298
Internacional Journal of Cardiovascular Sciences. 2015;28(4):298-304
ARTIGO ORIGINAL
Mortalidade Intra-Hospitalar em Pacientes com Cardiopatia Reumática
Submetidos a Dupla-Troca Valvar
In-hospital Mortality in Patients with Rheumatic Heart Disease Undergoing Double Valve Replacement
André Maurício Souza Fernandes1, Rafael Marcelino Oliveira2, Gustavo Maltez de Andrade2,
Gabriela Tanajura Biscaia2, Fernando Azevedo Medrado Junior2, Francisco Farias Borges dos Reis2,
Cristiano Ricardo Macedo3, André Rodrigues Durães3, Roque Aras Junior3
Hospital Ana Nery – Serviço de Bioimagem – Salvador, BA – Brasil
Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública – Curso de Graduação em Medicina – Salvador, BA – Brasil
3
Universidade Federal da Bahia – Curso de Graduação em Medicina – Salvador, BA – Brasil
1
2
Resumo
Fundamentos: A cardiopatia reumática é um importante problema de saúde pública. Há escassez de dados sobre
influência de variáveis cirúrgicas na mortalidade de pacientes reumáticos submetidos dupla-troca valvar (DTV).
Objetivo: Identificar possíveis variáveis cirúrgicas associadas à mortalidade de pacientes reumáticos submetidos à DTV.
Métodos: Estudo retrospectivo de corte transversal, incluindo 104 pacientes >18 anos, com diagnóstico prévio de
valvopatia reumática, submetidos à cirurgia de DTV no período de janeiro de 2007 a dezembro de 2011. A coleta
de dados utilizou os prontuários de pacientes do Hospital Ana Nery, Salvador, BA, Brasil.
Resultados: Observou-se diferença estatística significativa entre os grupos do desfecho (óbito intra-hospitalar/
alta hospitalar) em relação às variáveis, respectivamente: tempo de anoxia (minutos) de 149,17±40,99 e 123,99±24,12
(p=0,001); tempo de CEC 185,53±54,59 e 157,34±34,62 (p=0,006); e o tempo cirúrgico total 350,29±56,69 e 295,23±63,98
(p=0,002). Os pacientes que realizaram outro procedimento associado à DTV, no mesmo tempo cirúrgico,
apresentaram maior mortalidade (n=10; 31,2%), em relação aos que realizaram apenas a DTV (n=9; 12,8%) (p=0,027).
Houve também associação significativa na comparação de pacientes com reabordagem cirúrgica com aqueles que
realizaram única abordagem (p<0,001). Não houve diferença estatística quando se comparou desfecho hospitalar
e os tipos de próteses utilizadas (p=0,219).
Conclusões: As variáveis cirúrgicas que tiveram influência na mortalidade foram: tempos de anoxia, de CEC, de cirurgia
total, com possíveis pontos de corte, respectivamente, de 150 min, 100 min e 300 min. A necessidade de reabordagem
no pós-operatório hospitalar e a realização de outro procedimento no mesmo ato também mostraram significância.
Palavras-chave: Febre reumática; Doenças das valvas cardíacas; Duração da cirurgia; Mortalidade hospitalar;
Cirurgia torácica
Abstract (Full texts in English - www.onlineijcs.org)
Background: Rheumatic heart disease is a major public health issue. Data on the influence of surgical variables in mortality in
rheumatic patients undergoing double valve replacement (DVR) are scarce.
Objective: Identify potential surgical variables associated with mortality in rheumatic patients undergoing DVR.
Methods: Retrospective cross-sectional study including 104 patients over 18 years, previously diagnosed with rheumatic heart-valve
disease, and undergoing DVR surgery from January 2007 to December 2011. Data collection: medical records of patients from Hospital
Ana Nery, Salvador, Brazil.
Results: Outcome groups (in-hospital death vs. hospital discharge) had a significant statistical difference in relation to variables, respectively:
anoxia time (in minutes) of 149.17±40.99 and 123.99±24.12 (p=0.001); CPB time 185.53±54.59 and 157.34±34.62 (p=0.006); and total
surgical time 350.29±56.69 and 295.23±63.98 (p=0,002). Patients who underwent another procedure associated with DVR for the same
surgical time showed higher mortality rates (n=10; 31.2%) compared to those who underwent DVR only (n=9, 12.8%) (p=0.027). There
was also a significant association when comparing patients with surgical rapprochement with those who underwent one surgery only
(p<0.001). There was no statistical difference between hospital outcome and the types of prostheses used (p=0.219).
Conclusions: The surgical variables that influenced mortality were: anoxia, CPB and total surgical times, with potential cutoff points
of 150, 100 and 300 minutes, respectively. The need for rapprochement during the in-hospital postoperative period, and the performance
of another associated procedure in the same surgery were also significant.
Keywords: Rheumatic fever; Heart valve diseases; Operative time; Hospital mortality; Thoracic surgery
Correspondência: Fernando Azevedo Medrado Júnior
Rua Saldanha Marinho, s/n – Caixa D’Água – 40320-010 – Salvador, BA – Brasil
E-mail: [email protected]
DOI: 10.5935/2359-4802.20150043
Artigo recebido em 09/03/2015, aceito em 03/08/2015, revisado em 24/09/2015.
Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(4):298-304
Artigo Original
Introdução
A cardiopatia reumática, complicação não supurativa da
infecção por estreptococos β-hemolítico do grupo A de
Lancefield, é importante problema de saúde pública no
Brasil. Dados do DATASUS1 2012 revelam uma taxa de
mortalidade por cardiopatia reumática crônica (CRC) de
7,87% e o custo do tratamento cirúrgico estimado em
89 milhões de reais1. A cardite reumática se manifesta na
forma de pancardite, sendo o envolvimento valvar
determinante para a progressão da doença. A valva mitral
é a mais acometida, seguida pela aórtica e pulmonar2-7.
Os pacientes reumáticos são avaliados clinicamente
através das classes funcionais da New York Heart
Association (NYHA), sendo o tratamento cirúrgico da
troca valvar indicado para pacientes graves (classes
funcionais III e IV), refratários ao tratamento clínico
conservador e àqueles com lesões graves em valvas
cardíacas com acometimento estrutural ou funcional dos
ventrículos. No Brasil, atualmente, a prótese biológica
tem sido mais usada em detrimento da mecânica3,8-11.
Estudos prévios mostram a importância dos tempos de
circulação extracorpórea (CEC) e tempo de anoxia12-14.
Essas variáveis estão associadas a aumento da ativação
de mecanismos inflamatórios, alteração na cascata de
coagulação, formação de trombos e suas complicações,
hipotermia, influenciando, portanto, na ocorrência de
complicações e aumento da mortalidade15-21.
Há escassez de dados na literatura nacional e internacional
sobre a utilização de variáveis cirúrgicas como fatores
determinantes de mortalidade em pacientes reumáticos,
submetidos à cirurgia de dupla-troca valvar (DTV).
Assim, este estudo tem por objetivo identificar possíveis
associações entre variáveis cirúrgicas e a mortalidade
intra-hospitalar de pacientes portadores de valvopatia
reumática submetidos à DTV.
Métodos
Trata-se de estudo retrospectivo de corte transversal,
incluindo todos os pacientes admitidos no Hospital Ana
Nery, >18 anos, com diagnóstico prévio de valvopatia
reumática, submetidos à cirurgia de DTV, no período de
janeiro de 2007 a dezembro de 2011. Os pacientes cujos
dados referentes às variáveis avaliadas estavam ilegíveis
no prontuário foram excluídos do estudo. A coleta de dados
se deu através de consulta aos prontuários dos pacientes.
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa do Hospital Ana Nery sob o nº 59/10, de acordo
com a Resolução CNS 466/12. Por se tratar de estudo
Fernandes et al.
Mortalidade de Reumáticos em Dupla-Troca Valvar
299
retrospectivo, não houve assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.
As variáveis pesquisadas para associação com a
mortalidade intra-hospitalar foram: tempo de CEC,
tempo de anoxia, tempo cirúrgico total, necessidade de
outro procedimento associado, tipo de prótese utilizada
e necessidade de reabordagem cirúrgica. Foi analisada
ainda a associação de dados clínicos como idade e classe
funcional (NYHA) com a mortalidade. O desfecho
principal considerado para este estudo, por sua vez, foi
óbito intra-hospitalar vs. alta hospitalar.
No procedimento cirúrgico, os pacientes foram
colocados em decúbito dorsal e instalado cateter para
medida da pressão arterial média e para
se utilizar via de acesso central. Feita
ABREVIATURAS E
ACRÔNIMOS
esternotomia mediana e heparinização
sistêmica (0,4 mg/dL), seguiu-se à
•CEC – circulação
canulação em aorta ascendente para
extracorpórea
indução de cardioplegia, usando-se
•CRC – cardiopatia
como estratégia de proteção a
reumática crônica
hipotermia a 32°C, seguida da entrada
•DTV – dupla-troca valvar
da circulação extracorpórea. Nos casos
•NYHA – New York Heart
em que havia insuficiência aórtica,
Association
acessou-se a aorta para injetar solução
cardioplégica nos óstios coronarianos
e, para os demais, a solução cardioplégica foi injetada
diretamente na raiz da aorta. Na sequência, através da
secção do átrio esquerdo, foram realizadas as trocas das
valvas mitral e aórtica, nesta ordem, por próteses
biológicas ou mecânicas, conforme indicação prévia.
A análise estatística foi realizada com auxílio do software
SPSS versão 17.0. As variáveis foram testadas quanto à
sua normalidade através do teste one sample KolmogorovSmirnov e o teste estatístico aplicado de acordo com a
distribuição da variável. As variáveis contínuas foram
expressas em médias±desvios-padrão. As variáveis com
distribuição normal tiveram suas médias comparadas
com os desfechos, utilizando-se o teste t de Student; a
análise das variáveis de distribuição anormal foi realizada
através do teste Mann-Whitney, sendo expressas em
medianas e valores máximo e mínimo. As variáveis
categóricas foram expressas em frequências e analisadas
com o teste do qui-quadrado. O nível de significância
estatística adotado foi 5% (p<0,05).
Resultados
As características clínicas e epidemiológicas da população
estudada (n=104) encontram-se na Tabela 1.
300
Fernandes et al.
Mortalidade de Reumáticos em Dupla-Troca Valvar
Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(4):298-304
Artigo Original
Tabela 1
Características clínicas e epidemiológicas da população
amostral
Características
n
%
Sexo (n=104)
-
-
Masculino
60
57,7
Feminino
44
42,3
-
-
Baixo peso
8
8,2
Normal
67
69,1
Sobrepeso
18
18,6
Obesidade grau I
4
4,1
-
-
Capital
34
32,7
Interior
70
67,3
-
-
Sim
3
2,9
Não
101
97,1
-
-
Sim
50
48,1
Não
54
51,9
-
-
Sim
0
0,0
Não
104
100,0
-
-
Sim
28
28,0
Não
72
72,0
-
-
Classe funcional I
2
2,1
Classe funcional II
36
38,3
Classe funcional III
33
35,1
Classe funcional IV
23
24,5
-
-
Biológica
65
63,1
Metálica
38
36,9
Desfecho hospitalar (n=104)
-
-
Óbito intra-hopitalar
20
19,2
Alta hospitalar
84
80,8
Índice de massa corpórea (n=97)
Procedência (n=104)
Diabetes mellitus (n=104)
Hipertensão arterial (n104)
Doença de Chagas (n=104)
Fibrilação atrial anterior à DTV (n=100)
Grau de insuficiência cardíaca da NYHA
Tipo de prótese (n=103)
DTV – dupla-troca valvar; NYHA – New York Heart Association
As valvas acometidas, o grau de acometimento e o
número de cada lesão valvar de acordo com dados do
ecocardiograma pré-operatório estão dispostos na
Figura 1.
As médias e desvios-padrão dos tempos cirúrgicos
encontram-se na Tabela 2.
Houve diferença estatísticamente significativa entre os
grupos do desfecho (óbito em ambiente intra-hospitalar
vs. alt a hospit alar) em relação às vari á v ei s,
respectivamente: tempo de anoxia (em minutos) de
149,17±40,99 e 123,99±24,12 (p=0,001); de CEC
185,53±54,59 e 157,34±34,62 (p=0,006); e o tempo
cirúrgico total 350,29±56,69 e 295,23±63,98 (p=0,002).
Em relação às médias dos tempos cirúrgicos, observou-se
que a maioria dos pacientes que evoluiu a óbito teve
tempos de CEC >150 min, de anoxia >100 min e cirúrgico
total >300 min.
Observou-se ainda que 38,0% dos pacientes já haviam
realizado algum procedimento cirúrgico cardíaco
prévio. Todos os pacientes tiveram as valvas mitral e
aórtica trocadas. Destes, 69,2% foram submetidos
apenas à DTV e 30,8% foram submetidos à DTV
associada a outro procedimento no mesmo tempo
cirúrgico. Este último grupo apresentou maior
mortalidade (n=10; 31,2%) em relação aos que
realizaram apenas a DTV (n=9; 12,8%) (p=0,027).
Houve também associação estatisticamente
significativa ao se comparar pacientes que necessitaram
de reabordagem cirúrgica (n=24; 23,07%) com aqueles
que realizaram única abordagem (n=80; 76,93%)
(p<0,001).
Não houve diferença estatística quando se comparou o
desfecho com os tipos de próteses biológicas ou metálicas
utilizadas (p=0,219).
A média de idade dos pacientes incluídos no estudo foi
38,04±14,4 anos. Houve diferença das médias de idade
quando comparados os dois grupos: alta hospitalar e
óbito (36,3±13,0 anos vs. 45,4±17,9 anos, p=0,043).
A mortalidade, comparando-se os grupos de classe
funcional NYHA de insuficiência cardíaca, foi maior entre
os pacientes com classificação graus III e IV (n=15;
14,42%), em comparação àqueles classificados com graus
I e II (n=3; 2,88%) (p=0,022).
Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(4):298-304
Artigo Original
Fernandes et al.
Mortalidade de Reumáticos em Dupla-Troca Valvar
Figura 1
Distribuição das lesões valvares
IM – insuficiência mitral; EM – estenose mitral; Iao – insuficiência aórtica; Eao – estenose aórtica; IT – insuficiência tricúspide;
ET – estenose tricúspide; IP – insuficiência pulmonar; EP – estenose pulmonar
Tabela 2
Tempos cirúrgicos encontrados
Tempos (em minutos)
n
Média±DP
De anoxia
90
129,02±29,79
De CEC
101
162,64±40,37
Cirúrgico total
91
305,52±66,01
CEC – circulação extracorpórea; DP – desvio-padrão
Discussão
Os tempos de anoxia, de CEC, cirúrgico total, necessidade
de reabordagem no pós-operatório intra-hospitalar e
realização de outro procedimento no mesmo ato cirúrgico
tiveram influência sobre a ocorrência de óbito na
população do estudo.
A mortalidade encontrada neste estudo foi 19,2%. Esta
taxa se apresenta maior que as taxas descritas em outros
estudos previamente publicados22,23. No entanto, devido
à escassez de dados, a comparação com esses estudos
fica prejudicada, uma vez que são populações distintas
no que diz respeito à classe funcional, preditor
independente de mortalidade 24,25. Neste estudo, a
prevalência de pacientes em classe funcional IV da NYHA
foi 24,5%; se somadas as classes III e IV, a prevalência foi
59,6%. Nos estudos com taxas reduzidas de mortalidade,
a maior taxa de classe funcional IV foi 8,0%22,23. Assim, é
possível que as taxas reduzidas de mortalidade dos
estudos que foram utilizados para comparação tenham
como causa os baixos índices de classe funcional IV da
NYHA das amostras.
A literatura indica um tempo de CEC >120 minutos como
fator de risco para mortalidade em cirurgias cardíacas12-14.
No presente estudo, a distribuição das médias evidenciou
uma concentração de óbitos a partir de 150 min de CEC.
Da mesma forma, o tempo de anoxia demonstrou
concentração de óbitos para os pacientes com tempos
>100 min, também acima do preconizado pela literatura,
que é de 75 min12. Vale ressaltar que devido à escassez
de dados em DTV, a comparação é feita com estudos de
cirurgias valvares em geral, incluindo-se as trocas de
única valva e as plastias valvares, que tendem a
apresentar um tempo de CEC e de anoxia inferiores aos
tempos da DTV, e isso pode ter influenciado no resultado
da comparação. Sendo assim, a proporção da influência
dos tempos de CEC e de anoxia na mortalidade dos
pacientes submetidos à DTV carece de dados mais
consistentes na literatura, para definição de um ponto de
corte.
301
302
Fernandes et al.
Mortalidade de Reumáticos em Dupla-Troca Valvar
O tempo cirúrgico total foi outra variável cirúrgica que
evidenciou diferença estatística em relação à mortalidade
entre os pacientes que evoluíram a óbito e aqueles com
alta hospitalar. A literatura médica atual não traz o tempo
cirúrgico total como fator de risco nas cirurgias cardíacas,
nem em DTV. No entanto, a resposta neuroendócrina
metabólica ao trauma está diretamente ligada à
ocorrência de complicações pós-cirúrgicas 17-19 e à
mortalidade; e isto pode ter relação com o achado neste
trabalho.
A realização apenas de dupla-troca ou de dupla-troca
associada a outro procedimento no mesmo tempo
cirúrgico revelou significância estatística quando
comparadas com o desfecho hospitalar. Este dado já era
esperado, já que o aumento do número de procedimentos
aumenta consequentemente o tempo de CEC e anoxia
(caso o procedimento necessite), fatores de risco, ou o
tempo cirúrgico total, o que influencia diretamente a
resposta metabólica ao trauma cirúrgico e traz a
discussão sobre custo/benefício de maior trauma
cirúrgico ou dois tempos cirúrgicos para a realização
dos mesmos procedimentos. Isto deverá ser objeto de
estudos prospectivos para a produção de evidência
consistente.
Outro dado cirúrgico importante que demonstrou
significância estatística na comparação entre sua
frequência e o desfecho foi a necessidade de reabordagem
cirúrgica no pós-operatório intra-hospitalar. Esse dado
tem grande importância uma vez que pode mostrar a
influência de variáveis cirúrgicas também na ocorrência
de morbidades que necessita de nova intervenção. Essas
influências devem ser objeto de estudo para sua
evidenciação.
O estudo revelou concordância com a literatura no que
diz respeito ao maior acometimento da valvar mitral,
seguido pela valva aórtica. No entanto, diverge quando
se especifica o tipo de lesão. A literatura indica
predominância de insuficiência mitral, seguida de
insuficiência aórtica3,24. O presente estudo demonstra
maior prevalência de lesões do tipo insuficiência mitral,
seguida de estenose mitral e só então a insuficiência
aórtica. Além disso, o estudo evidenciou um número
expressivo de pacientes portadores de insuficiência
tricúspide, chegando a superar, mesmo que discretamente,
a estenose mitral. Este achado pode ser resultante de uma
sobrecarga hemodinâmica sobre o ventrículo direito,
secundária a doenças de câmaras esquerdas, podendo
ser um indício de diagnóstico tardio de doença valvar,
que pode ser justificado pelo difícil acesso dos pacientes
ao Sistema Único de Saúde10,26.
Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(4):298-304
Artigo Original
A maioria da amostra trocou valvas por biopróteses, o
que confirma o disposto na atual literatura médica. As
próteses metálicas estão indicadas para pacientes com
maior expectativa de vida - jovens - que suportem e
tenham acesso à terapia anticoagulante, já que se trata
de uma prótese mais trombogênica que a biológica. Esta
está indicada para pacientes com contraindicação formal
à terapia anticoagulante, que possuam reduzida
expectativa de vida, além da indicação social - dificuldade
de acesso à terapia anticoagulante3,9-12. Como a comparação
entre tipo de prótese e mortalidade não demonstrou
significância estatística, é possível que o maior número
de indicações para as biopróteses seja devido a fatores
socioeconômicos: pacientes procedentes do interior do
Estado, com maior dificuldade de adesão ao tratamento
da doença reumática e acesso à terapia anticoagulante
que necessitaria caso utilizassem próteses mecânicas.
Esse dado ratifica a literatura médica atual, a qual, diante
dessa ausência de significância estatística na diferença
da mortalidade nos tipos de próteses, deduz que o risco
aumentado de sangramentos nos pacientes que
utilizaram próteses metálicas (terapia anticoagulante) é
compensado, em parte, pelo risco aumentado de
reoperações nos pacientes com biopróteses10,12. Este dado
é bastante importante, pois a prótese valvar tem uma
vida útil reduzida, necessitando de reoperações para
troca das próteses e a literatura indica reoperações como
preditor independente de risco3,22.
Além da associação entre as variáveis cirúrgicas com o
desfecho estudado, evidências sugerem que variáveis
clínicas podem predizer mortalidade intra-hospitalar dos
pacientes reumáticos submetidos à dupla-troca valvar,
sobretudo os níveis de hemoglobina e hematócrito, bem
como a classe funcional NYHA dos pacientes submetidos
a esse procedimento27.
Este trabalho é um estudo retrospectivo. Logo, seus dados
têm validação externa restrita, porém seus resultados
podem servir de base para outros estudos analíticos e
prospectivos, a fim de se obter dados mais consistentes.
Conclusões
As variáveis cirúrgicas que tiveram influência na
mortalidade dos pacientes reumáticos submetidos à DTV
foram: tempos de anoxia, de CEC, de cirurgia total,
necessidade de reabordagem no pós-operatório intrahospitalar e realização de outro procedimento além da
dupla-troca no mesmo ato cirúrgico. Isso mostra a
importância da necessidade de a equipe cirúrgica ter o
máximo controle possível dessas variáveis para que se
possa melhorar a qualidade assistencial e diminuir um
Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(4):298-304
Artigo Original
Fernandes et al.
Mortalidade de Reumáticos em Dupla-Troca Valvar
possível impacto dessas variáveis na mortalidade dos
pacientes.
Fontes de Financiamento
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.
Vinculação Acadêmica
O presente estudo não está vinculado a qualquer programa de
pós-graduação.
Referências
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Mortalidade Intra-Hospitalar em Pacientes com Cardiopatia