitarão danos
diretos e indiretos às terras indígenas.
Fazer alusão a existência de povos indígenas no
Cerrado ainda soa com estranheza à grande parte da
população brasileira e setores governamentais, cujo
imaginário irreal está pautado no estereotipado “índio
amazônico”; reforçando assim o preconceito e o
desconhecimento sobre eles. Inúmeros territórios
indígenas do Cerrado ainda não estão devidamente
regularizados pelo órgão indigenista responsável, e muitas
áreas estão com seus processos de demarcação
paralisados na Fundação Nacional do Índio - FUNAI, o
que compromete a qualidade ambiental desses territórios,
gera insegurança para as comunidades indígenas e
conflitos com políticos, empresários e o próprio governo.
As terras indígenas que se encontram demarcadas e
homologadas também sofrem constantes ameaças,
pressões e invasões por parte dos fazendeiros, madeireiros
e grandes produtores agropecuários localizados no
entorno dos territórios, interferindo nas relações sociais
dentro das comunidades causando conflitos e divisão
interna.
Neste sentido, destacamos a situação dos povos
indígenas que vivem no Mato Grosso do Sul, (Guarani
Kaiowa, Nãndeva, Kinikinawa, Terena, Kadiwéu) os mais
oprimidos e desrespeitados por parte dos órgãos
governamentais municipais, estaduais e federais. Notícias
de morte de crianças Guarani e Kaiowa por desnutrição,
assassinatos, encarceramento de lideranças, trabalho
escravo e suicídio de jovens são constantes nos meios de
comunicação alternativos. O aumento expressivo da
construção de usinas de cana de açúcar em decorrência da
produção de biocombustível (foram licenciadas
recentemente a construção de 70 usinas) tende a
intensificar o processo de marginalização dos povos
indígenas nesse estado.
Enfatizamos também a situação dos Caxixó
localizados no município de Martinho Campos e Pompéu
(MG) que embora tenham o reconhecimento oficial do
órgão indigenista, não dispõem de uma terra demarcada.
Cerca de 250 indígenas, vivem atualmente em uma
pequena área de menos de mil hectares, rodeados por
plantações de eucaliptos, e acuados e pressionados por
um violento preconceito dos fazendeiros locais. Dado o
processo histórico de colonização e ocupação da região,
este povo teve aspectos culturais de suma relevância como
a língua, danças e rituais fortemente comprometidos.
O povo Xacriabá enfrenta também situação
semelhante. Cerca de 50 mil indígenas habitam em um
território de 8 mil hectares, localizado no norte do Estado
de Minas Gerais, a 663 km de Belo Horizonte.
Confrontam grandes dificuldades por causa da
insuficiência de terra para plantio e subsistência e escassez
de água para consumo. A área onde estão situados está
fortemente devastada e parcialmente afetada pela
construção de uma barragem. Deve-se mencionar
ademais que em luta pela retomada de suas terras, três
importantes lideranças do povo Xacriabá foram
assassinadas por políticos e fazendeiros locais entre 2007
e 2008, crimes estes que se encontram impunes até o
presente.
A Ilha do Bananal, maior ilha fluvial do mundo e
território dos povos Karajá, Tapirapé, Javaé e Avá
Canoeiro, tem extensa área ocupada por cerca de 600
grandes fazendeiros, cujo processo para desintrusão
tramita no Tribunal Regional do Trabalho – TRT - desde
setembro de 2004. A desocupação da ilha teve inicio em
1995, contudo alguns grandes fazendeiros permaneceram
no local apesar de terem recebido a devida indenização. A
desocupação também deixou na ilha 155 mil cabeças de
gado, pouco menos dos 175 mil que havia no período
precedente à desintrusão. Outra grave ameaça à
sobrevivência física e cultural dos povos indígenas da Ilha
do Bananal é a construção da hidrovia TocantinsAraguaia, cujo projeto de iniciativa do governo federal
envolve os cursos d´água do Rio das Mortes, Araguaia e
Tocantins e ocupa áreas de cerrado e da floresta
amazônica, afetando direta e indiretamente vinte e nove
áreas indígenas. O Rio Araguaia é de suma proeminência
na historia, cultura, mitologia e política dos povos da Ilha
do Bananal. Além disso, é uma fonte de alimentação
imprescindível para as aldeias que tem na pesca de peixes
e tartarugas sua principal fonte de proteína.
O governo de Mato Grosso, um dos estados
brasileiros com maior presença indígena no país (cerca
de 40 povos vivendo em áreas de Cerrado e transição),
adota uma política desenvolvimentista em consonância
com o governo federal, ancorada unicamente na
produção de grãos como basal atividade econômica,
gerando prejuízos sociais e ambientais sem precedentes
para as populações indígenas. O governo está
inteiramente fechado para o diálogo com os indígenas
no que se refere às questões fundiárias e ambientais,
desviando este tópico de maior relevância com táticas
que se caracterizam por ações assistencialistas, tais como
construção de casas populares e escolas, distribuição de
cestas básicas e cobertores, etc.
Além disso, se observam os impactos nocivos da
construção de hidrelétricas na região do estado,
verdadeiras ameaças para muitos grupos indígenas. A
edificação de barragens nas proximidades das terras
indígenas é prejudicial ao modo de vida nativo,
principalmente pela redução drástica que provoca no
estoque pesqueiro, afetando assim o abastecimento
alimentar da população. Parte desses empreendimentos
é de propriedade particular do grupo empresarial do
qual o governador Blairo Maggi é integrante. Existem
inúmeras hidrelétricas em construção no Mato Grosso,
dentre as quais merecem destaque as 12 PCHs
(Pequenas Centrais Hidrelétricas) em andamento na
bacia do Juruena (além das outras 60 previstas para
serem construídas) que afetam diretamente os povos
Enawene Nawe, Paresi, Rikbatsa, Nambiquara e Myky. O
processo de construção dessas barragens desrespeita o
direito dos povos indígenas de serem previamente
consultados, tal como previsto na Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho. Neste sentido,
os povos indígenas do Cerrado demandam a paralisação
imediata das obras hidrelétricas localizadas não somente
na bacia hidrográfica da Juruena, mas também da Teles
Pires, do Rio das Mortes, do Tocantins (Rio Sono) e dos
formadores do Xingu (Rio Von Steinen, Batovi, Culuene,
Curizevo, Ronuro, Jatobá, Arraia, Manito, Sete de
Setembro e Suya Missu). Demandamos também a
suspensão da transposição do Rio São Francisco.
Os povos indígenas do Cerrado sofrem fortes
preconceitos por parte de diversos setores da sociedade
brasileira, bem como por órgãos governamentais, dado
o desconhecimento com relação à riqueza e
importância sócio cultural e ambiental do Cerrado. A
inexistência de dados sobre estes povos e a falta de
visibilidade do Cerrado a nível nacional e internacional
fortalece o único e irreal estereótipo do “índio
amazônico”, para o qual, em geral, se dirigem os
programas governamentais. A MOPIC tem lutado para
conseguir maior atenção e apoio político e financeiro
por parte dos segmentos governamentais. Com esse
objetivo, tem buscado sensibilizar organizações
internacionais para que auxiliem com pesquisas e
investimentos que gerem dados concretos sobre o
número de etnias existente no bioma, situações
fundiárias e ambientais, aspectos culturais e outras
informações
relevantes,
que
contribuirão
significativamente para o aprimoramento das ações e
luta dos povos indígenas do Cerrado.
Pará Miri é uma criança
Guarani de 10 anos. Muitos
Guaranis foram deslocados
de seus territórios e vivem
em muitas partes do
Cerrado. Foto: Gregory
Smith (Children at Risk
Foundation,
www.carfweb.net)
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010
23
Terra Indígena Raposa do Sol
O que acontece quando o
Supremo Tribunal e a
Constituição discordam? é o
que estão descobrindo os
povos indígenas ao constatar
que correm o risco de perder o
controle sobre suas terras ….
Ana Paula Caldeira Souto Maior
pesar da Terra Indígena Raposa do Sol não estar
localizada no Cerrado, a decisão judicial que
confirmou sua homologação afeta diretamente
todos os processos de reconhecimento territorial
impetrados pelos diferentes grupos indígenas. Isso porque,
extrapolando o âmbito de análise do caso específico, a
decisão judicial impôs, de maneira geral, restrições ao
direito dos indígenas à posse permanente de suas terras e
ao usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas
existentes. A análise do caso “Raposa do Sol” é, portanto,
de suma relevância para nós que estamos comprometidos
com a defesa dos direitos indígenas já reconhecidos
constitucionalmente.
O julgamento do Supremo Tribunal Federal que
homologou a terra indígena “Raposa do Sol” de maneira
contínua e ordenou a desocupação dos não indígenas da
região marca, sem dúvida, um grande avanço no
reconhecimento e na defesa dos direitos territoriais dos
indígenas brasileiros. Foram mais de 30 anos de luta dos
indígenas ingaricós, macuxis, patamonas, taurapangues e
wapixanas contra a ocupação de suas terras por
fazendeiros e exploradores dos recursos naturais da região.
Não obstante, a responsabilidade atribuída ao Supremo
Tribunal Federal de decisão sobre um processo de
homologação de terra indígena deixa as lideranças
indígenas extremamente preocupadas.
O reconhecimento da Homologação da “Raposa do
Sol” de maneira contínua foi condicionado à aceitação de
19 condições, 18 delas propostas pelo Ministro Carlos
Alberto Menezes Direito, falecido recentemente. Essas
condições são válidas não somente para o processo
discutido mas deverão ser aplicadas nas decisões futuras
concernentes a novas homologações. Pode-se afirmar que
A
Menina da aldeia Idzô´uhu.
Foto: Daniela Lima
24
www.cs.org
tais condições representam um retrocesso em relação ao
estabelecido na Constituição Brasileira de 1988, em
matéria indígena.
A expectativa anunciada pelo Presidente do STF de que
o julgamento da demarcação deste caso estabeleceria uma
nova forma de demarcar as terras indígenas sucumbiu ao
constatar que a demarcação resultou de um procedimento
administrativo sólido, construído ao longo de mais de
trinta anos, alicerçado na obstinação dos seus habitantes
naturais e em mudanças que permitiram o contraditório a
todos os interessados.
Em 1977, a FUNAI enviou um grupo de antropólogos
para realizar a demarcação das terras indígenas –T.I.- em
Roraima, habitadas por milhares de Macuxi, Wapichana,
Yanomami, Yecuana, Ingarikó, Wai-Wai, Taurepang e
Patamona. Roraima é o Estado brasileiro com maior
presença de populações indígenas -16% de sua população
total- e de maior área física ocupada por elas– 46% do
território do Estado.
Ao longo dos últimos anos, o Grupo de antropólogos
da FUNAI precisou se multiplicar para dar conta de
identificar e demarcar 32 terras indígenas. Destaca-se a T.I.
Yanomami, de 9,5 milhões hectares, entre o Estado de
Roraima e Amazonas, demarcada em 1992. No caso
específico da Raposa/Serra do Sol, os Macuxis, quarta
maior população indígena do país, recorreram à sua forte
obstinação para ter a terra que ocupam protegida. Com
este fim, participaram ativamente do processo
administrativo iniciado pela FUNAI, apresentando
documentos consensuais produzidos nas assembléias
indígenas, relatos e denúncias de maltratos e violações à
integridade física, aos bens materiais, ambientais e à vida
do seu povo e dos demais habitantes da terra indígena.
Em 1993, os Macuxis fizeram parte do grupo de
trabalho de identificação da FUNAI. Já em 1996, quando
foi expedido o novo decreto que ao regulamentar a forma
de demarcar introduziu o direito do contraditório
(Decreto 1775/96); a participação dos indígenas foi
fundamental pois ofereceram os subsídios necessários para
que a FUNAI pudesse desqualificar dezenas de
contestações apresentadas por uma mineradora e por
advogados contratados pela Assembleia Legislativa do
Estado de Roraima para representar fazendeiros, um
município e o próprio Estado.
Declarada como de ocupação indígena em Portaria de
1998 do Ministro da Justiça, a T.I Raposa/Serra do Sol foi
homologada apenas em 2005, em ato que criou uma dupla
afetação em relação ao Parque Nacional do Monte
Roraima, criado em 1989. A terra é indígena, mas o uso da
unidade de conservação deve ser decidido em conjunto
pelo órgão ambiental, o órgão indigenista e a comunidade
indígena.
Em abril de 2008, ao suspender a operação da Polícia
Federal de retirada da zona dos ocupantes não-índios –ato
reconhecido pelo STF como consequência natural da
demarcação- e decidir revisar o procedimento
administrativo da demarcação, o STF tomou para si a
análise de um dos casos melhor documentado pela FUNAI
e com grande participação indígena no seu
desenvolvimento. Além disso, o processo de demarcação
foi acompanhado de forte articulação nacional e
internacional e por grande repercussão na mídia
(http://www.socioambiental.org/inst/esp/raposa/).
A decisão quase unânime, dez votos favoráveis contra
um, de que o processo de demarcação não foi maculado
por vício administrativo e de que a demarcação não atenta
contra o patrimônio do Estado trouxe para todas as
demarcações realizadas após a Constituição Federal de
1988 e que seguiram os critérios nela estabelecidos, uma
sólida jurisprudência:
• o procedimento administrativo de demarcação é
correto;
• a demarcação contínua é constitucional;
• é possível demarcar terras indígenas em faixa de
fronteira, sem que isso comprometa a integridade
física do país, ou a defesa de sua soberania pelas forças
armadas ;
• a demarcação de uma terra indígena não compromete
o desenvolvimento econômico do Estado em que se
encontra, mesmo que a soma delas ocupe uma parte
significativa de seu território;
• a demarcação de uma terra indígena não compromete
a existência do Estado federado, mesmo que a soma
das terras indígenas, que são bens da União, ocupe
uma parte significativa do seu território;
A vitória, no entanto, foi marcada pela inovação da
técnica jurídica de apresentar condições à decisão,
impondo aos índios restrições ao uso da terra e de seus
recursos naturais. Algumas condições contrariam
disposições infra-constitucionais, constitucionais e
internacionais as quais o Brasil se obrigou. Assim, em
processo subjetivo que faz coisa julgada em relação às
partes do processo e em relação à causa do pedido, o STF
extrapolou a decisão sobre a demarcação, para criar 19
condições aplicáveis à Reposa/Serra do Sol e as demais
terras indígenas do país. Observe-se que, delas, apenas uma
faz observação ao procedimento de demarcação de terra
indígena ao afirmar que os Estados devem participar, o que
já acontece desde 1996. As condições que violam os direitos
indígenas e causam preocupação são:
• Não pode haver ampliação de terra indígena
demarcada. Esta condição contraria dispositivo
constitucional que diz que o direito dos índios a terra
é imprescritível mas que, caso a administração tenha
errado em sua demarcação, é possível legalmente pedir
a reparação deste erro. Existem atualmente cerca de 60
pedidos de revisão de demarcação de terras indígenas
(dados do Instituto Socioambiental;
• As Forças Armadas podem intervir em território
indígena sem consulta às comunidades indígenas e à
FUNAI. O Estatuto do Índio (Art. 20 da Lei 6001/73)
estabelece que em caráter excepcional e por imposição
da segurança nacional, poderá a União intervir, se não
houver solução alternativa, de acordo com condições
estipuladas em decreto, em ato que terá a assistência
direta do órgão federal indigenista. A exclusão de
consulta às comunidades indígenas e à FUNAI além de
afrontar a legislação específica contraria a Convenção
169 da OIT, que estabelece a consulta em caso de
medidas legislativas ou administrativas que afetem às
comunidades;
• Limitações referentes à proibição às comunidades
indígenas de cobrarem tarifas ou quantias de qualquer
natureza em caso de ingresso, trânsito ou permanência
de não-índios, como também em casos de utilização
de estradas, equipamentos públicos, linhas de
transmissão de energia e outros. As comunidades
indígenas podem explorar meios de sobrevivência que
implique em cobrar pela entrada e permanência em
suas terras, como no caso do turismo, e têm direito de
serem indenizadas, como qualquer outro brasileiro,
em casos de danos materiais ou imateriais causados
pela construção de qualquer obra em suas terras. A
condição acima torna os índios desiguais aos demais
brasileiros;
Estas condições, não faziam parte do objeto de pedir, ou
seja, a anulação do procedimento de demarcação, portanto
não foram submetidas ao debate e ao contraditório.
Surgiram de uma inovação na técnica jurídica de trazer
considerações em abstrato sobre vários aspectos de um
determinado assunto, indo neste caso de encontro a
direitos materializados em lei. Apenas a aplicação em casos
concretos poderá dimensionar o real alcance que elas terão.
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010
25
A Funai Sob A Mordaça Do
STF: E Agora ?
O antropólogo Gilberto Azanha, coordenador do
Centro de Trabalho indigenista – CTi*, vê como
extremamente grave as condições impostas pelo STF.
Gilberto Azanha
o cenário mais factível, qualquer terceiro,
ocupante ou não de terra indígena (por
exemplo, o governo estadual), que se sentir
prejudicado pelos estudos de identificação da FUNAI,
em curso e futuros, poderá recorrer diretamente ao
STF, que os submeterá a um relator e, se esse assim
decidir, ao plenário do STF. São esses juízes que,
fazendo às vezes de antropólogos honoris causa,
verificarão os relatórios feitos por antropólogos
nomeados pela FUNAI para realizar os estudos de
identificação e delimitação de determinada Terra
Indígena, como reza a lei infraconstitucional. Ora,
vários atos legais não revogados pelo STF definem o
papel da FUNAI e dos antropólogos no processo de
identificação de uma Terra Indígena (Decreto Federal
1.775; Portaria 14 do Ministro da Justiça, entre outros),
e todos eles são perfeitamente legais, já que o próprio
STF nunca os declarou contrários à Constituição. Logo,
o caráter de intervenção do STF em uma atribuição do
Poder Executivo é flagrante. Resta questionar qual é o
objetivo dessa interferência. Estaria o Tribunal
aderindo aos interesses anti-indígenas que consideram
um “ato arbitrário da FUNAI”, a prerrogativa desse
órgão, estabelecida em lei, de conduzir com
exclusividade (mas não sem deixar de considerar os
interesses de terceiros – o chamado direito ao
contraditório) o processo de identificação das terras
indígenas?
A FUNAI estaria sendo, portanto, limitada por duas
decisões dos juízes, que automaticamente, segundo se
supõe, virarão lei: primeiro, ficaria proibida a
ampliação de terras indígenas já demarcadas; e
segundo, a ocupação indígena somente seria
reconhecida se já tivesse sido comprovada
antropologicamente em todos os seus aspectos antes de
05 de outubro de 1988, data da promulgação da
Constituição Federal. Essa segunda decisão, ainda não
confirmada, é verificada no voto de alguns relatores do
caso Raposa/Serra do Sol e enfatizada pelo pedido de
julgamento de uma Súmula Vinculante encaminhada
N
26
www.cs.org
pela Confederação Nacional de Agricultura ao STF,
com o objetivo de estabelecer jurisprudência.
Quais as conseqüências dessas duas decisões?
O STF chama para si a árdua tarefa de julgar mais de
60 processos de revisão de terras indígenas demarcadas
antes de 05 de outubro de 1988 e em curso na FUNAI.
Tais terras estão sendo revisadas porque seus processos
de identificação/delimitação não obedeceram qualquer
critério antropológico. Esses povos ocupavam
tradicionalmente suas terras, mas como não havia
qualquer procedimento estabelecido, o Serviço de
Proteção ao Índio e depois a FUNAI utilizavam aquele
que mais lhe convinha: liberar as terras indígenas para
a ocupação de terceiros e para o “avanço da civilização”.
Logo, muitas das terras indígenas que foram
demarcadas anteriormente a 1998 constituem frações
insignificantes das terras tradicionais nativas e,
portanto, trata-se de uma obrigação legal a sua revisão
pela FUNAI. Caso a revisão dessas terras não seja feita
se estabeleceriam dois tipos de T.I. no País, eleitas sob
critérios diferentes, contrariando assim a própria
Constituição Federal.
Das terras indígenas em revisão ou em favor de
povos indígenas “ressurgidos” (expressão pejorativa
usada pela mídia brasileira para referir-se aos povos
que reassumiram sua identidade étnica), 99% delas
encontram-se subjudice, ou seja, já são objeto de
contestação judicial por parte de terceiros interessados,
ditos “prejudicados”. A FUNAI, a Advocacia Geral da
União ou o Ministério Público Federal vêm
conseguindo ganhar algumas dessas ações nos
Tribunais Regionais de 2ª Instância. Com a decisão do
STF, todos esses processos (e são centenas!), poderão
parar nas mãos dos seus juízes. Diante do enorme
número de processos de toda ordem julgados pelo STF,
não é difícil imaginar que muitos desses julgamentos
serão protelados indefinidamente, com prejuízo
evidente para os povos indígenas e benefício exclusivo
dos invasores que poderão seguir ocupando-as.
Estabelecer como critério que os povos indígenas,
que foram expulsos e expropriados de suas terras em
tempos passados, não poderiam mais reivindicá-las, já
que não as ocupavam plenamente em 05 de outubro de
1988, salvo comprovado que foram compulsória e
violentamente expulsos como o relator do processo
Serra/Raposa do Sol indicou, constitui uma negação ao
reconhecimento das legítimas reivindicações de
inúmeros grupos que há décadas querem reaver suas
terras originais.
Uma solução apontada pelo Presidente do STF,
Ministro Gilmar Mendes, durante a discussão do
processo da RSS foi a desapropriação pela União dessas
terras caso fosse provada a sua necessidade. No
entanto, caberia ao STF julgar o mérito da questão,
decidindo inclusive quais terras “não seriam mais
indígenas” e que tipo de ocupação de terceiros
descaracterizariam o fato indígena, anulando,
portanto, os direitos originários que os índios tinham
sobre elas. Dezenas de terras indígenas no Nordeste e
na Amazônia se encontram nessas condições,
reivindicadas por povos, que sob pressão dos interesses
regionais e discriminação étnica, tinham ocultado suas
identidades étnicas por décadas mas que agora estão
reclamando os seus direitos.
Os Guarani (Kaiowá e Ñandeva) do estado do Mato
Grosso do Sul, por exemplo, ocupavam até a década de
1920 aproximadamente 1,5 a 2 milhões de hectares
entre os Rios Apa e Dourados. Nesse período, uma
companhia extrativista de erva-mate, a Companhia
Mate–Laranjeira, detinha uma concessão federal para
explorar toda a área ocupada pelos tekoha Guarani (as
unidades territoriais autônomas de famílias extensas
Guarani), empregando mão-de-obra indígena. Entre
1928-1930, a agência federal do Serviço de Proteção ao
Índio (SPI) requereu ao Estado do Mato Grosso oito
lotes de terra, correspondentes a pequenas parcelas de
alguns tekoha, com 2.000 hectares em média cada, para
fixar os Guarani e Kaiowá em Reservas Indígenas.
Entretanto, a partir de 1940, o governo federal
entregou as terras da companhia para o estado, para
que fossem loteadas e colonizadas para a expansão da
fronteira agrícola. As famílias indígenas despejadas de
suas terras (tekoha) foram conduzidas pelo SPI para as
oito Reservas que a instituição controlava e ocupadas
pelas famílias extensas originárias da região. A
transferência gerou muitos conflitos entre os Guarani e
Kaiowá, pois as famílias residentes na área não
aceitaram compartilhar a sua já pequena terra com
“parentes” de outros tekoha. Quando a situação
tornava-se crítica, os líderes dos tekoha despejados pelo
SPI voltavam para suas terras de origem, até serem
novamente expulsos e reconduzidos para as “reservas”.
Estas idas e vindas de famílias Guarani deram início à
diáspora desse povo, fenômeno observado até hoje!
Todas as famílias extensas Guarani que formam os
tekoha em diáspora não ocupavam
suas terras originais em 05 de
outubro de 1988 pelas razões acima
explicitadas. Dessa forma, qual
poderia ser a atitude dos juízes do
STF frente a esse caso emblemático? A
compra dessas terras pela União é
praticamente
inviável.
Seria
necessário, segundo a FUNAI,
aproximadamente 600 mil hectares
para resolver de vez um problema que
se arrasta há mais de sete décadas
(com um número extra-oficial de
mais de um milhar de suicídios
indígenas, 90% deles cometidos por
jovens indígenas), a um custo médio
na região (supervalorizada por conta da cana-deaçúcar e da soja) de US 1.200 o hectare, totalizando US
720 milhões. A União não possui condições para
realizar essa desapropriação.
São situações com as quais os juízes do STF se
confrontarão, uma vez que decidiram interferir no
trabalho executado pela FUNAI. Deverão decidir se,
em casos como o acima relatado, aceitarão a
identificação de terras indígenas proposta pela FUNAI,
e assim o fazendo, contradizendo a jurisprudência que
o Tribunal mesmo se impôs: a data limite da
promulgação da Constituição de 1988. Se o Tribunal
atuar desse modo enfrentará a pressão política de
governadores, da “classe política” local e do
agronegócio. Em suma, os juízes do STF se
confrontarão com problemas que comumente a
FUNAI enfrenta, sem contar com a experiência da
instituição. Resta se perguntar por que o STF decidiu se
ocupar desses assuntos. Teria o Tribunal assessoria para
assumir essa tarefa? Demandará apoio dos quadros de
funcionários da FUNAI? Em suma, nesse país
institucionalmente esquizofrênico, a Suprema Corte
legisla, o Congresso executa e o Executivo fiscaliza a si
próprio. E tudo para calar as legítimas reivindicações
dos povos indígenas, “originais senhores destas terras”
como disse um soberano português no século XVII.
Gilberto Azanha
Homens Kalapalos
confeccionam uma canoa
com tronco de árvore do
Cerrado. Foto: E. Giacomazzi
(Flickr).
* O Centro de Trabalho Indigenista –CTI - é uma
Organização
Não-Governamental
constituída
juridicamente como associação sem fins lucrativos,
fundada em março de 1979 por antropólogos e
indigenistas dedicados ao trabalho com grupos indígenas.
O Centro apresenta como missão contribuir para que os
povos indígenas assumam o controle efetivo de qualquer
intervenção em seus territórios, esclarecendo-lhes sobre o
papel do Estado na proteção e garantia de seus direitos
constitucionais.
(http://www.trabalhoindigenista.org.br/)
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010
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Marãnã Bödödi
Marã é a mata, marãnã é através da mata, e bödödi é caminho...
caminho através das matas... Caminho através das matas do Ró...
Maria Lucia Cereda Gomide
Batika Dzusi´wa preparando
o bolo tradicional Xavante.
Foto: Daniela Lima
28
O
povo Xavante vive atualmente no estado do
Mato Grosso, em oito terras indígenas:
Marechal Rondon, Sangradouro, São Marcos,
Parabubure, Culuene, Areões, Pimentel Barbosa e
Marãiwatsede. Sua população é aproximadamente 15
mil pessoas, distribuídas de forma irregular em
diversas aldeias nas terras citadas.
A fragmentação do território Xavante se deu no
contexto histórico da demarcação das atuais terras
indígenas Xavante institucionalizadas pelo Estado.
Os elementos históricos desse processo interligam a
história dos grupos Xavante como também o processo
de ocupação do Estado do Mato Grosso, este processo
se deu articulado por vários fatores, inclusive o contato
com o mundo waradzu (não indígenas), ou melhor,
com os agentes de contato como a Igreja (missão
salesiana) e o Estado (através do SPI e posteriormente
da Funai).
Esta fragmentação tem conseqüências no modo de
vida indígena, tanto de caráter cosmológico e
espiritual, assim como provoca a ruptura das relações
sociais, pois ocorre um distanciamento entre os
próprios parentes. A demarcação em ilhas provocou
um distanciamento entre os próprios Xavante.
A dificuldade de comunicação entre os diversos
grupos Xavante ocorre inclusive pela falta de
continuidade da própria cobertura vegetal do cerrado
que segundo a cosmologia indígena favorece a
comunicação feita pelos espíritos. Entre as terras
Xavante existe uma barreira representada pelas
fazendas (a maioria de monoculturas de grãos ou pela
criação de gado) e pelas cidades do entorno. Nos seus
depoimentos os Xavante explicam como a
fragmentação é insustentável pois é causa de conflito
permanente :
O entorno das terras indígenas é uma pressão, (...)
o fato de que existe uma cidade no meio, seja longe ou
perto, está criando ruptura, destruindo o caminho
que se tem, não só do ponto de vista físico, digo
animais caminhadas no meio do cerrado, não é só
isso tem outras coisas, vamos chamar assim que é o
lado espiritual. Hiparidi ,2008
Aqui em Sangradouro não temos saída porque
não pode passar nas fazendas ... e as vezes ele atira
na estrada matar a ema, ai fazendeiro sai,acontece a
briga...” Tserenhi’õmo, 2008
Os jovens tem sim dificuldade de entender e
conhecer se os outros parentes ainda tem o que tem
aqui, aqui a realidade é igual ou não eles não
conhecem, se tem desequilíbrio cultural eles não
conhecem, eles não tem muita informação então o
que a gente tenta passar isso.” Cipassé, 2006
Nenhum governo faz demarcação direito, quem
pensou para dividir a terra....” Pedro - liderança da
T.I.Areões ,2005
A interrupção dos caminhos impede o fluxo dos
animais dificultando assim a atividade de caça dos
Xavante.
A recuperação territorial e dos cerrados é de
extrema importância para a vida Xavante. Mas como
realizar essa conexão na atual situação de degradação e
desmatamento intenso nas terras matogrossenses?
A proposta como ponto de partida é o marãnã
bododi, estratégia dos caçadores Xavante, conceito que
abrange a sua territorialidade e possibilita que seja feita
a ligação entre as terras. Unindo os diferentes grupos
locais Xavante pelas diversas fitofisionomias que
formam o mosaico dos cerrados. O marãnã bödödi
deve unir as T.I. que foram demarcadas em ilhas e que
hoje sofrem com a ruptura e a fragmentação
territorial.
O marãnã bödödi, é mais complexo do que a noção
de mata ciliar ou beira-rio., Este termo que pode ser
traduzido como o caminho das matas, tem um
significado de interligação pelos cerrados, segundo
uma dimensão da cosmologia Xavante. Nesta
concepção estão incluídas as relações entre os diversos
seres da natureza e da sobrenatureza que habitam os
cerrados Xavante.
São nestas matas que se realiza o mais importante
ritual Xavante, o Wai’a, “ só é feito no local tipo desse ai,
no marã´u. Porque o Wai’á , tem a sua força espiritual ,
não é qualquer ritual.” Hiparidi , 2006
Outra explicação sobre o termo lembra que marãnã
bödödi é um “caminho dos guerreiros”
Maranã Bödodi é quando você esta articulado,
você está praticamente preparado para você conseguir
algo que é de seu interesse. Então os guerreiros é que
usam essa trajetória maranã bödodi. É para não ser
visto e para não ser percebido isto já se trata de uma
estratégia. Agora robnã bödödi, caminho no cerrado
todo mundo pode ver, agora no marã, não é tudo
mundo que consegue andar nesta picada, é só os
guerreiros ou só os teimoso. Isto é bem claro para os
Xavante. Ruriõ, 2008
O Marãnã Bödödi contempla várias dimensões
entre elas a relação Xavante com os cerrados e sua
espiritualidade, a territorialidade nos caminhos do Ró.
Cada grupo Xavante é conhecido por um nome que
representa a fitofisionomia dos cerrados, ou seja, eles
formam uma biogeografia onde a distribuição espacial
dos grupos Xavante é a distribuição das diversas
fisionomias que formam o mosaico dos cerrados;
assim, portanto a união destes grupos representa a
união de seu território e dos cerrados por meio do
Marãnã Bödödi. (Cada um destes termos refere –se a
biogeografia local, desta forma Nõrõtsurã- babaçual,
Ape – campo cerrado, Oihudú – vegetação que fica
dentro do vale do rio (área de transição), Marãiwatsede
– mata (mais alta, fechada, é uma área de transição).
Os depoimentos Xavante enfatizam que o Marãnã
Bödödi representa todo o mosaico dos cerrados, assim
como a distribuição espacial das fitofisionomias, por
outro lado a espiritualidade Xavante faz parte desse
todo que é o Ró e que compreende a vida de outros
seres que dão a força espiritual ao povo Xavante.
Estamos brigando não só pelos Xavante mas pelos
outros seres. É no marã que o Xavante se alimenta da
força espiritual. Os espíritos onde caminham? Animal
sai para comer e volta porque lá é a sua casa.Espíritos
também sai e volta porque tem água e alimentos , se
maranã acaba todos os animais serão extintos.[...]
Os Xavante entendem marana bödödi como fluxo,
comunicação[...]...porque eles não demarcaram nossa
terra e nos dividiram e a gente não tem como fazer o
fluxo de nosso caminho, alem de detonarem nossos
espíritos , tão matando a gente. Os velhos acreditam
que os novos estão se enfraquecendo porque não
caminha mais...” Hiparidi, 2007 (negritos do autor)
“Emendar”, restaurar a continuidade dos territórios
e dos cerrados Xavante é reivindicação antiga
entretanto nunca foi realmente proposta, pois não se
acreditou ter condições jurídicas, e principalmente
políticas, para tal empreendimento que embora difícil
não é impossível. As oito terras indígenas Xavante não
correspondem ao território indígena Xavante. Para que
este território seja respeitado é necessária a terra
contínua, ou seja, “emendar” como sugerem os velhos
Xavante.
Futuramente, conseguindo, tendo o território
mesmo, de verdade, aí teremos mais liberdade de
andar, caçar, buscar as coisas... Tserenhi’õmo, 2008
Cultural Survival Quarterly
inverno 2010
29
O caminho da lei….
uma entrevista com deborah macedo duprat de Britto Pereira
Nota do Editor: Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira é
Procuradora da República, Coordenadora da 6ª Câmara de
Coordenação e Revisão (populações indígenas e minorias
étnicas) da Procuradoria Geral da União. Esse artigo é uma
adaptação de um encontro com a Procuradora em 2008, no
qual participou Laura Graham, Hiparidi Top’Tiro, Ellen
Lutz e Daniela Lima.
ntes de 1988, a política indigenista brasileira tinha
como objetivo a integração dos indígenas à
sociedade nacional. O modelo de concessão de
Terras Indígenas era essencialmente o de confinamento, ou
seja, o Estado cedia pequenas áreas para os indígenas
ocuparem durante o processo de transição para integração
à sociedade nacional.
Depois da Constituição de 1988, no entanto, a
concepção do Estado sobre a ocupação indígena das terras
mudou dramaticamente. A nova Constituição reconhece o
direito dos povos indígenas em permanecer e usufruir de
suas terras tradicionais. Assim, o novo processo de
demarcação de territórios indígenas deve ser realizado
com a participação indígena para melhor definir o limite
de suas ocupações tradicionais. A concepção anterior do
Estado pode ser considerada como hegemônica uma vez
que, adotando uma perspectiva não indígena, determinava
onde seriam as fronteiras que limitariam as terras
indígenas. A partir da Constituição, o Estado entende que
é necessário considerar a perspectiva indígena no processo
de demarcação de suas terras. São os grupos indígenas que
devem determinar as dimensões de seus territórios
baseados na história da ocupação e no uso da terra. Essa é
a grande diferença entre uma sociedade que se pretende
hegemônica e uma pluralística.
De acordo com a nova Constituição, a Procuradoria
Geral da República é responsável pela defesa dos interesses e
dos direitos dos Povos Indígenas. Por esse motivo, a
Procuradoria esteve envolvida na defesa das cinco etnias que
habitam na área da Terra Indígena – T.I. Serra/Raposa do Sol
no processo julgado pelo Supremo Tribunal Federal – STF.
Caso o Supremo Tribunal tivesse dado um parecer favorável
ao governo do Estado onde se situa a T.I, contrário a
demarcação contínua do território, as garantias
constitucionais e federais que reconhecem as áreas indígenas
seriam seriamente abaladas. A Procuradoria apresentou
argumentos em favor dos direitos constitucionais dos
habitantes indígenas e alegou que o sistema judicial não tem
o direito de criar ou anular as demarcações de terras
indígenas. O órgão oficial responsável por essa tarefa é a
Fundação Nacional do Índio - FUNAI.
A FUNAI segue o procedimento prescrito para
determinar e designar terras indígenas. A sua realização
A
30
www.cs.org
exige a constituição de um grupo de estudo integrado por
profissionais qualificados, que analisará o contexto
histórico e atual daquela área, produzirá um relatório
antropológico e fará recomendações sobre a demarcação
de acordo com os direitos territoriais indígenas previstos
pela Constituição. Caso a FUNAI não possa ou não queira
realizar esse trabalho, a Procuradoria poderá solicitar nos
tribunais a obrigatoriedade do cumprimento dessa ação
ou poderá contratar um antropólogo, assumindo ela
mesma a responsabilidade pela produção do estudo sobre
a área. Se a FUNAI recusar o relatório produzido pela
Procuradoria, poderá ser constrangida a aceitá-lo por
meio judicial ou a própria Justiça poderá estabelecer as
fronteiras da Terra Indígena em conformidade com o
relatório apresentado.
A FUNAI se ocupa atualmente do processo de revisão
de muitas áreas que foram demarcadas antes da nova
Constituição. Há muitos casos em que os indígenas estão
demandando o direito de alargar as suas terras atuais, as
quais não corresponderiam às áreas tradicionalmente
ocupadas por eles, uma vez que foram designadas com
base na concepção prévia de sistema de confinamento. O
exemplo mais demonstrativo é o caso apresentado por
indígenas Guaranis do Mato Grosso do Sul. Os Guaranis se
encontram confinados em pequenas áreas que
representam uma fração do seu território tradicional e por
isso estão demandando a sua revisão. Há também um
processo público para a revisão de áreas guaranis no sul do
País. A situação no Sul e no Sudeste é muito mais
complicada porque são regiões densamente ocupadas por
não indígenas, que aí se estabeleceram há mais tempo,
edificando muitas cidades. O programa de colonização do
Mato Grosso foi iniciado realmente nos anos 80.
Para poder reclamar como terra legítima, os grupos
indígenas devem provar que ocupam e usam formalmente
a área em questão. As demandas devem estar baseadas em
qualquer tipo de ocupação, ou seja, o uso da área para caça
ou para trânsito representa elemento suficiente para
constituir uma demanda legítima.
Novamente, uma vez preparada a demanda pelo
grupo, há muitos caminhos para tê-la legitimada pelo
Estado. O mais direto é via FUNAI, que seguirá o processo
já descrito anteriormente. Caso a FUNAI não faça o
trabalho por alguma razão, a Procuradoria poderá realizar
o estudo e encaminhá-lo para a FUNAI ou diretamente a
Justiça para que seja determinada a demarcação. A lei
também requer que sejam realizadas reuniões com as
partes opostas a demarcação indígena, o chamado
contraditório. O processo, no entanto, deve ser sempre
iniciado pela requisição à FUNAI.
Nada disso é simples e fácil.
Legislação indígena
Constituição de 1988
Constituição Brasileira de 1988 trouxe
inovações no tratamento da questão indígena.
Já no início da Constituição, no artigo 20, se
estabelece que as terras tradicionalmente ocupadas
pelos indígenas são integrantes dos bens da União. A
grande inovação está na forma em que é definida a terra
tradicionalmente ocupada pelos indígenas, não
considerada somente pela sua ocupação física mas pela
sua ocupação tradicional, ou seja, terras que são
necessárias para a sobrevivência física da comunidade,
assim como para a preservação de suas tradições
culturais. A Constituição de 1988 abandonou a idéia de
integração paulatina dos indígenas à sociedade nacional
e preconizou o respeito às particularidades culturais
indígenas, garantindo aos indígenas o direito de
defender sua diversidade cultural. Assim, o índio não é
mais visto como um ser em transição para a integração
na cultura e sociedade nacional, mas ao contrário, como
portador de uma identidade e cultura própria
diferenciada.
Os vários artigos em matéria indígena, como o 22,
49, 109, 129 e 215, em conjunto determinam a
responsabilidade do Estado brasileiro em legislar sobre
as populações indígenas, respeitando sempre suas
especificidades culturais. São esses artigos que vão
incumbir ao Estado ocupar-se da defesa jurídica dos
interesses indígenas, de autorizar a exploração de suas
terras e de lhes assegurar o direito ao ensino bilíngüe
(art. 215).
Os artigos 231 e 232 vão se ocupar de maneira direta
ao reconhecimento dos direitos indígenas, tais como o
reconhecimento da identidade cultural própria e
diferenciada e dos seus direitos originários sobre a terra
que ocupam, terras essas que devem ser demarcadas e
protegidas pela União. São artigos de extrema
importância para a garantia dos direitos indígenas, nem
sempre respeitados pelas autoridades que se ocupam da
defesa desses povos.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e
A
as necessárias a sua reprodução física e cultural,
segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios destinam-se a sua posse permanente,
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos,
incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a
lavra das riquezas minerais em terras indígenas só
podem ser efetivados com autorização do
Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos
resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre
elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de
suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso
Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que
ponha em risco sua população, ou no interesse da
soberania do País, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o
retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos
jurídicos, os atos que tenham por objeto a
Cultural Survival Quarterly
Tuira Kaiapo se dirige aos
representantes da FUNAI
como parte do protesto
contra o projeto de
construção da usina
hidrelétrica Belo Monte.
Foto: Eraldo Peres
inverno 2010
31
Crianças Xavante na escola
da aldeia Idzô´uhu. Foto:
Daniela Lima
ocupação, o domínio e a posse das terras a que se
refere este artigo, ou a exploração das riquezas
naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes, ressalvado relevante interesse público
da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a
extinção direito a indenização ou a ações contra a
União, salvo, na forma da lei, quanto às
benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto
no art. 174, § 3º e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e
organizações são partes legítimas para ingressar em
juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo
o Ministério Público em todos os atos do processo.
O Novo Estatuto do Índio
Diante da modificação na forma de se considerar os
povos indígenas garantindo-lhes o direito à preservação
de suas especificidades culturais e de suas terras
tradicionais, o Estatuto do Índio, ( LEI Nº 6.001/73)
deve ser substituído. De início, o Art. 1º do antigo
Estatuto afirma que o objetivo é regular a “situação
jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades
indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e
integrá-los, progressiva e harmonicamente, à
comunhão nacional”. O Estatuto fere assim o
estabelecido pela Constituição ao enfatizar na
integração e não no reconhecimento da diversidade
cultural indígena. Preocupado com a integração dos
indígenas, o Estatuto também estabelece uma
classificação dos povos indígenas em isolados, em vias
de integração e integrados, diferenciação que também
deixa de ter sentido com a nova Constituição, uma vez
que essa devolve aos indígenas o direito a manutenção
das suas tradições culturais.
No início dos anos 90 foram propostas três novas
versões do Estatuto, uma da FUNAI, outra do CIMI
(Conselho Indigenista Missionário) e a terceira do NDI
(Núcleo de Direitos Indígenas). As propostas do CIMI e
do NDI fundamentaram um substitutivo de autoria do
Deputado Luciano Pizzato. Desde 1992, foi criada na
Câmara Legislativa uma comissão para avaliar esse
32
www.cs.org
substitutivo, que em junho de 1994 o aprovou
disciplinando assim o “Estatuto das Sociedades
Indígenas”. O projeto ainda aguarda um
pronunciamento final pelo Plenário da Câmara.
A diferença do antigo Estatuto e de acordo com a
Constituição, a proposta do novo Estatuto já estabelece
em seu artigo n˚1 o seu objetivo de regular “a situação
jurídica dos índios, de suas comunidades e de suas
organizações, com o propósito de proteger e fazer
respeitar sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam e todos os seus
bens”. Em seus artigos referentes às políticas de proteção
e assistência aos indígenas, o Estatuto afirma que deverá
ser uma finalidade dessas políticas a garantia às
comunidades indígenas dos meios para sua autosustentação, respeitadas as suas diferenças culturais;
assegurando-lhes também a possibilidade de livre
escolha dos seus modos de vida e subsistência. Além
disso, a proposta afirma que devem ser garantidas às
comunidades indígenas a posse e a permanência nas
suas terras consideradas partes integrantes de seu
patrimônio. Segundo a proposta, os indígenas possuem
o usufruto exclusivo de todas as riquezas naturais do
solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas,
incluídos os acessórios e os acrescidos e o exercício de
caça, pesca, coleta, garimpagem, faiscação e cata.
No que concerne a proteção ambiental, o capítulo V
da proposta afirma, entre outros pontos, que será
responsabilidade da União promover a fiscalização e a
manutenção do equilíbrio ecológico das terras
indígenas e de seu entorno. Para isso prevê que deverá
ser realizado um diagnóstico sócio-ambiental, e se
necessário, a promoção da recuperação das terras que
tenham sofrido processos de degradação dos seus
recursos naturais. Tudo isso sempre em parceria com as
comunidades indígenas.
Assim sendo, a nova proposta do Estatuto busca
promover e garantir todos os direitos culturais,
territoriais, civis e políticos dos indígenas. Em trâmite
na Câmara Legislativa, a proposta já vem sofrendo
várias emendas e não se logra que seja votada
definitivamente. A discussão sobre um novo Estatuto
do Índio é de suma importância para os indígenas,
assim como pode ser a demarcação de suas terras.
Monica Krahô foi uma das participantes na 1ª
assembléia da MOPIC na T.I. Cachoeirinha – MS,
em dezembro de 2007. Foto: Manuel Messina.
Os Xavante, em busca de preservar suas terras, se manifestam constantemente. Um exemplo foi o bloqueio que realizaram de uma estrada e uma
ponte, documentado pelo filme “Os Donos da Água”, cuja informação se encontra nessa revista, página 8. A foto de Jorge Protodi, cineasta que
colaborou com o filme, foi tirada por David Hernández Palmar.
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O caminho da lei…. - Owners of the Water