A angústia do ilimitado
Suad Haddad de Andrade
Pedi para Zina que solicitasse às pessoas que iriam participar deste
encontro que vissem o filme Dogville porque vou usá-lo como modelo
para falarmos de violência mas também para falarmos de Identidade, de
Tolerância, de Generosidade, de Fé, de Condições Humanas e tantos
outros aspectos de que se pode falar mas que, principalmente, eu gostaria
que vocês trouxessem para conversarmos.
Quem vê o filme sai impactado; a Zina ficou impressionada quando viu, e
me ligou. Mas é assim mesmo. Quando você sabe que um filme é de guerra
você sabe que vai encontrar violência, destrutividade, crueldade; e você
pode escolher se assiste ou não. Um filme como este é diferente. Vamos
nos encantando com estes jovens bem educados, Tom e Grace, ambos
bonitos, gentis, que tratam a todos de maneira cortês e respeitosa. Aos
poucos as coisas vão mudando e sem nos darmos conta estamos nos
inserindo num mundo de horror, não de horror sobrenatural, mas de
situações humanas terríveis, e de certa forma muito familiares. É esta
familiaridade que nos horroriza. Vamos ver como.
O filme já é impressionante na sua narrativa linear mas se você pode ir
além da aparência, a complexidade se instala e novos elementos entram
em cena alterando a visão ou ampliando nossa visão á respeito do que é
Identidade e do que são
Limites e de como podemos focalizar as
Violências. Por isto eu escolhi falar da Angustia que gera a falta de
Limites, que me parece um aspecto que compõe esta situação difícil que
vivemos no filme e no mundo atual.
A proposta do filme é ACEITACÃO –
é isto que o Tom propõe aos
moradores e para ela, a jovem fugitiva, também. Como aceitar o outro.
Antes da aceitação, ou junto com ela vem a questão da IDENTIDADE –
quem são estas pessoas, quem é esta moça.
Vamos ver antes como se constrói a Identidade de cada um de nós.
Através do retorno, do retorno de aspectos nossos abandonados,
deixados de lado, esquecidos ou expulsos de nos, e geralmente colocados
no outro.
Muitas vezes precisamos expulsar aspectos nossos, negando que são
nossos, mas com certeza temos que fazê-los retornar para nos sentirmos
inteiros. Só podemos perdê-los momentaneamente ou estrategicamente
mas temos que retorná-los para nos construirmos como pessoas únicas,
independentes, verdadeiras. Temos que recolher o bom e o ruim
espalhados por aí e espalhados para podermos sobreviver. Sem estes
movimentos de jogar fora não suportamos viver. Sem o retorno deles
também a mente sadia não sobrevive. Por ex.:a paciente chega
reclamando da mãe, e conta várias passagens em que a mãe teve uma
conduta muito ruim, intolerante, prepotente. A pac não percebe agora
sua própria intolerância para com a mãe. Falar da intolerância da mãe é
por bem longe a sua própria intolerância, que fica lá fora, no outro.
Quando a paciente percebe que ela própria é assim, este aspecto dela
retorna para ela e então ela vai construindo sua própria Identidade, com
este aspecto que ela não gosta más tem. E vai tentar administrar.
Se percebo em mim estes aspectos vou tendo mais consciência de minha
maneira de ser, de minha Identidade. Por ex., quando me preparo para me
apresentar para vocês fico incomodada, achando que não vão gostar, que
prefeririam algo mais bem elaborado etc. O que me incomodada é vocês?
Ou não, já que eu nem os conheço? Na verdade aquilo que EU digo que são
vocês, que eu projeto em vocês, é uma construção minha. Então, ponho
fora algo meu e fico perseguida. Quando reconheço isto fico mais
tranquila, posso ser do meu jeito e confiar na tolerância de vocês para
comigo. O que me tranquiliza então? São meus sentimentos bons, se posso
sentir tolerância, me sinto bem. É sempre assim.
Mas vejam o que estou chamando de Fora: é a outra pessoa ali comigo,
fora de mim. Então, este outro me é fundamental; eu preciso do outro
para projetar nele aspectos meus e para que ele me delimite. O outro é
que me faz ver até onde eu posso ir, qual é minha força, quais meus
direitos, onde estou certo, onde estou errado. O outro é quem me faz
pensar, todo o tempo, portando me reporta a mim mesmo, à minha
identidade. Por isto estou dando o título a esta conversa de Angústia do
Ilimitado – portanto da fundamental necessidade de termos ou de
encontrarmos limites para não nos perdermos, para não enlouquecermos.
Quem estabelece os limites é o outro. Por ex.: se falo depressa vocês me
avizam , eu mudo; se falo baixo também etc.
Construímos nossas mentes e a fortificamos através das trocas, com os
outros; isto significa que somos dependentes. Esta dependência
emocional do outro é tão assustadora que muitas e muitas vezes precisa
ser negada. A separação minha do outro e a necessidade que tenho dele é
assustadora, é o grande desafio e o motivo fundamental de nossas dores.
O outro existe independente de mim e eu preciso dele; não tenho controle
sobre ele, não posso prever nada sobre o outro etc. Isto é desesperador.
Daí pode-se partir então para a negação da importância do outro e da
dependência, e a busca de substitutos: os padrões grupais e impessoais.
Não é com os pais que o jovem aprende, é com a televisão, com o grupo de
amigos, com o que está na moda.
Este aspecto do aceitar o outro, que será tratado todo o tempo no filme,
tem a ver com o aceitar o outro real e o aceitar ao “outro”, que também
somos ou temos dentro de nós mesmos; este “outro” que não conhecemos
bem, e que nos assusta. Tem o outro-fora e o outro-dentro.
O outro-fora somos aqui eu e vocês, um e outro, o outro-dentro é
aquele desconhecido que levamos e descobrimos a cada instante em nós
mesmos. E temos que aceitar ambos sempre; temos que ir conhecendo o
outro, e ao fazermos isto, ao reagirmos ao outro vamos conhecendo a nós
mesmos. Vamos construindo nossa Identidade.
Voltando ao filme. Os moradores da cidade resistiram em fazer a
experiência de aceitar Grace porque, intuitivamente, sabiam que não era
ela que estaria sendo testada mas eles próprios, testados todo o tempo,
eles que se revelarão para si próprios e para os demais, que revelarão o
que nem conhecem de si mesmos.
Os moradores vão mudando suas atitudes para com ela. Por que? É claro
que cada um reage a ela do jeito que é; aspectos diferentes de cada um,
vão aparecendo, aspectos que nem eles próprios suspeitavam ter. E a
situação vai ficando cada vez mais tensa e nós, espectadores, nos
revoltando com as injustiças que cometiam com ela. Eles vão se tornando
cada vez mais cruéis. Todo o tempo parece pairar um estado de perigo.
Onde está o perigo? Nas comunicações dos gangsters?
Eram eles a
ameaça?
Não, a ameaça estava dentro de cada um – eles sentiam que estavam
perdendo os limites, e estavam assustados!
Grace foi na verdade o grande mal para a cidade porque permitiu que as
pessoas se revelassem com todas suas mazelas. Ela só tomará
conhecimento disto com a chegada do pai e seu diálogo com ele .Nós já
estávamos percebendo ( o espectador): Grace sempre tinha uma atitude
totalmente passiva diante das agressões. Por que? Porque ela pretendia
ser um modelo de aceitação, exatamente a tese que o Tom propunha
para a comunidade – a comunidade não foi capaz, mas ela sim era capaz
de uma aceitação ilimitada.
É esta postura diante da vida que o pai vai intitular de Arrogante.
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