Ninguém nasce em Poá
Jane Pinto Souza, moradora de Poá, cidade
da região metropolitana de São Paulo, é mãe
de duas filhas: Larissa, de 3 meses, e
Janaina, com 8 anos. Ambas crescem na
cidade, mas nasceram em cidades vizinhas.
Larissa, a mais nova, veio à luz no Hospital
Regional de Ferraz de Vasconcelos, enquanto
Janaina nasceu na Santa Casa de Suzano.
Desde que não existem mais parteiras na
cidade, ninguém mais nasce em Poá, embora
a população da cidade tenha crescido junto
Jane Pinto Souza, mãe de duas filhas, que teve que com a região metropolitana. Como Jane,
realizar seus partos fora de Poá, em frente ao
todas as mães são obrigadas a procurar
hospital municipal da cidade
cidades vizinhas na hora do parto. "Se a
maternidade de Poá estivesse pronta, minhas filhas teriam nascido lá".
O Hospital Municipal Dr. Guido Guida está sendo construído há 15 anos, desde qundo a
prefeitura assumiu a posse de um terreno onde o então Hospital São Marcos construía
um anexo de suas instalações. A administração da época decidiu transferir para o local
um pronto atendimento que já existia na cidade, e complementá- lo com uma
maternidade.
Desde então, a população aguarda a conclusão das obras para utilizar o hospital.
Enquanto isso, procura atendimento em outras cidades. É o caso de Joaquim Bezerra
de Amorim, aposentado, 66 anos. No princípio deste ano, Joaquim sofreu um derrame
cerebral. A família imediatamente procurou o pronto-atendimento no município. Como
este não tinha condições de atendê- lo, o tratamento teve que ser realizado no Hospital
Regional do Itaim Paulista, em São Paulo, administrado pela casa de saúde Santa
Marcelina.
Três meses depois, Joaquim começou a sofrer de sangramento no ouvido. Orientada
pelo médico que o atendeu na primeira vez, a família conduziu novamente o paciente
para o Hospital Municipal, para que o ouvido fosse examinado com um otoscópio, o
equipamento adequado para este tipo de exame. No entanto, o que o médico de
plantão fez foi simplesmente medicar Joaquim sem nenhum diagnóstico. Quando a
família procurou outro hospital, descobriu que o sangramento era resultado de infecção
causada por uma paralisia no ouvido, seqüela do derrame, e o medicamente não teria
efeito.
Assim como Joaquim, boa parte da população
de Poá procura serviços de saúde em outras
cidades. Para Roberto Corci, do Conselho
Municipal de Saúde de Poá, isto acontece
porque a maioria da população não tem a
cidade onde mora como referência para a
saúde. "A maior parte procura atendimento
nas cidades onde trabalha e nas cidades
vizinhas". O secretário de saúde do
município, Marco Aurélio Feitosa, discorda:
"Se fizermos as contas das pessoas de Poá
que procuram atendimento em outros
municípios, e as de outros municípios que
vem à Poá, a balança desequilibra a nosso
favor".
Joaquim, que sofreu derrame cerebral, e sua esposa
Maria
"A atual gestão prometeu instalar em três
meses a maternidade, e até hoje isto não
aconteceu", diz Roberto Corci. Para ele, a conclusão do hospital deveria estar incluída
no plano plurianual do município. O secretário se defende novamente, falando que a
gestão anterior não avançou nas obras, entregando a construção como pegou. O
Ministério da Saúde liberou este mês verbas para a conclusão do hospital em duas
parcelas de R$ 240 mil, que de acordo com o secretário ajudarão a atual prefeitura a
inaugurar a tão esperada maternidade.
Gastos mal explicados
Apesar das obras se encontrarem atrasadas, há gastos mal explicados no processo de
construção. No ano de 1999, descobriu- se que a prefeitura municipal pagou cerca de
300 mil reais por dois elevadores para o hospital, que nunca foram instalados. Nas
atuais instalações sequer existe o fosso dos elevadores na obra.
O caso foi parar no ministério público, e hoje está arquivado sob alegação de falta de
provas, mas levantou a dúvida sobre o uso das verbas destinadas à construção do
hospital. De acordo com o secretário de Saúde, a questão foi uma acusação sem
fundamento usada politicamente contra a prefeitura. "A construtora pediu verba para
os elevadores, mas gastou com outras coisas importantes, por exemplo, com as portas
das enfermarias. Agora eles não podem mais pedir verba para as portas, mas podem
solicitar para os elevadores novamente".
A privatização que leva outro nome
Neste ano, o prefeito encaminhou à Câmara dos
Vereadores projeto de lei que facilita parcerias entre o
Hospital Municipal e a iniciativa privada. Esta lei
revoga uma anterior, de novembro de 2001, que
proibia a privatização do hospital municipal. De acordo
com o vereador Fernando Junior, presidente da
Comissão de Educação, Saúde e Assistência Social da
Câmara Municipal, "a lei continua proibindo a venda
do patrimônio do hospital, mas permite a
terceirização, no modelo do hospital Santa Marcelina
de Itaquaquecetuba".
Marco Aurélio Feitosa, secretário de Saúde, evita usar
termos como terceirização e parceria. Prefere
"concessão de uso", embora admita que o modelo a
ser re plicado é o do hospital Santa Marcelina da
Itaquaquecetuba. Isso significa que qualquer parceria
entre o hospital de Poá e a iniciativa privada seria feita
apenas com organizações sociais sem fins lucrativos,
vereador Fernando Junior, presidente da teria atendimento 100% SUS e a prefeitura não
comissão de educação, saúde e
transferiria nenhum montante adicional de verba para
assistência social da Cãmara municipal
o projeto. Em audiência pública realizada pela Câmara
de Poá
Municipal, o secretário disse não existir ainda
instituição interessada em parceria: "Não existe porque a prefeitura não procurou
ninguém. Por enquanto a lei não permite a parceria".
Onerar o Estado ou criar a dupla porta?
O hospital Santa Marcelina, que está sendo usado de modelo para Poá, atende 100%
SUS, mas recebe remuneração superior aos procedimentos SUS convencionais, de
acordo com contrato pró prio firmado com a Secretaria Estadual de Saúde. Além disso,
tem metas de atendimento firmadas no contrato. Para Vivian Ferreira, diretora
administrativa do hospital, a grande vantagem da concessão à iniciativa privada é a
agilidade na gestão das verbas públicas. "Nossos funcionários são contratados em
regime de CLT, não precisamos realizar concurso público nem licitação, embora
existam regras rígidas para os contratos que
firmamos".
Para o professor Bernard Couttollenc, da
Faculdade de Saúde Pública da USP, transferir
a gestão de um hospital para a iniciativa
privada sem remuneração extra seria
inviável: "Nenhum hospital, público ou
privado, sobrevive apenas com a
remuneração de produção do SUS". Ou se faz
uma parceria cujo atendimento seja todo do
SUS, com uma complementação de verba
feita pelo município, ou se permite que a
instituição atenda convênios particulares para
Hospital Regional de Itaquaquecetuba, administrado
pela Casa de Saúde Santa Marcelina em convênio
com o governo do estado de São Paulo.
complementar o orçamento. "No entanto, isto gera a dupla porta, e não é tão simples
assim de se fazer".
Para o professor José Aristodemo Pinotti, da Faculdade de Medicina da USP e secretário
de saúde do estado de São Paulo entre 1986 e 1990, "uma instituição filantrópica não
tem como atender 100% SUS, porque não tem orçamento do governo como os
hospitais públicos, e porque recebe os procedimentos SUS com 75% a menos que um
hospital universitário".
No caso poaense, o secretário de saúde discorda. De acordo com Marco Aurélio, a
remuneração de produção do SUS para maternidade é superior às dos outros casos. "A
permanência da paciente no hospital é menor, e existem incentivos do ministério da
saúde para as maternidades".
Roberto Corci Ferreira, membro do Conselho
Municipal de Saúde, em frente a unidade de saúde
do PSF.
A principal vantagem vista por todos na
gestão privada é a agilidade para a liberação
das verbas. Mas este tipo de gestão
apresenta outros problemas. O principal é
que todo investimento para construir e
equipar o hospital continua sendo público.
Assim foi no hospital Santa Marcelina de
Itaquaquecetuba, e assim seria em Poá. "Se é
a prefeitura que vai ter que gastar todo o
dinheiro para construir e equipar o hospital,
então porque entregá- lo de mão beijada para
a iniciativa privada?", questiona Roberto
Corci.
Cada vez mais as chances do convênio ser firmado tornam- se remotas. Quando o
projeto de lei que autoriza a concessão foi à votação na Câmara Municipal, a população
local organizou uma manifestação. O projeto recebeu emendas e foi tirado da pauta
para ser mais discutido. Uma audiência pública já aconteceu depois deste fato, e
provavelmente outra seja convocada até o final do ano, antes que o projeto retorne à
votação.
O vereador Junior, que analisa o projeto, pretende incluir na letra da lei as promessas
feitas pelo secretário Marco Aurélio de que, em um eventual convênio, o atendimento
SUS será total e o município não transferirá receita para a instituição. "Quando ele
fala, a coisa fica bonita, mas na realidade ninguém sabe como vai ser".
A população local afirma que não existe demora no atendimento. Em visita à
instituição foi possível perceber que esta impressão é verdadeira. No entanto, alguns
fatos chegam a impressionar Por um lado, a instituição conta com um considerável
corpo de seguranças para evitar o acesso de muita gente às alas internas do hospital.
Por outro lado, no último dia 30 de julho, mais da metade da fila era obrigada a ficar
do lado de fora do prédio, em um frio de 15°C, sob alegação de que as cadeiras do hall
da recepção estavam lotadas.
Perguntada sobre as razões de submeter
parte dos pacientes ao frio do dia, Vivian
Ferreira, diretora administrativa do hospital,
alegou que os pacientes chegam muito tempo
antes do horário em que a consulta é
marcada. "É cultural, as pessoas estão
habituadas à fila no SUS, e acabam chegando
mais cedo do que deveriam. Quem está na
hora da sua consulta tem prioridade para
ocupar as cadeiras da recepção". E ainda
complementa: "Esse é o tipo de coisa que
não gostamos de fazer quando abrimos um
hospital".
Obras do hospital municipal de Poá
Saúde pública e privada no Brasil
A década de 90 foi marcada pela expansão do setor privado nos chamados serviços
públicos, como previdência e educação. Na saúde, a situação tem sido a mesma. De
acordo com a Organização Panamericana de Saúde, vinculada à ONU, o custo público
de saúde no Brasil corresponde a apenas 40% (dados de 1998), enquanto que no
Canadá o custo público é de 74%, na Costa Rica é de 75%, e mesmo nos Estados
Unidos chega-se a 45% dos gastos nacionais com saúde. Dados da ABRAHUE
(Associação Brasileira de Hospitais Universitários e Escolares) apontam que os
convênios privados, por sua vez, representam 50% do orçamento dos hospitais- escola
do país.
Como compreender este custo privado de saúde brasileiro? "É importante ressaltar que
o custo privado de saúde inclui também custos como medicamentos, ou seja, mesmo
que a maioria da população dependa do serviço ambulatorial do SUS, ela arca com
parte importante do tratamento ao ir até a farmácia", afirma o professor Bernard
François Couttollenc, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
Além deste, os gastos com dentista correspondem a outra grande parcela deste custo
privado da saúde.
Placa da construtora do hospital
os convênios", afirma o prof. Bernard.
Os convênios, no entanto, tem a sua
importância neste custo: a cobertura dos
planos de saúde chega a 45 milhões de
pessoas, o equivalente a 26% da população
total do país, com condições de pagar as
taxas dos convênios existentes. No restante
da população estão a imensa maioria da
população, atendida pelo SUS, e os que
pagam as consultas particulares do próprio
bolso. "Dizer que os 60% de custo estão
distribuídos para apenas 26% da população é
falho, e confunde custo privado de saúde com
Mas se é errado confundir custo privado com os planos de saúde, também é errado
confundir custo público com hospitais públicos. O cadastro do SUS registra um total de
3.466 hospitais privados conveniados ao sistema no país, contra 2.091 hospitais
públicos e 147 hospitais universitários. Esta é uma realidade que se aprofunda na
região Sudeste, onde o SUS aponta a existência de 1.178 hospitais privados
conveniados ao sistema e apenas 398 hospitais públicos. No resto do país, onde a
renda da população é menor, o número de hospitais públicos torna- se superior ao de
privados conveniados ao SUS.
A alta quantidade de hospitais privados conveniados ao SUS não significa redução dos
gastos públicos de saúde. "A remuneração das organizações sociais privadas pelo SUS
é superior à das instituições públicas", afirma o professor Bernard Couttolenc. Para
além da produção ambulatorial, a instituição recebe, de acordo com o contrato, uma
complementação de verba do município ou do estado, que pode garantir um
atendimento 100% SUS ou em conjunto com convênios privados, de acordo com o
contrato.
O Estado de São Paulo tem presenciado
diversas parcerias com a iniciativa privada
para a gestão de instituições públicas de
saúde. A mais desastrada foi a experiência
paulistana do PAS, encerrada pela prefeita
Marta Suplicy depois de diversos escândalos
de corrupção e da queda na qualidade do
atendimento.
Em 1998, o governador Mário Covas fechou
um acordo com a Casa de Saúde Santa
Sala de esterilização do Hospital Municipal de Poá
Marcelina - instituição filantrópica privada em obras.
através do qual a gestão do hospital estadual
do Itaim Paulista seria terceirizada para a instituição. Em 2000, acordo semelhante
terceirizou a gestão do hospital estadual da cidade de Itaquaquecetuba, na região do
alto Tietê.
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Alternativas para a saúde pública
É importante salientar que, para além do custo público e privado da saúde, existe um
custo social, pago sob a forma de impostos e por cada indivíduo na compra de serviços
ou de medicamentos. A medicina curativa tende a ficar cada vez mais cara, devido ao
surgimento de novas tecnologias, mais sofisticadas. O custo do uso desta tecnologia
acaba sendo repassado à sociedade, quando ela é obrigada a pagar caro pelo
atendimento.
Sandra Papaiz, diretora geral da Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo, em entrevista à revista da Adusp (Associação dos Docentes da USP) de
dezembro de 2001, declarou que na Inglaterra o sistema de saúde já não atende quem
tem mais de 65 anos. "Eles escolhem, mediante regras, quem vão atender, porque não
há recursos para atender a todo mundo".
Em um país como o Brasil, no entanto, o
investimento em medicina preventiva é
apontado como uma saída para a redução
deste custo social, com elevação da qualidade
de vida. O professor Bernard Couttllenc
discorda, no entanto, com esta concepção.
"Se em uma determinada região não existe
demanda por atendimento médico, porque as
pessoas não estão acostumadas a isso, um
programa de medicina preventiva aumenta o
custo, ao invés de reduzi- lo".
Hospital Municipal de Poá
Alternativa?
Programa de Saúde da Família:
O governo federal vem implantando, desde 1994, o Programa de Saúde da Família. Em
1998, ele já atingia 24 estados e 1219, com 3119 equipes, de acordo com estudo feito
pelo ministério da saúde em 2000. O objetivo do projeto é o acompanhamento
sistemático da saúde em uma determinada população, com visitas regulares e
orientação às famílias cadastradas através de agentes comunitários de saúde.
O modelo do programa em Poá prevê que a sociedade amigos de bairro se
responsabilize pela contratação dos agentes comunitários de saúde, e a prefeitura
apenas cuida do repasse das verbas para a associação e da gestão municipal do
programa. Para Marco Aurélio Feitosa, este formato garante a transparência do
orçamento público da saúde, e faz com que a comunidade se sinta parte da secretaria.
Desde sua implantaç ão o sistema atingiu quatro dos dez postos de saúde do município.
Para Roberto Corci, a velocidade de implantação é rápida. "Você tem que levar em
consideração que em Poá o sistema existe e funciona", diz Roberto. O secretário
salienta que todos os municíp ios do alto Tietê estão usando programa poaense como
modelo. "Recentemente, na conferência municipal de saúde de Mogi das Cruzes, foram
convidados a secretaria estadual de saúde e a cidade de Poá, para apresentar o seu
modelo de programa de saúde da família".
De acordo com Marco Aurélio, o programa em
Poá atende 12 mil pessoas e este ano este
número chegará em 16 mil. No entanto, o
banco de dados do SUS aponta um
atendimento de 4,8% da população, o que
em números absolutos significa apenas 5 mil
pessoas.
Para o professor Bernard Couttollenc, ainda
não existe uma padronização dos dados do
PSF, e cada município passa os dados para o
Dr. Marco Aurélio Feitosa, dentista, secretário
ministério da saúde de um jeito diferente. O
municipal de saúde de Poá
ministério pretende realizar um estudo mais
detalhado sobre o programa até para uniformizar a informação e compor um quadro
nacional. "Enquanto este estudo não sai, não podemos afirmar nada sobre o
andamento do PSF nos municípios".
Maiores Informações
Muitos dos dados oficiais sobre saúde citados nesta matéria estão à disposição na
internet para o público em geral:
Organização Pan-Americana de Saúde (http://www.opas.org.br/): contém dados sobre
a saúde nos países do continente americano
Banco de Dados do SUS (http://www.datasus.gov.br/): contém dados oficiais sobre a
saúde pública no Brasil, incluindo repasses do SUS para instituições conveniadas,
orçamentos municipais e número de atendimentos registrados.
Ministério da Saúde (http://www.saude.gov.br/): contém informações gerais sobre a
saúde no Brasil.
PSF Brasil (http://www.psfbrasil.hpg.com.br/): site não governamental com estudos
sobre o programa de saúde da família no Brasil.
Poá, julho de 2002
Texto e fotos de Paulo Belushi. Pertencente ao site Repórter Brasil:
http://www.reporterbrasil.com.br
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