R IHGB
a. 171
n. 447
abr./jun.
2010
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
DIRETORIA – (2009-2010)
Presidente: 1º Vice-Presidente: 2º Vice-Presidente: 3º Vice-Presidente: 1ª Secretária: 2º Secretário: Tesoureiro: Orador: Arno Wehling
Victorino Coutinho Chermont de Miranda
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Cybelle Moreira de Ipanema
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Fernando Tasso Fragoso Pires
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Pedro Carlos da Silva Telles e Marcos Guimarães Sanches.
Membros suplentes:
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Lêda Boechat Rodrigues, Evaristo de Moraes Filho, Hélio Leoncio Martins, João Hermes Pereira de Araujo, José
Pedro Pinto Esposel, Miridan Britto Falci e Vasco Mariz
Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal
Guimarães.
Victorino Coutinho Chermont de Miranda
Coordenadoras da CEPHAS:
Editor do Noticiário:
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COMISSÕES PERMANENTES
ADMISSÃO DE SÓCIOS:
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CIÊNCIAS SOCIAIS:
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da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão, Helio Jaguaribe de
Mattos, Cândido Antônio Mendes de Almeida e Antônio Celso
Alves Pereira.
ESTATUTO:
Affonso Arinos de Mello Franco, Alberto Venancio Filho,
Victorino Coutinho Chermont
de Miranda, Célio Borja e João
Maurício A. Pinto.
GEOGRAFIA:
Max Justo Guedes, Lucinda
Coutinho de Mello Coelho, Jonas de Morais Correia Neto, Ronaldo Rogério de Freitas Mourão e Miridan Britto Falci.
HISTÓRIA:
João Hermes Pereira de Araújo,
Maria de Lourdes Viana Lyra,
Eduardo Silva, Elysio Custódio
G. de Oliveira Belchior, Pe. Fernando Bastos de Ávila e Guilherme de Andréa Frota.
PATRIMÔNIO:
Affonso Celso Villela de Carvalho, Claudio Moreira Bento,
Victorino Coutinho Chermont
de Miranda e Fernando Tasso
Fragoso Pires.
REVISTA
DO
INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.
R IHGB, Rio de Janeiro, a. 171, n. 447, pp. 9-302, abr./jun. 2010.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 171, n. 447, 2010
Indexada por/Indexed by
Historical Abstract: America, History and Life – Ulrich’s International Periodicals Directory –
Handbook of Latin American Studies (HLAS) – Sumários Correntes Brasileiros
Correspondência:
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Tiragem: 700 exemplares
Impresso no Brasil – Printed in Brazil
Revisora: Sandra Pássaro
Secretária da Revista: Tupiara Mascharett
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Ano 1-4 (jan./dez.,1839)-.
Rio de Janeiro: o Instituto, 1839v. : il. ; 23 cm
Trimestral
Título varia ligeiramente
ISSN 0101-4366
N. 408: Anais do Simpósio Momentos Fundadores da Formação Nacional
N. 427: Inventário analítico da documentação colonial portuguesa na África, Ásia e Oceania
integrante do acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro / coord. Regina Maria Martins
Pereira Wanderley
N. 432: Colóquio Luso-Brasileiro de História. O Rio de Janeiro Colonial. 22 a 26 de maio de
2006.
N. 436: Curso - 1808 - Transformação do Brasil: de Colônia a Reino e Império
1. Brasil - História. 2. História. 3. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - Discursos, ensaios, conferências. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Célia da Costa
Conselho Editorial
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Antonio Manuel Dias Farinha – U L – Lisboa – Portugal
Carlos Wehrs – IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Elysio de Oliveira Belchior – CNC – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
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João Hermes Pereira de Araújo – Ministério das Relações Exteriores e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
José Murilo de Carvalho – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Vasco Mariz – Ministério das Relações Exteriores, CNC e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Comissão da Revista: Editores
Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Esther Bertoletti – MinC – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Lucia Maria Paschoal Guimarães – UERJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Maria de Lourdes Viana Lyra – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Mary Del Priore – UNIVERSO – Niterói – RJ– Brasil
Conselho Consultivo
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Maria Luiza Marcilio – USP – São Paulo – SP
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Stuart Schwartz – Universidade de Yale – Inglaterra
Victor Tau Anzoategui – UBA e CONICET – Buenos Aires – Argentina
SUMÁRIO
SUMMARY
Carta ao Leitor
Lucia Maria Paschoal Guimarães
I
ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS
O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
The general government at the time od spanish
dominion (1580-1588)
9
11
Wilmar da Silva Vianna Júnior
“Tão exausto de gente e de cabedal”:
a crise do Pós-Restauração e a gestão do Atlântico Sul
por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
“No people and resources”:
the crisis of Post-Restoration and management
of the South Atlantic by a monarchy with several heads
47
Marcello José Gomes Loureiro
O governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão:
biografias e trajetórias administrativas (século XVIII)
The state government of Grão-Pará and Maranhão:
biographies and administrative careers (18th century)
75
Fabiano Vilaça dos Santos
A utopia possível: uma experiência de desenvolvimento
regional, séculos XVII e XVIII
The possible utopia: an experience on regional
development, 17th and 18th centuries
95
Miranda Neto
Coroa, Império e Nação (1807-1834)
Crown, Empire and Nation (1807-1834)
145
125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
125 years of germanic presence in Niterói, Brazil
169
Miriam Halpern Pereira
Carlos Wehrs
Pinheiro Machado, o Morro da Graça e a política carioca
Pinheiro Machado, the Morro da Graça and the
Rio de Janeiro´s politics
229
Surama Conde Sá Pinto
II COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS
Hélio Viana: recordações
Hélio Viana: memories
245
Cybelle Moreira de Ipanema
O mos jus comparationis scribendi de Clovis Bevilaqua
The mos jus comparationis scribendi of Clovis Bevilaqua
253
A influência francesa na medicina veterinária brasileira
The french influence on brazilian veterinary medicine
263
Jose Murilo de Carvalho
Jose Murilo de Carvalho
273
João Baptista Villela
Clotilde de Lourdes Branco Germiniani
Arno Wehling
III DOCUMENTOS
DOCUMENTS
A inauguração da estátua de José Bonifácio na visão de um
correspondente estrangeiro, em 7 de setembro de 1872
The Jose Bonifacio’s statue inaugural in the view
of a foreign reporter, on September 7, 1872
279
Paulo Knauss e Hendrik Kraay
IV RESENHAS
REVIEW ESSAYS
Antropologia Brasiliana:
Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto
José Arthur Rios
• Normas de publicação
Guide for authors
291
299
301
Carta ao Leitor
As festividades do cinquentenário da independência do Brasil foram
notícia no The New York Times. Que tal conhecer a matéria, assinada por
um correspondente que se assina com o pseudônimo de Tiradentes? O
jornalista norte-americano revela considerável conhecimento acerca da
política e da sociedade imperial, como também faz uma rica descrição
do ritual cívico daquelas solenidades. O relato está publicado na seção
“Documentos”, pelos professores Paulo Knauss e Hendrik Kraay, acompanhado da respectiva versão em língua portuguesa e de breve introdução
crítica.
O número 447 também traz sete artigos inéditos, inclusive uma colaboração vinda de além-mar. A problemática da administração colonial é
examinada por três autores que contemplam recortes cronológicos distintos: Wilmar da Silva Vianna Júnior discute o Governo-Geral, no período
de união ibérica, enfatizando aspectos relativos à defesa dos territórios
que formavam o então Estado do Brasil. Na sequência, Marcello José
Gomes Loureiro examina as ideias debatidas nos Conselhos da Coroa a
respeito da gestão do Atlântico Sul, no contexto de crise que sobreveio à
Restauração portuguesa (1640-1648). Já o estudo de Fabiano Villaça dos
Santos se detém nas biografias e trajetórias administrativas dos governadores do Estado do Grão-Pará e Maranhão, durante o ministério do Marquês de Pombal. Aliás, a geopolítica colonial também é tangenciada sob
outro enfoque por Miranda Neto. No ensaio A Utopia Possível, ele analisa
o suporte econômico-ecológico do “modelo das missões”, a partir das
experiências desenvolvidas pelos jesuítas na chamada República Guarani, nos séculos XVII e XVIII. Em um artigo instigante, Coroa, Império e
Nação (1807-1834), Miriam Halpern Pereira procura demonstrar de que
forma se processou a articulação entre essas instituições e conceitos, em
um dos períodos mais complexos da história de Portugal. Avançando no
tempo, Carlos Wehrs se debruça sobre a presença germânica em Niterói
desde 1814, assunto por sinal pouco explorado pelos estudiosos, evidenciando a peculiaridade dos imigrantes que ali se instalaram em relação a
outras comunidades de língua alemã existentes no território brasileiro.
Finalmente, Surama Conde privilegia as primeiras décadas do século XX,
e joga luz sobre a influência exercida na política carioca pelo senador
gaúcho Pinheiro Machado, cuja residência no Morro da Graça, no Rio de
Janeiro, tornou-se famosa por atrair interessados em acordos, alianças e
benesses.
A seção “Comunicações” traz três trabalhos expostos em sessões da
Comissão de Estudos e Pesquisas Históricas (CEPHAS). A sócia emérita
Cybelle Moreira de Ipanema presta tributo à memória do antigo mestre, o
historiador e pesquisador Hélio Viana, na passagem do seu centenário de
nascimento. Por sua vez, o professor João Batista Vilela destaca o papel
desempenhado por Clovis Bevilaqua no campo do direito comparado,
a propósito das celebrações dos cento e cinquenta anos do consagrado
jurista pernambucano. Ainda no âmbito das atividades da CEPHAS, a
pesquisadora paranaense Clotilde de Lourdes Branco Germiniani traz
um interessante ensaio sobre a história da medicina veterinária brasileira,
salientando-lhe a influência francesa. A seção também abre espaço para
outra intervenção, desta feita realizada na Academia Brasileira de Letras,
na homenagem aos quarenta anos de atividade profissional do sócio José
Murilo de Carvalho. O texto assinado por Arno Wehling rememora a trajetória acadêmica do confrade e acentua a importância de sua obra, que
combina a intuição do historiador e do cientista político.
Completa o número a resenha do livro Antropologia Brasiliana: Ciência e educação na obra de Edgard Roquette Pinto, elaborada pelo sócio emérito José Arthur Rios.
Vale a pena conferir as contribuições. Boa Leitura!
Lucia Maria Paschoal Guimarães
Diretora da Revista
O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS
O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
The general government at the time od spanish
dominion (1580-1588)
Wilmar da Silva Vianna Júnior 1
Resumo:
O artigo discute o Governo-Geral durante a época em que o reino português e suas possessões
ultramarinas estiveram sob o governo dos Felipes de Espanha. Iremos examinar o regimento
passado ao governador Francisco Giraldes, em
1588, dando ênfase às questões relacionadas a
defesa do Estado do Brasil.
Além disso, buscaremos tecer algumas considerações sobre a prática administrativa dos governadores-gerais do período intentando verificar a
maior ou menor defasagem entre a forma institucional e a prática administrativa, tendo sempre
como foco os assuntos referentes à defesa.
Abstract:
The aim of this article is to discuss the brazilian
government during the rule of the portuguese
kingdom and its overseas possessions by the
Philippine Dynasty. It intends also to analyse
the regiment given to the Governor-General
Francisco Giraldes in 1588, emphasizing issues
that concern the defense of the State of Brazil.
Besides, this article shall comment the administrative praxis of the Governor-Generals of that
time. The intention is to measure the distance
between institutional form and administrative
praxis, always focusing upon defensive matters.
Palavras-chave: governador-geral, defesa, Estado do Brasil.
Keywords: governor-general, defense, State of
Brazil.
Os estudos sobre a América portuguesa no período de união das Coroas Ibéricas, a partir dos arquivos brasileiros, é uma tarefa de difícil execução. A procedência de tal afirmação pode ser verificada, principalmente, pela enorme lacuna existente na historiografia brasileira acerca dos
assuntos tocantes ao território americano no período em que Portugal e,
por consequência, suas possessões no ultramar, estiveram sob dominação
dos reis de Espanha.
Essa lacuna não se deve somente à escassez de fontes e documentos
em arquivos brasileiros, alguns dos quais sabemos que foram queimados,
1 – Doutorando, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista da Fundação Carlos
Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
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11
Wilmar da Silva Vianna Júnior
propositadamente, por invasores estrangeiros, em ataques a Salvador,
Olinda e São Vicente. Tal fato está relacionado também a forte influência
da historiografia portuguesa que, como observa com propriedade Joaquim
Veríssimo Serrão (1979:7), “por motivos que radicam ancestrais sentimentos [...], pode afirmar-se que a época filipina continua a ser a mais
ignorada da história portuguesa”. Isso se refletiu na produção historiográfica brasileira, que, por longo tempo, esteve atrelada à história oficial de
Portugal, dando-se maior ênfase, por exemplo, ao movimento de 1640 do
que ao de 1580, quando se abre o período de monarquia dual.
Esse aspecto, aliás, contrasta com o enorme interesse que há por
parte de importantes historiadores europeus, que tomaram por objeto de
análise diversos aspectos do reinado de Felipe II sobre a Espanha e seu
extenso império (1555-1598)2. Para o período posterior, de Felipe III,
nota-se certa diminuição no volume das pesquisas, que tornam a crescer
para a época de Felipe IV3.
Recentemente, em Portugal, alguns trabalhos têm proposto uma
releitura acerca da visão historiográfica nacionalista da Restauração de
1640. Esses estudos, entre os quais podemos destacar os de Luis Reis
Torgal e Antônio Oliveira, criticam as tradicionais análises sobre a união
das Coroas Ibéricas, mostrando a existência de diversos partidos e posições em relação à aliança das monarquias ibéricas. Além desses autores,
precisamos fazer referência também a outro historiador português, Diogo
Ramada Curto, cujos trabalhos, entre os quais destacamos O discurso
político em Portugal (1600-1650), analisam um amplo leque de questões
sobre a cultura política do período filipino e da Restauração.
2 – Somente para citar os historiadores mais consagrados lembramos a importância dos
estudos de Fernand Braudel, J. H. Elliot, J. Lynch, Geofrey Parker, Fernando Bouza Álvarez e Jean-Frédéric Schaub, alguns dos quais terão seus trabalhos referenciados ao longo
do artigo.
3 – De acordo com o historiador francês Jean-Frédéric Schaub (1998), esse aspecto é
possível de ser percebido também na produção historiográfica portuguesa, que teria concentrado esforços para explicar os momentos de abertura (1578-1583) e encerramento
(1637-1640) do período filipino.
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
Já no âmbito da produção historiográfica brasileira, destacamos os
trabalhos de Rodrigo Bentes Monteiro, Ana Paula Torres Megiani e Jacqueline Hermann4. O primeiro, no livro O rei no espelho, publicado em
2002, mostra, a partir de movimentos contestatórios ocorridos entre meados do Seiscentos e início do Setecentos, a forma como a imagem da
monarquia portuguesa era projetada no ultramar, a fim de explorar a relação entre os vassalos das possessões americanas e a metrópole. Já Ana
Paula Megiani, no O rei ausente, mais recentemente publicado, estuda
as festas realizadas pelos portugueses em 1581 e 1619 para os monarcas
Habsburgos, demonstrando a importância das cerimônias no Antigo Regime, momentos em que se recriavam, de forma alegórica, o status quo
monárquico e a hierarquia.
Por fim, temos o trabalho de Jacqueline Hermann, no reino do desejado, no qual a historiadora estuda as diversas facetas do sebastianismo,
fenômeno de grande importância e de longa duração no mundo ibérico,
que foi apropriado das mais variadas formas por diferentes grupos sociais.
Esse pequeno levantamento historiográfico sobre o período filipino
corrobora o que dizemos nos parágrafos iniciais desse artigo. De fato,
podemos reconhecer a existência de vários estudos que discutem a época filipina, com distintas abordagens e enfoques, possíveis pela própria
amplidão geográfica do império Habsburgo. No entanto, especificamente
sobre a América portuguesa durante o período filipino, são escassas as
referências.
4 – Limitamos-nos a fazer referência a trabalhos que se encontram publicados. No entanto, não desconhecemos a produção dos programas de pós-graduação em História. Entre
esses trabalhos, podemos mencionar os estudos desenvolvidos, na UFRJ, por João Paulo
Derocy Cepa e Edval de Souza Barros. Este último, em sua tese de doutorado, Negócios
de tanta importância: o Conselho Ultramarino e a disputa da condução da guerra no
Atlântico e no Índico (1643-1661), mostra a dinâmica política de Portugal sob o governo
do último Felipe e a importância da agregação portuguesa ao império Habsburgo para a
compreensão da política do período pós-restauração. Já Derocy Cepa, em sua dissertação
de mestrado, examina o governo de Francisco de Sousa e a administração das minas, nas
capitanias do sul da América portuguesa, durante o período filipino.
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Wilmar da Silva Vianna Júnior
Os regimentos e a ação governativa na época filipina
Na sequência da crise sucessória, que se abriu após os acontecimentos de Álcacer-Quibir, nos quais morreram não somente o rei D. Sebastião, mas também “numerosos primogênitos de [...] grandes casas”
(França, 1997:98) de Portugal, instalou-se o domínio de Felipe II de Espanha. Tal fato, no entanto, se processou menos pelo uso da força e mais
pela articulação política dos representantes do monarca Habsburgo, pois,
como demonstrou Mafalda Soares da Cunha (1993), coexistiam diversas
normas de sucessão a coroa portuguesa, o que tornava problemática a
avaliação da legalidade das candidaturas apresentadas5.
Importante ressaltarmos que a união das Coroas ibéricas fazia parte
de uma política familiar perseguida desde a época do monarca Afonso V,
em Portugal, e dos reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão.
Joaquim Romero Magalhães (1993:563) aponta inclusive para a existência de outros momentos, na história das duas monarquias, nos quais tal
união já poderia ter acontecido, uma vez que “a família reinante (porque
afinal era só uma) persistiu em ir preparando as coisas para que isso viesse a acontecer. Felipe II foi, finalmente, contemplado pela sorte”.
Além da questão do regime sucessório, o reinado filipino foi precedido por um debate, no qual os oficiais da monarquia hispânica discutiam o
estatuto que deveria ser conferido ao reino português ao entrar para esfera
de domínio do monarca Habsburgo. Embora existissem os partidários de
um processo pacífico e legalista, havia também os que defendiam a incorporação pela via da conquista.
De acordo com Fernando Bouza Alvarez (1996:34), embora tenha
existido resistência armada, por parte de alguns portugueses, às tropas comandas pelo Duque de Alba, o que permitiria a Felipe II declarar o reino
5 – Além de Felipe II, D. Catarina e D. Antônio, prior do Crato, candidatos que adquiriram maior visibilidade, também eram pretendentes a coroa portuguesa Ranúcio Farnese,
Manuel Felisberto e Catarina de Médicis. Todos invocavam pertencer, ainda que por linhas sucessórias hipotéticas, a dinastia de Avis (Cunha, 1993:554).
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
português como uma conquista, decidiu o monarca por “dialogar com os
três estados do reino numa reunião das cortes de Portugal”.
As Cortes que se reuniram em Tomar, em 1581, legitimaram Felipe
II de Espanha como Felipe I de Portugal, servindo também para celebrar
os acordos do referido monarca com o reino português. Através deles,
garantia-se que este passava a integrar a monarquia espanhola em regime
de agregação dinástica. Dessa forma, Portugal mantinha as características
que o distinguiam enquanto um reino, que era reconhecível por si próprio,
estando jurisdicionalmente separado dos outros territórios que estavam
sob o comando dos Habsburgos (Álvarez, 2000:113).
Pelo sancionado nas Cortes, delimitava-se um espaço político-jurisdicional que pertencia, unicamente, aos naturais do reino, não podendo
o monarca entregar para estrangeiros o governo, os ofícios e as mercês
de Portugal. Além disso, na ausência do monarca, o reino português só
poderia ser governado por parentes próximos do rei e, que, por essa condição, funcionavam como representantes da própria pessoa real (ibidem,
120). Decidiu-se também pela criação do Conselho de Portugal, órgão
consultivo, composto apenas por portugueses, que deveria estar permanentemente junto ao monarca, fazendo, portanto, a ligação entre o reino
português e a corte6.
De acordo com Arno Wehling (2005), o enquadramento de Portugal
à monarquia Habsburgo se deu de acordo com as características específicas desta última. Isso significa reconhecer que a manutenção da autonomia portuguesa não pode ser entendida como uma concessão especial. Ao
contrário disso, tal fato refere-se ao modelo polissinodal sobre o qual se
assentava a monarquia espanhola, o que permitia que cada uma das partes
que a compunham mantivesse suas leis, costumes e instituições políticas.
Acima delas, no entanto, existiam instituições (vice-reinos ou conselhos)
que deviam reportar-se diretamente ao rei, buscando conferir unidade e
6 – Os conselhos foram aplicados também durante o reinado de Carlos V, em territórios
fora da Espanha e onde, portanto, o Imperador não poderia estar presente. Devido a sua
eficácia, foram mantidos durante o reinado de Felipe II, mas ao término deste começaram
a dar sinais de enfraquecimento e inoperância (Lynch, 1993:215-218).
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Wilmar da Silva Vianna Júnior
comando, funcionando como “mecanismos institucionais de controle e
gestão [...] que se justapunham ou substituíam, conforme o caso, aos [institutos] previamente existentes” (Wehling, 2005:21).
Nesse sentido, é que se pode afirmar que a estrutura compósita da
monarquia hispânica precisava ter em consideração, na sua estruturação
institucional, a diversidade da comunidade supranacional, na expressão
do historiador inglês J. H. Elliot (1989), de províncias e reinos, cada qual
com suas leis, costumes e idiomas, em territórios localizados na Europa,
América, África e Ásia.
O monarca Habsburgo nomeou o seu sobrinho Alberto, arquiduque
da Áustria, como vice-rei, tendo este exercido o cargo entre 1583 e 1593.
De acordo com Fernando Bouza Álvarez (2000) e Pedro Cardim (2001),
o vice-reinado7 ia de encontro à exigência estabelecida pelo Estatuto de
Tomar e era prova do reconhecimento do estatuto reinícola de Portugal.
Gostaríamos de destacar também a participação da própria nobreza
lusitana, no processo que culminou com a instalação do domínio de Felipe II. Segundo Eduardo D’Oliveira França (1997:98), após os acontecimentos de Álcacer-Quibir, os nobres portugueses não se encontravam em
condições de resistir à investida castelhana, seja porque os primogênitos
das grandes casas haviam sucumbido junto com D. Sebastião, seja porque as casas nobres encontravam-se com suas finanças arruinadas, pelos
preços pagos como resgate pelos sobreviventes e, além disso, “amarrados
pela gratidão ao rei de Espanha que ajudará a resgatá-los”.
Embora não discorra sobre os motivos que teriam levado a tal posicionamento, Álvarez (2000) também aponta para o concurso da nobreza
de Portugal para o estabelecimento da dominação dos Habsburgos. Na
opinião desse historiador, sem a aquiescência dos nobres, Felipe II não
7 – O vice-reinado foi um expediente utilizado pela casa reinante de Espanha, em ocasiões delicadas, nos territórios onde o exercício da autoridade espanhola era tênue, e nos
quais já havia “uma organização própria muito desenvolvida com uma consciência viva
da sua própria diferença” (Alvarez, 2000:123). Além disso, a instituição vice-reinal buscava atenuar a distância entre o rei, quase sempre ausente, e os seus vassalos.
16
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
teria obtido tão fácil êxito. Nesse particular, vale destacar o papel desempenhado por Cristóvão de Moura, que, como embaixador do soberano
espanhol, negociou com a nobreza portuguesa a aceitação da candidatura
filipina.
De acordo com Pedro Cardim (2001), o comportamento das elites
portuguesas à união das Coroas ibéricas teria oscilado entre o interesse
e o temor. Se, por um lado, receavam que sua esfera jurisdicional fosse
invadida por súditos estrangeiros, eles sabiam que podiam tirar proveito
dos vastíssimos recursos oriundos do complexo imperial. Por esse motivo, várias famílias portuguesas foram residir em Madri e Valladolid,
buscando estender suas redes até a Espanha e, dessa forma, poderem se
inserir no sistema de distribuição de recursos da monarquia hispânica8.
Apesar dos acordos celebrados em Tomar garantirem que todas as
instituições portuguesas seriam resguardadas, ao longo do período e, de
forma cada vez mais crescente, o funcionamento e a organização dos órgãos pertencentes ao reino português foram sofrendo alterações, que os
aproximavam da prática governativa empreendida em Espanha.
A forma da monarquia espanhola exercer seu poder, na visão de
Antônio Manuel de Hespanha (Hespanha, apud Cosentino, 2005:47),
possuía características distintas da portuguesa, que estava mais próxima
das ideias tradicionais do sistema político ocidental. No reino espanhol,
a estrutura de poder encontrava-se mais centralizada, sem as limitações
corporativas, exercendo-se de modo mais eficaz.
Nesse sentido, acreditamos ser possível afirmar a existência de uma
busca por uma maior centralização, que pretendia um controle mais eficaz sob a administração financeira e, no que se refere à política, intentava
configurar um novo ordenamento entre os órgãos, que compunham o reino português, bem como criar novos mecanismos de comunicação entre a
coroa e os poderes periféricos.
8 – Segundo Fernando Bouza Alvarez (1997:101), a união das Coroas ibéricas teria proporcionado para a elite portuguesa uma “ampliação da arena política”.
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17
Wilmar da Silva Vianna Júnior
Tal fato não significa dizer, contudo, que esse processo possuísse
uma racionalidade que lhe conferisse uniformidade e continuidade, tal
qual obedecendo a um plano previamente estabelecido, o que no mais não
acreditamos ser possível pensar devido às características das monarquias
europeias de Antigo Regime. Dessa forma, é preciso reconhecer que, se
o chamado modelo castelhano obteve êxito em diversos segmentos, também foi gerador de conflitos e resistências, nos quais a Coroa teve de
negociar com privilégios e particularismos locais.
O panorama apresentado nos parágrafos anteriores enfatiza, pelas
próprias características e objetivos deste trabalho, apenas alguns aspectos
gerais, buscando destacar as modificações na organização e no funcionamento do reino português ocorridas sob o governo de Felipe II.
Francisco Giraldes: donatário de Ilhéus, governador do Brasil
No período inicial do governo filipino foram resguardadas, como já
apontamos, as instituições e práticas administrativas de Portugal. O mesmo pode ser afirmado se tivermos em consideração os órgãos responsáveis pela administração colonial que se mantiveram atuantes e ocupados
por súditos portugueses. Posteriormente, no entanto, ocorreram algumas
modificações na estrutura organizacional de diversos órgãos e ofícios da
Coroa portuguesa, do que é exemplo a elaboração do regimento para o
Desembargo do Paço, em 1592; o da Casa de Suplicação e da Relação do
Porto, em 1602; as Ordenações Filipinas, de 1603; e o próprio regimento
passado ao governador-geral, em 1588.
Tal qual Antônio Manuel Hespanha, ao discorrer sobre a administração metropolitana, Arno Wehling (ibidem, 24) afirma que se o arcabouço institucional, que vigorava na América, permaneceu idêntico no
que se refere à forma, “a dinâmica institucional foi sendo penetrada de
circunstâncias, objetivos e projetos inspirados ou pelo menos admitidos
e apoiados pela Espanha”. Dessa forma, o autor afirma que, no decorrer
do tempo, de maneira cada vez mais manifesta, a corte madrilena buscou
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
dar mostras de que controlava de perto os negócios tanto na metrópole
quanto nos territórios coloniais.
Wehling observa também que é possível reconhecer um crescimento
da importância da América portuguesa face à Índia, no período de união
das Coroas Ibéricas. Segundo dados coligidos pelo autor (ibidem, 14), a
partir dos trabalhos de Jaime Cortesão, Fréderic Mauro, Joaquim Veríssimo Serrão e Mircea Buescu, no início do século XVII, a presença comercial de produtos americanos, principalmente, o açúcar, já era muito significativa no porto de Lisboa. Esses dados ganham ainda mais significado,
pelo fato do autor tomá-los, em sua análise, dentro de uma perspectiva
atlântica. Dessa forma, é possível perceber que, ao se iniciar o Seiscentos,
o superávit obtido com o comércio dos portos africanos e americanos era
de 24%, enquanto o da Índia era de 23%.
Além disso, não podemos deixar de ressaltar o papel estratégico que
o controle do território americano adquiria dentro do conjunto das possessões dos Habsburgos, não somente pelo fato dessas terras poderem servir
como uma espécie de estado tampão, que teria por finalidade defender
a retaguarda da mineração espanhola9, mas também porque serviam à
navegação para Índia e, pelo sul do continente, para o Pacífico. Por outro
lado, a incorporação das possessões ultramarinas portuguesas permitiu
a Espanha aumentar sua influência comercial no cenário internacional,
com o controle, por exemplo, das rotas de comércio das especiarias e do
sal português.
A contemplação desses elementos nos permite corroborar as ideias
de Joaquim Veríssimo Serrão (1979), para quem, no período de governo
de Felipe II de Espanha, o território americano teve sua importância redimensionada, passando a ser pensado dentro de uma ótica ultramarina
e imperial, que levava em conta os progressos alcançados com a colonização. Produzir-se-ia assim, segundo o autor, um deslocamento “de um
9 – Não podemos deixar de observar que, à época, as terras do Estado do Brasil eram
vistas como pertencendo à mesma área geológica do Peru, o que alimentava a esperança
de se encontrar, nesta região, ouro e prata.
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Brasil de marca ainda portuguesa e regional para um outro Brasil de concepção hispância e atlântica”.
Nomeado em nove de março de 1588, Francisco Giraldes era filho natural de Lucas Giraldes, comerciante enobrecido, que atuou como
banqueiro em várias operações de crédito da Coroa portuguesa, sendo
também donatário da capitania de Ilhéus. A legitimação de Francisco e
de sua irmã, Luisa Giraldes, aconteceu em 1550 e, segundo Cosentino
(2005:274), concretizava “uma estratégia bem-sucedida de ascensão social e aristocratização de uma família de mercadores, por meio da prestação de serviços à monarquia portuguesa”.
Antes de ser nomeado para o Governo-Geral, Giraldes foi embaixador de Portugal junto às Coroas inglesa e francesa, o que o caracterizava
como “um homem sem passado militar, mas com experiência da vida
política” (Serrão, 1979:171). Sua nomeação pode ser inserida dentro de
uma tendência maior, na qual se percebe, desde a nomeação de Mem de
Sá, uma preferência pela escolha de pessoas sem experiência militar para
o cargo de governador-geral. Tal aspecto, aliás, permanece muito pouco
estudado pela historiografia.
De acordo com Stuart Schwartz (1979:43), essa tendência de procurar dentro do grupo de letrados os governadores da colônia, prática que
se pautava nos sucessos da administração de Mem de Sá, também um letrado, foi interrompida, parte pelo insucesso de seus sucessores, que “não
repetiram as suas realizações administrativas”, parte pela própria pressão
exercida pela nobreza portuguesa que, na petição apresentada em Tomar,
solicitava que as capitanias das conquistas fossem providas, segundo o
costume antigo, em fidalgos e não em letrados. A nomeação de Giraldes
mostra, no entanto, que a solicitação dos nobres não foi, pelo menos de
todo, atendida pelo monarca Habsburgo.
Devemos ainda ressaltar que Giraldes recebeu por herança os direitos sobre a capitania de Ilhéus. Tais direitos, ele ainda os possuía quando
nomeado para o Governo-Geral da América portuguesa. Alguns estudio-
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
sos, dentre os quais podemos destacar Joaquim Serrão (1979:171), sugerem que um dos principais motivos que teriam levado a sua escolha para
o cargo era justamente por possuir interesses próprios a defender10. Esse
último aspecto, aliás, marca a originalidade de sua nomeação, pois, como
observou Cosentino (2005), não se tem conhecimento de outro donatário
de capitania que no exercício de seus poderes tenha sido nomeado para o
Governo-Geral.11
Embora existam versões discordantes acerca da viagem de Francisco
Giraldes para a América, um fato permanece incontestado, o de que ele
não chegou a tomar posse, e, portanto, a exercer as funções para as quais
havia sido designado.
Jurisdição e defesa do Estado do Brasil à luz do novo regimento
O regimento entregue a Giraldes data de 30 de março de 1588, sendo
composto por 53 artigos. Esse documento possui significativa importância, uma vez que, do período filipino, é o primeiro documento dessa natureza que se tem conhecimento, pois o entregue a Manuel Teles Barreto,
primeiro governador nomeado pelos Felipes, se perdeu. Segundo Serrão
(1979:173), a confecção desse novo regimento não foi uma decisão isolada da monarquia hispânica, mas, ao contrário disso, fazia parte de uma
política maior “que visava igualmente resolver os problemas da fazenda
e da justiça”.
De acordo com Eulália Lobo, o regimento passado a Manuel Teles
Barreto não se afastava do que fora entregue anteriormente a Lourenço da
Veiga e a Tomé de Sousa. No entanto, através do exame do conteúdo do
10– O cenário descrito por Gabriel Soares de Sousa (1989), em sua Notícia do Brasil, redigida em 1587, relata as dificuldades enfrentadas pelos moradores da capitania de Ilhéus,
permanentemente ameaçados pela presença dos índios aimorés, motivo pelo qual não se
plantava mais cana, o que comprometia a produção de açúcar. A sugestão apresentada
pelo autor para se evitar o completo despovoamento da capitania era a intervenção do
poder régio.
11– Para maiores detalhes sobre a trajetória de Francisco Giraldes remeto a tese de Francisco Carlos Cosentino, Governadores Gerais do Estado do Brasil (século XVI e XVII):
ofício, regimento, governação e trajetória.
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documento passado a Lourenço da Veiga, observamos que o mesmo tratava de questões específicas, possuindo, portanto, conteúdo distinto das
instruções dadas a Tomé de Sousa12.
Em relação ao regimento de 1588, ao contrário do que, usualmente,
é apresentado pela historiografia, inclusive na recente tese de Cosentino
(2005), podemos afirmar que o documento conferido a Giraldes difere do
passado a Tomé de Sousa, em 1548. As semelhanças existentes entre ambos devem-se ao fato de que os regimentos “possuíam instruções as quais
podemos chamar de essenciais, e continham os poderes régios delegados,
que, por sua vez, constituíam a estrutura do Governo-Geral” (Cosentino,
2005:103).
Dessa forma, queremos enfatizar que, segundo nossa compreensão, o
regimento de Giraldes pode ser tomado como um ponto de inflexão, através do qual é possível marcar as diferenças entre as normas regimentais
passadas nos primeiros 40 anos do Governo-Geral, do qual conhecemos
apenas o que foi entregue a Tomé de Sousa, e os regimentos posteriores.
Esses últimos são semelhantes ao regimento de 1588 não somente quanto
às disposições gerais do cargo, mas também no que se refere ao formato
e disposição das matérias contempladas, acrescidas aqui e ali por elementos dados pela complexificação do processo colonizador.
Além disso, o exame da documentação nos indica que devemos tomar com cautela a assertiva de Cosentino, segundo o qual o regimento de
Tomé de Sousa teria sido utilizado pelos governadores que lhe sucederam
à frente do governo da América portuguesa. O exame das ordens passadas
a Giraldes indica a existência de, pelo menos, outros dois regimentos,
entregues a Duarte da Costa e Manuel Teles Barreto. Portanto, ainda que
reconheçamos a reprodução de algumas normas, não podemos deixar de
verificar que esses documentos, muito provavelmente, traziam também
12– Para o exame comparativo dos regimentos de Tomé de Sousa e Lourenço da Veiga
remeto a minha dissertação de mestrado, A conservação da conquista: O Governo-Geral
e a defesa do Estado do Brasil (1548-1612).
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
demandas pontuais e modificações quanto à observância de alguns procedimentos.
De acordo com Wehling (2005), o regimento passado a Francisco
Giraldes teria permanecido inaplicado, pois, como já observamos o referido governador não chegou a exercer seu cargo. Acreditamos, no entanto, com base no exame das correspondências dos governadores que lhe
sucederam, que analisaremos em outro tópico, ser possível afirmar que
estes últimos receberam regimentos que eram semelhantes ao entregue a
Giraldes, ou eram instruídos a observar o conteúdo daquele documento.
O regimento de 1588 encontrava-se inserido dentro do período classificado por Arno Wehling como reativo13. Essa fase foi marcada pela
tomadas de decisões, por parte da Coroa espanhola, que possuíam menos
um caráter afirmativo, caracterizando-se mais como respostas a situações
adversas que se apresentavam tanto na metrópole quanto no território
americano.
Dentro desse contexto, o referido autor insere as incursões de corsários ingleses, holandeses e franceses a diversos portos da América portuguesa e as conquistas da Paraíba, Sergipe e Rio Grande, os dois últimos
em períodos posteriores ao regimento de Giraldes, como exemplos de
questões que precisavam ser enfrentadas pela administração, emprestando às suas medidas um forte cariz defensivo.
Os três primeiros capítulos do regimento de 1588 dispunham acerca
da nomeação e do procedimento que deveria ser observado por Giraldes
ao tomar posse do Governo-Geral, na Bahia, onde vinha substituir a junta
governativa formada pelo bispo de Salvador, pelo ouvidor-geral e pelo
13– Utilizamos a periodização proposta por Wehling (2005:17), que distingue três fases
distintas dentro do período da União Ibérica: a reativa, que se estende de 1580 até 1599,
entendida como uma fase preliminar; a proativa, que iria do início do século XVII ao
ano de 1623, visto como um momento de aprofundamento da dominação Habsburgo; e
a defensiva, que se estenderia até o final do período de união das Coroas ibéricas, sendo
marcado pela crise que convulsionava o sistema político espanhol. Deve-se ressaltar que
existem outras possibilidades de periodização, como, por exemplo, a sugerida por Joaquim Veríssimo Serrão, que divide o período em duas fases, porém entendemos que a
enunciada por Wehling se encontra mais de acordo com nossa perspectiva de análise.
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provedor-mor, a quem o rei havia entregue a administração após o falecimento do governador Manuel Teles Barreto.
As ordens ratificavam a Bahia como local de residência do governador-geral e determinavam que todas as informações referentes à transmissão do cargo fossem anotadas no livro da Câmara de Salvador. Devia
fazer-se constar também no livro uma “declaração do estado em que ao
tal tempo estiverem as fortalezas e povoações das ditas partes, e os navios, artilharia, armas e munições que nelas há” (Regimento de Francisco
Giraldes, in Mendonça, t. 1, 1972:259). Esse assento registrava em que
condições o governador ou, no referido caso, a junta de governo, entregava a seu sucessor a administração da capital da América portuguesa,
tendo como principal foco as questões relacionadas à posse da terra e,
por consequência, sobre os meios necessários para sua defesa e segurança. Através dessa determinação, é possível perceber a importância que a
capitania da Bahia, bem como sua conservação e segurança, possuía no
final de década de 80 do século XVI.
Essa preocupação com a defesa da Bahia aparece novamente no capítulo 25 do regimento, no qual se estabelecia que o governador somente
poderia ausentar-se da capitania sede do governo quando estivesse seguro de que ela possuía os recursos humanos e materiais necessários para
manter-se em segurança.
O governador-geral vinha acompanhado de 150 soldados, que serviriam na defesa da cidade de Salvador. Esses homens podiam também ser
utilizados nos navios que guardavam a costa, conforme o entendimento
do governador sobre o que seria mais conveniente para defesa da América.
Além disso, no regimento de 1588, há uma ordem, que determinava
aos governadores-gerais que, em vista da necessidade de se ter na capitania da Bahia homens que soubessem manejar, aparelhar e fazer uso de
armas, tinha-se que em
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
todos os domingos e dias santos, que a igreja mandar guardar, fareis
ir o condestável e os mais bombardeiros que houver na cidade do Salvador, para ensinarem e adestrarem os que quiserem aprender [...] e
depois forem destros em saberem aparelhar e atirar com uma peça
de artilharia, e tiverem continuado tantos dias e barreira e aprendido o mais que convém que saibam, [...], os fareis examinar pelo dito
condestável e mais bombardeiros que na dita cidade houver. (ibidem:
272-273)
De acordo com o documento, as pessoas que fossem julgadas aptas
pelo exame, a servirem como bombardeiros, que não poderiam exceder o
número de cem, teriam seus nomes escritos em livro, que ficaria na posse
do escrivão, onde estariam declarados
se são casados, se solteiros, e dos lugares onde forem moradores, e
do tempo em que forem examinados; e depois [...] lhes passareis suas
cartas de exame, e assim dos privilégios concedidos aos bombardeiros
que se fazem nesta cidade de Lisboa, [...], os quais privilégios serão
guardados às ditas pessoas, nas ditas partes do Brasil somente. (ibidem: 273)
O rei ordenava ao governador-geral que fosse, sempre que possível,
assistir ao exercício dos bombardeiros, tendo em vista que a sua presença
servia de estímulo para os que quisessem aprender. Embora se afirmasse
que aqueles que desejassem ser instruídos poderiam exercitar-se, caberia
ao governador-geral verificar se os interessados possuíam a idade, a disposição e outros requisitos necessários14. Da mesma forma, os exames
para selecionar os bombardeiros só seriam realizados com a presença do
governador, para que este verificasse, pessoalmente, se os mesmos estavam sendo feitos de forma correta.
No terceiro capítulo, o documento entregue a Francisco Giraldes dispunha sobre a forma como deveriam ser tratados os indígenas, apontando
para necessidade de buscar sempre favorecê-los, visando tê-los, a todo
tempo, sempre pacíficos. Dessa maneira, pretendia-se evitar a ocorrência
de distúrbios internos.
14– Não há maiores explicações sobre quais seriam os requisitos em questão.
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Dentro desse contexto, portanto, não podemos deixar de apontar
para a importância de que se revestiam as questões relacionadas com a
segurança interna e externa da América, tal qual disposto no regimento
de 1588. Essa afirmação baseia-se no cotejo dos três primeiros capítulos
do regimento, que abordam respectivamente a segurança da Bahia e das
demais capitanias, tanto no âmbito interno – daí a preocupação com os
indígenas – quanto no externo – perceptível no cuidado que o governador
deveria ter com o estado de conservação das fortalezas e de seu aparelhamento –, mostrando a importância que essas matérias possuíam dentro do
rol de atribuições do governador-geral.
Nesse sentido, o regimento dispunha que, na Bahia, o governadorgeral tinha que saber
se as armas do armazém da dita capitania, [...] estão limpas e bem
tratadas [...] e havendo algumas que não sejam para servir, por estarem danificadas, as fareis consertar e reparar o melhor que puder ser.
(ibidem: 261)
No tocante ao relacionamento com os governadores das outras capitanias, as ordens passadas a Giraldes eram bastante semelhantes às
existentes no primeiro regimento do Governo-Geral. Cabia ao governador informar sobre sua chegada à terra, devendo também solicitar que
lhe fossem dadas notícias da situação de cada capitania, as quais deviam
mencionar se precisavam de algum tipo auxílio, fosse de gente ou de
munições.
As ordens passadas pelo governo metropolitano estabeleciam que
o governador ao prestar auxílio às capitanias devia observar o papel que
cada uma possuía dentro do contexto americano. Essa recomendação indica que a administração portuguesa reconhecia a existência de capitanias mais importantes do que outras e que, por sua importância, diante da
ocorrência de alguma ameaça, deveriam ser socorridas pelo governador
com maior brevidade. Embora não se explicitem os aspectos que determinavam a hierarquização dessa importância, parece possível afirmar, com
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certa segurança, que as questões de ordem econômica estavam entre as de
maior significação.
No capítulo 50 do regimento entregue a Giraldes, ordenava-se ao
governador-geral que se fizesse cumprir e observar o disposto nas normas
regimentais. Devia ainda o governador escrever ao monarca, com minúcias de detalhes, acerca dos moradores que havia na cidade de Salvador
e nas demais localidades da capitania, informando ainda sobre os navios
que se encontravam no porto – pertencentes ao rei ou a outras pessoas –,
bem como das armas, artilharia e munições existentes nos armazéns. Esse
relato precisava também conter informações acerca dos moradores e das
embarcações existentes nas demais capitanias da América portuguesa.
Para os casos não previstos dentro do escopo do regimento, determinava-se ao governador que antes de tomar qualquer decisão, ele se
reunisse com o bispo, o chanceler da Relação, o provedor-mor e demais
oficiais, bem como com qualquer pessoa, que com seu conhecimento e
experiência pudesse lhe dar alguma contribuição, para discutir a questão
e tomar deles seus pareceres sobre a mesma. Quando as opiniões fossem
distintas da sua, o governador tinha autorização para agir conforme seu
próprio entendimento. Nesse caso, porém, devia escrever ao rei relatando
os pareceres dados e o que de fato havia sido feito.
Dois aspectos desse capítulo nos chamam a atenção: primeiro, a
menção à existência de assuntos que, pela sua importância, podiam ser
tratados em segredo, devendo ser discutidos somente com aquelas pessoas que o governador-geral julgasse conveniente.
Segundo, é a referência à participação do bispo nas discussões sobre
questões administrativas, que não fossem previstas no regimento. A participação de um membro da Igreja na discussão de assuntos referentes à
administração laica torna-se ainda mais interessante de ser observada, se
examinada em conjunto com outra disposição de regimento de 1588, que
estabelecia como tarefa do governador-geral ter “sempre conformidade
com o bispo daquele Estado, e toda boa correspondência” (ibidem: 265).
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O governador não devia imiscuir-se na jurisdição eclesiástica e nem permitir a intromissão do bispo em assuntos referentes à autoridade régia, a
não ser nos casos previstos pelo regimento. No mais, a consulta ao bispo
não pode ser caracterizada como intromissão na jurisdição alheia, pois
além de fazer parte das normas regimentais do governador-geral, tratavase apenas de um parecer que podia ser seguido, ou não.
A preocupação, em regular o relacionamento entre a principal autoridade régia e sua congênere religiosa, pode ser atribuída, ao menos
em parte, ao difícil relacionamento e à consequente disputa de jurisdição
existente entre ambos, do que são os exemplos mais flagrantes os episódios ocorridos durante o governo de Duarte da Costa.
Além disso, no regimento de 1588, estabelecia-se que o governadorgeral podia, caso vagassem alguns cargos e ofícios da administração, colocar nesses postos pessoas indicadas por ele. Elas serviriam pelo menos
até que o rei dispusesse o contrário. Tal medida é bastante significativa do
maior poder que se conferia ao governador-geral, que passava a exercer
um papel, que, por princípio, pertencia ao rei, qual seja, o de prover os
postos da administração, ainda que necessitasse da aprovação do monarca.
Outro aspecto a destacar refere-se ao fato de que, no regimento de
Giraldes, mencionava-se que o rei havia mandado consultar aquele, que
fora passado a Manuel Teles Barreto, para verificar o que havia sido encarregado a esse governador. Como não havia obtido êxito, o monarca
mandava que Giraldes, após chegar à América, recolhesse o “dito regimento e todas as mais provisões que levou, que devem estar em seus papéis, em poder de seus testamenteiros” (ibidem: 276). Encontrando coisas
que ainda estivessem por ser feitas, devia tomar os procedimentos para
concluí-las, exceto nos casos em que houvesse ordens contrárias ao regimento de 1588, nos quais se devia observar esse último15.
15– Tal orientação nos mostra que os regimentos eram compostos por ordens de natureza
distinta. De um lado existiam as diretrizes mais gerais, que diziam respeito a jurisdição do
cargo, bem como de suas obrigações; de outra, encontramos orientações mais específicas,
que visavam a atender necessidades prementes da administração da América portuguesa.
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Através do exame do documento de 1588, é possível verificar que a
administração metropolitana tinha a intenção de tornar mais ágil a comunicação entre as capitanias e a sede do governo. Para atingir tal objetivo,
o governador-geral deveria tratar, com as câmaras das capitanias, a construção de pequenas embarcações que possibilitassem, quando houvesse
necessidade, um rápido contato entre ambos, tornando possível ao governador atender, com maior brevidade, às “necessidades e casos que na
ditas capitanias sucederem” (ibidem: 257).
No regimento dado a Francisco Giraldes, encontramos também reiterada a ordem para que o governador partisse em viagem às outras capitanias. De acordo com essas orientações, o governador devia ir primeiramente àquelas que tivessem maior necessidade de serem visitadas, tendo
que se informar se os índios vizinhos às povoações se encontravam rebelados, podendo proceder, conforme seu entendimento, para restabelecer a
paz, buscando assegurar também que “ao diante se não tornem a levantar
[os indígenas].” (ibidem: 267)
Ao visitar as outras capitanias, o governador-geral devia reunir-se
com o provedor, o capitão, o ouvidor, e com os demais oficiais de Justiça
e Fazenda existentes em cada uma delas, para discutir com eles acerca do
governo e da defesa da terra, tendo autorização para proceder conforme
julgasse mais conveniente, caso algo encontrasse em desacordo com seu
entendimento. Importante destacarmos que as instruções passadas a Giraldes não mais previam a participação dos principais da terra nessas discussões, como disposto anteriormente no regimento de Tomé de Sousa.
No documento de 1588, renovava-se também a orientação para que
fossem erigidas cercas defensivas no entorno das povoações, devendo-se
observar também sua conservação, fazendo para tanto os devidos reparos.
O intuito que perpassa essa determinação é de que as povoações tivessem
condições de resistirem por si próprias a eventuais ataques, sem a necessidade de se recorrer ao auxílio das forças e recursos da Coroa. Nesse
mesmo sentido, mantinha-se a ordem para que os capitães, os senhores de
engenho e os demais moradores da terra mantivessem-se armados à sua
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própria custa. Essa matéria era apresentada a Francisco Giraldes como
de muita importância à defesa e segurança das capitanias do Estado do
Brasil.
Se, após a visita do governador às capitanias, ocorresse alguma
questão entre os índios, ou entre os colonos, ou entre ambos, poderia ele
intervir, se lhe parecesse que o assunto era suficientemente importante
para tal. Era-lhe facultado inclusive, na impossibilidade de ausentar-se da
Bahia, enviar para isso o ouvidor-geral ou qualquer outra pessoa de sua
confiança, ao qual seria entregue um regimento em que estaria especificado o que deveria ser executado.
A defesa da costa
As ordens passadas ao governador-geral, em 1588, mostram que os
problemas relacionados com a defesa da costa e das povoações permanecia sendo um foco de dificuldades para a administração da América portuguesa. Nesse sentido, o monarca, buscando evitar a “opressão que meus
vassalos [...] recebem dos corsários que continuam àquela costa” (ibidem:
262), ordenava a construção de algumas embarcações, que pudessem dar
combate aos corsários.
Diferentemente do regimento de Tomé de Sousa16, o documento passado a Giraldes não previa a exigência de licença do governador para
construção de quaisquer embarcações, nem previa a dispensa de benefícios àqueles que desejassem construí-las. O novo regimento estabelecia
que os barcos fossem feitos por conta da Fazenda Real, ou através de um
contrato, caso houvesse pessoas com recursos suficientes para construírem as embarcações.
A preocupação com a guarda do litoral é possível de ser percebida
também no capítulo 37 do regimento de Giraldes, no qual se encontravam renovadas as ordens para que os capitães das capitanias, ao saberem
da presença de corsários à costa, avisassem prontamente ao governador16– Uma vez mais, remeto a minha dissertação de mestrado.
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geral. O combate ao corso devia ser comandado pelo próprio governador,
ou então por uma pessoa de “tal qualidade, recado e confiança” (ibidem:
272), que receberia um regimento assinado pelo mandatário régio, no
qual estaria assentado o que era preciso fazer.
Ao contrário do documento de 1548, o regimento de 1588 não dava
permissão aos capitães das capitanias de irem eles próprios combaterem
os corsários. Gostaríamos de destacar também que as ordens dadas a Giraldes previam que ele poderia, ante a ameaça corsária, lançar mão de
todos os navios que estivessem no porto da Bahia, fossem eles do rei
“como de partes” (idem), no que entendemos encontrar uma menção à
possibilidade do governador utilizar-se, se necessário fosse, de embarcações de particulares para defesa da América.
Além disso, o exame do documento de 1588 mostra que o ofício
de capitão-mor não era mais um cargo efetivo, mas apenas uma titulação dada àquele que o governador escolhesse para combater os corsários,
caso ele próprio não pudesse fazê-lo.
Pelo disposto no 12º capítulo, podemos perceber uma maior preocupação, por parte do governo metropolitano, com o trecho da costa da
América compreendido entre a Bahia e a Paraíba. As embarcações mandadas construir pelo rei deviam ficar permanentemente guardando essa
faixa do litoral, podendo também servir nas demais localidades, conforme o governador-geral entendesse necessário.
Assim, se a defesa da costa era assunto de importância para a administração, que, nesse sentido, ordenava ao governador providenciar a
construção de embarcações, as normas do regimento demonstram também que o governo português tencionava diminuir seus custos com tal
tarefa, buscando dividi-los com os senhores de engenho. Dessa forma, o
governador-geral tinha ordem para solicitar aos donos de engenho que
acudam com mantimentos necessários para os soldados marinheiros
[...] trabalhando de os persuadir venham nisso por sua vontade, significando-lhes que o que principalmente me moveu a mandar armar
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estes navios, foi, para com isso, se segurarem suas fazendas. (ibidem:
262)
A arrecadação dos mantimentos ficava a cargo das câmaras, onde
devia existir um livro, no qual estava indicado a quantidade com que cada
um tinha que contribuir, bem como aquilo que já havia sido entregue por
cada qual. Importante ressaltarmos que, por conta da não existência de
documentos que forneçam maiores detalhes sobre o período de governo
de Giraldes, bem como pela ausência de tal dispositivo em outros regimentos, não podemos precisar a aplicabilidade de tal norma. Esta, no
entanto, indica a intenção da metrópole em diminuir seus gastos com a
administração do território português, buscando o envolvimento e o comprometimento dos moradores da terra, utilizando-se como elemento justificador que, ao assim fazerem, não resguardavam somente o patrimônio
régio, mas o seu próprio.
Através da análise do regimento, podemos ver quão problemático
era o recrutamento de pessoas dispostas a servir nas embarcações responsáveis pela defesa da terra. Por isso, o governador podia, caso não
houvesse voluntários que quisessem servir sem receber soldo, pagá-lo
às pessoas pelo tempo em que estivessem servindo nas embarcações. O
soldo pago tinha que ter o mesmo valor do “que se costuma dar aos que
servem [...] [nas] armadas [régias].” (ibidem: 272)
Apesar disso, conseguir homens para os navios não devia ser tarefa
das mais exequíveis, pois o regimento previa ainda que o governador-geral prendesse os negros, que se encontravam rebelados e os colocassem,
junto com os índios tomados em guerra justa17, para compor a tripulação
dos barcos que serviriam à defesa da costa americana. Caso isso não fosse
possível o governador poderia
mandar um navio com tantos mantimentos da terra [para] Angola,
com que se possam resgatar até duzentos escravos para estas galeotas;
17– A guerra justa, de acordo com Francisco Ribeiro da Silva, era aquela efetuada com licença do rei ou do governador, ou ainda “quando fosse justificada por razões de prevenção
da antropofagia tentada contra portugueses ou outros índios.” (Silva, in Silva, 2000:17).
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
e isto, por uma vez somente; e daí em diante, ordenareis que os gentios
e negros que forem presos por casos que mereçam serem degredados
para essas galeotas, se sentenciem para elas, para que, de uma maneira
e outra lhes não possa faltar chusma [isto é, a tripulação] necessária.
(ibidem: 263)
Os setores marginalizados
Nossa concepção sobre os setores marginalizados pauta-se na proposta enunciada por Arno Wehling (1986). O autor utiliza tal expressão
para referir-se ao grupo constituído por aqueles que possuíam um tratamento diferenciado por parte da Coroa portuguesa devido, por exemplo,
à fé que professavam ou à cor de sua pele. Portanto, de acordo com este
autor, podemos incluir nesse segmento os indígenas, os negros, as minorias – cristãos-novos e ciganos – que fugiam à ortodoxia oficial, que
não era simplesmente religiosa, e também loucos, mendigos, prostitutas,
portadores de doenças contagiosas, entre outros.
A situação de marginalização desses grupos era produto da própria
legislação portuguesa, que através do estabelecimento de dispositivos legais específicos procurava regular e controlar os mesmos, vedando, por
exemplo, o acesso de cristãos-novos a determinados cargos, ou dispondo,
através de diversas normas, acerca da liberdade ou da escravização de
indígenas e africanos.
Os negros, os mamelucos e os cristãos-novos são mencionados pela
primeira vez nas instruções entregues a Francisco Giraldes. No que diz
respeito aos últimos, importa perceber que o regimento de 1588 é o único,
dentre todos os documentos passados aos governadores, que prevê medidas restritivas à presença deles na América portuguesa. O governadorgeral tinha ordem para, caso encontrasse cristãos-novos vindos do reino
sem a devida licença para fazer tal viagem, prendê-los e mandá-los de
volta ao reino. No entanto, como essa determinação encontrava-se reproduzida somente nesse regimento, não há elementos suficientes para
precisar sua aplicação concreta.
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Wilmar da Silva Vianna Júnior
No regimento de Giraldes, encontramos renovada a ordem, segundo
a qual o governador-geral tinha que ter grande atenção com a conversão
dos nativos, devendo inclusive manter o monarca sempre informado dos
assuntos referentes a essa matéria. Reiterava-se também a disposição que
previa a entrega de terras aos índios que se convertessem, para que pudessem obter os meios necessários para cultivar seus alimentos. Além
disso, o rei estabelecia que os convertidos estariam isentos de pagar o
dízimo por um período de quinze anos. O governador devia observar o
cumprimento da provisão real acerca da liberdade dos índios18, exigindo
dos outros governadores a obediência a tais disposições.
Importante observarmos que a questão da conversão dos nativos recebe, no regimento de 1588, maior destaque do que no documento entregue a Tomé de Sousa, no qual aparecia apenas no capítulo 23 das normas
passadas a esse governador, embora fosse ressaltado seu caráter como
principal móvel da colonização portuguesa na América. No regimento
de Giraldes, a conversão dos indígenas é a quinta matéria abordada, dando-se ênfase à necessidade de se favorecer aqueles que se fizessem cristãos e evitar que os portugueses cometessem qualquer abuso contra eles.
Previa-se inclusive, como apontado nos parágrafos anteriores, a dispensa
do dízimo para que entendessem “que em se tornarem cristãos não tão
somente fazem o que convém à salvação de suas almas, mas, ainda a seu
remédio temporal” (Regimento de Francisco Giraldes, in Mendonça, t. 1,
1972:260).
Nesse sentido, o governador-geral, pelo disposto no regimento de
1588, tinha também por obrigação procurar favorecer os religiosos que
se ocupavam da conversão dos indígenas. Destaca-se, no documento, a
ação missionária dos padres da Companhia de Jesus, “como principiadores desta obra, em que há tanto tempo continuam” (ibidem: 261), tendo o
18– A provisão passada por Felipe II, em 1587, e confirmada em 1605, por Felipe III, revogava a lei sebastiânica e estabelecia que em nenhuma circunstância os índios pudessem
ser feitos cativos, prevendo inclusive que todos fossem libertos. A única exceção era no
caso de serem capturados em guerra, ordenada pelo próprio monarca.
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
governador ordem para atendê-los no que fosse necessário, cuidando para
que os referidos padres recebessem o correto pagamento.
Pela análise do regimento de 1588, podemos apreender que o entendimento dos portugueses com relação aos indígenas tomava como referencial “o relacionamento amistoso ou hostil no processo de colonização”
(Wehling & Wehling, 1999:97). Ou seja, os grupos que não ofereciam
resistência aos portugueses eram tidos como amigos e, portanto, úteis à
povoação e defesa da terra; já os que se constituíam como óbices à ação
colonizadora da Coroa portuguesa eram considerados bárbaros e prejudiciais ao desenvolvimento da terra e, dessa forma, podiam ser eliminados.
Dentro dessa lógica pragmática podemos entender as orientações
para que o governador trabalhasse para ter e manter relações cordiais
com os indígenas que habitassem as terras vizinhas à capitania da Bahia.
Acreditava-se que essa atitude serviria como um exemplo para as demais
populações nativas, funcionando também como um facilitador no que
diz respeito à atividade de catequese. Além disso, entendia-se que a conservação da paz garantia que os índios estivessem sempre “domáveis e
pacíficos, para com mais seguridade os portugueses aproveitarem e granjearem suas fazendas” (Regimento de Francisco Giraldes, in Mendonça,
t. 1, 1972:261).
Vale destacar que, embora o regimento previsse a possibilidade de
negociação entre o governador e os nativos, para buscar garantir a paz,
não podia o primeiro abrir mão de ter os índios sujeitos e obedientes,
como se entendia conveniente. Da mesma forma, caso ocorresse algum
levante, o governador-geral devia agir com cautela, utilizando a força somente quando se esgotassem todos os outros meios. Não devia, contudo,
permitir que lhe fosse posta em xeque sua autoridade ou reputação.
No capítulo 17 do documento de 1588, encontramos mais uma determinação que mostra a preocupação da administração metropolitana
com o tratamento dispensado aos indígenas, buscando-se evitar que lhes
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Wilmar da Silva Vianna Júnior
fossem feitas “as moléstias e injustiças que recebiam nas entradas que até
aqui se fizeram” (ibidem: 264). Ao relatar o pedido feito por um grupo
indígena, os tapuias, ao governo interino, que substituiu Manuel Teles
Barreto, no qual os primeiros pediam autorização para deixar o sertão,
isto é, o interior, para virem habitar nas proximidades da cidade da Bahia,
o monarca determinava que o governador-geral tivesse atenção para que
se observasse, com todos os indígenas que manifestassem a mesma intenção, o mesmo que fora feito com os tapuias. Estes foram trazidos do
sertão pelos padres da Companhia de Jesus, a quem, no entender do rei,
deveria continuar cabendo tal tarefa.
Toda essa atenção que o monarca solicitava ao governador no tocante a essa matéria é perpassada pelo mesmo princípio utilitarista e pragmático que observamos em outras normas existentes no regimento sobre o
relacionamento com os indígenas. Nesse caso, o cuidado com os tapuias
devia-se ao fato de que através deles os portugueses tinham acesso ao
salitre, substância que era de muita importância, pois servia à produção
de pólvora. Inclusive, no regimento, relatava-se que os indígenas, quando
deixaram o sertão rumo a Bahia, foram orientados a virem carregados de
salitre. Por isso, ao justificar a aceitação do pedido dos nativos em habitarem junto à sede do Governo-Geral, apresentam-se dois argumentos: o
primeiro, ligado obviamente à questão religiosa, e o outro, de caráter mais
pragmático, relacionado ao fato de que dessa forma poderiam os portugueses ter acesso ao salitre existente na região.
Por outro lado, as ordens passadas a Francisco Giraldes informavam
que ele devia dar especial atenção à localidade de Jaguaripe, situada entre
as capitanias de Pernambuco e Bahia. No local indicado, habitavam
mais de três mil índios que se têm feito fortes, e fazem muitos insultos
e danos nas fazendas de meus vassalos daquelas partes, recolhendo a
si todos os negros de Guiné que andam alevantados e impedem poderse caminhar por terra de umas Capitanias a outras (ibidem: 264).
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
O governador tinha ordem para combater a Santidade de Jaguaripe , como ficou conhecido esse movimento revoltoso, devendo retirar
dos índios a posse daquelas terras, aplicando-lhes o devido castigo, pelos
inconvenientes e mortes causadas. Antes de agir, no entanto, o governador-geral tinha que se reunir com o bispo, e com outras pessoas, que
segundo seu entender, por seu conhecimento, poderiam ser-lhe úteis, para
acertarem o modo de como proceder contra os revoltosos “com menos
risco de gente portuguesa, e mais a vosso salvo” (idem). Esse procedimento deveria ser observado sempre que ocorresse um levante indígena,
no qual não fosse possível utilizar-se de outro meio para pacificação, que
não o uso da força.
19
As disposições acerca do estabelecimento dos dias de feira, bem
como da necessidade de se obter uma licença junto ao governador para
ir comerciar com os indígenas fora das datas previamente establecidas,
encontravam-se renovadas nas ordens passadas a Giraldes, em 1588. O
estabelecimento das feiras se fazia necessário para se evitarem “os inconvenientes que se seguem e podem seguir, dos cristãos irem às aldeias
tratar e negociar com [os indígenas]” (ibidem: 270). Os que desejassem
ir até as aldeias para comprar algo aos nativos deveriam conseguir uma
autorização junto ao capitão da capitania, que poderia dá-la a quem e
quando melhor lhe parecesse conveniente. Essa determinação, que devia
ser conhecida em todas as povoações da América portuguesa, previa também que aqueles que a desobedecessem fossem punidos.
Devemos sublinhar que o regimento de 1588 não mais permitia aos
senhores e moradores do engenho a possibilidade de irem negociar com
os indígenas, únicos que tinham autorização para fazê-lo a qualquer tempo, como disposto nas ordens passadas a Tomé de Sousa. Distinto também é o tratamento dispensado aos que infringissem essa determinação,
pois o regimento de 1548 não previa a punição para os que fossem tratar
com os índios fora dos dias de feira, sem a autorização do governador ou
dos capitães das capitanias.
19– Sobre a Santidade de Jaguaripe ver a clássica obra de Ronaldo Vainfas A heresia dos
índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial.
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O regimento de Giraldes mantinha também a proibição segundo a
qual os moradores da terra não poderiam adentrar o território, nem ir de
uma capitania para outra, por terra, sem ter para isso recebido a devida licença do governador-geral, ou do capitão da capitania20. Dispunha
também que a licença, na qual devia vir indicada os lugares aos quais se
poderia ir e o tempo que para isso gastariam, podia ser dada somente a
pessoas que se soubesse que iriam “com bom intento e a bom recado, e
que de sua ida e trato não se seguiria prejuízo algum” (ibidem: 271).
De acordo com o exposto nas ordens dadas a Giraldes, desde o regimento de Duarte da Costa previa-se que o conteúdo desse capítulo fosse
notificado em todas as capitanias da América portuguesa, e registrado
nos livros das câmaras. Isso deveria ser feito para que a todos fosse dada
ciência das proibições existentes, devendo-se, portanto, observar seu
cumprimento, bem como a execução das punições aos faltosos. As penas
– açoite, se fosse peão, e multa de 20 cruzados para pessoas de melhor
qualidade – eram aplicáveis não somente para os que viajassem sem a licença, mas também para aqueles que possuíam esse documento, mas não
cumpriam o que nele se encontrava estabelecido.
Segundo Francisco Ribeiro da Silva, a lei proibindo a ida dos colonos pela terra adentro, para capturarem índios para serem usados como
escravos, teria sido promulgada em 20 de março de 1570 (Silva, in Silva,
2000:17). Pela análise dos documentos, no entanto, podemos verificar
que a proibição dos portugueses partirem em expedições ao interior e
fazerem guerra aos índios sem licença para tal, já existiam desde o regimento passado a Tomé de Sousa, em 1548.
O governador-geral, seguindo as leis e Ordenações do Reino, devia
observar a proibição de se darem quaisquer tipos de armas a mouros e a
outros infiéis. O governador devia observar que nas devassas feitas anualmente, a cargo dos juízes existentes em cada localidade, também se
20 – Na ausência de ambos tal documento podia ser obtido junto ao provedor da Fazenda.
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
inquirisse sobre essa matéria. Os culpados, segundo o estabelecido no
regimento de 1588, deveriam ser mortos e perderiam todos os seus bens.
O regimento de 1588 autorizava o governador-geral a perdoar as
culpas que tivessem os mamelucos, desde que não fossem elas graves.
Segundo Vainfas (2000:365), apesar de não se saber ao certo a origem
da palavra, mameluco “designava o [...] filho de português com índia ou
filho de um casal em que o pai ou a mãe era já mameluco”. Os regimentos
não nos fornecem maiores informações acerca dos motivos que teriam
levado a decisão de se perdoar os mamelucos que tivessem cometido pequenos delitos, no entanto, podemos conjeturar que essa determinação
esteja relacionada ao fato de que eles
não apenas caçavam escravos, mas adentravam os “sertões” em busca
de metais preciosos, traficavam com as aldeias [...] se moviam com
destreza nas matas, enfrentavam moléstias com o conhecimento indígena das ervas, combatiam índios hostis com os segredos dos próprios
nativos. (ibidem: 366)
De acordo com Francisco Carlos Cosentino, a disposição referente
aos mamelucos foi acrescentada ao regimento de Giraldes cerca de 20
dias depois da elaboração do documento. Ainda segundo esse autor, sua
inclusão no rol de obrigações do governador-geral relaciona-se ao papel
dos mamelucos enquanto “elementos de grande importância para a penetração e defesa do território” (2005:133), daí a necessidade de se utilizar
um dispositivo flexível que facultasse ao governador o direito de perdoar
alguns delitos. Aqui também podemos observar o pragmatismo português, uma vez que o perdão aos mamelucos era uma forma de entrosá-los
com os portugueses, que precisavam do conhecimento que eles tinham
acerca dos obstáculos e das riquezas possíveis de serem encontradas no
interior do território americano.
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Sobre as mercês e a prática administrativa
No regimento de 1588, o monarca autorizava o governador a conceder mercê até a quantia de mil cruzados21 a quaisquer pessoas que servissem nas terras do Brasil. Os que anteriormente governaram a América,
segundo o documento entregue a Giraldes, não podiam dar mais do que
duzentos cruzados em mercê. Importa observar, no entanto, que o regimento de Tomé de Sousa previa o limite de cem cruzados a ser despendido com essa finalidade. Demonstrava, assim, que, posteriormente a 1548,
a quantia já havia sido aumentada em, pelo menos, uma ocasião.
Através da leitura do documento, verifica-se que o monarca tencionava obter um maior controle sobre as pessoas agraciadas com as mercês
remuneratórias. Nesse sentido, mandava o governador-geral fazer uma
lista, na qual deveria constar o nome e o motivo pelo qual se concedia a
mercê.
A lógica do serviço adquiria no regimento de Giraldes uma forma
mais clara e estrutura. Pela leitura de alguns capítulos, principalmente os
de número 51 e 52, percebe-se a intenção de buscar o envolvimento dos
moradores da terra no serviço régio. Dessa maneira, o governador tinha
que cuidar para que as mercês remuneratórias precedessem “sempre da
sua parte [ou seja, dos moradores] serviços e merecimentos” (Regimento
de Francisco Giraldes, in Mendonça, t. 1, 1972:277).
Além disso, o monarca determinava ao governador-geral que desse
informações aos moradores que o relatório sobre os serviços prestados seria encaminhado para o despacho real, pois entendia-se que, desse modo,
se incentivaria que as ações fossem feitas “com o cuidado e diligência que
convém” (ibidem: 277).
21– De acordo com Antônio Hespanha, a quantia de mil cruzados seria uma soma bastante significativa, “muito mais elevada do que um salário anual de um desembargador”. Cf.
Hespanha, in Fragoso, Gouvêa, Bicalho, 1111:176.
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
Dos poucos registros existentes sobre a prática administrativa dos
governadores-gerais, para as últimas décadas do século XVI, encontramos alguns que merecem ser aqui comentados, por sua relação com a
temática central deste artigo. No primeiro deles, encontramos referência à participação dos indígenas na defesa da Bahia, capitania sede do
Governo-Geral, em 1587, quando a mesma foi atacada por corsários ingleses. Segundo os relatos de época, os índios aldeados, que se encontravam sob supervisão dos religiosos da Companhia de Jesus, teriam sido os
primeiros a apresentar-se em defesa da cidade. A menção a esses índios
encontra-se nos Trabalhos dos primeiros jesuítas no Brasil, na qual também se faz referência ao fato de que as guerras, que então eram travadas,
eram sustentadas “com os seus mantimentos e armas” (apud Varnhagen,
t. 2, 1956:82), ou seja, dos indígenas.
Outros documentos, estes da época em que Francisco de Sousa era
governador-geral (1591-1602), corroboram nossa ideia de que se o regimento passado a Francisco Giraldes não foi aplicado de maneira imediata, as diretrizes, que ele continha, serviram para orientar a ação dos
governadores que lhe sucederam no cargo.
O florentino Baccio de Filicaya, que recebeu de Francisco de Sousa o
cargo de capitão de artilharia e engenheiro-mor, informava, em carta para
o grão-duque da Toscana, Ferdinando I, ter visitado todas as capitanias
do Estado do Brasil, acompanhando o governador-geral e trabalhando
na restauração de algumas fortalezas, bem como na fortificação dos portos. Além disso, mencionava ter, como capitão de artilharia, exercitado
os bombardeiros e cuidado do acondicionamento das peças de artilharia
(Carta de Baccio Filicaya ao Grão-Duque Ferdinando I, in ibidem: 85). O
florentino relatava também sua participação, durante o governo de Diogo
Botelho, nas lutas dos portugueses contra os indígenas que habitavam as
regiões próximas aos rios Maranhão e Amazonas, ocorridas em 1604. Um
dos aspectos que se destaca, em suas cartas, era sua compreensão acerca
dos mecanismos utilizados pela monarquia portuguesa na condução de
seus negócios. Dessa forma, Filicaya dizia saber que os soldos pagos pelos reis portugueses aos seus homens eram muito pequenos, porém, era
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Wilmar da Silva Vianna Júnior
generosa a remuneração aos serviços prestados à Coroa. Por esse motivo,
dizia ele que “determinei desde logo fazê-los à minha custa, para obrigar mais S.[ua] M.[ajestade] a remunerar-me os meus trabalhos” (ibidem:
86).
Tais fatos permitem não apenas enfatizar a ideia de que a lógica do
serviço era um dos pilares de sustentação do edifício sobre o qual se assentava a administração colonial, mas também sublinhar que as pessoas,
ou pelo menos algumas delas, tinham para si, de maneira bastante clara,
o que era preciso fazer para obter da Coroa aquilo que desejavam. Em
outras palavras, a execução dos serviços régios, mais do que atitudes tomadas em defesa dos interesses do rei, por um princípio de lealdade e
fidelidade a ele, eram ações realizadas à espera do reconhecimento real,
que, geralmente, se dava através da distribuição de mercês.
Faz-se ainda necessário tecermos algumas considerações, resultantes do diálogo com o estudo de Francisco Carlos Cosentino que, entre
outros aspectos sobre o Governo-Geral, examina também os regimentos
passados aos mandatários do cargo.
Cosentino constata em seu trabalho que o regimento de Giraldes não
apresentava novidades no que se refere à ampliação da presença portuguesa na América, quando comparado ao documento entregue a Tomé
de Sousa. Sua afirmação busca sustentar seu raciocínio de que as ordens
dadas a Giraldes e a Tomé de Sousa representavam as mesmas preocupações e prioridades. Como o próprio autor, porém, em outra parte de seu
trabalho reconheceu, os regimentos confeccionados no período de união
das Coroas ibéricas
retratam as preocupações nascidas das mudanças na política internacional seguida pelos portugueses na União Ibérica. [...] São novas
orientações que, inicialmente, fizeram parte do regimento de 1588 e
que se repetiram nos dois outros governadores do período filipino.
(Cosentino, 2005:129-130)
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O Governo-Geral no tempo dos Felipes (1580-1588)
Nesse sentido, embora concordemos com Cosentino na apreciação
de que as ordens dadas a Giraldes não traziam propostas de expansão da
presença portuguesa na América, conseguimos perceber que tal ausência
é um dado da conjuntura, na qual os portugueses enfrentavam dificuldades em assegurar a posse do território americano sob seu domínio.
Além disso, se os outros regimentos do período filipino tratavam da
ampliação da ação portuguesa, eles nunca deixaram de fazer referência a
medidas relacionadas à posse do território. Em outras palavras, segundo
nossa compreensão, o que se pode constatar a partir da análise do regimento de Gaspar de Sousa, é um dado da complexificação do processo
de colonização, no qual após conseguir garantir, ainda que em bases não
muito sólidas, a conservação da conquista, partia-se para uma outra etapa,
na qual se buscava o alargamento da ação colonizadora.
Por fim, ao tratar das questões relativas ao trato com os indígenas,
Francisco Carlos Cosentino afirma que os regimentos do período filipino incorporaram diversos elementos da experiência castelhana com essa
matéria, buscando “dar atenção à promoção da catequese, resguardando
os privilégios que foram concedidos aos indígenas, não permitindo que
se lhe fizessem agravos ou vexames” (ibidem: 131). Apesar da legislação
sobre os indígenas, principalmente sobre sua liberdade, alcançar, durante
o período de união das Coras ibéricas, maior relevância, não podemos
deixar de reconhecer que o regimento de Tomé de Sousa já trazia disposições que enfatizavam a importância da catequese, prevendo a dispensa
de alguns privilégios aos batizados, que deviam inclusive ser apartados
do convívio com os que desejassem permanecer pagãos, buscando ainda
reprimir atitudes ofensivas contra os nativos.
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Wilmar da Silva Vianna Júnior
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Texto apresentado em junho /2009. Aprovado para publicação em
fevereiro /2010.
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R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):11-46, abr./jun. 2010
“Tão exausto de gente e de cabedal”: a crise do Pós-Restauração e a gestão do
Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
“Tão exausto de gente e de cabedal”: a crise do
pós-Restauração e a gestão do Atlântico sul por
uma monarquia polissinodal (1640-1648)
“No people and resorces”: the crisis of postrestoration and management of the south atlantic
by a monarchy with several heads
Marcello José Gomes Loureiro 1
Resumo:
Na grave conjuntura da década de 1640, D. João
IV enfrentou diversos desafios para se manter
no trono. No ultramar, os holandeses conquistaram possessões lusas no Oriente, na América e
na África. Além dos conflitos contra os batavos,
havia guerras contra castelhanos e dificuldade
extrema em se obter apoio diplomático. Nesse
contexto crítico, muitas idéias foram discutidas
nos Conselhos da Coroa, a fim de se delinear
uma gestão para o Atlântico sul. Debatia-se a
invasão de Buenos Aires; a reconquista de Angola; e a compra, a retomada ou a entrega do
Nordeste. Assim, este artigo procura analisar a
gestão da Guerra no Portugal restaurado, sem
perder de vista que tal gestão era conformada
pelo ideário da segunda escolástica.
Abstract:
In the serious situation of the 1640s, D. João IV
has faced several challenges to stay on the throne. Overseas, the dutch conquered portuguese
possessions in the East, America and Africa.
Besides the conflict against the dutch, there
were wars against Castile and extreme difficulty
in obtaining diplomatic support. In this critical
context, many ideas were discussed in the Councils of the Crown, in order to outline a management for the South Atlantic. Struggled invasion
of Buenos Aires, the reconquest of Angola, and
the purchase, return or delivery of the Northeast. Therefore, this article analyzes the management of the War in Portugal restored, without
losing sight of that management was conformed
by the ideals of the second scholasticism.
Palavras-chave: Guerras da Restauração; política ultramarina; segunda escolástica.
Keywords: Restoration Wars: politics overseas;
second scholasticism.
A Segunda Escolástica e as possibilidades de gestão no Portugal
restaurado
Graças a uma renovação historiográfica ocorrida sobretudo na década de 1990, uma série de trabalhos mitigou a expressão do poder real no
contexto dos Estados Modernos.2 Quando a questão foi deslocada para os
1 – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ), sob a orientação do Prof. Dr. João Fragoso.
Mestre em História Social pelo mesmo Programa e Bacharel pela Escola Naval.
2 – Exemplos dessa renovação podem ser verificados, por exemplo, nos trabalhos de
E. Le Roy Ladurie, Jack Greene, Charles Tilly, John Elliott, Xavier Gil Pujol e António
Manuel Hespanha. LADURIE, E. Le Roy. O Estado Monárquico. França: 1460-1610.
Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia. das Letras, 1994; GREENE, Jack.
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Marcello José Gomes Loureiro
Impérios ultramarinos, substituiu-se a noção de centralização do Rei pela
de centralidade do Reino.3
Além disso, nesse contexto de renovação, muitos trabalhos introduziram a segunda escolástica como a linguagem normativa subjacente, ou
como orientação valorativa geral, que conectava e viabilizava as sociedades constituintes da monarquia católica.
Forjada como uma tentativa de resposta para as questões religiosas
e filosóficas surgidas no contexto da Reforma protestante, os preceitos
de tal linguagem podem ser encontrados, por exemplo, nas obras de Luís
Molina, Francisco Vitória e Francisco Suárez para o caso espanhol; para
o português, em Francisco Velasco de Gouvêa.4 Grosso modo, eles defendiam uma sociedade cuja representação se alinha com o paradigma
corporativista. A ordem social, com sua hierarquia dada pelos séculos
e conformada pelo direito, era considerada natural e explícita ante aos
olhos: as diferenças deveriam ser sempre evidenciadas. A cultura política
não era a da inovação, mas sim a da permanência, a da repetição.5 Até
porque o direito natural, que deveria enformar todas as ações humanas,
é imutável.
Negocieted Authorities. Essays in Colonial Political and Constitutional History. Charlottesville and London: University Press of Virginia, 1994; TILLY, Charles. Coerção, Capital e Estados Europeus. Tradução Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Editora da USP,
1996; ELLIOTT, J. H. “A Europa of Composite Monarchies” in Past and Present, n. 137,
1992, p. 48-71; PUJOL, Xavier Gil. ��������������������������������������������������
“Centralismo ou localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre Capital e Territórios nas Monarquias Europeias dos séculos XVI e
XVII”, in Penélope: Fazer e Desfazer História, N. 6, Lisboa, 1991; e HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan – Instituições e Poder Político em Portugal – Séc.
XVII. Lisboa: Almedina, 1994.
3 – BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Pacto Colonial, Autoridades Negociadas e
o Império Ultramarino Português” in SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda e
GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Culturas Políticas: Ensaios de História Cultural,
História Política e Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 85-105 e GOUVÊA, Maria de Fátima. “Diálogos Historiográficos e Cultura Política na Formação da
América Ibérica” in SOIHET; BICALHO e GOUVÊA (orgs.), op. cit., p. 67-84.
4 – SKINNER, Quentim. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 414-449.
5 – HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan – Instituições e Poder
Político em Portugal – Séc. XVII. Lisboa: Almedina, 1994.
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“Tão exausto de gente e de cabedal”: a crise do Pós-Restauração e a gestão do
Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
Em Portugal, de acordo com as construções teológicas do neotomismo, Deus atribuiu funções sociais metaforicamente expressas na Monarquia: enquanto o Rei era o cabeça, responsável por dirimir os conflitos
nessa hierarquia, garantindo os direitos e deveres característicos de uma
justiça equitativa,6 a nobreza era os braços; o clero, o coração; e os camponeses, os peões, os pés responsáveis pela sustentação desse corpo social.7
Com inspiração nas teorias medievais que prediziam a teleologia da
história, uma elite de letrados defendia que a conservação da harmonia
desse corpo-social era de importância primacial para que o conjunto orgânico decorrente pudesse cumprir o seu destino metafísico perante Deus.
Nesse esquema, portanto, a cabeça, o próprio Rei, não podia ser confundida com as demais partes do corpo. O bom governo do Rei devia
garantir a paz interna e externa e, principalmente, respeitar os direitos,
obrigações, interesses, autonomias, e prerrogativas de cada parte dessa
sociedade-corpo. Em suma, respeitar o autogoverno das partes para a plena e perfeita manutenção daquela harmonia, verdadeiro pressuposto do
princípio do “pro bono communis”, ou seja, do bem comum.
Assim como em Portugal, na Espanha, o entendimento acerca do
Rei e de um reino corporativo era similar e foi muito bem esboçado em
uma grande compilação jurídica realizada por Afonso X, chamada as
Siete Partidas, no século XIII. A união nominal das Coroas de Aragão e
Castela em 1469, segundo John Elliott, reativou esta tradição medieval,
acrescentando a ela, todavia, mais poder, graças à inauguração de novos
elementos, como o apoio de um segmento de letrados que compunham
os quadros administrativos; melhor concentração de recursos militares e
6 – Conforme a escolástica e ao próprio senso comum da época, a equidade significava
que cada grupo social tinha a justiça que merecia, uma justiça própria condizente com seu
status hierárquico. Esta justiça não estava vinculada somente às punições que podia impor
o Rei, mas também à concessão de dádivas. Acerca disso, ver: BICALHO, Maria Fernanda. “O que significava ser cidadão nos tempos coloniais” in ABREU, Marta e SOIHET,
Rachel (orgs). Ensino de História. Conceitos, Temáticas e Metodologia. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra/FAPERJ, 2003, p. 139-151, especialmente p. 140.
7 – HESPANHA, op. cit.
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financeiros; o próprio humanismo do Renascimento e uma religião “com
fortes nuanças escatológicas”.8
Conforme aquela compilação, o Rei deveria, “na qualidade de senhor natural desta sociedade, garantir bom governo e ministrar justiça, no
sentido de assegurar que cada vassalo recebesse seus direitos e cumprisse
suas obrigações que eram suas em virtude de sua posição”.9 Somente poderia ser deposto se não observasse justamente a conservação da harmonia social, ou seja, do bem comum, contrariando, neste caso, a lei natural,
subordinada à lei divina: “o bom rei, contrariamente ao tirano, deve estar
atento a que os maus sejam punidos e os justos, recompensados”.10 Tanto
o castigo e as recompensas deveriam ser distribuídas na justa medida,
dando-se a cada um o que é seu; em outras palavras, o Rei “era el único
que estaba capacitado para gestionar las desigualdades”.11 Assim, quanto
maior a desigualdade social, maior o poder real para intermediar conflitos
e tensões. Ele era o símbolo e a garantia de união de uma sociedade heterogênea, hierarquizada e ciosa de suas diferenças.12
Um dos resultados de tal linguagem é a noção implícita de que havia
um pacto político entre o soberano e seus vassalos, revelando-se assim,
em última instância, uma dimensão contratual no Antigo Regime ibérico.
Foi exatamente o que escreveu Francisco Velasco de Gouvêa, em 1642,
em sua obra Justa Aclamação do Sereníssimo Rei de Portugal D. João IV.
Nela, o autor defende que os súditos podem destituir o Rei, se este não
cumprir o seu papel no pacto tácito que estabeleceu com a sociedade. No
caso, referia-se, por um lado, à destituição de Filipe IV, acusado de não
8 – Cf. ELLIOTT, J. H.. “A Conquista Espanhola e a Colonização da América” in BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina Colonial, Vol I. 2ª Ed. 1º Reimpressão.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2004, p. 143-144.
9 – Cf. Idem.
10– Cf. Idem.
11– Cf. PEREZ HERRERO, Pedro. “Sociedad y poder em las estruturas de Antiguo Régimen coloniales (consideraciones teórico-metodológicas)” in La America Colonial. Politica y Sociedad. Madri: Sínteses, 2002, p. 134.
12– Ibidem, p. 131-146.
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Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
respeitar os acordos de Tomar, de 1581, e, por outro, à justa aclamação do
Duque de Bragança como D. João IV.13
A renovação historiográfica acima mencionada acabou também por
evidenciar a complexidade da arquitetura corporativa de poder da Coroa,
em última instância, um emaranhado de assembleias, secretarias e juntas.
É preciso considerar que a constelação de poderes é a base da monarquia
corporativa. Dotados de autorregulação, frequentemente os Conselhos
Ultramarino, de Guerra, da Fazenda e de Estado, Mesa da Consciência e
Ordens e Desembargo do Paço eram dissonantes em determinada matéria, até porque “o que designamos por Coroa não era algo unitário, mas
sim um agregado de órgãos e de interesses, que não funcionava como
polo homogêneo de intervenção sobre a sociedade”.14 O resultado disso é
que, na prática, “o governo do Reino constituía-se de um emaranhado de
Conselhos, Tribunais, Secretarias, Secretários e Juntas, numa verdadeira
trama de urdidura política”.15
Nessa lógica, nem sequer a Coroa estava necessariamente comprometida a afiançar o parecer de seus conselheiros. Com regimentos
confusos e desordenados, os conflitos de jurisdição eram recorrentes no
delineamento de políticas régias. Por exemplo, para reduzir os conflitos
do Conselho Ultramarino com o Conselho da Fazenda, D. João IV determinou que o Presidente do Conselho Ultramarino fosse o conselheiro da
Fazenda que exercia a Vedoria da Índia. Em sua primeira reunião, em 2 de
dezembro de 1643, o Conselho registrava a sua insatisfação quanto a este
13– Muito mais se escreveu na literatura jurídica sobre este tema. Apenas para registrar
exemplos, vale citar O Manifesto do Reyno de Portugal, do Secretário de D. João IV,
António Paes Viegas (Lisboa, 1641); a Usurpação, Retenção e Restauração de Portugal,
de João Pinto Ribeiro (Lisboa, 1642) e a Oração Apodixica aos Semanticos da Pátria, do
brasileiro Diogo Gomes (Lisboa, 1641). Sobre este ponto, verificar: GODINHO, Vitorino
Magalhães. “Restauração” in SERRÃO, Joel. Dicionário de História de Portugal. Vol.
VI. Porto: Figueirinhas, 1992, p. 309 e 318.
14– Cf. BICALHO, Fernanda. “As Tramas da Política: Conselhos, secretários e juntas
na administração da monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos”, in A Trama
das Redes. Política e negócios no império português. Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 347.
15– Idem.
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ponto.16 Apenas para citar outro exemplo, existiam conflitos entre o Conselho Ultramarino, o Desembargo do Paço e o Conselho da Fazenda.17
O Conselho de Estado, cujo regimento é de 1569, exercia funções
consultivas e decisórias junto ao monarca e é considerado o principal
da monarquia, ainda que esteja no mesmo nível dos demais, conforme
seu regimento. O Conselho da Fazenda, de finais do século XVI, administrava as matérias vinculadas aos recursos econômicos, financeiros e
patrimoniais da monarquia e era composto por um Vedor da Fazenda, um
Presidente, e mais quatro conselheiros, sendo dois letrados. O Conselho
de Guerra, de 1641, foi criado em virtude das guerras de Restauração.
Inspirado originalmente no Conselho das Índias, o Conselho Ultramarino foi criado por decreto, em 1642. A ele pertencia, conforme o capítulo 6 de seu regimento, a competência de gerir:
todas as matérias e negócios de qualquer qualidade que forem tocantes aos ditos Estados da Índia, Brasil e Guiné, Ilhas de São Tomé e
Cabo Verde e de todas as mais partes ultramarinas, tirando as ilhas
dos Açores e da Madeira e lugares da África, e por ele há de correr a
administração da fazenda dos ditos Estados.18
Já o Desembargo do Paço era composto pela Mesa dos Desembargadores e pela Secretaria da Repartição das Justiças e do Despacho da
Mesa, além de mais outras quatro. Sua função principal era cuidar dos
assuntos administrativos vinculados à execução da justiça, a exemplo da
organização dos exames de acesso à magistratura, da concessão de mercês de ofícios de Justiça, além de licenças, transferências, nomeações,
etc. A ele competia ainda emitir decisões acerca das matérias que não se
enquadravam na jurisdição de outra Assembleia Superior. A Casa da Su16– CAETANO, Marcello. O Conselho Ultramarino: esboço de sua história. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1967, p. 45.
17– CARDIM, Pedro. “Administração’ e ‘Governo’: uma reflexão sobre o vocabulário do
Antigo Regime”, in BICALHO, Maria Fernanda & FERNILI, Vera Lúcia. Modos de Governar. Ideias e Práticas no Império Português (séculos XVI a XIX). São Paulo: Alameda,
2005, p. 45-68.
18– Apud CAETANO, op. cit., p. 120.
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Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
plicação era a instância máxima de justiça do reino e das conquistas. Por
fim, a Mesa da Consciência e Ordens, com esta nomenclatura desde 1551,
tratava dos assuntos religiosos da monarquia.19
Não se deve conferir a essas Assembleias um caráter muito institucionalizado, no sentido moderno da expressão. Basta lembrar que elas
denotavam muito do prestígio de seus membros que, aliás, não necessariamente eram exclusivos. O Marquês de Montalvão, por exemplo, era o
Presidente do Conselho Ultramarino, mas pertencia também ao Conselho
de Estado; Salvador Correia de Sá e Benevides pertenceu ao Ultramarino
e ao de Guerra; já o Conde da Torre, membro do Conselho de Estado e
de Guerra.
Não se pode esquecer ainda de que havia ainda Juntas, a exemplo
da Junta dos Três Estados, criada em janeiro de 1643 para administrar os
impostos atinentes às guerras de Restauração; Secretários, como o Secretário de Estado e o Secretário das Mercês e Expediente, a partir desse
mesmo ano; e Secretarias diversas que agregavam ainda maior complexidade jurisdicional a toda essa polissinodia.
Em que pese haver enorme complexidade na arquitetura de poder
do Estado português, curiosamente, entretanto, na historiografia brasileira, e mesmo na portuguesa, poucos trabalhos se debruçaram de forma
contundente sobre os Conselhos dos poderes centrais. Os mais tradicionais apenas descreveram a cronologia dessas instituições, sem problematizar sua dinâmica, nem sequer apresentar uma análise de conjunto
que abrangesse as relações entre eles. Um exemplo dessa perspectiva é o
manual de Rodolfo Garcia, escrito na década de 1950. Considera o Conselho Ultramarino “um tribunal poderoso e respeitado por todos os que
dele dependiam”.20 Segundo o autor, de quase todos os contratos recebia propinas. Dedica apenas um parágrafo aos demais Conselhos, concluindo que o de Guerra e o de Estado cumpriam “funções meramente
19– BICALHO. “Nas Tramas da Política...”, op. cit.
20– GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a História Política e Administrativa do Brasil
(1500-1810). 2ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 126.
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consultivas”.21 Contudo, não descura o autor de assinalar que “a corte
confessava que certas repartições careciam de regimentos, ou que tinham
confusos e desordenados”.22
Marcello Caetano, em obra restritiva ao Conselho Ultramarino, produzida originalmente em 1943, analisa os antecedentes desse Tribunal,
mas sem deslindar de forma aprofundada os intrincados nexos que o órgão estabeleceu com os seus correlatos, ou mesmo com a Coroa. É, no
entanto, pautado nesta curta narrativa que Charles Boxer fez breves considerações sobre os Tribunais da Coroa.23
Trabalho mais recente, do final da década de 1990, é o de José Subtil,
acerca dos “poderes do centro”.24 O autor, especialista no Desembargo do
Paço, ainda que sintetize suas reflexões acerca dos órgãos da Coroa, estabelece como premissa teórica os aportes desenvolvidos por António Manuel Hespanha acerca da monarquia corporativa e do poder polissinodal.
Sob a orientação de Stuart Schwartz, Erik Lars Myrup tem trabalho
de fôlego especificamente sobre o Conselho Ultramarino.25 Análise de
grande relevância, não privilegia, entretanto, o contexto do pós-restauração; além disso, elege como sua própria competência distintiva o perfil
dos membros do Conselho. Por isso, de modo coerente com seu propósito, apresenta uma das questões primaciais de sua obra: o esforço de
refletir acerca de “como os conselheiros da Coroa – particularmente os
membros do Conselho Ultramarino – eram influenciados por interesses,
experiências e opiniões pessoais”.26
21– Cf. Ibidem, p. 127.
22– Cf. Ibidem, p. 123.
23– BOXER, Charles R. Salvador Correia de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola. 16021686. Tradução de Olivério M. de Oliveira Pinto. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1973.
24– SUBTIL, José. “Os Poderes do Centro”, in HESPANHA, António Manuel (org.).
História de Portugal, o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
25– MYRUP, op. cit. e, do mesmo autor, “Governar a distância: o Brasil na composição do Conselho Ultramarino (1640-1833)”, in SHWARTZ, Stuart & MYRUP, Erik Lars
(orgs.). O Brasil no Império Marítimo Português. São Paulo: EDUSC, 2009, p. 263-298.
26– Ibidem, p. 265.
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Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
Ainda sobre o Conselho Ultramarino, destaca-se sobremaneira a tese
de doutoramento de Edval de Souza Barros. Barros, sem se esquecer de
que trata de uma sociedade corporativa, vinculada ao princípio do bem
comum, busca “identificar um determinado número de temas que informaram a atuação dos conselheiros em sua relação com o monarca e demais agentes com capacidade de influenciar as decisões políticas relativas
ao ultramar”.27
Nesse ponto, é preciso, contudo, fazer algumas considerações. Embora sabedor das superposições de competência nos Tribunais, o autor
conscientemente optou por “não proceder a um mapeamento exaustivo
destes conflitos”. Dessa forma, preferiu enfatizar os nexos intrincados
de personagens políticas, bem como evidenciou as relações do Conselho
Ultramarino especificamente com a Coroa.
Uma das principais conclusões de Barros é que muito frequentemente os pareceres do Conselho não eram acatados pelo monarca, explicitando desse modo um papel secundário para o Conselho nos processos
de deliberação: o Conselho “foi apenas um dos polos de deliberação”.28
Nestes termos, sublinha a pouca expressão do Conselho na composição
do Estado.
Assim, sugerimos neste trabalho iniciar uma análise acerca não exatamente do Conselho Ultramarino, objeto daquele autor, mas sim o relacionamento deste Conselho com os demais, nas relações voltadas para a
formulação da gestão ultramarina. Estaremos dialogando então de forma
direta com a tese de Barros, porém a partir de outra abordagem, por ele
renunciada.
Sobre o Conselho de Guerra, recentemente Fernando Dores Costa
publicou artigo.29 Lembra que, em teoria, este Conselho estava equiparado ao Conselho de Estado; na prática, porém, seus poderes eram limitados
27– BARROS, op. cit., p. 6.
28– Ibidem, p. 19.
29– COSTA, Fernando Dores. “O Conselho de Guerra como lugar de poder: a delimitação da sua autoridade”, in Análise Social, Vol XLIV (191). 2009, p. 379-414.
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“em relação aos poderes do próprio rei e, ao mesmo tempo, pela criação
das fronteiras com o conjunto de outras instâncias de aconselhamento
do monarca, nomeadamente o Conselho Ultramarino e o Desembargo do
Paço”.30 Charles Boxer, na década de 1960, já havia matizado a expressão
do Conselho de Guerra, apresentando esta característica quase que como
uma de suas peculiaridades: “Apesar da extensão, aparentemente larga,
das responsabilidades atribuídas a esse conselho, não desempenhava ele
grande papel na direção da guerra contra a Espanha”.31
O Conselho da Fazenda, por sua vez, observou a criação da Junta dos
Três Estados, que lhe retirou o controle da gestão financeira da guerra.32
Já o Conselho de Estado, considerado o mais importante deles, não tinha
suas competências definidas no que se refere às questões administrativas.33
Em outras palavras, parece que estes Conselhos compartilhavam algumas experiências nesses anos críticos. Seus regimentos eram abrangentes e imprecisos e a sua expressão era frequentemente mitigada pela
ação das demais Assembleias constituintes do poder polissinodal. Assim,
insistimos que é preciso ir além: observar a dinâmica de cada um desses Conselhos e o seu (tenso) diálogo; extrapolar as suas relações com
a Coroa e fazer uma análise relacional e de conjunto antes de se afirmar
categoricamente que possuíam maior ou menor prestígio na arquitetura
de poder da Coroa.
Portugal no labirinto: a Restauração e a gestão do Atlântico
Durante a União Ibérica, América portuguesa, Angola e Buenos Aires faziam parte de uma lógica mercantil, cujo eixo axial era o próprio
tráfico negreiro. Se o principal artigo atlântico para venda em Buenos
Aires era os escravos de Angola, a prata remetida por esse porto liquidava
parcela do pagamento referente às mercadorias adquiridas no Oriente, a
30– Ibidem, p. 379.
31– BOXER, op. cit., p. 172.
32– BARROS, op. cit., p. 344.
33– CAETANO, op. cit., p 24.
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“Tão exausto de gente e de cabedal”: a crise do Pós-Restauração e a gestão do
Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
exemplo de tecidos. Tais itens, por sua vez, eram empregados na aquisição de mais negros em Angola, iniciando-se desta feita novamente a
engrenagem mercantil atlântica. Dessa maneira, o Prata se vinculava ao
tráfico negreiro duplamente: como área receptora de cativos, por um lado;
e como fonte de recursos para, indiretamente, viabilizar a aquisição de
mão de obra em Angola.34
A relativa estabilidade das relações comerciais entre Buenos Aires e
as praças do Império português, todavia, foi fundamentalmente atingida
após a Restauração dos Bragança de 1640.35 Na ocasião, a situação lusa
não era nada simples.36
Na Europa, por exemplo, havia necessidade de pôr fim às guerras
com Castela, de buscar reconhecimento internacional para a nova dinastia
e de assegurar a delimitação das fronteiras do Reino. Para suplantar todos
esses óbices, era necessário constituir alianças no velho mundo, de modo
que os Bragança fossem capazes de ingressar em um dos lados da instável
e complexa balança de poder que se configurava no teatro internacional.
Às questões diplomáticas, fundamentais ao reconhecimento da dinastia de Bragança, somavam-se inúmeros outros problemas. Assim
como no Reino, o primeiro estava vinculado também à legitimação da
dinastia no poder. O que poderia garantir ao novo rei que os domínios do
além-mar não se manteriam fiéis a Filipe IV?
34– LOUREIRO, Marcello. A Gestão no Labirinto: circulação de informações no Império Ultramarino Português, formação de interesses e a construção da política lusa para o
Prata (1640-1668). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação
em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PPGHISUFRJ, 2010.
35– GODINHO, Vitorino Magalhães. “Restauração” in SERRÃO, Joel. Dicionário de
História de Portugal. Vol. VI. Porto: Figueirinhas, 1992, p. 307-326.
36– VALLADARES, Rafael. “Sobre reyes de inverno. El diciembre portugués y los cuarenta fidalgos (o algunos menos, con outros más)”, in Revista d’Historia Moderna. Barcelona: Universitat de Barcelona, no 15, 1995, p. 103-136; do mesmo autor: “Portugal y el
fin de la hegemonia hispanica”, in Hispania: Revista Española de Historia. Madri: LVI,
núm. 193, 1996, p. 517-539; e ainda: “De ignorancia y lealdad. Portugueses em Madrid,
1640-1670”, in Torres de los Lujanes, Revista n 37, 1998, p. 122-134.
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Marcello José Gomes Loureiro
Em todo o Império, em seu momento fundacional, os Bragança
precisavam de legitimidade política, pelo que deveriam ativar teias de
reciprocidade clientelar, com o propósito de (re)significar noções de pertencimento, além de vincular antigas e novas relações sinalagmáticas,
conforme uma dimensão contratual presente na cultura política do Antigo
Regime português.37 Em outras palavras, havia necessidade de se redefinir o pacto político entre o rei e seus vassalos, de modo a neutralizar a
lealdade que tinham anteriormente ao monarca espanhol.
O sentimento de vinculação à Coroa era o instrumento primordial
que permitia a integração dos distintos grupos que formavam as sociedades do Império ultramarino português. Tal vinculação, conformada pela
segunda escolástica, era, então, a orientação valorativa geral, que viabiliza a sociedade; noutros termos, o Império não podia se entender ou
permanecer integrado sem a figura legítima de um rei.38
Toda essa redefinição dos pactos de vassalagem com a Coroa causou profundas alterações na aristocracia reinol portuguesa. Conforme demonstra Nuno Gonçalo, quase metade das principais Casas desapareceu
entre 1640 e 1670. Após as guerras, as grandes Casas tituladas do Reino
passaram a viver em Lisboa, a partir de então, uma Corte e uma elite fe37– VALLADARES, Rafael. Portugal y La Monarquia Hispânica. Madri: Arco Libros,
2000. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime”, in Almanack
Brasiliense nº 02, 2005, p. 30-34. Especificamente acerca da justificação necessária para
legitimar os Bragança no poder, ver MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Rei no Espelho. A
Monarquia Portuguesa e a Colonização da América. São Paulo: Hucitec, 2002, p. 279327 e FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na Época da Restauração. São Paulo,
Hucitec, 1997.
38– Lawrence Stone acredita que quando ocorre uma Revolução as instituições não detêm mais a crença da sociedade. Na análise do autor, são as instituições que permitem o
funcionamento e a permanência do conjunto social. Por isso, Stone afirma que a monarquia só podia ter uma religião: para minimizar as contradições nos sistemas de normas.
Sobre este ponto: STONE, Lawrence. Causas da Revolução Inglesa. São Paulo, Edusp,
2002, passim e BURKE, Peter. História e Teoria Social. Tradução de Klauss Brandini
Gerhardt e Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Unesp, 2002, p. 82. Ver ainda Cf. PEREZ
HERRERO, Pedro. “Sociedad y poder em las estruturas de Antiguo Régimen coloniales
(consideraciones teórico-metodológicas” in La America Colonial. Politica y Sociedad.
Madri: Sínteses, 2002, p. 134.
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R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):47-74, abr./jun. 2010
“Tão exausto de gente e de cabedal”: a crise do Pós-Restauração e a gestão do
Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
chadas, protegidas pela Coroa. Os Grandes muitas vezes perderam o seu
poder militar, mas ganharam influência na Corte, ocupando, por exemplo,
postos no Conselho de Estado.
Do ponto de vista administrativo, conforme já mencionado, foi criado por decreto o Conselho Ultramarino, em 1642. O Órgão representava
um esforço gerencial no sentido de se uniformizar a administração do
Império, que afinal estivera durante sessenta anos sob comando espanhol.
Em resumo, sua função era fiscalizar, examinar e vigiar, enfim, produzir
subsídios para as decisões dos dinastas de Bragança.39
Um dos problemas a ser superado pela Coroa na América era a existência do quilombo de Palmares.40 Além da independência jurídico-administrativa, Palmares dispunha de uma grande população, estimada por
alguns entre dez e até trinta mil habitantes.41 Acredita-se que o quilombo
somente foi destruído, após várias tentativas, no início do século XVIII,
tendo sido um imenso problema para a administração lusa na colônia. Os
custos gerados pela fuga de negros da produção açucareira, bem como
pelas ações militares demandadas, são incalculáveis.
Problema mais ponderável era referente à perda de Angola, consumada em agosto de 1641, quando os holandeses dominaram a praça africana de São Paulo de Luanda, sua capital.42 ,43. Desde meados da década
39– RUSSELL-WOOD, A. J. R. “Governantes e Agentes” in BETHENCOURT, F &
CHAUDHURI, F. (orgs.). História da Expansão Portuguesa. Vol 3. Lisboa: Círculo de
Leitores, 1998, p. 169.
40– ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes – Formação do Brasil no
Atlântico Sul – Séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 238-242; CARNEIRO, Edson. O Quilombo de Palmares. São Paulo: Editora Nacional, 1958, passim;
e FREITAS, Décio. Palmares: A Guerra dos Escravos. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1982, passim.
41– FREITAS, op. cit. p. 72.
42– A primeira ação eficaz dos batavos na África foi realizada em 1637, quando, após
de seis anos de guerras praticamente contínuas no Nordeste, os holandeses sentiam a
ausência de negros para as lavouras de açúcar. Enviaram uma expedição a Elmina, porto
de embarque de escravos na Guiné, que cedeu após cinco dias de bombardeio. Verificar
WÄTJEN, Hermann. O Domínio Colonial Holandês no Brasil: Um Capítulo da História
Colonial do Século XVII. Tradução de Pedro Celso Uchôa Cavalcanti. São Paulo: Cia.
Editora Nacional, 1938, p. 154.
43 A Cia. das Índias Ocidentais detinha, a partir de então, os lucros do tráfico negreiro:
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de 1630, os batavos enfrentavam o desafio de reinserir a produção açucareira de Pernambuco nas dinâmicas do Atlântico. Ocupar o Nordeste não
era sinônimo de explorar a sua produção: havia a necessidade de promover um tráfico regular de escravos africanos.44
A partir de então, destituídos do espaço que permitia a oferta de
negros à América, os fluxos que compunham os circuitos mercantis do
Atlântico Sul português estiveram seriamente ameaçados. A tomada de
Luanda foi seguida pela de Benguela e de São Tomé, importante pela sua
produção açucareira.
Se as Guerras de Restauração traziam substancial carência monetária em todo o Império, a retração monetária na América, e a decorrente
crise de liquidez, era frequentemente explicada pelo desmantelamento do
comércio com o Prata. Em um relatório sobre o Reino e o Ultramar, datado de 1643, o Padre Vieira enfatizava formalmente a importância ímpar
de Angola, sublinhando a suposta vinculação entre a crise de liquidez
por que passava a América portuguesa e o desmantelamento do comércio
com Buenos Aires:
O Brasil – que é só o que sustenta o comércio e alfândegas e o que
chama aos nossos portos [metropolitanos] estes poucos navios estrangeiros que neles temos – com a desunião do Rio da Prata, não tem
dinheiro, e com a falta de Angola, cedo não terá açúcar, porque este
ano não se recolheu mais que meia safra e no ano seguinte será forçosamente menos.45
Não custa ressaltar que Vieira resume neste relatório exatamente os
nexos mercantis constituintes do Atlântico ao articular precisamente pontos sensíveis para a integração de todo o Império: o Reino, Angola e o
Prata. Por tudo isso, os prejuízos eram enormes.
comprava os escravos em Angola por preços que variavam de 40 a 50 florins, revendendoos nos leilões em Recife por 200 a 800. Cf. Ibidem, p. 487.
44– PUNTONI, Pedro. A Mísera Sorte. Escravidão Africana no Brasil Holandês e as
Guerras do Tráfico no Atlântico Sul, 1621-1648. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 131.
45– Cf. Montruosidades do Tempo e da Fortuna. 2 Ed. Vol. III. Porto, 1939, p. 75-76.
Apud ALMEIDA, op. cit., p. 89.
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“Tão exausto de gente e de cabedal”: a crise do Pós-Restauração e a gestão do
Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
Assim, diante de todas essas complexidades, pertinentes não somente ao Reino, mas também ao ultramar, a monarquia portuguesa se defrontava com um enorme problema de gestão do Império. Gestão aqui não
pode ser confundida com a adoção sistemática de uma política estatal
raciológica que se traduza por uma espécie de administração pública weberiana. Ao contrário, conforme explica Nuno Gonçalo Monteiro, não é
adequado falar de governo em Portugal para o período em questão.46
De qualquer modo, o fato é que a Coroa precisava articular políticas,
escolher caminhos, apostar em decisões, viabilizar projetos. Assim, a gestão a que nos referimos se traduz, na prática, pelo diálogo que se estabeleceu entre os diversos órgãos governativos que compunham a arquitetura
de poder dessa Coroa. Nesse sentido, não custa lembrar que as decisões
da Coroa eram gestadas em Conselhos, dotados de autogoverno e constituintes de um poder polissinodal, típico de uma monarquia corporativa.
Ademais, cabe lembrar também que não havia um projeto prédefinido
para o Império, mas sim uma gestão que tramitava e se formulava em
diversas instâncias consultivas.47
Por exemplo, em um famoso documento de 1643, o Conselho de
Guerra sugeria que o monarca consultasse Salvador Correia, “q tem gr.de
expriençia e conhecimento das coussas”, para que desse um parecer sobre
como não somente “remediar os danos prezentes, e futuros”, mas ainda
sobre o modo de como se fazer entrar pelo Rio de Janeiro “algúa prata
neste Rey.o”.48
Salvador defendeu a invasão militar do Prata em seu parecer, mas
não sem antes registrar a importância da reconquista de Angola, já que os
negros eram “a mercadoria q. os castelhanos mais necessitão”.49 Quanto à
46– MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e Poder entre o Antigo Regime e o Liberalismo.
2ª Ed. Rev. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007, p. 110-113.
47– Idem.
48– Consulta do Conselho da Guerra sobre os justos receios de que os holandeses tentassem a ocupação da Baía, o que os tornaria senhores de todo o Brasil, e a urgente necessidade de tomar as devidas providências para os repelir no seu ataque àquela praça. Évora, a
17 de outubro de 1643. AHU, Rio de Janeiro, Castro e Almeida, Caixa no 2, doc no 243.
49– Idem.
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Angola, o ponto primordial de seu papel incitava a Coroa para que “logo
logo mande acudir aquelle Reino”, já que era muito sentida “a falta do comercio de Angola porque sem ella se prejudica m.to as fazendas do brazil
e se aniquila o aumento da Real fazenda assi no brazil como neste Reino”. Finalmente, quanto ao nordeste, recomendava que se incentivasse o
roubo e a destruição da campanha de Pernambuco, para que os flamengos
aceitassem dinheiro para deixar a região.
O interessante é que os três pareceres dados por Salvador Correia de
Sá retornaram para avaliação no Conselho de Guerra que, de modo geral,
concordou com os seus alvitres. Divergiram somente na questão dos holandeses no nordeste. Contrariamente ao sugerido por Salvador, o Conselho de Guerra optou por recomendar ao rei que procurasse a solução para
a saída dos holandeses, “gente tão prevenida”, por via diplomática. 50
Em sua resposta, o Conselho percebera perfeitamente o ponto nervoso da dinâmica mercantil das rotas do Atlântico, e nesta matéria era
sobremaneira taxativo: “porq. sem Angola não se pode sustentar o Brazil,
e menos Portug.l sem aquelle Estado”.51
Tal opinião circulava com frequência na corte por esta época. O Padre Antônio Vieira era um dos maiores defensores da importância de Angola. Com uma visão estratégica singular, escreveu ao Marquês de Nisa
em agosto de 1648 que “Todo o debate agora é sobre Angola, e é matéria
em que não hão de ceder, porque sem negros não há Pernambuco, e sem
Angola não há negros”.52 O governador-geral Antônio Teles da Silva reforçava essas impressões ao escrever ao rei:
Angola, Senhor, está de todo perdida, e sem ela não tem Vossa Majestade o Brasil, porque desanimados os moradores de não terem escravos para os engenhos, os desfabricarão e virão a perder as alfândegas
de Vossa Majestade os direitos que tinham em seus açúcares.53
50– Idem.
51– Idem.
52– Cf. Carta ao Marquês de Nisa, a 12 de agosto de 1648, in Cartas de António Vieira.
São Paulo: Globo, 2008, p. 190-192.
53– Cf. Ibidem, p. 222.
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“Tão exausto de gente e de cabedal”: a crise do Pós-Restauração e a gestão do
Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
António Paes Viegas, secretário particular de D. João IV, também
escreveu dois papéis acerca da problemática imperial. No primeiro, lembrava que os holandeses estavam muito seguros em Angola, não havendo
quem os “inquietasse”.54 No segundo, defendia que D. João IV deveria
enviar o quanto antes uma armada ao Rio de Janeiro e dar ordens a Salvador Correia para que procurasse não apenas “entabolar as minas e ouro
de lauage”, mas ainda que amealhasse mantimentos e gente “que melhor
aturasse os ares de Angola” para a sua reconquista.55 Se possível, deveria
retornar com negros africanos à América portuguesa, mantendo no Rio de
Janeiro essa força naval pronta para prestar novos socorros ao outro lado
do Atlântico, contra os holandeses ou contra o rei do Congo. Ou, então, a
armada poderia saquear Buenos Aires, “com que largamente se pagarião
os gastos dela”. Naquele porto poderiam trazer muito cobre, que Salvador
Correia dizia haver em abundância.
Pouco tempo depois, o padre Vieira pressionava o monarca no mesmo sentido de Salvador Correia e de António Paes Viegas. Segundo o
jesuíta, os paulistas deveriam invadir a Bacia do Prata, tomar várias de
suas cidades e conquistar as minas do Peru, “com grande facilidade e interesse luso, dano e diversão de Castela”.56 Em uma carta ao Marquês de
Niza, Vieira detalhava melhor os seus planos, sugerindo ao Marquês que
escrevesse ao Rei, como ele próprio o faria:
se pode intentar a conquista do Rio da Prata, de que antigamente recebíamos tão consideráveis proveitos pelo comércio, e se podem conseguir ainda maiores, se ajudados [pelos] de São Paulo marcharmos,
como é muito fácil, pela terra dentro, e conquistarmos algumas cidades
sem defesa, e as minas de que elas e Espanha se enriquece, cuja prata
por aquele caminho se pode trazer com muito menores despesas.57
54– Parecer de António Pais Viegas sobre o socorro a enviar a Angola. Cabo Ruivo, a 27
de abril de 1644. Papeis Politicos – Cod. 987 (K VII 31), fl. 499-499v, in Manuscritos do
Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 71, p. 35.
55– Parecer de António Pais Viegas sobre a recuperação de Angola. Cabo Ruivo, a 28
de abril de 1644. Papeis Politicos – Cod. 987 (K VII 31), fl. 500-501, in Manuscritos do
Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 72, p. 35-36.
56– Cf. VIEIRA, Antônio. “Papel Forte”, in Obras Escolhidas, Vol III, p. 105. Apud
ALMEIDA, op. cit., p. 100.
57– Cf. Cartas do Padre Vieira, coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo, p. 122.
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O projeto esboçado por Salvador de Sá, entretanto, não se concretizou neste momento. Divergindo frontalmente do Conselho de Guerra, o
Conselho Ultramarino emitiu seu parecer após sete meses. Seus membros
Jorge Castilho, Jorge de Albuquerque e João Delgado afirmaram (1644)
que quanto a Angola “tem V. Mag.de rezolutto o que fazer”; sobre Buenos
Aires, lembrava-se que Teles da Silva já tentara abrir o comércio, sem
consegui-lo. E que não convinha “em tempo de tantos apertos” abrir novas frentes de guerra. Para o Conselho, Portugal deveria direcionar esforços diplomáticos, econômicos e militares para resguardar o que lhe sobrava no ultramar, defendo suas possessões de espanhóis e holandeses. No
que concerne ao nordeste, não se mencionou a via diplomática, conforme
a orientação prévia do Conselho de Guerra, mas sim o conflito aberto a
partir do envio de quinhentos homens das Ilhas Atlânticas.58
No caso particular que se apresentou, ainda que o Conselho de Guerra estivesse envolvido, o assessoramento produzido pelo recém-criado
Conselho Ultramarino foi o que prevaleceu.
Enquanto corriam na corte debates acerca do que se priorizar, na
Bahia, Teles da Silva escrevia à Câmara de São Paulo, em outubro de
1646, solicitando que se armasse e prontificasse uma expedição naval.
Condicionada ao desfecho das negociações com os holandeses, deveria
“se emprehender com esta armada a conquista do Rio da Prata”. Assim,
em que pesem as decisões contrárias dos poderes centrais, manifestavamse intenções de conquista militar do Prata na América.
Em meio à crise da ocupação holandesa em Angola, D. João IV chegou a consultar o Conselho Ultramarino acerca da possibilidade da mútua
convivência de portugueses e holandeses naquela praça, em portos e locais distintos. Nessa consulta, o voto contrário de Jorge de Albuquerque
à permanência dos holandeses foi decisivo. Conforme o entendimento do
conselheiro,
58– Consulta do Conselho Ultramarino sobre os alvitres apresentados por Salvador Correia de Sá para remediar os prejuízos causados pelos holandeses no Brasil e para introduzir o comércio com Buenos Aires. Lisboa, a 10 de junho de 1644. AHU, Rio de Janeiro,
Castro e Almeida, Caixa no 2, doc. no. 305.
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“Tão exausto de gente e de cabedal”: a crise do Pós-Restauração e a gestão do
Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
para o bem deste Reyno [de Portugal], q. por todos os meyos, se fizesse o possivel, p.a q. os Olandeses Largassem de todo aq.le Reyno
[de Angola], ainda q. fosse á custa da fazenda de V.Mg.de, e da de seus
Vassalos, porq. com as utilidades delle, em breves annos se recuperaria.59
Ou seja, mantinha o Conselho análogo entendimento acerca da importância trivial de Angola nos fluxos mercantis do Império.
Outro ponto de destaque nessa gestão se refere ao Nordeste. Muito
conhecido é o “papel forte” do Padre Vieira, em que defendeu a entrega
de Pernambuco aos holandeses. Parece pertinente destacar que o padre
falava da entrega do nordeste, mas incitava uma invasão militar ao Prata. Contudo, outros eram do mesmo parecer. Por exemplo, em setembro
de 1645, antes de Vieira portanto, Lourenço de Brito Correia, que fora
Provedor-mor do Brasil, com receio do socorro que a Holanda enviaria
para o Nordeste, aconselhou que ele fosse tão logo evacuado pelos portugueses, sob risco de se ampliarem as despesas e de se perderem outras
áreas, como a Bahia e as Índias.60 Em 1647, Francisco de Sousa Coutinho
prometia aos Estados Gerais, em nome de D. João IV, restituir todas as
praças que os rebeldes de Pernambuco haviam tomado.61 Em 1648, muitos papéis tratavam na Corte dos termos em que se assentariam as capitulações com a Holanda. Em outubro desse mesmo ano, o rei determinava
que as condições dessa capitulação fossem analisadas pelo Conselho da
Fazenda. O Conselho deveria enviar dois ministros para falar com Sua
Majestade e, posteriormente, discutir o assunto com o Padre Vieira com
todo o segredo.62
59– Sobre as conveniençias q. se devem celebrar com os olandeses no Reyno de Angolla.
Lisboa, a 17 de fevereiro de 1648. AHU, Consultas Mistas, Códice n 24, fl. 110.
60– Papeis politicos – Cod. 987 (k VII 31), fl. 491-492 v., in RAU, Virginia & SILVA,
Maria Fernanda Gomes da (orgs.). Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval Respeitantes ao Brasil. Volume I. Lisboa: Acta Universitatis Conimbriensis, 1956, Doc. 78,
p. 38-40.
61– Papeis Varios, t. 7 – Cod 947 (k VIII Id), fl. 229v-231v., in RAU, Virginia & SILVA,
Maria Fernanda Gomes da (orgs.). Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval Respeitantes ao Brasil. Volume I. Lisboa: Acta Universitatis Conimbriensis, 1956, Doc 115,
p. 60-62.
62– Idem.
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65
Marcello José Gomes Loureiro
O Conselho de Estado, por meio do Conde de Odemira, ao comentar
uma das propostas apresentadas por Francisco de Sousa Coutinho a D.
João IV, ainda em outubro, indicava a possibilidade de entregar Pernambuco, desde que Portugal ficasse com Angola.63
Diante de vários papéis, o Conselho da Fazenda entendeu que se
devia buscar a paz “prepetua firme e segura” com os holandeses, sem que
houvesse, entretanto, ofensas a religião e a reputação do monarca.64 Acreditava o Conselho que, primeiro, de nenhuma maneira se deviam restituir
as praças do Brasil e África. Sem se devolver as praças, era “ajustado”
oferecer dinheiro e drogas para a paz. Concordava que era preferível a
guerra à restituição requerida pelos Estados Gerais.65 Não custa lembrar
que Salvador de Sá falara em oferecer dinheiro aos holandeses em seu
parecer de 1643.
À margem da consulta, D. João IV determinava que se convocasse
um tribunal para que em caso de fracasso das negociações com a Holanda
fossem examinados os meios de defesa do Reino, “tão exhausto de gente
e de cabedal”, frente os Estados Gerais e Castela.66
Em novembro de 1649, Gaspar Dias Ferreira, mercador de muitos
anos no Brasil, apresentou uma alternativa para a feitura da paz em uma
audiência com o rei.67 Considerava a restituição das capitanias reconquistadas e a reocupação do Nordeste opções impraticáveis. Todavia, apostava na “composissão por dinheiro” para a compra dos territórios, o que
também não lhe parecia fácil. Como pontos negativos em seu assessora63– Papeis Varios, t. 29 – Cod. 874 (K VIII Im) fl. 328v.-331v, in RAU,
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Virginia & SILVA, Maria Fernanda Gomes da (orgs.). Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval
Respeitantes ao Brasil. Volume I. Lisboa: Acta Universitatis Conimbriensis, 1956, Doc
134, p. 74-81.
64– Consulta do Conselho da Fazenda sobre as capitulações com a Holanda.Lisboa, a 14
de dezembro de 1648. Papeis Varios, t. 2 – Cod. 874 (K VIII Im), fl. 340-341, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 135, p. 81-82.
65– Idem.
66– Idem. Despacho régio à margem. Lisboa, a 24 de dezembro de 1648.
67– Exposição enviada a el-Rei por Gaspar Dias Ferreira, sobre as possibilidades de se
fazer a paz com a Holanda. Papeis Varios – Cod. 1090 (K VIII Ia), fl. 47-48v, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 146, p. 87-89.
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Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
mento, o próprio Gaspar lembrava as dificuldades sérias em se movimentar fundos nessa conjuntura. Por notícia da Holanda, enviadas por seu
primo, Francisco Ferreira Rebelo, advertia que os flamengos consideravam a compra dos territórios ocupados uma “inormidade indigna de sua
reputasão”, já que o rei apenas não entregava Pernambuco pelas pressões
dos vassalos do Brasil.68
Soluções para obtenção de recursos financeiros começavam a ser
pensadas. Nesse sentido, por exemplo, Manuel Fernandes Cruz, antigo
morador de Pernambuco, escreveu longa exposição de motivos ao monarca.69 Por dedução, especulava Manuel que seria possível incrementar
o comércio, única forma de tornar poderoso o Reino, e “sacar” muita
prata e ouro do Peru, devido à vizinhança que tinha com Buenos Aires,
havendo, para esse porto, caminho já aberto e facilidade de se abrir outros. O fundamento primordial do parecer consistia no seguinte: a Coroa
deveria estabelecer o estanco do trato das peças de Angola para a América
portuguesa, por um período de cinco anos, trazendo-as à custa da fazenda
real. Quinze ou dezesseis mil peças deveriam deixar Angola anualmente,
sendo distribuídas cinco mil para Pernambuco, quatro mil para a Bahia,
três mil para o Rio de Janeiro, a um preço de sessenta mil-réis cada uma,
e as demais para o Rio da Prata. Já deduzida a mortandade estimada de
escravos, e se considerando somente as que dessem entrada na América
portuguesa, a receita do período deveria perfazer cerca de sete milhões e
quinhentos mil cruzados.70 Para que os efeitos negativos do estanco não
fossem sentidos, os negociantes reinóis teriam autorização para vender
seus artigos em Angola, contando que nos cinco anos poderiam comercializar escravos africanos no Rio da Prata. Tais negociantes deveriam poder
68– Idem.
69– Arbítrio em benefício comum que inculca o modo conveniente para se haver o resgate desta praça [de Pernambuco] em caso que o holandês a largue por preço de dinheiro;
ou bem se posssa sustentar a guerra, quando pelas armas se liberte; e se socorra com um
grosso empréstimo aos moradores para levantarem os seus engenhos, e os fabricarem sem
dispêndio da fazenda real. Pernambuco, a 20 de agosto de 1650. Papeis Varios, t. 2 – Cod.
1091 (K VIII Ib), fl. 1-5v; fl. 18-22; Papeis Varios, t. 34 – Cod. 976 (K VIII Ir), fl. 171175v, in Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, doc. 149, p. 90-96.
70– Idem.
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Marcello José Gomes Loureiro
vender peças em São Vicente, já que os “peruleiros” costumavam lá negociar. Em decorrência, estaria o Estado do Brasil muito opulento, porque
reteria muita prata “pello empreguo dos asucares que farão os que por
aqui passarem de volta de Buenos Ajres”.. Conforme concluía Manuel
Cruz, o parecer buscava de fato o “benefício comum”: não haveria prejuízo a fazenda real; os vassalos da América não protestariam em virtude
de o preço de sessenta mil-réis ser razoável, além de estarem isentos de
décimas, fintas e tributos; enquanto os negociantes do Reino teriam seu
prejuízo sanado pela compensação de comercializarem diretamente com
o Prata.71 Mais uma vez, o Prata aparecia na gestão do Império, porém
agora vinculado ao levantamento de fundos para a compra do Nordeste.
Em síntese, o posicionamento dos diversos Conselhos da Coroa acerca das principais questões referentes ao Atlântico na conjuntura crítica da
década de 1640 foi o seguinte:
CONSELHO/ÁREA
Angola
Pernambuco
Prata
Conselho de Guerra
Reconquista
Via diplomática
Invasão militar
Conselho Ultramarino
Reconquista
Guerra
Não invadir
Conselho de Estado 72
Reconquista
Alguns falavam da entrega
Alguns defendiam a invasão
Conselho da Fazenda
Não restituir aos holandeses Compra ou Guerra
?
Considerações Finais
No difícil contexto do pós-restauração, em que D. João VI buscava
se conservar no trono, a noção de autorregulação, associada à preocupação com o bom governo, permeava a complexa definição de prioridades
da Coroa.
Não sem tensões e fraturas, Conselhos e homens de governo discutiam os caminhos para a administração patrimonial, militar e financeira do Império. A ideia de autogoverno dos Conselhos Superiores, muito
característica da segunda escolástica, fica patente no quadro acima que
sintetiza a posição desses mesmos tribunais acerca de questões de fundamental importância na gestão imperial.
71– Idem.
72–1Considerando as opiniões do Padre Vieira, do Conde de Odemira e do Marquês de
Nisa.
68
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):47-74, abr./jun. 2010
“Tão exausto de gente e de cabedal”: a crise do Pós-Restauração e a gestão do
Atlântico Sul por uma monarquia polissinodal (1640-1648)
Graças a uma circulação de informações, os conselheiros da monarquia refletiam acerca dos espaços que deveriam ganhar destaque na
política ultramarina, explicitando os nexos intrincados de uma monarquia
pluricontinental. Contudo, para além da autorregulação pertinente à linguagem da cultura política, parece que a turbulência do contexto trouxe
complicações para a definição das prioridades. Afinal, os escassos recursos disponíveis deviam ser direcionados para Pernambuco, para Angola
ou para a invasão do Prata, se tais regiões possuíam articulação? Recursos
escassos para multifacetadas demandas...
O quadro demonstra que havia notória dificuldade em se hierarquizar os espaços ultramarinos. Assim, influenciados provavelmente pelo
parecer de Salvador de Sá, o Conselho de Guerra, o Padre Vieira e António Paes Viegas, que era secretário particular de D. João IV, falavam de
invadir Buenos Aires. Foi o parecer do Conselho Ultramarino, todavia,
que definiu esta questão; embora recém-criado, o Conselho se sobrepôs
à opinião do Conselho de Guerra e de homens de enorme prestígio na
Corte.
A questão do Nordeste era a mais controvertida: debatia-se a conveniência da guerra, da entrega ou da compra de Pernambuco. Lourenço de
Brito Correia, o embaixador Sousa Coutinho, o Padre Vieira e o Conde de
Odemira, os dois últimos do Conselho de Estado, falavam do abandono
de Pernambuco. Salvador de Sá, Gaspar Dias Ferreira e o Conselho da
Fazenda, da compra. Manuel Fernandes Cruz sugeriu, inclusive, que o levantamento de fundos fosse viabilizado a partir do comércio com Buenos
Aires, vinculando assim o Prata à política ultramarina. Ainda que D. João
IV tenha ouvido o Conselho Ultramarino acerca da mútua possibilidade
de convivência de portugueses e holandeses em Angola, o único ponto
consensual, ao que parece, era a sua reconquista.
Insta-se registrar que os pareceres eram modulados pela possibilidade
de a Coroa viabilizar propostas, o que dependia da vontade e do interesse
de seus vassalos em lhe prestar serviços, bem como de sua capacidade de
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):47-74, abr./jun. 2010
69
Marcello José Gomes Loureiro
movimentar redes nos espaços imperiais. O que é mesmo que afirmar que
a política se consubstanciava, tornava-se prática, nessas redes.73
O fato de o parecer do Conselho Ultramarino adquirir prevalência
sobre os demais na questão referente à invasão de Buenos Aires enseja
algumas dúvidas contundentes sobre a composição dos poderes centrais
e sobre a primazia dos Conselhos. Permite até mesmo reavaliarmos, ao
menos em parte, as conclusões já apresentadas de Barros.74 Se o Conselho
Ultramarino, recém-criado, suplantou o Conselho de Guerra e, em outras
matérias, suplantou até mesmo o poderoso Desembargo do Paço, é pertinente questionar: afinal, que Conselho Superior detinha de fato prestígio
nessa arquitetura do poder?75
Por isso, insistimos que é necessário um estudo mais aprofundado
não do ponto de vista exclusivo das relações dessas Assembleias Superiores com a Coroa; mas sim uma análise relacional e de conjunto, que
permita, mais exaustivamente, verificar o desenrolar das tensões entre
esses Conselhos e o seu decorrente prestígio na monarquia. Assim, será
possível melhor compreender a dinâmica da gestão imperial no Portugal
do Antigo Regime.
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73– FRAGOSO, João; BICALHO, M. Fernanda Baptista & GOUVÊA, M. de Fátima.
“Uma leitura do Brasil Colonial...”, op. cit.
74– BARROS, op. cit. Barros analisou a participação do Conselho Ultramarino no Oriente. Este artigo, contudo, limita-se ao Atlântico.
75– Conforme demonstrou Cardim em CARDIM, Pedro. “Administração’ e ‘Governo’:
uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime”, in BICALHO, Maria Fernanda &
FERNILI, Vera Lúcia. Modos de Governar. Ideias e Práticas no Império Português (séculos XVI a XIX). São Paulo: Alameda, 2005, p. 45-68.
70
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):47-74, abr./jun. 2010
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Texto apresentado em março /2010. Aprovado para publicação em
maio /2010.
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O governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão:
XVIII)
biografias e trajetórias administrativas (século
O governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão:
biografias e trajetórias administrativas
(século XVIII)
The state government of Grão Para and Maranhao:
biographies and administrative careers
(18th century)
Fabiano Vilaça dos Santos1
Resumo:
Este artigo analisa os traços biográficos e as
trajetórias administrativas dos governadores do
Estado do Grão-Pará é Maranhão, na segunda
metade do século XVIII, durante o ministério de
Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como marquês de Pombal. A abordagem
caracteriza a origem familiar, a formação e as
experiências dos agentes – critérios geralmente
observados na seleção dos mesmos para a administração colonial –, seus percursos no Real Serviço e as estratégias verificadas na remuneração
de seus préstimos à monarquia, em que pesam
a tradição familiar de serviços, os parentescos
evocados com autoridades metropolitanas e as
alianças políticas construídas no âmbito da Corte.
Palavras-chave: Estado do Grão-Pará e Maranhão – governadores – biografia – trajetórias
Abstract:
This article examines the biography and the administrative trajectories of the governors of State of Grão-Pará and Maranhão, in the second
half of the eighteenth century, during the ministry of Sebastião José de Carvalho e Melo, better
known as Marquis of Pombal. The approach
characterizes the family origins, background
and experience of agents – which is the criteria
usually used in the selection for the colonial administration –, his journeys in the Royal Service
and the payment for their services to the monarchy, in which the family tradition of services,
the kinship evoked with metropolitan authorities
and the political alliances built within the Court
are very important.
Keywords: Estado do Grão-Pará e Maranhão –
governors – biography – careers
(...) consta-nos que do que correram os portugueses, o melhor é o Brasil, e o Maranhão é Brasil melhor, e mais perto de Portugal que todos
os portos daquele Estado (...). E por ser a terra tal a fez Sua Majestade
governo separado do Brasil.2
1 – Doutor em História Social – USP. E-mail: [email protected] / [email protected]
2 – SILVEIRA, Simão Estácio da. Relação sumária das cousas do Maranhão (1624).
Apud. ALMEIDA, Candido Mendes de. Memórias para a história do extinto Estado do
Maranhão, cujo território compreende hoje as províncias do Maranhão, Piauí, GrãoPará e Amazonas. Rio de Janeiro: Nova Tipografia de J. Paulo Hildebrant, 1874, t. 2, p.
31.
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):75-94, abr./jun. 2010
75
Fabiano Vilaça dos Santos
Datadas de 1624, as palavras do capitão Simão Estácio da Silveira –
célebre cronista das terras maranhenses – evidenciam o principal motivo
que levou a Coroa a criar, em 1621, o Estado do Maranhão, constituindo-o em governo distinto e independente do Estado do Brasil. Na prática,
tal separação se deu, entre outros motivos, pela necessidade de defendê-lo
de incursões estrangeiras e de ordenar a administração do território, que
se expandiria ao longo do século XVII pela conquista militar e espiritual.3 O período a que se reporta este artigo, no entanto, corresponde ao
da vigência do Estado do Grão-Pará e Maranhão, na segunda metade do
século XVIII.
Embora o objetivo deste trabalho não seja rever a configuração administrativa de algumas das capitanias do Norte, – mas delinear os traços
biográficos e as trajetórias de seus governantes, – é preciso considerar o
espaço de sua ação. Como o fez Maria José Wehling em estudo sobre o
“Estado do Maranhão na União Ibérica”.4 Em outras palavras, a abordagem levará em consideração as “histórias de vida”5, segundo Pierre Bourdieu, dos administradores coloniais a serviço de Portugal na América.
O espaço da ação governativa: breves palavras
Entre 1621 e 1751, as capitanias do Pará, do Maranhão e do Ceará
(esta até meados do século XVII6), assim como várias donatarias parti3 – CHAMBOULEYRON, Rafael e CARDOZO, Alírio Carvalho. “Fronteiras da cristandade: relatos jesuíticos no Maranhão e Grão-Pará (século XVII)”. In: DEL PRIORE,
Mary e GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Os senhores dos rios: Amazônia, margens e
histórias. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2003, p. 33-61.
4 – WEHLING, Maria José Mesquita Cavaleiro de Macedo. “O Estado do Maranhão na
União Ibérica”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro,
166 (426): 57-86, jan./mar. 2005.
5 – BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e
AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história oral. 2ª ed., Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 1996, p. 183-191.
6 – Há certo consenso entre os autores de que a capitania do Ceará separou-se do Estado
do Maranhão e passou à jurisdição de Pernambuco por volta de 1656. GIRÃO, Raimundo.
Pequena história do Ceará. 2ª ed., Fortaleza: Ed. Instituto do Ceará, 1962, p. 134. Ver
também MAURO, Frédéric. “Portugal e o Brasil: a estrutura política e econômica do império, 1580-1750”. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: a América
Latina colonial. Tradução de Maria Clara Cescato. São Paulo: EDUSP; Brasília: FUNAG,
76
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):75-94, abr./jun. 2010
O governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão:
XVIII)
biografias e trajetórias administrativas (século
culares, estiveram reunidas sob a jurisdição do Estado do Maranhão e
Grão-Pará, com sede em São Luís.7 À época, o Maranhão correspondia
à “cabeça” do Estado, onde pontificava o governador e capitão-general
ou simplesmente o governador-geral. Da capitania subalterna do Pará
ficava encarregado um capitão-mor. Apenas durante o curto período de
18 meses em que o Estado foi dissolvido, entre 1652 e 1654, houve um
governador em Belém.
A partir de 1751, quando surgiu o Estado do Grão-Pará e Maranhão –
privilegiado nesta comunicação –, o governador e capitão-general passou
a residir em Belém, havendo um subalterno no Maranhão que ostentava
o título de governador (com a patente de tenente-coronel) e não mais o
de capitão-mor.8 Ainda na década de 1750, foi fundada a capitania de São
José do Rio Negro (3 de março de 1755) e finalmente organizada a do
Piauí (criada em 1718). O governo do Rio Negro caberia, segundo a carta
régia de criação da capitania9, a um governador subalterno ao capitãogeneral no Pará. Em igual situação ficaria o Piauí – cuja administração
foi ordenada conforme a carta régia de 29 de julho de 1758 –, ou seja,
entregue também a um indivíduo que ostentaria o título de governador.
Em suma, no período pombalino, o Grão-Pará funcionou como sede
do governo-geral do Estado, tendo Maranhão, Rio Negro e Piauí como
unidades subalternas. Somente com a divisão do Estado na década de
1770, uma nova configuração reuniu as capitanias com demandas seme1997, vol. 1, p. 453.
7 – Cf. STUDART FILHO, Carlos. Fundamentos geográficos e históricos do Estado do
Maranhão e Grão-Pará (com breve estudo sobre a origem e evolução das capitanias feudais do Norte e Meio Norte). Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1959, p. 328-329.
8 – Luís de Vasconcelos Lobo, nomeado para o Maranhão em 1751, inaugurou essa
nova fase da administração do Estado, conforme registrado no princípio das instruções a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado. MENDONÇA, Marcos Carneiro de (coord). A
Amazônia na era pombalina. Correspondência inédita do governador e capitão-general
do Estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado (17511759). São Paulo: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1963, t. 1, p. 26. No entanto,
quando Joaquim de Melo e Póvoas assumiu o governo do Maranhão, em 1761, ostentava
a patente de coronel.
9 – “Carta régia da criação da capitania do Rio Negro: 3 de março de 1755”. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 61(97), 1898, p. 59-63.
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):75-94, abr./jun. 2010
77
Fabiano Vilaça dos Santos
lhantes e geograficamente mais próximas. A divisão em duas unidades
– Estado do Grão-Pará e Rio Negro e Estado do Maranhão e Piauí – foi
regulamentada em 20 de agosto de 1772 e concretizada dois anos depois
pela provisão de 9 de julho de 1774.
Os agentes da administração colonial: caracterização geral
Pela situação geográfica e devido às questões que mais ocuparam
a metrópole em toda a história das conquistas do Norte, o Estado assumiu a condição de governo militar. A premente defesa da extensa linha
de fronteira com domínios espanhóis, holandeses, franceses e ingleses
demandou esforços no sentido de construir e aparelhar fortificações e de
manter contingentes militares em condições de manter a integridade dos
territórios portugueses.
Assim, a geopolítica demandou o recrutamento de indivíduos com
perfil eminentemente militar. Tais agentes se encaixavam, em boa medida, na caracterização dos administradores coloniais elaborada por Caio
Prado Júnior, para quem
(...) o governador [era] uma figura híbrida em que se reuniram as funções do governador das armas das províncias metropolitanas; (...) e
como o único modelo mais aproximado que se tinha dele no Reino
era o do citado governador das armas, ele sempre foi acima de tudo,
militar.10
A caracterização de Caio Prado pode ser aproximada da definição
de Fernando Dores Costa acerca do cargo de governador das armas em
Portugal – “um lugar de condução militar”.11 Adotando-se rapidamente
a perspectiva comparativa e direcionando-a para as conquistas do Norte,
tem-se que os governadores do Estado do Grão-Pará e Maranhão eram,
em suma, militares não só de formação, mas de carreira. A origem so10– PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 15ª ed., São Paulo:
Brasiliense, 1977, p. 301-302.
11– COSTA, Fernando Dores. “A nobreza é uma elite militar? O caso Cantanhede-Marialva em 1658-1665”. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo; CARDIM, Pedro e CUNHA,
Mafalda Soares da (orgs.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005, p. 47-63.
78
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):75-94, abr./jun. 2010
O governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão:
XVIII)
biografias e trajetórias administrativas (século
cial, a formação pessoal e as experiências dos mesmos no Real Serviço
reforçam essa tipologia, esmiuçada na caracterização individual das trajetórias. Todos possuíam comprovada experiência militar, um requisito
importante observado nos recrutamentos. Faltava-lhes, todavia, vivência
nos assuntos administrativos. Apesar disso, cumpriram outros requisitos,
como a posse de riquezas, um aspecto contemplado nas indicações.12
A falta de experiência administrativa dos governantes das conquistas
do Norte há muito foi percebida pela historiografia, ainda que algumas interpretações incorram em generalizações. No século XIX, João Francisco
Lisboa afirmou que os governadores do Estado eram
(...) escolhidos ordinariamente na classe dos militares, e reputado este
gênero de despacho um acesso na carreira, galardão de serviços passados, ou ainda mero favor à posição ou família do agraciado, pouco
se atendia nas nomeações aos dotes civis e políticos indispensáveis em
quem tinha de governar em regiões afastadas, e onde era quase nula a
ação fiscalizadora do governo supremo.13
João Francisco Lisboa enumerou aspectos essenciais para a caracterização dos governadores: a formação eminentemente militar, em perfeita
sintonia com a posição geográfica do Estado; o fato de as nomeações
representarem a possibilidade de ascensão social e na carreira, levandose em conta os serviços prestados. Por outro lado, teceu considerações
gerais, sem se deter em um momento histórico específico.
Pedro Octávio Carneiro da Cunha classificou os titulares do antigo
Estado do Maranhão a partir de uma visão depreciativa da região: “território imenso, população escassa, riqueza quase que apenas potencial,
os postos não despertavam o interesse de gente melhor”. Elegeu Gomes
Freire de Andrade (1685-1687) e Antônio de Albuquerque Coelho de
Carvalho, o moço (1690-1701), como figuras de destaque na administra12– RUSSELL-WOOD, A. J. R. “Governantes e agentes”. In: BETHENCOURT, Francisco e CHAUDHURI, Kirti (orgs.). História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo
dos Leitores, 1998, vol. 3, p. 173-175.
13 – LISBOA, João Francisco. Crônica do Brasil colonial: apontamentos para a história
do Maranhão. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976, p. 377. Grifo nosso.
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ção, o primeiro por ter debelado a Revolta de Beckman (1684-1685) e o
segundo pela abertura do caminho terrestre ligando São Luís a Salvador,
havia muito planejado. Dessa forma, Carneiro da Cunha realçava os feitos em detrimento das qualidades pessoais e do rol de serviços dos antecessores de Gomes Freire e de Coelho de Carvalho, consideradas “figuras
secundárias”.14
Contudo, as trajetórias no Estado do Grão-Pará e Maranhão demonstram o esforço de centralização administrativo da Coroa percebido por
Ângela Domingues como elemento fundamental da política colonial para
a região Norte, na segunda metade do século XVIII. E para executar a
contento os planos metropolitanos de revitalização da colonização amazônica, a Coroa apostou em indivíduos cujos perfis atendessem a “relações nítidas de dependência e fidelidade, [...] como também tiveram
implícitos vínculos familiares e noções de gratidão pessoal”.15
Nascimento, família e inserção no Real Serviço
Os governadores do Estado do Grão-Pará e Maranhão em grande
parte nasceram em Lisboa, mas suas famílias deitavam raízes em províncias mais ou menos distantes da Corte. Não eram fidalgos na acepção de
membros da aristocracia de Corte nem provinham de Casas titulares – à
exceção de Manuel Bernardo de Melo e Castro (neto do 4º conde das
Galveias, André de Melo e Castro) –, tendo se enobrecido no serviço à
monarquia, sobretudo, no campo das armas. A maioria pertencia, conforme as clivagens na nobreza observadas por Nuno Gonçalo Monteiro, à
“primeira nobreza”16 do Reino, detentora de bens fundiários e senhorios,
14 – CUNHA, Pedro Octávio Carneiro da. “Política e administração de 1640 a 1763”. In:
HOLANDA, Sérgio Buarque de (dir.). História geral da civilização brasileira. 10ª ed.,
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, t. 1, vol. 2, p. 29-31.
15– DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de
poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 127-128.
16 – MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Trajetórias sociais e governo das conquistas. Notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII”.
In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; BICALHO, Maria Fernanda Baptista e GOUVÊA, Maria
de Fátima Silva (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos
XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 249-283. Ver página 281.
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embora alguns não possuíssem bens de raiz, como Joaquim de Melo e
Póvoas e Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. Em certos casos, os senhorios foram concedidos em remuneração de serviços durante a permanência em terras amazônicas ou no retorno a Portugal.
A observação do local de nascimento permite agrupar os governadores do seguinte modo: Gonçalo Pereira Lobato e Sousa e seu filho,
João Pereira Caldas, eram naturais da província do Minho, mais especificamente da vila de Monção, no extremo Norte de Portugal, na fronteira
com a Galiza, na Espanha. Seus antepassados também eram naturais de
Monção ou da próxima vila de Viana do Castelo, como a avó materna de
João Pereira Caldas.
Joaquim Tinoco Valente nasceu na vila de Estremoz, na província do
Alentejo, assim como sua mãe e avós maternos. Seu pai e avós paternos
eram naturais de Elvas, também no Alentejo. Manuel Bernardo de Melo
e Castro nasceu em Lisboa, mas sua origem familiar se dividia entre a
província da Estremadura, de onde provinha seu avô materno, nascido na
vila de Cadaval, e a do Alentejo – seu pai era de Estremoz, o avô paterno
de Borba e a avó paterna da vila de Portalegre. A mãe e a avó materna
de Tinoco Valente eram naturais de Lisboa. Na província da Estremadura
também estava radicada parte da família de Gonçalo Lourenço Botelho
de Castro. Embora nascido em Lisboa, pátria de sua mãe, do avô materno
e da avó paterna, seu pai e avô paterno eram de Alenquer e sua avó materna era natural de Santarém, ambas vilas da Estremadura.
Francisco Xavier de Mendonça Furtado e Fernando da Costa de Ataíde Teive eram naturais de Lisboa, assim como seus pais e avós. Sobre Joaquim de Melo e Póvoas e Luís de Vasconcelos Lobo, as informações são
escassas e os registros por vezes equivocados. Em todos os documentos
consultados, inclusive o testamento de Joaquim de Melo e Póvoas, nada é
mencionado a respeito de seu local de nascimento e filiação. E como não
recebeu as mesmas benesses concedidas a seus pares no governo do Estado – mesmo antes de assumirem seus postos –, a exemplo do hábito da
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Ordem de Cristo, os dados biográficos sobre Melo e Póvoas são poucos
e incertos.17
Consta, no entanto, que era “sobrinho” de Mendonça Furtado e
de Sebastião José de Carvalho e Melo, aos quais se dirigia como seus
“tios”.18 O parentesco era remoto, pois, segundo alguns dados recolhidos, Melo e Póvoas seria trineto de Sebastião de Carvalho, moço fidalgo,
desembargador do Paço e cavaleiro professo na Ordem de Cristo, bisavô
de Francisco de Mendonça Furtado e do marquês de Pombal.19 A própria trajetória de Joaquim de Melo e Póvoas como um todo demonstra
a distância parental de seus interlocutores, embora não negue a proteção
que recebeu desde a indicação, em 1757, para primeiro governador da
capitania de São José do Rio Negro e outras mercês.20 Em uma sociedade
na qual o parentesco real e as alianças se confundiam é necessário certo
escrúpulo no emprego de nomenclaturas como tio, primo, filho ou filha e
até mesmo mãe. A correspondência do marquês do Lavradio, publicada
sob os títulos de Cartas da Bahia e Cartas do Rio de Janeiro, é um bom
exemplo de como as relações de parentesco e as alianças não estavam dissociadas. Nas suas cartas, os genros são tratados por “filhos”; nobres de
seu círculo de alianças aparecem como “primos” que nem sempre o eram,
17 – SERRÃO, Joel. “Póvoas, Joaquim de Melo e”. In ______. Dicionário de história de
Portugal. Porto: Iniciativas Literárias, 1971, vol. 5. O verbete nada informa sobre a filiação ou a data de nascimento de Joaquim de Melo e Póvoas. No lugar desta última consta
apenas que o personagem nasceu no século XVIII.
18– Uma boa fonte para a análise das relações entre Joaquim de Melo e Póvoas e os “tios”
Francisco Xavier de Mendonça Furtado e Sebastião José de Carvalho é a correspondência
escrita pelo primeiro quando governava a capitania de São José do Rio Negro. Cartas do
primeiro governador da capitania de São José do Rio Negro, Joaquim de Melo e Póvoas
(1758-1761), transcrição paleográfica e introdução do Prof. Samuel Benchimol. Manaus:
Comissão de Documentação e Estudos da Amazônia, 1983.
19– ALBUQUERQUE, Martim de. Para a história das ideias políticas em Portugal
(uma carta do marquês de Pombal ao governador do Maranhão em 1761). Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, [1968], p. 7. Uma discussão
sobre a concepção da família de Antigo Regime em Portugal encontra-se em HESPANHA, Antônio Manuel. “Fundamentos antropológicos da família do Antigo Regime: os
sentimentos familiares”. In ______ (coord.). História de Portugal – O Antigo Regime.
Lisboa: Editorial Estampa, 1998, vol. 4, p. 245-256.
20– Instituto dos Arquivos Nacionais – Torre do Tombo (doravante IANTT). Registro
Geral de Mercês. D. José I, livro 11, fls. 378-378v.
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biografias e trajetórias administrativas (século
e sua sogra é chamada de “mãe”, quando a verdadeira mãe do marquês já
havia morrido.21
A escassez de dados também se aplica a Luís de Vasconcelos Lobo,
cujas origens são conhecidas por meio de fragmentos da correspondência
de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que se refere ao governador do Maranhão como “filho do brigadeiro Francisco de Vasconcelos”.22
Apesar de sucinta, a única referência à origem de Vasconcelos Lobo permite inferir que se tratava de um homem cuja experiência se constituiu
no manejo das armas e era membro de uma família com alguma tradição
de serviços militares. O casamento, em segundas núpcias, com D. Helena
Lourença de Castro, nascida em Viseu em “família nobre”23, mostra que
Luís de Vasconcelos Lobo estabeleceu vínculos com gente da região da
Beira Alta.
Em relação à condição sócioeconômica das famílias, pode-se afirmar
que quatro dos governadores desfrutavam de rendimentos de morgados
estabelecidos por antepassados mais ou menos remotos, como João Pereira Caldas e seu pai Gonçalo Pereira. Na qualidade de primogênito,
João Pereira Caldas passou a administrar o morgado de São Martinho de
Alvaredo, na comarca de Valença do Minho, após a morte do pai. Ao dito
morgado estava vinculada uma quinta (possivelmente a Quinta de Sende,
onde nasceram gerações da família), no interior da qual havia outras propriedades livres do morgadio.24 Fernando da Costa de Ataíde Teive administrava um morgado instituído na Ilha da Madeira por um antepassado
remoto, Diogo de Teive, um dos primeiros portugueses a se estabelecer
na Ilha Terceira no século XV, passando à Madeira a serviço do infante
D. Henrique.25
21– LAVRADIO, Marquês do. Cartas da Bahia (1768-1769). Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1972. ______. Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776). Rio de Janeiro: SEEC/
RJ, 1978.
22– MENDONÇA, Marcos Carneiro de (coord.). A Amazônia na era pombalina..., t. 1,
p. 238.
23– MARQUES, César Augusto. Dicionário histórico-geográfico da província do Maranhão. Rio de Janeiro: Ed. Fon-Fon & Seleta, 1970, p. 338.
24– IANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 32, fl. 358v.
25– MORAES, Cristóvão Alão de. Pedatura lusitana. Braga: Edição de Carvalhos de
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Além da instituição do morgadio, verificou-se que possuíam propriedades fundiárias não vinculadas, das quais também auferiam rendimentos. A posse desses bens conferia-lhes não apenas riqueza, mas o prestígio
social e a nobreza que os caracterizava, a exemplo de Gonçalo Pereira
Lobato e Sousa e seu filho João Pereira Caldas. Enraizados havia gerações na distante vila de Monção, eram representantes de uma elite provincial baseada na riqueza da terra, nos rendimentos dos senhorios, mas
sem títulos.26
Em outra situação, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, que não
possuía bens de raiz livres de vínculos, mas herdou o morgado instituído
por seu meio-irmão, Pedro José da Silva Botelho, teve que recorrer à
graça régia. Como pretendia se casar, pediu autorização à D. Maria I para
hipotecar os rendimentos do morgado com o objetivo de apurar a quantia
de 500$000 referente às arras previstas no ajuste do enlace.27
Ainda em relação ao status social, todos os elementos dessa amostragem eram cavaleiros professos em ordens militares, principalmente a
Ordem de Cristo. A exceção era Fernando da Costa de Ataíde Teive, que
pertenceu à Ordem de Santiago da Espada e o único que não recebeu a
mercê de um hábito foi Joaquim de Melo e Póvoas. Quatro deles – João
Pereira Caldas; Gonçalo Lourenço Botelho de Castro; Francisco Xavier
de Mendonça Furtado e Gonçalo Pereira Lobato e Sousa – gozavam do
foro de fidalgos da Casa Real. Os dois últimos e Manuel Bernardo de
Melo e Castro desfrutavam também do prestigioso cargo de familiar do
Santo Ofício, de reconhecido prestígio social.
No que concerne à formação, todos eram militares de carreira, construída principalmente no Exército. As exceções ficaram por conta de
Francisco Xavier de Mendonça Furtado e de Gonçalo Lourenço Botelho
Basto, 1997, t. 1, vol. 1, p. 74.
26– MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e poder: entre o Antigo Regime e o Liberalismo.
Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais; Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa, 2003, p. 75-80.
27– IANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 11, fls. 352-352v. O alvará de concessão da
mercê é de 15 de julho de 1778, quando Gonçalo Pereira já havia retornado do governo do
Piauí.
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biografias e trajetórias administrativas (século
de Castro, que serviram na Armada Real. Eram todos descendentes diretos de homens dedicados às armas. Gonçalo Lourenço apresentava uma
lacuna nessa tradição de serviços por ser filho de um negociante de grosso
trato que se estabeleceu ainda jovem em Lisboa, embora o avô paterno
fosse militar.28
Apesar da formação e das experiências concentradas no campo militar, a grande parte dos governadores estudados não participou de eventos
importantes antes de assumirem seus postos na Amazônia. Nesse sentido,
suas folhas de serviço ficavam a dever se comparadas às de seus antecessores da segunda metade do século XVII, credenciados pela participação
nas Guerras da Restauração.29 Francisco Xavier de Mendonça Furtado
participou de expedições de socorro à Colônia do Sacramento, em meados dos anos 1730, quando os castelhanos, após um prolongado cerco,
ameaçaram retomar a possessão disputada com os portugueses.30 Soldado
da Armada Real, permaneceu em Sacramento de dezembro de 1736 a
maio de 1737, partindo para o Rio de Janeiro meses antes da assinatura
do armistício que pôs fim às hostilidades castelhanas. Seguiu então para
Pernambuco a fim de participar do socorro à Ilha de Fernando de Noronha, invadida por franceses.31
Fernando da Costa de Ataíde Teive participou, no posto de coronel,
da Campanha de 1762 – episódio no qual Portugal confrontou-se com a
Espanha –, destacando-se em um de seus principais momentos, o cerco
à praça de Almeida, devidamente registrado como principal feito de sua
trajetória.32 Joaquim Tinoco Valente, por sua vez, integrou o Regimento
de Artilharia do Alentejo, alcançando o posto de capitão após mais de
28– IANTT. Habilitações da Ordem de Cristo, letra G, maço 4, n.º 3 (fl. 17).
29– Biblioteca da Ajuda, 54-XI-27, nº 17. Relação por mapa, dos governadores capitãesgenerais e dos capitães-mores que governaram o Maranhão e Pará; e depois esta última
distinta e separadamente até 1783, fl. 25.
30– POSSAMAI, Paulo. A vida quotidiana na Colônia do Sacramento (1715-1735). Lisboa: Editora Livros do Brasil, 2006, p. 22-23.
31– IANTT. Ministério do Reino. Decretos (1745-1800), pasta 13, n.º 83.
32– IANTT. Ministério do Reino. Decretos (1745-1800), pasta 17, n.º 27. IANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 43, fls. 67-67v. Biblioteca da Ajuda, 54-XI-27, nº 17, Relação..., fl. 25.
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30 anos de serviço. Recompensado com o hábito de Cristo, deixou o regimento em janeiro de 1762. Não consta que Joaquim Tinoco lutou na
Campanha de 1762 ou foi subordinado a Fernando de Ataíde Teive, não
sendo impossível que este último aspecto tenha se verificado.
Certo é que no ano de 1763 os dois foram nomeados, respectivamente, governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão e
governador do Rio Negro. A medida visava aproveitar a experiência dos
militares em uma província vizinha à fronteira de Portugal com a Espanha, a fim garantir a defesa dos territórios das duas capitanias confinantes
com domínios castelhanos, uma vez que a guerra de 1762 trouxe consequências para os territórios portugueses ao Norte e ao Sul.
A tradição de serviços na Índia e em Angola também é um traço
perceptível na trajetória das famílias de Manuel Bernardo de Melo e Castro, de Fernando de Ataíde Teive, de Gonçalo Pereira Lobato e Sousa e,
consequentemente, de João Pereira Caldas, que herdaram serviços de antepassados. Neto do 4º conde das Galveias, Manuel Bernardo era aparentado dos Castro de Melgaço, ramo estabelecido no governo do Estado da
Índia desde meados do século XVII.33 João Pereira Caldas (homônimo do
neto), o próprio Gonçalo Pereira Lobato e Sousa (com cerca de 15 anos)
e um tio, Gregório Pereira Soares, serviram na Índia no século XVII.34 O
avô de Fernando de Ataíde Teive, Gaspar de Ataíde Teive, também esteve
no Oriente, herdou os serviços de um tio, D. Jerônimo de Azevedo, vicerei da Índia (1612-1617) e combateu os franceses nas águas da Guanabara
em 1711, na qualidade de cabo da esquadra enviada de Portugal.35 Com
isso, as carreiras dos descendentes foram acrescentadas, reforçando a participação das famílias no serviço à monarquia.36
33– CUNHA, Mafalda Soares da e MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Vice-reis, governadores e conselheiros de governo do Estado da Índia (1505-1834). Recrutamento e caracterização social”. Penélope, nº. 15 (1995), Lisboa, p. 112.
34– IANTT. Chancelaria da Ordem de Cristo, livro 67, fls. 33v-35.
35– IANTT. Chancelaria da Ordem de Santiago, livro 28, fl. 432-433; Registro Geral de
Mercês, D. João V, livro 6, fls. 57-57v. Ver também PITA, Sebastião da Rocha. História
da América portuguesa, desde o ano de 1500 do seu descobrimento até o de 1724. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976, p. 254-255.
36– MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites..., p. 77. Nuno Monteiro chama atenção para a
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biografias e trajetórias administrativas (século
A remuneração dos serviços
No que diz respeito aos préstimos à monarquia, independentemente
das peculiaridades dos perfis e das trajetórias no Estado do Grão-Pará e
Maranhão – e em outros domínios ultramarinos ou mesmo no Reino –,
quase sempre não se escapava às engrenagens de um mecanismo inerente
às relações entre o rei e seus fiéis vassalos: o do serviço e remuneração,
enraizado nos costumes e na identidade da sociedade portuguesa de Antigo Regime.37
Na retomada da carreira militar, Manuel Bernardo de Melo e Castro
desempenhou o governo das armas das importantes províncias de Elvas e
do Alentejo. Foi o único governador do Estado agraciado com um título
de nobreza – o de visconde da Lourinhã (com o senhorio da mesma vila)
–, em 1777, além da alcaidaria-mor de Sernancelhe e da comenda de São
Pedro das Alhadas, da Ordem de Cristo, mercês concedidas menos em
atenção aos seus préstimos no Grão-Pará e Maranhão do que aos serviços
do irmão, Martinho de Melo e Castro.38
João Pereira Caldas voltou a Portugal em 1789, falecendo cinco anos
depois. Sua trajetória culminou com a nomeação para o Conselho Ultramarino, em reconhecimento da vasta experiência adquirida no ultramar,
onde serviu 36 dos seus 58 anos de vida.39 Também foi elevado a marechal de campo40, ilustrando uma tendência iniciada no reinado de D. José
I, sobretudo após as reformas militares do conde de Lippe, de acesso da
“fidalguia de província” aos postos mais altos da oficialidade.41 João Pereira Caldas morreu endividado. Quando faleceu, seu irmão e “universal
importante contribuição dos serviços de irmãos e/ou tios que detinham posições privilegiadas na carreira eclesiástica, o que não exclui a legação dos préstimos por indivíduos
dedicados a outras atividades.
37– XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, Antônio Manuel. “As redes clientelares”
In HESPANHA, Antônio Manuel (coord.). História de Portugal... , vol. 4, p. 346-348
(tópico “Serviços e mercês”).
38– IANTT. Ministério do Reino. Decretos (1745-1800), pasta 26, n.º 39. IANTT. Registro Geral de Mercês. D. Maria I, livro 1, fl. 330.
39– IANTT. Registro Geral de Mercês. D. Maria I, livro 25, fl. 205v.
40– SERRÃO, Joel. “Caldas, João Pereira”. In ______. Dicionário..., vol. 2.
41– MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites..., p. 119 segs.
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herdeiro”, Gonçalo José Pereira de Castro e Caldas, marechal de campo e
comandante do Regimento de Infantaria de Valença, no Minho, dirigiu-se
a Lisboa para reclamar a satisfação dos serviços do irmão, de seu pai e de
um tio, ainda não remunerados. As fazendas da família estava arruinadas
e as terras “livres de morgado não chega[va]m para a satisfação das consideráveis dívidas contraídas no Real Serviço”.42
Joaquim de Melo e Póvoas, cuja folha de serviços começa com o
governo de São José do Rio Negro, não logrou qualquer recompensa ao
voltar a Lisboa. De origem obscura, sem respaldo em aliados poderosos,
à exceção do marquês de Pombal, sentiu diretamente os efeitos de sua
queda, em 1777. De volta a Portugal dois anos depois, caiu no ostracismo
e morreu pobre, em 1787, sem nunca mais se encartar no Real Serviço.
Seu testamento revelou que possuía uma pequena quantidade de moedas,
doadas a alguns serviçais, credores e aos pobres.43 O primo e herdeiro,
Joaquim Francisco de Melo e Póvoas, recebeu a título de recompensa por
seus próprios serviços e os do ex-governador, apenas a comenda de São
Miguel de Aveiro, da Ordem de São Bento de Avis, e uma tença vitalícia
de 50$000 réis.44
Em 1792, Fernando da Costa de Ataíde Teive encontrava-se na primeira plana do Exército, como tenente-general, e prestes a assumir o governo das armas da província do Alentejo, na sucessão de Manuel Bernardo de Melo e Castro, assim como no Grão-Pará e Maranhão. Recebeu
também a mercê do senhorio do concelho de Baião e várias terras, sobre
as quais possuía direitos de nomear oficiais e de recolher tributos, conforme os respectivos forais.45
42– IANTT. Ministério do Reino. Decretos (1745-1800), pasta 56, n.º 26.
43– IANTT. Ministério do Reino. Decretamentos de Serviços, maço 119, nº. 1, serviços
de 1790. O testamento de Joaquim de Melo e Póvoas está apenso ao memorial de serviços.
44– IANTT. Ministério do Reino. Decretamentos de Serviços, maço 129, nº. 28, serviços
de 1791.
45– IANTT. Ministério do Reino. Decretos (1745-1800), pasta 17, nº. 27. IANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 43, fls. 67-67v.
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O governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão:
XVIII)
biografias e trajetórias administrativas (século
Ataíde Teive estava, contudo, assoberbado de dívidas contraídas desde quando serviu na Campanha de 1762 e no governo do Estado, as quais
“até o presente lhe não fora possível pagar nem o poderia conseguir para
se ver livre da opressão que lhe faziam os seus credores, sem tomar algum
dinheiro a juro”. Os bens que possuía eram vinculados e a única alternativa possível era hipotecar seus rendimentos – no caso, de um morgado na
Ilha da Madeira instituído por um seu ancestral, Diogo de Teive46 – a fim
de oferecê-los como garantia pelos 15 mil cruzados que pretendia tomar
de empréstimo. E para que pudesse desempenhar a nova comissão “com
o decoro próprio”, requeria o consentimento da rainha para hipotecar as
rendas do morgado.47 Dessa forma, asseguraria não só a satisfação de seus
empenhos, mas também as condições mínimas para a conservação do seu
status e a continuidade da ascensão no Real Serviço.48 Exemplo disso foi
a conquista de um lugar no Conselho da Guerra.49
Nos últimos anos de vida, apesar da idade avançada, ainda cuidava pessoalmente dos negócios da Casa, como se depreende da provisão
(registrada em 24 de outubro de 1805) que lhe autorizava celebrar novo
contrato com Nicolau Maria Raposo, da Ilha de São Miguel (Açores) para
o arrendamento por mais 12 anos do morgado que Ataíde Teive administrava na Ilha da Madeira.50 Uma mostra de que as dívidas – de mais de
30 anos – ainda não haviam sido liquidadas. Faleceu em 21 de janeiro de
1807, “com 78 anos e oito dias de idade”.51
As recompensas e a ascensão social de Gonçalo Lourenço Botelho
de Castro despertam a atenção não só pela diversidade de seus desloca46– Diogo de Teive, filho de Lopo Afonso de Teive (escudeiro e provedor da Albergaria
de Rocamador, no Porto), passou à Ilha Terceira quando esta foi descoberta e depois à
Madeira, a serviço do infante D. Henrique. MORAES, Cristóvão Alão de. Pedatura lusitana..., vol. I, t. 1º, p. 74.
47– ANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 43, fls. 67-67v.
48– XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, Antônio Manuel. “As redes clientelares”...,
p. 343.
49– ANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 73, fls. 94v-95.
50– IANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 75, fl. 145v.
51– BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará. Belém: Universidade Federal do
Pará, 1973, p. 29.
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mentos, mas pelo valor das mercês com que foi agraciado. Na verdade,
sua promoção no Real Serviço deveu-se menos aos seus feitos na Armada
e no Piauí do que ao casamento, em 16 de julho de 1778, com D. Ana Joaquina Apolônia de Vilhena Abreu Soares, sobrinha pelo lado materno de
Jerônimo Antônio Pereira Coutinho Pacheco de Vilhena e Brito, 1º marquês de Soidos.52 Por sinal, foram os serviços de D. Ana Apolônia como
açafata da rainha-mãe (D. Mariana Vitória), e de sua filha (a infanta D.
Mariana, irmã de D. Maria I), que estimularam a promoção de Gonçalo
Lourenço. Um requerimento da esposa rendeu ao marido o foro de fidalgo
cavaleiro da Casa Real.53
A despeito da administração conturbada no Piauí, que culminou com
a sua destituição e prisão no Maranhão, Gonçalo Lourenço foi nomeado engenheiro-mor do Reino, com a patente de brigadeiro de infantaria;
marechal de campo; tenente-general (o posto mais alto na hierarquia militar); guarda-roupa da Câmara Real; censor da Mesa do Desembargador
do Paço e membro da Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica. O
enobrecimento de Gonçalo Lourenço ficou patente com a concessão, em
1785, da “carta de privilégios de fidalgo”.54
A notável ascensão de um homem oriundo de uma família da província, com tradição de serviços militares ao Reino, não podia passar despercebida. O seu testamento e, principalmente, o de sua esposa foram
os elos que faltavam para completar o entendimento das promoções de
Gonçalo Lourenço no Real Serviço, iniciada com o casamento. A análise
dos documentos mostrou que D. Ana Apolônia era uma mulher rica e
influente. Seu testamento sugere também que as mercês recebidas por
Gonçalo Lourenço podem estar relacionadas à influência da parentela e
das alianças de D. Ana Apolônia. Prima de Antônio de Araújo de Azevedo
52– MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O crepúsculo dos grandes. A Casa e o patrimônio da
aristocracia em Portugal (1750-1832). 2ª ed., Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2003, p. 271.
53– IANTT. Registro Geral de Mercês. D. Maria I, livro 5, fls. 61-61v.
54– IANTT. Ministério do Reino. Decretamentos de Serviços, maço 165, nº. 1, serviços
de 1803.
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O governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão:
XVIII)
biografias e trajetórias administrativas (século
(conde da Barca em 1815) legou-lhe todas as obras de arte que desejasse
retirar da casa da Rua Direita de São Sebastião.55
Os bens vinculados que D. Ana Apolônia administrava desde a morte de Gonçalo Lourenço, em 1801 (sem remuneração pelos serviços no
Piauí), estavam bastante empenhados. Para saldar essas dívidas e outra
pendente no Erário Régio, instruiu em testamento à sua irmã e testamenteira, D. Mariana Joaquina, a pedir ao desembargador Manuel José de
Arriaga Brum da Silveira que a isentasse de prestar contas em juízo. Isto
porque D. Mariana Joaquina era casada com Miguel de Arriaga Brum da
Silveira, que tinha dois irmãos, João e José. Este último era pai do desembargador Manuel José, sobrinho torto de D. Mariana Joaquina a quem sua
irmã se referiu como potencial intercessor.56
Considerações finais
A referência ao Estado do Grão-Pará e Maranhão associado ao período pombalino deriva em certa redundância, que se esvai rapidamente
quando se trata de realçar a história de uma repartição pouco atendida
pela historiografia recente, especialmente no que concerne à administração colonial. Nesse sentido, a renovação dos estudos biográficos e a abordagem das trajetórias governativas ofereceram a oportunidade de refletir
sobre a posição do Estado no cenário espacial e político-administrativo
da América portuguesa. Está aberta ainda a possibilidade de um estudo
comparativo dos percursos e dos perfis de governantes que atuaram nas
capitanias do Estado do Brasil.
55– IANTT. Registro Geral de Testamentos, livro 348, fls. 24v-26 (Gonçalo Lourenço
Botelho de Castro); livro 355, fls. 207-208v (D. Ana Joaquina Apolônia de Vilhena Abreu
Soares). Ver também ZÜQUETE, Afonso Eduardo Martins. Nobreza de Portugal e do
Brasil. 3ª ed., Lisboa: Edições Zairol, 2000, vol. 2, p. 373-375.
56– GAYO, Felgueiras. Nobiliário das famílias de Portugal, 2ª ed., Braga: Edições Carvalhos de Basto, 1989, vol. IV, p. 525. Ver também CORRÊA, Manuel de Mello (dir.).
Anuário da nobreza de Portugal. Lisboa: Instituto Português de Heráldica, 1985, t. II, p.
191.
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Fabiano Vilaça dos Santos
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Artigo apresentado em dezembro /2009. Aprovado para publicação
em fevereiro /2010.
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A Utopia Possível:
Uma experiência de desenvolvimento regional, séculos XVII e XVIII
A UTOPIA POSSÍVEL
Uma experiência de desenvolvimento regional,
sÉcULOS XVII e XVIII
THE POSSIBLE UTOPIA
An experience on regional development,
17th and 18th centurIES
Miranda Neto 1
Resumo:
A Utopia Possível descreve o processo de desenvolvimento regional sustentável das trinta
missões jesuítico-guaranis instaladas em cerca
de 500.000 km² nas terras das bacias dos rios
Paraguai, Paraná e Uruguai durante mais de
cento e cinquenta anos (séculos XVII e XVIII)
apesar de todas as vicissitudes, demonstrando
propósitos de geopolítica colonial.
Palavras-chave: Desenvolvimento regional
integrado, Missões jesuítico-guaranis, Núcleos
produtivos, Bacias dos rios Paraguai, Paraná e
Uruguai e Geopolítica colonial.
Abstract:
The Possible Utopia describes the successful
process of regional sustained development of
the thirty jesuit-guarani missions (circa 500.000
square kilometers) in the Paraguai, Paraná and
Uruguai basins during more than hundred and
fifty years (from the 17th to the 18th century) in
spite of all difficulties, proving the aims of the
colonial geo-policy.
Keywords: Regional development, Jesuit-guarani missions, Productive “clusters”, Paraguai,
Paraná and Uruguai basins, Colonial geo-policy.
A Utopia Possível pretende divulgar o sucesso de uma experiência
de desenvolvimento regional integrado de pueblos guaranis que dominaram terras das bacias dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai, do século XVII
ao século XVIII em cerca de 500.000 km2.
A análise do suporte econômico-ecológico do “modelo missões” revela a atuação dinâmica dos jesuítas e sua diversificada cultura humanista, a introdução de nova disciplina e tecnologia tanto no setor rural como
no artesanato, na construção civil e naval e, sobretudo, o usufruto racional
da biodiversidade regional, respeitando o equilíbrio ecológico.
1 – Economista (UFRJ), pós-graduado em Economia Rural (Stanford University) e em
Desenvolvimento Agrícola (FGV-UFRRJ). Membro da Academia Paraense de Letras e do
Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Professor convidado da Universidade Livre de
Berlim.
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Miranda Neto
O maior mistério é descobrir de que modo os missionários conseguiram transferir populações inteiras – verdadeira transmigração de tribos
diversas, com culturas diferenciadas – de ameríndios para povoados sob
outra organização social. E como conseguiram – respeitando em parte
a cultura autóctone – integrar aos poucos esses povos em uma proposta alternativa aceita pelos guaranis, copartícipes da gestão comunitária
dos vários núcleos urbanos. Historiadores estão empenhados em desvendá-lo.
A Utopia Possível tem como principal objetivo despertar a atenção
de intelectuais e lideranças para uma alternativa sociopolítica e econômica que conseguiu integrar vários núcleos produtivos em um processo de
desenvolvimento regional durante mais de cento e cinquenta anos, apesar
de todas as vicissitudes.
Torna-se vital desvendar o sentido da utopia que decretou seu próprio destino ao tornar-se, na colônia, um projeto anticolonial. Na verdade,
as missões provaram ser a utopia possível, desenvolvendo com pertinácia a opção autossustentável com gestão compartilhada. E conseguiram
propagar sua herança cultural séculos afora. Ícones e relatos, tecnologia
e conhecimento, produção e poder até hoje continuam vívidos nas ruínas
das catedrais, nas imagens dos santos, na saga dos jesuítas e dos guaranis,
no maravilhoso esplendor alcançado com o aprimoramento contínuo das
artes e ofícios cuja preciosa amostra arqueológica espelha a luta recorrente para a conquista sublime da universal utopia de felicidade, que transcende os povos e os tempos.
Economista (UFRJ), pós-graduado em Economia Rural (Stanford
University) e em Desenvolvimento Agrícola (FGV-UFRRJ). Membro da
Academia Paraense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do
Pará. Professor convidado pela Universidade Livre de Berlim.
“As missões jesuítico-guaranis desmentiram, de forma concreta e eloquente, o preconceito de que os índios seriam incapazes para a vida
sedentária e inadaptáveis às formas superiores de civilização, argumento utilizado para tentar justificar sua escravização ou extermínio.
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A Utopia Possível:
Uma experiência de desenvolvimento regional, séculos XVII e XVIII
Na verdade, criaram comunidades livres, fraternais e igualitárias sem
outras armas que a compreensão e a persuasão, em contraste com a
maciça e desumana violência que marcou o empreendimento colonial.”
Décio Freitas in Missões Jesuítico-Guaranis.
São Leopoldo: Unisinos, 1999.
A República Guarani foi admirável exemplo de sucesso de modelo
sociopolítico-administrativo-econômico pelo qual os intelectuais da Europa dos séculos XVII e XVIII provaram sua competência. Ao criarem
uma alternativa de sistema integrado de vários núcleos urbanos, interligados com seus respectivos entornos agropecuários de subsistência e
abastecimento, conseguiram formar uma sociedade dotada de avançada
tecnologia por quase dois séculos, segundo planos estudados e aperfeiçoados ao longo do tempo, adaptados à região e incorporados à vivência e
à cultura guarani.
As missões jesuíticas desmentem em parte a noção geralmente aceita
da irremediável destruição de culturas autóctones pela conquista, colonização ou contato. Evidente que neste processo de aculturação há sempre
uma certa perda de identidade cultural que, em casos extremos, pode até
representar o fim de um grupo étnico. Alguns elementos podem sobreviver e se adaptar à nova realidade, mas perdem parte da energia, do entusiasmo, do orgulho, da criatividade, da vontade, pois o que mantém o
grupo coeso e atuante é sua cultura, sua mitologia, sua identidade como
povo que o torna ímpar, característico, uno, dotado exatamente do diferencial que o distingue dos demais.
A Utopia Possível tentará demonstrar de que modo os missionários
nos séculos XVII e XVIII conseguiram não só transferir populações inteiras para novos povoados sob outra organização social como ainda, respeitando a cultura autóctone, integrá-la em uma proposta alternativa aceita pelos guaranis, copartícipes da gestão comunitária dos vários núcleos
urbanos do sistema Missões. Novos talentos nas artes, na manufatura, no
artesanato, na música, na escultura, na construção civil e naval, na cerâ-
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Miranda Neto
mica, na tipografia, na ferraria, na marcenaria e na carpintaria demonstraram que os neófitos estavam felizes, orgulhosos e realizados em sua nova
condição de aldeados.
A política de aldeamentos colocava os índios em uma condição jurídica específica, atribuindo-lhes, além de obrigações, alguns direitos que
eles lutaram por garantir. Assumiram-se como sujeitos desse processo de
mudança que os transformou e adaptou à nova realidade, utilizando com
eficiência o instrumental necessário para a plena realização de sua identidade missioneira, colocado à sua disposição pelos jesuítas.
Qual a importância, para o Brasil de hoje, de se analisar uma alternativa válida no século XVIII? Na verdade, o sucesso das missões jesuíticoguaranis são a prova de que um modelo de desenvolvimento sustentável tem muito a nos ensinar quanto a trabalho comunitário, propriedade
coletiva dos meios de produção, tolerância a mundividências diversas,
preservação da biodiversidade.
Apesar de severos críticos dos jesuítas, Voltaire, D´Alembert e Montesquieu destacaram o sucesso das missões guaranis, fundamentadas
nas Utopias de Platão e Thomas More, como “triunfo da Humanidade”.
Inúmeros episódios da epopeia guarani de tão ricos e dramáticos podem
inspirar argumentos para romances, filmes e minisséries de TV como já
ocorreu com A Missão, filme da década de 1970, O Tempo e o Vento, romance de Érico Veríssimo e Sepé Tiaraju, romance de Alcy Cheuiche.
A proto-história dos primitivos habitantes da América Latina é a
narrativa de sua destruição enquanto grupos humanos étnica e linguisticamente distintos. Compreende um processo de mudanças sociais em
que os aborígines sobreviventes associados aos ainda menos numerosos
imigrantes europeus constituíram nova sociedade, esta mais ‘indígena’ do
que europeia, tanto na cultura como na estrutura, à revelia dos governos
coloniais.
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A Utopia Possível:
Uma experiência de desenvolvimento regional, séculos XVII e XVIII
Sua formação constituiu um triunfo do sistema indígena de sobrevivência no difícil ambiente hostil, apresentando com orgulho a ‘tecnologia
cabocla’ até hoje eficiente embora nem sempre valorizada.
Esses colonizadores-missionários desbravadores ultrafronteiras
eram homens de grande tenacidade e determinação que, com astúcia, observavam atentamente o processo social para poder transformá-lo apesar
da escassez de seus membros. Mas eles não eram conquistadores. Sua
sobrevivência e seu sucesso não foram resultado de força física superior
nem de esmagadora dominação cultural mas de uma bem-sucedida e inevitável adaptação à sociedade indígena.
O mais importante aspecto da República Guarani é ter comprovado
na prática a viabilidade da alternativa autossustentável, revelando profundo respeito aos recursos naturais e perfeita integração de diversas tecnologias e visões de mundo ao reproduzir com êxito a opção agroambiental.
Ainda não foi devidamente avaliada a importância do extraordinário
sucesso alcançado pelas missões guaranis durante mais de século e meio,
apesar das brutais investidas dos bandeirantes, das crises de abastecimento, das doenças, dos ataques das feras e de outros povos belicosos. Os jesuítas se destacaram como missionários, eficientes administradores, educadores até hoje disputados, linguistas, artistas, construtores, arquitetos,
músicos, cultos e hábeis conciliadores e negociadores diplomatas além
de religiosos competentes em sua catequese que respeitava outra cultura
e outros valores dentro de engenhoso ‘modelo de segregação relativa’ do
autóctone.
Analisar os resultados da ação desta diversificada cultura humanista
que possibilitou o desenvolvimento do sistema autossustentável com tecnologia cabocla e usufruto racional da biodiversidade constitui o objetivo
do presente estudo.
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Estrutura, Produção e Renda
Uma república-modelo dominou mais de trinta missões jesuíticas
guaranis em cerca de 500 mil quilômetros quadrados desde o atual Paraguai até o Uruguai, do Paraná ao Rio Grande do Sul durante mais de 150
anos. Ainda hoje ignora-se que vigorava o regime de propriedade coletiva
dos meios de produção e uma estrutura ímpar de organização políticoadministrativa voltada ao crescimento socioeconômico e às artes – tudo
sob orientação cristã. O sucesso e a sustentabilidade do modelo guarani
despertava inveja e cobiça de outros povos e culminou nos insistentes
assaltos dos bandeirantes, ávidos em escravizar os qualificados artesãos,
agricultores e pecuaristas e em se apoderar de sua diversificada produção,
prova material da existência de outro caminho na exploração e repartição
da riqueza.
A República Guarani estruturou suas próprias leis civis e penais,
delegou funções próprias às autoridades e controlava rigorosamente seu
orçamento. As fronteiras eram bem-delimitadas e defendidas sobretudo
após a Coroa espanhola ter permitido a seus habitantes armarem-se contra
as agressões externas. Sua economia era autossustentável: não dependia
de fluxos financeiros internacionais. Representava, portanto, uma ameaça
aos grandes interesses que dominavam o mundo colonial.
Cada missão era administrada por um Conselho ou Cabildo, formado pelo corregedor ou prefeito, geralmente o próprio cacique indígena, no
exercício da administração, auxiliado por um alcaide (vice-prefeito) na
função de inspetor de ensino, por um fiscal e cartorário, um alguacil ou
comissário-administrativo, dois juízes e dois oficiais de Polícia. Quatro
conselheiros e respectivos assessores em número proporcional ao número
de habitantes completavam a estrutura político-administrativa. Os chefes
de setores eram escolhidos pelos próprios indígenas “dentre os mais fervorosos cristãos”, sob supervisão dos jesuítas
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A Utopia Possível:
Uma experiência de desenvolvimento regional, séculos XVII e XVIII
ESTRUTURA POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DO SISTEMA COLONIAL ESPANHOL
PODER ESPIRITUAL
PODER MATERIAL
REI
(Madri)
PAPA
(Roma)
CONGREGAÇÃO DOS
PADRES GERAIS
(Roma)
VICE-REI
DO PERU
(Lima)
CONSELHO
DAS ÍNDIAS
(Madri)
(Poder Executivo)
PROVÍNCIA JESUÍTICA DO
PARAGUAI
NAS CIDADES
NO INTERIOR
ARCEBISPO
(Lima)
BISPO DE
B. AIRES
(Poder Jurídico)
GOVERNADOR
DA
PROVÍNCIA
DO RIO DA
PRATA
(Buenos Aires)
GOVERNADOR
DA
PROVÍNCIA
DO PARAGUAI
(Assunção)
PROVINCIAL
(Córdoba)
BISPO DE
ASSUNÇÃO
SUPERIOR
(Candelária)
CIDADES, ALDEIAS, POVOADOS MISSIONÁRIOS, FAZENDAS, ESTÂNCIAS E ERVAIS
PADRES MISSIONÁRIOS
CABILDOS INDÍGENAS
(CONSELHOS)
(CONSULTORES DOS CABILDOS)
CONFEDERAÇãO DAS MISSÕES
CADA MISSãO
1ª. fase
SUPERIORES JESUÍTAS
1.
GUAIRÁ(Paraná)
2.
YAPEYÚ (Uruguai)
CABILDO
(CONSELHO)
CORREGEDOR (Prefeito) CACIQUE
ALCAIDE (Vice-Prefeiro, Inspetor de Ensino)
2ª. fase
UM SUPERIOR
Visitava reduções
(Adm. Itinerante)
2 JUIzES
Diretrizes de Política Desenvolvimentista
UNIDADE + UNIFORMIDADE
FISCAL
2 OFICIAIS
DE POLICIA
ALGUACIL
comissário
4 REGEDORES + ASSESSORES (Cf. no hab.)
CHEFES DE SETORES
Escolhidos pelos indígenas “ dentre fervorosos cristãos”
sob supervisão dos jesuítas
Total: de dez a vinte pessoas “as mais qualificadas”
29
Figura 01
As sessões de conferência reuniam pároco-corregedor-conselho com
a assessoria e a orientação dos jesuítas. Cada redução formava pequena
república independente para sua administração interna. A Confederação
das Missões se reunia para coordenar as diretrizes de Comércio Exterior,
a Legislação Civil, Penal e Militar. Durante a primeira fase da República
Guarani, dois superiores administravam a Confederação das Missões: um
em Guairá no Paraná e outro em Yapeyú no Uruguai. Na segunda fase,
um só Superior-geral visitava regularmente todas as reduções para poder
traçar diretrizes de política de desenvolvimento para o conjunto de comunidades com o objetivo de manter sua unidade e uniformidade.
Os jesuítas conservavam controle sobre o funcionamento da estrutura político-administrativa e exerciam sua autoridade, na plenitude. Em
qualquer dúvida ou disputa eram chamados pelos índios. Entretanto, deixavam-nos assumir sua responsabilidade. Em certos casos o bom senso e
a consciência substituíam a lei. A manutenção da ordem e a aplicação das
leis eram exercidas sobretudo de modo preventivo. As punições se restringiam a orações, jejuns, prisão e açoite não ultrapassando vinte e cinco
aplicações. Se necessário, o azorrague seria utilizado novamente alguns
dias após. Os crimes mais graves eram punidos com prisão perpétua ou
banimento para missões distantes. Não se aplicava a pena de morte.
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Miranda Neto
Em comparação com o Direito Penal vigente na Europa, a legislação
nas missões era bem magnânima, pois a convicção dos jesuítas fundamentava-se no vigor da fé cristã em proteger os costumes e a ordem pública.
A ascensão social ocorria pelo valor e mérito pessoal nessas comunidades
sem classes nem privilégios, sem intermediação da moeda. Só podia exercer algum cargo público quem denotasse competência e honestidade.
A ordem pública conseguiu se manter durante século e meio nas trinta e tantas reduções, prezando a liberdade individual, o respeito ao próximo e a autoridade jesuítica cujo poder moral conservou-se inalterado.
De início os bens pertenciam a todos os habitantes da redução. Desconhecia-se o comércio privado: o resultado da colheita era recolhido aos
armazéns públicos para depois ser distribuído pelos chefes de bairro e
estes pelas famílias conforme o número de seus dependentes. Não havia
cercas demarcatórias entre terrenos diversos, pois tanto os equipamentos
quanto a terra pertenciam a toda a comunidade. Apesar de ninguém possuir nada próprio, todos dispunham e tinham acesso a tudo. A propriedade
coletiva dos meios de produção predominou entre os índios das reduções
na fase inicial da colonização. Tupambaé era a área comum e Abambaé
correspondia ao terreno de cada família. Pouco antes de sua expulsão, os
jesuítas tentaram introduzir um sistema híbrido que contemplava a propriedade privada, não tendo obtido êxito devido ao desinteresse e resistência passiva dos guaranis. Mesmo assim, em alguns povoados surgiram
‘empreendedores individuais de alguns lotes’, pois já tinham conseguido
aval do Conselho para iniciarem a experiência. Cada lote era ‘emprestado’ pela República: cada família poderia apenas exercer o usufruto e não
o herdava. O lote do pai retornava à comunidade quando de sua morte.
A viúva e os filhos teriam direito somente à subsistência até o casamento
de cada jovem, quando outro lote lhe era cedido, iniciando-se novo ciclo.
Com as moradias ocorria o mesmo.
Os instrumentos de trabalho, os animais de tração, as sementes e o
gado de corte e leiteiro continuaram sendo propriedade comum durante
a experiência com os lotes. Os indígenas apenas possuíam as galinhas. A
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experiência em distribuir os bovinos e os equinos entre os guaranis na esperança de estimulá-los a produzir não deu certo. Nem mesmo se conseguiu que se interessassem mais pelo lote. Contentavam-se só em possuir
um único cavalo ou uma mula para seu transporte. A ideia de apropriação
de terras permanecia estranha à sua mentalidade. Bastava-lhes a segurança e a previdência coletivas suficientemente integrais.
Entretanto eram considerados excelentes vaqueiros e elogiados na
sua maneira de cuidar das estâncias, sem interferência dos missionários.
O trabalho em comum era executado com prazer e alegria. Já a produção
nos lotes era negligenciada, sem os cuidados tomados nos terrenos coletivos. As grandes plantações – tabaco, cana-de-açúcar, mate, anil, algodão
– exigiam extensões de terra contínuas. Portanto, o sistema de lotes não
as afetou, pois a maioria dos agricultores continuou produzindo. O loteamento destinava-se apenas às culturas alimentares de subsistência.
Apesar dos esforços da administração geral das reduções, a tentativa
de introduzir o regime de propriedade privada fracassou, pois os índios
já estavam acostumados a produzir em comum nas terras indivisas, mantendo garantida sua sobrevivência além do excedente comunitário. As
condições de trabalho comportavam jornadas de 6 a 8 horas diárias com
intervalo para almoço. Praticamente todos se dedicavam à agricultura,
sendo que as mulheres cuidavam da costura, da lavagem de roupas, da
alimentação, do artesanato – este ensinado às crianças e aos jovens os
quais eram estimulados à caça, à pesca, à coleta de sementes e frutos –,
tudo intercalado com esportes, brincadeiras e jogos. Danças e pantomimas também animavam as festas após as grandes colheitas de que todos
participavam com alegria. As da erva-mate transformavam-se às vezes
em penosas expedições a áreas longínquas e inóspitas, pois a demanda
externa exigia enormes cultivares.
Alguns campos eram irrigados por canais artificiais que se prolongavam pelas lavanderias comunais e grandes viveiros hortícolas das reduções. Os índios já cultivavam milho, mandioca, batata-doce e erva mate.
Os jesuítas introduziram o trigo, a cevada, o arroz, a cana-de-açúcar, o
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algodão, o fumo e o cânhamo para a produção de tecidos. Os padres reservavam uma horta para experimentação sempre nos fundos do Colégio.
Hortaliças e frutas, flores e plantas ornamentais e medicinais garantiam a
alimentação e a saúde da comunidade.
Caixas de ‘Censos’ da comunidade
O sistema de autofinanciamento dos guaranis teve origem uns 50
anos antes de 1606 quando, durante o governo do Rio da Prata os franciscanos resolveram fundar missões fixas como a de São José de Caazapá, substituindo os gestores dos encomenderos. Àquela época já estavam
aplicando os conceitos de bens e caixas de réditos da comunidade destinadas a empréstimos públicos nas províncias do vice-reino do Peru e da
Nova Espanha. Os autóctones tinham acesso aos recursos disponíveis,
pagavam menos impostos e gozavam de melhores condições de trabalho
do que nos regimes anteriores. Empréstimos e doações geravam juros e
lucros assim como os arrendamentos de terras a terceiros. Havia estreita relação entre a ‘caixa comunitária’ e os armazéns de abastecimento,
cujos estoques reguladores nas entressafras poderiam ficar comprometidos, com eventuais inadimplências dos mutuários. O principal resultado
econômico deste sistema se refletiu no aumento da diversificação da capacidade produtiva, possibilitando investimentos em hospitais, estâncias,
ervais e criatórios; na expansão dos cultivos, da pesca e na extração do
sal e outros minerais. A contabilidade, as anotações diárias e os balanços
semanais ofereciam um retrato da administração financeira das ‘doutrinas’, reduções ou missões. Ao reconhecer para os indígenas o direito de
propriedade e uso de suas terras, as minas de ouro e prata poderiam igualmente ser exploradas por eles ou pelos colonos espanhóis.
A produção de várias missões (e suas compras) era coordenada a
fim de melhorar a vida e a participação dos próprios guaranis. A renda
auferida com a venda de produtos e serviços, bem como as doações podia
ser reinvestida para o aumento da própria capacidade produtiva e para
as obras públicas (hospitais, escolas) em várias paróquias, diversificando
atividades e oportunidades de novas modalidades de renda em regiões
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de solos pouco férteis e de baixa produtividade: pesca, extração de sal e
outros minerais.
Entretanto, alguns problemas prejudicaram o desempenho das ‘caixas comunitárias’: a aptidão e responsabilidade de seus administradores,
e a inadimplência, gerando atrasos nos réditos (juros, lucros) e dificultando a recuperação das importâncias aplicadas, sobretudo as efetuadas
pelas autoridades em nome da comunidade. A consequência mais grave
era o prejuízo coletivo pois, durante um determinado período, havia a
privação do estoque regulador na entressafra, gerando grande risco para
a coletividade.
Durante o clima social de conflito, os custos de transação (conhecimento do mercado, riscos, capacidade de negociar com os comerciantes)
aumentavam. Contudo os jesuítas sempre contavam com amigos e admiradores fiéis em Assunção e outras cidades estratégicas para garantir a comercialização de seus produtos e o abastecimento próprio das missões.
Ofícios de Missões
Os guaranis conseguiram participar do processo de comercialização,
inserindo-se em outros mercados, através de procuradorias representativas – os Ofícios de Missões – em cidades estratégicas. Sua origem remonta aos colégios de Buenos Aires, Assunção, Santa Fé, Córdoba, Santiago
Del Estero, São Miguel de Tucumán, Salta e Jujuy, todas relacionadas ao
fluxo comercial dos produtos e serviços guaranis desde o Atlântico até o
alto Peru.
O colégio, desde a sua fundação, cumpria também a função de apoio
aos jesuítas ocupados em atender comunidades ou grupos de espanhóis
dispersos, material e espiritualmente necessitados. Todos os colégios estavam ligados às missões, mantendo com elas relações de interdependência e coordenação. Os reitores dos colégios de Assunção, Buenos Aires e
Santa Fé apoiaram a formação de procuradorias ou Ofícios incumbidos
de prover as missões e a comunidade de jesuítas nelas residentes. A partir
das esmolas evoluiu-se à prestação regular de serviços organizados na
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segunda metade do século XVII quando os pueblos, já com sua estrutura
de defesa montada, começaran a encarar a tributação e a intensificação do
comércio (sistemas de trocas de produtos e serviços) como meio quase
exclusivo de abastecimento em uma economia aberta a mercados cada
vez mais amplos.
Os procuradores possuíam poderes necessários para vender os produtos das missões e, com o montante apurado, pagar os tributos e comprar
os gêneros necessários em falta. A Procuradoria de Missões possuía, tal
como uma cooperativa central, maior capacidade de negociação pelo expressivo volume comercializado. Os gastos comuns eram arcados pelos
vários pueblos. Serviços recebidos ou prestados, resultados das compras
e das vendas – tudo era registrado e contabilizado. Ela funcionava sob
a supervisão do reitor de cada colégio e do padre provincial. No século
XVIII ficou mais explícita a subordinação dos procuradores ao Superior
das Missões. Os produtos das missões e dos colégios compartilhavam as
mesmas rotas e serviços. A economia de ambas as instituições tornava-se
menos vulnerável pela coordenação e complementaridade de compras e
vendas em comum. Em especial, quando a oferta de um produto-chave
superava amplamente a demanda.
Apesar de a maioria das transações (venda de erva-mate a bom preço
à vista) em meados do século XVII terem sido realizadas em moeda metálica (prata), de modo a ‘possibilitar o pagamento do tributo, por volta
de 1673, pela ganância dos comerciantes, estes passaram a pagar não só
um preço inferior como teriam forçado os índios a aceitar quinquilharias
inúteis e desnecessárias2.
Os colégios para a formação de padres e as residências em Buenos
Aires, Santa Fé e Córdoba formavam a base das procuradorias chamadas
Ofícios, representando um elo econômico importante para as missões guaranis cujos livros de contabilidade representam, até hoje, fonte inestimável
2 – Hernández, Pablo. Organización Social de las Doctrinas Guaranies de La Compañía
de Jesús, Barcelona: 1913, vol. 2
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para a melhor compreensão das prioridades e diretrizes de fato implementadas (séculos XVII e XVIII).
As ‘parcialidades’– lotes de cada missão dominados por determinado cacique – vinculavam as subdivisões de terrenos entre os caciques e
seus subordinados. Os missionários precisavam convencer para cooptar
uns 30 a 40 caciques e suas respectivas ‘parcialidades’ para sua unificação
e edificação em determinado local a fim de fundar uma missão com suas
igrejas, escolas, residências.
As oferendas, contribuições e esmolas passaram a fazer parte da cultura guarani: acostumaram-se a separar sempre um pouco de erva-mate para
o padre de sua ‘doutrina’(missão), denominando-as ‘oferendas a Deus e
esmolas que se dão em seu nome.’
O mate também era utilizado como unidade de troca que equivalia
à moeda metálica e servia para adquirir bens e animais (gado bovino e
equino) destinados às vacarias. O algodão era a matéria-prima dos tecidos
usados no vestuário.
A união da ‘oferenda a Deus’ e do ‘serviço à comunidade’ resultava
na obtenção de bens do Tupambaé (de todos, da comunidade, de Deus)
e a contribuição livre, espontânea transformou-se em responsabilidade
compartilhada.
Definiam-se, assim, os conceitos de dois tipos de bens:
ar;
a) particulares: os terrenos dos caciques e seus vassalos para seme-
b) comuns: grandes plantações de tabaco, algodão, cana-de-açúcar,
erva-mate, criações de gado vacum e cavalar cuja distribuição da colheita
e o abate eram efetivados de acordo com os missionários e os indígenas,
“seus verdadeiros donos”, mediante sua anuência e participação.
A colaboração entre vários ‘pueblos’ aumentava o poder e a autoestima dos guaranis que contavam com os serviços disponíveis nos Ofícios
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das Missões, verdadeiros pontos de apoio onde podiam contar com a assessoria de competentes jesuítas e seculares nas residências e colégios
situados nas vias de acesso de regiões cruciais para o comércio dos produtos procedentes das missões.
Em Buenos Aires e Santa Fé, os Ofícios das Missões (representações
nas cidades) forneciam informações sobre as oportunidades de mercado,
a quantidade e a qualidade dos produtos destinados à comercialização
e dos necessários à importação. Ofícios ou procuradorias funcionavam
também em Potosi, Santiago, Lima.
Nunca houve guerra de preços entre as missões que se organizavam
para comprar e vender em grandes quantidades, seguindo contratos fielmente cumpridos em prazos adrede estipulados. Havia descentralização
do controle de qualidade e de quantidade, fiscalizando-se com rigor tentativas de suborno e corrupção. A seleção dos credenciados a cumprir os
contratos era fundamental para evitar a ida aos tribunais. Corregedores
e cabildos eram sempre consultados, o que robustecia o sentimento de
responsabilidade comunitária.
A solidariedade entre as missões não criava situações de permanente
dependência (assistencialismo demagógico imbecilizante). Em condições
de produzir, cada uma devia contribuir para resolver seus problemas. A
diversificação da produção deixava menos vulnerável uma economia demasiado dependente de apenas alguns produtos agrícolas como erva-mate
e tabaco versus produtos têxteis de algodão, artesanato de madeira, couro
e cerâmica.
Caso os Ofícios das Missões tivessem captado depósitos de terceiros
para investir a taxas razoáveis, predominava o autofinanciamento, retendo
os rendimentos ou destinando contribuições aos povoados. Só em casos
excepcionais os mutuários pagavam os juros do empréstimo. A chave do
autofinanciamento consistia em coordená-lo com a complementaridade de
atividades lucrativas dos ‘pueblos’, sempre avaliadas pelos seus resultados.
A colaboração mútua entre as missões melhorou sua transparência e
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motivou a eficiência mediante os preceitos do Padre Antônio Garrige que,
entre 1709 e 1713, foi visitador e vice-Provincial do Paraguay e confirmados pelo Padre-geral Tamburini em 1711:
Atividades econômicas efetivadas deveriam ser registradas em detalhe.
Os bens remetidos deveriam ter seu custo de aquisição acrescido do
frete de transporte e de uma percentagem referente ao risco de perda.
A equidade deveria prevalecer na fixação dos preços dos bens.
Os excedentes e as perdas deveriam ser redistribuídos proporcionalmente de modo equânime entre as missões.
Os excedentes e as perdas deveriam ser apenas devidos àqueles que
para tanto contribuíram (nunca para procuradores, superiores ou provinciais).
Medidas para incentivar o senso de responsabilidade de cada missão
eram fundamentais, pois a situação patrimonial de uma indiretamente repercutia na capacidade de autofinanciamento das demais. Alguns colégios
de jesuítas eram generosos com determinadas missões em momentos difíceis, mas todo o esforço deveria ser empreendido para manter a equidade,
evitando-se, a todo custo, “um oportunismo sem perspectiva duradoura”.
A presença de jesuítas em Buenos Aires, Assunção e outras cidades
responsáveis pela formação do clero e de seculares nos colégios criava
ambientes favoráveis aos próprios ‘pueblos’ guaranis.
A organização econômica das missões, ao apresentar relações absolutamente claras e transparentes, estende – segundo De Masy – uma forte
e inspiradora ponte para o presente.
Agricultura, abastecimento e comercialização
Entre os guaranis, todos se socorriam em suas necessidades. Como
usavam de liberalidade com os visitantes, evitavam o furto, vivendo em
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paz, sem litígios. Mesmo antes de 1639, o cultivo familiar da terra era
uma realidade assim como a pequena criação de animais.
Entretanto, paralela à produção familiar – abambaé – desenvolvia-se
a produção comunitária – tupambaé. Atividades tipicamente masculinas
como a roça, a caça, a pesca, a fabricação de canoas e de armas só se tornavam eficientes quando coletivas. O mesmo ocorria com as atividades
femininas como o plantio, a colheita, a cerâmica, a tecelagem. Havia,
pois, sempre necessidade de se fazer uso do mutirão ou putirum, isto é,
da ajuda mútua eventual em determinadas ocasiões como festividades,
atividades específicas ou sazonais.
Outra expressão de solidariedade guarani era o yo-poi ou troca-socorro. Por exemplo, uma família em determinado dia especial comemorativo carneava sua rês e a repartia com os vizinhos, distribuindo os cortes a
cada um segundo as necessidades familiares; em outra ocasião, o vizinho
retribuía e, em nenhum destes casos, a porção entregue era pesada a fim
de calcular a equivalência entre o oferecido e o recebido.
Como cada missão não podia produzir os principais bens de troca
com a mesma quantidade e com a mesma qualidade já que a distribuição
dos recursos naturais e a capacidade dos recursos humanos era desigual,
especializava-se e se aperfeiçoava na produção do que lhe proporcionava maior retorno, permutando, com outras missões, as sobras dos seus
produtos-líderes pelos gêneros de que necessitavam, procedentes de pueblos vizinhos. Estes, depois de economicamente organizados, conseguiram manter uma produção integrada e diversificada, menos vulnerável
a fatores externos. O intercâmbio proporcionava maior estabilidade ao
abastecimento mais diversificado. Quando um produto-chave escasseava
ou apresentava uma superoferta, a fixação dos preços garantia o abastecimento e evitava o enriquecimento de alguns e a miséria de outros, sem
paternalismo nem filantropia.
Tanto na produção agrícola quanto na pecuária, cada missão objetivava autoabastecer-se. Por isso, plantava-se o maior número possível
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de gêneros compatíveis com o solo. Só na escassez de algum produto
essencial havia a necessidade de intercâmbio ou doação por parte de outra
missão.
As primeiras tentativas de cultivar algodão fracassaram devido às
geadas. As ovelhas adquiridas nesta época compensaram parte do prejuízo e garantiram a produção de tecidos para as roupas de lã. Anos depois,
os missionários conseguiram terras mais bem protegidas contra as geadas
e a tecelagem de algodão explodiu.
Loreto e Santo Inácio acolheram os emigrados de Tape fornecendo
alimento e alojamento, ajudando no cultivo dos campos e na construção das casas. Só Loreto conseguiu, durante um período, manter outras
duas missões necessitadas de auxílio temporário, emprestando sementes
ao plantio, preparando os campos, roçando a mata virgem. Até suas mulheres ajudaram a alimentar os filhos das hóspedes. Loreto e Santo Inácio
que, em 1631, haviam sido auxiliadas pelas missões do Paraná em 1638
e 1639, retribuíram a acolhida como quem “aprendeu por sua própria experiência a lastimar (e confortar) os sofrimentos alheios” (Cartas Ânuas
1636-1639).
A capacidade das missões para enfrentar ajuda tão generosa não só
refletia seus recursos produtivos como também a capacidade de armazenamento. Em 1646, já eram dotadas de celeiros para abrigar suas colheitas,
destacando-se nitidamente dos demais núcleos autóctones. O excedente,
que podia ser posteriormente intercambiado ou emprestado, aguardando
sua recuperação, era armazenado, preservado, conservado.
As habilidades e o aperfeiçoamento dos recursos humanos potencializaram a diversificação através do incentivo aos ofícios e às artes conforme os recursos naturais disponíveis na região. Os serviços e produtos
intercambiados variavam: desde o transporte até a fabricação de carretas e de barcos. Como exemplo deste intenso fluxo de trocas destacavase a missão de São Carlos que desfrutou por quatro anos do direito de
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vaquejar ou retirar o gado na jurisdição de Santa Fé como pagamento pelo
retábulo (painel que decora o altar da igreja) que para lá produziu.
Na distribuição equitativa da produção pela população do núcleo não
se admitia nenhum intermediário comercial privado. As entradas e saídas
dos produtos eram diariamente checadas e contabilizadas para o controle
dos estoques disponíveis. Não circulava moeda de ouro nem de prata. A
cada início de mês, os funcionários dos armazéns entregavam aos chefes
de setores (bairros) a provisão de gêneros para os trinta dias, distribuída às famílias conforme o número de seus dependentes. A carne, obtida
com os periódicos abates, era repartida três vezes por semana. Tecidos
e roupas também eram distribuídos de acordo com as demandas. As necessidades comuns precediam as individuais. O escambo (troca direta)
predominava, embora, às vezes, algum bem, aceito por todos, pudesse
intermediar a comercialização como, por exemplo, chá-mate, fumo, mel
e milho. A maior parte da produção destinava-se ao mercado interno. Só
o excedente era comercializado fora da comunidade.
Alimentação
Apesar de variada, baseada na caça, na pesca, nos frutos das matas,
nos cultivos de milho, mandioca, batata e legumes, a alimentação dos
habitantes dos núcleos cada vez mais dependia da carne bovina, obtida a
partir da grande Vacaria do Mar no extremo sul, prolongada pela Vacaria
do Rio Negro, na margem oriental do rio Uruguai, e da Vacaria dos Pinhais situada próximo às nascentes do rio Uruguai.
Os missionários procuravam aumentar a produção agrícola e ao
mesmo tempo restringir o consumo de carne vacum, até para propiciar o
rápido aumento do número de reses. O consumo diário per capita subiu
de 300g para 400g, do século XVII para meados do século XVIII. Cada
família recebia cerca de 2kg de carne.
A principal produção agrícola consistia em milho, legumes e algodão
cultivados nas plantações comunitárias. O milho, considerado ‘panaceia
do Paraguai’, era distribuído pelos padres como estímulo ao trabalho co-
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munitário e, devido às múltiplas utilizações, para as mais diversas iguarias nutritivas e saborosas.
A produção do trigo sempre ocupou lugar secundário. Entretanto, o
consumo da mandioca superava até o do milho. Da farinha de mandioca fazia-se pão. As diversas espécies de mandioca originavam usos diferenciados. Suas raízes consumiam-se assadas, cozidas ou como farinha,
amido. Dos resíduos formavam bolas que secavam ao sol penduradas do
telhado das casas, provisão útil durante parte do ano em que são aos poucos cozidas com carne, à guiza de pão.
Estima-se o consumo per capita diário inferior a 500g de mandioca,
batata ou abóbora. Nunca faltavam batata e mandioca, que possuía ainda
a grande vantagem de, após seis meses, estar apta a ser consumida e poder
ser armazenada no próprio solo, conservando-se disponível até três anos,
sempre madura. Nas áreas mais úmidas, sobretudo nos dez últimos anos
de administração jesuítica, predominava o cultivo do arroz de várzea.
Depois do milho e da mandioca, os legumes se destacavam como as
favas, os grãos-de-bico, as lentilhas, consumidos uns 30kg por pessoa/
ano, nas épocas de baixo consumo de carne.
Açúcar e mel, além do consumo interno, eram vendidos fora das
missões. Ao lado das hortas dos padres que estimulavam a produção e o
consumo de diversas espécies vegetais, cultivavam-se árvores frutíferas
(laranjas, pêssegos) nativas e importadas da Europa. Devido à sedentarização dos homens e à relativa abundância de carne, tanto a caça quanto
a pesca haviam diminuído. O consumo de erva-mate, característico da
cultura guarani e um dos principais produtos de exportação considerado
até como moeda de troca, correspondia a mais de 17kg por família/ano já
que a distribuição em alguns pueblos atingia a três vezes ao dia.
Periodicamente mascates estrangeiros visitavam as missões e se alojavam fora da área urbana até três dias, oferecendo suas mercadorias.
Assunção e Buenos Aires comercializavam alimentos através de feiras
regulares nas periferias de Santo Inácio-guaçu, Santa Maria da Fé, Santia-
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go, Santa Rosa, São Carlos, Yapeyú e São Cosme. Na verdade, o contato
com os mercadores diminuía o fervor religioso dos neófitos.
As missões de Guairá se especializaram em produzir fumo, mate e
algodão e intercambiavam com a lã, os legumes e a carne das aldeias do
Tape, mais ao sul. O saldo das transações destinava-se ao tributo anual ao
rei, à aquisição de ferramentas, equipamentos agrícolas e, principalmente, à manutenção das igrejas.
Embarcações à vela ou remo predominavam no transporte e na comercialização dos produtos das missões, a maioria delas situada à beira
de cursos d’água. A frota mercante guarani despertava a atenção dos povos vizinhos e chegou a transportar tropas de Corrientes a Buenos Aires,
bloqueada pelos ingleses em 1667 e em 1671.
Caminhos com relativa pavimentação formavam rede de transportes
terrestres. Os principais produtos que eram transacionados entre as missões e para Assunção, Buenos Aires, Corrientes, Santa Fé, Vila Rica do
Espírito Santo e até para a Europa eram: erva-mate, fumo, açúcar, tecidos
de algodão, móveis, esculturas, tinturas, rendas, bordados, pavios, círios,
rosários, escapulários, mel, frutos, couros para embalagens, casacos e
calçados e peles de animais, excedentes manufaturados e artesanato. A
maioria das missões importava ouro, prata, cobre, ferro (metal em bruto)
para produção de ferramentas, armas, decoração de templos e produtos
industrializados. O sal era basicamente fornecido pelas missões de Santiago e São José que exploravam salinas. A seda, o papel e o vinho da
missa provinham da Europa. Até o século XVII ainda não se conseguira
produzir o famoso vinho gaúcho. O elevado custo do frete somado aos
impostos reais tornavam as importações proibitivas e dificultavam até as
exportações do mate, agravadas pelas restrições de cota determinadas pelas autoridades para o produto procedente das missões.
Erva-mate
Nada indicava melhor a afeição guarani à erva-mate do que o risco
enfrentado para produzi-la até em regiões infestadas de inimigos. Desde
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que dispusessem de área extensa e segura, os guaranis selecionavam os
ervais apropriados com acesso ao transporte terrestre e fluvial. A ocupação de um espaço seguro com ervais era lenta. Em 1655, os índios das
missões iam buscar a erva navegando em canoas por rios durante uma
média de três meses (ida e volta) de muito trabalho exaustivo, enfrentando feras, febres e tribos hostis. O interesse maior era intercambiar o mate
com cavalos, indispensáveis para vaquejar, algodão para os tecidos de
suas roupas e sementes para suas lavouras. Grande parte da erva era destinada ao Colégio de Assunção que auxiliava nas aquisições requeridas.
Os alcaides de Assunção se indignaram com a venda de erva-mate a
terceiros e acusaram os jesuítas de explorar os índios. Estes responderam
que a produziam para si próprios a fim de satisfazer suas necessidades
e pagar os tributos. E solicitaram ao Rei permissão para que “os índios
pudessem beneficiar e transportar livremente a erva”. A Cédula Real de
1-6-1645 a concedeu e advertiu governadores, corregedores e demais ministros das províncias para não colocarem nenhum impedimento sob pena
de sofrerem punições severas. E deveriam auxiliar os índios no que fosse
necessário da melhor maneira possível.
O curioso era que os guaranis ofereciam a erva-mate aos padres como
esmola, pois consideravam-na um bem de todos, a ‘erva da comunidade’
tanto para as necessidades da igreja quanto para os neófitos paroquianos
menos aquinhados.
O tipo de beneficiamento diferenciava a erva caaminí (caamirí) da
comum ou de palos. “Cortados os galhos do vegetal, chamuscavam-nos
na chama, dependuravam-nos em paliçadas (traçando as varas) ou casas
tecidas de varas, sobre brasa viva para que se tostasse a folha. Depois
moíam e enfeixavam-na em surrões. Este era o modo descuidado utilizado pelos espanhóis. Os guaranis tinham pilões de hastes e tudo que era
necessário para a higiene. Os espanhois não retiravam os espinhos das
ramas e misturavam-nos com as folhas e os trituravam juntos. Daí que a
erva chamada de palos não ter sido estimada. Os guaranis moíam apenas
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as folhas e separavam cuidadosamente as impurezas e os resíduos. Esta
era a afamada caaminí”3.
O excesso de oferta em meados do século XVII desvalorizava ainda
mais a erva de palos. Enquanto isso, a venda da erva caaminí das missões
não ultrapassou as 12.000 arrobas anuais nos mercados. Devido à premente necessidade de pagar tributos em moeda metálica, os missioneiros
conseguiram aumentar as vendas de 1.500 arrobas a 5.500 arrobas. Como
os guaranis produziam a erva em alguns terrenos pertencentes à cidade de
Assunção, os espanhóis exigiram o chamado ‘tributo assunceno de estanco”: um carregamento de erva por quarenta que haviam transportado.
No século XVII, Santa Fé era o centro mais importante de redistribuição da erva-mate que se tornou “o melhor gênero existente em todo o
Peru para transformar em prata”4.
A erva-mate – caamini – era bebida muito apreciada pelos ameríndios sobretudo guaranis já antes da conquista e colonização. De início,
proibida, depois incentivada, tornou-se um dos principais produtos de
exportação das missões. Foi considerada ‘vício elegante’ da aristocracia
colonial. É uma árvore nativa, silvestre, em mata heterogênea, ao longo
do Paraguai, Uruguai e Paraná. Em Lima, os incas colocavam folhas de
mate para acompanhar seus mortos ao lado de armas, roupas e joias.
Os jesuítas introduziram novas técnicas no cultivo e preparo do mate
cujo segredo era colher as folhas na época exata sem deixar a umidade
interferir, triturá-las bem e tostá-las, eliminando os gravetos.
Os padres Segismundo Asperger e Pedro Montenegro, botânicos,
foram os primeiros que divulgaram as propriedades e virtudes medicinais do mate: fortificante, digestivo, diurético, refrescante no verão (se
ingerido frio) e bebida quente (no inverno). Recomendava-se ingeri-lo
sem excessos, em pequenas doses. A erva macerada podia ser usada para
3 – Labrador, Sánchez. El Paraguay Católico. II, p. 245-246.
4 – Caravaglia, Juan Carlos. Mercado Interno y Economia Colonial. México: Grijalbo,
1983.
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curar feridas e como antiespasmódico. Além disso, servia para combater
a insolação e fortalecer as gengivas se mastigadas suas folhas.
A erva-mate (caá) propiciou vultosos rendimentos, garantindo em
parte a sustentabilidade econômica das missões. Após um século da expulsão dos jesuítas, 5.000 toneladas ainda eram exportadas (1867).
Missionários resolveram intensificar o criatório para garantir o suprimento de carne aos coletores da yerba. As expedições levavam o rebanho e os bois de tração para áreas próximas da colheita do mate a fim
de transportar o produto final na volta. Os acessos ainda eram primitivos
e difíceis.
A colheita da erva-mate em estado selvagem, nas condições insalubres e em regiões distantes e inóspitas, provocava inúmeras baixas entre
os guaranis devido também ao ritmo intenso exigido de homens mal-alimentados. Em cada missão, cerca de 50 coletores da yerba se deslocavam
durante meses para longe de suas famílias, submetidos a duras privações
e sob ameaça de insetos, cobras e outras feras.
A primeira e principal área produtora era Mbaracuyuru, a 400 milhas
de Assunção.
A boa aceitação do mate suplantou o consumo da chicha, aguardente
produzida a partir da mandioca, tornando-se um valioso produto de exportação com demanda garantida. Após a missa, os padres faziam questão
de distribuí-lo em folhas aos fiéis, adotando oficialmente seu consumo
por ser mais saudável e produzir menores inconvenientes.
No início do século XVIII, as mudas selecionadas cultivadas pelos
jesuítas começaram a se multiplicar próximo às áreas centrais das missões,
um sucesso pelo empenho na tecnologia agronômica. A erva cultivada era
muito disputada, como aliás todos os produtos das missões, geralmente
melhores do que os provenientes da gestão colonial. O segredo da ‘tecnologia’ desenvolvida pelos jesuítas teria se perdido com sua expulsão.
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Autossustentabilidade
À medida que as missões se tornavam superpovoadas, as antigas
técnicas ficavam ultrapassadas, ineficientes e incompatíveis com o desenvolvimento sustentável. Os índios a princípio já evitavam desmatar
completamente as áreas, deixando sempre bosques intercalados cujas árvores protegiam o solo da erosão pluvial, conservando a umidade e a fertilidade. Praticavam também a rotação de culturas com áreas em descanso
ou pousio para só serem utilizadas no plantio após alguns anos.
Os implementos agrícolas de ferro ampliavam o espaço cultivável
em menos tempo e os jesuítas ainda agregavam uma gradual diversificação de espécies vegetais e animais. Para maior eficiência da expansão,
eram criteriosos na seleção dos solos mais férteis, a salvo de geadas e
estiagens. A horta dos padres era considerada verdadeira chácara experimental com espécies-chaves para alimentação, vestimenta e saúde (plantas medicinais).
Como a capacidade das terras cultiváveis próximas às missões ficava limitada pelo desmatamento e pela queda da fertilidade dos solos, a
cada três anos, pelo menos, os guaranis mudavam de sítio. Praticava-se
também a cuidadosa separação prévia dos troncos a serem utilizados na
construção civil e naval, impedindo o desperdício com a queima acidental
e desnecessária.
A localização das missões priorizava o abastecimento de água de boa
qualidade tanto fluvial quanto subterrânea. Quando possível, os promontórios beira-rio garantiam segurança estratégica, transporte e alimentação
farta, já que os cursos d’água eram piscosos, o que assegurava periódica complementaridade dietética. E, sobretudo, fundamental era situar-se
longe dos alagadiços em sítios mais elevados, bem-ventilados e próximos
a veios fluviais. O clima era favorável ao plantio e ao criatório.
O uso racional dos recursos naturais limitava os tradicionais desmatamentos que, entretanto, eram praticados nem sempre tomando os
devidos cuidados. Um dos critérios para a escolha do sítio era justamen-
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te a proximidade de bosques plenos de biodiversidade. Só se fazia uso
das árvores já desenvolvidas e a preocupação era deixar sempre touceiras
aptas à reprodução das respectivas espécies vegetais e evitar perdas desnecessárias e devastadoras ações antrópicas. Até cipós, galhos e nós dos
madeiros eram aproveitados para o artesanato missioneiro como as belíssimas imagens de santos e rosários elaborados a partir da árvore curiy. As
folhagens secas caídas protegiam o solo da erosão.
Muitas espécies trazidas da Europa enriqueceram ainda mais a flora
nativa. Apesar de preocupações com o ambiente, padres queixavam-se
de inúmeras agressões antrópicas que afetavam o equilíbrio ecológico, a
capacidade de suporte das áreas ocupadas e o próprio desenvolvimento
dos núcleos.
Os recursos das matas e dos campos naturais eram complementares.
A biodiversidade dos bosques preservava a fertilidade do solo e a produtividade agrícola.
A boa técnica não depende tanto do instrumento quanto da sua utilização adequada para determinados produtos vegetais. Já no início do século XVIII os guaranis das missões transplantavam pequenas matas dos
ervais silvestres. Ao se descobrir que bem-lavadas, as sementes recémcolhidas da árvore brotavam com facilidade, a técnica difundiu-se entre
os missionários nos terrenos adequados ao plantio.
Dispor de plantas perenes, menos sensíveis a variações climáticas,
próximas às missões, reduzia os riscos e os trabalhos dos cultivos anuais
periódicos, permitindo atender melhor outras tarefas como capina rigorosa de limpeza das ervas daninhas com a grade de arado. Os cultivos
perenes permitiam disponibilizar maior tempo para o início das roças em
novas frentes; para obras comunitárias tanto no campo quanto na zona
urbana; para diversificar a produção com legumes e arrozais; para potencializar estas inovações através do melhoramento planejado dos solos.
A transformação tecnológica implicava um trabalho de equipe dos
missionários junto às lideranças indígenas, incluindo assessorias eventu-
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ais de técnicos europeus especialmente convidados que sempre recomendavam a escolha criteriosa de sementes de plantas vigorosas e de solos
cujo potencial produtivo poderia ser melhorado. Também preocupavamse com o transporte e o armazenamento adequados tanto das sementes
quanto do produto final cujo consumo nem sempre era imediato. A adubação e a irrigação dos terrenos já eram consideradas àquela época. Assim
como o pousio alternado de certas áreas na prática de rotação de culturas
a fim de manter a produtividade dos solos conforme os diversos plantios,
suas características e peculiaridades.
Alguns jesuítas tiveram a ideia de secar lagunas e pântanos, cavando
fossos mantidos desobstruídos e construindo barreiras a fim de preparar
o solo para belíssimas hortas de árvores frutíferas que produziram em
abundância. Os materiais advindos desses trabalhos eram aproveitados na
elevação artificial de parte dos terrenos, sempre bem drenados.
O esterco animal junto com o resíduo vegetal possibilitava cultivos
precoces com maior produtividade: até a palha, por mais seca que estivesse, apodrecia e fermentava com os excrementos, tornando-se excelente e
duradouro adubo para o plantio.
A autonomia de cada pueblo com seus recursos humanos e naturais
peculiares estimulava a criatividade, a especialização compatível com
uma prudente diversidade de produtos e serviços, e adaptação técnica. As
atividades comuns a várias missões, o intercâmbio e a solidariedade ante
as emergências incentivavam a difusão desinteressada de conhecimentos
e habilidades técnicas. Os trinta pueblos contavam em 1767 com uma tecnologia adequada para satisfazer plenamente suas próprias necessidades;
uma tecnologia que revalidava os recursos naturais autóctones conforme
os valores essenciais ao modo de ser guarani e que agregava novas metas.
Os guaranis continuaram abrindo novas roças em meio a bosques,
cuidando de controlar o corte e o fogo. Os solos eram propícios para
cultivar algodão ou desenvolver pastagens férteis. Desenvolveu-se uma
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tecnologia própria, mas aberta a novos aperfeiçoamentos. De início, os
missionários europeus trouxeram seus conhecimentos técnicos, mas no
século XVIII, a maioria dos jesuítas da província do Paraguai já havia
nascido em terras americanas. A comunicação entre os colégios, residências, ofícios e missões facilitava o descobrimento dos ‘espanhóis
curiosos’ tendo em comum o fato de já serem sul-americanos desejosos
de um melhor, mais racional e sustentável aproveitamento dos recursos
naturais.
Baseados em sua experiência, os jesuítas lançaram vasto programa
agrícola sustentável. A falta de pastagens em Itatim obrigou-os a criar
rebanhos menores compatíveis com áreas restritas conquistadas às matas
e às encostas. A fim de reter água na estação seca, açudes foram construídos. Lhamas de origem peruana foram introduzidas: suportavam o frio
e as frequentes cargas quando utilizados na tração animal. Produzia-se
mais feijão, limão e abóbora do que maçãs, peras e laranjas. Apesar de
pequenos surtos de prosperidade, nunca chegaram a alcançar o nível das
missões do Paraná (Guairá).
A baunilha também era comercializada. Produzida nas regiões mais
úmidas das missões em associação com palmeiras, o maço (feixe) triangular repleto de pequenas sementes era procurado pelos espanhóis como
um dos insumos na fabricação de chocolates. Seu uso só se intensificou
no final do período jesuítico.
Com o êxito da produção, sobretudo agropecuária, a oferta abundante permitia uma eficiente repartição entre as famílias residentes. Após
quatro anos, a carne de bovinos começou a garantir o sustento dos habitantes cuja habilidade e competência com as lides campeiras favoreceram
a expansão do criatório.
Pecuária
A introdução do gado vacum impôs aos missionários cuidadosa seleção inclusive de pastagens não só para assegurar uma nutrição adequada
como também para proteger o gado de outros riscos como inundações,
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feras, invasões, furtos. Na Vacaria do Mar a partir de 1670 a preocupação maior tornou-se expandir o rebanho a fim de garantir o satisfatório consumo de carne para os habitantes das missões. Para consegui-lo,
implantaram-se pequenos bosques intercalados, caminhos entre eles com
boas aguadas, sombra e alimento: paradas de descanso e recuperação,
evitando-se as matas fechadas cheias de perigos.
Os índios acostumaram-se a organizar verdadeiras expedições à caça
do gado bravio, fugido, sem dono certo, entre dezembro e fevereiro. Mais
de 50 vaqueiros levavam cinco cavalos cada um, e um lote de bois mansos para servirem de guias na condução das reses, que eram cercadas e
trazidas de volta, misturadas umas às outras, aos currais. Os cavaleiros
tinham muito trabalho para manter a malhada unida, sem ‘espirrar’ nenhuma rês mais arredia. Durante o trajeto, caída a noite, eram obrigados a
acender fogueiras para evitar o ‘estouro’ da boiada. Desta maneira, os 50
índios em dois a três meses conseguiam trazer à missão, em uma distância
de 100 léguas, de 5 a 6 mil cabeças. Sempre ocorriam graves incidentes,
muitos cavalos eram chifrados ou morriam de exaustão, correndo atrás de
reses rebeldes que também sofriam perdas pelos maus-tratos recebidos.
Muitos animais ficavam imprestáveis durante todo o ano e eram recuperados em pastagens verdejantes a eles reservadas. O segredo era manter
suficientes equinos disponíveis para conduzi-los à vacaria, que se tornava
estância e pasto para as trinta missões que se mantiveram abastecidas
durante mais de 50 anos.
Tornou-se vital encurtar o trajeto entre a Vacaria do Mar e a estância
de São José, pertencente à missão de Yapeyú, entre o rio Uruguai e seus
afluentes, Ibicuí ao norte e Quaraí ao sul, onde milhares de reses abandonadas se multiplicavam. Daí que a estância de São José tornou-se de
importância estratégica para a retirada do gado da Vacaria do Mar.
De 1677 a 1691 a taxa de desfrute anual do gado foi de tal ordem que
o padre provincial, Gregório de Orozco, ordenou que as missões passassem a ‘vaquejar’ apenas de dois em dois anos. Neste período, as missões
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da bacia do Uruguai estabeleciam estâncias onde o gado engordava e se
multiplicava.
Em 1692, o governador do Rio de Prata solicitou às missões que
retirassem para suas estâncias todo o gado procedente da Vacaria do Mar
ampliada com a de São Gabriel, projeto inexequível mesmo criando uma
grande vacaria ao norte do Rio Negro. Em 1704, foi criada a Vacaria dos
Pinhais, a leste do Alto Uruguai, que já começara a receber gado desde
1701. A Vacaria do Rio Negro, dividida em duas, a primeira entre o rio
Negro e o rio Quaray, e a outra ao sul do Rio Negro até o litoral atlântico se formou com o gado das missões do vale do Uruguai entre 1702 e
1709.
Em 1717, a Vacaria dos Pinhais se expandiu com o rebanho das missões de São Lourenço, São Luiz, São Miguel e outras já que as Vacarias
do Mar e do Rio Negro se ressentiram do sacrifício intensivo de reses
para o comércio depredador de couros, graxa e sebo, desperdiçando os
demais subprodutos.
Vale ressaltar o planejamento coordenado da produção e distribuição do gado ao utilizar o mesmo espaço geográfico, criando uma reserva
complementar oportuna que enfrentou a grande crise alimentar de 1733 a
1740. A seleção do gado e de novas estâncias, banhadas de cursos d’água
e dotadas de pastagens permanentes, garantiu excelente melhora do plantio e recuperação do rebanho que tornou a expandir-se. Enquanto uma
fazenda crioula extensiva apresentava a taxa de crescimento líquido anual
de 20% sobre o total do rebanho, o novo plantel missionário alcançava
25% em criatório semi-intensivo em terrenos cercados, com bons bebedouros, manejo adequado, obtendo gado manso de melhor qualidade.
O progresso técnico foi resultado de anos de experimentação e soma
de esforços. Até na criação de ovinos a produtividade na extração de lã
aumentou no século XVIII. Mas constatou-se que apenas as técnicas aplicadas não conseguiam superar a crise alimentar de 1733 a 1740 cuja solução seria encontrar terras mais aptas ao cultivo nas missões afetadas
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pela baixa produtividade. Sobretudo, pela recuperação de solos exauridos
durante intensiva exploração agrícola.
A criação de gado exerceu a função de atividade produtiva complementar à agricultura, fornecendo animais de tração e transporte, carne,
leite e laticínios. Aos poucos, os jesuítas foram descobrindo as regiões
mais propícias à pecuária como o sudeste e o centro-norte de Tape (atual
Rio Grande do Sul) nas bacias do rio Uruguai e parte do Paraná (vacarias
do Mar, do Sul e dos Pinhais, mais para o norte).
Enquanto os homens caçavam, pescavam e campeavam, as mulheres
semeavam e colhiam. A expansão do rebanho bovino e sua manutenção
tornaram-se incompatíveis com a tendência em caçá-lo e devorá-lo sem
medida. Entretanto, conseguiu-se substituir as atividades mais extensivas
ao se permitir e até incentivar o aproveitamento do gado fugido e disperso
na proporção de um quarto do total.
Em 1555, teria entrado no Paraguai o primeiro lote de gado vacum.
De 1569 a 1576, ocorreu a intensificação do fluxo de bovinos procedentes
do Alto Peru através de Tarija.
Os rebanhos bovinos e equinos originavam-se dos lotes do fundador Alonso de Vera amealhados em Assunção desde 1588 por Hernan
d’Árias, posteriormente apropriados pelos vizinhos, já que estavam dispersos e fracos. Seu filho Pedro de Vera, após reclamar seus direitos de
herdeiro, obteve em 1611 um acordo com o cabildo da cidade sobre o
usufruto do gado, perante o ouvidor Francisco de Álfaro. Em 1627, Pedro
de Vera vendeu seus direitos a Manuel Cabral de Alpoín, que os exerceu
com firmeza e determinação por um longo período.
As vacarias eram campinas cercadas de acidentes geográficos que
continham o gado vacum destinado ao Tape em sua fase de expansão
(1632) e ao abastecimento dos novos reassentamentos das missões
(1637). A Vacaria do Mar constituiu a base do posterior desenvolvimento
pecuário das missões.
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Cerca de três mil reses da cidade de Corrientes foram adquiridas para
os campos do Tape, cabendo centenas a cada pueblo a fim de fundar suas
estâncias. Uma das estâncias localizava-se nas proximidades de São Miguel entre os rios Ibicuí e Jacuí. A dispersão do gado e o ataque frequente
de índios hostis forçavam a multiplicação de currais, estâncias e vacarias
próximas às missões.
Itapuá (Encarnação) influenciava as demais missões no “direito de
vaquejar” que concedia em épocas determinadas e na engorda do gado
em invernadas dotadas de pastagens de melhor qualidade que eram emprestadas quando necessário. Com as investidas luso-brasileiras, algumas
missões do Tape tiveram de ser reassentadas e abandonaram as cerca de
duas mil reses (de origem andaluz) nos pastos. As “pradarias ricas em
gado” desfiguraram a história do desenvolvimento pecuário dos ‘pueblos’
guaranis, supervalorizados quanto a seus recursos.
Em 1638, os fugitivos da banda oriental do Uruguai (17.500 pessoas)
equivaliam à metade da população das 20 missões com aptidões agrícolas
relativamente homogêneas situadas entre os rios Uruguai e Paraná.
A comercialização dos tecidos que serviam para seu próprio vestuário e dívidas contraídas em prata em troca de 6.000 a 7.000 bovinos não
eram suficientes para satisfazer os refugiados. O governador do Rio da
Prata chegou a autorizar em 23-8-1638 aos guaranis “que pudessem vaquejar o gado disperso próximo às missões do Paraná”. Essa região ficou
conhecida como Vacaria do Iberá ou Entre Rios. Este acesso facilitado
ao gado aumentou o consumo de carne per capita, melhorando a dieta
da população e a expansão do rebanho, incentivando a que as missões
tivessem “uma estância de vacas comum a todas” depois subdividida em
várias menores “conforme sua real capacidade” de controle, administração e produção para o mercado interno.
Após a vitória de Mbororé, patrulhas das missões recorriam a margem oriental do Uruguai, destruíam as fortificações dos luso-brasileiros
e libertavam os índios cativos. O gado abandonado em 1637 proveniente
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das missões foi encontrado em 1644. Depois este rebanho se expandiu
para o sul, ao longo do litoral. Nada agradava tanto os guaranis do Tape
como retornar às suas terras de origem a fim de espioná-las, dobrar o gado
remanescente ou colher os ervais outrora próprios. Em 1646, os melhores
soldados tapes também precisavam defender as vacarias de Assunção, na
margem ocidental do rio Paraguai, em benefício da população de Corrientes.
Em 1657, as autoridades da missão de São Francisco Xavier fundaram sua primeira estância na margem oriental do Uruguai, seguida por
Yapeyú, coordenando estas instalações com a defesa militar do território
compreendido. Em 1679, cada uma das vinte missões contava com sua
própria estância para criação de gado além da Vacaria do Mar. A cidade
de Corrientes compartilhava com as vinte missões a extensa vacaria e
permutava com elas produtos e serviços dos guaranis dos quais ocasionalmente necessitassem. As chácaras dos índios ficavam distanciadas dos
núcleos e, por motivo de segurança, recomendou-se que o cultivo dos
terrenos fosse incentivado nas proximidades da área urbana.
Uma das consequências deste distanciamento era a indisciplina e insubordinação dos rapazes das estâncias criadas longe das vistas do pároco. Para corrigi-lo, recomendava-se que “se aplicassem ao cultivo de suas
chácaras, indispensáveis para o seu próprio sustento”.
A exploração racional da Vacaria do Mar assegurava abastecimento
regular das missões e das estâncias, sobretudo para aquelas que retornaram à margem oriental do rio Uruguai a partir de 1682.
Dez anos depois, todo o gado das Vacarias do Mar e de São Gabriel
deveria ter sido incorporado às missões a fim de evitar que os luso-brasileiros da Colônia do Sacramento se aproveitassem da facilidade de acesso
e dele se utilizassem em proveito próprio.
Todos os que podiam, trabalhavam. Não havia esmoleres. Os demais eram mantidos pela comunidade. Nenhum índio cultivava algo só.
O trabalho comunitário recebia estímulo, supervisão, coordenação. No
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plantio, na limpeza e na colheita, todos colaboravam: mulheres e crianças
cantavam e batiam palmas para afastar os predadores. A safra colhida era
armazenada para posterior distribuição. Havia o cuidado de prever as sementes para os plantios sucessivos e o estoque excedente para emergências [reserva de alimentos e moeda de troca por bens europeus].
Portanto, funcionava um sistema cooperativo a fim de garantir o
bem-estar. Não havia direitos de herança: a família sobrevivente era cuidada pela comunidade. Na teoria, o Estado Espanhol era o detentor da
propriedade da terra sul-americana mas, na prática, de fato, a Província
Jesuítica do Paraguai exercia o domínio efetivo.
Como não circulava moeda, tornava-se impossível transacionar terrenos sobretudo pelos colonos, impedidos de ter acesso às missões, de
adquirir terrenos. Cada chefe de família guarani recebia da comunidade o
que necessitava para sustentar seus dependentes. Mais terras significavam
mais trabalho, mais produção.
Os equinos eram amansados para montaria ainda segundo o método cruel de serem deixados presos sem alimento durante dias. Os potros
eram doados a quem os quisesse criar. A passo de viagem, duas léguas
eram percorridas em uma hora.
O curioso era que o índio raramente cuidava do ‘seu’ animal, fosse
boi ou cavalo. Findo o serviço, esquecia-se de retirar a sela, de alimentálo e tratá-lo, chegando a ponto de esquartejá-lo para assar sua carne. Por
isso, os missionários passaram a controlar o acesso às montarias até para
evitar roubos de gado e abandono por parte dos guaranis de suas respectivas famílias. Tanto que o rebanho manteve-se relativamente estável, antes
de explodir no século XVIII.
Desperdiçava-se a carne quando o interesse era apenas aproveitar o
couro: a carcaça ficava à mercê de urubus, cachorros e raposas. O gado
tornou-se abundante. Um cavalo valia uma faca.
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Viajantes eram obrigados a mandar vaqueiros à sua frente para abrir
caminhos – tantas eram as reses bravias e dispersas que impediam sua
passagem e assustavam o caminhante.
Manufaturas, artesanato, artes plásticas, música
As missões possuíam fornos nas olarias para produzir tijolos e telhas. Em Santa Rosa, o padre Sepp utilizava dois fornos. Em São João os
três fornos fabricavam vários milheiros de peças de cerâmica.
Os sinos eram fundidos com metal importado de Coquimbo, Chile.
Armamentos e munições, ferramentas e equipamentos eram montados
em diversas oficinas. Tipografias, ateliês e laboratórios completavam o
diferencial entre algumas missões e as cidades sul-americanas na época
colonial.
Os missionários prezavam a medição do tempo tanto por quadrantes
solares quanto por relógios a fim de bem regular as atividades cotidianas
e as ocupações dos habitantes. Os padres Jaime Carreras e Pablo Danesi
e o frei Charles Franck orientaram os guaranis na arte e técnica da relojoaria. Relógios de sol até hoje atestam o capricho e a preocupação dos
missionários em bem aproveitar o tempo disponível.
A primeira oficina de impressão instalada no Vice-Reino do Prata
foi de iniciativa dos jesuítas, que produziram livros em língua guarani
com caracteres tipográficos especiais tentando reproduzir a pronúncia da
maneira mais fiel possível. Em 1705, Loreto publicou a obra Temporal y
Eterno em espanhol e um dicionário. Os trabalhos impressos eram bemapresentados. Candelária, Loreto, Santa Maria e São Francisco tiveram
suas oficinas destruídas após a expulsão dos jesuítas. As obras linguísticas do padre Restivo encontram-se ainda hoje no Museu Histórico de
Buenos Aires.
Os mapas da América do Sul impressos pelos guaranis e os mapas
celestes do padre Boaventura Suárez também se destacaram entre alguns
dos melhores exemplares produzidos nas missões. Dotados de grande
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sensibilidade artística e fidelidade ao original, os neófitos eram extremamente hábeis em imitar, copiar e transcrever, produzir instrumentos musicais, tecer redes de dormir, tapetes, tecidos em geral.
Corporações organizavam as principais atividades. Desde cedo, os
jovens eram encaminhados a uma profissão. Mestres estimulavam seus
discípulos e não temiam a futura concorrência. Não havia privilégios nem
mecanismos para travar o progresso como a tecnoburocracia e a corrupção funcional-administrativa. Havia espírito de equipe, cooperativismo.
As tarefas eram orientadas, coordenadas, fiscalizadas, acompanhadas
com muita atenção, zelo e carinho. A aprovação da comunidade e dos
padres era a láurea almejada.
Além de apurado gosto estético, os jovens guaranis demonstraram
senso de proporção e perspectiva, ótimo ouvido e ritmo que muito contribuíram para desenvolver o talento para o desenho, a pintura, a escultura,
o canto, a música instrumental e a dança.
Logo de início, os missionários observaram que os cânticos sacros
atraíam a atenção dos indígenas. O padre Louis Berger pode ser considerado o primeiro mestre de música instrumental e vocal, escultor e pintor,
admirado até pelo seu superior, o padre Mastrilli; ele conseguiu converter
inúmeros infiéis com seu violão. O padre belga Jean Baez Vassaux aperfeiçoou musicalmente os guaranis, divulgando repertórios consagrados
e composições individuais. O padre Antonio Sepp também se destacou
como músico de talento, intérprete em vários gêneros e instrumentos além
de compositor. Foi grande incentivador do ensino da música aos guaranis
no século XVIII. Em cada missão foi criada uma escola de canto coral,
música e dança. Saber cantar fazia parte da educação para a cidadania.
Os instrumentos musicais – órgãos, violinos, violas, harpas, flautas e
trompetes – eram confeccionados nas missões pelos jesuítas, muitos deles
alemães. As forjas que trabalhavam o ferro foram instaladas também para
garantir a fabricação de armas, ferramentas e outros utensílios indispensáveis à construção de um sistema mais seguro e eficiente. O ferro, metal
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trazido de Potosi, possibilitou a fabricação de serrotes, enxadas, plainas,
machados e relógios de mesa. Tesouras e lancetas eram raras e valorizadas. A indústria de cera das abelhas jataí (do tamanho de moscas) teria
financiado a compra de minério de ferro.
Tecnologia
Além de rica biodiversidade com frutos variados em abundância,
extensas pradarias possibilitavam promissora criação de gado – cedo vislumbrada pelos jesuítas – que completariam, como de fato complementou, a caça e a pesca. Aliás a pecuária foi um dos principais sustentáculos
econômicos da Confederação das Missões.
A beleza natural, o clima ameno, a exuberância destas plagas encantaram os primeiros missionários cujos afazeres eram inúmeros e diversificados e os sobrecarregavam: além das tarefas religiosas, havia o ensino,
a hortifruticultura, o artesanato, o ensino da música (canto, instrumentos
musicais, dança), a administração e a hábil gestão diplomática de interesses conflitantes com ousadia, dinamismo e pragmatismo.
Cervos em abundância eram abatidos a paus de tão dóceis. O mel
de abelhas era utilizado como tempero no lugar do óleo e do vinagre.
Pescava-se à mão com curare (tóxico que atordoava os peixes) ou com
pregos de pontas encurvadas na falta de anzóis.
Às sextas-feiras e domingos havia missa solene com sermões formais e cânticos sacros. Aos sábados ocorriam os casamentos. No primeiro dia do mês celebrava-se a missa de réquiem para os recém-falecidos.
Procissões anuais eram realizadas às vezes pelos rios. A catequese das
crianças, o atendimento aos enfermos e a educação regular ocupavam boa
parte do tempo dos padres, alguns dos quais habilitados a manipular os
elementos fitoterápicos e a produzir os fármacos das riquíssimas flora e
fauna que eram prescritos.
Ao adotarem nova tecnologia, incorporando ferramentas, instrumentos e equipamentos (agrícolas, artesanais, musicais), os missionários con-
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seguiram ampliar a área plantada e a produtividade, tornando mais eficiente o trabalho manual e transformando os sons emitidos pelas mãos e
pela boca. A transformação foi tão significativa que se tornou decisiva no
convencimento dos demais neófitos ainda arredios às missões. Ela pode
ser comparada à introdução das máquinas na revolução industrial. E só se
tornou possível com a colaboração entusiasmada das crianças.
A ajuda mútua e o trabalho em grupo ao som de cânticos ao lado das
crianças era uma constante entre os guaranis. Caso determinada missão
sofresse crise de abastecimento por colheita insuficiente, os vizinhos se
reuniam para suprir as momentâneas necessidades e garantir a safra seguinte. Na instalação de nova comunidade, todas as povoações próximas
contribuíam com seus homens, animais (bovinos e equinos), equipamentos e matérias-primas.
O governador do Prata em Montevidéu, Dom Joaquim de Viana, exclamou, após visitar as missões que deveriam ser permutadas pela Colônia do Sacramento: “E são estas as ‘aldeias’ que temos de entregar aos
portugueses? Os nossos cavalheiros em Madri devem ter perdido a cabeça para assim renunciarem a tais cidades, que não têm paralelo em todo
o Paraguai!”
Na agricultura, os guaranis utilizavam o sistema de afolhamentos
(rotação de culturas) e alqueive (pousio), concedendo ao solo descansos periódicos. Já naquela época queixavam-se de tempestades que destelhavam as casas e as destruíam em grande número. Geadas aniquilavam colheitas inteiras. Canais irrigavam os campos e se prolongavam às
lavanderias e às grandes hortas. ‘Máquinas hidráulicas’ puncionavam a
água dos rios. Em 1745, uma grande seca atingiu a região. Em diversas
ocasiões, nuvens de gafanhotos devastavam os cultivos.
Às pequenas plantações de milho, mandioca, batata-doce, erva-mate, os jesuítas acrescentaram as de trigo, centeio, cevada, arroz, cana-deaçúcar, algodão, fumo e cânhamo para a produção de tecidos. De modo
geral, plantava-se no outono (abril – maio) e colhia-se na primavera
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(setembro – outubro). Cada missão comportava de seis a oito hortas e
pomares além do jardim dos padres que na verdade era uma horta experimental de aclimatação de cerca de três hectares nos fundos do colégio
onde havia hortaliças, legumes, flores, plantas medicinais e ornamentais. O ‘bálsamo das missões’, extraído do aquaraybay, era até importado pelas farmácias de Madri. Temperos, perfumes, essências passaram
a ser disputados. Aleias de laranjeiras e pessegueiros sombreavam as
avenidas de algumas missões. Os padres adaptaram os seus conhecimentos à experiência e vivência dos índios. Anotavam detalhes dos experimentos com enxertos e demais métodos de reprodução dos vegetais
e os classificavam, conservavam, arquivavam. O Almanaque Agrícola
de 1765 informava e orientava sobre diversas culturas. Até 1700, pela
ausência de metais, empregavam-se charruas (estacas de madeira afiada
para arar o solo) que se desgastavam muito. O desafio de transformar
caçadores, pescadores e coletores de sementes e frutos em agricultores
era enorme.
O algodão teve três variedades sendo cultivadas, chegando a 2.000
arrobas a produção em cada comunidade. A cana-de-açúcar também se
destacou, sendo que em 1860 a fabricação de açúcar cristalizado ainda
subsistia em São Cosme. A produção vinícola só prosperou no Uruguai,
que exportava o ‘vinho da missa’ para as reduções, embora o mais disputado fosse o vinho de la Cruz, na atual Argentina, fronteira com o Rio
Grande do Sul. O tabaco do Paraguai era considerado um dos melhores
na época.
Estâncias de gado bovino e equino e plantações de erva-mate e algodão se expandiam nas planuras e encostas gaúchas próximo às culturas de milho e mandioca, determinando a construção de silos, currais,
olarias e matadouros.
A regularidade das construções e a organização do espaço eram evidentes, condicionando toda a sustentabilidade do cotidiano das missões,
limitando as atividades e sedentarizando a comunidade, antes habituada
à vida nômade, em contínua busca do seu sustento. O grande diferencial
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A Utopia Possível:
Uma experiência de desenvolvimento regional, séculos XVII e XVIII
missioneiro consistia no êxito dos jesuítas em providenciar certas condições favoráveis que poderiam oferecer relativa garantia de abastecimento regular pela introdução de produtos, técnicas e implementos agrícolas
que melhoraram a rentabilidade, diversificaram a produção e diluíram os
riscos e as perdas.
Os jesuítas, em seu afã evangelizador, encontraram áreas de coincidências com a mentalidade guarani que permitiram fundar sobre bases
firmes a empresa missional: compartilhavam um modo de ser religioso,
um modo de vida em comunidade no qual o trabalho e a produção de
bens eram imprescindíveis para assegurar a subsistência mas cujo objetivo maior ia além: a vida religiosa reforçada pelas artes plásticas, a música
e o canto sacro, na verdade o marco superior da existência humana.
Os professores do Colégio eram índios selecionados bem-treinados
que exigiam frequência intensiva das crianças de 5 a 12 anos de idade. No
1º ciclo ensinavam catecismo, leitura, escrita, rudimentos de matemática,
dança e cantos sacros. No 2º ciclo havia a especialização de cada aluno
em Teologia, História, Geografia e Latim para os que iriam tornar-se líderes da comunidade e membros do Cabildo, reunindo os mais aptos e
capazes.
Os membros do Cabildo eram eleitos em cada final de ano. Sua
permanência nos respectivos cargos dependia da estima e do respeito da
coletividade sem classes nem privilégios. Os padres eram conselheiros
do Cabildo para assuntos relevantes e polêmicos com poder de veto em
casos de conflito ou abuso de poder. Exerciam o papel de elo de ligação
entre cada redução e a Confederação das Missões, coordenada pelo Superior (com sede em Yapeyú) que visitava regularmente os povoados,
verificando se as diretrizes gerais de política desenvolvimentista estavam sendo seguidas.
“Nenhuma outra região da América conheceu nos séculos XVII e
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XVIII uma prosperidade tão geral nem um desenvolvimento tão equilibrado e saudável.”5
Figura 2
TRINTA POVOS DAS MISSÕES JESUÍTICAS – Fonte: QUEVEDO (1996).
Figura 3
VISTA DE UMA REDUÇÃO – Fonte: QUEVEDO (1996).
Figura 4
ESQUEMA DA REDUÇÃO DE TRINIDAD, NO PARAGUAI – Fonte: QUEVEDO (1996).
5 – LUGON, Clóvis, op. cit.
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A Utopia Possível:
Uma experiência de desenvolvimento regional, séculos XVII e XVIII
Figura 5
SAN PEDRO DE LAS LÁGRIMAS – Fonte: FREITAS (1999).
Figura 6
RUÍNAS DA MISSÃO DE SÃO MIGUEL – Fonte: FREITAS (1999).
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Miriam Halpern Pereira1
Resumo:
Portugal atravessa um dos períodos mais complexos da sua história entre 1807 e 1820, quando às invasões francesas, de curta duração, mas
muito destrutivas, se sucederam doze anos de
ocupação informal britânica. Ainda assim, a
Casa de Bragança conservou a Coroa, mantendo
o Brasil e outros territórios coloniais por mais
de uma década sob o seu domínio, enquanto a
revolução liberal dava os seus primeiros passos.
A história de Portugal e do Brasil distingue-se
inteiramente da história da Espanha e das suas
colônias americanas nesta época, constituindo
um caso interessante para o estudo da evolução
de três das principais instituições e conceitos
políticos no final do Antigo Regime: a Coroa,
o Império e a Nação, cada qual com cronologia
bem distinta. A Coroa é obviamente a instituição mais antiga, o Império o conceito que se
lhe entrelaça a partir das Descobertas, sendo a
então fascinante ideia de Nação a mais recente na época, em ambos os lados do Atlântico.
Neste artigo, a ênfase incide na forma como se
vai processando a articulação entre estas instituições e conceitos, neste período de coexistência entre instituições antigas e novas e em que
a modificação da sua geografia se torna fator e
igualmente consequência desse processo.
Abstract:
Portugal went through one of the most complex
period of its whole History between 1807 and
1820, when the British informal occupation
of twelve years, followed the French invasion,
short but very destructive. The Crown survived
in the hands of the House of Bragança and kept
Brazil and the rest of its colonial territories for
over a decade, and a liberal revolution began
to make its way. This makes the Portuguese and
Brazilian history of this period somewhat different from that of both Spain and its American
colonies. It provides an interesting case for the
study of the evolution of three main institutions
and political concepts involved in the end of
the Old Regime: the Crown, the Empire and
the Nation, each one with their own chronology. The Crown is obviously the oldest one, the
concept of Empire emerged with the “Overseas Discoveries” and Nation was the newest
and then fascinating idea, in both sides of the
Atlantic. The main focus in this article is the
changing interrelation these concepts undergo
in this period, in which the co-existence of old
and new institutions is visible and their changing geography .appears both as a factor and a
consequence of this process.
Palavras-chave: Revolução liberal, invasões
francesas, Independência do Brasil, Aliança
luso-britânica, Tratado 1810.
Keywords: Liberal Revolution, French invasions, Independence of Brazil, Anglo-Portuguese Alliance, Treaty of 1810.
As guerras napoleônicas desempenharam um papel catalisador de
sentido múltiplo na Europa e na América do Sul, regiões onde os ventos
de mudança já se vinham fazendo sentir. Reformas e sintomas de desagregação do Antigo Regime despontavam, aqui e além, sob o impacto
decisivo das revoluções americana e francesa, mas sem que o sistema
político em si mesmo fosse afetado. Em Portugal, antes de 1807, os novos
1 – Professora emeritus/ Centro de História Contemporânea/ ISCTE/Instituto Universitário de Lisboa. E-mails: [email protected], [email protected].
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ideais apenas tinham exercido uma influência tênue na elite iluminista.
Os primeiros indícios da vontade de mudar o sistema político só começam a ser visíveis no final da primeira década do século XIX, quando
a Península Ibérica é envolvida no vasto conflito europeu entre Antigo
Regime e Estados e projetos liberais, intensificado pelas guerras napoleônicas. Foi em nome de uma nova estrutura política e social e da luta
contra as monarquias absolutas que os exércitos napoleônicos invadiram
vários países em toda a Europa, da Rússia a Portugal. Em pano de fundo,
emergem rapidamente as ambições imperiais, regionais e pessoais, como
foi o caso de Portugal e do seu Império. A Inglaterra encabeçou a aliança
contra Napoleão, a qual, de facto, não era inteiramente antiliberal.
Portugal atravessou uma conjuntura difícil, dividido entre a fidelidade ao seu tradicional aliado, a Inglaterra, cujo poder marítimo era fundamental no apoio ao Império Português, e o medo do avassalador poder
militar de Napoleão, na altura aliado de Espanha. A neutralidade, durante
muito tempo a escolha do governo português, foi mantida quase até ao
fim. Quando Portugal cedeu às exigências francesas de encerramento dos
portos e a expulsão dos súditos ingleses, era já tarde demais, a invasão
napoleônica já tinha sido decidida. O tratado de Fontainebleau de Novembro de 1807 sancionou o acordo entre Espanha e França, sem que a
partilha planeada entre França e Espanha viesse a ser aplicada. Portugal
entrou então num dos períodos mais complexos da sua história: às invasões francesas, de curta duração, mas muito destrutivas, sucederam-se
doze anos de ocupação informal britânica. Ainda assim, a Casa de Bragança conservou a Coroa, mantendo o Brasil e outros territórios coloniais
por mais de uma década, sob o seu domínio. A história de Portugal e do
Brasil distingue-se inteiramente da história da Espanha e das suas colônias americanas nesta época, constituindo um caso interessante para o
estudo da evolução de três das principais instituições e conceitos políticos
no final do Antigo Regime: a Coroa, o Império e a Nação, cada qual com
cronologia bem distinta.
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Coroa, Império e Nação (1807-1834)
A Coroa é obviamente a instituição mais antiga, o Império o conceito
que se lhe entrelaça a partir das Descobertas, sendo a então fascinante
ideia de Nação a mais recente na época, em ambos os lados do Atlântico.
É particularmente interessante a forma como se vai processando a articulação entre instituições e conceitos, neste período de coexistência entre
instituições antigas e novas. A modificação da sua geografia constitui fator e igualmente consequência desse processo.
Coroa
Em Portugal, o Antigo Regime demonstrou uma notável capacidade
de adaptação aos novos tempos. O despotismo iluminista, desde Pombal
ao Príncipe Regente D. João, introduziu mudanças significativas em diversos sectores, da administração à economia, à educação e à cultura. No
início do século XIX, o Estado tinha controlado, e parcialmente integrado
na administração, as ordens privilegiadas. À medida que a esfera de intervenção do Estado crescera, o poder real, embora mantendo-se absoluto, fora sendo delegado de forma condicional num sistema institucional
complexo. O liberalismo econômico fora sendo moderadamente introduzido, precedendo em algumas décadas o advento do liberalismo político.
Um grupo de reformadores iluministas tinha sido integrado pelo Príncipe
Regente no seu governo, e o mais conhecido deles, o ministro Rodrigo
Sousa Coutinho, viria mais tarde a partir com o Regente para o Brasil.
Um período de prosperidade econômica caracterizou todo o último quartel do século XVIII, aproximadamente até 1806. Tudo isto explica que
o liberalismo político tenha surgido mais tarde em Portugal do que no
Brasil, como já Silbert apontara.2
Foi no Brasil colonial, como seria de esperar, que a Revolução Americana originou mais cedo uma visão crítica do Império e da Coroa portuguesa. A conspiração da elite colonial em Minas Gerais (1789), movimento separatista parcialmente influenciado por ideais republicanos, foi
seguida onze anos mais tarde por uma revolta de artesãos e comerciantes
mestiços na Bahia. O protesto baiano, sucedendo à revolta de escravos
2 – Albert Silbert, Portugal na Europa oitocentista (Lisboa: Salamandra, 1998), cap. 1.
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no Haiti, tornou a elite colonial mais moderada na expressão política do
seu descontentamento. A possibilidade de surgirem críticas ao sistema
baseado na escravatura, por parte da população negra, tornara-se uma
ameaça mais plausível. A tática da Coroa Portuguesa em relação aos dois
movimentos foi diferenciada. Tentou integrar os conspiradores de Minas
Gerais, com a exceção da execução de Tiradentes, em si mesmo importante, mas pelo contrário não hesitou na repressão violenta dos dirigentes
da revolta da Bahía, todos eles executados ou abandonados ao longo da
costa africana. Considerada no seu conjunto, a política da Coroa foi bemsucedida, conseguindo dirimir o descontentamento. Na viragem do século, as medidas tomadas por Sousa Coutinho tinham criado uma situação
política razoavelmente estável. O plano que deixara delineado em 1803,
pouco antes de abandonar o seu cargo, viria a contribuir decisivamente
para o futuro sucesso da monarquia no Brasil.3
De fato, a estabilização política do Brasil tornou-se vital para a Casa
de Bragança quando teve de mudar a sua capital para o Rio de Janeiro, em
1808. Por sua vez, as mudanças induzidas por este acontecimento central
tornaram-se um fator fundamental nesta estabilização.
No final de novembro de 1807, a Corte Real portuguesa empreendeu
uma viagem transatlântica e deslocou a sua sede. Foi um acontecimento
de suma importância, era a primeira vez na história da Europa que uma
figura real e a família se deslocavam a uma região do seu Império. Neste
caso, nem sequer se tratava de mera visita, mas de mudança efetiva de
residência, com o Rio de Janeiro a tornar-se a capital e a substituir temporariamente Lisboa, então sob o governo do general francês Junot.
Antes das invasões francesas, os fundamentos do regime absolutista
não tinham sido claramente questionados em Portugal. Desde o final do
século XVIII, existiam vários indícios de empatia com o liberalismo político por parte de diferentes personalidades, principalmente nas profissões
acadêmicas e liberais. Mas o primeiro projeto de monarquia constitucio3 – Kenneth Maxwell, “The idea of the Luso-Brazilian Empire” (1973), em Naked tropics: essays on empire and other rogues (New York: Routledge, 2003).
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nal apenas surgiu em 1808, quando um grupo minoritário se dirigiu a
Junot, solicitando uma constituição muito moderada, similar à constituição napoleônica da Polônia, associada à nomeação de um rei “napoleônico”, estrangeiro. A política napoleônica teria desfrutado inicialmente
de grande apoio entre os discípulos de Pombal, isto é, entre a nobreza
mais esclarecida, bem como no estrato social mais elevado do Terceiro
Estado, em alguns magistrados e metade da Universidade de Coimbra,
segundo o testemunho de Henri de Carrion-Nissas, um oficial de Junot.
Mas a recusa deste projeto constitucional por Junot e a sua aliança com a
nobreza tradicional pôs termo a qualquer expectativa liberal resultante da
presença francesa.4
Num primeiro tempo, o poder real parecia dispor de um apoio amplo.
Atesta-o a mudança de atitudes em relação aos exércitos franceses, induzida pelas ordens contrastantes do Príncipe Regente, primeiro no Inverno
de 1807 e, mais tarde, na Primavera do ano seguinte. Antes de partir, o
Príncipe D. João ordenou ao Conselho de Regentes que não resistissem
às tropas estrangeiras e que se comportassem de maneira cortês para com
elas. Os regentes obedeceram minuciosamente, indo mesmo ao encontro
do exército francês para o acompanhar na sua entrada na capital. Seis
meses mais tarde, como a situação em Espanha e na Europa tinha mudado
e entretanto Napoleão proclamara o fim da dinastia de Bragança, o Príncipe Regente declarou guerra à França. Decorrido pouco tempo, surgiram
revoltas por todo o país, em nome da Coroa e solicitando o regresso da
Casa de Bragança.
Entretanto, a nova geografia do poder real, agora sediado no Rio de
Janeiro, havia determinado a reorganização de um aparelho estatal recentrado nesta cidade.5 Uma cópia do Estado português de Antigo Regi4 – Albert Silbert, Do Portugal de Antigo Regime ao Portugal oitocentista (Lisboa: Horizonte, 1972); Graça Silva Dias e José Silva Dias, Os primórdios da maçonaria em Portugal (Lisboa: INIC, 1980); Miriam Halpern Pereira, “A crise do Estado de antigo regime:
alguns problemas conceptuais e de cronologia”, Ler História, n.º 2 (1983).
5 – Ana Cannas Delgado Martins, Governação e Arquivos D. João VI no Brasil (Lisboa:
IANTT, 2007), para tudo que se refere à reorganização do aparelho estatal no Brasil e em
Portugal e os conflitos de poder, ver também Ana Cannas Delgado Martins, “Governar
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me foi implantada no Brasil, com os seus diferentes serviços e tribunais
centrais, forças de segurança e várias outras instituições. Uma alteração
fundamental foi a nova Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, domínio agora necessariamente desagregado da Secretaria de Estado dos
Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos. A Impressão Régia foi rapidamente instalada, com o novo material tipográfico, vindo de
Londres e nem sequer desembalado em Lisboa, antes de embarcar juntamente com a Corte Real. A Biblioteca Nacional do Brasil herdou a rica
Biblioteca Real embarcada com a Corte Real para o Rio. Estes são apenas
alguns dos muitos pormenores desta extraordinária viagem que tornam
difícil acreditar que ela não fora planeada. Hoje constituiu-se quase um
consenso, pondo de lado a ideia de improvisação, considerando-se mais
plausível que apenas a data tenha sido anunciada no último momento.
Nos estaleiros do Arsenal da Marinha, os navios estavam já a ser preparados desde agosto, aliás a partida do Infante D. Pedro, Príncipe do Brasil,
herdeiro do trono, tinha sido claramente anunciada.
Mas voltando à questão principal que queria abordar aqui, a duplicação dos aparelhos político e administrativo que se tornou rapidamente
fonte de conflitos entre a Regência sediada em Portugal e a Corte Real residente no Rio. Dada a situação militar, os assuntos portugueses corriam
principalmente através das Secretarias de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, nas mãos de Rodrigo Sousa Coutinho, e os assuntos de
rotina através da Secretaria de Estado de Negócios do Brasil, o que naturalmente desagradava aos Regentes. Os assuntos ultramarinos estavam
agora centralizados no Rio, e o Conselho de Regentes não tinha sequer
qualquer autoridade sobre a Madeira e os Açores.6 Durante a ocupação
francesa, Junot suspendeu a Regência. Após a retirada do exército francês, no outono de 1808, o governo português no Rio hesitou sobre o tipo
Portugal na guerra peninsular: um desafio atlântico”, Ler História, n.º 54 (2008). Para o
Brasil, ver igualmente Belotti em O Império Luso-Brasileiro 1750-1822. Nova História
da Expansão Portuguesa, coord. M.ª Beatriz Nizza da Silva, dir. Joel Serrão e A. H. Oliveira Marques (Lisboa: Estampa, 1986).
6 – Esta situação das ilhas manter-se-ia mesmo após a expulsão de Junot, com o desagrado dos Regentes. Ver Ana Cannas Delgado Martins, Governação…, 128-129.
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de governo a estabelecer em Lisboa, tendo considerado o estabelecimento
de um governador, associado à presença de um membro da família real.
Deparando-se com uma situação instável em Portugal, o general britânico
Dalrymple não esperou por uma ordem da Coroa e decidiu por si próprio
restabelecer o Conselho de Regentes, excluindo apenas os membros suspeitos de colaboração com os franceses (18 de setembro de 1808). Impôs
também um dos novos membros (o bispo do Porto) e fez depender da sua
aprovação prévia a nomeação dos outros regentes que iriam substituir os
membros excluídos por colaboração ativa com os franceses.
A Regência apenas foi confirmada em janeiro pelo Rio, sendo então
os seus poderes drasticamente reduzidos, pois a Coroa receava seriamente perder o seu poder. A reação da Regência foi vigorosa, rejeitando a
execução destas ordens régias. Decorrido cerca de um ano de desentendimento entre Lisboa e o Rio, a Coroa cederia em meados de dezembro de
1809, alargando a esfera de jurisdição dos regentes. É interessante realçar
que a razão explicitamente invocada para a mudança foi a afirmação dos
regentes acerca do ambiente entre os “súditos”, que se sentiam remetidos
a estatuto colonial, quando estavam habituados a serem o centro do reino.
Este argumento revela uma mutação significativa, a opinião pública tinha
passado a ser reconhecida como fator político decisivo.
Após o curto período francês de Junot, que tinha concentrado o poder em si próprio, a presença militar inglesa introduziu um outro nível de
poder, que se veio sobrepor ao Conselho de Regentes, restabelecido com
a ajuda dos ingleses. O auxílio do exército inglês havia sido de início bem
acolhido, tendo sido até solicitada a colaboração de um general para reorganizar o exército português. O prestígio adquirido pelo exército inglês
no seu combate contra o poder napoleônico na Península Ibérica era enorme. A situação de Portugal era tão frágil que teve de aceitar a humilhante
Convenção de Sintra, na qual o governo português nem sequer participou.
Este acordo entre os governos francês e inglês, definindo as condições da
retirada dos franceses, não só confirmou o já existente poder militar britânico, como legitimou a sua intervenção em todos os assuntos, financeiros
ou administrativos, relacionados com a guerra. A Regência, bem como
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as autoridades militares e administrativas portuguesas, encontravam-se
agora claramente numa dupla dependência, de Beresford, numa relação
próxima, e do Príncipe Regente D. João e seus ministros, sediados na
distante cidade do Rio. Divergências e tensões atravessaram, por vezes,
as relações entre o poder real e os seus representantes em Lisboa, que tinham de enfrentar o descontentamento interno criado pelo duplo estatuto
quase colonial, face à própria Coroa e à Inglaterra.
Durante todo este período, mesmo antes da forma de governo ter
sido ela própria questionada em termos políticos, observa-se, na prática,
uma fragmentação no poder real, que atingiria o seu auge em1820, quando assume explícita configuração política. O período que se seguiu ao
final da guerra ilustra claramente a complexidade desta situação.
O fim das guerras napoleônicas, em 1814, não trouxe a Corte Real
de volta a Lisboa. A instituição do Reino Unido de Portugal e Brasil no
final de 1815 (16 de dezembro) foi seguida pela coroação do rei D. João
VI no Rio, no início de 1818 (6 de fevereiro), um ano após a morte de D.
Maria I. A coroação de D. João VI foi um acontecimento extraordinário,
jamais a coroação de um monarca europeu ocorrera na América. Recebidos com entusiasmo no Brasil, estes acontecimentos causaram crescente
e profunda decepção em Portugal. Não havia também sinal da retirada
dos ingleses ou da sua vontade de abdicar do poder. Bem pelo contrário.
Apesar da vasta delegação de poder que tinha adquirido, face aos sucessivos conflitos de competências com os regentes, Beresford sentiu a necessidade de ver o seu papel em Portugal claramente redefinido por parte
do Rei. A Coroa portuguesa tinha ainda uma palavra a dizer em Portugal
durante a ocupação britânica. Beresford regressava de uma ida ao Rio
para solicitar o reforço do seu poder, quando foi apanhado em pleno mar
pelo início da revolução de 1820. Assim terminou o período português da
sua carreira militar e política.
Entretanto surgia uma situação inversa: os Regentes informaram o
Rei acerca do seu reconhecimento das Cortes, não esperando pela sua
autorização. Surgira um novo poder na cena política: a Nação. No Brasil,
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o poder da Coroa portuguesa continuava a ser respeitado, excetuada a
revolta de 1817, ocorrida no mesmo ano da conspiração de Gomes Freire
em Lisboa. Os luso-brasileiros estavam contentes por ter o rei perto e,
praticamente de todos os pontos de vista, as condições da elite luso-brasileira tinham melhorado e o republicanismo setecentista esmorecera. A
monarquia agora sediada no Rio parecia mais apropriada a uma evolução
que não colocasse em perigo o sistema da escravatura.
No plano internacional, desde que os compromissos com o governo britânico fossem respeitados, tudo corria bem. Na situação militar e
política da Europa e de Portugal em 1807, a partida da Corte Real só foi
possível devido ao apoio britânico e em particular da sua armada. Tal
situação teve elevado preço político, imposto pelo governo britânico na
Convenção de novembro de 1807, negociada em Londres pelo embaixador Domingos Sousa Coutinho. Apesar de esta convenção nunca ter
sido assinada por nenhuma das partes, ela foi inteiramente aplicada. Em
troca da garantia concedida pelo governo britânico à Casa de Bragança de
que a Coroa portuguesa permaneceria nas suas mãos, independentemente
da evolução dos acontecimentos, duas condições essenciais tinham sido
exigidas.7
A Grã-Bretanha tinha imposto a abertura de um porto no Brasil, na
ilha de Santa Catarina – não de todos os portos brasileiros como viria a
acontecer –, e a futura assinatura de um tratado de comércio e navegação.
Claro que a abertura de um porto brasileiro, no mínimo, era indispensável
à sobrevivência da economia brasileira, indo ao encontro dos interesses
dos comerciantes britânicos e dos proprietários de escravos do Brasil.
A segunda condição foi a assinatura de um tratado de comércio e navegação, o futuro tratado de 1810, assinado em nome do comércio livre,
7 – Valentim Alexandre, Os sentidos do Império: a Questão Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo Regime (Porto: Afrontamento, 1992), 214-219: análise das negociações da convenção e os dois futuros tratados. No esboço do futuro tratado do comércio
e navegação delineado por Domingos de Sousa Coutinho, embaixador em Londres, o
convênio foi considerado temporário, um acordo devido à situação de guerra. As negociações entre Sousa Coutinho e Strangford foram prolongadas, tendo começado em agosto
de 1808.
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mas definindo condições desiguais e assimétricas que analisaremos mais
adiante. Estas duas medidas puseram fim ao monopólio português do comércio brasileiro. Salvar os direitos da Casa de Bragança e conservar o
Brasil sob o seu domínio conduziu, contudo, a prazo, ao enfraquecimento
político da Coroa e igualmente à ruptura do Império Luso-Brasileiro, ao
criar uma clivagem entre os interesses brasileiros e portugueses, tanto a
nível político como econômico. Isto conduz-me à segunda parte, a ideia e
a realidade do Império no contexto português.
Império
Desde a viagem de Vasco da Gama, o rei de Portugal intitulava-se
“Rei de Portugal, Algarve, Senhor de Aquém e Além-Mar em África, Senhor da Guiné e das Conquistas, Comércio e Navegação da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. Era um Império nascido no mar, como Charles Boxer
inteligentemente o designou, destinado a controlar as principais rotas de
comércio e navegação. A estrutura imperial, que se construiu para cobrir
uma área tão ampla, tomou uma forma muito diversificada. Nem poderia
ser de outro modo. O controle por parte de um pequeno país sobre zonas
tão dispersas só podia ser gerido através de uma administração flexível
adaptada a cada caso. Coexistiram dois principais tipos de estruturas administrativas. Uma rede de feitorias, fortalezas, e outras formas mais ligeiras de ligação, como os capitães de viagem, espalhava-se ao longo da
costa ocidental de África, no Oceano Índico e na Ásia oriental. Existiam
também formas de ocupação territorial com colonização agrícola, como
nas ilhas Atlânticas e mais tarde no Brasil. Goa e os seus territórios representavam uma forma de transição da primeira para a segunda. O Estado
da Índia serviria mais tarde de modelo ao Brasil e ambos tiveram um
estatuto especial, sendo governados por um alto funcionário, intitulado
vice-rei.8
8 – Kenneth Maxwell, “The idea…”, 137-141 particularmente e Maria Beatriz Nizza da
Silva, A Cultura luso-brasileira (Lisboa: Estampa, 1999), para a maior parte do que se
segue. Para o Estado da Índia, ver também Luís Filipe F. R. Thomaz, De Ceuta a Timor
(Lisboa: Difel, 1998), 2.ª edição.
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O Brasil tornou-se a parte essencial do Império Português, à medida
que todo o sistema asiático de comércio e navegação se desagregou e se
transferiu parcialmente para as mãos de outros concorrentes europeus durante o século XVII. De tal modo que, cerca de 1735, muitos anos antes
do próprio nascimento de Napoleão, Luís da Cunha, reputado diplomata,
sugeriu, numa proposta visionária, que o rei de Portugal deveria estabelecer a sua Corte no Brasil e tornar-se Imperador do Oeste, controlando assim melhor as suas riquezas. O Rio, com o seu clima moderado, afigurouse-lhe, desde logo, como local propício para instalar a capital.9
Na construção do Império Luso-Brasileiro, o papel da geração de
1790 tem sido considerado como essencial. Kenneth Maxwell faz remontar as suas raízes a Pombal, especialmente num aspecto, a integração dos
luso-brasileiros no aparelho estatal, concedendo-lhes cargos de relevo.
Rodrigo Sousa Coutinho continuaria a orientação definida por Pombal,
enviando estudantes do Brasil primeiro para Coimbra, donde seguiam
para Montpellier prosseguir os estudos.
Assim foi constituída uma nova elite luso-brasileira, bem integrada,
que se tornaria um alicerce da estrutura imperial. Com base na informação reunida por um grupo destes altos funcionários, enviado ao Brasil
para estudar diferentes questões, entre as quais a importante indústria
extrativa, Sousa Coutinho delineou a sua política geral para o Império,
em 1798. Estava consciente da necessidade de adaptar a administração
do Brasil e dos outros domínios aos novos tempos, de forma a mantêlos sob o poder da Coroa. Na sua opinião, Portugal reduzido a si mesmo
tornar-se-ia uma província da Espanha. Reformar para evitar a revolução
era um objectivo central da sua intervenção política. Nesse sentido, propunha que o Império fosse concebido como um conjunto de “províncias
da monarquia, todas possuidoras dos mesmos privilégios e honras, todas
reunidas sob a mesma administração”. Propôs também diversas medidas
fiscais e financeiras, entre as quais a abolição de taxas no comércio interno do Brasil e a redução do quinto régio. Apenas conseguiu a abolição do
9 – Luís da Cunha, Instruções Inéditas (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930,
211).
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monopólio do sal e a autorização para a instalação da extração e manufatura do ferro, algumas das medidas solicitadas pelos próprios comerciantes luso-brasileiros.
Quando irrompeu a guerra na Europa nos primeiros anos do século
XIX, a sua apreciação da situação europeia levou-o, em 1803, a aconselhar o Príncipe Regente a estabelecer a sede da monarquia no Brasil.
Como Luís da Cunha, sete décadas antes, também ele pensava que “Portugal não era a melhor e a parte mais essencial da monarquia”, projeto que
naturalmente encontrou viva oposição em Portugal.
Os acontecimentos conduziriam a Coroa a transferir a sua residência
para o Rio, e a preexistência de um plano para mudar a administração do
Brasil, esboçado por Rodrigo da Sousa Coutinho, revelou-se essencial
para o sucesso dos primeiros anos da monarquia no Brasil. No entanto, o
inverso não foi verdadeiro. Portugal não beneficiou de forma alguma com
a transformação da estrutura imperial, nomeadamente no plano econômico. Bem pelo contrário.
As vozes de dois luso-brasileiros, José da Silva Lisboa e Hipólito da
Costa, permitem identificar duas reações diferentes às medidas liberais
relativas ao comércio internacional. José da Silva Lisboa, responsável
pela Mesa da Agricultura e Comércio na Bahia, por ocasião da chegada
do Príncipe Regente, e mais tarde seu conselheiro, foi escolhido para redigir o projeto do decreto-lei de 1808. Todos os portos do Brasil seriam
abertos ao comércio de todos os países, acabando com o monopólio colonial de Portugal, o que era imperativo na conjuntura de bloqueio continental na Europa. Nas Observações sobre o comércio franco do Brasil,
obra publicada pouco depois, e que foi o primeiro livro impresso na Nova
Impressão Régia, do Rio, defendeu convictamente as teorias de Adam
Smith, em justificação desta medida. Nos anos seguintes, louvaria repetidamente o tratado de 1810 e outras medidas de D. João. Os benefícios da
nova fundamentação do comércio internacional para o desenvolvimento
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Coroa, Império e Nação (1807-1834)
do Brasil pareciam-lhe inquestionáveis e acreditava que seria igualmente
benéfico para Portugal.10
Algo diferente era a posição de Hipólito da Costa, apesar de ser também apologista do comércio livre, considerava necessário que o livrecâmbio fosse moderado por certo grau de protecionismo, sendo moderado na apreciação da política econômica externa do Príncipe Regente.
A sua estadia nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde fora enviado por
Sousa Coutinho, para compreender as transformações em curso nesses
países, dera-lhe uma perspectiva diferente da realidade econômica. Ali
convivera com comerciantes e industriais. De regresso a Lisboa, fora preso pela Inquisição, acusado de atividades maçônicas. Viria a fixar-se em
Londres, tornando-se editor de um dos principais jornais liberais no exílio, amplamente lido em ambos os lados do Atlântico. Mesmo antes da ratificação do tratado anglo-português, já em 1809 apontara os riscos de um
convênio entre dois países de poder tão desigual. Em recensão crítica dos
escritos de Silva Lisboa publicados no Correio Brasiliense, efetuou duas
observações relevantes, como José Luis Cardoso evocou recentemente.
A primeira refere-se ao papel do livre-câmbio no desenvolvimento dos
Estados Unidos, salientando a importância desempenhada por algumas
medidas protecionistas (referindo os direitos preferenciais das mercadorias transportadas em navios nacionais). A segunda observação refere-se
à falta de reciprocidade nas condições estabelecidas para os comerciantes
brasileiros em Inglaterra e para os britânicos no Brasil. De fato, o tratado
excluía a admissão em Inglaterra e no seu império das principais produções brasileiras, açúcar, café e qualquer outra produção igual a produtos
das colônias inglesas, exceto se fossem para reexportação. Contudo, a
possibilidade de reexportação era então em si mesma essencial.
10– José Luís Cardoso, “A abertura dos portos do Brasil: dos factos à doutrina”, Ler
História, n.º 54 (2008), sobre este debate e a crítica de Hipólito da Costa aos escritos de
J. S. Lisboa. Sobre Hipólito da Costa, ver também Paulo Roberto de Almeida, “O intelectual Hipólito José da Costa como pensador económico”, Brasília, n.º 1243, 12 de Abril,
2004.
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Tanto a abertura dos portos a todas as nações como o tratado de1810
de comérico e navegação foram em geral bem aceites no Brasil nesta fase.
As condições das exportações e reexportações para Londres tornaram-se
mais favoráveis e, com o fim da situação de guerra, o mesmo regime se
aplicaria a reexportação desta grande praça para outros países. Os reduzidos direitos sobre os produtos manufaturados não afetavam diretamente
a economia brasileira, devido à quase inexistente indústria. Foi a cláusula
sobre a escravatura inserida no tratado de aliança com a Inglaterra que
preocupou vivamente os luso-brasileiros.
Em Portugal, onde, pelo contrário, os proprietários de fábricas e comerciantes foram gravemente prejudicados pelas privilegiadas condições
proporcionadas aos interesses ingleses, o tratado foi vivamente criticado.
Os interesses econômicos de Portugal tinham sido inteiramente sacrificados pela Regência. O controle dos circuitos de comércio pelos negociantes britânicos veio associar-se ao poder político atribuído ao governo
militar inglês. Um símbolo da inversão ocorrida é visível no tratamento
preferencial oferecido à entrada das mercadorias inglesas nos portos brasileiros, onde lhes era cobrada menos 1% que às mercadorias de proveniência portuguesa. Outra condição humilhante era a necessidade de acordo
prévio dos negociantes britânicos para se efetuar qualquer alteração das
pautas portuguesas. Pouco tempo após a assinatura do tratado, o Clube dos Mercadores Portugueses em Londres iniciou a publicação de um
jornal com o objetivo explícito de defender os interesses portugueses,
tratando-os como claramente diferentes dos interesses da colônia brasileira. O Português, dirigido por Rocha Loureiro, exilado em Londres, foi
publicado com regularidade, só desaparecendo bastante tempo depois do
advento da revolução de 1820.11
11– O anterior periódico de Rocha Loureiro, Correio da Península (1809-1810), onde
tinha manifestado a sua simpatia pela constituição espanhola de 1812, fora suspenso em
Lisboa. Georges Boisvert, Un pionnier de la propagande liberale au Portugal: João Bernardo da Rocha Loureiro (1778-1853) (Lisboa: FL-UL e Instituto Histórico Infante D.
Henrique, 1974) e “Le premier périodique liberal publié au Portugal: O Correio da Península, ou Novo Telégrafo (1809-1810)” em O Liberalismo na Península Ibérica na
Primeira Metade do Século XIX, coord. Miriam Halpern Pereira et al., vol. 2 (Lisboa: Sá
da Costa, 1982). Sobre esta publicação ver também Maria Helena Carvalho dos Santos em
Miriam Halpern Pereira et al., O Liberalismo…, vol. 1.
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Coroa, Império e Nação (1807-1834)
A situação era tão desfavorável para a indústria portuguesa que a
taxa de 30% sobre os lanifícios, estabelecida depois do tratado de Methuen e inclusa no tratado de 1810, parecia agora uma protecção desejável
quando comparada com a taxa geral de 15% para todos os produtos manufaturados estrangeiros. Mas até esta diferença foi abolida por decisão
real de 15 de maio de 1814, contrariando a recomendação do Conselho da
Fazenda.12 O comércio oriental foi também redirecionado para o Brasil,
de onde a reexportação para a Europa deveria doravante ter lugar (alvará
de 4-2-1811).13
Não é surpreendente que, neste contexto, as medidas tomadas pelo
Príncipe Regente para criar uma estrutura jurídica mais flexível para o
desenvolvimento da indústria e da agricultura em Portugal fossem totalmente ineficazes (lei de 1809 e reforma dos forais de 1810).
As consequências do fim do comércio exclusivo colonial e a alteração das relações entre Portugal e a Inglaterra foram imediatas e catastróficas. A balança comercial, que tinha sido positiva até 1810, sofreu um
profundo desequilíbrio. Em 1811, as exportações britânicas para Portugal
tornaram-se treze vezes maiores do que as exportações portuguesas. O
mercado brasileiro foi invadido pelas mercadorias inglesas. E a tendência
permaneceu imutável nos anos seguintes, apesar da ligeira recuperação
após o final da guerra.14
O restabelecimento da paz na Europa não trouxe qualquer alteração.
A política de D. João VI não apontava qualquer modificação. A permanência do Rei no Rio mudara a configuração do Império, invertendo a
12– Miriam Halpern Pereira, Das Revoluções Liberais ao Estado Novo (Lisboa: Presença, 1994), cap. 1, 35-36 (1.ª edição de 1979).
13– Valentim Alexandre, em História da Expansão Portuguesa, vol. 4, org. Francisco
Bettencourt e Kirti Chaudhuri (Lisboa: Círculo dos Leitores, 1998), 16.
14– Jorge Borges de Macedo, O Bloqueio Continental – Economia e Guerra Peninsular
(Lisboa: Delfos, 1962); Maria Lourdes Roque de Aguiar Ribeiro, As Relações Comerciais
entre Portugal e Brasil segundo as Balanças de Comércio 1801-1821 (Lisboa: Faculdade
de Letras de Lisboa, ��������������������������������������������������������������
1972); Valentim Alexandre, “Um
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momento crucial do subdesenvolvimento português: efeitos económicos da perda do império brasileiro”, Ler História, n.º
7 (1986): 3-43.
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Miriam Halpern Pereira
relação entre o Brasil e Portugal. A ausência de sinais anunciadores de
futuro diferente acabaria por conduzir à desagregação do poder da Coroa
em Portugal e o sistema colonial chegaria a um fim previsível. Mas, em
contraste com a evolução dominante na América do Sul, a forma monárquica de governo seria preservada no Brasil por mais de seis décadas,
assim como a ligação familiar à Casa de Bragança.
Nação
Duas abordagens complementares serão afloradas nesta terceira
parte relativa ao conceito de Nação. A cronologia e o teor das atitudes
face aos ocupantes estrangeiros, em dois tempos sucessivos, a ocupação
francesa e a presença britânica. Seguir-se-á a análise da articulação entre
nacionalismo e liberalismo.
O primeiro conflito entre portugueses e franceses foi desencadeado
pelo arvorar da bandeira francesa no topo do Castelo de São Jorge em
Lisboa, a 13 de dezembro de 1807. Nos meses seguintes, diversas medidas tomadas pelos franceses feriram os sentimentos religiosos do povo,
tais como a proibição de utilização dos sinos das igrejas, das festividades
natalícias e da celebração do Entrudo e também pela instalação das tropas
francesas em conventos. O eclodir de revoltas por todo o país coincidiu
com as festividades religiosas, em junho e julho de 1808, coincidência de
forma alguma ocasional.15
Ainda que os movimentos populares em Portugal e Espanha se tenham desenvolvido mimeticamente e existissem algumas ligações entre
eles, no seu todo tomaram um rumo bastante diferente. A maior parte
das revoltas em Portugal, mesmo as de origem popular, facilmente foram submetidas à direção local da aristocracia e do clero rural. O cle15– Sobre estas revoltas: Ana Cristina Araújo, “Revoltas e ideologias em conflito durante
as invasões francesas”, Revista de História das Ideias, n.º 7 (1985); Albert Silbert, “Portugal e o estrangeiro durante o período revolucionário e napoleónico”, em Portugal na
Europa…; Fernando Dores da Costa, “Franceses e “Jacobinos”: movimentações “populares” e medidas de polícia em 1808 e 1809. Uma “irrupção patriótica”?”, Ler História, n.º
54 (2008); António Pedro Vicente, “Um soldado na guerra peninsular: Bernardim Freire
de Andrade”, separata do Boletim Histórico Militar (1970).
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Coroa, Império e Nação (1807-1834)
ro desempenhou um papel fundamental na justificação ideológica deste
movimento, atribuindo-lhe o conteúdo de cruzada em defesa do rei e da
religião, identificando os inimigos como pessoas ímpias. Neste contexto,
o antissemitismo foi reativado e associado ao jacobinismo simpatizante
com os franceses. Um pacto de lealdade com a monarquia de direito divino foi defendido nas proclamações, bem como o direito à resistência
perante um tirano estrangeiro. Em contraste com este movimento bastante conservador, em Espanha as Juntas abriram caminho a um movimento
revolucionário, que conduziu às Cortes de Cádis. Nada de semelhante
aconteceu em Portugal, embora no Sul (Beja e Vila Viçosa), onde as revoltas não conseguiram a colaboração da aristocracia e do clero local, os
camponeses tenham procurado o apoio dos generais espanhóis de Badajoz e Sevilha. Contudo, as Juntas nem sempre conseguiram conter o
descontentamento popular, como foi o caso do Porto e de todo o Norte
do país durante a primavera de 1809. O dramático assassinato do oficial
Bernardim Freire de Andrade pela população de Braga é um exemplo
significativo da desordem e da falta de confiança na capacidade da classe
dirigente para fazer face ao exército francês. Neste contexto, a ajuda do
exército britânico no combate contra o invasor francês e no restabelecimento da autoridade teve acolhimento muito favorável junto da classe
dirigente.
Foi principalmente após o fim da guerra que o descontentamento em
Portugal adquiriu um conteúdo político novo. Uma situação aceite a título
temporário, justificada pelo perigo de nova invasão estrangeira, surgia
agora como tendo-se tornado permanente e desprovida de fundamento
em tempos de paz. Não havia sinais do regresso do Rei, a coroação de D.
João fora um acontecimento decepcionante em Portugal, e tampouco havia sinal dos ingleses quererem partir. O tratado de paz de 1815, assinado
em Viena, também não permitia a revisão do tratado anglo-português de
1810, que fora encarado como sendo de curto prazo, senão decorridos
quinze anos após a sua assinatura. Foi então que houve a percepção evidente da desastrosa posição de Portugal, agora estranhamente na dependência tanto da parte brasileira do recém-nascido Reino Unido, como da
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Miriam Halpern Pereira
Grã-Bretanha. A imprensa do exílio teve um papel relevante na expressão
do nacionalismo e do liberalismo, a partir daí estreitamente relacionados.16
Em nome da Nação, criticava-se tanto a Coroa como a Grã-Bretanha.
Apesar da revolução de 1820 ter a sua origem num movimento elitista, uma pequena estrutura maçônica, o Sinédrio, composto por elementos
militares e civis, o seu êxito e o trabalho do Congresso de 1821-1822 despertaram a esperança de mudança na população, acompanhada por nítida
vontade de participação política. O vasto movimento peticionário desses
anos é sinal de profundo envolvimento na vida política de pessoas de
diferentes estratos, de norte a sul do país.17 Um tipo de documento muito
significativo é constituído pelas “Memórias oferecidas ao Soberano Congresso”, identificando problemas e propondo medidas para os enfrentar.
Este movimento peticionário, com uma vasta dimensão, era inovador e só
tem paralelo em fenômenos da vida política contemporânea portuguesa.
Representa o amplo despontar do sentido de cidadania.
No conjunto, estas petições e memórias, dirigidas às diferentes comissões parlamentares, dão-nos um quadro muito completo da crise do
Antigo Regime, em toda a sua extensão, nos seus aspectos políticos, institucionais, sociais e econômicos, e nesse sentido podem ser comparadas aos Cahiers de Doléances franceses. A emergência dos conceitos de
Nação e de cidadania revelou-se também nas atitudes relacionadas com
a posição internacional do país. A mudança, no mínimo, de algumas das
condições do tratado de 1810 foi vivamente exigida e os deputados corresponderam a esta solicitação: o diferencial de 1% foi abolido e as condições do Tratado de Methuen novamente restabelecidas, apesar da forte
oposição da diplomacia britânica.
16– Georges Boisvert, ed., Memoriais a D. João VI (João Bernardo da Rocha Loureiro)
(Paris: FCG – Centro Cultural de Paris, 1973) e Un pionnier…; Valentim Alexandre, Os
sentidos do Império…, 415-420.
17– Sobre este movimento peticionário: Albert Silbert, Le problème agraire portugais au
temps des premières Cortès Libérales (1821-22) (Paris: PUF/FCG, 1968); Miriam Halpern Pereira et al., A Crise de Antigo Regime e as Cortes Constituintes (Lisboa, João Sá
da Costa 1992), 5 vols.
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Coroa, Império e Nação (1807-1834)
A primeira revolução liberal em 1820 pode ser definida como nacionalista e colonialista. Modificar a posição no contexto do Reino Unido
era uma questão essencial para Portugal, mas isso significava a inversão
da posição alcançada pelo Brasil. Se os liberais portugueses viam o Brasil como uma parte inseparável da Nação, que beneficiaria tanto quanto Portugal da aplicação dos novos princípios de igualdade e liberdade,
tentaram simultaneamente alterar as instituições, de modo a submeter de
novo o Brasil ao governo central de Lisboa. No Brasil, a perspectiva era
precisamente a oposta.18
A separação entre Portugal e Brasil foi um processo muito complexo, cada parte procurando dominar a outra, em nome de uma união que se
tinha tornado vã, mas cujo ideal tardava a desaparecer de ambos os lados
do Atlântico, embora mais acentuadamente do lado português. Três anos
após a independência brasileira, o tratado de 1825 pôs fim à pretensão
portuguesa de reconquistar uma posição comercial privilegiada no Brasil,
em troca do reconhecimento da independência. Os ingleses esperaram
por este reconhecimento, antes de encetar a revisão do tratado de 1810,
excluindo desta forma o Brasil deste processo. Mas D. João VI morreu
antes da revisão do tratado de 1810 ficar concluída, permanecendo o tratado inalterado por mais uma década.19 Durante os oito anos seguintes, o
conflito político violento entre absolutistas e liberais impediu a solução
desta e outras questões. O reajustamento da posição de Portugal na Europa e no mundo pós-independência do Brasil apenas se processaria a
18–��������������������������������������������������������������������������������
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, “A “guerra das penas”: os impressos políticos e a independência do Brasil”, Tempo, n.º 8 (1999) e Corcundas e Constitucionais:
a Cultura Política da Independência (1820-1822) (Rio de Janeiro: Revan, 2003); Valentim Alexandre, Os Sentidos do Império…; Maria Beatriz Nizza da Silva, O Império
Luso-Brasileiro…, cap. VIII, 2, e A Cultura…; Luís Filipe F. R. Thomaz, “Brasileiros
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Portugal (Baía: S. A. Artes Gráficas, 1959); António Viana, Apontamentos para a História Diplomática, vol. II, A emancipação do Brasil (Lisboa, 1922): uma selecção de
bibliografia centrada apenas nos anos de transição anteriores à ruptura política do Império
Luso-Brasileiro, escolhida de entre a imensa bibliografia sobre o assunto.
19– Miriam Halpern Pereira, Das Revoluções liberais ao Estado Novo ( Lisboa, Presença, 1994), cap. IV sobre as negociações sobre as alterações e a substituição deste tratado,
1824-1842.
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seguir à revolução liberal dos anos 1830. O primeiro passo foi a reforma
do Estado e da sociedade, na qual Mouzinho da Silveira desempenhou um
papel fundamental. Como expôs tão clara e repetidamente, as conquistas haviam constituído o alicerce do Antigo Regime. Uma vez destruída
essa base, a estrutura da sociedade e do Estado tinha de ser integralmente
reorganizada. A origem das suas reformas proveio da necessidade de encontrar novos recursos financeiros para o Estado, mas a sua extensão foi
muito mais ampla. As reformas abarcaram toda a sociedade de Antigo
Regime. Algumas planeadas desde os anos 20, mas então adiadas, eram
agora consideradas como imperativas. O Estado liberal estabeleceu-se
então de forma durável.20
Modificar ou mesmo substituir o antigo tratado anglo-português
constituiu um objetivo primordial do forte movimento nacionalista dos
anos 30. Era essencial implementar o novo e moderno sistema pautal, já
concluído, e cuja aplicação apenas era impedida pelo tratado. Face a negociações infrutíferas, Portugal denunciaria o tratado unilateralmente em
1836, sendo as pautas promulgadas no ano seguinte. Esta questão tinhase tornado uma das principais vertentes do nacionalismo deste período,
associado à crítica e à hostilidade em relação à Inglaterra, hostilidade que
se acentuaria de novo, no final do século XIX, devido aos conflitos em
torno do novo império luso-africano.
Conclusão
O início da crise do Antigo Regime em Portugal foi induzido por
uma causa externa primordial, o conflito entre a França e a Inglaterra.
A nova geografia do poder no Império Luso-Brasileiro e a inversão da
posição entre Portugal e o Brasil na relação triangular com a Inglaterra
provocaram a ruptura da base econômica do Antigo Regime. Se os fatores
políticos desencadearam a crise do Antigo Regime, a evolução econômica subsequente intensificou-a e tornou imperativa a profunda mudança
da sociedade e do Estado. A abolição do Antigo Regime, que teve início
20– Miriam Halpern Pereira et al., coord. e ed. crítica, Obras de Mouzinho da Silveira
(Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989) e Das revoluções….
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Coroa, Império e Nação (1807-1834)
em 1820, demoraria mais de uma década a ser completada, atravessada
por uma sequência de conflitos políticos e sociais. O compromisso entre
Coroa e Nação, então já sem o Império Luso-Brasileiro, traduziu-se na
partilha do poder, seguindo as directrizes acordadas num texto constitucional que durou mais de sete décadas. No decurso desse longo período
de monarquia constitucional, a construção, iniciada nos anos trinta, de
novo Império centrado em África, no âmbito da expansão europeia para
esse continente, viria a mudar de novo a economia. A ideologia colonialista, renovada e fortalecida, viria a impregnar a sociedade, a cultura e a
política durante mais um século.
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Artigo apresentado em março /2010. Aprovado para publicação em
maio /2010.
168
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
125 ANOS DE PRESENÇA GERMÂNICA EM NITERÓI
1814-1939
125 YEARS OF GERMANIC PRESENCE IN nITERÓI, bRAZIL
Carlos Wehrs1
Resumo:
125 anos, de 1814 em diante, estão descritos,
desde a pequena vila, até atingir a condição
de cidade importante, com indústrias e ensino
superior. Participaram desse desenvolvimento
seus habitantes de lígua alemã (alemães, austríacos, suíços), de várias origens e confissões,
tendo como único vínculo o idioma, tendo sido
sempre em harmonia, até a ameaça da Segunda
Grande Guerra. O local, a princípio procurado
apenas por naturalistas e pintores, tornou-se
também sítio de veraneio, devido à sua pujante
natureza, as praias, principalmente.
Abstract:
Here are recorded 125 years of German speaking inhabitants of Niterói, since 1814. Initially a humble village, it became a modern city,
with important industries, university etc. And
part of this progress was owed to the German
speaking folks: Germans, Austrians, Swiss etc,
of different origins and confessions. having as
the imminence of the 2nd. World War. Initially
visited only by artists and explorers, it was developed to a summer resort for its splendid nature, beaches mainly.
Palavras-chave: Niterói – desenvolvimento –
habitantes de idioma alemão.
Keywords: Niterói – development – German
speaking inhabitants.
Inteiramente diferente de muitas outras comunidades alemãs existentes no Brasil, a de Niterói constituiu-se lentamente através dos anos.
Foram cidadãos que se reuniram aos poucos na antiga Praia Grande,
mais tarde Vila Real (até 1833), Nictheroy (depois Imperial Cidade) e,
finalmente, Niterói, elementos de diferentes procedências, alemães, austríacos, suíço-alemães, de diferentes credos religiosos e de diversas inclinações políticas, mas sempre harmoniosamente. Seu único e poderoso
vínculo era o idioma. Neste caso particular não se tratava de migrações
maciças, como as que aconteceram, várias, durante o século XIX. A chegada a Niterói de contingentes maiores, destes nada restou, exceto das
numerosas famílias destinadas a Nova Friburgo e Petrópolis, das quais há
conhecida prole. Dos mercenários contratados a mando de nosso primeiro
Imperador e de outras famílias, que, em número bem menor, vieram para
as fazendas do interior, igualmente sob contrato, já ao tempo do Segundo
Reinado, das quais tampouco se conhecem descendentes por aqui. De
tempos em tempos, durante os Oitocentos, esporadicamente, chegaram
1 – Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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também visitantes à Guanabara, entre eles cientistas, pintores, artífices e
artesãos, dos quais alguns se fixaram nesta margem leste da baía, atraídos
pela tranquilidade ali reinante, pela modicidade do custeio de vida (de
alimentos, aluguéis etc.) e, principalmente, pelas belezas naturais que ela
então oferecia, quase intocadas2. A esse tempo, Niterói era, ainda, quase
uma aldeia grande, cercada de lindas praias, sem cais, e comércio ínfimo.
O surgimento de meios de transporte regular pelas barcas a vapor
entre as duas margens da Guanabara muito contribuiu para o fluxo de
estrangeiros, dos quais alguns passaram a residir ali, e talvez iniciar alguma modesta atividade comercial. E, assim, em meados do século XIX
já a presença de alemães fixados na cidade era notada, levando-se em
consideração o número total de seus habitantes. Acresce que a partir de
1835 passara a ser Niterói a capital da província, e, como tal, prometia
bom desenvolvimento, que de fato se concretizou anos mais tarde, mas
não só com o crescimento populacional, como também, com a criação
de pequenas indústrias, entre elas a de alemães, que prometiam pão e
desenvolvimento.
Por outro lado, a fácil e segura comunicação com um centro maior
fez com que nessa época muitos chefes de família, nacionais e estrangeiros, residissem em Niterói e trabalhassem no Rio de Janeiro; por isso, depreciativamente chamavam-na de “cidade-dormitório”. O progresso local
era evidente no início do século XX, com a chegada da energia elétrica,
das redes telefônicas e de água encanada, além das novas linhas de transportes coletivos – os bondes elétricos, circulando em todos os bairros
2 – Neste ponto poderíamos pensar em incluir, por exemplo, que os nomes de Meyer e
Niemeyer fossem talvez os primeiros alemães a ali se estabelecerem, mas um como outro
eram já portugueses com ancestrais alemães. João Pedro Meyer era vereador no princípio
do século XIX e deu seu nome ao até há alguns anos existente Porto do Meyer e a uma
via pública em Sant’Ana. Conrado Jacob Niemeyer era igualmente português; chegara
ao Brasil em 1809, tendo em sua pátria cursado o Colégio Militar, de onde escapou das
tropas de Andoche Junot. Mas muitos outros alemães, portando esses sobrenomes, aqui
chegaram depois deles, porquanto são muito encontradiços, Meyer especialmente, na Alemanha.
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
da cidade – além da já existente ligação da estrada de ferro com o interior
fluminense (que partia da estação de Sant’Ana).
O crescimento da população pode ser aquilatado pelos números seguintes (apud Mattoso Maia Forte3):
1821 – 5.015 habitantes (2.244 livres e 2.771 cativos)
1833 – 7.058 livres e 2.200 cativos
1851 – total de 15.779 habitantes
1872 – 29.102 hab.; 1890 – 34.269 hab.
1892 – 38.689 hab.; 1907 – cerca de 45.000 hab.
1911 – 56.583 hab.; 1920 – 86.233 sendo que dos 12.656 estrangeiros 10.248 eram ibéricos, 750 italianos, 459 ingleses e apenas 228
alemães e 135 franceses.
Já em 1930 as avaliações oficiais calculavam a população da cidade
em 108.200 habitantes. Estimativas otimistas, apenas. Aqui não consideramos os dados obtidos no recenseamento de 1940, por motivo da Segunda Guerra Mundial, já em curso, e que modificou bastante a presença de
estrangeiros no país.
Voltando aos mercenários acima mencionados, sabe-se que eram em
número elevado, e chegaram à Guanabara entre janeiro de 1824 e abril de
1829, segundo Juvêncio Saldanha Lemos4. Sabe-se, também, que coube
a Georg Anton Aloysius Schaeffer a missão de aliciar “famílias e homens
válidos” sob contrato, para servirem no Brasil como “colonos”, mas na
realidade para atuarem como militares pelo espaço de seis anos. Estampa I. Nas instruções recebidas do Ministro do Império e Estrangeiros,
José Bonifácio de Andrada e Silva, dizia-se “indivíduos que devem servir
3 – FORTE, J. Mattoso Maia. O município de Niterói. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1941.
4 – LEMOS, Juvêncio de Saldanha. Os mercenários do Imperador. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996. 602 p.
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como militares pagos ou soldados pelo espaço de seis anos, e logo que
expirar esse prazo [....] receberão terras para cultivarem”. Eram essas as
determinações. O alojamento dos alemães que viriam seria nos velhos
armazéns da armação das baleias, na Praia Grande, desativada há tempos,
outrora, o local em que eram esquartejados esses cetáceos. De lá seriam
transferidos para a Corte, à medida que se tornassem precisos. Desse
modo aportaram ao longo destes seis anos (entre 7.01.1824 e 2.04.1829),
em 27 viagens, entre “colonos” e soldados, 7.474 homens.
Em junho de 1828 explodiu uma revolta daquelas tropas no Rio de
Janeiro, que durou dias seguidos e que trouxe enormes prejuízos à cidade
e até mesmo ceifando vidas. Muito desagradável para o Governo foi a necessidade da intervenção de marujos franceses e ingleses para restabelecerem a ordem pública. Pouco depois, reunido o Conselho de Guerra para
julgar os responsáveis pela sublevação, em 10 de dezembro daquele ano
foi condenado à morte o granadeiro August von Steinhausen e presos 30
soldados. Steinhausen foi fuzilado em 16 de dezembro imediato perante
as tropas, que em seguida desfilaram diante de seu cadáver. Pouco mais
tarde foram dissolvidas essas unidades mercenárias e, em sua maioria,
enviadas para as colônias existentes no Sul, porquanto na Capital e em
Niterói (“Praia Grande”, na época) sua presença não mais poderia ser
tolerada. Na mencionada obra de Saldanha Lemos constam os nomes de
2.839 mercenários, mas a lista é sabidamente incompleta e a grafia dos
apelidos frequentemente truncada.
Entre as condições primordiais para o bom êxito de uma tal empreitada, ou também para a constituição de colônias agrícolas, obviamente os
critérios adotados na seleção dos indivíduos têm de ser rígidos. Sabe-se
que na vinda para o Brasil, de mistura a gente afeita à disciplina militar
ou aos serviços do campo – incluindo aqui os artífices – havia elementos
anarquistas, egressos de penitenciárias, aventureiros e pândegos contumazes, além de outros, fisicamente incapazes5.
5 – Na Armação, em Niterói, estiveram igualmente alojados os estrangeiros destinados a
Nova Friburgo e Petrópolis, onde foram assentados depois.
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
Estampa I
—
Mal haviam-se escoado alguns anos, quando novamente se cuidou
da trazer alemães, de permeio com pessoas de outras nacionalidades,
para a Província fluminense e, mais uma vez, sem proceder à necessária
seleção. Neste presente relato foram, de caso pensado, omitidas, por já
demais estudadas, aqueles vindos para as colônias de Petrópolis e Nova
Friburgo, mas consideradas algumas outras que, de um modo geral, eram
simplesmente esquecidas pelos historiadores, por terem sido de menor
porte. Oberacker Jr.6, por exemplo, quanto à região fluminense, reportouse apenas àquelas duas, calando em relação às demais, que sequer inseriu
no mapa que acompanha seu livro. José Mattoso Maia Forte7 limitou-se
a discorrer sobre algumas fazendas, e Clodomiro de Vasconcellos8 omitiu
qualquer referência a outras colônias, senão às duas amiúde citadas. Antônio Figueira de Almeida9, outro historiógrafo dos mais credenciados,
que se poderia ter ocupado do tema, apenas nomeia alguns desses núcleos
colonizadores fluminenses, sem descer a qualquer detalhe10.
6 – Oberacker Jr. In: A contribuição teuta... (v. bibliografia)
7 – FORTE, José Mattoso Maia, In: O Estado do Rio de Janeiro (v. bibliografia)
8 – VASCONCELLOS, Clodomiro de, In: A História do Estado... (v. bibliografia)
9 – ALMEIDA, Antônio Figueira de. In: História fluminense. (v. bibliografia)
10– Além das referidas no presente trabalho, lembra Figueira de Almeida as Colônias
Sapucaia e São Paulo (em Campos), Boa Fé (em S. Fidélis) e Passa-Três (em S. João
Marcos), acerca das quais não conseguimos obter dados suficientes.
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Muito embora malogradas em sua grande maioria, essas tentativas
de fixação de elementos estranhos, e a despeito de sua efêmera existência
e do consequente quase desconhecimento nos dias de hoje, julgamos que
não podem e não devem ser esquecidos pela História. Esforços, despesas
e sacrifícios por parte do Governo Imperial, dos diversos empresários
pioneiros e das próprias famílias para aqui transplantadas, justificam esta
exposição.
Escrevia Augusto Frederico Schmidt, no soneto “Pequeno morto”:
“Os que se vão para sempre,
mesmo os mais humildes e os menores
deixam um traço, um sinal qualquer:
nunca se apagam totalmente os que se vão.”
—
Comecemos em 1844, quando ao então município de Campos chegavam, no dia 25 de fevereiro, à Fazenda da Pedra Lisa, de açúcar e aguardente, pertencente à família Pereira de Faro (barões de Rio Bonito), e
situada na freguesia de São Fidélis de Sigmaringa, 95 colonos. As condições peculiares que ali reinavam e os percalços que tiveram de enfrentar
esses imigrantes são praticamente desconhecidos em nossos dias, mas o
fato que já no mês de abril seguinte à instalação dos colonos, muito poucos ainda lá se encontrarem e, em 1850, tendo todos já abandonado aquelas plagas, falam por si (Relatório ao Ministério do Interior do Império, de
1850, redigido pelo Marquês de Monte Alegre, José da Costa Carvalho).
Não longe dali, três anos depois (1847), Eugênio Aprígio da Veiga
fundou outra colônia, que se chamou Valão dos Veados, inicialmente com
21 colonos, instalados em sua fazenda desse nome, à margem do rio Dois
Rios, também na freguesia de São Fidélis, em Campos. A localização era
boa, pois os produtos de suas plantações, principalmente café, milho e
arroz, mas também de cana-de-açúcar e mandioca, facilmente poderiam
ser transportados para o município de Cantagalo pela Estrada da Serra, ou
para Campos e São João da Barra, por via fluvial, pelo então caudaloso
rio Paraíba do Sul, navegável ainda por essa época, desde a foz até uma
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
légua a montante de São Fidélis. No Relatório ao Ministério do Interior
do Império, de 1848, assinado pelo visconde de Macaé, José Carlos de
Almeida Torres, consta que o Governo vinha cumprindo a sua parte do
contrato, tendo adiantado ao responsável pela empreitada, o fazendeiro
Eugênio Aprígio da Veiga, as prestações correspondentes a 166 colonos.
Isso até 12 de maio de 1848. Ficara estabelecido que o Governo financiaria uma prestação de Rs. 50$000 para os gastos de importação de cada
imigrante, até o número de 500, quantia esta que receberia à proporção
que as pessoas contratadas seguissem do Rio de Janeiro para a fazenda,
obrigando-se por sua vez o fazendeiro ao reembolso das prestações em
três pagamentos iguais e sucessivos, vencendo-se aos 2, 3 e 4 anos, além
de manter na fazenda um capelão de culto católico, e mais fornecendo
prédio, alfaias e objetos necessários para as celebrações religiosas. Responderia, igualmente, pela manutenção de uma escola de primeiras letras
para crianças de ambos os sexos, durante dois anos.
Informava, dois anos mais tarde, em 14 de janeiro de 1850 o visconde de Monte Alegre no Relatório ao Ministério do Interior do Império,
que nessa colônia trabalhavam belgas, alemães, franceses e portugueses,
tanto no cultivo da terra como exercendo os ofícios de pedreiro, serrador
e carpinteiro. A colônia progredia, e em outubro de 1858 contava já com
540 habitantes (de 500 passará a 540, apesar dos difíceis anos de adaptação), entre nativos e estrangeiros.
—
Noutro ponto da Província do Rio de Janeiro, estabelecidas e acordadas as condições com o Governo Imperial, em tudo idênticas às celebradas por ocasião da instalação da Colônia do Valão dos Veados em São
Fidélis, começou seu empreendimento o Conselheiro Dr. Saturnino de
Sousa e Oliveira. Esperava, com essa iniciativa, colonizar sua Fazenda
do Sossego, no município de Macaé, nas proximidades do porto. Suas
terras férteis, divididas em prazos que seriam aforados ou vendidos aos
colonos, prometiam condições vantajosas e um rápido desenvolvimento,
assim como rica produção agrícola, facilmente transferida para a Corte,
por via marítima. Fundada, afinal, a colônia, com emigrantes da Prússia e
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de outros estados alemães, contava em 1847 um total de 151 colonos.
Quando, em 1850, ano em que foi votada a Lei Euzébio de Queirós,
extinguindo o tráfico negreiro, a situação dessas colônias era, lamentavelmente, de acordo com informação do visconde de Monte Alegre a seguinte:
“... subsiste apenas a do Valão dos Veados [em São Fidélis], de que é
empresário Eugênio Aprígio da Veiga; em todas as outras [as citadas
acima] não há um só colono”11.
Em São Paulo, a esse tempo, na Colônia Senador Vergueiro, de Ibicaba, a situação tampouco era risonha, tanto que, em 1857, seus colonos,
alemães e suíço-alemães, se revoltaram, causando até repercussão internacional, proibindo, em 1858, temporariamente, o governo prussiano12,
secundado logo pelos de outros estados alemães, a emigração de seus
cidadãos, na qualidade de colonos, para o Brasil.
Ainda assim, surgiram novas tentativas de colonização em terras fluminenses, justamente as de que nos fala Casadei em Páginas de História
Fluminense, ocorridas na região de Valença. Foram proprietários de terras
que, no Curato de Santa Teresa13, no município de Valença e que muito
concorreu para a catequese dos índios e o desenvolvimento da aldeia,
decidiram estabelecer colônias no regime de meação, com colonos alemães, a exemplo de Ibicaba, em São Paulo: Brás Carneiro Nogueira da
Costa e Gama, barão de Baependi (mais tarde conde do mesmo título),
proprietário da Fazenda de Santa Rosa; o Gentil-Homem Nicolau Antônio Nogueira Vale da Gama (mais tarde barão e visconde com Grandeza
de Nogueira da Gama) em sua Fazenda Independência; e o veador Brás
Carneiro Béllens, em sua Fazenda de Santa Justa, também de alemães.
Não devemos esquecer aqui o Marquês de Valença, Estêvão Ribeiro de
11– Do Relatório ao Ministério do Interior do Império, daquela ano.
12– O rescrito do Barão Augusto von der Heydt, estadista, e na época Ministro do Comércio da Prússia.
13– Santa Tereza, o antigo curato deste nome foi, em 1890, desmembrado de Valença e
transformou-se em município autônomo que, em 1944, recebeu a romântica designação
de Município de Rio das Flores.
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
Resende, que fundara outra colônia, a das Coroas, mas falecendo ele em
1856, veio esta a dissolver-se pouco depois, passando seus colonos para
a Fazenda Independência.
No ano de 1858, a Colônia Santa Rosa compunha-se de 35 fogos, 142
pessoas, das quais 110 eram alemães e 32 nascidas no Brasil. Plantavam
essencialmente café, mas também cereais e criavam animais domésticos.
A Colônia Independência apresentava-se com crescimento negativo: começara com 26 famílias (171 pessoas), em sua maior parte agricultores,
vindos de Holstein, do norte da Alemanha, mas em 1858 contava somente
162 almas, nesse total incluídos os que vieram transferidos da Colônia
das Coroas e mais 20 pessoas de outra procedência. Santa Justa contava
somente 132 colonos em 1858.
Enquanto muitas das colônias no sul do Brasil progrediam, as fluminenses (excetuando Petrópolis e Nova Friburgo) definhavam e por fim
desapareciam.
Em 1860 era fundada em Santa Catarina a Colônia Teresópolis14,
com elementos de Holstein, exatamente as famílias que lograram deixar a
região fluminense do atual Município de Rio das Flores.
—
Muito se tem escrito sobre imigração e colonização do Brasil, mas
apesar dessa pletora de obras e inúmeros artigos menores, além das teses de mestrado, estas ultimamente aparecidas. Enquanto o ainda jovem
Afonso Augusto Moreira Pena, futuro Presidente da República, ao tempo
em que estudava Direito em São Paulo, através das páginas da Imprensa
Acadêmica (a partir de 6.06.1870) discutia essa questão, e chegava à conclusão de que melhor elemento para colonizar o Brasil seria o de origem
germânica, “raça dotada de grande energia e força de inteligência”, e,
justificando sua escolha, afirmava que “são moralizados, trabalhadores
e perseverantes nos seus cometimentos. Além disso, preferem a vida da
lavoura a qualquer outra, e isso muito convém ao nosso país, que é essen14– Oberacker Jr., op. cit., p. 292
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cialmente agrícola”15. Já José Honório Rodrigues, cerca de oitenta anos
mais tarde, era de outra opinião. Dizia: “[Afonso Pena] não via nem podia
ver, naquela época, os inconvenientes da colonização alemã, [um deles]
o de evitar o contato com os naturais do país e consequentemente o da
formação de quistos raciais ou culturais. O grande trabalhador enérgico e
inteligente, agricultor e industrial, inteiramente assimilável, só se revelou
mais tarde: o italiano”.
A maior facilidade de assimilação do migrante italiano explica-se,
sem dúvida, pelo parentesco de seu idioma com o nosso, igualmente neolatino, e, à sua religião, a Católica, Apostólica, Romana, a oficial do Brasil de então. Aos alemães, aqui incluídos os suíços, além da dificuldade
quase intransponível da língua, deparava-se, muitas vezes, a diferença
de religião, pois, embora todos cristãos, muitos deles eram protestantes.
Recorda Pedro Brasil Bandecchi16, referindo-se à colônia mantida por
Vergueiro & Cia., na província de São Paulo:
Em Ibicaba não havia, de início, quem celebrasse o matrimônio dos
protestantes. Como se sabe, a religião oficial do Império era Católica
e à igreja estavam reservados certos atos que, com a República, passaram a ser celebrados ou realizados pela autoridade civil. O casamento
era um deles. O presidente da câmara municipal passou a realizar o
casamento dos protestantes.
De fato, o Artigo 15º da Constituição de então garantia:
A religião católica e apostólica romana continuará a ser a religião do
Império. Todas as outras religiões serão permitidas, com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma exterior de templo.
Isso era o que se encontrava estatuído, mas sabemos que muitas
transgressões houve, como, por exemplo, as acontecidas aos introdutores da Igreja Evangélica Fluminense, o Rev. Roberto Reyd Kalley e sua
15– RODRIGUES, José Honório. “O Acadêmico de Direito e o presidente Afonso Pena”.
In: Digesto Econômico, dezembro 1947.
16– Cadernos de História, vol. IV, “Problemas de imigração na região Sul” S. Paulo: Ed.
Obelisco, 1967, p. 67.
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
mulher Sara Poulton Kalley, no Rio de Janeiro, em Niterói e em Petrópolis, que nessa mesma época foram perseguidos e agredidos fisicamente17,
a despeito do Artº 179, parágrafo 5º daquela Carta Magna estabelecer:
“Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite o Estado e não ofenda a moral pública.” Pois bem, mesmo que naquela época existisse um pastor itinerante, a visitar periodicamente as diversas colônias germânicas, espalhadas pelas províncias de Minas Gerais,
Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro, ele não se dirigiria a suas ovelhas
em português, que provavelmente também ignorava, mas em linguagem
clara e acessível a todo seu rebanho.
Mais um fator, e não o último em importância na formação dos aludidos “quistos culturais”, era a situação das escolas. Ficara estabelecido
que as colônias as tivessem, mas tudo faz crer que o ensino nelas ministrado aos filhos dos colonos – se o foi – deixasse a desejar. Não há base
concreta para essa suposição, mas é lícito assim concluir por que desta
maneira aconteceu no Sul do Brasil, onde o problema de instrução era,
afinal, o mesmo. Em Santa Catarina, isso nos informa ainda Bandecchi,
apresentou-se “por incúria da administração pública e não por culpa dos
imigrantes, que ficaram ilhados, falando sua língua e financiando suas
escolas, que tinham de ser suas na falta de escolas nossas”18.
Assim aconteceu também em São Paulo, quando os americanos do
sul dos Estados Unidos, após a Guerra Civil entre norte e sul, se estabeleceram nos locais, hoje cidades, de Santa Bárbara do Oeste e Americana
e adjacências, em que
“...os imigrantes desde logo tentaram conservar a cultura, a língua
e a religião nativas, valendo-se dos seus próprios professores para
ensinar...”19
17– WEHRS, Carlos. Capítulos da memória niteroiense. Niterói: Fundação de Arte de
Niterói, 2002, 2ª. ed.
18– Bandecchi, op. cit. p. 68.
19– GOLDMAN, Frank P. Os pioneiros americanos no Brasil, São Paulo: Pioneira Ed.,
1972.
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Muitos anos se passaram e ao tempo do Estado Novo e mesmo antes,
o Governo Vargas procurou dar cabo a essa distorção. Bandecchi:
Em 1940, o major Aristóteles de Lima Câmara escreveu importante
artigo sobre a nacionalização do ensino. Esse processo nacionalizador
levou, em 1934-1935, ao fechamento de escolas alemãs, italianas, polonesas, japonesas, etc. para substituí-las por nacionais. Este processo
seria bom se fosse bem planejado. O citado articulista diz:
“Fechadas as escolas particulares alemãs, o Governo do Estado, num
esforço verdadeiramente hercúleo, procurou substituí-las todas por
congêneres brasileiras. Os seus recursos financeiros, no entanto, não
permitiam que se realizasse integralmente esse plano. As escolas são
insuficientes. Algumas baixaram muito o nível de ensino. A razão era
simples. Citemos um caso como exemplo. Havia em Blumenau uma
escola particular alemã, instalada em magnífico prédio, dotada de todos os recursos exigidos pela técnica moderna. O seu diretor recebia
mensalmente 1:000$000, e a escola tinha uma subvenção anual de 48
contos. Foi fechada em cumprimento à lei. Foi dirigi-la uma professora que recebe cerca de 300$000 mensais.”
“Todo o material escolar foi apreendido, e não substituído por falta de
verba. Trinta e seis escolas ficaram nas mesmas condições, entregues
ao município de Blumenau. Ainda no mês passado, quando lá estive,
o Prefeito procurava obter 36 contos a fim de dotá-las de material
escolar para substituir o que fora apreendido há mais de um ano”.
Após esta necessária digressão, necessária e indispensável, voltemos
à colonização” (Bandecchi, Ibidem.)
Finalmente, a simultaneidade de colonos e escravos nos trabalhos
agrícolas constituía outro óbice ao bom desempenho do sistema, uma vez
que – conforme hoje é sabido – era impossível a harmonia entre a mão de
obra assalariada e a escrava, mormente por ainda existir entre muitos fazendeiros, a lamentável mentalidade de considerarem esses estrangeiros
brancos, que aqui vieram tentar a vida melhor, como semiescravos20.
20– Davatz, Th.. Memórias de um colono no Brasil 1850. Tradução, prefácio e notas
Sergio Buarque de Holanda, São Paulo: Livr. Martins 2ª ed..
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Não se tem por aqui notícia de qualquer descendente dos mercenários do tempo de D. Pedro I e nem de algumas das numerosas famílias que
foram levadas para a fazenda do interior fluminense.
No livro Canaã, de Graça Aranha, são descritas cenas das relações
nada amistosas, truculentas até, das nossas assim chamadas autoridades,
dos dignos representantes de nosso Governo, frente aos emigrantes, aqui
estabelecidos em terras capixabas.
Enquanto se processavam as tentativas de colonização do hinterland
da Velha Província com estrangeiros, chegavam esporadicamente ao Rio
de Janeiro outros, de língua alemã também, para conhecerem as na Europa tão decantadas belezas do lugar. Todos confirmavam, segundo seus
relatos, esse aspecto, mas achavam o Rio de Janeiro pouco ventilado e
pouco asseado, com ruas estreitas, tortuosas e barulhentas. Procuraram
então conhecer a margem oposta da Guanabara. Os pintores, sobretudo,
logo aproveitavam a oportunidade para passar para suas telas ou cartões
as imagens que tanto lhes falavam à alma artística. Uma descrição insuspeita do que encontraram esses visitantes em Niterói deixou-nos o jornalista Carl von Koseritz, que atuava no Rio Grande do Sul e nos visitou.
Aqui a transcrevemos, seguindo o conselho do escritor Somerset Maugham, quando afirmava: “É nos relatos de viajantes que se deve procurar
por informação daqueles pormenores, que para os escritores locais são
tão costumeiros, que não acham necessidade deles falar, mas que naturalmente atraíam a atenção dos forasteiros” (in D. Fernando, em trad.
nossa). Koseritz, que visitou a cidade em 1883, em Imagens do Brasil,
escreveu:
“Ontem, domingo, [....], decidi visitar a Praia Grande, isto é, Niterói,
e os arredores. Seguimos assim pelo bondinho, (no qual se pode viajar por cerca de uma hora por cem réis) até a ponte de embarque das
barcas a vapor, de sistema americano, iguais adiante e atrás, de forma
a poderem atracar pelos dois lados. Os passageiros ficam num grande
salão, e também encontram lugar em cima. Compra-se os jornais e
leva-se os vinte minutos da travessia lendo, de forma que a viagem
é quase insensível, quando o mar não esta agitado, pois, neste caso,
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o velho casco começa a jogar. É notável que a travessia custe 200
réis; nada é mais barato e pode-se com um só níquel viajar três ou
quatro vezes. Com efeito, o controle é feito na passagem da borboleta,
na ponte de embarque, quando se paga a entrada; não há bilhetes, e,
portanto, nenhuma fiscalização; quem quiser ficar na barca pode ir e
voltar o dia inteiro...[....] E lá se espalha, já adiante de nós, a Praia
Grande; na proximidade daquela igrejinha do alto do morro está Jurujuba, fresca e umbrosa, onde o Governo colocou o lazareto para os
doentes de febre amarela, o qual deve ser muito bom. Aproximamonos das casas aristocráticas da Praia de São Domingos. Nesta se detem
a barca, para se prosseguir até Niterói.
Em São Domingos desembarcamos e tomamos o bonde para Icaraí e
Santa Rosa. Este bonde, no qual se paga 400 réis por pessoa, faz toda
a volta, desde S. Domingos, por Icaraí e Santa Rosa até Niterói, em
mais ou menos uma hora e meia. É um dos mais belos passeios que
se pode fazer. Primeiro atravessa-se uma grande extensão na frente
de lindas casas com grandes jardins, cobertos de vegetação tropical,
entre as quais se encontra o gentil palácio do Presidente da Província
do Rio de Janeiro, que parece ser mais uma vila21, do que um palácio
e que atrás quase escondido no meio das palmeiras e das folhagens.
Através de dois bonitos jardins públicos, (que aqui são mantidos com
o maior luxo tanto pelo governo quanto pela municipalidade), chegase à praia de Icaraí, que é a mais bela e mais romântica que se pode
imaginar. A linha de bondes corre pela costa estreita, na qual brotam
rochedos escarpados, que são ocupados, no alto, por vilas, caramanchões etc., enquanto embaixo as ondas se quebram sobre a areia alva,
ou brincam em torno às rochas, que, cobertas de lianas e parasitas,
aparecem no meio das águas revestidas de formas das mais curiosas.
Ao longe o panorama da baía é limitado, de um lado pela fortaleza de
São João22, e do outro, pelo Pão de Açúcar. Mais além, fora da barra
vê-se o alto-mar. Foi aqui que aportaram os primeiros ocupantes do
Rio, pois esta praia está justamente em frente à barra. E ela é linda,
esta praia de Icaraí... Mais alguns minutos e passamos pelas ruas pela
pequena localidade de Icaraí, que tem um aspecto bem provinciano,
e que não parece estar tão perto da corte da cidade. De Icaraí vai-se
quase sempre no meio de jardins floridos e chalés suíços de encanta21– Habitação de recreio; casas de construção elegante e caprichosa.
22– Equívoco: tratava-se da fortaleza de Santa Cruz.
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dor estilo, até Santa Rosa, uma outra pequena localidade que se parece
tanto com Icaraí como um ovo com outro, com a diferença de que a
sua velhíssima igreja de Santa Rosa de Viterbo, que está sobre um
morro, imprime à paisagem uma singular característica. Um quarto
de hora mais tarde estamos de novo em Niterói, a capital da Província
do Rio de Janeiro, bela cidadezinha provinciana, com ruas largas e
limpas, casas de velho estilo, jardins públicos grandes e bem tratados e todos edifícios oficiais necessários, como Tesouro, a Assembléia
Provincial, a Câmara Municipal etc.. A longa rua do porto produz uma
impressão simpática, com as suas bonitas casas, quase todas providas
de um pequeno jardim fronteiro. Ali estão negócios de várias espécies,
inclusive cervejarias, em uma palavra “C’est tout comme chez nous” e
mesmo a roupa, a atitude e a conduta das pessoas mostra a província.
A diferença é enorme: do outro lado a grande cidade com as suas correrias e os seus empurrões, aqui a idílica cidadezinha campestre com
o seu repouso e os seus pequenos-burgueses, necessário à integração
do conjunto.
Procuramos agora a ponte de embarque, depois de, por 400 réis, termos passeado durante uma hora e meia no melhor ar e na mais encantadora região do mundo. [....] Logo nos encontramos na barca, que nos
conduziu diretamente para o Rio”...
Outros, os cientistas e os numerosos viajantes23 de todas as nacionalidades de permeio os alemães, registraram suas impressões, para
depois publicá-las ou enviá-las em cartas a seus familiares em seu país
natal.
“Ei-los enfim a Niterói chegados;...”
(A Confederação dos tamoios, canto X).
Assim, seguindo ordem cronológica de sua vinda, anotamos as
presenças de apenas alguns desses pintores alemães e suíço-alemães:
Friedrich Paul Sellow (1789-1831) aportou aqui em 1814. Era botânico e hábil desenhista. A bico de pena e aquarela reproduziu a “Armação”, na Ponta d’Areia, em Niterói.
23– BERGER, Paulo. Bibliografia do Rio de Janeiro. Viajantes e autores estrangeiros
1531-1900. Rio de Janeiro: SEEC, 1980 2ª. ed.
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Maximilian Alexander Prinz zu Wied-Neuwied (1782-1867) permaneceu de 1815 a 1817 por aqui. Dele sabemos existir desenho a bico
de pena e aquarela da entrada da barra do Rio de Janeiro, onde aparecem, à esquerda o Pão de Açúcar e à direita, a fortaleza de Santa Cruz
(Niterói). Esteve em exposição no Rio de Janeiro em janeiro de 1984,
no Museu Nacional de Belas Artes (mede 31,6 x 43,5 cm). Datado de
19.07.1815, pertence à Fundação Bosch (Stuttgart). De Niterói ficou
também a descrição pormenorizada da aldeia dos índios em São Lourenço (in Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817, Frankfurt,
1820), livro do qual há uma tradução para o português.
Thomas Ender (Viena, 1793-1875). Ao tempo do enlace matrimonial de D. Pedro I com D. Leopoldina, arquiduquesa d’Áustria, formou-se a missão científica de austríacos e bávaros, que veio ao Brasil
em caráter de estudos e da qual Ender fez parte na qualidade de pintor,
ao lado de outros especialistas (Mikan, Pohl, Natterer, Buchberger,
Schott, Spix e Martius), que chegou à Guanabara em 1817. Embora só
passasse Ender poucos meses no Rio de Janeiro, copiou muitos aspectos interessantes da cidade e das cercanias, incluindo a futura Niterói.
Sabemos ter feito desenhos e aquarelas de paisagens de Icaraí, Boa
Viagem e da armação das baleias.
Johann Moritz Rugendas (1802-1858), pintou em Niterói entre
1822 e 1824, e dele sabemos ter produzido uma “Paisagem de Jurujuba”, (apud PEIXOTO, Maria E. Santos, p. 46, op.cit.).
Johann Jacob Steinmann (1800-1844) suíço-alemão, era litógrafo
e desenhista, e veio em 1825. É dele um desenho, depois litografado
por Friedrich Salathé, denominado “St. João de Carahy, a Praia Grande”, hoje igreja de N. S. da Conceição, sita no Centro de Niterói.
Adalbert-Ferdinand, Príncipe da Prússia (1811-1873), esteve em
Niterói em setembro de 1842, tendo produzido a “Boa Viagem”, segundo o livro de esboços que acompanha o seu Diário (Reise seiner
Königlichen Hoheit des Prinzen Adalbert von Preussen” in Biblioteca
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do Itamaraty, nº 529-2-5), apud BERGER, Paulo. Bibliografia do Rio
de Janeiro, 2ª ed., p. 2.
Eduard Hildebrandt (1817-1868), paisagista notável, é o autor do
conhecido quadro “Por do Sol na ilha da Boa Viagem”, visto por nós
em Hamburgo. Chegou ao Rio de Janeiro em março de 1844 e retirouse em outubro do mesmo ano, acompanhando expedição científica, documentada por aquarelas e desenhos, graças ao apoio do rei Frederico
Guilherme IV da Prússia.
Otto Grashof (1812-1876) esteve no Rio de Janeiro e imediações
de 1855 a 1857. Dele conhecemos, de Niterói: a “Igreja de Sant’Anna”,
óleo sobre madeira, de 65x98cm, de 1855; “Praia de Itapuca”, óleo sobre
tela, de 66x100cm; um estudo sobre palmeiras, na ilha do Cachimbau,
em Niterói, e “Vista de Itaipu sobre a serra”, aquarela (13,2x21cm). Em
suas interessantes cartas, enviadas do Brasil para sua pátria (publicadas por Löschner, 1987, op. cit.) refere-se a um hamburguês, morador
em São Domingos, Wilhelm Lübbers, que muito o auxiliou nos seus
passeios por Niterói. Lübbers foi durante alguns anos, até sua morte,
sócio de Theodor Wille, no Rio de Janeiro.
Friedrich Hagedorn (1814-1889), no Rio desde 1850, aqui permaneceu e fixou residência, tendo de Niterói produzido copiosa obra.
Percorreu muitas províncias brasileiras e, no Rio, faleceu no dia da
proclamação da República.
August Müller (1815-?), outro paisagista de grande mérito, aqui
desembarcou e fixou residência. Dos mais notáveis pintores de retratos
e de história, foi lente substituto de paisagem da Academia Imperial
das Belas Artes, por concurso, aos 20 anos de idade e assumiu a cátedra em 1851, substituindo Félix-Emile Taunay. Em 1859 foi jubilado
em virtude de doença. Residiu em São Domingos, Niterói, durante longos anos.
Johann Georg Grimm (1846-1887) chegou no Brasil em 1864. Por
volta de 1884 passou a morar em Niterói, onde copiou numerosas pai-
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sagens e teve alunos e fiéis seguidores. Faleceu vítima de tuberculose
pulmonar, em Palermo, Itália.
Karl Ernst Papf (1833-1910) veio para o Brasil em 1867 e em
1878 veio a morar em Niterói, São Domingos, mas em 1880 mudou-se
para Petrópolis, e, em 1899 para São Paulo. Executou numerosas pinturas sobre Niterói. Era, também, fotógrafo.
Thomas Georg Driendl (1849-1916) era arquiteto e pintor, que
aqui aportou em 1881, indo morar em Niterói em 1884, onde muito trabalhou em ambas as profissões. Pintou não só paisagens, mas também
retratos e cenas religiosas. Deixou descendência em Niterói e morou
ao lado de seu amigo Grimm, na rua da Boa Viagem (hoje rua Antônio
Parreiras).
Benno Treidler (1857-1931) desembarcou no Rio de Janeiro em
1885; paisagista, são dele várias vistas tomadas de Niterói, entre 1891
e 1898. De Niterói sabemos de duas obras suas: “Boa Viagem” e “Vista
da tarde (Icaraí)”, mencionadas por Berger, Paulo et al. (in Pinturas e
pintores do Rio Antigo. Rio de Janeiro: 1990, p. 212).
Não somente pintores procuraram a tranquilidade da capital fluminense, para ali residir e atuar. Dois importantes músicos alemães
fizeram o mesmo: Gustav Helmold e Paul Faulhaber.
Helmold (Chemnitz, 1834 – Niterói, 1888), após percorrer para
concertos vários países da Europa, aportou no Brasil em 1866. Fora
aluno de Franz Liszt no Conservatório de Leipzig, onde fez cursos de
Teoria musical, Composição e Piano. Em nosso país realizou também
concertos no Pará, Ceará, Pernambuco e Minas Gerais, fixando-se finalmente no Rio de Janeiro, onde permaneceu seis anos e onde foi
diretor artístico e professor de canto no coral dos clubes Mozart e Beethoven e na Sociedade Frohsinn. Suas numerosas composições para
piano e instrumento de corda, teve-as editadas por seu conterrâneo
Henri Préalle, no Rio. Em 1874 transferiu-se para Niterói, lecionando
piano (na rua Visc. de Itaboraí, centro da cidade), e pertenceu, como no
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Rio, a diferentes clubes recreativos. Deixou numerosa descendência,
tendo falecido aos 52 anos.
Paul Faulhaber (Dresden, 1836 – Rio de Janeiro, 1896). Pianista,
violinista, professor e compositor. Veio para o Brasil também em 1866,
já casado com a filha de Manuel de Araújo Porto-Alegre, na época
Cônsul-geral do Brasil em Dresden, e futuro barão de Santo Ângelo.
Aqui dedicou-se ao magistério e em 1877 dirigiu a orquestra do Club
Mozart. Era Membro Honorário do Conservatório de Música, no Rio
de Janeiro. Residiu em Niterói na rua Presidente Pedreira, nº 12. Tanto
Gustav Helmold como Paul Faulhaber não mediram esforços e atuaram
continuamente em suas profissões, enriquecendo e elevando sua arte.
Até 1847 as poucas ruas da cidade eram iluminadas à noite, quando não houvesse luar, por lampiões alimentados a óleo de baleia. Não
satisfaziam à população, em virtude de sua pouca luminosidade e por
serem colocados a grande distância uns dos outros, que em alguns lugares chegava a 75 metros! Experimentou-se, com modesto sucesso,
o sistema de iluminação a gás, obtido de hidrocarbureto, em algumas
áreas somente, mas em 1867 firmou-se contrato com a empresa The
Nictheroy (Brazil) Gas Company Ltd., que forneceria outro combustível, o chamado “gás de cozinha”, a partir da destilação de carvão de
pedra. Colocados os encanamentos, a cidade já inspirava progresso e
seus habitantes sentiam-se orgulhosos de sua iluminação pública. Findo o contrato, em 1887 outro foi firmado com a Société Anonyme de
Travaux et Entreprises au Brésil, presidida então por Henri Brianthe, e
que até o início do século seguinte explorou com privilégio o fornecimento de gás para iluminação pública e uso doméstico.
Prevendo-se aumento do fluxo de passageiros, Carlos Fleiuss, filho do alemão Heinrich Fleiuss (de Colônia), resolveu reunir capital e
fundou, em 1870, a Empresa Barcas Fluminenses, de navegação, para
ligar as cidades fronteiras. Atracavam, como a companhia rival, em
São Domingos e em Niterói24. A capital da Província evoluía aos pou24– Eram, ainda naquela época, núcleos distintos: Nictheroy era a parte mais antiga,
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cos e também lentamente ia-se estabelecendo comércio e construíamse novas casas. Fleiuss empregara muita mão de obra local para construir em pedras e argamassa as pontes de atracação, além das estações
de embarque para os passageiros, ambas ao lado das já existentes da
empresa concorrente em São Domingos, Niterói e Rio de Janeiro.
Pouco depois iniciavam-se os projetos para prover a cidade de
serviço telefônico, e, em novembro de 1883 Niterói conheceu esta inovação, prestada pela Cia. de Telegraphos Urbanos. Outra empresa, a
Cia. Telephonica do Brazil surgiu pouco depois, mas foi a Empresa
Telephonica Nictheroy e Rio de Janeiro, em 1892, que iria dar maior
amplitude à rede telefônica, com a colocação do cabo submarino, logo
danificado propositalmente, durante a revolta de uma parte da Armada
pelos insurretos. O restabelecimento dessas comunicações com o Rio
de Janeiro só aconteceu em 1909, por outra empresa, a Rio de Janeiro
& São Paulo Telephone Company.
Em 28.02.1881 a atenção do público foi despertada pela notícia alvissareira de um fato inédito: o alemão Theodor John (de Leipzig) atracomercial e onde ficavam repartições do Governo e também muitas moradias, enquanto
São Domingos era quase toda residencial, nobre, estendendo-se para o Ingá e Icaraí, com
grandes chácaras e belos jardins à frente das tais ‘vilas’, mencionadas por Koseritz em
página anterior. A empresa de Fleiuss possuía três barcas, propulsadas a hélices e tinham
proa e popa. Foi efêmera sua existência.
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vessou a nado a baía de Guanabara em quase 4 horas, partindo da Ponta
da Armação, em Niterói, até o Morro da Viúva, no Rio de Janeiro. Esse
destemido atleta amador era relojoeiro de profissão e com Mme. E. M.
Saucken-John mantinha na rua Visc. do Uruguay, nº 138, a Relojoaria
Alemã (relojoaria e ourivesaria). Cerca de 20 anos antes, na mesma cidade, outro alemão, João Filipe Ihmer, possuía na Rua São João, nº 20,
sua oficina de ourives e relojoeiro. Na mesma época Hermínia Ihmer lecionava na cidade o seu idioma. Lembramos que outros nomes alemães
havia por lá. Assim, em 1870 um Sr. Müller na rua Visc. do Uruguay, 48,
anunciava afinações de pianos, e João Meyer era dono do Hotel Ferry,
na rua da Praia, Visc. do Rio Branco atual, próximo à antiga estação das
barcas de Nictheroy.
Durante a Revolta da Armada (setembro de 1893 a março de 1894),
a cidade foi duramente atingida pelos bombardeios partidos dos navios
de dentro da baía e, pelo lado oposto, da enseada de São Lourenço. Quem
pôde, refugiou-se no interior do Estado. As barcas deixaram de circular,
e a capital foi transferida em 5.02.1894 para Petrópolis até 1902/1903.
Com isso Niterói sofreu considerável atraso em seu desenvolvimento.
Ainda assim, a despeito da precária situação reinante, encontramos
novos nomes alemães naquele conturbado final de século. Georg Grüner e Otto Emil Müller instalaram na rua da Praia, 103, uma fábrica de
cerveja. O ensino de alemão, nesse período, era ministrado pela professora Eugênia Boning, coadjuvada por D. Hermínia Ihmer, no Externato
Particular, para meninas, dirigido por D. Evelina Backheuser, sito na rua
Visc. do Rio Branco nº 113, durante algum tempo, depois em Santa Rosa.
Neste educandário lecionavam-se, além das matérias do curso primário
daquela época, em aulas complementares também línguas (francês, inglês e alemão), além de piano e trabalhos de agulha. O nome Backheuser
vinha de Gustav Backheuser25, comerciante no Rio de Janeiro, associado
25– Naquela época, meados do Oitocentos, mesmo na cidade grande como Rio de Janeiro, todos os alemães se conheciam, quer pelas suas atividades profissionais, quer pelos
clubes que frequentavam. O bisavô do autor destas linhas era até amigo deste velho Gustav Backheuser, que lhe serviu de testemunha quando aquele adquiriu a manufatura de
pianos, em 1863, do Sr. Jacob Schlegel, no Rio de Janeiro.
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a um Sr. Meyer, e morador em Santa Rosa, onde adquirira uma chácara
em que morava. Evelina e Everardo eram seus netos, filhos de Johannes,
que estudara na Alemanha. Em casa falava-se alemão além do português.
Everardo nascera em Niterói em 1879, e formou-se engenheiro, como
fora seu pai. A morte de Johannes, aos 42 anos, fez com que toda a família
se empenhasse em ganhar seu sustento. Evelina cuidou de ser professora
e Everardo esforçava-se ao máximo nos estudos e cedo também tivera
seus alunos particulares. Eram eles francamente germanófilos, principalmente Everardo, que até 1916 exaltava abertamente as virtudes da Alemanha, tanto seu povo como nação, pela sua organização, sua indústria,
sua estrutura e sua disciplina. Porém a partir daquele ano isso valeu-lhe
contrariedades sem conta. Ainda em 1916 fez uma conferência, no Teatro
Lírico, no Rio de Janeiro, num festival promovido pela Liga Brasileira
Pró-Germânia, intitulada “A imponente figura do Kaiser”. Fora ele, antes, o primeiro presidente da Sociedade Brasileira de Cultura Germânica.
Além disso, como idealista, introduziu o ensino da língua desenvolvida
por Zamenhof, fundando o Clube Esperantista local. Aplicou-se também
na política local, que igualmente lhe rendeu dissabores. Sua atividade
principal era a de engenheiro geógrafo e professor na Escola Politécnica,
no Rio de Janeiro, tendo publicado numerosos trabalhos, ainda hoje considerados importantes.26
Além de D. Evelina, das sras. Boning e Ihmer lecionando a língua
alemã em Niterói havia, por volta de 1888, o professor Arno Gauland que,
no Colégio Felisberto de Carvalho (rua Presidente Pedreira, 24), ao lado
de seu idioma nativo, dava aulas de ginástica e esgrima. Por essa época
clinicava na cidade o dentista Dr. L. R. Elbert, que era também o tesoureiro do “Cassino Fluminense”, localizado em frente à ponte das barcas
em São Domingos.
Outra família radicada na Niterói desde aqueles tempos é a dos
Avé-Lallemant. A vinda dos três irmãos Avé-Lallemant: Robert, médico e cientista, Alexandre, comerciante, e Louis, sacerdote, foi em 1858,
26– Leia-se “A cultura opulenta de Everardo Backheuser”, livro de Sydney M. G. dos
Santos.
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todos de Lübeck, ao Rio de Janeiro; não residiram em Niterói, mas vários de seus descendentes. Encontramos, no Museu Nacional, Antônio
Avé-Lallemant, atuando como desenhista técnico da seção de numismática, arqueologia e etnografia, que residia na rua Presidente Pedreira,
nº 8, e Roberto, na rua Presidente Domiciano nº 1, em São Domingos,
trabalhando no Rio como exportador e importador de mercadorias. Os
Avé-Lallemant eram ligados aos Precht, outra família alemã, vinda de
Bremen, por matrimônio: o corretor de mercadorias (comissário de café)
Wilhelm Ludwig Precht, residente em Niterói na rua do Corrêa (atual rua
João Pessoa) nº 2, era casado com Felisbela Avé-Lallemant, que deixaram
descendentes. Ainda outro nome fixado em Niterói naquele tempo, era o
de Johannes Joachim Christian Voigt (de Lübeck). Residia na época na
rua Áurea (atual Paulo Alves) nº 10. Era corretor de navios e tradutor e
intérprete juramentado dos idiomas alemão, francês, holandês, sueco, inglês, espanhol e dinamarquês. Deixou descendência, e seu filho Arnaldo,
também tradutor público, foi um dos fundadores, em 1895, do Grupo de
Regatas Gragoatá, juntamente com outros idealistas, entre eles seu irmão
Erwin. No final do Oitocentos foi representante da firma Rabone, Irmãos
& Cia., o alemão Friedrich Rehwoldt (de Lübeck), que também escolheu
Niterói para morar (rua Presidente Domiciano nº 11).
Nos anos 80 e 90 ganhava com o suor de seu rosto o pão de cada dia
o sr. Friedrich Kunke, afinador de pianos e harmônios, por que era muito
procurado devido à enorme quantidade desses instrumentos, sobretudo
pianos, existentes em quase todos os lares brasileiros de um certo nível.
Encontrava-se instalado na rua do Teatro, atual Quinze de Novembro, nº
16, junto ao Largo da Memória.
Enquanto isso, noutro campo de atividade, o tenente da Guarda Nacional Carlos Alberto Graeff produzia fotografias que até hoje circulam
entre os colecionadores de antiguidades, valendo bom preço. Sabe-se que
seu atelier esteve instalado na rua da Conceição, 87, também na rua Visc.
de Itaboraí, 141, e, também, na rua Marechal Deodoro, nº 33-C. Em 1892
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prometia “retratos em todos os sistemas e tamanhos em photographia,
platinotypia, aquarela, crayon etc.” Possuía também estúdio no Rio de
Janeiro.
A fábrica de gás, da rua de São Lourenço, nº 1, tinha como gerente
o Dr. Júlio Koeler, e o advogado Dr. Olympio Giffenig von Niemeyer
exercia sua profissão no Rio de Janeiro, mas residia em Icaraí, na rua da
Sagração (atual Presidente Backer), nº 5. E, como ele, muitos outros, pois
numa época em que ainda não havia ventiladores elétricos e muito menos
aparelhos de ar condicionado, a brisa provocada pela movimentação da
barca constituía um refrigério, continuado depois pela brisa vinda do mar
em Icaraí, atenuando as elevadas temperaturas do verão.
Chegara o ano de 1891 e com ele nova Constituição, a primeira da
República. Mudanças importantes sofreu então a legislação brasileira, entre elas separando a Igreja do Estado, a liberdade de culto e a regulamentação do casamento civil, além da Grande Naturalização, passando a ser
brasileiro todo estrangeiro residente no Brasil no dia do golpe de Estado,
15 de novembro de 1889, com exceção dos que requeressem o contrário,
no prazo de seis meses. Como a grande maioria dos alemães era protestante, esse dispositivo veio a favorecê-los. Mas também a igreja católica dele tirou proveito, como, por exemplo, os monges beneditinos que,
desde 1855 não podiam mais receber noviços e assim estariam fadados
à extinção. A nova Carta equiparou o naturalizado ao cidadão nato, mas
no período que estamos apreciando (até 1939), novas constituições, as de
1934 e 1937, restringiram novamente os direitos do brasileiro naturalizado, com prejuízo de seu status político e profissional. Naquela época,
1891, foram muito poucos os cidadãos estrangeiros que se opuseram à
nova ordem.
A última década do século XIX decorreu cheia de imprevistos. Já
no dia 13 de julho de 1892 aconteceu memorável ressaca, alterando o
tráfego das barcas, que se tornou caótico: impelidas pelas fortes ondas
foram jogadas contra as areias da Praia Grande (ao longo da rua Visconde
do Rio Branco) e umas contra as outras, as barcas “Primeira”, “Sexta” e
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“Paquetá”; a “Segunda” foi encalhada no lodo da enseada de São Lourenço, e ficaram quase inutilizadas as estações de São Domingos e do Cais
Pharoux, no Rio de Janeiro, e, igualmente muito estragadas as oficinas
da empresa. As três barcas permaneceram na praia durante mais de uma
semana até serem resgatadas. O pintor niteroiense Antônio Rafael Pinto
Bandeira passou para a tela o inusitado acontecimento.
Pouco depois Niterói sofreu também, devido aos novos ventos republicanos que sopravam e pela desorganização da cidade provocada pela
Revolta de uma parte da Armada, a partir de 6 de setembro de 1893. Nesta
data seus pacíficos moradores e também os do Rio de Janeiro acordaram
com o troar de canhões. Custódio José de Melo, de bordo do “Aquidabã”,
enviava manifestos ao povo, nos quais afirmava ser a deposição do vicepresidente Floriano Peixoto, no exercício da presidência, o caminho da
salvação da Pátria. Era o início da Revolta, que manteve as duas cidades,
Rio e Niterói, em constante sobressalto durante meio ano, prejudicando
enormemente o comércio e o livre trânsito. Já naquela manhã uma força
desembarcou na Ponta da Armação, sob a proteção do monitor “Javari”,
onde se apoderou de toda a munição ali depositada. O serviço de barcas
para o Rio, irregular no primeiro dia, depois que a barca “Segunda” foi
afundada pelos revoltosos, cessou de todo, tendo ficado interrompido durante os seis meses seguintes. A viagem para o Rio só se fazia por estrada
de ferro, com baldeações. Desde logo o serviço telefônico, há pouco inaugurado, deixou de funcionar. Estando paralisado o tráfego na baía, inclusive o de pequenas embarcações, que normalmente transportavam mercadorias de uma margem à outra, o comércio sentiu-se logo privado de
abastecimento, sendo forçado a cerrar suas portas, mesmo porque poucos
habitantes permaneciam no centro da cidade. Os bairros mais afastados
da orla marítima modificaram-se profundamente, tornando-se, de hora
para outra, superpovoados, pois para lá deslocara-se, em sua maioria, a
população apavorada.
As bocas das ruas perpendiculares às praias foram obstruídas por
muralhas de sacos de areia, servindo de proteção aos moradores remanescentes e à artilharia de pequeno calibre, ali estacionada. Os transportes
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coletivos terrestres cessaram suas atividades; paralisaram, igualmente, os
serviços de limpeza pública e a remoção das matérias fecais. Ainda não
havia serviço de esgoto.
Passada a fase inicial, o povo adaptou-se às novas condições de vida,
ao rugir dos canhões e à passagem de veículos conduzindo mortos e feridos. Por sorte, a princípio mal adestrados os artilheiros dos revoltosos,
podia-se contemplar do alto dos morros um tragicômico exercício de
tiro.
Nestas condições, não se podia nem imaginar que Niterói continuasse a receber interessados em lá residir ou abrir alguma atividade comercial.
Só depois de finda a refrega e tendo voltado os serviços públicos
essenciais a funcionar, a cidade tornou-se novamente habitável e seus
moradores iniciaram o trabalho de reconstrução das casas atingidas pelo
canhoneio, o que durou alguns anos. A esse tempo praticava na cidade o
médico Dr. Luís Schreiner, ginecologista e obstetra alemão, residente na
rua Presidente Domiciano, nº 21, e a essa altura dos acontecimentos já os
serviços médicos se achavam desafogados de seus múltiplos atendimentos de urgência. O comércio também já se reabastecera.
Para alegria da população, na noite de 12 de agosto de 1897 Niterói
conheceu sua primeira projeção cinematográfica, espetáculo que a partir
daí se repetiu inúmeras vezes em vários locais. Era, obviamente, ainda
o cinema mudo, com imagens tremidas por falta de eletricidade estável;
a que usavam, provinha de dínamos, geradores portáteis. Mas o silêncio
das fitas foi logo substituído por música de pianos, colocados nas salas
de projeção desses cinematógrafos, dando trabalho aos pianeiros. A esta
altura já havia mais vida noturna no centro da cidade, ainda parcialmente
destroçada.
O ano de 1895 começara mal com o incêndio de uma barca da novel
empresa que explorava a travessia da baía, a Companhia Cantareira e Viação Fluminense, que substituiu a Cia. Ferry neste serviço. Em 6 de janeiro
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daquele ano, na barca “Terceira”, toda remodelada e recém-pintada, foi
inaugurada a iluminação elétrica da mesma, em troca das bruxuleantes
lamparinas a querosene. Entre as estações de S. Domingos e Nictheroy,
com umas 140 pessoas a bordo e a banda do 38º Batalhão de Infantaria
executando músicas adequadas à ocasião, irrompeu fogo em algum lugar da embarcação. Estabeleceu-se o pânico, e o número de mortos por
queimaduras e afogamento atingiu a muitas dezenas; os feridos devido
a quedas foram levados ao Hospital São João Batista. Somente 8 anos
depois a C. C. V. F. tornou à modernização da iluminação de sua frota,
encarregando a empresa alemã Siemens-Halske deste serviço, que para
executá-la enviou o engenheiro Rudolf Drihel.
—
Descendentes do ainda hoje festejado – pelos inúmeros serviços
prestados ao Brasil – Heinrich Wilhelm Ferdinand Halfeld (Hannover,
1797 – Juiz de Fora, 1873), as quatro irmãs Arina, Corina, Maria e Judith
Halfeld, professoras formadas pela Escola Normal de Niterói, fundaram
em 1899 o Colégio Halfeld (rua Barão do Amazonas, 123), que teve, alguns anos mais tarde, uma sucursal (1911) em Icaraí. Ali esse empreendimento tanto progrediu, que desistiram do endereço original e só mantiveram, até cerca de 1960, a de Icaraí, instalada na rua Álvares de Azevedo.
O nome Halfeld lembra também o médico-legista da Polícia, em Niterói,
Dr. Carlos Halfeld, na primeira década do século XX, ao tempo em que o
Dr. Azevedo Cruz era Chefe de Polícia. Dr. Carlos Halfeld foi, também,
um dos beneméritos membros do há muito extinto Lyceu de Artes e Ofícios, mantido pelo Congresso Literário Guarany, dirigido por Guilherme
Briggs. Outro nome que nos ocorre é o de Walter Schuback, na mesma
época um dos diretores do famoso Club Internacional, e recorda Karl
Schuback, seu pai, natural de Hamburgo, que durante décadas foi sócio
do Club Germania, no Rio de Janeiro.
Haviam aparecido na cidade, já no final do século XIX, as primeiras fábricas de fósforos e o surgimento de mais outras continuou na primeira década do seguinte, entre elas a de marca “Orion”, instalada na
travessa Carlos Gomes, nº 7 (pela nova numeração, mais tarde, nº 65),
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em Sant’Ana. Foram seus sócios fundadores e proprietários os alemães:
Bellingrodt e Meyer. Hugo Bellingrodt era de Halver, perto de Münster
(Westfália). A fábrica produzia “fósforos de segurança” e os de cera. Pequena no início, foi-se desenvolvendo e, em 1922, empregava já cerca
de 600 operários, tanto na fabricação de fósforos como na de vidros, que
também fazia.
Muitos desses numerosos estabelecimentos, que durante algum tempo se fixaram em Niterói (os de fósforos, cerca de uma dezena) e outras
pequenas e médias indústrias, pouco a pouco foram desaparecendo, ora
fechando suas portas, ora mudando-se para o Distrito Federal, em virtude
da criação de novos impostos. Antes do selo adesivo federal (imposto de
consumo) e da taxa de exportação estadual, floresciam todas. Porém, após
a asfixia causada pelos mencionados tributos (1916), viram-se, muitas delas, abaladas financeiramente, começando o declínio de sua prosperidade,
por não poderem competir com suas congêneres da Capital Federal, não
sujeitas à sobretaxa estadual. Muitos operários perderam seus empregos
e, Niterói, algumas dessas fábricas (de cigarros, tecidos, calçados, perfumarias e quase todas as de fósforos).
Apareceu, em 1904, outro médico alemão a clinicar na cidade. Era o
Dr. Gustav Meyer, que atendia sua clientela na Equitativa Médico-Cirúrgica Nictheroyense, na rua São João, nº 25.
Em 1904 tomou posse o Dr. Paulo Ferreira Alves, como primeiro
prefeito da cidade. Foram então tomadas medidas no âmbito municipal
que, em parte, desagradaram à população. Uma delas, já sancionada em
28.05.1903, mas só posta em execução no ano seguinte: a não abertura do
comércio aos domingos. Também a venda de leite, pelas vacas leiteiras
ambulantes, no centro da cidade, teve um fim. Estas e muitas outras normas, tomadas pelo poder executivo municipal, fizeram com que não durasse Paulo Alves na prefeitura, uma vez que a oposição a tais alterações
era também apoiada pelos jornais, inclusive “O Fluminense”.
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Pensava o povo afinal achar-se livre das temíveis epidemias, depois
que desaparecera a febre amarela, quando, em julho do mesmo ano grassou na cidade a varíola, atingindo grande parte da população, causando
muitas mortes e desfigurando os sobreviventes. Mais graves, quase sempre mortais, eram os casos de varíola confluente.
Pouco antes de aparecer esta epidemia, a nova barca, a “Visconde de
Moraes”, fez, em 11 de junho, sua primeira viagem. Era iluminada à luz
elétrica, com muitos espelhos biselados, globos de vidro fosco, e provida
de caprichosa toalete para as senhoras, além de ostentar artística claraboia, decorada com finas pinturas. A instalação elétrica coubera à firma
Siemens-Halske A.G., a mesma que no ano anterior refizera a instalação
da barca “Terceira”, incendiada oito anos antes. Os dínamos eram da famosa fábrica Daevel, de Kiel. Nesse dia, nas oficinas foi servido banquete
de 250 talheres aos operários, e outro festim a bordo da barca “Segunda”,
para onde haviam passado os convidados, nas proximidades da ilha do
Engenho. Antes do regresso a embarcação deu ainda um giro pela baía até
as proximidades de Paquetá.
Distrações, por essa época, já não mais faltavam na cidade. Além
dos cinemas, em franca atividade, havia as apresentações musicais particulares, nos clubes e nos dois teatros. O clube Internacional, fundado
em 1899 (no prédio hoje conhecido como Solar do Jambeiro), reunia
semanalmente a fina flor da sociedade local, entre nacionais, ingleses,
dinamarqueses, alemães, belgas, franceses e de outras nacionalidades, e
sempre contava com boa afluência. Entre os descendentes teutos que ali
compareciam, viam-se Melitta, Angelina e Irma Mutzenbecher, os Stiebler, Walter Schuback. E para um outro público os jornais, em 1904, convidam para o “circo taurino”, instalado no Barreto, onde à tarde haveria
“corridas de 5 bravos touros”. Os preços das entradas variavam entre Rs
2$000 (à sombra) e 1$000 (ao sol), por pessoa.
Sim, Niterói modificava-se a cada instante, neste final da “belle époque”. Além disso, com o novo prefeito e com novos recursos que não só
os impostos, mas agora obtidos por empréstimo, mediante a emissão de
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apólices, João Pereira Ferraz aplicou o dinheiro a que era destinado: às
ruas, à construção do cais da cidade e à reforma do Corpo de Bombeiros.
Motivo de júbilo para a cidade, principalmente para a colônia alemã, que crescia, foi a fundação do Yacht Club Brasileiro, no dia 10 de
setembro de 1906, nos salões da Federação das Sociedades de Remo, na
rua do Rosário, 135, no Rio de Janeiro. Instalado provisoriamente na residência do associado Armando Leite, no bairro de Gragoatá, Niterói, em
dezembro de 1910, transferiu-se para um dos prédios defronte ao novo,
recém-construído cais de Gragoatá. Com o contínuo aumento de seu quadro social e do número de embarcações, mudou-se, em 1923, para o local
definitivo, na Praia da Horta, na enseada de Jurujuba. O prédio era antigo,
remanescente do Brasil-Colônia, conhecido como Castelo de Jurujuba,
por ter sido do tipo de residência senhorial fortificado, provido, em outras
épocas, até de masmorras. Nesta bonita e espaçosa sede encontravamse, principalmente, além de nacionais, alemães e ingleses, em total harmonia. Um pouco antes da Primeira Guerra Mundial a colônia inglesa,
muito mais numerosa do que a alemã, que possuía já o seu clube – The
Rio Cricket and Athletic Association, desde 1897 –, teve fundado o seu
clube náutico, em abril de 1914, o “Rio Yacht Club”, situado na mesma
enseada, e para onde migraram todos os britânicos, logo que se iniciou o
conflito internacional.
Entusiasmados com tais melhoramentos, os niteroienses assistiram,
também, à Companhia Cantareira e Viação Fluminense erguer seu novo
edifício, para embarque e desembarque de passageiros, logo apelidado
de “Ponte Central”, defronte à rua da Conceição, no local do velho e
feio casarão em que outrora estivera alojado o Mercado e, ultimamente,
aquartelado o 38º Batalhão de Infantaria. Com estas novas instalações foram abandonadas de vez as viagens triangulares das barcas, deixando de
atracar em São Domingos para em seguida fazê-lo na estação de Nictheroy, nas proximidades da rua Marquês de Caxias. E, como dizia Everardo
Backheuser “Ubi barcas, ibi Niterói” (onde as barcas, ali Niterói), expressando que nas proximidades da estação das barcas, seria o local mais
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importante da cidade, para lá se deslocando principalmente o comércio.
São Domingos permaneceu ainda por algumas décadas o lugar das residências “aristocráticas”, mas Ingá e Icaraí seriam doravante a meta das
moradias mais nobres. Algumas linhas de bondes elétricos já circulavam
desde 31.10.190627, substituindo, paulatinamente, os de tração animal,
vindas desde 1871. Alguns meses antes, março, começara igualmente a
iluminação elétrica das ruas. Enquanto subsistiam os cinemas próximos à
antiga ponte de atracação de Nictheroy, outros, maiores, apareceram nas
imediações da estação nova.
Um empreendimento alemão em Niterói que proporcionou emprego
a muita gente foi a construção e o funcionamento do Moinho Santa Cruz,
com sua oficina de manutenção. Fora escolhido para sua localização na
Ponta d’Areia, à beira-mar, a rua Vilagrã Cabrita (hoje rua Dr. Paulo Frumêncio). Erigido entre 1908 e 1914, mereceu do historiador H. Hinden
a classificação de ‘gigantesco’ moinho de cereais (op. cit.) devido a suas
dimensões extraordinárias (para a época). De fato, comparando-se a altura do prédio com as dimensões do carrinho ali estacionado, impõe-se
o adjetivo empregado. Desaparecido há muito, o lugar foi ocupado pela
Cia. Comércio e Navegação (Conde Ernesto Pereira Carneiro) e atualmente ali se acha o Estaleiro Mauá. O moinho pertencia à importante
e internacionalmente conhecida firma alemã Herm. Stoltz (fundador da
firma foi Georg Hermann Stoltz, de Lüneburg, Prússia).
Em 1912, em 1º de agosto, aconteceu a cerimônia do lançamento
da pedra fundamental do edifício dos Correios, na rua Visconde do Rio
Branco, entre as ruas São José e do Vasco (hoje José Clemente e Aurelino Leal, respectivamente). Também pouco antes de eclodir o conflito na
Europa, foi fundada a Faculdade de Farmácia e Odontologia do Estado
do Rio de Janeiro, pelo Decreto 8.659, de 5.04.1911, e, em 3.06.1912
veio fazer-lhe companhia, como escola de ensino superior, a Faculdade
27– Os motores desses veículos e os respectivos reostatos eram de origem norte-americana, assim como os trilhos; de origem alemã, da firma Siemens & Halske, eram nesses
bondes elétricos toda a rede elétrica e o sistema de alavancas em arco, no alto dos carros,
que entra em contato com o cabo elétrico.
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de Direito de Niterói. Esta última, pouco depois, dava já os seus primeiros
frutos, diplomando entre muitos outros luminares, os bacharéis José Francisco da Rocha Pombo, Antônio Evaristo de Morais e Leôncio Correia.
Fotografias da privilegiada localização do Yacht Club Brasileiro
O Moinho Santa Cruz, na Ponta d’Areia
A “belle époque” findara com o crime perpetrado em Sarajevo, por
Gavrilo Princip. As mudanças que o Mundo civilizado ocidental sofreria
daí em diante eram de todo imprevisíveis. A América do Sul, por ser distante do conflito, talvez tenha sido a parte menos afetada pelos acontecimentos. Ainda assim causou, além de preocupações pelo que haveria de
vir (no comércio), transtornos à maioria dos países deste subcontinente.
Niterói, a pequena capital fluminense, sentiu também, embora bem atenuadas, as consequências, especialmente os estrangeiros nela residentes.
Logo de início, confiantes nos exército e marinha, os alemães não se inquietaram, aguardando sua vitória para breve.
Um dos primeiros efeitos foi a interrupção do fornecimento do gás
canalizado. O carvão de pedra, sua matéria-prima, vindo do exterior, havia
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passado a preços exorbitantes. A iluminação pública e a das casas já era
a eletricidade, mas nas cozinhas das casas e nas fábricas sua falta causou
problemas. As donas de casa tiveram de retornar a seus quase já esquecidos fogões a lenha e aos fogareiros a carvão vegetal. Finda a guerra o
industrial Henrique Lage adquiriu a concessão e o serviço foi transferido
para a Société Anonyme Gaz de Nictheroy que, somente sete anos depois,
(1925) restabeleceu o fornecimento e ampliou a rede de condutos. Quanto
ao serviço telefônico, fora já restabelecido há anos. Em 1916, segundo a
concessionária, havia 1.214 aparelhos instalados.
Deixando de lado estes aspectos, a população em geral não se mostrava especialmente interessada na marcha dos acontecimentos no Velho
Mundo, e apenas poucos alemães receavam o pior, uma vez que as notícias, principalmente nos primeiros tempos, eram quase sempre favoráveis
a eles. Só surgiu um problema quanto à chegada das notícias, quando foi
danificado pelos ingleses o cabo submarino. As informações vinham, então, durante breve espaço de tempo, via Estados Unidos, até que também
esta fonte emudeceu.
A Câmara Municipal ocupava-se com assuntos gerais, apenas locais, como o 1º aniversário do governador Nilo Peçanha (novembro
de 1915) como presidente do Estado, e, no dia 29 daquele mês, no expediente, um vereador apresentou projeto a respeito do hino oficial do
Município, o Hino “Araribóia”. Tal o espírito de então, e nestas e noutras sessões nada se tratou que tivesse relação com a guerra dos países
europeus ou que cuidasse de seus efeitos locais. Ainda em fevereiro de
1916 veio nova lei municipal determinando a venda a peso de todos os
grãos e cereais: feijões, arroz, milho etc., que não mais seriam, no varejo, comercializados a litro. Dizia-se que “quanto às vantagens dessa
nova lei, só o tempo nos poderá dizer”... Por aí se percebe que a vida
na cidade continuava normalmente.
Mas em 4 de abril de 1916, encontramos notícias de primeira página 6ª coluna, no jornal niteroiense “O Commercio”:
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“ESCOLA ALLEMÃ. Visitamos ontem a Escola Allemã, importante estabelecimento de ensino da língua germânica, que acaba de ser
instalado nesta cidade à rua da Conceição, nº 81, sob a competente
direção do distinto educador, Sr. Nabe. Já tem agora cerca de 50 alunos brasileiros e alemães, meninos e meninas de 12 anos de idade.
Tem como professora Mme. Marde. Esta escola é filial da do Rio de
Janeiro, à rua do Senado”. (sic, pois mudara-se para a rua Carlos de
Carvalho, nº 76).
Sem dúvida, era uma informação auspiciosa. Explica-se: Quando
em abril de 1914 chegou da Argentina o Prof. Adolf Nabe, para dirigir a Escola Alemã no Rio de Janeiro, mantida pela Sociedade Alemã Beneficente (Deutscher Hilfsverein), com o auxílio do comércio
e indústria locais, assumiu ele esse encargo com numerosos planos
para desenvolvimento da mesma. De fato esse mestre, especializado
em matemática e ciências naturais, era homem dinâmico e programara
grandes atividades que, nos anos em que permaneceu na direção da
Escola, desde a saída do Pastor Hoepffner, até a entrega do cargo, em
1926, ao Dr. Ferdinand Künzig, muito ela progrediu. Desse conjunto
de atividades mencionaremos aqui apenas o significativo fato de ter
reconhecida, em 1922, como “Realschule”, pelo Governo alemão, permitindo a seus concludentes da 9ª série (Untersekunda) serem automaticamente aceitos na 10ª série (Obersekunda) na Alemanha. O prédio
da Escola no Rio era novo e construído em rua recém-aberta, em local
ainda ermo, completamente desabitado nos arredores.
É importante lembrar, que pouco depois de Prof. Nabe assumir a
direção do estabelecimento, estourou a guerra, dificultando a consecução
das metas por ele traçadas. À frente da Pasta das Relações Exteriores, encontrava-se Lauro Müller, o que fazia crer que o país se mantivesse afastado das ações beligerantes. Nabe, em princípios de 1916, decidiu abrir
uma filial em Niterói, pois o número de alemães e de teuto-brasileiros ali
vinha crescendo. Escolheu um casarão bem no centro da cidade.
A forte vinculação do Brasil de então à Inglaterra, o prestígio que a
França desfrutava junto à maioria dos intelectuais brasileiros e a entrada
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dos Estados Unidos da América na guerra foram fatores adjuvantes; determinantes, porém, foram, os torpedeamentos por submarinos alemães
de navios mercantes brasileiros (“Paraná”, “Tijuca”, “Lapa” e “Macau”)
junto ao litoral francês, e a substituição de Lauro Severiano Müller por
Nilo Peçanha no Ministério. O Brasil, como se recorda, entrou na guerra
em outubro de 1917. Se no Rio de Janeiro as perseguições aos súditos dos
Impérios Centrais se diluíram e não chegaram a afetar a desabitada zona
em que estava a Escola Alemã, tão fora de mão e incômoda para manifestações hostis, as aulas ali sofreram apenas interrupção de uma semana.
Niterói, bem menor, onde a escola dos alemães se achava instalada na rua
mais central da cidade, onde passava a maioria dos bondes para a Zona
Sul, todas as atenções e atos diversos e até agressivos da população exaltada se convergiam, o estabelecimento não teve outro caminho senão o de
cerrar suas portas, para proteger seus alunos.
Ainda encontrava-se Nilo Peçanha na presidência do Estado
(13.05.1916), quando houve a cerimônia da inauguração do Horto Botânico. Dr. Wenceslau Braz Pereira Gomes, presidente da República, foi a
Niterói prestigiar o ato. Recebido por Nilo Peçanha, chegaram ao Horto
com a enorme comitiva e o profissional em pomicultura e horticultura,
Dr. Carlos Eisler. O idealizador e iniciador da grande obra foi o Dr. Ary
Fontenelle, em 1906, mas já falecido, então. A criação desta magnífica
instituição, ainda hoje existente, datava do Decreto 688, de 1905, situando-o no bairro do Fonseca. As autoridades presentes, depois das formalidades protocolares, percorreram os germinadores artificiais, serviu-se
breve colação e logo dissolveu-se a reunião.
As touradas (corridas de touros) que de vez em quando se realizavam na cidade tinham também opositores, já que o povo a elas não se
acostumou, como é uso tê-las na Espanha e suas ex-colônias americanas.
Houvera, por isso mesmo, em 12.11.1912, a Deliberação Municipal nº
2.090, que as proibia de todo, mas outros, como o vereador Agostinho
Sampaio, as apreciavam, donde ele apresentou projeto à Câmara Municipal, revogando em parte aquela medida, permitindo sua realização nos
arrabaldes.
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Não se podia omitir neste relato da época, a atuação dos Eckhardt,
família grande de executantes de música, vinda de Petrópolis: Carlos, César e Eduardo, principalmente o primeiro; a seu respeito Aldemar Alegria
publicou o seguinte:28
“[Carlos] veio jovem a Niterói, onde organizou a primeira orquestra
no Cinema Politérpsia. Houve tempo em que era diretor de todas as
orquestras de cinema da cidade.
Pertenceu ao corpo docente da Sociedade Sinfônica Fluminense, hoje
Conservatório de Música de Niterói, de cujo sodalício fora, também,
sócio honorário fundador, em companhia dos maestros Hernâni Bastos, Felício Toledo, Cordiglia Lavalle e das professoras Mercedes Barreira, Guiomar Pereira, Estefânia Barroso, Carmélia Azevedo e Maria
Costa Velho.
Sua vida, verdadeiro sacerdócio de dedicação à arte. As estações de
rádio de Niterói encontraram no saudoso músico um animador para
seus estúdios, sendo então o organizador da Orquestra Eckhardt, composta de irmãos, primos e sobrinhos seus.
Antes fora professor da Escola de Música Santa Cecília, de Niterói,
dirigida pelo maestro Cordiglia Lavalle, em que as artes tinham um
fervoroso cultor, pois além de musicista exímio, era também pintor
laureado.
Carlos Eckhardt organizou, também, uma orquestra das asiladas no
Orfanato Dr. March [Niterói], tendo com ela dado diversas audições
em público, e até composto um hino para este orfanato.
Tinha um irmão, César Eckhardt, exímio violinista, também como
Carlos, nascido em Petrópolis, onde foi aluno do Prof. Paulo Carneiro. Tirou Carlos vários prêmios e fez o curso do Instituto Nacional de
Música com distinção.”
Carlos Eckhardt sempre morou, quando em Niterói, no centro da
cidade. Outra testemunha informou-nos ter César Eckhardt tocado viola
28– ALEGRIA, Aldemar, in O Estado. Reportagem de 2.12.1945.
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na Orquestra de Cordas do Instituto Nacional de Música, sob a regência
do maestro Ernesto Ronchini (1926), e mais tarde (1928) na Sinfônica
do mesmo Instituto, sob a regência de Francisco Braga. Eduardo, outro
irmão, morava no bairro de Santa Rosa.
Da Europa distante vinham poucas notícias confiáveis, provavelmente manipuladas pelas redações dos Aliados, quando de fato havia avanço
das tropas das potências centrais. Mas a vitória, tão esperada pelos alemães, tardava. E quando se soube da Batalha de Verdun e das batalhas feridas no Somme, a inquietação aumentou, embora por vezes intercaladas
por feitos heroicos da aviação alemã.
Com a entrada do Brasil na guerra (Decreto nº 3.361) estavam revogados todos os anteriores que mandavam observar a neutralidade na
guerra da França, da Rússia, da Grã-Bretanha, do Japão e da Itália contra
o Império Alemão. Tomando conhecimento de documento ainda inédito
que a historiadora Thalita de Oliveira Casadei29 há tempos depositou no
Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e lá ainda se encontra para consulta, aproveitamos os seus dados neste trabalho. Trata-se
de lista por ela encontrada num arquivo público em Niterói, prestando
serviço a historiógrafos e a possíveis descendentes daqueles.
Alemães Radicados em Niterói no Ano de 1917
O levantamento dos nomes desses alemães deve-se à declaração de
guerra do Brasil ao Império Alemão.
Na coleção de Leis da República dos Estados Unidos do Brasil, de
1917, vol. 11 – atos do Poder Executivo Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1918, acha-se o seguinte:
N. 12.533 – Relações Exteriores – Dec. De 28.06.1917 – Revoga os
decretos ns. 11.038, de 04.08; 11.166, de 12.08; 11.092, de 24.08 de
1914; 11.984 de 10.03 e 12.171, de 29.08.1916, mandado observar
completa neutralidade na guerra da França, da Rússia, da Grã-Bretanha, do Japão, de Portugal e da Itália contra o Império Alemão.
p.525
P.525
29– Sócia Emérita do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, usando de
atribuição que lhe confere o nº 14 do artigo 48 da Constituição Brasileira e atendendo ao que o Congresso manifestou no nº 2 art. 2º do dec.
Nº 3.266. de 1 do corrente:
Resolve declarar sem efeito os decretos ns. 11.038, de 04.08; 11.166.
de 12.08; 11.092, de 24.08 de 1914; 11.984, de 10.03 e 12.171, de
29.08.1916 que mandam observar completa neutralidade na guerra da
França, da Rússia, da Grã-Bretanha, do Japão, de Portugal e da Itália
contra o Império Alemão, revogadas as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 28 de junho de 1917, 96º da Independência e 29º da
República.
Wenceslau Braz Pereira Gomes
Nilo Peçanha
A seguir veio o decreto que nos colocou na guerra que se arrastava
desde 1914.
Decreto nº 3.361 de 26 de Outubro de 1917
Reconhece e proclama o estado de guerra iniciado pelo Império Alemão contra o Brasil.
O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil:
Faço saber que o Congresso Nacional decretou e eu sanciono seguinte
resolução:
Art. único – Fica reconhecido e proclamado o estado de guerra iniciado pelo Império Alemão contra o Brasil e autorizado o Presidente
da República a adotar as providências constantes da mensagem de 25
de outubro do corrente e tomar todas as medidas de defesa nacional e
segurança pública que julgar necessários, abrindo os créditos precisos
ou realizando as operações de crédito que forem convenientes para
esse fim; revogadas as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1917, 96º da Independência e 28º da
República
Wenceslau Braz Pereira Gomes
Nilo Peçanha
José Caetano de Faria
Alexandrino Faria de Alencar
Carlos Maximiliano Pereira dos Santos
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
Antonio Carlos Ribeiro de Andrada
A, Tavares de Lyra
Em agosto de 1918, o Presidente do Estado do Rio de Janeiro apresentou uma mensagem à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro assim redigida:
Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa do Estado do Rio
de Janeiro no dia 1º de agosto de 1918 pelo Presidente do Estado Dr.
Agnelo Geraque Collet – Rio de Janeiro, 1918 – p. 4/5
O povo fluminense ao ter conhecimento dos motivos que determinaram o Congresso Nacional a autorizar o Presidente da República a
declarar o estado de guerra com o Império Alemão, deu as maiores
demonstrações de sincera solidariedade a esta medida a que fomos
compelidos pelo dever de honra, de manter ilesa nossa soberania, repelindo o ultrage atirado à nossa bandeira, por aquela Nação que não
soubera reconhecer a modelar neutralidade que vínhamos mantendo
nesta guerra que traz convulsionado o mundo civilizado.
De todos os Municípios do Estado e todas as classes sóciais, chegaram
telegramas transmitindo as mais decididas demonstrações de apoio
ao eminente Chefe da Nação, que com tanta altivez e serena energia,
havia resolvido a nossa situação, no período mais grave de nossa história.
Inúmeras foram as linhas de tiro que se organizavam, voluntários ofereceram-se para o serviço militar e a Associação da Cruz Vermelha se
fundou em nosso Estado.
Todos estes fatos demonstram que as gerações atuais conservam as
tradições gloriosas que herdamos de nossos maiores.
Diante dos fatos políticos que enlutaram o mundo e chegaram ao Brasil, que como vimos estava neutro nesse conflito, fomos obrigados a
tomar partido e ficamos com os aliados contra os alemães. Daí compreendermos as medidas que foram tomadas em Niterói, pela Delegacia de Polícia, pois em nosso Município e seus arredores viviam
famílias alemãs.
Em 1917 foram elas convidadas a se apresentarem à delegacia e o
resultado dessas declarações encontramos no livro por nós localizado, na
Sala Matoso Maia da Biblioteca Pública de Niterói, cujo Termo de Abertura é o seguinte:
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):169-227, abr./jun. 2010
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Carlos Wehrs
“Termo de Abertura
Este livro se destina ao registro dos súditos alemães de maior idade
que vivam às expensas próprias e residentes no Município de Niterói,
de acordo com as instruções publicadas no Diário Oficial do corrente
ano.
Contém duzentas folhas por mim numeradas rubricadas com rubrica
“Coimbra” de meu uso e levará no fim o respectivo termo de encerramento.
2ª Delegacia Auxiliar de Polícia do Estado do Rio de Janeiro, em Niterói – 3 de novembro de 1917.
O 2º Delegado Auxiliar, em exercício
R. de Alencar Coimbra”
Em cada folha do livro há o nome do súdito alemão, filiação, idade,
lugar de nascimento, data do nascimento, lugar do último domicílio, residência atual e onde trabalha.
Abaixo desses dados pedidos, há várias linhas onde se pede o nome,
a idade, nacionalidade e da esposa e dos filhos e respectivas residências e
ao lado a assinatura do recenseado. No verso há espaço para alterações.
Acreditamos ser este um trabalho inédito e de grande valor para os
estrangeiros que se fixaram em Niterói e onde, na certa, devem residir
seus descendentes.
Nossas homenagens a essas pacatas famílias que escolheram Niterói
para sua residência, sem inimizade e nem rancor e que nos deixaram um
legado de trabalho e de amor à nova Pátria.
De nossa parte, o reconhecimento de quem vem por linha paterna
descender de David Koch que da Floresta Negra, de Baden Baden veio
contribuir para a indústria de Campos dos Goitacases.
ass.) Thalita de Oliveira Casadei
Transcrevemos do interessante documento apenas os nomes (ao todo
103), mas nele constam filiação, idade, lugar e data de nascimento, último
domicílio, residência atual e local de trabalho. Ei-los: 1– Amanda Carolina
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
Elisabeth Sprenger; 2– Emma Elisa Bossow; 3– Richard Bamberger; 4–
Bertha Brockmüller; 5– Walter Brugmann; 6– Josef Aldenhoff; 7– Ernst
Zimmermann; 8– Fritz Woltersdorf; 9– Eugen Georg Wohler; 10– Gustav
Reihs; 11– Otto Lock; 12– Ernesto Buchholz; 13– Carlos Gersheimer;
14– Au­gust Neufert; 15– Magdalena Eckert; 16– Johannes Friedrich Bern
Leisse; 17– Albert Kroll; 18– Fritz Bittrich; 19– Ernst Engel­brecht; 20–
Paul Sperling; 21– Franz Schuster; 22– Guilhermo Roediger; 23– Alwine Neubert; 24– Gustavo Klages; 25– Castulus Schweiger; 26– Willy
Krause; 27– Ricardo Wilke; 28– Wilhelm Knappe; 29– Franz Wilcsewki;
30– Hugo Bruchhaus; 31– Paul Gerhardt Steglich; 32– Erich Müller;
33– Thusnelda Opitz; 34– Fre­derico Freise; 35– Max Willy Partzsch;
36– Hermann Gottlob Stroebel; 37– Johanna Kruger; 38– Herbert Ludewig; 39– Eugen Georg Wöhrle; 40– Marie Mallaun; 41– Erich Rahm;
42–Anna Weigs; 43– Richard Ernste; 44– Hermann Friedrich Wilhelm
Schwinghammer; 45– Werner Friedrich August Schwinghammer; 46–
Klara Katzenberger; 47– Maria Hartmann; 48– Maria Hartmann (sic); 49
– Robert Kohund; 50– Wilhelm Schmitt; 51– Ernst Wagner; 52– Guilhermina Rosner; 53– Carlos Ranger; 54– Elisabeth Schumann; 55– Betty
Kraft; 56– Lina Harbers; 57– Luise Lange; 58– Theodor Hanzen; 59–
Gustav Adolf Stahn; 60– Hermann August Kupper; 61– Arthur Dietzold;
62– Ernst Max Zwoch; 63– Wilhelm Hartmann; 64– Fran­cisco Strunk;
65– Rudolf Huhold; 66– Antonio Eduardo Kaiser; 67– Christian Conrad
Friedrich Busche; 68– Johann Heinrich Georg Carl Wending; 69– Curt
Hammer; 70– Gustav Derenga; 71– Jacob Anton Ehlers; 72– Carl Lange;
73– Kave Lotze; 74–Christian Luiz Schultz; 75– Ernsr Wilhelm Waldmüller; 76– Emilio Schurig; 77– Carl Eduard Luiz Huner; 78– Johann
August Meyling; 79– Hugo Kalb; 80– Friedrich Carl Richard Wendt;
81– Frederico Ernesto Schneider; 82– Marie Geisel; 83– Heinrich Johannes Hopker; 84– Max Curt Senf; 85– August Heitmüller; 86– Heinrich
Lindrob; 87– Hermann Christoph August Nagel; 88– Richard Reverdy;
89– Franz Julius Wilberg; 90– Max Janke; 91– Henrique Kronenberg;
92– Luiz Schultz; 93– Max Georg Hermann Nagel; 94– Wilfried Lois
Flack; 95– Carsten Heinrich August Carstens; 96– Carl Heinz Christian
August Pritzel; 97– Heirich Hermann Georg Gopliny; 98– Anton Sche-
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lhorn; 99– Richard Simon; 100– Naumann Johannes Reinhold; 101– Kurt
Gallenkamp; 102– Karl Schmidt; 103– Wilhelm Engelhard.
Com o passar dos anos, quase um século, o consultante depara-se
com nomes de locais e estabelecimentos que há muito troca­ram de nome
ou desapareceram. Assim, nas vias públicas: Ruas: da Aclamação, hoje
Gen. Pereira da Silva, da Boa Viagem, para An­tonio Parreiras, Cabral
para Dr. Tavares de Macedo, do Reconhe­cimento para avenida Sete de
Setembro, Vera Cruz para Cel. Moreira César e Vilagrã Cabrita para Dr.
Paulo Frumêncio. Travessas da Alameda para Jerônimo Dias, do Cipreste
para Magnólia Brasil, do Cunha para Padre Augusto Lamego, e, no Rio
de Janeiro: Dona Luísa para Cândido Mendes, da Prainha para do Acre,
dos Praze­res para Cândido de Oliveira e General Câmara, desaparecida e
incorporada à avenida Presidente Vargas. Estabelecimentos cita­dos: Fábrica Orion, de fósforos e vidros, na travessa Carlos Go­mes; Hotel Balneário, era São Francisco, na esquina da praia com a estrada da Cachoeira, e
Moinho Santa Cruz, na rua Vilagrã Ca­brita, na Ponta d´Areia.
A lista, preparada pela polícia fluminense, é evidentemente incompleta, não contendo todos os nomes de alemães dali. Nela estão apenas
catalogados os daqueles que sabiam desta exigência das autoridades e
aqueles que ainda não se encontravam no Brasil por ocasião da proclamação da República, quando a nova Constituição concedia a Grande Naturalização dos estrangeiros. Estes, certamente por comodismo, não se
abalaram para recusar (se assim quisessem) a nova cidadania, pois pelas
leis de seu país, continuavam seus súditos.
Na lista telefônica de 1917, encontram-se apenas 14 aparelhos instalados em residência ou casas de negócios de pessoas de nomes germânicos, incluindo os suíços30. Alguns desses nomes figuram no rol policial.
Examinado este, observa-se a presença de embarcadiços, muitos deles
30– Encontramos: A Kuhl, O. Bromberg, W. Engelhard, E. Urban, F. J. Wilberg, E. Geisel, A. Huberti, J. F. Kleinfelder, H. Kronenberg, M. Falck, H. Mutzenbecher, L. A. Precht, R. A. Riechers Jr. e G.Stellmann.
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
morando em hotel; eram tripulantes de navios apresados na Guanabara,
surpreendidos pela declaração de guerra.
Neste ano de 1917 as notícias vindas da Europa já não eram mais tão
boas como no início do conflito. Sabia-se de sucessivos e bem-sucedidos
raids aéreos contra os franceses, praticados por uma esquadrilha comandada por Richthofen, mas a Alemanha estava cercada por todos os lados
e nada chegava-lhe do exterior, causando escassez de produtos, principalmente de alimentos, inclusive para as tropas nas trincheiras. O Brasil,
nação aliada, vivia tranquilamente, mas não se podia dizer o mesmo dos
alemães que aqui moravam e que possuíam ainda parentes em sua pátria
distante.
Os jornais locais continuam insistindo que as novas taxas e os impostos criados pelo Governo (a que já nos referimos), incidindo sobre
exportação dos produtos da nascente pequena e média indústrias do município, já faziam sentir seus efeitos negativos. O leilão da falida Fábrica
de Tecidos São Joaquim, na rua Santa Clara, nº 35, aconteceu no dia 7 de
agosto daquele ano, e prevê-se algo parecido ocorrer a outras empresas
locais, e que não eram poucas.31
Somente quando os jornais publicaram os termos em que foi redigido o Tratado de Versailles, em 1919, os alemães daqui perceberam a
extensão do drama em seu país. Foram-se, não somente as vidas humanas
ceifadas, como as perdas na Europa, dividindo o seu território. As vultosas indenizações, programadas para décadas e o prejuízo causado pela
perda das colônias, adquiridas pacificamente a partir de 1884, graças à
habilidade diplomática de Bismarck, o que significava mais um choque
na economia já esgotada do país. Muito significavam as quatro africanas – Togo, Camerun, Sudoeste Africano Alemão e África Oriental Ale31– Havia fábricas em todos os bairros: de Anil; de Cerveja Aliança; de chumbo (de E. P.
Wilson & Cia.); de fumos; três fábricas de massas alimentícias; a Fábrica de Tintas Paris,
em S. Francisco; fábricas de fósforos; a Fábrica de Produtos Químicos, em São Domingos; de sabão, sabonetes e perfumarias; de Tecidos de Malha N. S. Auxiliadora; de Vidros
e Cristais Ideal e Luso-Brasileira; Fábrica de Alpercatas; Cia. Manufatora Fluminense
(tecidos); e a já mencionada Companhia Nacional de Explosivos Segurança, na estrada da
Cachoeira, todas elas ameaçadas.
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mã – que forneciam matérias-primas, como madeira, minérios, borracha,
óleos, além de alimentos (criação de rebanhos). As demais possessões,
na Oceania e na baía de Shantung (Kiao-tcheou), no Mar Amarelo, tinham importância como pontos de apoio para a navegação. Até mesmo
esta encontrava-se muito comprometida, devido à perda de sua frota. Era
inevitável um sentimento de indignação e de horror em todos os cidadãos
alemães, ainda que vivessem no exterior. A ilha de Helgoland, no Mar do
Norte, continuaria com a Alemanha, mas suas instalações militares foram
arrasadas.
Na Europa sabia-se que o fim da guerra não tardaria, apesar dos feitos da corajosa aviação alemã, em 1918 (Ernst Udet), mas em Niterói
alguns alemães nutriam ainda esperança de acontecer uma batalha decisiva, como fora a de Sédan há 37 anos, para reverter a situação. Quando
se soube que o Kaiser se exilara na Holanda, percebeu-se que estava tudo
perdido.
Surgiu em agosto a “gripe espanhola” a fazer suas vítimas, muitas
delas fatais, o que preocupava seriamente toda a população. Nos três cemitérios de Maruí abriam-se covas e valas comuns para sepultar os mortos que chegavam a qualquer momento, trazidos pelas carroças da Limpeza Urbana. Os cemitérios não estavam preparados para uma calamidade
dessas. Praças da Polícia Militar fiscalizavam os coveiros, para que não
interrompessem o trabalho. Havia voluntários e prisioneiros ocupados
com essa tarefa. Não havia mãos a medir. Afirmava-se que o “miasma”
causador da doença fora trazido à Guanabara pelo vapor inglês “Demerara”. Mas em 1919 diminuíram os casos tão de repente, como haviam
começado no ano anterior.
Passado o flagelo, já em 1920 a vida voltava à habitual. Foram criadas ou permaneceram em atividade também as firmas estrangeiras, dando
emprego e muitos, homens e mulheres. Devemos lembrar: a Cia. Fiat Lux
de fósforos de segurança, fundada em Niterói e que continuaria a crescer
ainda durante décadas; em Icaraí, na rua Mariz e Barros, 215, a Fábrica
Chaleira, de utensílios domésticos em alumínio, dos alemães Alberti &
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Stadler; a Fábrica de Tecidos Johann & Cia., na rua Dr. March nº 246, de
outro alemão, Paul Johann; a Fábrica de fósforos Orion e também de vidros, de Bellingrodt & Meyer, em Sant’Ana. Ainda: a gráfica de Zwoch &
Hammer, inicialmente instalada na rua Visc. do Rio Branco, nº 771 (que
lá produziu em 1925 o bonito “Álbum de Nictheroy”, de Júlio Pompeu de
Castro Albuquerque) e mais tarde mudada para a rua Visc. de Uruguay,
465 (fábrica de cartões fotográficos) e, outra gráfica, do alemão Kiel, com
oficina lito e tipográfica na rua Gen. Andrade Neves, 304. São provas eloquentes de que a Fênix renasceu das cinzas, também em Niterói.
Naquela época, quem pôde cuidou de construir suas casas em Icaraí
ou no Ingá; em geral “vilas”, isto é, construções elegantes e caprichadas,
nem sempre obedecendo a estilos definidos, mas ainda assim interessantes, algumas apalacetadas, destinadas a moradias permanentes ou apenas
para veraneio, com jardins à frente guarnecidos às vezes com repuxos, e
quintal, tudo bem cuidado, e sempre o mais próximo possível das praias.
Os terrenos ao longo da orla marítima foram quase imediatamente ocupados, sendo derrubados velhos galpões e antigas casas de pescadores.
A procura desses terrenos era principalmente por estrangeiros: ingleses,
dinamarqueses, alemães. Também as ruas centrais desses bairros, paralelas ou perpendiculares às praias, mostravam casas de construção recente,
situadas em extensas e boas chácaras. Houve verdadeira corrida imobiliária. Somente ainda permanecia ermo o bairro de São Francisco; aqui e ali
casas de pescadores, com canoas e redes estendidas nas areias em frente.
Havia, além, o estaleiro Max Janke e no extremo, o Hotel Balneário, e,
na mesma rua, mas longe dele, a já mencionada fábrica de explosivos.
Na avenida Quintino Bocaiúva estava a bela residência de M. C. Miller,
britânico, superintendente da The Leopoldina Railway e diretor da Cia.
Cantareira e Viação Fluminense. Em Jurujuba, na encosta do morro, o
vetusto Hospital Paula Cândido, que fora levantado para doentes de febre
amarela. Contornando o morro do Cavalão, na estrada Leopoldo Froés,
construíam-se mansões, não só devido à proximidade dos clubes náuticos, que sempre atraíam novos moradores, como, também, por causa da
exclusividade no uso das águas do mar, com possibilidade de construção
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de pontes de atracação para seus barcos. A boa e regular condução pelos
bondes elétricos, levava a essa preferência, também. Eram somente os
mais abastados que se podiam dar a esse luxo.
Também no bairro do Ingá houve a febre de novas construções. Lá
encontravam-se o palácio do Governo do Estado, conferindo status ao
lugar, e a igreja de N. S. das Dores, ambos na rua principal. Junto à praia,
na esquina da rua Paulo Alves o palacete do conde São Salvador de Matosinhos; este, de construção bem mais antiga, foi transformado em Icarahy
Palace Hotel.
Abalou a cidade, emocionalmente, a notícia de uma explosão na ilha
de Mocanguê, nas oficinas do Lloyd Brasileiro, no dia 20 de junho, morrendo três operários e causando ferimentos a 17.
No mês seguinte foi aberta na praia de Icaraí a Casa de Saúde desse
nome, no prédio 419. Concorreu para a tranquilidade dos moradores das
proximidades, porquanto até então o socorro mais próximo só existia no
centro da cidade. Seus três diretores eram médicos muito conceituados e
experientes. Os partos naquela época eram ainda feitos nas residências,
por médicos e sobretudo parteiras, e só excepcionalmente recorria-se à
internação em hospital.
Em 1926 veio clinicar na cidade uma médica alemã, diplomada em
Göttingen. A Dra. Gertrud Boeddener, que alterou bastante este hábito:
abriu uma “Casa Maternal”, onde realizava os partos e atendia também
em clínica geral; seus clientes eram quase exclusivamente alemães e ingleses, fazendo o tratamento pré-natal, pouco habitual naquele tempo.
Iniciou seus trabalhos na rua Dr. Nilo Peçanha, 126, mas logo mudou-se
para rua José Bonifácio, 204. Muito conceituada, manteve boa clientela
durante décadas.
Entre os prédios levantados em Icaraí, destacava-se dos demais o do
Sr. Eugen Urban, alemão de Königsberg (Prússia Oriental). Localizavase na esquina da praia com a rua Miguel de Frias, defronte ao Jardim de
Icaraí (mais tarde praça Jahu). Urban construíra seu palacete em 1916, e
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dele podia ser admirada toda a extensão da praia e grande parte da enseada de Jurujuba.
Haviam começado em 1922, no Rio de Janeiro, durante a Exposição do Centenário da Independência, as transmissões radiofônicas, e não
demorou muito para começar a procura de aparelhos de rádio pela população, mas somente anos depois foi possível captar também transmissões
em ondas curtas, de muito maior alcance. Com alguma sorte e bom tempo,
à noite, pegavam-se estações europeias. Os estrangeiros cuidaram logo de
adquirir receptores, geralmente de fabricação americana, para sintonizarem as transmissões de seus países de origem. As marcas Telefunken,
Mende e Blaupunkt gozavam da preferência dos alemães.
Foi, também, em 1922/23 que na Alemanha já avançava a inflação e
em 1923 foi criado pelo povo o termo “bimarco”, que equivalia a 1 bilhão
(1 Milliarde) de marcos antigos. Os ordenados sofriam variação diária
e em algumas casas comerciais os empregados eram remunerados duas
vezes ao dia, antes do almoço e no fim da jornada.
Carimbo da Escola Alemã Nictheroy
Em 1925, em especial a colônia teuta, recebeu com agrado a notícia
da abertura de uma escola, situada na rua Mariz e Barros, nº 97, cujo ensino era quase todo em alemão. Começou com as duas primeiras séries apenas e ano após ano, de acordo com o avanço dos alunos, ia acrescentando
mais uma classe, chegando em 1928 a ensinar todo o curso primário,
observando o currículo da já antiga congênere do Rio de Janeiro, para que
seus alunos lá continuassem seu aprendizado sem grande diferença. Sua
diretora era brasileira, a professora Edith Wehrs; os alunos, de descendência alemã, inglesa, japonesa mas também muitos alunos luso-brasileiros
frequentavam-na, para aprenderem essa língua tão difícil.32 Até seu fecha32– Havia, é preciso lembrar, a Nictheroy British School, na rua Miguel de Frias, que
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mento, no final de 1942, absteve-se ostensivamente de aderir à nova política da Alemanha, e daí a sua boa procura. Este aspecto foi sempre muito
importante, principalmente para as famílias recém-chegadas33 e ainda não
ambientadas aos usos e costumes do país. Embora fossem os alemães
protestantes em sua maioria, não possuía a cidade uma igreja luterana;
os cultos eram realizados na Igreja Presbiteriana (na rua Andrade Neves,
134, hoje desaparecida por demolição, para a abertura de uma rua).
Em outubro de 1929 sobreveio a quebra da bolsa de Nova York, e
muitos tiveram grandes prejuízos. Eugen Urban34 teve de vender em 1932
seu palacete de Icaraí. Nele foi instalado, naquele mesmo ano, o Cassino
Icaraí. Em 1936 esse prédio foi demolido e construído o novo Hotel Balneário Cassino Icaraí. Com a proibição do jogo, anos depois, tornou-se
deficitário como hotel, cerrando suas portas (até que nele foi alojada a
reitoria da Universidade Federal Fluminense). A quebra da bolsa novaiorquina atingiu, evidentemente, a muitos outros. Em Icaraí, por exemplo,
alguns perderam suas magníficas residências à beira-mar, e muitas delas
passaram a abrigar pensões.
A última década que nos propusemos relatar neste trabalho decorreu
com muitas novidades, boas e más, para Niterói, para o Brasil e para o
mundo; aqui só serão narrados alguns desses acontecimentos. Um deles
enlutou especialmente a comunidade alemã de Niterói. Foi o trágico fim
de uma concidadã, a Sra. K., em Icaraí. Fazia calor naquela noite e o casal
dormia com as janelas do quarto abertas. Subitamente o marido despertou e percebeu na penumbra um vulto suspeito passar por sua cama. Não
hesitou e puxou o revólver de sob o seu travesseiro, e atirou. Atirou na
própria esposa, que caiu morta. Não se sabe do fim que levou o uxoricida,
mas ainda hoje é lembrado pelos moradores mais antigos, esse lamentável episódio.
preparava a quase totalidade das crianças inglesas.
33– Em meados da década de 30 alguns já pressentiam um futuro negro para seu país.
34– Grande comerciante exportador do nosso café. O mil-réis foi desvalorizado e queimadas montanhas de nosso principal produto de exportação daquela época. A firma Campos Neiva, em Niterói, fez arder toneladas, verdadeiras montanhas de grãos de café, dias
e noites.
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
Para júbilo dos alemães em geral e espanto da população, foi, em
1930, iniciado o serviço de transportes de passageiros e de correio dos
zepelins entre a Alemanha e a América do Sul. Constituiu um acontecimento vê-lo atravessar nossos céus silenciosamente e depois desaparecer
no horizonte longínquo. Pousava no então Distrito Federal, no Campo
dos Afonsos. Os adultos olhavam e comentavam animadamente sua passagem, mas as crianças no colégio afirmavam categoricamente que a aeronave passara por cima de sua casa. Vinha a cada quinze dias quando o
tráfego foi estabelecido regularmente e então as pessoas mais abastadas
cuidavam de adquirir bilhetes para as viagens, que duravam cerca de 4
dias35 . Atravessado o Atlântico, o primeiro pouso era em Recife. Assim
foi até 1937, quando uma dessas aeronaves, porém muito maior, o “Hindenburg”, que também já se mostrara por aqui no ano anterior, quando provocara novo espanto devido às grandes dimensões, explodiu em
Lakehurst, nos Estados Unidos, causando 30 mortes. Fora atingido por
um raio durante uma tempestade que caía no local. É que estes zepelins
traziam hidrogênio em seu bojo, altamente inflamável. Esse gás, mais
leve do que o ar, deveria ter sido banido para estes fins e substituído pelo
gás hélio, um pouco mais denso. As outras aeronaves também só usavam
hidrogênio e nunca sofreram acidentes.36
35– O Dr. Hugo Eckener (op. cit. p. 342/343) relata curioso episódio passado em 1933,
por ocasião de uma das viagens do Graf Zeppelin, quando ia do Rio para o Recife. O
Presidente Getúlio Vargas, que alguns meses atrás sofrera um acidente automobilístico,
viajava para descansar a bordo de um vapor do Lloyd Brasileiro, de Vitória para Salvador.
Os da aeronave sabiam dessa viagem e quando ela alcançou o navio, já em águas oceânicas, decidiu o seu comandante homenagear o Chefe da Nação e fez descer por uma corda
um embrulho contendo duas garrafas de vinho do Reno, um ramalhete de rosas, além de
mensagem gratulatória, saudando Vargas e desejando-lhe pronto restabelecimento e boa
viagem.
36– O gás butano, então usado como combustível nos zepelins, ficou sem uso no hangar
no Campo dos Afonsos, após o encerramento desses voos. Foi, em 1939/40 utilizado
novamente em fogões, no emprego doméstico, depois de fundada a Cia. Ultragaz, que o
adquiriu.
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Carlos Wehrs
O Graf Zeppelin, visto de Niterói
Outro meio de transporte que causava muita satisfação quando atracava na praça Mauá, no Rio de Janeiro, era o navio Cap Arcona. Era
procurado e visitado – naqueles tempos com toda a facilidade – por quem
quisesse deliciar-se a bordo com a saborosa cerveja alemã de barril. Pertencia à Hamburg-Südamerikanische Dampfschifffahrts-Gesellschaft
(conhecida mais pela abreviatura “Hamburg-Süd”). Pela sua velocidade
e pelo luxo de suas instalações era para os alemães o meio de transporte
marítimo mais almejado.
Quando em 1933 Hitler tomou o poder, muitos nisso enxergaram o
fim daquele longo período de incertezas que se instalara com a República
de Weimar e nutriam a esperança de longo tempo de paz e progresso.
O navio Cap Arcona, da empresa Hamburg-Süd.
Outros, observando as ações governamentais dos meses seguintes,
acautelaram-se, enquanto outros ainda procuraram deixar o país. De fato
ocorreu um aumento do número de imigrantes no nosso, até que, anos
mais tarde, o governo de Vargas opôs obstáculos a determinados imigrantes. Mas os que aqui já haviam chegado, puderam contar com bom acolhimento e logo começaram a procurar um meio de sustento. De sua pátria
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
vinham notícias auspiciosas a respeito das mudanças que o novo regime
oferecia. As festas cívicas, filmadas e fotografadas por Leni Riefensthal,
davam mostras do que acontecia por lá. O Ministério da Propaganda funcionava bem. Vinham somente boas notícias, querendo demonstrar que o
novo governo prometia. Os filmes da UFA, aqui passados nos cinemas,
entusiasmavam a qualquer um. O diário alemão, impresso no Rio de Janeiro, através da agência telegráfica Transocean, confirmava, em parte,
as notícias alvissareiras. A propaganda era tão eficiente que muito jovem
ansiava por pertencer à Juventude Hitlerista. Em Niterói, numa bela manhã os moradores de Icaraí viram desfraldada a bandeira preta, branca
e vermelha com a cruz gamada, oscilando ao vento, içada no mastro na
casa da esquina da praia com a rua Presidente Backer (1936). Não era um
consulado ou um vice-consulado, como a princípio se pensava, mas um
centro da tal “Juventude” a atrair prosélitos para sua causa. Curiosamente, o A. destas linhas encontrou num sebo, no Rio de Janeiro, muitos anos
mais tarde, um livro sobre poesia grega antiga, com a marca do carimbo
dessa instituição, que estampamos acima. Uma curiosidade.
NSDAP Seção Nictheroy
Na Alemanha as perseguições políticas já haviam começado e certas
agremiações no exterior contornaram a princípio a desagradável situação. No Rio sempre viveram em harmonia os judeus alemães e os não
judeus, até que ocorreram fatos tão graves que a situação aqui também
se modificou. Até mesmo na maçonaria refletiu-se na “Loja Concordia”
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(Eintracht), do Grande Oriente do Brasil. Fora ela reerguida, em 1922,
por C.Carlos J. Wehrs (que a reinstalou em 1925), na qualidade de 1º
Venerável, no Rio de Janeiro. Sua língua oficial era a alemã, e funcionava
na rua General Câmara. Os membros da diretoria, muitos de Niterói, até
1937 foram Richard Stern, Friedrich Giese, Franz Krauss, Friedrich Kohler, Joseph Lauber, Dr. Paul Zander, Ernst Schulz, Bruno Vassel, Johann
Anton Huberti, Hermann Wehrs e Otto Schuette Filho. Em meados de
1937 a “Concordia” teve paralisados seus trabalhos, com medo do crescente hitlerismo e do remanescente integralismo.
Ainda em 1937 o presidente Getúlio Vargas, no poder desde 1930,
articulou o golpe de Estado de 10 de novenbro. De imediato decretou
o fechamento das duas Casas do Congresso e a dissolução da Aliança
Nacional Libertadora e da Ação Integralista Brasileira, e uma nova Constituição Federal foi outorgada. Estabelecia-se um Estado autoritário com
total centralização do poder e supressão da autonomia dos Estados, os
quais, à exceção de Minas Gerais, tiveram seus governadores destituídos
e substituídos por interventores. Ao mesmo tempo foram fechadas as Assembleias Legislativas e até as Câmaras Municipais. Mudara o Brasil, de
uma democracia para uma ditadura.
No Yacht Club Brasileiro, em 1938, foi desenvolvido novo modelo
de barco a vela, lançado com grande sucesso e o denominaram “Guanabara”; era uma novidade especialmente desenhada para a baía, e daí o
nome. O renome do clube crescia e com ele o número de sócios, brasileiros e estrangeiros, entre eles muito alemães. (Isso fez com que o Governo
decretasse a intervenção da entidade, com afastamento de sua diretoria,
colocando um interventor, assim que nosso país veio a participar da Segunda Guerra Mundial).
Mas, já antes disso, em 1939, nas casas de famílias inglesas não mais
se convidavam alemães – e vice-versa – para as sempre havidas partidas
de bridge, jogadas outrora na maior harmonia.
Era o fim de uma época...
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
1920 – 1939. Nestas duas décadas a comunidade teuta niteroiense
teve um comportamento bastante diferente daquele que manteve durante
muitos anos. O resultado da guerra e a gripe espanhola que assolou igualmente a Europa, e com aguda escassez de víveres e inflação desenfreada
que logo se instalou nos países derrotados mostraram que em outras partes do mundo, o Brasil, por exemplo, era mais seguro para se viver. Além
disso, era o Brasil um país de futuro. “Brasilien, ein Land der Zukunft”,
título com que, desde 1911, o cônsul Heinrich Schüler pôs no mercado
europeu uma obra da qual numerosas novas edições foram tiradas, isto
é, 30 anos antes de surgir no Brasil o livro quase homônimo e bajulador
“Brasil, país do futuro” , de Stefan Zweig. O livro de Schüler, hoje em
dia quase totalmente esquecido pelo público ledor (a 4º edição, de 1919,
que temos em mão, com 232 páginas), é baseado em dados oficiais, estatísticas da crescente produção nacional e com ilustrações várias, de modo
que, divulgado no Velho Mundo e escrito no idioma alemão, na época
deve ter produzido notável efeito de divulgação dos aspectos positivos de
nosso país, acenando com suas enormes possibilidades de progresso.
Não havia ainda restrições à vinda de imigrantes, e assim chegaram
à Guanabara e a outros portos brasileiros muitos alemães. Niterói também
os recebeu, aos poucos e em número menor do que outras cidades mais
importantes. Alguns anos depois, já novo motivo os fez arribar ao Brasil:
o advento do nacional-socialismo. Niterói não podia oferecer trabalho
a todos que acolheu, mormente ignorando o idioma português, mas as
firmas estrangeiras, sediadas na Capital Federal, os receberam em grande
parte; outros foram trabalhar em fábricas e em oficinas. Dest’arte, devido
a motivos diversos, moravam em Niterói muitas famílias recém-vindas,
enquanto seus chefes ganhavam o sustento no Rio de Janeiro.
Com o progressivo aprendizado de nosso idioma, foram-se, todos
eles, aproximando dos brasileiros. Suas crianças, frequentando escolas
brasileiras – o que em décadas anteriores sempre foi evitado –, iniciaram
o processo de sua absorção pela nação acolhedora e cordial. Foi-se desfazendo o isolamento através de amizade e de vínculos econômicos. Pouco
mais tarde já sentiram-se presos ao solo brasileiro. Essas descendentes
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facilmente esqueceram a língua materna, por ser bem mais difícil do que
a portuguesa, ao menos para expressar-se no seu dia a dia. E foi isso o que
aconteceu à maioria. Muitos adultos que conhecemos, de pele e olhos claros, cabelos louros implantados em crânios dolicocéfalos e portando sobrenome estrangeiro, quando inquiridos, confessam que desaprenderam
quase totalmente o idioma que usavam com seus pais, quando crianças.
O conhecimento da língua perdera-se, e, com ela, o vínculo mencionado
no início deste trabalho. O processo de assimilação consuma-se com o
casamento com pessoa de origem luso-brasileira.
—
Fornecemos ao leitor alguns dos sobrenomes, recolhidos durante os
dois últimos decênios, entre os quais se encontram os de profissionais os
mais diversos, todos eles úteis ao desenvolvimento de nosso país: professores, industriais, operários, práticos do porto, corretores da bolsa, marceneiros, aviadores, dentistas, mecânicos, pintores, diplomatas, médicos,
bancários, fotógrafos, banqueiros, gráficos, construtores etc.etc.. Sabidamente incompleta, a lista de nomes é, disposta em ordem alfabética37:
37– Alberti; Andrä; Aumüller; Avé-Lallemant; Backheuser; Baltz; Bax; Bekenn; Beling;
Bellingrodt; Biekarck; Boeddener; Boje; Brandt; Bremer; Bromberg; Brösigke; Buchheister; v. Clausbruch; Cyranka; Dethloff; Dierderichsen; Dimetz; Driendl; Dunker; Ebeling; Eckhardt; Edert; Eichler; Eisenlohr; Eisler; Elbert; Engelbart; Erb; Evers; Falck;
Fang; Finkennauer; Fischer; Frank; Frickmann; Friedenberg; Friedmann; Frohmüller;
Gaertner; Gaering; Gehrig; Geldner; Gerstner; Gildemeister; Grasmück; Grasser; Gutsch;
Gutschwager; Haasis; Hacker; Hagen; Hahn; Halfeld; Hammer; Hartenstein; Hartmann;
Hees; Heilborn; Heisler; Helmold; Hermsdorff; Heuer; Hillefeld; Hodapp; Hofstetter;
Hölck; Huberti; Huebel; Hulme; Iden; Janke; Janzen; Johann; Kaempfe; Kattenbach; Kersanach; Kiel; Kipke; Kirchner; Kirschner; Kleinsorgen; Knauss; Koch; Koehler; Kohler;
Krauss; Kroeschel; Lang; Langheinrich; Larsen; Leipziger; Leuthold; Leyen; Licht; Lorenzen; Ludwig; Mack; Mahlmann; Mann; Mayer; Meiss; Meister; Meisterhofer; Metz;
Mohrstedt; Moser; Müller; Mutzenbecher; Naumann; Neumann; Ochsenbein; Odebrecht; Ollendorff; Panzenbock; Penner; Pfeffer; Pockstaller; Pohl; Precht; Rahm; Raudies;
Reichert; Reverdy; Roesler; Ruckgaber; Ruschmann; Sautter; Scabell; Schau; Scheliga;
Schieck; Schilling; Schlosser; Schmid; Schmidt; Schmitt; Schnabl; Schnapp; Schneider;
Schoeneberg; Schott; Schreiner; Schröder; Schuback; Schuette; Schüler; Schulz; Schulze;
Schwab; Schwenn; Schwinn; Senfft; Sparmann; Stadler; Stange; Stark; Stein; Steinthal;
Stöckli; Stummel; Sybertz; v. Sydow; Teschenhausen; Tiedemann; Tiefenthaler; Thiele;
Thomas; Urban; Vassel; Vogel; Voit; Volkmar; Vorsatz; Voss; Wallbrecht; Wallenstein;
Weettar; Wehrs; Weichert; Werner; Widmann-Laemmert; Wiedemann;Willner; Winter;
Wöhrle; Zuber; Zwoch.
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125 anos de presença germânica em Niterói 1814-1939
CRÉDITOS a:
Juarez M. de Lucena(†)
Rachel Mann (†)
Armindo Correia (†)
Meridan Towersey (Niterói)
Karlheinz Weichert (Niterói)
Charles J. Dunlop (†)
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Texto apresentado em novembro /2009. Aprovado para publicação
em março /2010.
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Pinheiro Machado, o Morro da Graça e a política carioca
Pinheiro Machado, o Morro da Graça
e a política carioca
PiNHEIRO MACHADO, THE MORRO DA GRAÇA
AND THE RIO DE JANEIRO´S POLITICS
Surama Conde Sá Pinto 1
Resumo:
Este artigo tem como proposta apresentar resultados parciais da pesquisa que visa a analisar
as relações entre Pinheiro Machado, o Morro
da Graça, sua residência na cidade do Rio, e a
política carioca nas primeiras décadas do século XX. Tomando como base documental os
Anais da Câmara e do Senado Federal, o que
se busca mostrar é que Pinheiro Machado e o
pinheirismo foram fator de dissensão e um elemento diferenciador entre os membros das elites
políticas cariocas.
Palavras-chave: Pinheiro Machado – Política
carioca – Primeira República
Abstract:
This article presents partial results of a research that aimes to exam the relationship between
Pinheiro Machado, Morro da Graça, his adress
in Rio, and Rio de Janeiro’s politics in the early
decades of the XX’ century. Based on the proceedings using the Annals of the Federal Legislative Houses, we want to show that Pinheiro Machado and the pinheirismo were a divisive factor
and differentiating element between members of
Rio de Janeiro’s political elites.
Keywords: Pinheiro Machado – Rio de Janeiro’s
politics – First Republic
O modelo de República vitorioso, implantado no Brasil no final do
século XIX, abriu espaço para a projeção nacional de figuras e locais
que acabaram se tornando parte da cultura política da época.2 Pinheiro
Machado e a sua residência – um palacete por ele adquirido, em 1897,
no Morro da Graça, localizado no bairro carioca de Laranjeiras –, para
onde afluíam interessados em acordos, alianças e/ou benesses, podem
ser tomados aqui como exemplos nesse sentido. A ação política do velho
general gaúcho, que chegou a ganhar uma marcha carnavalesca – Bico
1 – Professora Adjunta do Programa de Mestrado em História da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e do Departamento de História e Economia (DHE) do
Instituto Multidisciplinar (IM/Nova Iguaçu/ UFRRJ). e-mail: [email protected]
2 – A utilização aqui da noção de cultura política segue a orientação proposta por Serge
Berstein. De acordo com esse autor, as culturas políticas são sistemas de representações
fundados sobre determinadas visões de mundo, sobre leituras do passado histórico, sobre
escolhas de sistemas institucionais e de uma sociedade considerada ideal de acordo com
modelos retidos. Seus canais de expressão são discursos, símbolos e ritos a partir dos
quais são evocadas sem que outras mediações sejam necessárias. Ver do autor BERSTEIN, Serge. “L’historien et la culture politique”. In: Vingtième Siècle, Revue d’histoire,
n.º 35, juil./sep.1992, p. 67-77.
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Surama Conde Sá Pinto
na Chaleira –, consagrando o uso dos termos chaleira e chaleirar como
sinônimos de bajulador e bajular, não se limitou, no entanto, à arena nacional. A política local do Rio de Janeiro, capital da República e único
município com representação no Congresso, composta por 10 deputados
e 3 senadores, também foi espaço de sua atuação, embora os historiadores
lhe tenham dispensado, até o momento, pouca atenção.
Iaiá / me deixa subir esta ladeira / Eu sou do bloco / Mas não pego
na chaleira / Na casa do Seu Tomaz / Quem grita / é que manda mais
/ Que vem de lá / Bela Iaiá / Ó abre alas / Que eu quero passar / Sou
Democrata / Águia de Prata / Vem cá mulata / Que me faz chorar
(No bico da chaleira - Costa Júnior) 3
Objetivando contribuir para o preenchimento dessa lacuna, o texto
a seguir tem como proposta apresentar resultados parciais da pesquisa4
voltada para a análise das relações entre Pinheiro Machado, o Morro da
Graça e a política carioca nas primeiras décadas do século XX. O período
recortado corresponde à fase de maior projeção de Pinheiro Machado no
cenário político nacional e no campo político da cidade.5 Tomando como
base a documentação legislativa, ou seja, os Anais da Câmara e do Senado Federal, o que se busca mostrar é que Pinheiro Machado e o pinheirismo, aqui entendido enquanto um conjunto de práticas políticas ligado
ao senador gaúcho e seu grupo, foram fator de dissensão e um elemento
diferenciador entre os membros das elites políticas cariocas.6
3 – Polca de 1909, de autoria de Costa Júnior (Juca Storoni). Ver: SEVERIANO, Jairo e
MELLO, Zuza Homem de. A Canção no Tempo. São Paulo: Editora 34, 1997.
4 – A pesquisa em questão contou com o financiamento da FUNADESPE e da FAPERJ
através do Projeto Jovens Talentos, cujo objetivo é introduzir alunos da rede pública no
universo da pesquisa acadêmica. Fizeram parte da equipe de pesquisadores: Ana Paula
Araújo, Géssica Penedo e Ana Luísa, alunas do ensino médio da rede pública da cidade de
Vassouras.
5 – Por campo político entendemos um campo de lutas concorrenciais no qual compromissos e alianças não se apresentam de forma estática. Uma das vantagens do seu uso é
que esse conceito nos permite analisar não só os processos de formação de alianças entre
diferentes atores, mas também a movimentação desses pactos, ou seja, faculta se trabalhar
a relação entre Pinheiro Machado e membros das elites políticas cariocas, englobando
embates, enfrentamentos e cooptações. Ver BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 184.
6 – Por elites políticas cariocas compreendemos deputados federais e senadores que,
independente de terem ou não nascido na cidade, fizeram parte da representação política
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Pinheiro Machado, o Morro da Graça e a política carioca
—
Até fins da década de 1980, período em que se observa um sensível
crescimento na produção de estudos sobre a cidade do Rio de Janeiro,7 a
história política carioca não era objeto de maior interesse por parte dos
pesquisadores.8 Dois fatores parecem estar diretamente relacionados a
essa tendência. Um deles é o processo de descrédito experimentado pela
história política, produto de uma série de críticas que a ela foram dirigidas
por historiadores identificados com paradigmas dominantes na historiografia até os anos oitenta do século XX. Esse movimento, embora não tenha impedido que na produção acadêmica dos Centros de Pós-graduação
sediados no país o político fosse mantido como principal referência em
seu discurso, fez com que novos objetos e abordagens, sobretudo aquelas
que privilegiavam o econômico e o social bem como o resgate das massas, ganhassem maior espaço, transferindo muitas vezes para a sociologia
e/ou para a ciência política o estudo de temáticas como elites e Estado.9
O outro fator recorrente é a ampla difusão nos meios acadêmico, jornalístico e político da ideia da nacionalização da política carioca. De acordo
do Distrito Federal na Primeira República no período aqui enfocado.
7 – Para um inventário desta produção, ver as resenhas de: LOBO, Eulália M. L. “Historiografia do Rio de Janeiro”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 15, n.º 30,
1995, p. 45-62; FALCON, Francisco J. C. “O Rio de Janeiro como objeto historiográfico”
In: Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 15, n.º 30, 1995, p. 63-75; FERREIRA, Marieta de Moraes. “O Rio de Janeiro Contemporâneo: Historiografia e Fontes 1930
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recente da produção intelectual sobre esta cidade).” In: Revista do Rio de Janeiro, Niterói,
UFF, n.2, 1986.
8 – Ver FERREIRA, M. de M. op. cit., p.63.
9 – Sobre esta discussão ver JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco & D’ALÉSSIO, Márcia Mansur. “A esfera do político na produção acadêmica dos programas de Pós-graduação (1985-1994).” In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 9, n.º 17, 1996, p.
123-160. Para o debate em torno dos fatores responsáveis pelo descrédito experimentado
pela história política e seus desdobramentos na produção historiográfica nas últimas décadas ver: REMOND, René. Por uma História Política. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996;
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Peter. “Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro.” In: A Escrita da História:
novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 7-37.
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Surama Conde Sá Pinto
com essa ideia, por sediar a capital do país e não gozar efetivamente de
autonomia administrativa, os políticos cariocas teriam sido absorvidos
pelo debate político nacional e, consequentemente, a cidade teria encontrado sérias dificuldades em organizar-se enquanto sujeito político. Como
desdobramento direto desse quadro, a história política carioca durante
muito tempo foi confundida e fundida com a história política nacional.
É no bojo dessa tendência que pode ser inserida a produção de um
grupo de pesquisadores que, em seus trabalhos, abordando temáticas variadas, sublinharam a forte interferência do Governo Federal na dinâmica
política do Distrito Federal ao longo da Primeira República.10
Mas se nos anos 80 a política carioca não foi priorizada na produção
acadêmica, na década de noventa assistiu-se a uma sensível modificação
nesse quadro.
Nos centros de Pós-graduação do Estado do Rio começaram a ser
produzidas teses e dissertações afinadas com a proposta de resgatar trajetória política da cidade do Rio.11 Este maior interesse não é fortuito. Está
relacionado a uma convergência de fatores de ordem interna e externa
10– Ver CARVALHO, J. Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República
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11– FREIRE, Américo. Uma Capital para a República: Poder federal e forças políticas
locais no Rio de Janeiro na virada para o século XX. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2000;
MOTTA, Marly Silva da. O Rio de Janeiro continua sendo ... De cidade-capital a Estado
da Guanabara. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1997. (Tese de Doutorado);
ALMEIDA, Monica Piccolo. O Rio de Janeiro como Hospedaria do Poder Central. Luta
Autonomista: elite política e identidade carioca (1956-1960). Rio de Janeiro: Universidade Janeiro, 1997. (Dissertação de Mestrado); SARMENTO, Carlos Eduardo Barbosa.
Autonomia e participação: O partido Autonomista do Distrito Federal e o campo político
carioca (1933-1937). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996. (Dissertação de Mestrado); FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Rio de Janeiro: uma
cidade na história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
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R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):229-244, abr./jun. 2010
Pinheiro Machado, o Morro da Graça e a política carioca
à própria pesquisa histórica. No que diz respeito aos fatores externos,
particularmente, o aniversário de 25 anos da fusão do antigo Estado da
Guanabara com o Estado do Rio e os debates surgidos na ocasião estimularam pesquisadores a repensar a experiência política da cidade do Rio
de Janeiro.
De uma maneira geral, esta produção, apesar de privilegiar, em termos de corte cronológico, diferentes períodos do regime republicano,
apresenta um conjunto de características comuns. O uso da abordagem
da cultura política e a forte influência no plano teórico da obra de Pierre
Bourdieu são algumas delas.12 A principal, contudo, é o empenho em relativizar a ideia da nacionalização da política carioca.
Em relação a este aspecto, sem deixar de reconhecer que a nacionalização foi um fenômeno marcante na vida política da cidade, e que ao
longo do tempo em que o Rio sediou a capital do país o governo federal
sempre atuou no sentido de neutralizar as reivindicações políticas locais,
o que estes novos estudos têm descortinado é o outro lado da moeda, ou
seja, as estratégias acionadas pelas elites políticas cariocas em diferentes
conjunturas para atuarem nesse campo político partilhado de forma desigual.
Em meio a estes trabalhos merece destaque o livro Uma capital para
a República: poder federal e forças locais no campo político carioca,
único em termos de corte cronológico localizado na Primeira República.
Nele a preocupação central do autor é examinar o processo de construção
política da capital republicana no período considerado definidor de seus
traços fundamentais, ou seja, entre 1889 e 1906.
Utilizando como base documental os anais da Câmara e do Senado
e a imprensa, a Américo Freire, autor do referido estudo, defende que o
modelo político de capital vitorioso, gestado num longo processo, consistiu em um conjunto institucional de difícil manejo com a presença de
12– Esta influência se manifesta no uso de conceitos formulados pelo sociólogo francês
como poder simbólico, capital político, campo político, estratégia, entre outros. Ver do
autor: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Op. cit.
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Surama Conde Sá Pinto
órgãos de diferentes níveis (federal e municipal) e sem um claro centro
de gravidade.
Apesar da grande contribuição que o trabalho de Freire e os estudos
anteriormente realizados representam no debates sobre a dinâmica política
carioca na Primeira República, uma série de questões relativas à ação dos
representantes cariocas no Congresso, ao funcionamento da política do
Distrito Federal e ao papel nela desempenhado por diferentes instituições
durante muito tempo permaneceram sem ser tratadas. Num estudo realizado sobre as elites políticas e o jogo de poder na cidade do Rio de Janeiro entre 1909-1922, tese de doutorado defendida na Universidade Federal
do Rio de Janeiro,13 tive a oportunidade de contribuir para este debate, ao
discutir o perfil dos membros das elites políticas cariocas,14 o papel do
prefeito no jogo político local,15 a dinâmica partidária da cidade,16 a atuação do Senado,17 o comportamento da bancada carioca no Congresso18 e a
13– PINTO, Surama Conde Sá. Elites Políticas e o Jogo de Poder na Cidade do Rio de
Janeiro (1909-1922). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. (Tese
de Doutorado)
14– No capítulo Os Profissionais da Política na Capital Federal, através da utilização
do método prosopográfico, é analisado o perfil de prefeitos, deputados e senadores que
fizeram parte da representação do Distrito Federal entre 1909 e 1922. A ideia central é
mostrar que apesar da grande presença de elementos não naturais da cidade este grupo
passou por um processo de socialização, desenvolvendo redes de relações e se imiscuindo
nos assuntos políticos do município. Num segundo momento, com base nos dados apresentados, são discutidos os elementos básicos para a construção de uma carreira política
na capital da República no período.
15– No quinto capítulo, através de uma análise comparativa das gestões de Paulo de
Frontin e de Carlos Sampaio, são discutidas e revistas uma série de questões relativas ao
papel dos prefeitos do Distrito Federal no jogo político carioca.
16– No capítulo As siglas da Política Carioca, através da recuperação das experiências
do Partido Republicano do Distrito Federal (PRDF), da Aliança Republicana (AR) e do
partido homônimo ao PRDF, criado em 1918, são discutidos o papel e a importância destas organizações no ordenamento do campo político carioca.
17– No terceiro capítulo, onde é feita a recuperação da ação da chamada Câmara Alta
nos litígios envolvendo a Prefeitura municipal e o Conselho de Intendência, com base
no método quantitativo, são analisados todos os pareceres elaborados pelas comissões
responsáveis pelo julgamento dos vetos dos prefeitos, bem como as votações finais desses
pareceres entre 1909-1922.
18– Através do mapeamento da ação do grupo (numa pesquisa que levou em conta todos
os pronunciamentos realizados entre 1909 e 1922) são analisados os eixos orientadores
da ação de deputados e senadores da representação carioca, questões que suscitavam con-
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relação estabelecida entre os representantes da cidade, governo federal e
os prefeitos no período mencionado.19 Abordar estas questões foi o caminho utilizado para testar alguns enunciados presentes nas análises de diversos autores que, na falta de pesquisas empiricamente fundamentadas,
acabaram se tornando lugar-comum. Referimo-nos às ideias da origem
heterogênea dos membros das elites políticas cariocas, da debilidade das
instituições partidárias da cidade, do Senado como órgão supervisor das
instituições e/ou árbitro na política carioca, da falta de coesão da bancada
carioca no Congresso, em função do pressuposto de que essas elites eram
em grande medida absorvidas pelo debate político nacional, e da figura do
prefeito como um mero administrador ou interventor do governo federal
no campo político da cidade.20
Por outro lado, em função de razões de natureza variada, entre as
quais se destacam recursos disponíveis (inclusive de tempo), a pesquisa
não pode (nem tinha a pretensão de) dar conta de todas as questões que
em geral são levantadas quando a temática é política carioca na Primeira
República. É o caso, para citar um exemplo, da questão relativa à influência e atuação de Pinheiro Machado sobre os rumos da política do Distrito
Federal.
A ação de Pinheiro Machado no cenário político nacional tem sido,
nos últimos anos, objeto de interessantes análises.21 O mesmo não se pode
senso, temáticas que provocavam dissenso, bem como o tipo de relação estabelecida com
representantes do governo federal.
19– A escolha na tese como balizas cronológicas o período compreendido entre 1909 e
1922 levou em conta não só a carência de estudos para este período como o fato de tratarse de uma conjuntura importante não só para a política nacional como para a política na
cidade, já que compreende a Campanha Civilista e a Reação Republicana, movimentos
que vão mobilizar grupamentos políticos cariocas e nos quais a ideia da autonomia política do Distrito vai emergir nos debates.
20– Para discutir e testar estes enunciados foi realizada uma ampla pesquisa a partir de
fontes de natureza variada, incluindo Anais das Casas Legislativas (Câmara dos Deputados e Senado), arquivos privados (Paulo de Frontin, Carlos Sampaio, Amaro Cavalcanti,
Rui Barbosa, etc.) arquivos de instituições (Clube de Engenharia, Instituto dos Advogados
Brasileiros, Centro Industrial Brasileiro, etc...), imprensa e biografias individuais e coletivas, entre outros.
21– Ver ENDERS, Armelle. Pouvoirs et Federalisme au Bresil (1889-1930). Paris: Université de Paris-Sorbonne, 1993. (Tese de Doutorado). Ver também BORGES, Vera Lúcia
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dizer, contudo, quanto à sua relação com a política carioca e com os representantes da cidade.
Em contrapartida, ao longo da primeira década do século XX e meados da segunda, inúmeros são os casos de denúncias feitas por deputados
da representação do Distrito Federal contra a influência do velho general
no reconhecimento dos eleitos para o Congresso, para o Conselho Municipal (órgão Legislativo local da cidade do Rio de Janeiro) ou mesmo no
encaminhamento de questões relativas à vida cotidiana da cidade. Basta
lembrar que entre novembro de 1910 e maio de 1916 à frente do Executivo municipal carioca estiveram dois gaúchos que tinham laços bastante
estreitos com Pinheiro Machado – o engenheiro militar Bento Manuel
Ribeiro Carneiro e o advogado e jornalista, natural de Sant’ana do Livramento, Rivadávia da Cunha Corrêa. Não há, no entanto, estudos sobre a
questão. As relações entre Pinheiro Machado, o Morro da Graça e a política carioca são um capítulo ainda não escrito na história da cidade.
Eram íntimas as relações entre o senador gaúcho e a cidade do Rio.
Diferente da maioria dos parlamentares de sua época, Pinheiro Machado
tinha residência fixa na capital da República: um palacete no Morro da
Graça, no bairro das Laranjeiras, para onde senadores, deputados, juízes,
empresários ou, simplesmente, candidatos a cargos públicos ou mandatos eletivos faziam romarias e muitas questões importantes da República
eram tratadas. 22
Foge aos objetivos desse estudo traçar uma biografia de Pinheiro
Machado. Semelhante trabalho já foi feito com bastante propriedade por
alguns autores. O importante a ser ressaltado é que essa liderança, nascida
em Cruz Alta (antiga província do Rio Grande), em 1851, formada pela
Faculdade de Direito de São Paulo (1878), despontou para a vida pública na Constituinte de 1890/1891. Eleito em diversas legislaturas para
Bogéa. Morte na República: Os últimos anos de Pinheiro Machado e a política oligárquica. Rio de Janeiro: IHGB: Livre Expressão, 2004.
22– O Hotel dos Extrangeiros, localizado na Praça José de Alencar, onde acabou assassinado, funcionava como uma espécie de segundo escritório de Pinheiro Machado na
cidade.
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Pinheiro Machado, o Morro da Graça e a política carioca
a Câmara Alta pela bancada do seu estado natal, no exercício da vicepresidência do Senado e apresentando um estilo próprio de fazer política,
ao longo de sua trajetória Pinheiro Machado não fez só admiradores. Colecionou também muitos desafetos.
O velho general gaúcho pode ser tomado como ícone de um modelo de República vitorioso e, ao mesmo tempo, a imagem da derrota do
projeto de República defendido na fase da propaganda pelos chamados
republicanos radicais que, inspirados na revolução francesa, advogavam
a mudança do regime com a participação do povo e a instalação de uma
ditadura republicana, que seria mais adiante substituída por um modelo
político legitimado pelo sufrágio universal.23
Apesar da maioria de seus adversários condenarem a intervenção do
crime para a solução de questões políticas, nem por isso sua atuação no
cenário político nacional deixou de ser alvo de críticas, por ocasião da sua
morte, ocorrida em 8 de agosto de 1915.
Mesmo quando ainda vivo, e a despeito de todo tipo de constrangimento imposto na Primeira República às vozes não afinadas com o situacionismo, não foram raras as vezes em que no Parlamento e na imprensa
foram feitas denúncias contra práticas políticas de Pinheiro Machado e
ao seu grupo, ao que se convencionou chamar de pinheirismo. Sobre este
aspecto merece destaque a iniciativa de alguns políticos da representação
do Distrito Federal que, além de condenarem muitos de seus procedimentos no plano político federal, criticavam o alto grau de ingerência do
general gaúcho na política carioca. O diálogo entre os deputados da bancada do Distrito Federal Vicente Piragibe e Salles Filho, no qual Piragibe
esclarece sua entrada para o Congresso, em 1915, é bastante revelador a
este respeito:
“Vicente Piragibe: Entrei para a Câmara, pela primeira vez, tendo a
opposição do Sr. Pinheiro Machado, entrei depois de três pareceres
unânimes.
23– Sobre essa discussão ver CARVALHO, J. Murilo de. Os Bestializados: o Rio de
Janeiro e a República que não foi. Op. cit., p. 46.
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Salles Filho: Não apoiado. Pinheiro Machado nunca se oppôs ao seu
reconhecimento, consentiu ... ( o grifo é nosso)” 24
Conforme mostram os resultados parciais da pesquisa realizada, a
ação política de Pinheiro Machado era um fator de dissensão entre segmentos da elite política carioca, particularmente entre deputados e senadores que fizeram parte da representação do Distrito Federal nas duas
primeiras décadas do século vinte.
Em meio a esse universo é possível observar a nítida conformação
de dois grupos: um, mais numeroso, que jurava bandeira no pinheirismo,
e outro, de menor proporção, mas não menos atuante, que se colocava no
sentido radicalmente oposto.
O primeiro grupo era liderado pelo senador Augusto de Vasconcellos,
médico carioca, conhecido por seus adversários políticos como Senador
rapadura, em alusão à sua origem humilde. Vasconcellos se projetou na
política carioca ao integrar chamado Triângulo, grupo composto por chefias políticas de Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba, consideradas
áreas rurais da cidade. Em 1906, após a morte de Barata Ribeiro, tornouse chefe do Partido Republicano do Distrito Federal, que seria convertido em Partido Republicano Conservador do Distrito Federal, em 1910,
assumindo a denominação da organização política criada e conduzida no
plano nacional por Pinheiro Machado.
O segundo grupo era bastante diversificado, embora unido pela crítica à ação política de Pinheiro Machado. Dele faziam parte os deputados
Barbosa Lima, Irineu Machado, Octacílio Camará e Vicente Piragibe, políticos que se recusavam a fazer o que Rui Barbosa chamava de “política
das nádegas,”ou seja, seguir a orientação política de Machado.
O assassinato do velho general foi sem dúvida um momento em que
as divergências em termos de orientação política da bancada carioca no
24– PINTO, Surama Conde Sá. Elites Políticas e o jogo de Poder na Cidade do Rio de
Janeiro (1909-1922). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002, p.
118. (Tese de Doutorado)
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Pinheiro Machado, o Morro da Graça e a política carioca
Congresso afloraram de forma bastante nítida. Enquanto representantes
de diversos estados da federação se revezaram na tribuna da Câmara e
do Senado para prestar-lhe as últimas homenagens, Barbosa Lima, num
discurso inflamado, fez uma análise detalhada da ação política do general, comparando-a ao que chamou uma praga. Vale à pena, nesse sentido,
reproduzir um trecho desse discurso.
“Que cousa é o pinheirismo?
É uma diathese nefanda que se apoderou da collectividade brazileira, minguando-lhe as energias atavicas, desmoralizando lhe as forças
orgânicas, prostituindo-lhe, por pavor, o melhor das suas aspirações
tradicionaes.
Que cousa é o Pinheirismo?
É o adulterio de uma desposada querida, que foi, em algum dia da
nossa formossíssima história, consorte honestíssima, o archetypo das
virtudes civicas ao lado do incomparável Júlio de Castilhos e do potentoso Benjamim Constant, apoiada, em todos os incidentes da sua
vida pulchra, na espada, em cujos punhos não pôde segurar nenhum
dos epigonos, e que o braço potente de Deodoro fez flamejar nos horizontes brazileiros para nos dar uma República, que 25 annos depois
de sua fundação, nós vimos encontrar esfarrapada, polluída pela praga
do pinheirismo.
Que cousa é o Pinheirismo?
É a subversão da seriedade abarracada nos tribunaes da República,
uma facção em combate ao lado dos máos em pequeno n.º, contra os
bons em maioria! É a insidia partidária systematizada ao lado de um
obscuro soldado, hodierno de um nome glorioso, para o haver de trazer, para o haver de arrastar da notoriedade querida com que era querido o Exército – e eu me refiro ao marechal Hermes da Fonseca para
o haver de devolver no fim de 4 annos de devassidão governamental,
aos seus concidadãos, como um trapo feito bandeira de prestitos carnavalescos, batendo o record do ridículo universal!
É essa a obra do Pinheirismo; proceder assim como um representante do Exército austero e sobrio, digno e comedido, do Exército, para
quem a população brazileira se voltava como podendo ser a classe
fundada para repor a República de 1910 nos mesmos gonzos de ouro
em que girava na madrugada de 15 de novmbro de 1889, e essa era a
esperança de todos os homens de boa fé e, elles se chamavam legião
que aheriram honradamente a candidatura do marechal Hermes, na
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certeza de que S. Ex.ª, alheio aos conluios partidários, ás intrigas da
politicagem, se sobreporia a todos os corrilhos e faria a felicidade da
pátria, realizando a República.
...
Eu estou definindo uma praga não estou escalpelando um homem!
...
Os degoladores impenitentes não me aterram, não me desviam, não
me fazem callar, porque estou realizando uma obra necessária de saneamento, descendo com repugnância á fossa em que jaz essa purulência!
...
Não quero analysar o homem. Os biographos de amanhã hão de fazêl-o, tenho que estudar uma praga política, que se alastra pelo paiz,
que invade os tribunaes, que invade a política, que invade os comicios eleitoraes, para expor a República á vergonha em que ella se
debate.”25
Predisposição mórbida a doenças, adultério, subversão da seriedade, força que prostitui. Estas foram algumas das formas de classificação
empregadas pelo deputado da representação carioca ao dissecar a ação
política de Pinheiro Machado. Diferente de muitos políticos da época,
Barbosa Lima e Irineu Machado recusaram-se no período a frequentar o
Morro da Graça, optando por se conservarem fiéis ao Partido Liberal e
ao seu chefe supremo: Rui Barbosa, chamado de o “Mestre”. Semelhante
fidelidade de princípios teve um preço. Custou a cabeça de Barbosa Lima
na fase de reconhecimento para a composição da oitava legislatura da Câmara dos Deputados. Na ocasião, Lima não teve a mesma sorte de Irineu
Machado, que foi buscar abrigo na bancada mineira, fugindo assim de ser
degolado pelas forças políticas ligadas ao general gaúcho.
Vicente Piragibe, que entraria para a Câmara em 1915, também foi
um dos que pagaram pela oposição ao pinheirismo. Por desancar o Partido
25– Anais da Câmara dos Deputados, 1915, vol. VII, 534-537. Neste mesmo volume,
Barbosa Lima definiu o Pinheirismo do ponto de vista financeiro como “a bancarrota, foi
a fallencia fraudulenta, sem igual na história dos honradissimos costumes da collectividade brazileira”, p. 635-639.
Floriano de Britto, Nicanor Nascimento e Camará foram os deputados da bancada carioca
que discursaram sobre o assassinato de Pinheiro Machado na Câmara.
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Pinheiro Machado, o Morro da Graça e a política carioca
Republicano Conservador (PRC) em seus artigos publicados n’A Época,
durante a decretação do estado de sítio, no governo Hermes da Fonseca,
foi preso por sessenta dias. Seu relato é revelador a esse respeito: “Sob o
domínio do pinheirismo, ..., andava eu, pela ruas desta cidade, como um
perseguido, como um condenado, não tendo mesmo o direito de entrar
livremente no meu lar.”26
O balanço feito sobre a ação política e o perfil do senador gaúcho
pelo deputado da representação carioca não diferiu muito do teor do comentário feito por seu assassino confesso que, de acordo com a imprensa
da época, sofria das faculdades mentais: “Matei-o porquê era um homem
nefasto. Eliminando-o, eu prestei um grande serviço a este paíz.” 27
Para Barbosa Lima e Vicente Piragibe, com a morte de Pinheiro Machado, era chegada a hora de sanear a política nacional, expurgando tudo
o que nela se relacionasse ao pinheirismo. Os representantes cariocas
acreditavam, de forma ingênua, ser possível extirpar, naquele momento,
elementos que na realidade faziam parte da cultura política do período: o
mandonismo, o clientelismo, o coronelismo, o falseamento do voto.28
O que Lima não fez na ocasião, entretanto, foi esmiuçar a rede de
relações mantida entre o senador gaúcho e chefias políticas da cidade do
Rio. Esta é uma etapa da pesquisa ainda em curso, orientada pela hipótese de que a aproximação de membros da representação carioca e chefias
políticas da cidade em relação a Pinheiro Machado foi uma estratégia29
utilizada para garantir capital político30 num campo político marcado pela
26– Anais da Câmara dos Deputados, 1921, vol. XVI, p. 95.
27– Depoimento de Francisco Manso de Paiva Coimbra, assassino confesso de Pinheiro
Machado. Correio da Manhã, edição de 10/09/1915.
28– O emprego dos conceitos de mandonismo, clientelismo e coronelismo aqui utilizados segue a definição proposta por José Murilo de Carvalho no artigo “Mandonismo,
coronelismo, clientelismo: Uma discussão conceitual.” In: DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, vol. 40, n.º 2, 1997, p. 229-250.
29– De acordo com Bourdieu, a noção de estratégia deve ser entendida como um conjunto de ações produzidas por um determinado indivíduo ou grupo, de forma consciente
ou inconscientemente, visando à sua reprodução. BOURDIEU, Pierre. “Das regras às
estratégias”. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 81-84.
30– O capital político de acordo com Bourdieu “... é uma forma de capital simbólico,
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Surama Conde Sá Pinto
presença de órgãos de diferentes níveis (federal e municipal) e sem um
claro centro de gravidade.
Por ora, é possível afirmar que na base da dissensão, ou seja, o fator
preponderante que promovia a divisão dos membros das elites políticas
cariocas no período estava relacionado à defesa feita pelos não pinheiristas de um conteúdo mais autônomo à política carioca. Ou seja, esse
grupo era contrário a qualquer interferência de representantes do governo
federal no campo político da cidade.
Acreditamos que aprofundamento da análise da inserção de Pinheiro
Machado e do Morro da Graça na política carioca, bem como das resistências esboçadas por políticos da representação do Distrito Federal a tais
práticas, pode não só fornecer novos subsídios para o debate acerca da
trajetória política da cidade do Rio de Janeiro, como contribuir para um
melhor desenho da política na capital do país e do federalismo brasileiro
na Primeira República.
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operações de crédito pelas quais os agentes conferem a uma pessoa – ou a um objeto – os
próprios poderes que eles lhe reconhecem”. Esse capital só pode ser conservado mediante
trabalho constante de acumulação de crédito, bem como de evitar descrédito.
242
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WEID, Elizabeth von der. “O Prefeito como Intermediário entre o Poder Federal
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Artigo apresentado em novembro /2009. Aprovado para publicação
em novembro /2010.
244
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):229-244, abr./jun. 2010
Hélio Viana: recordações
II – comunicações
NOTIFICATIONS
HÉLIO VIANA: RECORDAÇÕES 1
HÉLIO VIANA: MEMORIES
Cybelle Moreira de Ipanema 2
Resumo:
O texto, como o título induz, recupera, em pequena síntese, a trajetória de um competente
professor de História do Brasil, da Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, no depoimento de uma ex-aluna, da década de 1940, cuja turma o elegeu seu paraninfo,
na formatura. Pesquisador, escritor, jornalista e
mestre, Helio Viana, dedicado igualmente aos
estudos de imprensa, deixou importantes obras
em suas especialidades.
Palavras-chave: Helio Viana – Faculdade Nacional de Filosofia – Universidade do Brasil –
História do Brasil – Imprensa.
Abstract:
The text, as the title leads, recovers in a short
summary, the trajectory of a competent history
teacher in Brazil, the National Faculty of Philosophy, University of Brazil, the testimony of
a former student of the 1940s whose class the
elected its patron, at graduation. Researcher,
writer, journalist and teacher, Helio Viana, also
dedicated to studies of the press, left important
works in their specialties.
Keywords: Helio Viana – Nacional Faculty of
Philosophy – University of Brazil – History of
Brazil – press.
Privilegiada foi a geração acadêmica a que pertencemos, com mestres em sua formação, na Faculdade Nacional de Filosofia. Deles, se contava Hélio Viana, nascido em Belo Horizonte, um jovem professor, já
com bagagem na especialidade que elegera, que cresceria continuamente,
até seu desaparecimento, pode-se dizer, precoce (menos de 64 anos).
Podemos recordá-lo, ministrando História do Brasil, no Bacharelato
de Geografia e História, para nós os anos de 1945 e 46, na 2a e 3a séries,
na que foi sucessora da revolucionária UDF – Universidade do Distrito
Federal, vinculada à Prefeitura e destinada a formar professores do ensino médio. Do projeto inicial, devia constituir os quadros de professores das escolas secundárias da própria Prefeitura do Distrito Federal, à
1 – Apresentado em sessão da CEPHAS, de 5 de novembro de 2008.
2 – Sócia emérita do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):245-251, abr./jun. 2010
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Cybelle Moreira de Ipanema
semelhança do Instituto de Educação para o ensino primário. Mudou de
orientação, porém alguns egressos invocaram o direito, para a respectiva
nomeação.
A Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil nascera em 1939, sem sede, espalhados seus Cursos em locais diferentes, em
espaço maior na Casa de Itália, reivindicada pelo governo brasileiro durante a guerra e depois devolvida, hoje o Consulado Italiano, na Avenida
Presidente Antônio Carlos, no Castelo.
Ali funcionavam a Diretoria da Faculdade, alguns Cursos em salas
no prédio, com uso também do Salão Nobre, no 4o andar, para solenidades, concursos de catedráticos e o Curso de Didática Geral, no último
ano, o 4o, reunindo alunos de todas as especialidades.
Geografia e História – curso duplo até os anos 1950 – ocupava a
Escola José de Alencar, no Largo do Machado.
Em suas salas convivemos com as lições de Hélio Viana, competente
e afável, sem arrogância, compreensivo, de trato a conquistar a simpatia
e a acolhida dos alunos.
Lidávamos com os elencos de Faculdade, de luminares, ombreando
com Hélio Viana: Arthur Ramos, Josué de Castro, Silvio Júlio, Lourenço
Filho, Delgado de Carvalho, ao lado de alguns mestres franceses, que
tinham integrado a UDF, como Antoine Bon, da Universidade de Montpellier, ex-conservador (diretor) do Museu de Atenas, a que se somou
Francis Ruellan, chegado no desenrolar da Segunda Guerra.
Um verdadeiro “éramos felizes e não sabíamos”...
A Escola José de Alencar, para os Cursos de Geografia e História e
de Ciências Sociais, constituía uma sede praticamente improvisada, pois
isolara a escola primária, sua principal ocupante, no andar térreo e nos
fundos, cabendo à Filosofia – inicialmente, FNF, depois, FNFi, para diferençar da Faculdade de Farmácia – o 2o andar, de alto pé-direito, acessado
por belíssima escada de madeira.
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Hélio Viana: recordações
A fachada majestosa, em cantaria ostenta, ainda, “Ao povo, o governo”, uma das “escolas do ABC”, resultado de subscrição popular,
promovida para a elevação, como sabido, de uma estátua eqüestre de
d. Pedro II, após a rendição de Uruguaiana – com troca de destinação,
pelo próprio imperador.
Irmã da série, a Escola José Bonifácio, na Rua Pedro Ernesto, no
bairro da Gamboa que abriga, depois de funcionar realmente como escola, o Centro Cultural Municipal José Bonifácio, voltado a manifestações
afro.
Na do Catete, há muito o nome do escritor cearense substituiu-se
pelo do prefeito Amaro Cavalcanti (que já batizara uma das escolas secundárias da Prefeitura, de formação de profissionais de Contabilidade,
ao lado do Palácio do Catete, depois Museu da República), demolida em
função do metrô.
E o mundo da Escola José de Alencar, atingida por degraus de pedra,
que homenageava com uma placa, na entrada, o professor Jacques Lambert, da UDF, era o mundo da nossa convivência com Hélio Viana.
A seriedade das informações que nos passava e a segurança dos dados alicerçaram, naturalmente, os caminhos que passamos a trilhar.
Lembramos agora, episódio menos significativo daquelas lições, mas
nem por isso desprezível. Na década de 1920, perpetrara-se contra a Cidade do Rio de Janeiro, sob o pretexto de higienizar a urbs, o “policídio”
da derrubada do Morro do Castelo, sua origem. Hélio Viana nos alertou,
nos anos 40, para corrermos à última visão de um pedacinho do morro,
na esquina de São José com Rio Branco. Nossa geração, ali, ainda o viu.
Só lamentamos a deslembrança de não termos ficado com um bocadinho
da terra...
Hoje, precisamente, 5 de novembro, passa o seu centenário. Como
muitos de seus colegas que circulavam na área de Ciências Humanas,
graduara-se em Direito, no Rio de Janeiro, e votara a pesquisa e a pro-
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Cybelle Moreira de Ipanema
dução bibliográfica de História do Brasil como campos de atuação. No
próprio ano de 1939, de criação da Faculdade de Filosofia, foi nomeado
catedrático interino (como todos), prestando concurso para efetivação,
em 1946, com a tese “Da Maioridade à Conciliação”.
Foi professor, além da Filosofia, hoje o IFCS – Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais da UFRJ, quando da reforma universitária de 1968
– do Instituto Rio Branco, do Itamarati, da Escola do Estado Maior do
Exército, do DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público e
do Departamento de Educação da PDF, entre outras unidades.
Desdobrou-se em inúmeras atividades culturais e educacionais: Conselho Federal de Cultura, Comissão Nacional do Livro Didático (onde firmava pareceres para adoção de livros pelo MEC), Comissão de Estudos
dos Textos de História do Brasil, do Ministério das Relações Exteriores,
Comissão de Publicações da Bibliex.
Foi auxiliar no Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, futuro DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, do Ministério da
Justiça e Negócios Interiores, e outros.
Era um pesquisador obstinado, encontrado sempre na Biblioteca
Nacional e no Museu Imperial, para embasar seus estudos e produção
de livros, artigos, matéria cultural. Igualmente, no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro para o qual foi eleito sócio efetivo, em 1944, promovido, em 1960, a benemérito.
Colaborou com inúmeros órgãos de imprensa. Foi secretário da Revista Touring, com bastante participação, o que se nos afiguraria algo
inusitado.
A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estampa
65 artigos seus. Está presente no Jornal do Commercio, colaborando nas
seções “Gazetilha” e “Folhetim”, no Anuário do Museu Imperial, Jornal do Brasil, Estudos Brasileiros, Revista Militar Brasileira, Diário de
Petrópolis, Correio do Povo, Carioca, Cultura (do Conselho Federal de
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Hélio Viana: recordações
Cultura), para citar alguns exemplos, não esquecendo de Cultura Política, importante mensário de estudos brasileiros, dos tempos da ditadura
Vargas.
Fez uso do pseudônimo “Chistilho”.
Essa participação nas letras, sobretudo históricas, ia-se fazendo ao
longo de seu magistério. A turma que integráramos (1944-1947) convidou-o para paraninfo, turma que formou apenas seis alunos, dos quais
somente Marcello Moreira de Ipanema e nós mesmas nos voltamos à História. As formaturas se realizavam no Teatro Municipal, principalmente.
Ao Hélio Viana cordial, de relações professor-aluno, há que acrescentar recordações mais ligadas à sociabilidade. Convidou-o Marcello
de Ipanema para o Discurso de Recepção, em sua posse como sócio no
IHGB, em 1965. A saúde não lhe permitiu, porém, ler o texto de saudação, para o que convocou o confrade Mario Ferreira França (Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, n. 269,
p. 145-162, out.-dez., 1965).
Naquele, ressaltou ser o empossando o primeiro “bacharel e licenciado em Geografia e História, diplomado por uma Faculdade de Filosofia”
a ascender ao Quadro Social do venerando Instituto.
Nesse mesmo ano de 65, outra recordação pessoal, fruto de sua amizade. Aceitou Hélio Viana prefaciar a plaquete, editada pelo Arquivo Nacional, na direção de Pedro Moniz de Aragão, de autoria de nosso filho,
José Marcello, com apenas 12 anos, Índice alfabético e remissivo do Ano
Biográfico Brasileiro, de Joaquim Manuel de Macedo, obra de referência
para o Dicionário de Macedo, em 3 volumes e 1 suplemento. Publicado
este, em 1875, para a Exposição de Filadélfia, nele utilizou o romancista
e historiador, de curiosa metodologia, identificando os biografados pelas
datas do ano, de 1o de janeiro a 31 de dezembro.
É numerosa a bibliografia de Hélio Viana, com estudos de História
do Brasil e biografia, ao lado de livros didáticos. A História do Brasil, de
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Cybelle Moreira de Ipanema
2 tomos em 1 volume, pela Melhoramentos, mereceu reedição, em 1963.
Citar ainda: História diplomática do Brasil, História da República, História das fronteiras do Brasil, São Paulo no Arquivo de Mateus, Matias
de Albuquerque, D. Pedro I e D. Pedro II: acréscimos às suas biografias,
Formação brasileira, A educação no Brasil colonial, Letras imperiais,
além de prefácios e outras intervenções a terceiros.
Dedicou-se com proficiência à pesquisa de imprensa (o que igualmente nos aproximou dele, porque também tema de eleição), com o
clássico de 1945, Contribuição à história da imprensa brasileira, (18121869), da Imprensa Nacional, onde analisa vários pequenos e raros jornais da coleção do antigo sócio, Francisco Marques dos Santos, diretor,
por muitos anos, do Museu Imperial, em Petrópolis.
Nessa mesma linha, uma importante colaboração no Jornal do
Commercio e o D. Pedro I jornalista (Melhoramentos, 1967).
Nada a estranhar que nos continue fonte de pesquisa, em particular,
os ligados à imprensa, como neste exemplo: a presença de d. Pedro nos
jornais da época, com críticas e observações. Hélio Viana localizou, no
Museu Imperial, os originais do príncipe e os identificou. Serviram de
base para a parte respectiva do D. Pedro I: proclamações, cartas e artigos (1973), volume no 1 da “Biblioteca do Sesquicentenário”, criada pela
Comissão do Sesquicentenário da Independência do Brasil, para o qual
levantamos, a pedido de Pedro Calmon, a produção de d. Pedro, entre
1821 e 1823, balizando a Independência e um pouco além.
Interferências de d. Pedro em órgãos de imprensa tinham sido examinadas, anteriormente, por Augusto de Lima Júnior, Otávio Tarquínio
de Sousa e Marcello de Ipanema.
Faleceu Hélio Viana no início do ano do Sesquicentenário (6 de janeiro de 1972), não tendo participado, como teria apreciado, segundo
queremos crer, das comemorações, inclusive da inauguração deste prédio. Comparecemos à sua Missa de 7o Dia, na Catedral Metropolitana,
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Hélio Viana: recordações
antiga Igreja de N. S. do Carmo da Antiga Sé do Rio de Janeiro, recentemente restaurada.
O Arquivo Hélio Viana, em muitas caixas e numerosíssimos documentos, encontra-se neste Instituto, já estando tratado e catalogado, por
equipe multidisciplinar especializada.
Na oportunidade do pequeno depoimento sobre o ensino universitário nas décadas de 30 e 40 do século passado, privilégio, nesta Casa que
foi sua, por quase 30 anos, evocar a figura de Hélio Viana, um grande
mestre, um grande trabalhador da História, um que nos permitimos chamar – amigo –, pelas inúmeras gentilezas com que nos cumulou.
O professor Hélio Viana, de roupa clara, ente os formandos, seus paraninfados:
Ney Strauch, Cybelle Bouyer, Hélio Albuquerque, Marcello Moreira de Ipanema,
Henrique de Oliveira Diniz e Hugo Henrique Nocchi.
Texto apresentado em dezembro /2008. Aprovado para publicação
em julho /2010.
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O Mos Jus Comparationis Scribendi de Clovis Bevilaqua
O MOS JUS COMPARATIONIS SCRIBENDI
DE Clovis Bevilaqua1
The Mos Jus Comparationis Scribendi
of Clovis Bevilaqua
João Baptista Villela 2
Resumo:
Clovis Bevilaqua foi um dos precursores do direito comparado no Brasil. Provavelmente o maior
deles. O trabalho examina sua contribuição para
esse ramo do direito desde, presumivelmente, a
sua mais remota origem, isto é, quando foi bibliotecário da Faculdade de Direito do Recife. Antes
mesmo, portanto, de ser nomeado professor. Ocupa-se, em particular, do legado de Clovis expresso
na 2ª edição de suas Licções de Legislação Comparada, de 1897, que se revelam de surpreendente
atualidade.
Palavras-chave: Direito Comparado; Legislação
Comparada; Licções de Legislação Comparada;
Rechtsvergleichung; Zeitalter der Vergleichung;
Comparação Diacrônica; Comparação Sincrônica
Abstract:
Clovis Bevilaqua was one of the forerunners of
comparative law in Brazil, and probably the greatest. The paper examines his contribution to this
branch of law, presumably in its very early stages,
when he was the librarian of the Law School Recife. Indeed, this occurred even before his appointment as a law professor. The paper particularly
discusses the Bevilaqua’s legacy constituted by the
2nd edition of his Licções de Legislação Comparada [Lessons of Comparative Legislation] of 1897,
which today is revealing surprising information.
Keywords: Comparative Law; Comparative Legislation; Licções de Legislação Comparada;
Rechtsvergleichung; Diachronic Comparison;
Synchronic Comparison
Entre tantas hipóteses possíveis para apreender e avaliar a contribuição de Clovis Bevilaqua ao direito comparado pode ser útil situar a contextura geral da época em que escreveu. Recordemos: Clovis tinha sido
bibliotecário da Faculdade de Direito do Recife antes de ser nomeado,
com a Reforma Benjamim Constant, professor de filosofia no Curso Anexo. Das limitações originárias da Biblioteca, que aponta minudentemente
na sua História da Faculdade de Direito do Recife, havia tomado ciência
pelos registros que encontrou. O núcleo inicial de livros, obtido por meio
de subscrição pública, compunha-se de 89 obras em 262 volumes. O que
significavam? Segundo Clovis, “modestíssimo contingente, que mal poderia servir para uma sala de leitura de sociedade de rapazes”3. Esse mau
1 – Oração proferida no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, aos
12 de agosto de 2009, em comemoração dos 150 Anos de Nascimento de Clovis Bevilaqua. Posteriormente revista pelo Autor.
2 – Professor Emérito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
3 – BEVILAQUA, Clovis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed., Brasília:
Instituto Nacional do Livro ― Conselho Federal de Cultura, 1977, p. 435.
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João Baptista Villela
começo não se remediou em curto prazo.
Como quer que seja, inclino-me a admitir que os contatos que a
condição de bibliotecário ensejou ao jovem Clovis podem ter sido sua
primeira significativa abertura para o que ocorria ao externo da vida provinciana do Recife e das notícias que vinham da Corte no Rio de Janeiro.
Nos apontamentos circunstanciados que deixou sobre as memórias dos
bibliotecários, as aquisições que se faziam, as dificuldades para bem compor o acervo, sente-se algo mais do que as revelações explícitas do autor.
O universo jurídico que se estendia a Leste da Foz do Capibaribe não lhe
era um continente propriamente desconhecido.
Fato é que já a 2ª edição de seu Resumo das Licções de Legislação
Comparada revelaria uma consistente visão do que se passava na ciência
do direito privado na Europa e reproduzem, com surpreendente atualidade, problemas metodológicos que ainda hoje se põem para o direito
comparado.
Assinalo quatro eventos da época que indicam a atmosfera propícia
aos estudos de direito comparado, novel ciência a que Clovis se entregou
com paixão e acribia e a que daria, mais tarde, produtiva aplicação nos
seus clássicos comentários ao Código Civil de 1916. Dizer deles, os comentários, que, ainda hoje, se deixam ler com indiscutível proveito soa a
manifesta redundância.
O que pretendo com a evocação é sublinhar a incoercível força de
atração que os fenômenos da economia e os da política experimentam entre si e cuja sistemática observação está na origem e no desenvolvimento
do direito comparado.
Aos fatos, então.
Em 1897 saíam publicadas na Alemanha, mas com forte impacto
na Inglaterra, as Beiträge zur vergleichenden Mythologie, de Friedrich
Max Müller. Se a própria mitologia suscitava reflexões comparativas, e
elas não pareciam supérfluas, o que não dizer, a esse tempo, do direito,
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R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):253-261, abr./jun. 2010
O Mos Jus Comparationis Scribendi de Clovis Bevilaqua
especialmente depois das ponderadas reflexões de Montesquieu sobre o
idiotismo das instituições em relação a cada povo e a antológica perplexidade de Pascal quanto à variabilidade do conceito de justiça?
A respeito do suposto conflito entre o particular e o universal na formação e compreensão do direito, que se expressaria implícito no pensamento emblemático de um e outro desses dois pensadores, convém, desde
logo, registrar a visão amadurecida de Clovis:
“Pascal disse uma vez que o justo e o injusto mudavam de qualidade,
mudando o clima, que três graus de elevação do pólo punham por
terra toda a jurisprudência e que um meridiano decidia da verdade.
Há neste pensamento a exageração de um princípio verdadeiro que é
a realidade da influência do meio cósmico sobre a ideia do justo e do
bem, a qual não podem hoje desconhecer os legisladores. Se é inconcusso que o meio físico age sobre o indivíduo e a sociedade, é forçoso
que atue também sobre o direito que é a principal normalização da
coexistência humana.
Atendendo à verdade irrecusável desse fenômeno, devem os legisladores, não se deixando arrastar pelo pendor das inovações e imitações
irrefletidas, só aplicar as instituições de um povo a outro, depois de
escrupuloso exame”.
Com admirável ponderação e conselho concluía:
“Prestai atenção para este fato. O direito civil dos povos ocidentais é,
em grande parte, uma revivescência do direito romano que se tornou,
por isso, como que um direito universal; mas apesar dessa comunhão
de origem, quanta divergência nesses esgalhamentos do mesmo tronco! Sei que o direito canônico e o germânico acentuaram, com suas
tendências próprias, o polimorfismo deste trecho de evolução jurídica.
Sei também que muitas circunstâncias ocasionais e muitas variedades
étnicas se combinaram, se fundiram preparando esse resultado. Mas
é certo igualmente que o meio cósmico serviu e serve de base a esses
modificadores, favorecendo sua ação, aumentando mesmo sua energia.
E acresce também que alguns desses modificadores, como as diferenças étnicas, nos devem premunir contra o exagero das imitações”4.
4 – BEVILAQUA, Clovis. Resumo das Licções de Legislação Comparada sobre o Di-
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João Baptista Villela
Volto ao fim do século XIX na Europa, o Ocidente-Norte do Capibaribe, onde Clovis gestava suas lições.
Que o mundo se tornava menor deixava-se ver, por exemplo, pelo
experimento radiotelegráfico de Marconi, que alcançaria a marca histórica de 14 quilômetros. Risível hoje, desconcertante para a época. Enquanto
isso, Andrée, Strindberg e Fränkel perdiam suas vidas tentando alcançar o
pólo norte em vôo livre de balão.
Nada a estranhar que a aproximação do comércio e das culturas viesse assim a se expressar, em memorável pico, na Exposição Internacional
de Bruxelas, ocorrida no mesmo ano de 1897.
Tudo sugeria aproximação e confronto, não houvesse Nietzsche, o
século XIX já caminhando para o ocaso, proclamado que aquele era um
tempo da comparação: Es ist das Zeitalter der Vergleichung!5
Segundo Zweigert e Kötz, o direito comparado, tal como hoje praticado, provém da convergência de duas distintas raízes: o chamado direito
comparado legislativo (legislative Rechtsvergleichung) e o chamado direito comparado científico (wissenschaftlich-theoretische Rechtsvergleichung). A primeira raiz vem a ser a captura do direito estrangeiro em
favor da formação do direito nacional. É a mais antiga, conquanto em
rigor não seja velha, e tem significativa presença no movimento de codificação e unificação da Alemanha no século XIX. Seu grande triunfo foi
o BGB, que Zweigert e Kötz chamam de “ponto exponencial da ciência
alemã do direito privado”. A vertente científica, por sua vez, se define essencialmente por estar a serviço da melhor compreensão das instituições
jurídicas6.
reito Privado. 2. ed., rev. e augm., Bahia: J. L. da Fonseca Magalhães, 1897, p. 26.
5 – A expressão está tomada da obra Menschliches, Allzu Menschliches, publicada em
1878, e serve de mote a um excelente estudo de P. Lagrand: Cf. LAGRAND, Pierre. Comparer. In: CENTRE FRANÇAIS DE DROIT COMPARÉ. Le droit comparé: Aujourd’hui
et demain. Paris: Société de législation comparée, 1996 ©, p. 21.
6 – ZWEIGERT, Konrad & KÖTZ, Hein. Einführung in die Rechtsvergleichung auf dem
Gebiet des Privatrechts. Bd. 1, 2., neubearb. Aufl., Tübingen: J. C. B. Mohr, 1984, S. 5658.
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O Mos Jus Comparationis Scribendi de Clovis Bevilaqua
Direito comparado legislativo e direito comparado científico desenvolveram-se sob escasso paralelismo. Compreende-se. Os movimentos
da especulação e da reflexão científica não estão submetidos aos entraves
comuns à produção do direito positivo: longas discussões no foro público, nos conselhos e nos parlamentos, sem contar as surpresas e os imprevisíveis movimentos político-partidários ou ideológicos.
A assimetria entre as duas plataformas de pensar e escrever o direito comparado parece-me também fundamental para compreender a obra
comparatística de Clovis Bevilaqua.
Recorde-se que quando Clovis assume a Cadeira de Legislação
Comparada, em 1891, os trabalhos em prol da codificação civil há muito
haviam começado, ainda que só viessem a se fechar cerca um quarto de
século depois. Clovis não parece ter nutrido grandes esperanças, nesse
primeiro momento em que se ocupa da Legislação Comparada7, de que
pudesse intervir no aperfeiçoamento dos trabalhos, de resto entregues ao
moto perpétuo de contínuos recomeços. Ademais seu foco eram os alunos.
Escrevia para eles e sugere estar mais preocupado em promover a utilidade da nova ciência que discutir o direito posto. Mas, apesar disso, fazia
observações fundamentais para a construção da ordem privada interna.
Com quando, por exemplo, observa que “o caráter de nossa propriedade moderna é essencialmente romano, o de nossa família essencialmente
germânico”8. Não critica, censura ou aplaude. Apenas registra.
Muito antes de Zweigert e Kötz e, como que os precedendo na elementar, mas nem por isso inútil percepção, observaria Clovis:
“O estudo feito simplesmente sobre as disposições legais é mais a
flor da terra e não contém elementos senão para uma arte, útil sem
dúvida, mas que apenas exige qualidades secundárias de espírito em
7 – Clovis só seria convidado para elaborar o Projeto que deu origem ao Código Civil de
1916 em carta de 25 de janeiro de 1899, tendo começado os trabalhos em abril do mesmo
ano, depois de se transferir para o Rio de Janeiro: Cf. BEVILAQUA, Clovis. Código Civil
dos Estados Unidos do Brasil Comentado. V. 1, 11. ed., at. por Achilles Bevilaqua e Isaias
Bevilaqua, Rio de Janeiro ― S. Paulo ― Belo Horizonte: Ed. Paulo de Azevedo, 1956, p.
17-18.
8 – Licções ..., cit., p. 25.
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João Baptista Villela
seus cultores. O estudo do direito feito à luz da história, da filosofia
e, em geral, do conjunto das ciências que têm por objeto o homem e
a sociedade, é uma aplicação mais elevada da inteligência, contém o
estofo de uma ciência”9.
E arremata no melhor estilo didascálico:
“A distinção entre estas duas modalidades de estudo é o que podemos
estabelecer entre um Lobão e um Rudolf von Jhering”10.
Com impressionante simetria, onde Clovis escreve Lobão, Zweigert
& Kötz escreveriam legislative Rechtsvergleichung. Onde escreve Rudolf von Jhering, escreveriam wissenschaftlich-theoretische Rechtsvergleichung.
Vê-se bem do discurso de Clovis que seu objetivo primeiro é ensinar. Ensinar a ciência da legislação comparada e sua utilidade prática.
Mas não fica no plano da pura abstração. Em passagem na qual associa
a figura do julgador com os achados da observação comparada, traz esta
lúcida advertência:
“O juiz, finalmente, não se poderá limitar ao conhecimento da lei territorial, porque muitas vezes, para compreender o dispositivo da lei
pátria, para apanhá-la em toda a sua plenitude, terá de fazer um estudo
consciencioso das fontes estrangeiras, onde o legislador se inspirou:
porque muitas outras vezes, as lacunas e deficiências do direito pátrio
poderão ser preenchidas pelas disposições acordes das leis dos povos
cultos; e porque ainda ver-se-á obrigado a aplicar a lei estrangeira, por
força dos princípios admitidos em direito internacional privado”11.
O que viria a ser chamado, em moderna terminologia, comparação
diacrônica e comparação sincrônica12 já era uma distinção intuída em
Clovis Bevilaqua, como se vê deste passo:
9 – Licções ..., cit., p. 17.
10– Licções ..., cit., p. 17.
11– Licções ..., cit., p. 26-27
12– Cf., por exemplo, CONSTANTINESCO, Léontin-Jean. Traité de droit comparé. T. 2,
Paris: L.G.D.J., 1974, p. 42 et seq.
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O Mos Jus Comparationis Scribendi de Clovis Bevilaqua
“A comparação do direito e das instituições dos diversos povos pode
ser feita simplesmente, na atualidade ou em qualquer momento histórico, pelo confronto das legislações então vigentes e das manifestações
vitais que elas envolvem, ou poderá ir mais longe buscar, na origem e
desenvolução dos diversos ramos do direito, a causa das semelhanças
e das diferenças, para determinar a possibilidade das adaptações ou
modificações ou para indicar a ação dos fatores e a combinação dos
elementos de origem nacional ou estrangeira”13.
Uma breve pausa e Clovis insiste na dimensão tempo:
“A comparação no tempo será o estudo histórico e comparado do direito em gênero, ou de qualquer de seus institutos, desde sua gênese
indefinida e incoerente até suas últimas especializações e abstrações
desatadas à tona do pensamento moderno”14.
Parece que, na verdade, Clovis admite três modelos possíveis de
comparação:
1. a que se faz entre ordens jurídicas do passado;
2. a que se faz entre ordens jurídicas da atualidade;
3. a que se faz entre ordens jurídicas da atualidade e ordens jurídicas do passado.
“[E]studo histórico e comparado do direito em gênero, ou de qualquer de seus institutos” viria a ser, em outras palavras, a macrocomparação e a microcomparação respectivamente, expressões que só teriam
tomado corpo, bem mais tarde, na obra de Rheinstein15.
Percebe-se, pois, que Clovis Bevilaqua opera com o tempo em três
dimensões: no passado, no presente e no trânsito que os unifica. Os dois
primeiros são tempos estáticos, o último tempo dinâmico.
13– Licções ..., cit., p. 21.
14– Licções ..., cit., p. 22.
15– Cf. RHEINSTEIN, Max. Einführung in die Rechtsvergleichung. Bearb., hrsg. u. eing.
v. Reimer von Borries. München: Beck, 1974, S. 31 et seq.
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259
João Baptista Villela
Mais de um século depois, Michael Rainer, ao buscar a posição científica do direito comparado, avalizaria a importância da pesquisa histórica
de onde Clovis queria extrair a compreensão dos institutos:
“A perspectiva histórica revela-se como extraordinariamente valiosa,
para dar respostas à pergunta pelas causas das particularidades de uma
ordem jurídica. É a história que revela o desenvolvimento de cada
instituto individualmente considerado e sua interação conjunta no interior do sistema, a significação de cada fonte do direito no espaço doméstico de uma ordem jurídica, a estrutura da jurisdição assim como
a técnica e o modo de dizer o direito”16.
E em seguida:
“A pergunta pelas raízes do direito vigente pode preocupar e interessar
menos ao prático moderno do direito, mas é, no domínio do direito
comparado, de grande importância, quando se quer pôr as soluções de
uma ordem jurídica em correlação com as de outra”17.
Instrumentação curiosa é a de que se serve Clovis Bevilaqua para
mapear a vizinhança dos institutos. Seu pensamento é o de que, no aproximar-se uns dos outros, duas hipóteses podem se produzir: ou bem as
semelhanças são orgânicas ou bem são funcionais. As orgânicas, nas suas
palavras, “nos podem indicar a gênese e a marcha evolucional das diversas espécies pertencentes ao mesmo tipo jurídico e constituem a homologia dos órgãos”. As funcionais “nos revelam, fora dos limites do mesmo
tipo jurídico, como, por meio de órgãos morfologicamente diferentes, o
direito obtém funções equivalentes. É a analogia das funções”18.
Na síntese do próprio Bevilaqua:
“A homologia descobre a identidade na diferença; é um elemento estático. A analogia descobre a semelhança na diversidade; é um ele16– RAINER, Johannes Michael (Hrsg.). Europäisches Privatrecht: Die Rechtsvergleichung. Frankfurt a.M. ― [...]: Lang, 2002, S. 22-23.
17– Europäisches ..., cit., S. 23.
18– Licções ..., cit., p. 39.
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R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):253-261, abr./jun. 2010
O Mos Jus Comparationis Scribendi de Clovis Bevilaqua
mento dinâmico”19.
O contexto da exposição, sem exemplos nem abonações, sugere
tratar-se de uma pura especulação, um vôo experimental de Clovis, que
assim encerra suas considerações a respeito:
“A aplicação das relações de homologia e analogia à morfologia jurídica, embora ainda não diretamente tentada, acredito que poderá esclarecer muitos pontos obscuros da jurisprudência que somente agora
enveredou por essas regiões ainda mal esclarecidas da história, da antropologia e da etnologia aplicadas ao direito”20.
Impossível não ver aí certa obscuridade. Parece que o douto Clovis
quis ir além do expositor e resolveu entregar-se a um exercício de criação.
Não merece por isso censuras, já que, se queria fazer obra de ensino, nesta
também cabem os riscos do ensaio e as audácias do engenho.
Belo Horizonte, 26 de março de 2010
D. Victoria C. Bevilaqua, filha de Clovis Bevilaqua, em companhia do Autor,
na ocasião das comemorações dos 150 anos de nascimento de seu pai,
no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro, 12 de agosto de 2009).
Texto apresentado em março /2010. Aprovado para publicação em
abril /2010 e editado segundo original do autor.
19– Licções ..., cit., p. 39.
20– Licções ..., cit., p. 39.
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261
A influência francesa na medicina veterinária brasileira
A INFLUÊNCIA FRANCESA NA MEDICINA VETERINÁRIA
BRASILEIRA
THE FRENCH INFLUENCE ON BRAZILIAN VETERINARY
MEDICINE
Clotilde de Lourdes Branco Germiniani 1
Resumo:
Discutem-se os fatos que antecederam o decreto nº 2.232 criando a Escola de Veterinária do
Exército em 6 de janeiro de 1910. Segue-se uma
análise das posições adotadas pelos médicos veterinários militares doutores João Moniz Barreto
de Aragão e Ismael da Rocha. Dr. Ismael Rocha
foi recebido, em Paris, pelo Diretor do Instituto
Pasteur, Doutor Pierre Paul Émile Roux, discípulo de Pasteur e, em consequência dos entendimentos estabelecidos, vieram ao Brasil médicos
veterinários militares franceses que, juntamente
com oficiais brasileiros da área de saúde, definiram as bases do controle sanitário animal e do
ensino de Medicina Veterinária no Brasil. Estão
relacionados os nomes dos médicos veterinários
militares franceses integrantes das três missões
francesas que vieram ao Brasil, nas três primeiras décadas do século XX, sendo discutidos a
relevância e os reflexos do seu trabalho assegurando melhores condições de higiene e de saúde
pública, bem como o papel dos profissionais
egressos da Escola de Veterinária do Exército.
Abstract:
On the 6th January 1910, the national decree #
2232 was signed, thus leading to the creation of
the Brazilian Army School of Veterinary (BASVet). The creation of Veterinary Education in
Brazil was the result of the collective work of
some medical doctors from the Brazilian Army.
The most active contributors to this process
were the Medical Doctors João Moniz Barreto
de Aragão and Ismael da Rocha: both insisted
on the scientific foundations of the study of Veterinary Medicine in Brazil. Doctor Ismael da
Rocha was received in Paris by Doctor Pierre
Paul Émile Roux, a pupil of Pasteur and Director of the Institute Pasteur at the time. As a
result of this meeting, a party of French military
veterinary doctors came to Brazil and worked
together with Brazilian military doctors in establishing the basis for animal sanitary control
and for the teaching of Veterinary Medicine in
Brazil.
Palavras-chave: Veterinária no Brasil; veterinários franceses no Brasil; Veterinária Militar;
Coronel Moniz Aragão.
Keywords: Veterinary in Brazil; French Veterinary Doctors in Brazil; Military Veterinary;
Colonel Moniz Aragão.
Introdução
Perde-se no tempo o início da convivência do homem com os animais. Sabe-se que, muito antes de surgir a escrita, o homem e os animais
já mantinham um importante relacionamento. Os registros mais antigos
deste intercâmbio são os desenhos e os baixo-relevos, com características
rudimentares, encontrados em diferentes regiões. Os mais afamados estão
1 –1Professora Titular ( Aposentada ) da UFPR, Membro do Centro de Letras do Paraná,
da Academia Paranaense de Medicina Veterinária, do Instituto Histórico e Geográfico do
Paraná e da Academia Brasileira de Medicina Veterinária.
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263
Clotilde de Lourdes Branco Germiniani
na França, nas grutas do Périgord, datados de 32000 a 25000 a.C., e de
Lascaux, na região da Dordogne, com sua origem entre 14000 e 10000
a.C.
As espécies menos agressivas foram incorporadas pelas populações
primitivas, ainda na fase nômade, e seguiam junto com o grupamento
humano se houvesse uma troca de domicílio.
A Medicina Veterinária foi acumulando conhecimentos empíricos
referentes ao manejo e ao tratamento dos animais, tal como aconteceu
com a Medicina Humana primitiva. Estes conhecimentos, resultantes da
simples observação, eram transmitidos verbalmente através de gerações.
Assim, todas as civilizações da antiguidade preservavam o seu cabedal de
informações relacionadas com o bem-estar do homem e dos animais, cuidados com a alimentação e muitos procedimentos terapêuticos que mesclavam misticismo e o uso de algumas substâncias cujos princípios ativos
foram identificados, com o passar do tempo e o progresso da ciência.
Primeiras Escolas de Medicina Veterinária
Foi Claude Bourgelat, um advogado francês (nascido em Lyon em
1712 e falecido em Paris em 1779) quem criou as duas primeiras Escolas
de Veterinária do mundo. A primeira Escola foi instalada em Lyon em
1762 e, com o sucesso desta instituição, o próprio Claude Bourgelat fundou, em 1765 a Escola de Veterinária de Alfort, nos arredores de Paris.
Estas duas primeiras Escolas francesas foram importantes porque
serviram de modelo para o ensino de Medicina Veterinária em outros
países e porque, muitas vezes, foram profissionais com formação nestas
Escolas que orientaram a implantação de novas Escolas de Medicina Veterinária.
264
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A influência francesa na medicina veterinária brasileira
Primeiros Passos para a Implantação de Serviços Veterinários no
Brasil
Embora o Brasil tivesse condições muito favoráveis para o desenvolvimento da pecuária, pelas características do processo de colonização,
seguiam-se orientações apenas baseadas em conhecimentos resultantes da
observação, transmitida através das gerações. Em 1810, Dom João, ainda
Príncipe Regente, criou o cargo de Veterinário “incumbido de orientar e
apoiar as atividades de Hipologia e Hipiatria no 1º Regimento de Cavalaria do Exército”. Em 1818, já como Dom João VI, estabeleceu um curso
de Alveitaria, de “nível prático” sediado neste mesmo Regimento.
Em 28 de julho de 1860, o decreto imperial nº 1.067 criou a Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.
Pouco mais tarde, em 16 de fevereiro de 1861, o decreto imperial nº 2.747
deu um destaque para “a introdução e melhoramento de raças de animais
e de Escolas de Veterinária no país”.
Na segunda metade do século XIX, Dom Pedro II foi à Europa e
fez duas visitas à Escola Nacional Veterinária de Alfort. Um comentário,
na Histoire de l’École d’Alfort, descreve de modo sumário estas duas
visitas:
“au commencement de cette année, l’École avait reçu la visite du savant Pedro II, empereur du Brésil qui voyageait incógnito, sous le
nom de Dom Pedro d’Alcantara: cette visite très simple mais très minutieuse (5 janvier 1872), avait beaucoup intéressé l’empereur, car il
l’avait renouvelée quelques jours plus tard (16 janvier) en acceptant le
déjeuner offert par le directeur”.
Em 26 de março de 1876, quando se preparava para uma outra viagem ao exterior, Dom Pedro II fez uma longa carta endereçada à Princesa
Isabel, com orientações para seu bom desempenho como Regente, durante
a ausência do Pai. Nesta carta, ao falar em Educação, diz textualmente:
“Lembro a criação de Escolas de Veterinária e de Farmácia, sobretudo a primeira.”
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265
Clotilde de Lourdes Branco Germiniani
Apesar destas premissas e do evidente interesse do imperador, não
aconteceu a concretização da Medicina Veterinária até o final do período
imperial.
Nos primeiros anos do século XX surgiram medidas que viriam melhorar as condições agroveterinárias. Assim, em 1906, sob o governo do
Presidente Afonso Pena foi criado o Ministério da Agricultura, Indústria
e Comércio. Mais tarde, em 1909, já no governo do Presidente Nilo Peçanha, o Ministério foi instalado e regulamentado. Seguiu-se o decreto nº
7.622 de 21 de outubro de 1909, que implementou a Diretoria da Indústria
Animal. Sob a responsabilidade da Diretoria de Indústria Animal foram
organizados os serviços de inspeção veterinária que passaram a zelar pelo
estado sanitário do gado, tomando e propondo medidas capazes de evitar
e combater as epizootias e concorrendo para a fiscalização de matadouros
e de estábulos, visando ao melhoramento da higiene alimentar. Iniciativas
semelhantes foram tomadas em relação à indústria de laticínios.
A alta incidência de epizootias, sobretudo de mormo atingindo equinos do Exército e particulares, bem como as más condições de higiene
dos estábulos, geralmente localizados próximos das residências, foram
fatores decisivos para que, em 6 de janeiro de 1910, surgisse o decreto nº
2.232 criando a Escola de Veterinária do Exército.
As Etapas de Fundação da Escola de Veterinária do Exército
Certamente o nome nacional de maior destaque, quando se discute a
criação da Escola de Veterinária do Exército, é o do Coronel Médico Dr.
João Moniz Barreto de Aragão, grande idealizador do Curso de Medicina Veterinária. Dr. Moniz Aragão trabalhava no Laboratório Militar de
Microscopia Clínica e Bacteriologia, estudando as principais endemias
reinantes no país. Com base nas suas pesquisas Dr. Moniz Aragão sabia
que a melhoria das condições de saúde animal viria se refletir sobre a
saúde humana.
Em 1907, o governo brasileiro enviou à França o Coronel Médico
Doutor Ismael da Rocha, Diretor do Serviço de Saúde da Guerra e Bac-
266
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):263-271, abr./jun. 2010
A influência francesa na medicina veterinária brasileira
teriologista respeitado por sua competência. Seguiu Dr. Ismael da Rocha
incumbido de estabelecer gestões que levassem à criação do Ensino de
Medicina Veterinária no Brasil. Em Paris, nosso representante foi encaminhado ao Instituto Pasteur, sendo recebido pelo Doutor Pierre Paul
Émile Roux, discípulo de Pasteur e, na época, Diretor do Instituto.
Como resultado dos entendimentos entre os Doutores Émile Roux e
Ismael da Rocha ficou acertada a vinda de Médicos Veterinários Militares franceses que, juntamente com outros oficiais brasileiros da área de
saúde, estabeleceriam normas de controle sanitário e dariam a orientação
necessária para a criação e a implantação do ensino de Medicina Veterinária no Brasil.
As Missões Francesas de Medicina Veterinária
A primeira Missão Francesa de Médicos Veterinários era constituída
pelo Tenente-Coronel Antoine Dupuy, chefe da Missão, e por seu auxiliar
Capitão Paul Ferret. O Professor Roux enviou uma carta ao Marechal
Hermes da Fonseca, então Ministro da Guerra, e nesta correspondência,
datada de 28 de janeiro de 1908, o Professor demonstrou ter boas informações sobre o Brasil e ressaltou as qualidades de caráter e a competência dos dois veterinários selecionados. Ambos chegaram ao Rio de
Janeiro em 1908 e aqui permaneceram até 1912. Além de conhecimentos
específicos para o trabalho com animais em área tropical, os dois veterinários franceses traziam na bagagem uma boa quantidade de material
destinado à Escola de Veterinária que se pretendia criar. Chegando ao Rio
viram-se os veterinários franceses diante de uma gravíssima epidemia
de mormo e encontraram condições difíceis para o combate à doença.
Depois de quatro anos de trabalho, tendo estabelecido as bases para a
profilaxia do mormo nos diferentes regimentos da capital federal, os dois
integrantes desta primeira Missão Veterinária Francesa retornaram à sua
pátria. Durante o período de trabalho no Brasil consolidaram a ideia da
necessidade de criação do Ensino de Medicina Veterinária, sendo o Doutor João Moniz Barreto de Aragão o maior defensor deste ponto de vista.
O próprio Doutor Moniz Aragão insistiu para que uma segunda Missão
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267
Clotilde de Lourdes Branco Germiniani
Veterinária Francesa viesse dar continuidade à obra já iniciada. Assim,
em julho de 1913, depois de um estágio especial no Instituto Pasteur em
Paris, chegaram ao Rio de Janeiro o Major André de Vantillard, chefe da
Missão e seu auxiliar, Capitão Henri Marliangeas.
Esta segunda Missão encontrou a epidemia de mormo em fase regressiva e houve possibilidade de, juntamente com os oficiais brasileiros,
dar os passos necessários para a criação do ensino de Medicina Veterinária. Assim, em 17 de julho de 1914 foi inaugurada, pelo Presidente
da República, Marechal Hermes da Fonseca, a Escola de Veterinária do
Exército. Na realidade, a Escola ocupava um pequeno pavilhão de um
regimento de artilharia, no Rio de Janeiro. Foi nesta primeira sala de aulas
que os veterinários franceses Vantillard e Marliangeas, Dr. Moniz Aragão e outros médicos militares deram as primeiras aulas de Anatomia,
de Histologia, de Hipologia e de Zoologia, para um grupo de cerca de
vinte alunos. Duas semanas após a inauguração da Escola, com a eclosão
da primeira guerra mundial, Vantillard e Marliangeas foram obrigados a
retornar à França.
A Escola não parou porque Dr. Moniz Aragão, secundado por outros oficiais brasileiros do corpo de saúde, continuou as aulas. Em 15 de
fevereiro de 1917, formou-se a primeira turma de médicos veterinários,
constituída por cinco profissionais sendo que três se dedicaram à carreira
militar e dois foram para atividades civis.
Evidentemente, as aulas de algumas cadeiras especializadas como,
por exemplo, Patologia, Clínica e Cirurgia, tinham um ensino deficitário
pela ausência de profissionais da área. Por esta razão, em 1919, o Governo Brasileiro solicitou à França uma nova Missão Militar Francesa com
veterinários habilitados para dirigir e reorganizar a Escola de Veterinária do Exército e para organizar o Serviço Veterinário do Exército. Esta
terceira Missão Militar Francesa chegou ao Brasil em 6 de janeiro de
1920. Eram seus integrantes o Tenente-Coronel Henri Marliangeas e o
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A influência francesa na medicina veterinária brasileira
Major Paul Dieulouard. Estes dois profissionais ficaram no Brasil até 1933
e trabalharam junto com outros veterinários militares e oficiais da área de
Saúde, sedimentando e ampliando a obra que havia sido iniciada.
Houve progressos materiais com a instalação da Escola de Veterinária do Exército em pavilhões construídos para abrigar os diferentes serviços, aquisição de equipamentos necessários para procedimentos clínicocirúrgicos, laboratórios para aulas práticas e para exames clínicos, sala
de dissecção para anatomia, hospital, canil, câmara frigorífica, enfim o
necessário para o funcionamento do Curso. Como anexo uma Escola de
Ferradores muito bem montada.
Paralelamente a estas medidas de caráter concreto, aconteceu a elaboração de um programa de ensino, naturalmente, baseado no modelo
francês, com algumas adaptações. Assim, tendo em vista a necessidade
premente de médicos veterinários, a duração do Curso foi fixada em três
anos com uma complementação de um ano de aperfeiçoamento, previsto
para alguns anos após a saída da Escola.
Entre os veterinários formados pela Escola, alguns foram selecionados e ficaram na escola como professores, com esta prática, gradativamente, outros profissionais da área de saúde foram sendo substituídos por
médicos veterinários militares.
Ações das Missões Francesas
Em trabalho publicado em 1931, o Tenente-Coronel Henri Marliangeas listou as ações das Missões Militares Francesas. O relato do Dr. Marliangeas permite uma visão global da importância do trabalho realizado,
desde a chegada da primeira Missão em 1908 até o retorno à França dos
integrantes da terceira Missão em 1933.
As ações das Missões Francesas estão relacionadas na sequência:
1. Criação da inspeção veterinária.
2. Criação de uma Escola de Veterinária que havia formado, até
1931, 125 veterinários.
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Clotilde de Lourdes Branco Germiniani
3. Criação de uma Escola de Ferradores e de um tipo de ferradura
adotado por todo o Exército.
4. Organização do Serviço Veterinário em tempo de paz.
5. Criação de um Laboratório de Soroterapia com fornecimento de
maleína e de outros produtos.
6. Criação do Serviço de Inspeção de Carnes.
7. Criação da Cirurgia Veterinária, até então inexistente.
Conclusões
A análise da participação das três Missões Militares Veterinárias
Francesas no Brasil ressalta sua importante contribuição para a determinação das atribuições dos médicos veterinários na sociedade, assegurando melhores condições de higiene e de saúde pública.
A presença dos oficiais veterinários franceses no Brasil foi decisiva
para a criação da Escola de Veterinária do Exército e muitos profissionais
egressos desta Escola foram responsáveis pela fundação de outras Escolas de Medicina Veterinária no país.
Os veterinários militares franceses foram catalisadores da implantação do Serviço de Veterinária no Exército Brasileiro.
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Texto apresentado em julho /2009. Aprovado para publicação em
fevereiro /2010.
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):263-271, abr./jun. 2010
271
Jose Murilo de Carvalho
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
Arno Wehling 1
Resumo:
A contribuição de José Murilo de Carvalho à historiografia brasileira toma como ponto central o
da cidadania. O autor intenta identificar este
processo histórico, considerando dificuldades
como as consequências da escravidão ou persistências estruturais como a liderança dos grandes
proprietários rurais, o analfabetismo ou a baixa
geração de riqueza, altamente concentrada.
Sua abordagem metodológica leva em conta as
contribuições da história, da sociologia e das ciências políticas. O objeto de sua investigação e
sua abordagem metodológica permitiram a José
Murilo de Carvalho construir interpretações
da história brasileira no nível das de Joaquim
Nabuco, Gilberto Freyre ou Sergio Buarque de
Hollanda.
Abstract:
José Murilo de Carvalho`s contribution to Braziliana historiography hás the citizenship as its
main concern. The author intends to identify
this historical process, considering difficulties
such the consequences of slavery or structural
persistence as the rural leadership of landlords,
illiteracy or the low generation of wealth, highly
concentrated.
His methodological approach takes into account the contributions of history, sociology end
political science. The matter of his research and
his methodological point of view allowed José
Murilo de Carvalho to edify interpretations of
Brazilian history, in a high level such as Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre or Sergio Buarque de Hollanda.
Palavras-chave: José Murilo – historiografia
barsileira – cidadania
Keywords: José Murilo – brazilian historiography – citizenship
Homenageamos hoje os 40 anos de atividade profissional de José
Murilo de Carvalho.
Esta cerimônia, promovida por quatro instituições, uma universitária
e três academias no sentido renascentista-ilustrado do conceito, traduz
bem o relevo de sua contribuição e a recepção positiva que teve.
A carreira de José Murilo de Carvalho, como sabemos, é a do pesquisador, à qual se agrega a de docente universitário. Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, professor da UFMG, do IUPERJ e da UFRJ,
nesta ocupou o cargo de professor da titular de história do Brasil. Nessas
atividades produziu, ao influxo de uma reflexão permanente sobre o processo de construção do Brasil nos séculos XIX e XX, uma obra significativa, mas também – no caso das instituições universitárias – cumpriu seu
1 – Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):273-278, abr./jun. 2010
273
Arno Wehling
múnus de formador de profissionais, como professor, como orientador de
dissertações e teses e como examinador.
A excelência dessa contribuição traduziu-se também na participação
como professor visitante em instituições estrangeiras devotadas a estudos
brasileiros, como as universidades em Notre Dame, UCI, Stanford, nos
Estados Unidos, de Oxford na Inglaterra, de Leiden, na Holanda e na
École des Hautes Études em Sciences Sociales, da França. E essa excelência foi igualmente reconhecida nas premiações que recebeu como, entre outras, o Prêmio Jabuti, em duas ocasiões, o Prêmio Almirante Álvaro
Alberto, do CNPq, além de medalhas e condecorações de Minas Gerais,
seu estado, do Brasil e do exterior.
No caso das entidades que hoje o homenageiam, a Academia Brasileira de Letras, a Academia Brasileira de Ciências, a Universidade Federal
do Rio de Janeiro e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, coube a
este a honrosa prioridade de tê-lo entre seus membros, eleito que foi em
assembleia em fins de 1995. Compartilhei, com Marcos Almir Madeira, o
grande propagador de seu nome, e outros confrades, o prazer de ver nossa
indicação referendada pelo plenário.
Neste encontro certamente não devemos nos limitar à proclamação
formal de seus méritos, para justificar o ato que nos reúne. Não é ocasião,
também, de uma análise conceitual de sua obra. Mas sem dúvida cabe
assinalar alguns vieses – já que falamos no autor de livro cujo titulo é um
achado, Pontos e Bordados – que podem destacar-lhe a contribuição para
a ciência social brasileira.
Creio que não erraríamos se identificássemos o problema central da
reflexão e das inquietações de José Murilo de Carvalho no processo de
elaboração da cidadania no Brasil. Problema, um duplo sentido da realidade social e do recorte teórico-metodológico da pesquisa científica,
quando esta identifica um tema, constrói-lhe o “estado da arte” e desenvolve hipóteses para sua elucidação.
274
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447):273-278, abr./jun. 2010
Jose Murilo de Carvalho
O penoso processo de elaboração de uma cidadania, em nosso caso
particular agravado pelos avatares da escravidão e pela persistência estrutural de obstáculos como o mandonismo, o clientelismo, o analfabetismo,
a escassa geração de renda e as distorções de sua distribuição, fazem da
História, história-processo, um permanente e gritante desafio à históriaconhecimento.
Ao ler alguns textos de José Murilo de Carvalho recordo Goethe,
quando diz que escrever história é um modo de se livrar da história. O
homem de Weimar referia-se ao mundo de antes da Revolução Francesa,
em particular à Alemanha devastada pelas misérias da guerra dos 30 anos.
José Murilo de Carvalho refere-se às mazelas da herança colonial e às
insuficiências de nossa democracia.
Esse leitmotiv foi metodologicamente operado – digamo-lo em jargão universitário – com instrumentos da história começou por uma análise das elites – num microcosmo, como a Escola de Minas de Ouro Preto e
num macrocosmo, como a elite política do Império, retratada em A construção da ordem – e estendeu-se à “formação das almas” quando estudou
o imaginário da República.
Questões como a do federalismo, a atuação das forças armadas, a
ação política de homens como Joaquim Nabuco, D Pedro II, Evaristo de
Morais Filho, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Visconde de Uruguai e
Oliveira Viana e a construção da República no imaginário, expressam
bem como José Murilo de Carvalho trabalha com as diferentes perspectivas da historicidade, ocupando-se não apenas das relações sociais e de
poder, mas dos “estudos da memória” e das operações ideológicas.
Ele bem sabe que o processo histórico não torna o presente um resultado necessário do passado, como acredita os historicistas de todas as
correntes. José Murilo tem consciência de que Comte estava errado, em
seu determinismo ingênuo, ao sentenciar que “os vivos são cada vez mais
governados pelos mortos”. Ao contrário, percebe que o significado dos
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mortos é, frequentemente, manipulado pelos vivos, devido aos mecanismos da memória social desvelados pela sociologia do século passado.
Nesse sentido, provavelmente concorde com Borges, quando este
define que “Somos feitos em grande parte, de memória e que esta memória é feita, em grande parte, de esquecimento”.
Uma das grandes tarefas – e também das grandes aporias – do historiador está justamente em adentrar com segurança o universo da memória
social, identificando tanto suas manifestações quanto seus silêncios, seus
emblemas como sua rotina.
Esse trabalho, simultaneamente de natureza sociopolítica e mental,
de história e de memória, quantitativo e qualificativo, conforme a antinomia que se procure estabelecer, tem em seu bojo uma dialética complexa,
que somente se aprende com uma intuição fina e sofisticada.
Reconhecer essa perspicácia na obra de José Murilo de Carvalho não
é elogiá-la gratuitamente. Mas fazer-lhe justiça.
Contudo, esse reconhecimento, embora necessário, não é suficiente.
A intuição do historiador e do cientista político é complementada
pelo recurso ao manancial metodológico disponível. Nosso autor combina
bem a pluralidade de procedimentos oriundos dos três campos – história,
sociologia, ciência política –, permitindo uma articulação engenhosa entre acontecimento e explicação. Não se perde na massa de acontecimentos revelados pela documentação histórica e que dão aos eruditos a ilusão
de estar produzindo conhecimento histórico; nem se deixa empolgar pela
lógica do sistema explicativo, pregando a rebeldia do acontecimento em
favor da elegância da construção.
Jamais veremos em José Murilo de Carvalho o Funes, “el memorioso”, de Borges, lembrando de cada fato numa impossível escada 1:1:
nem, no outro extremo, o “peor para los hechos”, de Quixote.
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Jose Murilo de Carvalho
Intuição e método, entretando, se preexistem com configuração intelectual e treinamento naqueles “haras acadêmicos” de que falava LévyStrauss em “Tristes Trópicos”, não explicam a motivação de José Murilo
de Carvalho.
Fechamos o círculo: é o problema central de sua reflexão que o motiva. É a incompletude do problema da cidadania que dinamiza seu pensamento e sua obra.
Por isso, sua atuação coaduna-se com o papel do historiador que ensinamos a nossos alunos nas aulas iniciais de Metodologia da História: o
historiador é um homem de seu tempo. Essa ideia da contemporaneidade
do historiador pode parecer atual, e de fato o é em muitos sentidos. Os
bons historiadores se comportam dessa maneira.
Mas nem sempre é assim. Quando Henri Pirenne, o grande medievalista, visitou Estocolmo, causou surpresa a alguns colegas ao pedir para
visitar primeiro o Parlamento e depois os arquivos. Perguntaram-lhe por
quê. E a resposta foi certeira: porque precisava conhecer como se comportavam os suecos, para só então penetrar em seus arquivos.
Certamente José Murilo de Carvalho tem a sensibilidade aguda do
contemporâneo. Certa vez conversávamos sobre Bernardo Pereira de Vasconcelos e surgiu justamente a necessidade da distinção entre o coetâneo
que apenas existe sincronicamente, e o contemporâneo, que efetivamente
interage com sua época, identificando-lhe os problemas e procurando neles atuar, eventualmente – nem sempre – com uma acertada prospectiva.
Nesse sentido José Murilo de Carvalho é um homem de seu tempo,
afinado com a sua contemporaneidade.
Isso o faz, junto ás suas outras qualidades – a segurança metodológica, o domínio das fontes, o bem faro intuitivo, a sofisticação intelectual, a
percepção da complexidade do passado, porque refletora da complexidade do humano – isso o faz um belo, no pleno sentido platônico da palavra,
intérprete do Brasil.
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Arno Wehling
Caro José Murilo, sem favor algum, sua obra continua a reflexão sobre o Brasil de um Nabuco, de um Gilberto Freire, de um Sergio Buarque
de Holanda.
Texto apresentado em outubro /2009. Aprovado para publicação em
março /2010.
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A inauguração da estátua de José Bonifácio
7 de setembro de 1872
na visão de um correspondente estrangeiro, em
III – documentos
documents
A inauguração da estátua de José Bonifácio
na visão de um correspondente estrangeiro,
em 7 de setembro de 1872
The Jose Bonifacio’s statue inaugural
in the view of a foreign reporter,
on September 7, 1872
Paulo Knauss1
Hendrik Kraay2
Resumo:
Este artigo apresenta a notícia traduzida do correspondente do New York Times sobre a inauguração, em 7 de setembro de 1872, da estátua
de José Bonifácio de Andrada e Silva, no Rio
de Janeiro, Brasil. O correspondente demonstra
conhecimento considerável da política e da sociedade brasileira e fornece uma rica descrição
do ritual cívico.
Abstract:
This article reproduces and translates the New
York Times correspondent’s report on the 7 September 1872 inauguration of the statue of José
Bonifácio de Andrada e Silva in Rio de Janeiro,
Brazil. The correspondent demonstrated considerable knowledge of Brazilian society and politics and provided an insightful account of this
civic ritual.
Palavras-chave: José Bonifácio de Andrade e
Silva, Independência, Monumentos Públicos,
Festas Cívicas
Keywords: José Bonifácio de Andrada e Silva,
Independence, Public Monuments, Civic Rituals.
No aniversário de cinquenta anos da Independência do Brasil, a estátua de José Bonifácio de Andrada e Silva foi inaugurada, na cidade do
Rio de Janeiro, no Largo de São Francisco. O Jornal do Commercio registrou em suas páginas: “O dia 7 de Setembro de 1872 ficará eternamente
gravado na memória dos brasileiros, por duas poderosas razões: por ser o
1 –1Doutor em História, professor adjunto da Universidade Federal Fluminense, diretor
do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e sócio honorário do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro.
2 –1PhD from the University of Texas. Assistant professor University of Calgary, Canada.
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Paulo Knauss e Hendrik Kraay
quinquagésimo aniversário da proclamação da nossa independência e por
havermos pago nele a dívida de gratidão para com um dos maiores vultos
da nossa história.”3
Projetada por muito tempo como complemento da estátua equestre
de d. Pedro I, de 1862, localizada nas proximidades na Praça da Constituição (atual Praça Tiradentes), a escultura de bronze em homenagem
ao Patriarca da Independência foi produzida por Louis Rochet, o mesmo
artista francês responsável pelo desenvolvimento da estátua equestre.4 A
inauguração foi o ponto central das comemorações do 7 de setembro de
1872, o que chamou a atenção do correspondente do New York Times, que
assinava sob o codinome de “Tiradentes”, e cujo relato do evento apresentamos em tradução que se segue.
Nessa época, os maiores jornais dos Estados Unidos já empregavam há algum tempo correspondentes no estrangeiro. Segundo um estudo
clássico sobre a imprensa norte-americana, os principais jornais gastaram
anualmente somas “enormes” com correspondentes,5 mas muito pouco
se sabe a seu respeito. A maioria deles, como o nosso Tiradentes, publicou suas correspondências anonimamente, como se fossem pessoas que
combinavam a atividade ocasional de colaboração com a imprensa norteamericana com outros trabalhos.6 De meados de 1871 a meados de 1875 o
New York Times publicou 31 matérias “de nosso próprio correspondente”
baseado no Rio de Janeiro. Nenhuma matéria de correspondente aparece
no ano 1870 ou em 1876, o que sugere que as matérias de 1871 a 1875
podem ser tratadas como um conjunto.
Na falta de maiores evidências contrárias e devido à semelhança de
estilo, podemos assumir que as 31 matérias foram escritas pelo mesmo
3 – Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 8 de set. 1872.
4 – O mais completo relato da campanha de promoção da estátua encontra-se em: “Inauguração da estatua de José Bonifácio”, Folhinha Laemmert (1874), 3-12.
5 – Frederic Hudson, Journalism in the United States, from 1690 to 1872 (New York:
Harper & Brothers, 1873), 451.
6 – Giovanna Dell’Orto, Giving Meanings to the World: The First U.S. Foreign Correspondents, 1838-1859 (Westport: Greenwood, 2002), 4, 23-26.
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A inauguração da estátua de José Bonifácio
7 de setembro de 1872
na visão de um correspondente estrangeiro, em
autor. Escritas entre maio e agosto de 1871, as cinco primeiras são assinadas por “Intrudo”, uma alusão que certamente não era compreendida
pelos leitores de Nova York. As cartas escritas entre abril de 1872 e maio
de 1875 são assinadas por “Tiradentes” (16 delas) ou não consta nenhuma
assinatura (10). Duas matérias de Tiradentes e duas anônimas possuem
referências na primeira pessoa sobre os Estados Unidos ou sobre expatriados norte-americanos, o que indica que se tratava de um cidadão dos
Estados Unidos. Em 26 de outubro de 1873, por exemplo, “Tiradentes”
escreveu sobre um evento social importante “em nossa limitada colônia
americana”: o casamento do cônsul dos EUA e uma jovem senhora de
Buenos Aires.7
“Tiradentes” demonstrava uma simpatia considerável em relação ao
Brasil e, desse modo, ele se encaixa no perfil que foi traçado por uma estudiosa dos correspondentes estrangeiros dos Estados Unidos. Giovanna
Dell’Otro argumenta que, ao final dos anos de 1850, muitos dos correspondentes dos EUA começaram a perceber que as sociedades estrangeiras
“não eram inteiramente explicáveis pelo discurso da superioridade americana”; ao contrário, o contato dos correspondentes com as sociedades
estrangeiras conduziu a reconhecer que seus anfitriões precisavam “ser
entendidos em seus próprios termos”.8 “Tiradentes” apresenta, igualmente, um conhecimento consistente das questões políticas, o que constitui o
principal foco de suas matérias – a Lei do Ventre Livre, as difíceis relações
do Brasil com a Argentina, e a Questão Religiosa. As primeiras matérias
são ligeiramente mais descritivas e tratam as atividades e os costumes
locais, enquanto as mais tardias sugerem um visitante que gradualmente
se acostumou à sociedade brasileira. “Tiradentes” evidentemente lia os
jornais brasileiros e parece ter sido fluente em português, o que fica claro
pela sua apresentação da posição crítica de A Reforma e A República a
respeito da estátua de José Bonifácio. Ele escreveu também com desdém
sobre “meia-dúzia de cavalheiros” incapazes de falar qualquer coisa além
de inglês, que haviam sido enviados pelo “nosso governo” para servir
7 – Tiradentes, “South America ... from Our Own Correspondent”, Rio de Janeiro, 26 de
Out. 1873, New York Times, 22 de Nov. 1873.
8 – Dell’Orto, Giving Meanings to the World, 132.
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Paulo Knauss e Hendrik Kraay
como ministros dos EUA – isso antes da chegada, em 1871, do hábil James R. Partridge, um diplomata profissional que falava quatro ou cinco
línguas, inclusive português.9
A escolha de “Tiradentes” como pseudônimo obviamente sugere
simpatia pela causa republicana, mas também um considerável conhecimento do Brasil, uma vez que Tiradentes, em 1872, ainda não era muito
conhecido. Embora os republicanos já usassem a memória do personagem histórico como símbolo, a biografia do conspirador de Minas Gerais
de 1789, de autoria de Joaquim Norberto de Souza e Silva, só seria publicada em 1873.10 Apesar de seu pseudônimo, “Tiradentes” não era um
republicano doutrinário. Ele fez comentários favoráveis a d. Pedro II e
não esperava que tão cedo a república se estabelecesse no Brasil. De fato,
a descrição que faz do imperador e do ritual monárquico do 7 de setembro
de 1872 é bastante simpática.
BRAZIL
The Anniversary of National Independence11
Unveiling of a Statue – Honors to a Great Citizen – A Fine Sight –
The Metropolis by Night.
From Our Own Correspondent.
RIO DE JANEIRO, Friday, Sept. 20, 1872.
The fiftieth anniversary of Brazilian independence was celebrated,
on the 7th inst., with more than usual ceremony. As is always the custom, the day was ushered in with salutes from the forts and a furious
ringing of the church bells. Foreign war ships, decked out with flags and
streamers, also courteously joined in the celebration, and fired salutes in
9 – Tiradentes, “Brazil ... from Our Own Correspondent”, Rio de Janeiro, 25 de Jul.
1872, New York Times, 24 de Ago. 1872.
10– Joaquim Norberto de Souza e Silva, História da conjuração mineira: Estudo sobre as primeiras tentativas para a independência nacional, baseados em numerosos documentos impressos ou originais existentes em varias repartições (Rio de Janeiro: B.L.
Garnier, 1873). Sobre a promoção da imagem de Tiradentes no imaginário republicano,
veja-se: José Murilo de Carvalho, A formação das almas: O imaginário da República no
Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 1990), 55-73.
11– New York Times, 31 de Out. 1872.
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A inauguração da estátua de José Bonifácio
7 de setembro de 1872
na visão de um correspondente estrangeiro, em
honor of the Brazilian colors. Conspicuous among them was the United
States frigate Lancaster, (flagship of Rear Admiral Taylor,) the largest war
ship, I think, in this harbor, and a great favorite of the Brazilians. Toward
noon, crowds of people began to pour along the main streets leading to
Palace-square, where the Imperial family, attended by their various retinues, would shortly arrive to participate in the grand Te Deum, which is
always the first ceremony of the day. They had not long to wait – first appeared the gay equipage of Her Imperial Highness, the Imperial Princess,
and her consort, Conde d´Eu, coming from the direction of Palace Isabel,
and then was descried the massive and gilded Imperial coach, bearing
Dom Pedro himself and the Empress – the vehicle being followed by a
long train of carriages filled with chamberlains, ministers, councillors and
members of the great bodies of the State.
THE TE DEUM
I thought of course that the people would throng to the Imperial Chapel in crowds to witness the Te Deum. But such was not the case. Having
witnessed the arrival of the great folk, and seen the evolutions of the
cavalry regiment, which always serves as a body-guard on these occasions, they had little mind to spend their time in church. So the greater
part moved away toward Rua Direita and up Ouvidor, where every shop
appeared to have furnished something more than its usual contingent of
flags and streamers to the general display. Arches of gas-pipe, placed at
intervals of ten paces, over the street, and stretching from side to side,
also gave promise of a goodly illumination at night.
A GREAT CITIZEN
The Te-Deum finished and the customary audience over, there was a
grand rush of the people for the Square of San Francisco de Paula, which
was to be the principal event of the day – the unvailing [sic] of the statue
of José Bonifacio de Andrada e Silva. For the past fortnight the Press had
been giving us detailed accounts of the life and acts of this great man –
patriarch of Independence, apostle of liberty, the Brazilian Demosthenes,
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the Coimbra Professor, the philosopher, the martyr, the sage; there is no
great place but he has occupied and adorned, no splendid service but he
has rendered. This was the way the Government papers talked about him,
and nothing was spared to make the intended ceremony both popular and
impressive. The Emperor had announced his intention to personally assist at the ceremony, and certainly expressed by his manner, during the
whole of it, how sincere was the admiration and respect he held for the
character of one who had filled so large a part in the country’s history.
Proceeding on foot, accompanied by Conde d’Eu, the Ministers of State,
and Court attendants, Dom Pedro set out from the Imperial Palace, and
passed slowly through the vast crowds which filled Rua Direita and Ouvidor to the square of San Francisco de Paula, where an immense concourse
was already assembled. In the Central School near by, were several of the
descendants of Andrade [sic], and these were honored with special audiences by the Imperial family, while the final arrangements for unvailing
[sic] the statue were being made.
A FINE SIGHT
At this moment the view of the square from above was fine indeed. It
seemed to be literally packed with spectators, and down the whole length
of Ouvidor nothing could be seen but a sea of heads. Banners and flags
were flying everywhere, from house-tops, and windows, and balconies.
All eyes were turned toward the statue. Every little while a band of music
would strike up the well-known strains of the national hymn, and then
there would be a stray viva or so from some enthusiastic individual which
would only excite the laughter of his immediate neighbors. Finally, it
seemed the expectant crowd were soon to receive their reward. A stir was
noticed among the troops stationed near the main entrance of the Central
School, and presently the tall form of the Emperor, attended by Conde
d’Eu, Rio Branco and others, was seen nearing the statue. A few moments
pass, while those who are to have the honor of unvailing [sic] the statue
take their places. Then, a moment more, and the covering falls gracefully
away. In an instant the cannon posted on the Morro of San Antonio begin
to thunder; the bells of all the churches ring, and fire-rockets snap and
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A inauguração da estátua de José Bonifácio
7 de setembro de 1872
na visão de um correspondente estrangeiro, em
crack by the hundred. It is impossible that the crowd can view all this and
remain unexcited. So they give themselves up to enthusiastic cheering.
THE CITY AT NIGHT.
That night Rio de Janeiro presented a spectacle worth seeing. Everybody was in the streets, and tens of thousands came to view the statue
of Andrada, illumined by the rays of a calcium light. Inasmuch as the
Ministry had identified themselves so closely with the inauguration of
the Andrada statue, it was natural that the opposition journals should find
something wrong with the whole business. The statue was only another
“lie in bronze,” the Reforma bitterly declared, quoting words that had
been previously spoken about the equestrian statue of the First Emperor, set up in Constitution-square. “We will put a stop to this historical
lying,” cries the Republica, “and go back to the beginning of things. You
talk about Andrada, as though he were our Washington. You call him the
Patriarch of Brazilian independence; but we will tell you who it was that
first raised the cry of independence in Brazil – nay more, in South America. It was Tiradentes – he who, eighty years ago, struck a wild blow for
republican liberty, promising emancipation to the slaves in the event of
success. He it was that first preached independence, and paid for it, too,
with his life. Come, then, let us erect one truthful statue – one in honor
of Tiradentes.”
At the time of the first Emperor´s abdiction in 1831, he attoned [sic],
in some measure, for the harshness with which he had treated Andrada,
(to whom, probably more than to any other, he owed his throne,) by making him the tutor of his son, the future Emperor of Brazil. The feeling
manner with which Dom Pedro II replied to the orator´s address, delivered shortly after the unvailing [sic] of the statue, in one of the halls of
the Central School, showed too plainly how well and faithfully the tutor
had performed his duty. Brazil does well to cherish the memory of José
Bonifacio de Andrada e Silva.
TIRADENTES.
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Tradução
BRASIL
O Aniversário da Independência Nacional.
Inauguração de uma Estátua – Homenagens a um Grande Cidadão –
Uma Vista Imponente – A Metrópole à Noite
Do Nosso Próprio Correspondente.
RIO DE JANEIRO, Sexta-feira, 20 de Setembro de 1872.
O quinquagésimo aniversário da independência brasileira foi celebrada, no dia 7 do corrente, com mais do que uma cerimônia habitual.
Como é sempre de costume, o amanhecer foi anunciado por salvas de
tiros dos fortes militares e intensas badaladas dos sinos das igrejas. Os
navios de guerra estrangeiros, embandeirados, num gesto de cortesia, se
juntaram, também, à celebração com fogos de saudação em homenagem
às cores do Brasil. Entre os navios, distinguia-se a fragata Lancaster, dos
Estados Unidos (sob o comando do Contra-Almirante Taylor), que, acredito, é o maior dos navios de guerra nesse porto e um dos mais admirados
pelos brasileiros. Perto do meio-dia, multidões afluíram pelas principais
ruas rumo ao largo do Paço12, onde, acompanhada de sua ampla comitiva,
a família Imperial chegaria em breve para participar do grande Te Deum,
que é sempre a primeira cerimônia do dia. Não tiveram que esperar muito
tempo – primeiro apareceu a carruagem vistosa de Sua Alteza Imperial, a
Princesa Imperial e seu consorte, o Conde d´Eu, vindo da direção do Paço
Isabel13 e logo despontou o imponente e rico coche Imperial, transportando Dom Pedro em pessoa e a Imperatriz – sendo o veículo seguido por
uma longa fila de carruagens ocupadas por camaristas, ministros, conselheiros e altos funcionários do Estado.
O TE DEUM
Naturalmente, eu pensava que as pessoas se dirigiriam à Capela Imperial em hordas para assistir ao Te Deum. Mas não foi o caso. Uma vez
12– Atual Praça XV.
13– Atual Palácio Guanabara, localizado em Laranjeiras.
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A inauguração da estátua de José Bonifácio
7 de setembro de 1872
na visão de um correspondente estrangeiro, em
assistida à chegada das grandes figuras e depois de ver as evoluções do regimento de cavalaria, que sempre serve de guarda de honra nessas ocasiões, as pessoas tinham pouco ânimo para ficar na igreja. Assim, a maioria
se deslocou para a Rua Direita14 e subiu a do Ouvidor, onde todas as lojas
aparentemente haviam concorrido com algo mais do que o contingente
habitual de bandeiras e flâmulas para compor o arranjo geral. Arcos de canos de gás, situados em intervalos de dez passos e estendidos de um lado
ao outro da rua prometiam, igualmente, uma boa iluminação à noite.
UM GRANDE CIDADÃO
Findo o Te Deum e o cortejo de costume, houve um grande movimento de pessoas em direção ao Largo de São Francisco de Paula, onde
o principal evento do dia deveria ocorrer – a inauguração da estátua de
José Bonifácio de Andrada e Silva. Nas últimas duas semanas, a imprensa
nos dava notícias detalhadas da vida e dos atos desse grande homem – patriarca da Independência, apóstolo da liberdade, o Demóstenes brasileiro,
o professor de Coimbra, o filósofo, o mártir, o sábio; não havia nenhum
grande posto que ele não tivesse ocupado e honrado, realizando sempre
notável serviço. Assim ele era tratado em todas as folhas oficiais e não
se poupou nenhum esforço para fazer da cerimônia planejada uma ocasião popular e imponente. O Imperador anunciou sua intenção de assistir
pessoalmente à cerimônia e, certamente, expressou do seu modo, durante
toda a ocasião, quão sincera era a admiração e o respeito que dedicava
ao caráter de alguém que havia participado de modo decisivo da história
do país. Seguindo a pé, acompanhado pelo Conde d´Eu, dos Ministros de
Estado, e dos membros da Corte, Dom Pedro se pôs a caminho do Paço
Imperial e atravessou lentamente a grande multidão que enchia a Rua
Direita e [a Rua do] Ouvidor até o Largo de São Francisco de Paula, onde
uma multidão enorme já estava reunida. Junto à Escola Central, ali perto, estavam os descendentes dos Andrada, que eram homenageados com
a assistência especial da família Imperial, enquanto se completavam os
preparativos finais para o descerramento da estátua.
14– Atual Rua 1.o de Março.
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UMA VISTA IMPONENTE
Nesse momento, a vista do alto do largo foi de fato imponente. Tinhase a sensação de que estava literalmente lotado de espectadores, assim
como ao longo de toda a [Rua do] Ouvidor não se podia ver mais do que
um mar de cabeças. Estandartes e bandeiras tremulavam por todo lado,
do alto das casas, de janelas e sacadas. Todos os olhos se dirigiam para
a estátua. A cada novo momento uma banda de música tocava a melodia
conhecida do hino nacional e, então, um viva isolado ou algo parecido
de algum indivíduo entusiasmado chamava a atenção e provocava risos
de seus vizinhos imediatos. Finalmente, parecia que a multidão ansiosa
logo ia receber sua recompensa. Uma agitação foi percebida no meio das
tropas posicionadas perto da entrada principal da Escola Central, quando
de repente a figura alta do Imperador, acompanhada do Conde d’Eu, de
Rio Branco15 e outros, foi avistada se aproximando da estátua. Passam-se
alguns instantes, enquanto aqueles que terão a honra de descerrar a estátua tomam seu lugar. Então, depois de mais um instante, o pano cai graciosamente. Imediatamente os canhões posicionados no Morro de Santo
Antonio começam a troar; os sinos de todas as igrejas repicam, enquanto
estouram e soam centenas de rojões. É impossível que a multidão visse
tudo isso e ficasse impassível. Assim, levanta-se em aplausos entusiásticos.
A CIDADE À NOITE
Naquela noite, o Rio de Janeiro apresentou um espetáculo inesquecível. Todo mundo estava nas ruas e milhares [de pessoas] vieram para
ver a estátua do Andrada, iluminada pelas lâmpadas de luz de cálcio.16
Considerando que o governo havia se identificado tanto com a inauguração da estátua do Andrada, era natural que os jornais oposicionistas
encontrassem algo de errado com tudo aquilo. A estátua era apenas mais
15– José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco, então presidente do conselho
de ministros.
16– O Jornal do Commercio (e os outros jornais) mencionam apenas “duas luzes elétricas”, Jornal do Commercio, 8-9 de setembro de 1872.
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A inauguração da estátua de José Bonifácio
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na visão de um correspondente estrangeiro, em
uma “mentira de bronze”, declarou de modo afiado a Reforma,17 citando
palavras que já haviam sido pronunciadas sobre a estátua equestre do
primeiro Imperador, erguida na Praça da Constituição18 – “Nós vamos
dar um basta a essa mentira histórica”, proclama a República, “e vamos
retomar as coisas do começo. Falam do Andrada, como se ele fosse nosso
[George] Washington. Chamam-no de Patriarca da Independência brasileira; mas nós vamos contar quem foi o primeiro a bradar o grito de
independência do Brasil – até mesmo na América do Sul. Foi Tiradentes
– quem, oitenta anos atrás, realizou um ato ousado em favor da liberdade
republicana, prometendo a emancipação dos escravos no caso de vitória. Ele foi o primeiro a pregar a independência, e pagou por isso com a
própria vida. Venham, então, vamos erguer uma estátua de verdade – em
homenagem a Tiradentes.”19
Na época da abdicação do primeiro Imperador, em 1831, ele reparou,
em alguma medida, a aspereza com que tinha tratado Andrada (a quem,
a mais que nenhum outro, provavelmente, ele devia o seu trono), tornando-o tutor de seu filho, o futuro Imperador do Brasil. O tipo de sentimento
com o qual Dom Pedro II reagiu ao discurso do orador, pronunciado pouco depois da inauguração da estátua num dos salões da Escola Central,
demonstrou plenamente quão leal e empenhado o tutor foi na realização
de sua tarefa. O Brasil faz bem em cultivar a memória de José Bonifácio
de Andrada e Silva.
TIRADENTES
Texto apresentado em agosto /2009. Aprovado para publicação em
fevereiro /2010.
17– Ver “As duas estatuas”, A Reforma, 7 de Set. 1872.
18– Atual Praça Tiradentes.
19– Salvo engano, não achamos essas palavras em A República. Parece ser um resumo do
editorial “A farça imperial”, A República, 7 de Set. de 1872, e a proclamação de Dr. Pedro Bandeira de Gouvea, que lançou uma campanha para erigir uma estátua a Tiradentes
poucos dias depois. Ver “Estatua de Tiradentes: Subscripção popular”, A República, 12 de
Set. 1872.
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Antropologia brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto
IV – RESENHAS
REVIEW ESSAYS
Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard
Roquette-Pinto.
Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá (orgs.) Belo
Horizonte, UFMG e Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2008.
José Arthur Rios 1
O título do livro deriva da expressão cunhada por Edgard RoquettePinto, tema principal dessa coletânea de ensaios. As organizadoras, técnicas e professoras da Casa de Oswaldo Cruz, uma, socióloga (Nísia),
outra, historiadora (Dominichi), ambas se completam na interpretação e
na análise documental dos dados e informações colhidos em obras, correspondências e arquivos, sobre essa curiosa figura de sábio e pioneiro.
Robert Wegner assina erudito Prefácio completado por uma Apresentação das organizadoras que associam a trajetória intelectual de Roquette-Pinto à própria história da República na primeira metade do século
XX e, mais que isso, à historia das ideias e do pensamento científico
naquelas décadas.
Valiosa a transcrição de uma palestra de Roquette sobre “Ciência e
Cientistas do Brasil”, proferida em 1939, onde nos dá, com a autoridade
de protagonista, o estado da questão, uma visão panorâmica dos avanços e atrasos das ciências físico-naturais no Brasil da época. Duas ideias
transparecem (Dominichi) nesse texto: – a influência do Positivismo e
a preocupação dominante na legitimação da ciência, sobretudo de uma
“ciência pura” face a uma “ciência aplicada”.
1 –1Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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Na mesma perspectiva interpretativa, Alberto Venâncio Filho analisa
a obra de Roquette-Pinto como expressão de humanismo, assinalando a
importância da formação positivista, bebida desde tempos escolares, na
gênese do pensamento do autor de Rondônia; bem como sua tentativa
de conciliar ciência e técnica com as melhores fontes do humanismo do
século XIX, sobretudo com a obra de Goethe, de declarada influência na
obra de Roquette.
Central, no livro, o ensaio de Nísia Trindade Lima situando o cientista na sua geração, no papel renovador e contestatário que esta desempenhou face à sociedade patriarcal e à cultura que produziu, baseada na
inteligentsia bacharelesca, na aversão das elites ao trabalho manual e na
retórica romântica.
Nessa perspectiva – do amplo processo de desagregação do regime
escravista e da sociedade patriarcal, e a demorada extinção de suas marcas – as autoras situam a obra de Roquette. Seria esta mais um capítulo
na busca de identidade do povo brasileiro. Escreve em momento de transição social e cultural em que antigas categorias explicativas como “raça”
e “mestiçagem” vão cedendo lugar a traços culturais persistentes como
analfabetismo, doença e atraso. Tudo isso se prende à ascendência das
camadas médias urbanas na sociedade brasileira, ansiosas por abraçar,
na nova República, uma ideologia justificadora. Nesse cenário avulta o
papel inspirador – e formatizador – do que João Cruz Costa chamou “positivismo difuso”, de remota, mas certa raiz na doutrina de Comte.
Esse Positivismo sui generis é tema do ensaio de Luiz Otávio Ferreira (“Ethos positivista e a institucionalização das ciências no Brazil”)
onde salienta a função do arcabouço institucional então criado, institutos,
centros de pesquisas e laboratórios, sem o que as ideias renovadoras dessa
nova geração careceriam de uma caixa de ressonância. Como demonstra
o autor, mediatizaram essas instituições as inovações intelectuais trazidas
pelos cientistas, articulando sua atividade com um sistema de ensino superior, criando campo de prova para as primeiras reformas universitárias.
Sob esse aspecto, a obra de Fernando de Azevedo, companheiro de gera-
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ção de Roquette-Pinto, é bastante característica dessas vocações. Nesses
avanços científicos, – caruncho no tronco – brota o cientificismo, no qual
capitulam os melhores espíritos – Alberto Torres, Oliveira Vianna, Euclides, que pagaram preço alto à pseudociência dos tempos.
Essa institucionalização se prende a amplo projeto nacional. É o
grande tema de Rondônia, como evidenciam, em outro ensaio, a mãos
juntas, Nísia Trindade Lima, Ricardo Ventura Santos e Carlos E. A Coimbra Junior. A obra de Roquette resultou de um projeto caro à nova República – a expedição Rondon e a implantação das linhas telegráficas no
extremo Oeste. Graças a Rondon, a ciência não se legitimava apenas pelas elocubrações e descobertas de gabinete, mas por propiciar a extensão
do Estado às regiões inóspitas, aos “sertões” do Brasil; e a incorporação
das populações indígenas à proteção paternalista do Governo. O “sertão”
é assim anexado à cultura urbana e o sertanejo – o homem forte, mas
abandonado, de Euclides, – é agora associado à obra coletiva da criação
nacional. Em Rondônia, como os autores vêm a obra mestra de Roquette,
ocorre a transição da antropologia física de Broca, Bertillon e outros –
a antropologia das medidas antropométricas – para uma redefinição do
“primitivo” que só poderá se processar em termos culturais.
Ricardo Ventura Santos aborda o mesmo tema sob o ângulo da mestiçagem, objeto de acalorados, às vezes transviados, debates na sociologia
e na medicina da época e que levaram Roquette, admirador de Euclides, a
separar-se, nesse ponto, do cientificismo do autor dos Sertões. Na discussão o autor exalta, com acerto, a importância da componente nacionalista
que vai dominar a polêmica nos anos 20 e 30.
É justamente o momento em que o debate passa do domínio cientifico
– ou cientificista – para o campo político e avulta, no cenário internacional
do após Primeira Guerra, – cortado de redefinições de fronteiras e movimentação de povos, – o problema das migrações. É este objeto do denso,
pesquisado e fundamentado ensaio de Giralda Seyferth (“Roquette-Pinto
e o debate sobre raça e imigração no Brasil”). Demonstra os obstáculos
ideológicos que atravancavam o caminho para uma solução racional e
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despreconceituosa do problema. Ditadas por uma teorização equivocada
e lacunosa, surgem, no cenário brasileiro, propostas que, hoje, nos fazem
rir, assinadas por figuras respeitáveis, alguns médicos, de renome.
Típica é a reação de muitos à imigração japonesa, tida como ameaça
à nossa pureza racial, a ponto de merecer a denúncia de “perigo amarelo”.
Assim também a repulsa à mera possibilidade de uma imigração chinesa
acalentada por alguns líderes desde o tempo do Império, como substituta no latifúndio cafeeiro, à escravidão africana – e até considerada nos
anos 30 “repugnante”. Obedece aos mesmos preconceitos a sugestão de
adoção do sistema de quotas, cópia do modelo americano. Essas ideias,
como verifica a autora, resultaram em políticas, ditaram critérios restritivos quando não proibitivos, contra correntes imigratórias que nos teriam
trazido, como algumas de fato trouxeram, progresso social, tecnologia e
prosperidade. Eram todas sustentadas em nome da pureza da raça, conceito de problemática definição.
A confusão, muitas vezes ciente e consciente, entre raça, etnia, povo
e nacionalidade, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial e durante
o Estado Novo, resultou de fato em políticas anti-imigrantistas. É o tema
de Jair de Souza Ramos (“Como classificar os indesejáveis?”). O autor,
no entanto, usa o termo “racialização”, “medidas racialistas”, quando na
verdade está falando de racismo, tout court, agravado no período da Segunda Guerra, pela entrada do Brasil na luta contra o Eixo e que atingiu,
por motivações diversas, os descendentes de italianos, alemães e japoneses no Sul do Brasil, e também judeus que tentavam fugir à perseguição
nazista – como fartamente documentado. Roquette-Pinto prestou-se, no
caso, a interpretações nacionalistas, quando afirmou que o brasileiro não
precisava de substituto – nivelando-se a outro contemporâneo que ficou
célebre pela afirmação “o brasileiro é o melhor imigrante”.
A preocupação da Eugenia, generalizada na época e importada dos
círculos científicos europeus e norte-americanos, constituiu tropeço no
pensamento de Roquette, como demonstra Vanderlei Sebastião de Souza
(“As leis da eugenia na antropologia de Roquette-Pinto”). A Eugenia an-
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dou muito associada às teorias racistas, tornou-se, na Alemanha nazista,
instrumento e desculpa para a eliminação de “indesejáveis” – leiam-se
minorias, os chamados “quistos” – termo usado no Brasil para designar
as colônias alemãs no Sul – por serem, segundo os autores dessas teorias,
inassimiláveis, irredutíveis ao melting pot brasileiro. Assim também foram considerados os “amarelos”, os orientais de várias procedências, cuja
assimilação e docilidade à miscigenação tornaram-se hoje evidentes, a
olho nu, para quem transita nas ruas de São Paulo, onde se misturam gostosamente com os descendentes dos bandeirantes, arianos e não – arianos,
caros a Oliveira Vianna.
Os últimos ensaios do livro dedicam-se à descrição do enorme papel
desempenhado pelo autor de Rondônia na criação da nossa radiofonia
educativa. E, paradoxalmente, na elaboração das normas de censura a
esse novo meio de comunicação. Ildeu de Castro Moreira, Luisa Massarani e Jaime Aranha descrevem a importância de Roquette na nossa
primeira divulgação científica, enquanto Regina Horta Duarte compõe
um retrato do Roquette viajante e Sheila Schwartzman realça sua contribuição ao uso educativo do cinema.
Enriquece o livro farto material fotográfico e cartográfico e a transcrição de textos de Roquette-Pinto, alguns inéditos. É de lamentar a falta
de um índice onomástico, indispensável face à riqueza das fontes consultadas e citadas.
Nenhum praticante das ciências humanas está isento da contaminação com teorias espúrias, ranço de seu pensamento cientificismo, seja
o darwinismo de seu pensamento social, o positivismo, o marxismo de
pacotilha ou a psicanálise de bolso. O livro, de titulo elusivo, mas de leitura essencial, é indispensável para uma visão dos caminhos e descaminhos da antropologia brasileira – ainda que não brasiliana – nas primeiras
décadas do século passado; e mais, para uma compreensão dos problemas
epistemológicos e metodológicos que enfrentou na transição, ou acomodação, entre uma ciência biológica e uma ciência da cultura.
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Nesse sentido, a obra de Roquette-Pinto, como nos demonstram os
ensaios coligidos no livro, é paradigmática. Não se abalançaram as organizadoras a uma síntese conclusiva sobre o ideário de Roquette-Pinto, seu
legado às novas gerações, talvez porque a riqueza do material reunido em
ensaios tão variados e a vivência do cotidiano institucional na Fiocruz – à
qual Roquette esteve tão associado – lhes dificultassem a distância e a
perspectiva necessárias.
Que era, afinal, a “antropologia brasiliana”, alem de um modismo?
Que resta desse empreendimento, uma vez despido das aderências ideológicas de seu tempo?
O livro mereceria um capitulo sobre o administrador de instituições
que foi Roquette – como diretor do Museu Nacional; quando, em momento crítico – a gripe espanhola, – assumiu a direção de uma enfermaria
do Hospital Deodoro; ou quando esteve à frente da primeira emissora de
radiodifusão do Brasil, depois mutado na Rádio MEC que, em 1937, ele
doou generosamente ao Ministério da Educação e Saúde. E quando, ainda, em 1936, dirigiu o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).
Essa intensa, importante atividade institucional é mencionada, mas
não devidamente descrita e analisada para a compreensão necessária do
que seria, naqueles anos, um administrador institucional do porte criativo
de Roquette.
Como convivia o cientista, o humanista, com o clima autoritário,
depois totalitário do Estado Novo? Como teria disciplinado a censura
cinematográfica? Que censura era essa? Qual teria sido o convívio de
Roquette com a Ditadura, de origem positivista e constituição salazarista,
que iria formalizar-se na carta de 1937 e esterilizou, com o peso de suas
burocracias, tanta iniciativa fecunda na educação e na saúde?
De um a outro capítulo, delineia-se o perfil de Roquette-Pinto educador. Merecia capítulo à parte. Difícil, também neste passo, compreender
como o signatário do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” –
com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Francisco Venâncio Filho e
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tantos outros – documento de tempera liberal, veio a filiar-se ao Partido
Socialista Brasileiro, no qual chegou a candidatar-se em 1954 a deputado
à Câmara Federal. Que socialismo era esse? O de Proudhon ou o de SaintSimon? Não seria certamente o de Marx.
Outro ponto que mereceria análise, nessa personalidade – de tão ricas e instigantes contradições – era sua religiosidade. Chegou a articular,
nos idos de 1935, um curioso Credo (sic), onde parece transitar do Positivismo, doutrina conservadora, para um Socialismo reformista.
Não há dúvida que essas tensões eram as de sua geração, alimentada
pelas ideias de Darwin, de Spencer, de Comte, e animada por um Romantismo fundamental. Nascidos poucos anos depois da Abolição da escravatura, esses pensadores cresceram nos padrões e comportamentos persistentes de uma sociedade patrimonialista e de uma cultura bacharelesca.
Sem a prática do método científico e sem as disciplinas da Universidade
esses cientistas formam-se ao acaso do encontro, da viagem, do livro ou
da experiência estrangeira, ainda apegados, malgie soi, ao discurso, ao
culto da palavra, ao individualismo decorativo – menos ao laboratório,
ao trabalho técnico e manual à pesquisa de equipe. Admirável, tenham
conseguido produzir uma ciência e uma estrutura institucional, pagando alto preço ao ufanismo que os levaria às aberrações nacionalistas dos
anos 30, à Ditadura de 37, às restrições criminosas à imigração – enfim,
até ao Racismo.
Livrou-se Roquette dessa maleita e do racismo arianista pelo conceito problemático de uma raça brasileira – ou brasiliana – encontrada por
Euclides no sertanejo, por Roquette nos nhambicuaras. Bastante cientista,
no entanto, Roquette percebeu que esse brasiliano não podia ser “antes
de tudo um forte” e continuasse analfabeto, verminótico, tuberculoso, enquanto exercesse práticas agrícolas destrutivas – e que era preciso tratálo, dar-lhe hospital, vacina, arado. Essa a grande missão que destinava ao
Estado e às elites do seu tempo.
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Nessas esperanças, de alguma forma, comungamos, indivíduos ou
instituições. Desse idealismo, não no sentido de Oliveira Vianna, mas no
comum, Roquette, como o livro assaz demonstra, foi exemplo egrégio e
continua mestre e inspirador.
Texto apresentado em dezembro /2009. Aprovado para publicação
em fevereiro /2010.
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Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
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