Comentário
Ensino superior e os serviços de saúde no Brasil
Publicado Online
9 de maio de 2011
DOI:10.1016/S01406736(11)60326-7
Veja Online/Série
DOI:10.1016/S01406736(11)60054-8,
DOI:10.1016/S01406736(11)60138-4,
DOI:10.1016/S01406736(11)60202-X,
DOI:10.1016/S01406736(11)60135-9,
DOI:10.1016/S01406736(11)60053-6 e
DOI:10.1016/S01406736(11)60055-X
Até meados do século XX, não existia sistema de saúde
no Brasil.1 Pacientes ricos eram tratados em instituições
privadas, pagando diretamente suas despesas; e os
trabalhadores tinham acesso a clínicas e hospitais dos
sindicatos. Nas áreas urbanas, os pobres precisavam
procurar ajuda nas superlotadas instituições filantrópicas
ou públicas que aceitavam indivíduos em estado de
indigência. Nas áreas rurais, camponeses e meeiros
tinham de confiar em curandeiros ou cuidadores leigos
não treinados para suas necessidades de saúde. No
auge da redemocratização do país, a Constituição de
1988 declarou que a saúde era um direito do cidadão e
um dever do Estado.2 Posteriormente, foi organizado o
Sistema Único de Saúde, ou SUS, com os princípios da
universalidade, integralidade assistencial, promoção
da saúde e participação da comunidade, com fundos
públicos para a prestação de cuidados de saúde gratuitos
para os cidadãos brasileiros.1
O SUS tem duas linhas principais de atuação: o
Programa Saúde da Família, que presta cuidados
primários de saúde em 5.295 municípios; e uma rede
de clínicas e hospitais públicos ou contratados pelo
SUS, que presta atendimento secundário e terciário
em todo o país. Junto com intervenções de saúde
pública, que começaram na década de 1970 e que,
mais recentemente, implementaram políticas sociais
relacionadas ao emprego e à transferência condicional
de renda, considera-se que foi positivo o impacto do
SUS depois de vinte anos.1,3,4 Nas últimas três décadas,
a mortalidade infantil diminuiu em cerca de 6,3% ao
ano e a expectativa de vida aumentou em 10,6 anos.3
A mortalidade por doenças infecciosas diminuiu de
23% do total de óbitos em 1970 para menos de 4% em
2007.4 Apesar de tais conquistas, é preciso que sejam
Profissão de saúde
Faculdades e Alunos5
cursos5
reconhecidos os sérios problemas que envolvem a
igualdade de oportunidades, qualidade e eficiência.
Insuficiência de investimentos, corrupção e a má gestão
decorrente da burocracia governamental estão entre
esses problemas. O principal determinante da baixa
qualidade dos cuidados prestados pela rede SUS é a
limitação de recursos humanos, a qual, no entanto, é
qualitativa, não quantitativa.
No Brasil, a força de trabalho na saúde compreende
1,5 milhão de profissionais da saúde registrados em
conselhos profissionais (Tabela). A rede do SUS é o
principal empregador do país: 52% dos enfermeiros, 44%
dos médicos, 27% dos dentistas, 11% dos farmacêuticos
e 10% dos psicólogos são funcionários públicos.7–9 Além
disso, são oferecidos 3.493 cursos de nível universitário
para as profissões da saúde, com 185 faculdades de
medicina abrigando 97.994 alunos.5 A força de trabalho
ideal para atendimento no SUS – ou seja, profissionais
qualificados, orientados para evidência e bem treinados
e comprometidos com a igualdade na saúde – não
corresponde ao perfil dos profissionais que operam
o sistema. Essa disparidade é em parte decorrente da
autosseleção. O setor privado promove uma ideologia
individualista em que o serviço público é considerado
como apenas um emprego mal remunerado, mas que
oferece estabilidade, assumindo uma posição secundária
com relação à iniciativa privada ou aos empregos em
empresas de saúde com fins lucrativos, supostamente
mais gratificantes. No entanto, pode-se encontrar
uma compreensão mais aprofundada do problema na
dissonância entre a missão do SUS e o sistema de ensino
superior. Assim, a questão-chave para a saúde no Brasil
poderia ser a deformação do ensino – humanístico,
profissional e acadêmico – do pessoal da saúde.
Profissionais
Credenciados*
N° de habitantes
por profissional6
No serviço público Trabalhando para o PSF
(SUS) (%)7
(%)8–10
Medicina
185
97 994
341 562
1:558
44·3
4·9
Enfermagem
752
234 070
271 809
1:701
52·5
10·9
Odontologia
196
53 586
219 575
1:868
26·9
8·8
Farmácia
444
99 896
133 762
1:1424
10·6
2·2
Psicologia
495
124 593
236 100
1:807
10·4
2·8
1421
172 807
295 499
1:645
N/A
N/A
Outras profissões de saúde afins
SUS=Sistema Único de Saúde. PSF=Programa Saúde da Família. N/D=não disponível. *Atualizado em 2010. Fontes: Conselhos Federais das profissões de saúde (medicina,
enfermagem, odontologia, farmácia, psicologia, nutrição, fisioterapia, fonoaudiologia).
Tabela: Indicadores de recursos humanos para os serviços de saúde: Brasil, 2009–10
6
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Comentário
De maneira parecida com a situação nos EUA antes
da reforma Gilman-Flexner e com a situação na Europa
continental antes do Processo de Bolonha, medicina,
odontologia, farmácia, enfermagem, psicologia e outras
profissões relacionadas à saúde são, sem exceção, cursos
de graduação no Brasil.11 Nesse sistema, ao ingressarem
diretamente nos cursos profissionais, estudantes jovens
e imaturos são forçados a tomar decisões cruciais de
escolha da carreira muito cedo em suas vidas. Vários
corolários caracterizam esse sistema. Primeiramente, a
dura competição para o ingresso nos cursos de elevado
prestígio social (por exemplo, medicina), geralmente
após cursos preparatórios caros, transforma esses cursos
em verdadeiros monopólios das classes afluentes, cujos
membros tendem a apoiar as abordagens individualistas
aos cuidados de saúde. Em segundo lugar, quase não
há lugar para outros estudos mais gerais, que são
necessários para promover uma ampla visão humanista
das doenças e dos cuidados de saúde pelos profissionais
de saúde. Em terceiro lugar, currículos fechados, que são
projetados para a exclusividade, tendem a ser menos
interdisciplinares e mais especializados, alienando assim
os segmentos profissionais entre si e dificultando um
eficiente trabalho em equipe.
Em 2008, foi lançada no Brasil uma nova reforma
universitária. Entre outras medidas, um plano de
investimento maciço chamado REUNI pretende
duplicar o tamanho da rede de universidades federais,
permitindo a implementação de cursos de graduação
interdisciplinares compatíveis com o sistema
universitário dos EUA e com o modelo de Bolonha,
na Europa.11 Como resultado, surgiram tensões entre
as universidades brasileiras. O estabelecimento
acadêmico, liderado por faculdades tradicionais,
é contra o rearranjo da base ideológica do ensino
superior e, portanto, tende a recusar modelos de
cursos inovadores. No entanto, o SUS tem provocado
uma forte pressão política em favor da substituição
do padrão reducionista, orientado para a doença,
centrado no hospital e orientado para a especialização
vigente na educação profissional, por outro modelo
que seja mais humanista, orientado para a saúde, com
foco nos cuidados de saúde primários e socialmente
comprometido. Nesse contexto, o Estado, pressionado
pelos movimentos sociais, assumiu a liderança até
então pertencente às universidades, com iniciativas
como REUNI e, principalmente, o Pró-Saúde – um
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programa baseado no SUS que objetiva reformar o
ensino superior para a força de trabalho da saúde.12
Apesar de conservadoras e elitistas, as universidades
não são a principal fonte do problema, porque o sistema
de educação da saúde reflete o modelo de prestação
de serviços de saúde que ainda prevalece no Brasil
contemporâneo, regido por forças de mercado e baseado
na tecnologia médica, em vez de fundamentado na
solidariedade e em relações sociais mais humanas.
Naomar Almeida-Filho
Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia,
Campus Universitário Canela, Salvador, Bahia 40.110-040, Brazil
[email protected]
Agradeço a Bob Verhine, Maurício Barreto e Luis Eugênio Portela de Souza pela
revisão de meu Comentário e também por terem oferecido críticas úteis. Recebi
ajuda financeira (bolsa n° 302600/2008-6), honorários por conferências e
auxílio-pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisas do Brasil (bolsa n°
302600/2008-6).
1
Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health
system: history, advances, and challenges. Lancet 2011; publicado online
em 9 de maio. DOI: 10.1016/S0140-6736(11)60054-8.
2 Brazil. Federative republic of Brazil: 1998 Constitution with 1996 reforms.
November, 2008. http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Brazil/
english96.html (acesso em 15 de março de 2011).
3 Victora CG, Aquino EML, do Carmo Leal M, Monteiro CA, Barros
FC,Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and
challenges. Lancet 2011; publicado online em 9 de maio. DOI:10.1016/
S0140-6736(11)60138-4.
4 Barreto ML, Teixeira MG, Bastos FI, Ximenes RAA, Barata RB, Rodrigues LC.
Successes and failures in the control of infectious diseases in Brazil: social
and environmental context, policies, interventions, and research needs.
Lancet 2011; publicado online em 9 de maio. DOI:10.1016/S01406736(11)60202-X.
5 Brasília: Ministério da Educação/Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira. 2009 higher education census. http://www.
inep.gov.br/superior/censosuperior/default.asp (acesso em 15 de março de
2011) (em Português).
6 Brasília: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2010 population
census. http://www.censo2010.ibge.gov.br (acesso em 15 de março de
2011) (em Português).
7 Ministério de Saúde. DataSUS. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.
exe?cnes/cnv/prid02br.def (acesso em 7 de janeiro) (em Português).
8 Morita MC, Haddad AE, de Araújo ME. Current profile and trends of the
Brazilian dentist-surgeon. Maringá: Dental Press International, 2010.
http://cfo.org.br/wp-content/uploads/2010/04/PERFIL_CD_BR_web.pdf
(acesso em 10 de janeiro de 2011) (em Português).
9 Spink MJP, Bernardes JdS, Menegon VSM, Santos L, Gamba AC. The
engagement of psychologists in SUS-related health services: subsidies to
understand dilemmas of the practice and the challenges of professional
education. In: Spink MJP, eds. Psychology in dialogue with the SUS:
professional practice and academic production. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2007: 53–80. http://www.abepsi.org.br/web/Relatorio_
pesquisa_ABEP.pdf (acesso em 15 de março de 2011) (em Português).
10 Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. http://portal.saude.
gov.br/portal/saude/Gestor/area.cfm?id_area=1529 (acesso em 8 de
janeiro de 2011) (em Português).
11 Santos BdS, Almeida-Filho N. The university of the 21st century: towards a
new university. Coimbra: Almedina Press, 2008. http://www.boaventura
desousasantos.pt/media/A%20Universidade%20no%20Seculo%20XXI.pdf
(acesso em 15 de março de 2011) (em Português).
12 Ministério da Saúde, Ministério da Educação. National programme for
reorientation of professional formation in health. 2007. http://prosaude.
org/rel/pro_saude1.pdf (acesso em 11 de janeiro de 2011) (em Português).
7
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