Ensaio
REDE URBANA E FOR1v1AÇÃO ESPACIALUMA REFLEXÃO CONSIDERANDO O BRASIL
Roberto Lobato Corrêa
A literatura sobre redes urbanas aponta, já há algum tempo, para
a diversidade dos inúmeros conjuntos
articulados de centros urbanos. Diversidade real que, entretanto, não
diminui o mérito, ao contrário, enfatiza
a necessidade de esforços de elaboração de tipos ideais e modelos hipotético-dedutivos sobre a rede urbana,
como são, entre outras, as formulações de Christaller, Lõsch e Zipf .
A diversidade diz respeito às
possíveis combinações dos mesmos elementos que, entretanto, ao se concretizarem o fazem de modo específico, pois
cada um desses elementos assume uma
própria especificidade. Entre outros elementos estão a gênese dos centros, o
tamanho deles, a densidade que perfazem no espaço, as funções urbanas e
*
*
as relações espaciais que delas derivam. Outros elementos, de natureza
política, social e cultural, considerados
menos freqüentemente na literatura,
podem ser agregados, explicitando mais
nitidamente a rica e complexa diversidade de redes urbanas.
Numerosas são, a este respeito, as contribuições dos geógrafos.
Berry e Barnum", por exemplo, assinalam o papel das diferentes densidades demográficas das hinterlândias
sobre a estrutura da rede urbana,
densidade, tamanho e funções dos
centros, enquanto Milton Santos ressalta a natureza dos dois circuitos da
economia urbana dos países subdesenvolvidos, os circuitos superior e
inferior, projetando-os sobre a rede
urbana ' . Densidade demográfica e
Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Consulte-se, a respeito, W. Christaller, "Central Places in Southern Germany", Englewood
C!iffs, Prentice-Hall Inc., 1966 (original de 1933 em alemão), A. Lôsch, "The Economics of
Location", New Haven, Yale University Press, 1952, G.K. Zipf, "Human Behavior and lhe
Principie of Least Effort. An Introduction to Human Ecology", Cambridge, Addison-Wesley,
1949 e, mais recentemente, a coletânea organizada por M. Timberlake, "Urbanization in the
World Economy", London, Academic Press, J985.
2 B.J.L. Berry e H.G. Barnum,
"Aggregate ReJations and Elemental Cornponents of Central
Place Systems", Journal of Regional Science 4, 1962.
3 Veja-se M. Santos,
"O Espaço Dividido - Os Dois Circuitos da Economia Urbana dos Países
Subdesenvolvidos",
Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1979.
I
122
Revista Território,
Rio de Janeiro,
renda são, aparentemente, determinações fundamentais, interferindo nas diversas combinações dos elementos
acima indicados. A comparação da
rede urbana das regiões industriais
européias e norte-americanas
com
aquela do interior da Guatemala, assentada sobre uma economia camponesa, e com a do planalto ocidental
paulista, associada a modernos complexos agroindustriais", evidencia diferenças que, em realidade, pressupõem determinações mais profundas
e complexas
que
densidade
demográfica e renda. Estas, por mais
importantes que sejam, são expressões e condições,
é necessário
enfatizar, de estruturas sócio-espaciais mais profundas, historicamente produzidas.
A análise das redes urbanas
numa perspectiva diacrônica, envolvendo particularmente aqueles momentos privilegiados da história que
são os momentos de ruptura social,
expressos, entre outros aspectos, pelas transformações tecnológicas, evidenciou também o movimento de
transformação da rede urbana, que
ano V, n" 8, pp. 121-129, jan.ljun.,
2000
possibilitou a passagem de um padrão
particular de combinação de densidade, tamanho e funções para outro
padrão. Neste sentido, a contribuição
de Allan Pred é notável". O tempo,
impregnado de processos, funções e
formas, assim como das contradições
delas derivadas, é um determinante
fundamental que fixa, ao menos temporariamente, os elementos combinados da rede urbana. Encarrega-se de
transformar esses elementos e suas
combinações, ainda que nessa transformação a inércia das formas espaciais esteja em ação.
11
Na inteligibilidade de uma dada
rede urbana por meio do desvendamento das lógicas que geraram e articulam seus já mencionados elementos, a estrutura social desempenha um
papel de primeira ordem. Ela nos
remete ao conceito de formação espacial que Milton Santos desenvolveu a partir do conceito de formação
econômico-social".
~ Entre outros consulle-se C.A. Smith, "Causes and Consequenees of Central - Place Types
in Western Guatemala", in Regional Studies, part 1, Economic Systems, org. C.A, Smith, New
York, Academic Press, 1976, D, Elias, "Meio Técnico-Científico-lnforrnaeional
e a Urbanização
na Região de Ribeirão Preto". Tese de Doutorado, Departamento de Geografia, FFLCH, USP,
1996 e R.L. Corrêa, "Repensando a Teoria das Localidades Centrais", in Novos Rumos da
Geografia Brasileira, org, M. Santos, São Paulo, HUCITEC, 1982,
, Allan R, Pred, "Urban Growth and the Circulation of lnformation: The United States
Systerns of Cities - 1790-1840", Carnbridge, Harvard University Press, 1973 e, do mesmo
autor, "Urban Growth and City Systems in the United States - 1840-1860",
Cambridge,
Harvard University Press, 1980.
~ , M. Santos, "Sociedade e Espaço: A Formação Social corno Teoria e como Método",
In
Espaço e Sociedade.
Petrópolis, Vozes, 1979.
Rede Urbana
o
e Formação
espacial - uma Reflexão Considerando
conceito em tela é de crucial
importância para a análise geográfica. Representa um esforço teórico
visando explicitar as especificidades
com que um dado modo de produção
concretamente se manifesta. Definido por meio de características principais, invariantes, gerais, um dado modo
de produção concretiza-se em diversas formações econômico-sociais, suas
variantes históricas e geográficas ou,
como se refere Dhoquois, suas "variedades regionais"? . A formação econômico-social é, em realidade, uma
particularidade
espaço-temporal
no
âmbito de um dado modo de produção dominante".
Trata-se de uma estrutura técnico-produtiva, social e cultural, na
qual o econômico, o político, o social
e o cultural estão imbricados, expressando-se em conjunto no espaço e no
tempo". Milton Santos corretamente
insiste na necessária dimensão espacial da formação econômico-social, argumentando mesmo que se trata de
O Brasil
123
uma formação espacial. Nela, o espaço está imanentemente presente,
participando como meio, natural ou
socialmente produzido, para as atividades do homem, reflexo e condição
social, expressando e afetando a existência e reprodução humana, afetando, em realidade, a própria reprodução das diferenças espaciais, qualquer
que seja a escala geográfica considerada' D. Enfatize-se que referir-se à
formação espacial não é abdicar-se do
econômico, do político, do social e do
cultural, que são facetas de uma mesma totalidade que se manifesta de modo
integrado no espaço e no tempo.
A importância do conceito em
tela reside no fato de ele permitir que
se considere processos, funções e formas em suas concretizações espaçotemporais diferenciadas mas, ao mesmo tempo, particularmente sob o capitalismo, integradas. A globalização, estágio mais avançado da espacialidade
capitalista, revela diferenças espaciais,
antigas e novas, muito significativas.
7 G. Dhoquois, "La Formación Economico-Social
como Combinación de Modos de Produción",
in EI Concepto de Formación Econornico-Social,
Cuadcrnos de Pasado y Presente, 39, 1973,
p. 187.
8 Baseio-me
em G. Luckacs, "Introdução a uma Estética Marxista - Sobre a Categoria da
Particularidade", Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, para referir-me à formação econômico-social como uma particularidade.
Ver especialmente o capítulo 3 da obra em pauta.
9 Veja-se a questão
da unidade do econômico, político, social e cultural, numa perspectiva
geográfica, em D. Cosgrove, "Em direção a uma Geografia Cultural radical: problemas da teoria",
Espaço e Cultura 5, 1998.
10 O papel do espaço como condição
de reprodução das relações sociais tem suas raízes em
Henri Lefébvre, "Espacio y Politica, Barcelona, Peninsula, 1976. Consulte-se, além de Milton
Santos, "Por uma Geografia Nova", São Paulo, HUCITEC, 1978, Augustin Berque com a
temática da reprodução social por meio da paisagem, elemento constituinte de uma dada
formação espacial. Veja-se dele, "Paisagem-Marca, Paisagem-Matriz: Elementos da Problemática para uma Geografia Cultural", in Paisagem, tempo e cultura, org. R. L. Corrêa e Z.
Rosendahl, Rio de Janeiro, EDUERJ, 1999.
124
Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 8, pp. 121-129, jan.ljun., 2000
A diferenciação de áreas, cara
aos geógrafos, principalmente aqueles envolvidos com a perspectiva
corológica, constituiu-se, ainda que
abordada com um viés idiográfico, no
conceito que direcionava a leitura dos
resultados, diferenciados em área, da
ação humana sobre superfície terrestre. O conceito de formação espacial
permite integrar essa complexa diversidade em uma unidade conceitual e,
simultaneamente, real. É, portanto, um
conceito útil para a geografia regional, liberando-a da abordagem calcada na unicidade C'uniqueness") das
regiões e lugares 1 I.
III
O conceito de formação espacial é úti I também para a geografia
sistemática. Assim, conforme pondera Milton Santos, a "localização
dos h omens, das ali vidades e das
coisas no espaço explica-se tanto pelas
necessidades 'externas', aquelas do
modo de produção 'puro', quanto pelas necessidades 'internas' ..."12, ditadas, em essência, pela formação
espacial. Nesse espaço particular as
necessidades externas são interpretadas e adaptadas, por um lado, com
base nas possibilidades
reais dos
agentes sociais locais e regionais e,
por outro, com base na organização
espacial prévia, já diferenciada em
relação a outros espaços particulares. É na formação espacial que se
entrecruzam determinações gestadas
em di versas escal as, do geral e do
particular, assim como emergem contingências.
As transformações
por que
passa a organização espacial não são
iguais, tanto no que se refere à natureza, quanto à intensidade, quando
se trata das áreas agrícolas e urbanas. As primeiras, dado, via de regra, a menor fixidez das obras do
homem, apresentam-se
mais facilmente submetidas
às transformações. Veja-se, a este respeíto, que
as transformações
ocorridas
em
muitas áreas agrícolas brasileiras
nos últimos 30 anos foram notáveis:
paisagens agrárias foram substituídas por outras muito diferentes e,
muitas vezes, após poucas décadas
de existência. As áreas cafeicultoras
do oeste paulista e norte paranaense
que, inclusive esvaziaram-se de homens, são excelentes exemplos, assim como as áreas pastorís de campo
ou cerrado que foram incorporadas
ao moderno complexo agroindustrial
A despeito das potencialidades do conceito de formação espacial, sua adoção pelos geógrafos
foi muitíssimo limitada, como discute Armen Mamigonian, "A Geografia e a Formação Social
como Teoria e como Método", in O mundo do cidadão: um cidadão do mundo, org. Maria
Adélia A. de Souza, São Paulo, H UCITEC, 1996. Uma possível resposta a essa negligência
residiria no fato do conceito em tela ser, em realidade, um enfoque, operacionalizável apenas
por meio de conceitos operativos como paisagem, região, território e lugar.
12 M. Santos,
op. cit., p. 14.
11
Rede Urbana e Formação espacial - uma Reflexão Considerando O Brasil
de grãos I 3. O campo se adapta,
metamorfoseia-se com relativa facilidade às demandas da formação espacial da qual faz parte. Fala-se em
"urbanização do campo" e "industrialização da agricultura", como expressões do papel da cidade, sobretudo
das grandes metrópoles, na transformação do campo.
A cidade, e por extensão a rede
urbana, por menor que seja, apresenta formas dotadas de grande fixidez
e, por isso mesmo, apresentando uma
relativamente grande capacidade de
refuncionalização. Por meio desta e
da continuidade do processo de criação de novas funções e suas correspondentes formas - próprio das formações espaciais capitalistas - a cidade e a rede urbana reatualizam-se,
possibilitando a coexistência de formas e funções novas e velhas.
Ressaltemos, agora, um ponto
fundamental deste ensaio. A cidade
e a rede urbana, em razão da fixidez
e da refuncionalização, tendem a
exibir, muito mais que o mundo agrário, padrões de formas que contêm,
ao menos parcialmente, fortes elementos gerados na formação espacial na qual surgiram. É por isso que as
relações entre rede urbana e formação espacial são muito complexas:
125
uma rede urbana pode exibir características associadas aos diversos momentos da formação em que está inscrita, ou das diversas formações espaciais a que esteve associada.
Nas sociedades de classes, nas
quais o fato urbano emerge, as características técnicas das atividades
de produção, envolvendo uma necessária relação com a natureza, a finalidade da produção, os meios de circulação, as relações de produção, a
estrutura de poder, os valores, crenças, mitos e utopias - que aparecem
integradamente, definindo um dado
modo de produção e suas formações
espaciais - são determinantes das
densidades demográficas, da renda e
sua distribuição, e dos padrões culturais dominantes e subordinados. Estas características modelam a densidade de centros, o tamanho deles, as
funções urbanas e as relações espaciais derivadas.
É lícito supor que não apenas
os modos de produção nos quais o
urbano emerge, mas as suas diversas
formações espaciais apresentem a sua
típica rede urbana. Cada sociedade
tem a sua própria geografia, que inclui, na maioria dos casos, a sua rede
urbana particular I 4. Fala-se, então, em
rede urbana dos tipos solar, dendrítico,
\3 Sobre o oeste paulista, compare-se o clássico de Pierre Monbeig, "Pioneiros e Fazendeiros
de São Paulo", São Paulo, HUClTEC-POLIS, 1984 com o trabalho de D. Elias, já mencionado,
sobre as transformações na região de Ribeirão Preto, anteriormente analisada por Monbeig. Um
excelente exemplo de estudos sobre as transformações em área de cerrado é o de R. Haesbaert
"Des-territorialização e Identidade - A Rede 'Gaúcha' No Nordeste", Niterói, EDUFF, 1997,
que aborda as mudanças na geografia do oeste baiano
14 A este respeito consulte-se M. Buch Hanson e B. Nielsen, "Marxist Geography and the
Concept of Territorial Structure", Antipode, 9(2), 1977.
126
Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n° 8, pp. 121-129, janJjun., 2000
christalleriano, axial, circular e de
múltiplos circuitos, ainda que esta
tipologia necessite ser melhor explicitada' s.
A rede solar, por exemplo, está
associada às formações vinculadas ao
modo de produção asiático, mas também aos pequenos países de origem
colonial, dotados de uma metrópole
primaz, como se exemplifica com o
caso do Uruguai' 6. A rede dendrítica,
por sua vez, parece estar geneticamente vinculada a uma formação espacial periférica de base colonial,
marcada por um específico padrão de
circulação. Já as redes de múltiplos
circuitos, ao que tudo indica, associam-se às formações espaciais dos
países centrais, refletindo e condicionando a complexidade de suas organizações espaciais. A questão das
relações entre a forma e as funções
da rede urbana e a natureza da formação espacial, da qual aquela é parte,
é, em realidade, muito complexa e
necessita muitas reflexões e estudos
empíricos.
IV
A formação social brasileira,
assim identificada numa dada escala,
aparece como dotada de grande hete-
rogeneidade interna quando altera-se
a escala de análise. A heterogeneida. de resulta de uma combinação desigual, tanto no espaço como no tempo,
de processos naturais e sociais.
Visando contribuir para o debate a respeito da complexa espacialidade do território brasileiro, apresenta-se aqui a tese de que no Brasil
coexistem, na virada dos séculos XX
e XXI, mas com gênese muito anterior, três formações espaciais distintas, mas integradas entre si, constituindo, no conjunto uma "diversidade na
unidade": uma formação espacial
fundada na grande propriedade
rural, outra na pequena propriedade rural dos imigrantes europeus e,
finalmente, uma terceira que é a formação espacial da fronteira. Fundamentais, como são, estruturam os
tipos básicos de rede urbana.
Ressaltemos três aspectos. Em
primeiro lugar, uma formação espacial não se traduz, necessariamente, em
uma região. Em realidade pode-se conceber uma mesma formação espacial
recobrindo duas ou mais regiões; o
inverso, contudo, não é possível. Ao
não se confundir com a região, a formação espacial pode caracterizar-se
pela descontinuidade espacial: é, de
acordo com a literatura geográfica,
um tipo espacial.
15 Consulte-se R.L. Corrêa, "Interações Espaciais", in Explorações Geográficas, organizado
por Iná E. Castro et al., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.
16 Consulte-se, respectivamente, Paul Claval, "La Logique des Villes. Essays d'Urbanologie",
Paris, Librairie Techniques, 1981 e A.S. Linsky, "Some Generalizations Concerning Primate
Cities", Annals of the Association of American Geographers, 55(3), 1965.
126
Revista Thrritório,
Rio de Jaoeiro,
christalleriano, axial, circular e de
múltiplos circuitos, ainda que esta
tipologia necessite ser melhor explicitada' 5.
A rede solar, por exemplo, está
associada às formações vinculadas ao
modo de produção asiático, mas também aos pequenos países de origem
colonial, dotados de uma metrópole
primaz, como se exemplifica com o
caso do Uruguai' 6. A rede dendrítica,
por sua vez, parece estar geneticamente vinculada a uma formação espacial periférica de base colonial,
marcada por um específico padrão de
circulação. Já as redes de múltiplos
circuitos, ao que tudo indica, associam-se às formações espaciais dos
países centrais, refletindo e condicionando a complexidade de suas organizações espaciais. A questão das
relações entre a forma e as funções
da rede urbana e a natureza da formação espacial, da qual aquela é parte,
é, em realidade, muito complexa e
necessita muitas reflexões e estudos
empíricos.
IV
A formação social brasileira,
assim identificada numa dada escala,
aparece como dotada de grande hete-
ano V, nO 8, pp. 121-129, janJjun.,
2000
rogeneidade interna quando altera-se
a escala de análise. A heterogeneida. de resulta de uma combinação desigual, tanto no espaço como no tempo,
de processos naturais e sociais.
Visando contribuir para o debate a respeito da complexa espacialidade do território brasileiro, apresenta-se aqui a tese de que no Brasil
coexistem, na virada dos séculos XX
e XXI, mas com gênese muito anterior, três formações espaciais distintas, mas integradas entre si, constituindo, no conjunto uma "diversidade na
unidade": uma formação espacial
fundada na grande propriedade
rural, outra na pequena propriedade rural dos imigrantes europeus e,
finalmente, uma terceira que é a formação espacial da fronteira. Fundamentais, como são, estruturam os
tipos básicos de rede urbana.
Ressaltemos três aspectos. Em
primeiro lugar, uma formação espacial não se traduz, necessariamente, em
uma região. Em realidade pode-se conceber uma mesma formação espacial
recobrindo duas ou mais regiões; o
inverso, contudo, não é possível. Ao
não se confundir com a região, a formação espacial pode caracterizar-se
pela descontinuidade espacial: é. de
acordo com a literatura geográfica,
um tipo espacial.
., Consulte-se R.L. Corrêa, "Interações Espaciais", in Explorações Geográficas, organizado
por Iná E. Castro et al., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.
16 Consulte-se,
respectivamente, Paul Claval, "La Logíque des Villes. Essays d'Urbanologie",
Paris, Librairie Techniques, 1981 e A.S. Linsky, "Some Generalizations Conceming Primate
Cities", Annals 01 the Association oi American Geographers, 55(3), 1965.
Rede Urbana e Formação espacial - uma Reflexão Considerando
Em segundo lugar, a formação
espacial da fronteira, como que por
definição, é marcada nitidamente pela
transitoriedade, isto é, em um determinado momento caracteriza uma
dada porção do espaço e, em outro,
posterior, uma outra porção. Este tipo
de formação tem acompanhado a história espacial brasileira há muito tempo, sendo, em muitos casos, a matriz
na qual, após, instala-se uma ou outra
das duas formações espaciais supramencionadas. Este tipo, como os demais, constitui-se, em realidade, em
um amplo campo para investigação.
Em terceiro lugar, estamos pensando uma formação espacial a partir
da unidade entre produção, circulação, consumo, estrutura política, relações sociais e padrões culturais e da
projeção espacial dessa unidade, ainda que cada um desses elementos
goze de uma relativa autonomia. Nesta unidade, contudo, e dado os modos
como o Brasil foi, e está sendo, ocupado, a estrutura fundiária e as relações sociais a ela associada, desempenham papel crucial na estruturação
das possíveis combinações entre produção, circulação, consumo, estrutura
política, relações sociais e padrões
culturais e suas projeções espaciais,
definindo uma particular formação
espacial. Parece, então, fundamental,
distinguir entre a formação espacial
O Brasil
127
associada à grande propriedade rural,
herdeira ou não do período colonial, e
a formação espacial associada à pequena propriedade rural, fruto do processo de colonização e imigração
européia iniciada na primeira metade
do século XIX. A partir da estrutura
fundiária desenvol vem-se inúmeras
diferenças no que diz respeito ao modo
de vida e à produção e organização
do espaço, para os quais o espírito
empreendedor e os padrões de consumo têm papel fundamental. O espaço, por intermédio da paisagem e
da rede urbana, simultaneamente expressa e condiciona estas duas formações espaciais. A este respeito o
estudo de Bernardes sobre o Rio
Grande do Sul é exemplar:
são
explicitadas características que permitem falar em duas formações espaciais, uma associando área de mata,
pequena propriedade, imigração, agricultura, indústria e rede urbana densa
e outra que associa área de campo,
grande propriedade, povoamento lusobrasileiro, pecuária e rede urbana com
baixa densidade de centros 17.
v
Considerando as relações entre
a rede urbana e as formações espaciais brasileiras, apresentaremos alguns
17 Consulte-se
Nilo Bernardes, "As Bases Geográficas do Povoamento do Rio Grande do Sul",
Boletim Geográfico (IBGE), 171, 1962 e 172, 1962, e reimpresso em 1997 com o mesmo título
pelo Departamento de Ciências Sociais da UNIJUÍ em colaboração com a Associação dos
Geógrafos Brasileiros, Seção Porto Alegre.
128
Revista Território,
Rio de Janeiro, ano V, n" 8, pp. 121-129, jan./jun.,
pontos que parecem-me clarificados.
Insiste-se na complexidade dessas relações e na necessidade de um grande esforço para se avançar nessa
direção. Os pontos são os seguintes:
(a) A rede urbana da formação
espacial associada à grande propriedade rural caracteriza-se
por uma
menor densidade de centros quando
comparada à rede urbana da formação espacial calcada na pequena propriedade dos imigrantes. Conseqüentemente, apresenta maior espaçamento
entre os seus centros. Os valores
relativos às densidades e distâncias,
contudo, podem variar quando se trata
de áreas pastorís ou de áreas agrícolas:
nas primeiras as densidades são ainda
menores e as distâncias maiores.
(b) A drenagem
da renda
fundiária rural pela cidade, a partir do
absenteísmo dos grandes proprietários, constitui-se em parte integrante das
relações espaciais da formação espacial calcada na grande propriedade.
A modernização da agricultura criou
condições de ratificar ampliadamente
essa característica, graças às transformações técnicas e sociais na agricultura e à melhoria geral da circulação. Referências às capitais regionais como
sendo um "fazendão iluminado" ou uma
"fazenda asfaltada" são reveladoras
dessa concentração de grandes proprietários rurais nessas cidades I 8.
O impacto do absenteísmo so-
2000
bre as cidades é enorme: lojas sofisticadas, clubes de luxo, restaurantes e
serviços de alta qualidade, ao lado de
bairros
suntuosos,
centrais
e
verticalizados ou em determinados
setores da periferia urbana e horizontais, com mansões e condomínios exclusi vos. Mas há uma contrapartida,
expressa pelos bairros populares, muitas vezes produtos da ação conjunta do
Estado, proprietários rurais e imobiliárias, que produzem amplos e monótonos
conjuntos habitacionais constituídos por
milhares de pequenas casinhas. Localizam-se em amplos setores da periferia
urbana, ratificando assim, o clássico
padrão centro-periferia das cidades brasileiras, herdeiro do passado. Abrigam
esses conjuntos
os excedentes
demográficos expulsos pela modernização do mundo agrário.
(c) A rede urbana da formação
espacial calcada na pequena propriedade do imigrante, caracteriza-se por uma
mais nítida hierarquia de centros. Reflete uma distribuição mais equitativa da
demanda e do consumo, não mais concentrado nas cidades mais importantes,
como ocorre nas áreas de grandes propriedades rurais. Nessas, as pequenas
cidades tendem a perder, por meio das
migrações de excedentes da modernização, o seu mercado, acabando por se
tomarem, em muitos casos, centros de
concentração da força de trabalho do
mundo agrícola. I 9
I~ Consulte-se
Lílian Hahn Mariano da Rocha, "O Papel de Santa Maria como Centro de
Drenagem da Renda Fundiária.
Dissertação de Mestrado em Geografia.
UFSC, 1993.
I~
Veja-se, sobre o assunto, R.L. Corrêa, "Globalização e Reestruturação da Rede Urbana Uma Nota sobre as Pequenas Cidades". Território, 6, 1999.
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Rede Urbana e Formação espacial