1
CRIANÇAS E ADOLESCENTES
TRABALHANDO?
UMA ALTERNATIVA DE SOBREVIVÊNCIA
QUE ATRAVESSA GERAÇÕES
2
Maria de Fátima Pereira Alberto
Organizadora
CRIANÇAS E ADOLESCENTES
TRABALHANDO?
UMA ALTERNATIVA DE SOBREVIVÊNCIA
QUE ATRAVESSA GERAÇÕES
Editora Universitária
João Pessoa
2007
3
Coordenadora
Maria de Fátima Pereira Alberto
Técnicas Extensionistas
Bernadete de Oliveira Nunes
Maria Helena Serrano F. Lins
Secretária
Maria da Luz Alberto
Mestrandos, Monitores, Estagiários, Bolsistas e Voluntários
Ádria Melo Soares
Daniele Cristine da Silva Cirino
Gabriel Pereira de Souza
Juliane de Sousa Fernandes
Nozângela Maria Rolim Dantas
Olívia Maria C. G. de Sousa
Orlando Júnior Viana Macedo
Taiana da Silva Nunes
Revisão dos originais
Francisco de Assis Dantas
Digitação
Daniele Cristine da Silva Cirino
Desenho de Capa
Anselmo de Oliveira Nunes
Arte da Capa
Anselmo de Oliveira Nunes
Alunos do 2º Curso:
Adalvaci de Medeiros Barreto
Edilma Ferreira dos Santos
Filomena Elisa de Sousa Pignata
4
Gabriel Pereira de Souza
Hélder Oliveira da Silva
Hosana Celi Oliveira e Santos
Juliane de Sousa Fernandes
Lijavan Lins
Luciana de Souza Pereira
Luzinete Victor de Barros
Maria das Graças Santos
Maria de Lourdes Alves Rodrigues
Maria do Socorro Santos Neves
Maria José Basílio de Oliveira
Maria Patrícia Mendonça de Albuquerque
Marinésio Pequeno da Silva
Milane Rocha Oliveira
Rita de Cássia Pereira
Valdelice Oliveira de Souza
Valquíria Lira Oliveira
Zuleide Ferreira da Silva
Coordenadora do Unicidadania
Ronidalva de Andrade e Melo
Ministério das Relações Exteriores da Itália
Cooperação Italiana
Movimento Leigo América Latina – MLAL
Coordenador do MLAL no Brasil
Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ
Universidade Federal da Paraíba
[email protected]
5
“É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na
condição de aprendiz”. (Art. 60 do Estatuto da Criança e do
Adolescente).
“Já trabalhei com minha mãe e meu padrasto no lixão. Lá as pessoas
brigam para catar o lixo. Uma vez um homem jogou um pedaço de ferro
no outro e ele morreu”. (fala da criança de 12 anos).
“Me sinto muito triste, quando a gente passa as pessoas dizem, ei, cata
lixo, fica nos humilhando”. (fala da adolescente de 14 anos).
6
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO, 10
1. A FORMAÇÃO DE AGENTES DE DIREITOS HUMANOS PARA A ATUAÇÃO
NA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL, 13
Maria de Fátima Pereira Alberto
Daniele Cristine da Silva Cirino
Nozângela Maria Rolim Dantas
Taiana da Silva Nunes
Ádria Melo Soares
Maria Helena S. França Lins
Bernadete de Oliveira
Maria da Luz Alberto
2.
MENINOS
E
MENINAS
CATADORES
E
CATADORAS
DE
LIXO
RESIDENCIAL NO BAIRRO DE TIBIRI II – Santa Rita/PB, 30
Zuleide Ferreira da Silva.
Maria do Socorro Borges Barbosa
3. ADOLESCENTES FEIRANTES DE VÁRZEA NOVA: REALIDADE E
PERSPECTIVAS, 39
Luciana de Souza Pereira
Rita de Cássia Pereira
Bernadete de Oliveira
4. TRABALHO PRECOCE E PRECARIZAÇÃO: UM ESTUDO DA ATIVIDADE
FRETISTA EM BAYEUX, 46
Marinésio Pequeno da Silva
Marinalva de Sousa Conserva
7
5. O VAI E VEM DA MARÉ: O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
NO ESTUÁRIO DO RIO PARAÍBA NA CIDADE DE BAYEUX, 58
Gabriel Pereira de Souza
Hélder Oliveira da Silva
Maria de Fátima Pereira Alberto
6. “VAI UM ‘CARREGO’ AÍ”? A DURA LIDA DOS FRETISTAS EM
MANGABEIRA, 69
Maria José Basílio de Oliveira
Maria das Graças Santos
Edil Ferreira da Silva
7. MENINOS QUE FREQÜENTAM O CLUBE DO MENOR TRABALHADOR, 81
Edilma Ferreira Dos Santos
Lijavan Lins
Milane Rocha Oliveira
Bernadete Oliveira
Maria Helena S. França Lins
8. O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA:
DANOS PSICOSSOCIAIS E NEGAÇÃO À INCLUSÃO SOCIAL, 93
Juliane de Sousa Fernandes
Sandra Magda Araújo de Almeida Xavier
9. A VIOLÊNCIA DO TRABALHO INFANTO-JUVENIL DOMÉSTICO, 105
Valdelice Oliveira de Souza
Anísio José da Silva Araújo
Marlene de Melo B. Araújo
8
10. TRABALHO INFANTO-JUVENIL DOMÉSTICO: UMA VIOLAÇÃO AOS
DIREITOS HUMANOS, 115
Luzinete Victor de Barros
Maria Lígia Malta de Farias
11. A REPRODUÇÃO FAMILIAR A PARTIR DA ATIVIDADE DE CATA DE
LIXO:
UMA
ALTERNATIVA
DE
SOBREVIVÊNCIA
QUE
ATRAVESSA
GERAÇÕES, 127
Maria Patrícia Mendonça de Albuquerque
Valquíria Lira Oliveira
Thereza Karla de Souza Melo
12. PAIS DESEMPREGADOS: CRIANÇAS TRABALHANDO? A RELAÇÃO
ENTRE DESEMPREGO DOS PAIS E TRABALHO PRECOCE, 136
Maria do Socorro Santos Neves
Maria de Lourdes Alves Rodrigues
Anísio José da Silva Araújo
13. A VISÃO DOS PAIS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES INSERIDOS NO
PETI, 148
Adalvaci de Medeiros Barreto
Maria de Fátima Pereira Alberto
14. ATUAÇÃO DO PETI NA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL NO
ASSENTAMENTO CAMPOS DE SEMENTES E MUDAS CRUZ DO ESPÍRITO
SANTO/PB, 158
Hosana Celi Oliveira e Santos
Maria do Socorro Borges Barbosa
9
15. O IMPACTO DO PROGRAMA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO
INFANTIL – PETI – NA VIDA DAS CRIANÇAS TRABALHADORAS PRECOCES
NO MUNICÍPIO DE JOÃO PESSOA: A AÇÃO DA JORNADA AMPLIADA, 169
Filomena Elisa de Sousa Pignata
Maria de Fátima Pereira Alberto
16. TRABALHO PRECOCE E ESCOLARIZAÇÃO: UM COTIDIANO DE
ADVERSIDADES, 182
Olívia Maria C. G. de Sousa
Maria de Fátima Pereira Alberto
17. FORMAÇÃO E TRABALHO PARA AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES DAS
CLASSES POPULARES, 188
Orlando Júnior Viana Macedo
Maria de Fátima Pereira Alberto
10
APRESENTAÇÃO
Uma sociedade em que os trabalhadores são explorados e têm seus direitos
relativizados, flexibilizados conforme os interesses conjunturais do capital, em que crianças
e jovens são violentados das mais variadas formas, em que os idosos são desqualificados
como cidadãos, não é uma sociedade boa de viver. Pelo contrário, essa é uma sociedade
construída através de mecanismos que produzem processos de desumanização. É uma
sociedade doente e que produz doença. É uma sociedade que produz seres humanos
desumanizados, porque os limites que impõe ao livre desenvolvimento das pessoas
cerceiam a capacidade crítica e criativa delas.
No entanto, há pessoas que vivem numa sociedade desse tipo e acreditam que a
amizade e a generosidade devem ser os principais princípios reguladores da convivência
social, pois é a forma pela qual o que há de melhor entre os humanos pode gerar
dispositivos que combatam o que há de pior. Para essas pessoas, os processos sociais
desumanizadores devem ser permanentemente denunciados e deve-se procurar criar
mecanismos de combate e de transformação de tudo aquilo que produz e sustenta esses
processos.
A sociedade brasileira é uma dessas sociedades e, particularmente, a sociedade
paraibana. Porém, as pessoas que participaram da produção dos artigos deste livro estão
entre aquelas que se dispõem denunciar e combater os mecanismos de desumanização,
entre eles, os mecanismos e práticas sociais de violência contra crianças e adolescentes, são
produzidos através do trabalho infanto-juvenil.
Os autores dos artigos que compõem este livro foram professores e alunos do II
Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho
Infanto-Juvenil Urbano e Rural. Esse Curso ocorreu nos anos de 2003 e 2004 e foi
organizado pela Universidade Federal da Paraíba, envolvendo vários de seus segmentos
acadêmicos como o Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares (SEAMPO) do
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA), Grupo de Pesquisa Subjetividade e
Trabalho, também do CCHLA, Centro de Referência em Saúde do Trabalhador
(CERESAT) do Centro de Ciências da Saúde (CCS) e Laboratório de Geografia da Paraíba
do Centro de Ciências Exatas e da Natureza (CCEN). O Curso ocorreu através de convênio
11
entre a UFPB e uma ONG italiana, o Movimento Leigo para a América Latina (MLAL),
através de seu projeto Universidade e Cidadania (Unicidadania), e que viabilizou apoio
financeiro do Ministério das Relações Exteriores do governo italiano para a realização do
curso.
O primeiro capítulo do livro descreve os objetivos e as concepções que nortearam a
realização desse Curso, assim como sua forma de organização e operacionalização.
Em outros capítulos, são apresentadas e discutidas, em alguns, de forma sumária, e,
em outros, de forma mais aprofundada, várias situações de trabalho infanto-juvenil na
Paraíba, tanto no meio urbano como no meio rural, onde crianças e adolescentes, meninos e
meninas, vivem as mais variadas condições de exploração, sofrimento físico e mental,
frustração e cerceamento de direitos. Essas situações foram verificadas in loco, através de
observações e entrevistas realizadas pelos alunos e sob a supervisão de professores do
Curso.
Da mesma forma, são também apresentadas e discutidas, em outros capítulos, as
visões dos pais sobre o tema do trabalho dos filhos menores, da relação entre desemprego
dos pais e trabalho precoce. Também são analisadas práticas implementadas por políticas
públicas decorrentes do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e por
entidades civis que trabalham com esse tema. Os dois últimos capítulos tentam discutir o
que tem sido chamado de trabalho precoce e sua relação com a escolarização, assim como a
relação entre trabalho e formação profissional de adolescentes das classes populares.
O Curso conseguiu articular a tão falada, mas pouco exercitada, integração entre
ensino, pesquisa e extensão. Por isso, propiciou aos alunos, na grande maioria com
experiências importantes de trabalho junto a famílias, crianças e jovens do meio popular, a
oportunidade de aprofundar o debate sobre suas experiências, alargando o significado delas
e discutindo as possibilidades concretas de consolidação e ampliação de seus trabalhos
profissionais.
Neste sentido, é importante destacar o elenco de resultados concretos que o trabalho
de extensão universitária proporcionado pelo Curso produziu, através do envolvimento de
seus professores e alunos e das parcerias exercitadas, apresentados no primeiro capítulo.
Este livro, ao denunciar atrocidades, não é pessimista. É um convite à participação
em um projeto de luta contra uma das maiores perversidades do capitalismo: transformar o
12
trabalho em formas de degradação humana, particularmente, quando isso significa
transformar a fragilidade e o sonho de crianças e adolescentes em frustração, desencanto
com a vida e sofrimento.
Genaro Ieno Neto
Professor do Depto de Psicologia
UFPB
13
CAPÍTULO 01
A FORMAÇÃO DE AGENTES DE DIREITOS HUMANOS PARA A ATUAÇÃO
NA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
Maria de Fátima Pereira Alberto1
Daniele Cristine da Silva Cirino2
Nozângela Maria Rolim Dantas3
Taiana da Silva Nunes4
Ádria Melo Soares5
Maria Helena S. França Lins6
Bernadete de Oliveira7
Maria da Luz Alberto8
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é apresentar um modelo de formação de agentes de direitos
humanos para atuarem na erradicação do trabalho infantil e defesa do adolescente
trabalhador. Esta formação teve como cenário o 2º Curso de Formação de Agentes de
Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural.
O curso deu-se como prática de extensão universitária na tentativa de se viabilizar os
Direitos Humanos através da Educação Popular
1
Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pósgraduação em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho –
GPST/UFPB e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB.
2
Licenciada em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba; Graduanda do Curso de Formação em
Psicologia/UFPB.
3
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Federal da Paraíba/UFPB;
Licenciada em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba/UFPB.
4
Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba/UFPB.
5
Psicóloga. Educadora do Programa Sentinela.
6
Comunicóloga. Educadora do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO.
7
Psicóloga. Mestra em Saúde do Trabalhador pela EBSP/FIOCRUZ. Educadora do Setor de Estudos e
Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO.
8
Secretária do Departamento de Comunicação-DECOM da Universidade Federal da Paraíba- UFPB.
14
Neste modelo, a extensão ocupa o primeiro lugar, o de pólo articulador, uma vez
que foi a partir desta atividade que se constituiu a proposta de se formar agentes de direitos
humanos para atuarem na erradicação do trabalho infantil e na defesa do adolescente
trabalhador.
No entanto, a extensão carecia da pesquisa e do ensino para que se pudesse
concretizar esse modo de fazer intervenção que, ao mesmo tempo, produzisse
conhecimento e o transmitisse, num processo de retroalimentação. Assim como a Educação
Popular e os Direitos Humanos, as noções de Comunidade Ampliada de Pesquisa foram
norteadores dessa experiência de formação.
A TRAJETÓRIA DO CURSO DE FORMAÇÃO DE AGENTES
Desde a década de 80, professores da Universidade Federal da Paraíba estudam,
pesquisam e produzem sobre a temática do trabalho infantil. Nessa trajetória, em que havia
o contato com a literatura sobre a infância, algumas questões nos chamavam a atenção:
Quanto à primeira, a infância da criança das classes subalternas é representada, nos
referenciais teóricos, como aqueles indivíduos à margem, excluídos, tanto nas instituições
de atendimento quanto no Código do Menor de 1927. O trabalho é visto e pensado para
esses sujeitos como um instrumento disciplinador. Até mesmo no discurso dos militantes,
dos movimentos sociais, esta questão não está suficientemente resolvida. O trabalho
aparece como uma saída para a vida dessas crianças. Embora todos se digam contrários,
alguns concebem o trabalho como formador ou capacitador. Tais abordagens são formas
que camuflam a exploração e que têm, na sua gênese, a precocização e a discriminação da
criança, uma vez que o trabalho é pensado apenas para as crianças dessas classes.
Quanto à segunda questão, já víamos com particular interesse que, mesmo
discutindo e refletindo sobre a erradicação do trabalho precoce, os movimentos sociais com
que trabalhávamos apresentavam dois problemas: a) havia pouco acesso a pesquisas que na
Paraíba, tratavam desta temática; b) considerava-se como dano a inserção precoce no
trabalho, mas não se tinha muita clareza sobre quais eram esses danos,9 principalmente para
9
Exceção seja feita à obra de Moreira (1995) que trata dos impactos sobre a saúde de crianças trabalhadoras
na cana-de-açúcar, na zona da mata da Paraíba.
15
algumas categorias de trabalhadores infantis, aquelas inseridas nas chamadas atividades
invisíveis, como o trabalho informal e o trabalho doméstico.
Seguindo essa trajetória, interessamo-nos em estudar as vivências subjetivas dos
trabalhadores e trabalhadoras precoces (meninos e meninas) nas várias formas de trabalho.
Entendemos que a inserção precoce é danosa para crianças e adolescentes, mas nos
interessa compreender especificamente em que aspectos do desenvolvimento psicossocial
ele é danoso.
Em 1997, constituiu-se na Universidade um grupo multidisciplinar no campus I,
cujo objeto da parceria que integrou professores, técnicos e estudantes, foi a realização de
um projeto integrado de extensão, pesquisa e ensino na temática do Trabalho InfantoJuvenil.
Tendo como respaldo esta trajetória de trabalho, a UFPB, através da parceria de
vários setores (Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares/CCHLA, Grupo de
Pesquisa Subjetividade e Trabalho/CCHLA, Centro de Referência em Saúde do
Trabalhador/CCS e Laboratório de Geografia da Paraíba/CCEN), juntamente com o
Projeto Universidade e Cidadania – Unicidadania10, se propôs a realizar no Estado da
Paraíba um projeto de formação de agentes de direitos humanos na área do “Trabalho
Infanto-Juvenil Urbano e Rural”, visando, através de cursos, contribuir na melhoria da ação
profissional desses agentes, bem como, através da pesquisa, produzir e disseminar
conhecimento sobre a temática, além de, através do ensino, formar profissionais graduados
para atuarem na área e ampliarem a luta no combate ao trabalho infantil e na defesa dos
direitos do adolescente trabalhador. Em 2002, realizou-se o primeiro curso e, nos anos de
2003 e 2004, realizou-se o segundo, de que trataremos aqui.
FUNDAMENTOS TEÓRICOS QUE NORTEARAM O 2º CURSO
Dada a proposta do curso que, como parte do projeto UNICIDADANIA11, foi a de
se construir um modelo de formação de agentes de direitos humanos, fez-se necessária a
10
Projeto que concretizou, em 2001, as parcerias internacionais com apoio financeiro do Ministério das
Relações Exteriores da Itália, através de uma Organização Não Governamental - ONG, com sede naquele
país, o Movimento Leigo América Latina - MLAL.
11
O modelo formativo do UNICIDADANIA tem como fim último melhorar as condições de vida das
populações excluídas.
16
construção de um arcabouço teórico e metodológico que incorporasse todos os aspectos
anteriormente delineados, de modo a se lançar mão de uma bricolagem. Por bricolagem
referimo-nos a um trabalho intermitente de ir e vir. Foi o que fizemos, já que carecemos,
tanto nos trabalhos com movimentos populares quanto com organizações governamentais,
de um referencial que permita conhecer a criança na sua totalidade biopsicossocial, que a
compreenda como sujeito da sua história e cidadã em processo de desenvolvimento, e que
possibilite formas de intervir próprias, adequadas à realidade social.
Como o curso incorporou a pluridisciplinaridade e a pluriprofissionalização, ele foi
transversalizado, além dos referenciais citados, por outras referências teóricas abordadas
livremente por cada professor, considerando-se a especificidade de cada especialidade12, no
contexto de cada módulo. Os módulos, por sua vez, abordaram os seguintes aspectos:
sociologia do trabalho (de classe, gênero, urbano e rural), legislação, políticas sociais,
psicologia (do trabalho, desenvolvimento, subjetividade), saúde coletiva, geografia do
trabalho, história, direitos da criança, direitos humanos, educação popular e movimentos
sociais.
Os professores e técnicos de extensão que integraram o curso tinham diferentes
formações, havendo psicólogo, pedagogo, filósofo, médica, advogada, historiadora,
economista, geógrafa, comunicóloga, assistente social e engenheiro de produção.
Tudo isto não se constituiu empecilho, e sim, um desafio que precisou ser
construído. Reconhecemos que fundamentar teoricamente uma temática como o trabalho
infanto-juvenil, que ainda se encontra em construção, foi uma tarefa difícil, uma
experiência pela qual e sobre a qual se constrói uma forma de SE FAZER.
A reflexão crítica possibilitou que se percebesse a existência de uma lógica inerente
ao processo de SE FAZER, e, ao mesmo tempo, qualificar, produzir conhecimentos,
contribuir na reflexão da prática e produzir um espaço de formação de agentes
multiplicadores nas suas instituições de origem.
Durante toda a elaboração e planejamento do curso, foram pensados e repensados os
referenciais e colaboradores que pudessem contribuir articulando sua experiência à
proposta de formação no curso, no sentido de que as teorias e as metodologias pudessem
12
Vale ressaltar que dada a complexidade que envolve a temática do trabalho infanto-juvenil, o modelo de
formação demandou no curso abordagens híbridas e abordagens especialistas.
17
ser articuladas de forma interdisciplinar. Neste sentido, foram utilizados os seguintes
referenciais:
Educação Popular
Tendo a educação popular como pano de fundo da ação, no curso de formação esta
fundamentação foi utilizada para ministrarmos os módulos e coletivizarmos as atividades
de campo dos alunos do Curso. Usamos, assim, a metodologia: “do que sabiam”, que
denominamos “teoria da vida”, uma vez que entendemos o conhecimento acumulado com
a experiência dos agentes e representantes das instituições como fonte de fundamentação de
nossos trabalhos (Brandão, 1985; Sales, 1999). Dessa forma, construímos a experiência
desses agentes junto com o conhecimento de especialistas e docentes das ciências humanas,
da saúde e tecnológicas. Construímos coletivamente, sendo a Universidade representada
por núcleos e setores de estudos juntamente com as representações dos Movimentos
Sociais.
O curso de formação, enquanto prática extensionista, foi uma maneira de promover
a reflexão crítica, entre os agentes, da sua prática de trabalho, de forma que o percebessem
como um instrumento de indignação, adquirindo um papel de sujeito coletivo e de agente
social. De acordo com Melo Neto (2004), ver a extensão como um trabalho conduz à sua
compreensão provida da dimensão humana, da essência do homem. Afirma ainda que a
realidade circundante do fazer extensão sempre mantém o convite à necessária conexão
entre a crítica, que precisa permanecer no fazer extensionista, e o seu próprio meio
material:
É importante o pensamento a partir de indivíduos reais, de sua
ação, bem como de suas condições materiais de vida, tanto
aquelas já existentes como as produzidas por sua ação. (...) A ação
extensionista terá importância à medida que tiver, de forma
explícita, uma utilidade produtiva voltada à vida humana. (Melo
Neto, 2004, p.70-71).
Neste sentido, o 2º Curso de Formação, como prática extensionista, teve como um
de seus objetivos o pensar criticamente a partir da realidade, das necessidades e dos anseios
dos agentes participantes do curso. Partindo assim, da compreensão do papel social de cada
18
um deles enquanto cidadão e enquanto agente atuante na promoção da cidadania e da
defesa de direitos humanos da criança e do adolescente.
Dessa forma, entendemos a extensão universitária como uma atividade acadêmica
que nos permite estabelecer parcerias com a sociedade; refletir e produzir conhecimento nas
respectivas áreas de atuação; e, no âmbito do ensino, conjugar teoria e prática (UNIMEP,
2000).
Dentro de uma perspectiva da educação problematizadora, todos os sujeitos estão
ativamente envolvidos no ato de conhecimento (Silva, 1999). É a própria experiência dos
educandos que se torna a fonte primária de busca dos “temas significativos” ou “temas
geradores” que vão constituir o “conteúdo programático”. Afirma ainda que, na obra de
Paulo Freire, este não nega o papel dos especialistas, que, interdisciplinamente, devem
organizar esses temas em unidades programáticas, mas o conteúdo é sempre resultado de
uma pesquisa no universo experiencial dos próprios educandos, os quais são também
ativamente envolvidos na pesquisa. O conteúdo programático da educação não deve ser
uma imposição e sim uma devolução organizada, sistematizada e acrescida de conteúdo,
daqueles elementos que foram entregues de forma desestruturada.
As práticas extensionistas permitem à universidade promover o
diálogo com grupos sociais que necessitam do conhecimento
científico/técnico, cultural e artístico para a sua organização
social, econômica e política. Nesta relação dialógica, o discente e
o docente têm acesso ao saber popular, entre outros saberes da
sociedade, desenvolvido na formulação de estratégias de
sobrevivência da população. É facilitado, também, o contato com
soluções criativas, próprias de quem enfrenta as crises da
sociedade – conjunturais e/ou estruturais – na perspectiva da
transformação. Nessa relação de parceria, a população se
qualifica para, autonomamente, fazer escolhas de diferentes
naturezas e a Universidade, por sua vez, recebe elementos para
repensar as suas funções. Dessa maneira, pode-se obter mais
competência, tanto na produção/socialização do conhecimento
quanto na formação de futuros profissionais (UNIMEP, 2000, 7374).
Dentro do contexto do 2º Curso, a formação se deu a partir das necessidades do
grupo de alunos agentes. Como afirma Teixeira (2003), na concepção dialética, este
processo expressa estreita relação entre a teoria e a realidade: a teoria “comanda”, servindo
de guia para a reflexão sobre a realidade, para sua superação e transformação, trazendo
19
luzes, suscitando indagações, indicando e delimitando questões importantes no estudo de
um tema. Porém, a realidade concreta, sobre a qual nos debruçamos com o objetivo de
transformar, é que de fato condiciona o “comandante”, sempre num movimento mais vivo,
dinâmico e rico que a teoria, mas necessitando nutrir-se dela para que ela lhe indique os
caminhos da transformação.
Portanto, a relação entre a teoria e a prática expressa-se numa
atitude indissociável, na qual existe uma co-dependência
construtiva entre ambas. No interior desta relação, temos um
terceiro elemento que serve de canal de mediação entre as duas,
que é o método. O método se configura na própria objetivação da
teoria sobre o objeto real. Esta objetivação se dá num movimento
criador, que leva à construção e reconstrução permanentes tanto
da teoria quanto do método e do objeto (Teixeira, 2003: 50).
Através da Educação Popular nos é permitido o contato direto com os problemas
sociais, econômicos e políticos da sociedade, aspectos estes imprescindíveis à formação de
profissionais cidadãos, dotados de valores e competências para o enfrentamento da
realidade social com uma postura crítica e ética bem articulada.
Desenvolve-se, então, uma concepção de que o ato de conhecer não é um ato
isolado, individual, pois, de acordo com Silva (1999), conhecer envolve intercomunicação,
intersubjetividade. Essa intercomunicação é mediada pelos objetos a serem conhecidos e é
essa intersubjetividade do conhecimento que permite a Freire conceber o ato pedagógico
como um ato dialógico.
Assim, a atividade de extensão, como a prática da Educação Popular, torna-se uma
via de aquisição e de troca de conhecimentos, um momento em que o conhecer necessita do
fazer/experienciar, uma vez que é na ação/reflexão que se formam as concepções e
conceitos (UNIMEP, 2000).
Direitos Humanos
O trabalho precoce é uma forma de violação dos Direitos Humanos, uma vez que
agride os direitos universais: o direito à vida, à integridade física e à dignidade de pessoa
humana.
Nesse sentido, a formação de agentes de Direitos Humanos junto à temática do
trabalho infanto-juvenil implica necessariamente o preparo para a investigação, para a
20
denúncia e proteção, para a responsabilização do Estado, além do monitoramento da
garantia dos direitos e da aplicação de políticas públicas.
Dessa forma, para ser capaz de reivindicar e defender esses direitos, é importante se
conhecer as normas nas quais se fundamentam. Além disso, para fazê-los valer, os
representantes da sociedade civil devem ocupar espaços institucionais existentes, tais como
os conselhos de direitos.
O monitoramento de políticas públicas se faz importante, uma vez que permite a
observação dos avanços e recuos das propostas elaboradas para a erradicação da exploração
da mão-de-obra infantil; sendo igualmente importante a ocupação, pelos representantes da
sociedade civil, dos espaços destinados à atuação e conscientização de luta pelos direitos,
tal como enfatiza Bucci (2001).
Pensando na perspectiva dos Direitos Humanos, entendemos que o Estatuto da
Criança e do Adolescente é, sem dúvida, um avanço na legislação brasileira em termos de
defesa da criança e do adolescente, mas, infelizmente, ele é pouco operante no que tange ao
cumprimento da Lei, principalmente no que diz respeito ao combate do trabalho infantil e
defesa do adolescente trabalhador. Carecendo, então, de ações mais contundentes por parte,
principalmente, da Sociedade Civil, no controle das políticas públicas, o que demanda
formação, educação em cidadania.
De acordo com Tosi (2004), a educação em direitos humanos ou em cidadania vem
se constituindo, nos últimos anos, num campo específico de pesquisa e de intervenção com
objeto, método, bibliografia próprios e um amplo e articulado movimento nacional (e
internacional) de educadores.13 Segundo o referido autor, pode-se afirmar que ela está
progressivamente substituindo a “educação popular” ou “educação libertadora”14,
apontando algumas semelhanças e diferenças entre os dois movimentos:
Acredito que a continuidade entre os educadores populares ou da
libertação dos anos 70/80 e os educadores aos direitos humanos
da metade dos anos 80 e da década de 90 é profunda e se refere
substancialmente à mesma preocupação com a “libertação” das
13
Para maior aprofundamento sobre o crescimento do movimento de educação em direitos humanos, ver
TOSI, G. A universidade e a educação em direitos humanos. In: ALBERTO, M. F. P. Trabalho infantojuvenil e direitos humanos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004.
14
De acordo com Tosi (2004), um livro “pioneiro” que mostra, já no título, a “transição” em ato entre a
educação popular e a educação em direitos humanos é: Direitos Humanos. Pautas para uma educação
libertadora, dos padres do Serviço “Justiça e Paz” do Uruguai, Juan José Mosca e Luis Pérez Aguirre, editado
em 1985, com ampla difusão em toda a América Latina.
21
classes populares e oprimidas, dos excluídos e marginalizados da
sociedade, propondo uma concepção educativa participativa e
transformadora inspirada na “Pedagogia do Oprimido” de Paulo
Freire, e, em geral, numa proposta educativa que se coloca a
serviço de um projeto mais amplo de transformação política da
sociedade: em busca de uma sociedade mais justa, mais humana e
mais fraterna. Tudo isso permanece como horizonte comum; o que
significa que a maioria das questões, dos temas, das metodologias
próprias da educação popular passa para o movimento de
educação em direitos humanos (...) (Tosi, 2004, p.78).
Dessa forma, tal como cita Zenaide (2004), a educação em direitos humanos gestouse, portanto, no âmbito da sociedade civil, como uma ação político-pedagógica alternativa
da educação popular cujos objetivos estavam voltados para a formação de uma cultura
democrática em contraposição às práticas autoritárias.
Neste projeto, não consideramos, ainda, a substituição de uma por outra, ou seja, da
Educação Popular pelos Direitos Humanos, mas utilizamo-nos das duas buscando na
primeira a forma metodológica da formação e, na segunda, os referenciais teóricos para tal.
Nesse sentido, a educação em direitos humanos implica saber lidar com os
elementos de conservação e inovação na sociedade; compreender com clareza as formas de
violações presentes em cada contexto histórico e cultural; saber construir a leitura crítica da
realidade; entender todas as formas sutis e físicas de violência, para que os sujeitos possam
ter a consciência da necessidade de se construírem enquanto sujeitos de direitos e atores de
sua história, de modo a recuperar a capacidade de indignação e de reação necessária para a
superação das situações de violações (Zenaide, 2004).
Especificamente sobre o trabalho precoce, através do curso de formação, reforça-se
a percepção dos agentes sobre as implicações que repercutem diretamente em danos à
saúde física e mental da criança e do adolescente, qualificando-os, assim, através do
exercício da capacidade de indignação, junto aos princípios de direito, igualdade, respeito
pelas diferenças, além da garantia efetiva de direitos já legalmente reconhecidos.
Comunidade Ampliada de Pesquisa
Dentro do contexto do Curso de Formação, tomamos emprestadas de Schwartz
(1996) e de Odonne (1986) algumas noções de como fazer pesquisa coletivamente. Dessa
forma, utilizamo-nos da concepção de comunidade ampliada de pesquisa, que surge, a
22
partir do Movimento Operário Italiano (MOI), como forma de articulação crítica do
conhecimento das disciplinas com o saber prático da experiência dos trabalhadores.
No contexto do Curso, esta metodologia foi usada para preparar e desenvolver as
atividades de campo com os alunos do curso de formação, tendo como proposta a criação
de um espaço de troca de saberes entre o saber acadêmico, cientifico, e o saber prático
originado na atuação direta dos agentes com crianças e adolescentes nas mais variadas
condições de trabalho e de vida.
Essa construção de conhecimento é feita conjuntamente por professores, agentes,
técnicos e bolsistas PROBEX, e, conseqüentemente, os alunos do curso constroem
conhecimento junto com as crianças e adolescentes com os quais trabalham em suas
instituições de origem.
A construção desse conceito possibilita a compreensão de que o estudo do trabalho
deve incorporar a ação conjunta de profissionais médicos, especialistas da prevenção e
trabalhadores. Como no nosso caso não são os trabalhadores precoces que protagonizam no
curso suas experiências, os modelos de Schwartz (1996) e de Odonne (1986) serviram a fim
de que reuníssemos os agentes sociais15 para a coletivização dos dados e das experiências.
O CURSO DE FORMAÇÃO DE AGENTES COMO PRÁTICA DE EXTENSÃO
UNIVERSITARIA QUE VIABILIZA OS DIREITOS HUMANOS E A EDUCAÇÃO
POPULAR
Desenvolvemos, no 2º curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que
Atuam na Área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural, uma metodologia
participativa de construção coletiva de saberes, voltada para a capacitação de agentes
sociais dos movimentos sociais e de instituições públicas de assistência e de defesa da
criança e do adolescente e para a produção de conhecimento.
O curso contemplou os seguintes aspectos: a transmissão de conhecimentos; a
produção coletiva de conhecimentos; a coletivização; articulação entre teoria e prática; a
pluridisciplinaridade; a formação de agentes multiplicadores. E, metodologicamente,
funcionou da seguinte forma:
15
Alguns deles reproduziram a mesma experiência com os adolescentes cujas atividades eram objeto de suas
pesquisas.
23
1. Primeiramente, houve o resgate dos nomes e referências das instituições que
lidam direta ou indiretamente com o trabalho infantil. Esse resgate foi efetivado através de
listagens junto a várias instituições detentoras dessas referências: a) obtenção junto ao Setor
de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares (SEAMPO) de uma lista de que constava
o nome das instituições que participaram do I Seminário sobre Direitos Humanos e
Trabalho Infanto-Juvenil, em 2001, promovido pelo Grupo Trabalho Precoce, Gênero e
Subjetividade; b) uma segunda lista cedida pelo Fórum de Defesa da Criança e do
Adolescente na qual constavam instituições, dele participantes, que lutam pela erradicação
do trabalho infantil; c) uma terceira lista feita a partir de indicações dos alunos do 1° Curso
de Formação de Agentes de Direitos Humanos que atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural; d) por fim uma lista repassada pelo Fórum Estadual de Erradicação
do Trabalho Infantil e Defesa do Adolescente Trabalhador – FEPETI.
2. Do conjunto de listas, emergiu um mapeamento contendo aproximadamente 80
(oitenta) instituições que atuam direta ou indiretamente com o trabalho infantil, entre
conselhos, pastorais, sindicatos, OG’s e ONG’s e que não tinham feito o 1º curso de
Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do trabalho InfantoJuvenil. Essas instituições foram contatadas através de um convite por escrito. Além disso,
no ato da inscrição, foi respondido pela instituição um questionário que versava tanto sobre
objetivos, ações e interesse da instituição, como sobre os interesses e disponibilidades do
representante da instituição no curso. Em conseqüência dessa triagem, resultou um grupo
de 31(trinta e uma) instituições.
3. Essas instituições foram posteriormente contatadas para enviar seus
representantes a fim de participarem da reunião de sensibilização16. Neste momento, cada
uma das selecionadas indicou a pessoa que representaria a instituição, ou seja, faria o curso,
uma vez que era uma vaga por instituição e o membro representante também se tornaria um
agente multiplicador junto a sua instituição de origem.
4. Ainda nos momentos antecedentes ao curso, foi realizada uma reunião para
nivelamento da equipe e definição do corpo docente responsável pela administração dos
módulos (conteúdos) dados no curso, além de levantamento das atividades de trabalho em
que há inserção precoce, utilizando como registro a fotografia, bem como, encontro de
16
Essa reunião teve como finalidade a apresentação das propostas do curso às instituições.
24
sensibilização, seleção e construção de um contrato de parceria com as instituições
participantes.
5. Dentre as atividades preparatórias, houve o contato com os professores para a
preparação do material necessário à realização dos módulos; solicitação de material
bibliográfico e fotocópia do mesmo; contato com os alunos e professores que fizeram parte
do curso; reserva de salas e do auditório, organização das salas para a atividade do curso;
reserva e disponibilização de recursos técnicos audiovisuais (vídeo, tv, retroprojetor e tela,
entre outros); e seleção de material didático para uso em sala de aula (papel madeira,
cartolina, lápis piloto, fita crepe, etc).
6. O curso propriamente dito foi organizado em dez módulos que funcionaram
relativamente integrados e aproximaram-se metodologicamente da educação popular
através da utilização de dinâmicas, exposição, reflexão e coletivização. O procedimento
utilizado incluiu o levantamento da experiência de cada aluno na temática, após o que se
procedeu à transmissão de conteúdos teóricos; a troca de conhecimentos teóricos e práticos;
a ida a campo, com a respectiva construção de conhecimento sob a orientação de técnicos e
professores; além da coletivização das experiências de pesquisa.
A ida a campo possibilitou que os alunos identificassem várias faces do trabalho
precoce que se transformaram em fonte de pesquisa: a dos meninos e meninas catadores e
catadoras de lixo residencial, a dos fretistas, a dos feirantes, a das crianças e adolescentes
trabalhadores precoces portadores de deficiências, a das crianças e adolescentes
trabalhadores no estuário do rio Paraíba, a dos meninos que freqüentam o clube do menor
trabalhador, a do impacto do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI – na
vida das crianças trabalhadoras precoces, a da visão dos pais de crianças e adolescentes
inseridos no PETI, a das trabalhadoras domésticas, a da relação entre desemprego dos pais
e o trabalho precoce.
7. O pós-curso incluiu o fortalecimento do Fórum Estadual de Prevenção e
Erradicação do Trabalho Infantil – FEPETI com a adesão de algumas instituições, além do
trabalho de mapeamento do trabalho infanto-juvenil na Paraíba, bem como a contribuição
para a vinda, criação, sistematização e realização do Projeto Catavento no Estado da
Paraíba. O Projeto Catavento está sendo desenvolvido pela Organização Internacional do
Trabalho – OIT em parceria com o Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil e Defesa do
25
Adolescente Trabalhador – FEPETI, a Casa Pequeno Davi, que é a instituição executora, a
Delegacia Regional do Trabalho – DRT e a Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
Os objetivos do Projeto Catavento são contribuir para a prevenção e erradicação do
trabalho infantil em suas piores formas em cinco Municípios do Estado da Paraíba, João
Pessoa, Santa Rita, Guarabira, Patos e Princeza Isabel. Além de produzir e disseminar
conhecimentos, sensibilizar e conscientizar as comunidades locais, ampliando e
fortalecendo a capacidade de gestão das instituições responsáveis pelas políticas.
A proposta de criação de um espaço de troca de saberes entre o saber acadêmico
cientifico e o saber prático foi o aspecto mais enfatizado no curso. O conhecimento desses
saberes promoveu uma reflexão em ambos e, possivelmente, a construção de uma rede de
saberes em contínua articulação. Enfatizando o que foi dito, construímos conhecimento
juntamente com os agentes sociais (alunos do curso). Os agentes sociais construíram
conhecimento junto com as crianças e os adolescentes com os quais trabalham e
construímos conhecimento juntos: professores, agentes, técnicos e graduandas.
Desse trabalho, partiu-se para outras ações, como: intervenções dos agentes nas suas
bases; pesquisas realizadas pelos próprios agentes; atuação destes na execução de políticas
públicas nos municípios; no Programa Sentinela; na Secretaria de Desenvolvimento Social
da Prefeitura de João Pessoa; participação no Projeto Catavento; participação no
fortalecimento das ações dos Conselhos na área do trabalho infanto-juvenil; atuação nas
ONG’s, nos Conselhos dos Direitos do Homem e do Cidadão; além do gerenciamento de
políticas sociais para a criança e para o adolescente.
Buscamos também construir um saber instrumento, capacitando multiplicadores que
reproduzam a formação dentro de suas instituições originárias e inter-instituição;
capacitamos agentes para identificar a exploração no trabalho de crianças e adolescentes,
produzir conhecimento, planejar ações de intervenção e monitorar políticas públicas de
erradicação do trabalho infantil e de defesa dos direitos do adolescente.
OS RESULTADOS OBTIDOS ATRAVÉS DESTA PRÁTICA DE FORMAÇÃO
Através da realização do 2º Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos
que atuam na área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural, alcançaram-se algumas
conquistas tais como:
26
1. Contribuição no processo de construção de uma metodologia de formação de
formadores na temática do trabalho infanto-juvenil, já iniciada no 1º Curso;
2. Formação de uma grade curricular de formação do Agente de Direitos Humanos
para Atuar na Área do Trabalho Infantil e na Defesa do Adolescente Trabalhador;
3. Qualificação de 24 agentes de direitos humanos para atuarem na erradicação do
trabalho infantil e defesa do adolescente trabalhador;
4. Contribuição no mapeamento do trabalho infantil na Paraíba, iniciado no 1º Curso;
5. Aumento do acervo fotográfico (de aproximadamente 500 fotografias) sobre o
trabalho infanto-juvenil na Paraíba, que já se encontrava em construção desde o 1º
Curso;
6. Montagem de uma mostra itinerante sobre o trabalho infanto-juvenil;
7. Produção de 13 monografias (as quais compreendem parte dos artigos deste livro);
8. Produção de 02 livros com a produção dos vários parceiros, professores e alunos,
sobre o trabalho infanto-juvenil;
9. Formação de um acervo bibliográfico sobre a questão;
10. Realização de um Balcão de Direitos Humanos cuja finalidade foi o trabalho com
as famílias das crianças do PETI. Após ter sido diagnosticada a falta de
conhecimento das comunidades em relação a essa área, buscou-se mobilizar a
sociedade, conscientizando-a de sua responsabilidade e direitos através do
esclarecimento e encaminhamentos de denúncias acerca do trabalho infantil,
possibilitando a realização de atividades de formação e informação sobre cidadania
e direitos junto às comunidades do Roger, Cristo e Mumbaba.
11. Construção de canais de articulação (Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho
Infantil e Defesa do Adolescente Trabalhador, Fórum Estadual de Defesa dos
Direitos da Criança e Adolescente, Organização Internacional do Trabalho - OIT,
Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF; Save Children – ONG do
Reino Unido com sucursal no Recife.) que viabilizam ações e o aperfeiçoamento do
sistema de garantias visando à erradicação.
12. Contribuição com o Projeto Catavento, que tem como principal meta à retirada de
crianças e adolescentes inseridas nas piores formas de trabalho infantil e sua
inserção em programas sociais, como o Programa de Erradicação do Trabalho
27
Infantil – PETI, uma vez que, a nós, enquanto Grupo de Pesquisa Sobre o
Trabalho Precoce Subjetividade e Gênero representando a UFPB, coube a
pesquisa que também serviu como fonte de produção de conhecimento e
cadastramento dos meninos e meninas para as ações sociais.
13. Produção de artigos e apresentação de trabalhos em Congressos e Encontros de
caráter científico.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO 2º CURSO DE FORMAÇÃO
A formação de agentes de Direitos Humanos para atuarem no trabalho infantil foi
uma perspectiva que se mostrou viável e útil, visto que raramente essa questão é tratada
como tal. Nas mais das vezes, há todo um discurso dos malefícios do trabalho infantil para
o desenvolvimento psicossocial da criança e do adoleslescente e até mesmo a denúncia de
violação dos direitos da criança e do adolescente, mas pouco se contextualiza como uma
questão de Direitos Humanos, muito menos de formar agentes sociais para o enfrentamento
da questão. Aliás a formação nessa temática é também algo de somenos valor. Quando
muito fica-se apenas na formação de monitores do PETI. A nosso ver, essas são questões
concernentes à visão que se tem do trabalho infantil e da forma de conceber e tratar a
infância e adolescência dos filhos das classes subalternas no Brasil. O trabalho visto como
antídoto à marginalidade e esses sujeitos como passíveis de controle social. Isto é de tal
monta que o principal Programa de enfrentamento denomina o profissional da educação de
monitor, e não de educador, numa nítida referência a um controlador. Logo o PETI não visa
formar, educar, mas controlar, disciplinar.
Todavia, no que pesem estes aspectos, o Curso mostrou-se como uma forma
plenamente possível de formação de modo a contemplar no seu contexto a articulação da
extensão, do ensino e da pesquisa como formas de viabilização dos Direitos Humanos e do
papel da academia. Outrossim, foi possível conceber que, para se formar um agente de
Direitos Humanos a fim de atuar frente ao trabalho infanto-juvenil, implicava-se a na
preparação para investigação, denúncia e proteção, responsabilização do Estado e
monitoramento da garantia dos direitos e da aplicação de políticas públicas.
28
A articulação extensão, ensino e pesquisa foi operacionalizada a partir das
referências teóricas e metodológicas dos Direitos Humanos, da Educação Popular e das
noções de Comunidade Ampliada de Pesquisa.
REFERÊNCIAS
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Universitária/UFPB, 2004.
ALBERTO, M. de F. P. [et al]. Formação para agentes sociais que atuam na área do
trabalho infanto-juvenil urbano e rural. Relatório PROBEX, Departamento de
Psicologia, Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários - PRAC, Universidade
Federal da Paraíba – UFPB, João Pessoa, 2005.
BRANDÃO, C. R. Pesquisa Participante. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BUCCI, M. P. D. Capacitação em Direitos Humanos. In: REDE BRASILEIRA DE
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS. Construindo a Cidadania: desafios para o
século XXI. Recife: Comunigraf. 2001.
MELO NETO, J. F. de. Extensão universitária, autogestão e educação popular. João
Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004.
ODDONE, I. et al. Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo:
Hucitec, 1986.
SALES, I. da C. Educação Popular: uma perspectiva, um modo de atuar (alimentando um
debate). In: SCOCUGLIA, A. C.; MELO NETO, J. F. de. Educação Popular: outros
caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999.
SCHWARTZ, Y. Trabalho e valor. Tempo Social, São Paulo, v. 8, n. 2 , out. 1996.
SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
SOUZA, G. P. de; ALBERTO, M. de F. P. Mapeamento do trabalho infanto-juvenil no
estado da Paraíba: análise das inter-relações entre a situação de trabalho e as vivências
subjetivas desses trabalhadores e trabalhadoras precoces. Relatório PIBIC/CNPQ,
Departamento de Psicologia, Universidade Federal da Paraíba – UFPB, João Pessoa, 2005.
TEIXEIRA, D. de M. Oficina temática: uma opção metodológica no curso de formação de
agentes sociais na área do trabalho infanto-juvenil. In: ALBERTO, M. F. P. (Org.).
Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa:
Editora Universitária/UFPB, 2003.
29
TOSI, G. A universidade e a educação em direitos humanos. In: ALBERTO, M. F. P.
(Org.). Trabalho infanto-juvenil e direitos humanos. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPB, 2004.
UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA – UNIMEP. Políticas de extensão. 3.
ed. Piracicaba: Editora Unimep, 2000.
ZENAIDE, M. de N. T. Educação em Direitos Humanos. In: ALBERTO, M. F. P. (Org.).
Trabalho infanto-juvenil e direitos humanos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB,
2004.
30
CAPÍTULO 02
MENINOS E MENINAS CATADORES E CATADORAS DE LIXO RESIDENCIAL
NO BAIRRO DE TIBIRI II – Santa Rita/PB
Zuleide Ferreira da Silva1
Maria do Socorro Borges Barbosa2
Dedico este trabalho a todas as
pessoas que desenvolvem um
trabalho social com crianças e
adolescentes e suas famílias, mas,
principalmente aos meus amigos e
companheiros da Pastoral do
Menor do Centro Educativo
Comunitário Irmãos Fortuna.
INTRODUÇÃO
Neste artigo, abordamos dados de uma pesquisa sobre a realidade de vida de
meninos e meninas catadores e catadoras de lixo residencial do bairro Tibiri II, no
município de Santa Rita. Embora, a pesquisa tenha sido realizada a partir do
acompanhamento do trabalho de uma família, é no trabalho das crianças que focamos nossa
atenção e análises. Contudo, em alguns momentos, estaremos fazendo referência aos
membros dessa família como parte integrante do núcleo familiar. Os dados e análises aqui
contidos apoiaram-se na reflexão sobre “trabalho precoce”, desencadeada no II Curso de
Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural na Universidade Federal da Paraíba-UFPB e no interesse pessoal de
obter um maior conhecimento da temática para pensar em uma atuação nessa área,
1
Educadora Popular da Pastoral do Menor de Santa Rita/PB
Mestre em Educação Popular, Sanitarista, Historiadora e Educadora do Núcleo de Estudos em Saúde
Coletiva – NESC/UFPB e do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO/UFPB.
2
31
considerando também o trabalho social e educativo que vem sendo desenvolvido há mais
de três anos pela Pastoral do Menor.
Uma pesquisa realizada pela Pastoral do Menor, por meio de seus educadores e
educadoras com famílias residentes no bairro de Marcos Moura, na cidade de Santa Rita, no
ano de 2003, constatou que muitas crianças e adolescentes estão com baixa freqüência na
escola. Essa pesquisa também identificou que a ausência das crianças e adolescentes na
escola acontece pelo motivo de estarem fazendo algum tipo de atividade com o objetivo de
ajudar na renda da família. Além de identificar as atividades de frentista, catação de lixo,
trabalho na plantação de abacaxi e o trabalho doméstico, sendo essas que aparecem com
maior freqüência. No nosso trabalho educativo com as crianças e adolescentes, um dos
participantes apresentava uma grande dificuldade em se incluir nas atividades por está
trabalhando na catação de lixo para ajudar na renda familiar. A partir dessa pesquisa e com
a vivencia do trabalho educativo na nossa entidade, decidimos desenvolver um estudo sobre
o trabalho de crianças e adolescentes, moradores no bairro de Tibiri II.
Também se tinha como objetivo conhecer os motivos da inserção precoce no
trabalho, a situação escolar, as condições de trabalho, o processo de trabalho, os riscos, o
destino dos ganhos, os sonhos e as perspectivas de futuro, a relação com a família e a
população de que catam lixo. Procurou-se ainda identificar o conhecimento dos
adolescentes acerca do Estatuto da Criança e Adolescente.
HISTORICO DA ENTIDADE
A Pastoral do Menor atua em âmbito Nacional e está inserida no trabalho social na
Igreja Católica. Criada em 1987, a partir da Campanha da Fraternidade, com o tema:
“Quem acolhe o menor a mim acolhe”, ela ganha força e se organiza em todos os estados
do Brasil, somando-se à outros segmentos sociais que atuam e se preocupam com a
realidade de vida da população.
Depois de criada, cada diocese foi organizando os grupos que já desenvolviam
trabalhos voltados à criança e adolescentes e traçando uma metodologia apropriada.
A Pastoral do Menor, a partir daí, se propõe a estimular um processo que visa à
sensibilização, à reflexão critica e à mobilização da sociedade como um todo, na busca de
32
uma resposta transformadora, global e unitária à situação da criança e do adolescente,
promovendo sua cidadania e o seu protagonismo político.
A Pastoral do Menor, no município de Santa Rita, teve seu inicio no ano de 1996,
quando da criação da paróquia São Pedro e São Paulo, inicialmente coordenada pelos
missionários Combonianos, motivados pela necessidade de organizar as famílias mais
empobrecidas, a principio, da comunidade de Tibiri II.
O Núcleo de Aguiarlândia, que comporta os bairros de Tibiri II e Marcos Moura,
teve inicio no ano 2000. Atualmente a Pastoral do Menor acompanha 53 crianças e 43
adolescentes dessas comunidades.
OBJETIVOS DA ENTIDADE: CENTRO PASTORAL DO MENOR
•
Trabalhar a cidadania de crianças e adolescentes na promoção da vida e suas
famílias;
•
Oferecer no Centro reforço alimentar, escolar e de formação humana;
•
Acompanhar as famílias dos educandos através de encontros mensais, visitas e
oficinas;
•
Sensibilizar, conscientizar e organizar crianças, adolescentes e suas famílias para o
exercício e conquista de sua cidadania.
METODOLOGIA
A pesquisa aqui apresentada foi desenvolvida de janeiro a março de 2004 através de
um estudo qualitativo com crianças. A escolha desses sujeitos deu-se devido ao fato de que
sua família tinha contato anterior com trabalhos desenvolvidos pela pastoral. Essa família é
composta por mãe, padrasto, filhos e agregados. No desenvolvimento da pesquisa, utilizouse observação assistemática da atividade, visitas e entrevistas. Utilizou-se o gravador, a
máquina fotográfica e o desenho livre.
Foram realizadas visitas à família para comunicar-lhe os objetivos desse trabalho e
se obter o consentimento para que realização. Nos primeiros contatos, utilizamos um roteiro
aberto, previamente refletido e construído com o intuito de se construir um perfil da
família. Foram realizados encontros com a mãe e as crianças, além do acompanhamento
33
dos meninos e meninas na catação do lixo, quando tivemos oportunidade de observar o
processo e as condições de trabalho, os riscos e agravos à saúde a que estão expostos, como
essas crianças são tratadas pelos pais e responsáveis e o comportamento delas em relação à
população e vice-versa.
Ocorreu ainda uma oficina estimulando as crianças ao desenho livre, tendo como
processo instigador explicitação de sonhos e sentimentos em relação à atividade de catação
de lixo. Foi feito um registro fotográfico das crianças na catação do lixo e na atividade da
oficina.
CATAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA
Com as dificuldades de sobrevivência encontradas pela maioria da população do
município de Santa Rita, nos deparamos constantemente com crianças e adolescentes tendo
que exercer atividades na área do trabalho urbano e rural. A cata de lixo residencial é uma
dessas funções.
Relatos de moradores da área mostram que as famílias que moram na comunidade
vieram de uma luta por habitação em João Pessoa-PB.
PERFIL DA FAMÍLIA PESQUISADA:
•
NUMERO: dois adultos e seis menores;
•
SUJEITO: meninos e meninas;
•
IDADE: de nove a dezesseis anos;
•
ESCOLARIDADE: da 1ª à 5ª serie do ensino fundamental;
•
GÊNERO: duas meninas e quatro meninos;
•
MUNICIPIO: Santa Rita;
•
ATIVIDADE: catadores de lixo residencial;
•
JORNADA DE TRABALHO: de seis a oito horas, três vezes por semana;
•
DESCRIÇÃO DAS TAREFAS REALIZADAS PELAS CRIANÇAS E
ADOLESCENTES: vão de casa em casa catando o lixo que encontram nos
depósitos postos em frente às casas. Catam garrafa descartável, cobre, alumínio,
34
plástico fino e grosso, vidro e ferro. Após a catação colocam em uma carroça
que é puxada por um adulto.
•
NATUREZA DA ATIVIDADE: urbano;
•
RISCOS: rachaduras nos pés, frieiras, cortes nas mãos e nos pés, insolação,
dores de cabeça, infecção intestinal, desvio na coluna (por se abaixarem varias
vezes de maneira inadequada), psicológicos (preconceito, discriminação,
indiferença) social (moradia insalubre, lixo depositado no local de moradia, casa
de apenas um cômodo, desemprego e violência).
DESCRIÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS E DA OBSERVAÇÃO:
A entrevistada com a mãe revela que ela tem quarenta e dois anos, mora na
comunidade de Aguiarlândia há sete anos, veio do município de Bayeux onde morava em
um galpão. Hoje mora em apenas um cômodo, feito de barro e madeira trançada, conhecida
como “casa de taipa” com um terreno amplo onde pode depositar o material que catam
durante, de três a seis meses, a fim de para conseguir dinheiro suficiente para comprar
roupas, material escolar e alimentos. Tem quatro filhos e mais dois filhos de vizinhos que
vivem com ela. Mora com um rapaz que é padrasto de seus filhos. Cata lixo há sete anos.
Não têm nenhuma outra forma de sobrevivência ou de apoio institucional ou de algum tipo
de organização social. Segundo ela, existem muitos catadores de lixo residencial na
comunidade, mas prefere trabalhar sozinha. O lixo é vendido para o comprador que pagar
melhor. Os filhos só saem para catar lixo com ela, porém a menina e os meninos mais
novos saem para mendigar. Já aconteceram alguns acidentes tipo: cortes nos pés e nas
mãos. Quando o corte é considerado grave por ela, eles são levados para o posto do
Programa Saúde da Família; se ao contrario, são cuidados em casa mesmo.
Quando os meninos e as meninas estão de férias, saem para catar lixo às 7:00h;
quando estão estudando, saem para catar lixo quando chegam da escola, às 11:00h, (todos
estudam). Sempre saem sem almoçar. Nas casas onde catam o lixo, pedem comida e às
vezes conseguem almoço ou apenas biscoitos ou pão para saciar a fome.
A oficina com os meninos e as meninas foi realizada no Centro da Pastoral do
Menor. A oficina consistiu num processo de construção de informações, momento no qual
35
eles falaram de si, do lugar onde moram e estudam, da realidade vivenciada por eles no
cotidiano.
Ao acompanhar as crianças na catação, observamos suas condições de trabalho.
Todas as crianças e adolescentes trabalham descalços e a menina menor, sem camisa.
Nenhuma proteção na cabeça (tipo chapéu ou pano), nenhuma proteção nas mãos e na pele,
exceto os adultos, que estavam calçados e usavam proteção na cabeça.
Observamos que têm nas pequenas mãos calos e marcas de cortes. Percorrem várias
ruas da cidade, uma a uma. Gastam mais de meia hora, de sua casa às primeiras casas, onde
começam a revirar o lixo posto em frente às casas. Para tal, o grupo se divide em dois, cada
um com uma carroça, uma espécie de carro de mão feito por eles com sucata de geladeira.
O que encontram vão colocando diretamente na carroça, selecionando o que pode ser
vendido.
Observamos também que a mãe, quando encontra comida, que, no entendimento
dela, pode ser consumida, leva para casa. Enquanto vão catando o lixo, param nas casas
para pedir comida, já que, na maioria das vezes, saem de casa sem nenhuma alimentação.
Geralmente eles saem de casa por volta das 11:30 h, quando as crianças e adolescentes
retornam da escola:
“Quando chegamos da escola, jogamos os livros dentro de casa e logo
saimo para trabalha com minha mãe” (fala da adolescente de 14 anos,
filha da senhora que organiza o grupo).
Também pude perceber como têm uma infância negada, pois nas falas relatam que
gostam de trabalhar com a mãe não só porque ajudam, mas também pela possibilidade de
encontrar brinquedos no lixo, já que não podem comprar:
“Eu gosto, pois a gente tem chance de sair e ir vê outros lugares. A gente
brinca com o que acha no lixo e às vezes encontra coisas que a gente
pode usar” (fala da menina de 9 anos).
Tendo seus direitos assegurados através de um importante marco legal, que é o
Estatuto da Criança, a partir da responsabilidade de entes públicos, a realidade dessas
crianças se apresenta bem diferente do que é preconizado. A efetivação desses direitos está
distante de suas vidas cotidianas. Desprovidas das condições mínimas de dignidade, como
o direito à alimentação, o ECA se apresenta como desafio à sua consolidação.
36
Art.4º- É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do
poder publico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária.(ECA).
Os trechos das suas falas, a seguir, revelam o sofrimento desses cidadãos de direito,
não respeitados, cujas estratégias de vida residem na cata do lixo como forma de
sobrevivência.
“Fico triste quando os outros ficam apontando para a gente dizendo que
somos catadores de lixo, quando pegamos os lixos na casa dos outros e
as mulheres brigam e não entende pois temos que pegar o lixo e nos
insulta e maltrata" (fala da adolescente de 14anos).
“Me sinto muito triste, quando agente passa as pessoas dizem, ei, cata
lixo, fica nos humilhando” (fala da adolescente de 14 anos).
Pelas falas, podemos concluir que as crianças também desconhecem seus direitos.
Porém, isso não as impede de experimentarem os sentimentos negativos decorrentes da
percepção de estigmatização por parte dos outros São sentimentos motivados pela
indiferença, pelo preconceito e pela discriminação. A condição de pedinte e catador de lixo,
é degradante para a condição humana, principalmente para crianças e adolescentes.
Condição essa tão contraditória com o estatuto da criança, conforme os depoimentos acima.
Art.18- É dever de todos velar pela dignidade da criança e do
adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano,
violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.ECA
Para essa família, a cata de lixo nem sempre se restringe à cata domiciliar. Tal
atividade pode se estender até os lixões, inclusive da cidade vizinha, a capital João Pessoa,
conforme relato de um dos meninos que já trabalhou no lixão do Roger3 com a mãe:
“Já trabalhei com minha mãe e meu padrasto no lixão. Lá as pessoas
brigam para catar o lixo. Uma vez um homem jogou um pedaço de ferro
no outro e ele morreu” (E.C.R.12 anos).
3
O lixão do Roger era um aterro sanitário, localizado a poucos quilômetros do centro da capital do estado da
Paraíba, João Pessoa. Foi desativado em 2004.
37
As estratégias de vida para essa família, sujeitos dessa pesquisa – e certamente para
outras famílias da comunidade onde residem – não se restringem à cata do lixo. Ela também
utiliza a incorporação de outros membros que não os da família sanguínea. Essas outras
estratégias dizem respeito a uma forma de sobrevivência e de solidariedade entre membros
de vários grupos familiares, conforme o depoimento abaixo:
“Eu moro com dona Nena porque não consigo viver com minha mãe e
meu padrasto”. (E.C.R.12anos).
O dinheiro da cata do conjunto dos membros da família fica todo com a mãe. Aos
meninos que não são filhos, ela dá R$ 5, 00 (cinco reais). A mãe também recebe o repasse
da bolsa-escola de um desses meninos agregados, que é repassada pela mãe dele, como
forma de pagamento pela moradia e outros gastos.
Nos dias iniciais em que estava fazendo a pesquisa, os filhos delas não recebiam
faziam parte do Programa “bolsa escola”, mas, com o decorrer da pesquisa, ela informou
que havia começado a receber bolsa para os três filhos.
Estes dados levam à reflexão do significado dos Programas Sociais de Renda
Mínima. Qual o papel deles, de que modo eles promovem mudanças? Como efetivamente
se processa o controle dos mesmos? Pois, apesar de recebê-los, as famílias parecem
continuar na situação de miséria, tendo que expor seus filhos à degradante atividade de
catar lixo.
Além do menino da vizinha agregado à família, também faz parte dela o padrasto.
Ele não faz nenhuma outra atividade de trabalho para ajudar na renda familiar. Às vezes ele
sai com os meninos e a menina menor para mendigar nas feiras de Santa Rita e João
Pessoa. Observamos, embora não seja um dos objetivos do nosso trabalho, a dupla jornada
de trabalho da mãe, tendo que arcar com as tarefas domésticas e também com a catação de
lixo, marcando a divisão sexual do trabalho e a sobrecarga para a mulher na
responsabilidade com os filhos. A pequena renda do trabalho na catação não é
complementada por nenhum trabalho desenvolvido pelo seu companheiro, dependendo toda
a família dessa renda e das bolsas das crianças oriundas dos programas sociais.
38
CONSIDERAÇOES FINAIS
Esta pesquisa contribuiu para verificarmos in loco o trabalho precoce no Município
de Santa Rita, em particular nos bairros de Tibiri II, Marcos Moura. Constatamos que, no
município de Santa Rita, não está implantado o Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil – PETI, o que colabora para que as crianças em situação vulnerável, de desemprego
dos pais, não tenham apoio institucional frente a essa realidade, uma vez que não basta
receber a bolsa de um programa social. Faz-se necessária também a participação na Jornada
Ampliada como forma de evitar a inserção das crianças e adolescentes no trabalho .
Os depoimentos da mãe e das crianças nos levam a concluir que, além do
desconhecimento sobre o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA, que se expressa como
marco legal dos direitos sociais dessa população e como conquista, os mesmos não
participam de nenhuma forma de geração de renda ou organização que lhes oportunize o
exercício de sua cidadania.
O que mais nos sensibiliza é ainda a distancia entre o que preconiza o ECA e a
realidade cotidiana dessa família, em especial dessas crianças. Esperamos que, com este
trabalho, tenhamos contribuído com a nossa instituição no sentido de fortalecer sua missão
e o desejo de construção de uma sociedade mais justa e igualitária e também nos fortalecer
como educadoras populares no nosso trabalho com as crianças.
REFERÊNCIAS
ALBERTO, M de F.P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma
realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003.
______. As dimensões subjetivas do trabalho precoce de meninos e meninas em
condição de rua de João Pessoa (PB). 2002, 305 f. Tese (Doutorado em Sociologia)
Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2002.
RENATO, G. Projeto de combate ao trabalho infantil: uma experiência que deu certo na
Paraíba. João Pessoa: Editora UNICEF/Ministério Público, 2002.
SILVA SEGUNDO, R. da. Trajetória de uma pesquisa: relatando a experiência dos
catadores de lixo residencial nos bairros do Valentina, Geisel e Cristo. Monografia. 1º
Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos na Área do Trabalho Infantil.
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2003.
39
CAPÍTULO 03
ADOLESCENTES
FEIRANTES
DE
VÁRZEA
NOVA:
REALIDADE
E
PERSPECTIVAS
Luciana de Souza Pereira1
Rita de Cássia Pereira2
Bernadete de Oliveira3
A decisão de realizar essa pesquisa sobre o trabalho precoce em Várzea Nova,
distrito do município de Santa Rita - PB, localizada a 20 Km de João Pessoa, surgiu da
necessidade de registrar e chamar a atenção da comunidade e das autoridades para a
existência de crianças trabalhando no município não só como feirantes, mas em várias
atividades. Negada esta realidade, uma das conseqüências é a ausência de políticas sociais
que assistam as crianças e adolescentes para que não ingressem precocemente no mercado
de trabalho. No município de Santa Rita, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil –
PETI não foi implantado com a alegação de que, nesta cidade, o problema da criança
trabalhando não existe. Crianças e adolescentes trabalhando, seja qual for a atividade, é
tolerado e incentivado principalmente pelas famílias que vêem no trabalho uma forma de
proteção contra a marginalidade.
A escolha do local para a realização do ensaio de pesquisa se deu por nossa
participação em um trabalho de atendimento à criança e adolescente desenvolvido pela
diocese da Paraíba, que mantém contato com adolescentes trabalhadores, bem como pelo
trabalho como conselheira tutelar.
O local foi escolhido também pela necessidade de conhecer as condições de
trabalho, de vida e as perspectivas de futuro desses jovens trabalhadores, tendo em vista
desenvolver, a partir das informações escolhidas, atividades de conscientização das famílias
e da comunidade sobre as graves conseqüências do trabalho precoce, visando erradicá-lo.
1
Conselheira Tutelar de Santa Rita.
Educadora Popular da Pastoral do Menor de Santa Rita no Núcleo de Várzea Nova.
3
Mestra em Saúde do Trabalhador pela EBSP/FIOCRUZ, Psicóloga, Educadora do Setor de Estudos e
Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO.
2
40
HISTÓRIA DA FEIRA
A Feira Livre de Várzea Nova , distrito do município de Santa Rita/PB situado a 1
km do centro da cidade, acontece, segundo seus comerciantes, há mais de 15 anos.
Funciona nos finais de semana (sábados e domingos) e, parcialmente, em outros dias. No
início, a lucratividade era significativa por conta dos preços acessíveis aos consumidores
devido ao fácil acesso às mercadorias, que, na maioria dos casos, eram cultivadas pelos
próprios comerciantes. Com a desapropriação das terras, eles passaram a comprar de
atravessadores o que aumentou o custo e conseqüentemente, diminuiu os lucros. Hoje a
feira funciona praticamente através de dois processos:
A pedra (termo utilizado por eles) que consiste em comprar as mercadorias de
•
terceiros, ou seja, uma pessoa que tem várias bancas e compra dos atravessadores.
Neste caso, a “pedra” é uma pessoa que compra mercadoria a agricultores e
atravessadores, que vende mais caro aos demais feirantes que têm bancas na feira.
Sendo, assim, esta pessoa “pedra” acaba por monopolizar em volta de si toda a
situação da feira.
Atravessadores: são comerciantes que moram na cidade e percorrem os pequenos
•
sítios, compram as mercadorias dos agricultores para revender aos donos de bancas
nas feiras, com preços muito superiores ao pagos aos produtores. No processo de
comercialização dos produtos agrícolas, é a figura do atravessador que leva toda a
lucratividade
O ENFOQUE METODOLÓGICO
Este trabalho foi realizado com o objetivo de se conhecer o trabalho infanto-juvenil,
na feira livre de Várzea Nova, no município de Santa Rita-PB; para identificar a realidade
dos adolescentes trabalhadores suas condições de trabalho e perspectivas de vida, além de
demonstrar a ausência de políticas públicas voltadas para que crianças e adolescentes não
ingressem precocemente no mercado de trabalho. Para tanto realizamos as seguintes
atividades:
•
Sondagem: reconhecimento do ambiente e dos adolescentes , conversas informais,
abordagem,
aproximação,
apresentação,
aceitação.
Nesse
momento,
nos
41
apresentamos explicando o objetivo do nosso trabalho e fizemos a solicitação para
que colaborassem conosco. Fomos aceitas por eles, que se prontificaram em
participar da pesquisa. Foram marcadas as entrevistas, a maioria na casa dos
adolescentes e algumas nos locais de trabalho. Não houve maiores problemas nem
resistência por parte dos adolescentes.
•
Entrevistas semi-estruturadas, individuais, realizadas com os adolescentes feirantes
nos locais de trabalho e gravadas em fita K7 com questões sobre identificação
(nome, idade) família, trabalho, escolarização, salário etc.
•
Registro de Fotografias das atividades dos adolescentes na feira.
•
Conversas com os comerciantes da feira para sabermos um pouco sobre a origem
desta como surgiu e como é seu funcionamento.
•
Observação in loco do trabalho dos adolescentes, como desenvolviam as suas
atividades, relacionamento com os clientes e empregadores
DADOS DA PESQUISA
Na feira foram identificados 15 casos de trabalho precoce, sendo que desses foram
entrevistados seis que trabalham com a venda de produtos agrícolas.
•
Sexo: Feminino (4) Masculino (2).
•
Faixa Etária: Entre 12 e 17 anos.
•
Escolaridade: Perguntados sobre a escolaridade, constatamos que variava da 5ª à 8ª
série. Dentre eles identificamos 2 com déficit na aprendizagem. A grande
dificuldade em acompanhar os estudos e melhorar o rendimento está diretamente
relacionada ao trabalho como demonstra estudo realizado por (Silva, Silva e Araújo,
2002). Identificamos também que todos os adolescentes entrevistados demonstram
interesse em continuarem freqüentando a escola.
•
•
Origem: São todos do município de Santa Rita.
Sonhos: Ao perguntarmos sobre seus sonhos, falam sobre mudar de vida (casa,
profissão), ganhar dinheiro ou simplesmente do sonho de criança (o desejo de um
brinquedo).
“Meu sonho mesmo é. Eu tenho vergonha de falar. Assim, quando eu era
pequena, eu tinha três sonhos, acho que eram três. O 1º era ganhar uma Barbie,
42
o 2º ser dançarina e o 3º ser cantora. Agora a Barbie eu já não quero, sendo
cantora eu posso cantar e dançar”.
•
Lazer: Consideramos fundamental para o ser humano o lazer, o esporte, as
brincadeiras. Não conseguimos identificar na pesquisa a prática sistemática dessas
atividades. Eles não têm tempo para esta importante atividade ou é um assunto
pouco valorizado. Dos seis, quatro afirmam que não brincam por falta de tempo.
Um deles citou o jogo e outro falou da questão religiosa.
“Eu não brinco porque eu sou evangélica. Eu brinco assim às vezes”.
“Brincar?. Não tenho tempo pra isso não. Porque minha vida é corrida. A minha
única diversão é ficar em casa, assistindo nem sempre, e dançar em casa”.
•
Tempo de Trabalho: Quem está há mais tempo trabalha há 4 anos, e quem tem
menos tempo está há três meses.
“(Trabalho) desde uns 11 anos. A dificuldade da família, precisando dos
negócios e não tem. Mau pai é desempregado, minha mãe trabalha e ganha
muito pouco. Só pra não ficar parada mesmo”.
•
Forma de Inserção no Trabalho: Dos seis, três foram levados pela própria
família; os demais foram chamados pelos empregadores.
•
Necessidade de Trabalho: As respostas indicaram que a maioria trabalha pra
família e pela família. Onde vemos a reprodução do ciclo da pobreza. Mas não
podemos deixar de levar em consideração o aspecto cultural, a valorização do
trabalho como forma de proteção.
•
Produtos Vendidos: De origem agrícola, frutas, verduras, tapioca e raízes em geral.
•
Atividades Desenvolvidas: Os homens participam da montagem e desmontagem
das bancas, carregamento das mercadorias, tratamento das frutas e vendas. As
mulheres se encarregam de arrumar as bancas, manter a limpeza e venda dos
produtos.
•
Proteção: Um dado alarmante. Ao perguntarmos sobre o uso de proteção,
diagnosticamos que nenhum deles utiliza qualquer instrumento para se proteger.
Um dos adolescentes se encarrega de fazer o processo de amadurecimento das
frutas, que consiste em colocar o carbureto nas frutas verdes e envolvê-las em lonas
43
para que amadureçam e posteriormente sejam colocadas à venda. Mas para tal não
usa luvas ou outro material de proteção.
•
Carga Horária: A jornada de trabalho varia bastante, três (03) adolescentes
trabalham apenas nos finais de semana, em média 8h diárias. Dois (02) trabalham
apenas nos finais de semana com uma carga horária maior, 12h diárias, e um (01)
trabalha todos os dias da semana com uma carga horária de 10h diárias. Nos fins de
semana sua carga horária aumenta para 12h diárias.
•
Lucro de Venda: Sobre o lucro, eles afirmam que por dia conseguem vender e
“apurar”, com a venda dos produtos, o mínimo de R$ 7,00 e o máximo de R$
100,00.
•
Remuneração: Perguntados sobre o quanto recebem pelo trabalho que executam,
pudemos constatar um alto grau de exploração, tendo em vista que 2 desses
adolescentes não recebem nenhuma remuneração. Que um recebe 7 reais, por final
de semana. Ela também me agrada, mim dá roupas, sapatos, coisas assim, diz a
adolescente. Outros dois recebem entre 8 e 10 reais por final de semana. E um deles
recebe R$ 15 por semana.
•
Outros Tipos de Trabalhos: Através da entrevista, foi possível perceber que, além
desse trabalho, os adolescentes desenvolvem outras atividades como: trabalhos
domésticos (cuidar da casa, tomar conta dos irmãos).
•
Riscos: Pudemos observar durante o trabalho que os adolescentes estão submetidos
a vários riscos: os sociais, por estarem trabalhando em ambiente que os obriga a
conviverem com os mais diversos tipos de pessoas que freqüentam o mercado e a
feira livre; o manuseio de produtos químicos, podendo sofrer um processo de
intoxicação pelo uso de carbureto; problemas de colunas, pelo excesso de peso;
ferimentos com materiais cortantes (faca, ralador.) e queimaduras (chapa para assar
beiju, tapioca).
•
Perspectivas: Perguntamos no final da entrevista se eles tinham algo a acrescentar.
Eles falaram sobre terminar os estudos, e colocaram o trabalho na feira como fonte
de renda para a realização de seus sonhos. E outros dois não conseguiram apresentar
nenhuma perspectiva.
44
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabe-se que, no mundo de hoje e nos países economicamente mais desenvolvidos,
as fases da infância e da adolescência são consagradas ao estudo, à brincadeira e ao lazer.
No Brasil, sobretudo devido às condições sócio-econômicas precárias, milhares de famílias
não permitem que os filhos menores desfrutem dos seus direitos, isto é, em princípio, a
garantia de vida e, depois, dos estudos.
A miséria e a pobreza são condições constantes em sua vida, obrigando-os a
desenvolverem estratégias de sobrevivência e, dentre elas, a sua inserção precoce no
mercado de trabalho.
A partir da análise dos dados coletados na pesquisa e das leituras procedidas sobre o
assunto, podemos constatar que a maioria das crianças/adolescentes trabalhadores da feira
de Várzea Nova – Santa Rita – PB pertence às famílias inseridas no quadro de pobreza e
apresenta baixo nível de escolaridade, posto que necessitam abandonar a escola
precocemente e entrar no mundo do trabalho para gerar renda familiar. Dentre os dados
analisados nesta pesquisa, no que diz respeito ao trabalho infanto-juvenil, pode-se verificar
os seguintes resultados:
•
O grau de escolaridade dos adolescentes entrevistados: dos seis, um está fora do
nível normal admitido (permitido pelo ECA);
•
Em relação ao sexo nesta atividade encontram-se mais meninas do que meninos;
•
100% dos entrevistados recebem seu pagamento em dinheiro; no entanto a renda
mensal adquirida não se aproxima de um salário mínimo, podendo ser
considerada a retribuição pelo serviço apenas “um agrado”;
•
Todos os entrevistados vendem produtos de origem agrícola. A atividade
agrícola na Paraíba estende-se ocupando essa mão-de-obra até a cidade;
•
Embora todos afirmem ter boa condição de trabalho, constatamos que não
utilizam nenhum tipo de proteção contra acidentes;
•
Percebemos que a posição dos pais em relação ao trabalho dos seus filhos é de
concordância e incentivo;
45
•
Ficou comprovado também que os mesmos não conhecem o estatuto da criança
e do adolescente, apenas alguns ouviram falar, mas não sabem do conteúdo do
ECA.
Realmente, sem nenhum conhecimento sobre seus direitos e vítimas da miséria
familiar, a infância e a adolescência, ativa no Brasil de hoje, estão distantes do que
normalmente lhes estaria por direito reservado: educação e Lazer garantidos na
Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, negando o direito de
viverem a infância e comprometendo o direito de serem cidadãos.
Enfim, estes foram alguns dos indicadores analisados durante esta pesquisa. Na
verdade não se pretendeu esgotar o assunto, visto que esta problemática abrange muitos
outros elementos. Tentou-se, porém, fazer uma análise que pudesse vir a contribuir com
novos estudos a serem realizados sobre a questão em foco.
REFERÊNCIAS
ALBERTO, M de F.P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma
realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003.
______. As dimensões subjetivas do trabalho precoce de meninos e meninas em
condição de rua de João Pessoa (PB). 2002, 305 f. Tese (Doutorado em Sociologia)
Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2002.
MOREIRA, E. de R. F.; TARGINO, I.; SILVA, R. M. Trabalho infanto-juvenil na
agricultura nordestina (1985-1995). In: TARGINO, I.; LEITE FILHO, P. A. M. Nordeste:
aspectos da estrutura produtiva e do mercado de trabalho. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPB, 2001.
SAVIERI, L. H. Saúde no trabalho e Mapa de Risco. In: TODESCHINI, R. (Org.). Saúde,
meio ambiente e condições de trabalho: conteúdos básicos para uma ação sindical. São
Paulo: CUT/Fundacentro, 1996.
46
CAPÍTULO 04
TRABALHO PRECOCE E PRECARIZAÇÃO: UM ESTUDO DA ATIVIDADE
FRETISTA EM BAYEUX
Marinésio Pequeno da Silva1
Marinalva de Sousa Conserva2
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como finalidade apresentar alguns dados referentes à
inserção de crianças e adolescentes no mercado de trabalho informal, em particular os
carregadores de fretes no mercado público na cidade de Bayeux.
Este artigo é resultado de um ensaio de pesquisa realizado no curso de formação
para agentes sociais que atuam na área do trabalho infanto-juvenil urbano e rural. Realizado
pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, através do Setor de Estudos e Assessoria aos
Movimentos Populares – SEAMPO, e do Grupo de Pesquisas Subjetividade e Trabalho GPST. Este curso conta com o apoio internacional do Movimento Leigo para América
Latina - MLAL.
Desse modo, este trabalho está inserido numa pesquisa que visa contribuir para o
mapeamento do trabalho infanto-juvenil no estado da Paraíba, partindo da concepção de
que o trabalho precoce é ilegítimo e, como tal, deve ser combatido, de acordo com a
Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do adolescente – ECA (Lei 8.069/90).
Segundo a referida lei, deve ser proibido qualquer trabalho para menores de quatorze anos,
salvo na condição de aprendiz. A emenda Constitucional nº 20, de Dezembro de 1998, traz
a seguinte modificação: proíbe qualquer trabalho para os menores de dezesseis anos, salvo
1
Aluno do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante do Instituto Comunitário da Cidade de Bayeux - ICCB.
2
Doutora em Serviço Social pela UFRJ, Profa. do Departamento Serviço Social e do Mestrado em Serviço
Social, Pesquisadora do Grupo de Pesquisas Subjetividade e Trabalho da UFPB.
47
na condição de aprendiz a partir dos quatorze anos. Entretanto, na prática, a Criança e o
Adolescente estão inseridos precocemente em várias atividades de trabalho, inclusive com
idade inferior a quatorze anos.
A escolha em estudar a atividade de fretistas está relacionada com estudos
exploratórios realizados pelo Instituto Comunitário da Cidade de Bayeux (ICCB) junto aos
carregadores de frete no mercado público desta cidade. Tal atividade não é nova, já é
desenvolvida há muitos anos, tornando-se importante retratar algumas experiências, e, a
partir destas, entender o processo de organização dessa atividade a partir do ponto de vista
dos fretistas. Este processo nos fez compreender melhor como a desigualdade social
transforma sonhos em pesadelo se crianças e adolescentes passam a ter responsabilidades
de gente grande. Assim, a partir das observações dos arredores, ruas próximas e as mais
distantes do mercado público da cidade de Bayeux, principalmente nos dias de feira livre,
que é realizada nos finais de semanas (sábados e domingos), percebemos uma intensa
movimentação de crianças, jovens, adolescentes e até adultos com os seus carrinhos de
mão, carregando as feiras de seus “clientes”.
Assim, como agente social e pesquisador, o caminho metodológico de uma
abordagem qualitativa do fenômeno nos possibilitou uma reflexão a partir da seguinte
indagação: o que conduz uma criança que está em pleno desenvolvimento escolar e lúdico
estar inserida numa atividade como a dos carregadores de frete?
Iniciamos as observações empíricas, nas quais enfrentamos algumas dificuldades, o
que, por sua vez, nos despertou o desejo de prosseguir e superar tais dificuldades, o que
muito valeu a pena, pois compreendemos melhor como a sociedade exclui e trata os setores
populares.
Com relação ao universo pesquisado, quando começamos a pesquisa, a princípio
elaboramos a hipótese de que haveria um universo de aproximadamente 120 fretistas no
mercado público. Porém, ao longo das observações, pudemos constatar que esse número
era bem maior devido o grande fluxo de crianças, adolescentes e até de adultos com seus
carros-de-mão procurando uma clientela para oferecer os seus serviços. No período de
observação e coleta de dados, constatamos que, nos finais de semanas, há um aumento
considerável do número de fretistas no mercado, constatando-se a existência de certa
48
variação de freqüência entre eles, ou seja: existem fretistas que estão todos os dias da
semana trabalhando, como também existem aqueles que só trabalham nos finais de semana.
Numa segunda etapa da pesquisa, procuramos utilizar o contato inicial que
mantivemos com alguns comerciantes durante o processo de coleta de dados, quando
obtivemos informações riquíssimas para chegar a uma aproximação mais conclusiva do
número de fretistas trabalhando naquele mercado público. Tivemos, assim, acesso ao
cadastramento dos fretistas, realizado no ano de 2001, que trabalham no mercado. Este
cadastramento foi realizado pela administração do mercado público em parceria com um
policial militar que faz parte da segurança de alguns estabelecimentos no mercado. O
motivo do cadastro, conforme o policial, se deu em virtude de que estavam desaparecendo
muitas feiras de clientes. Nesse período, foram cadastrados, entre crianças e adultos, 367
carregadores de feiras, além dos que não foram se cadastrar, segundo estimativa do órgão,
aproximadamente 50 fretistas. Isto porque, segundo o policial (responsável direto pelo
cadastramento), muitos fretistas não quiseram fazer parte do cadastro por motivos diversos,
entre eles: não trazerem foto, não dizerem onde moravam, não terem o nome em nenhum
documento, etc. O cadastro foi realizado de modo simplificado, contendo apenas o nome do
fretista, a idade, o seu endereço, o nome dos pais e o número do seu carrinho. Quando
tivemos acesso a esse arquivo, verificamos que não havia a presença do sexo feminino
nessa atividade, o que a caracteriza como um trabalho exclusivamente do sexo masculino.
A hipótese mais provável deve-se ao caráter da atividade: a carga pesada do transporte das
feiras.
Realizamos diversas entrevistas informais e duas semi-estruturadas, objetivando
conhecer a trajetória de vida e trabalho destas crianças e adolescentes e, assim,
compreender o processo de organização desta atividade, como também elucidar as
condições de precarização da atividade fretista e os riscos a que estão expostos.
Este artigo está estruturado em duas partes. A primeira consta de uma discussão
sobre o trabalho precoce. Em seguida apresento uma caracterização da cidade de Bayeux,
município onde foi realizada a pesquisa. Da segunda parte do trabalho constam a análise do
material coletado em campo, a apresentação do perfil dos carregadores de frete do mercado
público, a caracterização da atividade de fretista, sua organização de trabalho e condições
49
de trabalho. Finalizo com algumas considerações sobre a atividade, os sonhos e
perspectivas dos pesquisados.
O TRABALHO PRECOCE
Neste artigo entendem-se por trabalho precoce as atividades formais ou informais
exercidas por crianças e adolescentes principalmente até aos 16 anos.
Segundo Alberto (2002), discussão dessa problemática aponta os seguintes aspectos
fundamentais:
•
O trabalho precoce é uma estratégia de sobrevivência porque os pais não
conseguem garantir a sobrevivência da família;
•
O caráter discriminatório do trabalho precoce e o uso deste como
instrumento disciplinador.
O caráter discriminatório ocorre porque as crianças trabalhadoras pertencem à
classe baixa. São crianças pobres, filhas de trabalhadores, desempregados, proletários, os
quais compõem os excluídos sociais. São crianças que se tornam trabalhadoras precoces
porque os pais não conseguem garantir a sobrevivência da família. É um instrumento
disciplinador ou “educativo” porque é pensado como uma alternativa para crianças e como
forma de prevenir a marginalização e, assim, “educá-las” para o mundo do trabalho
(Alberto, 2002).
Dessa forma o trabalho precoce faz parte da cultura da nossa sociedade trazendo a
inserção da criança no mundo do trabalho, delineado através de várias nuances tais como:
trabalho explorador, trabalho formador/ profissionalizante, trabalho complementar à renda
familiar. Há ainda a concepção de que a criança não deve trabalhar, mas o adolescente sim.
Todavia, a persistência do trabalho precoce retrata uma sociedade desigual e
contraditória, entre o legal e o real, o legítimo e o ilegítimo, porque retrata uma realidade
social em que suas crianças e adolescentes estão submetidas a processos de violação dos
seus direitos humanos básicos.
50
CARACTERIZAÇÃO DA CIDADE DE BAYEUX
A cidade de Bayeux está ligada à história da colonização da capital João Pessoa e do
município de Santa Rita devido à localização, ou seja: historicamente, serviu como centro
de ligação entre as duas cidades. Durante muito tempo, a ponte Sanhauá era a única via de
acesso para o interior do estado. O registro oral conta que, no período dos anos 1831 a
1836, cobrava-se pedágio de tudo que por ela transitava, pois, de um lado da ponte, estava a
capital do estado e, do outro, existia uma estreita rua, estrada de barro mal cuidada cercada
por manguezais e rios, que ligava a Capital ao interior, tendo como primeira cidade Santa
Rita. Com o passar do tempo, na proximidade da ponte, a estreita rua começou a ficar
habitada, pessoas de diversas localidades passaram a ocupar aquele espaço e, aos poucos, a
população denominou a localidade de Boa Vista, depois Vila Barreiras.
Em 02 de Junho de 1944, o Decreto-lei estadual nº 452 modifica seu nome para
Bayeux em homenagem a uma cidade francesa, que foi dominada pelos Alemães e
retomada pelos aliados nessa mesma data. Em 1959, ocorre sua elevação a município
através da Lei 2.148 de 20 de Julho. Mas sua instalação oficial só ocorreu no dia 15 de
Dezembro do referido ano. (Silva, 1993).
Em relação ao espaço físico, Bayeux pertence à micro região do litoral Paraibano,
tendo como municípios limítrofes João Pessoa (6Km) e Santa Rita (7Km), ocupando 27,5
Km, com grande predomínio da zona urbana. Com base na orientação proposta por Silva
(1993) para divisão geomorfológica da Paraíba, verifica-se que Bayeux pertence ao setor
oriental úmido e subúmido, caracterizado por um clima quente e úmido. O município de
Bayeux é constituído de 50% de vegetação de manguezais. As matas, praticamente
ausentes, são localizadas no estuário do rio Paraíba, margeando seus afluentes, o rio
Paroeira e o Sanhauá. Os manguezais constituem uma formação florestal perenifólia com
espécie amtamente adaptada ao tipo de ambiente fluvio-marinho (Oliveira, 1999).
O processo de urbanização da cidade começa a expandir-se especialmente nos fins
da década de 50. No início, existia um pequeno aglomerado, pertencente ao município de
Santa Rita. Com seu desmembramento, em 15 de dezembro de 1959, sua estrutura urbana
começou a ser identificada.(Oliveira, 1999).
Atualmente, observa-se que o crescimento de Bayeux se deu de forma bastante
acelerada. Com o surgimento da Br 101, apareceram novas formas de ocupação
51
acompanhando seus limites intermunicipais. A porção Sul sofre internas modificações,
pois, nessa área, até 1970, ainda existia vegetação de Mata Atlântica. Caracterizava-se
também como tipicamente rural, com a presença de cultura de subsistência e algumas casas.
Com a intensificação do uso do solo e construções de habitações, esse quadro foi se
modificando e hoje praticamente inexiste a zona rural na cidade.
Tal fato confirma que esse aglomerado urbano tem sido foco de atração de
população, ocasionando sérios problemas de ordens ambiental e social, devido ao forte
desenvolvimento do setor administrativo que tem atraído grande número de imigrantes que
não podem ser absorvidos pela máquina estatal marginalizando-se em bairros favelizados.
A intensificação do processo de urbanização de Bayeux é marcada por um
crescimento desordenado que gerou o empobrecimento da população nas últimas quatro
décadas, tornando-se um espaço de contradição frente à degradação ambiental e à qualidade
de vida (Oliveira, 1999).
Em relação aos aspectos socioeconômicos, segundo Silva (1993), a vida econômica
de Bayeux começa a se desenvolver a partir de 1950 incrementando-se a partir dos anos 60
com a implantação de estabelecimentos industriais subsidiados pela SUDENE.
Assim como as demais cidades que sofreram o processo de urbanização, Bayeux
também passa por transformações. Sua população urbana ultrapassou a rural e o fluxo
migratório tomou impulso com o re-direcionamento das políticas para alcançar melhor
integração econômica entre os estados brasileiros. Para o Nordeste, tal política
governamental criou a SUDENE, tendo como uma das prioridades incentivar o parque
industrial das pequenas e médias cidades. A estrutura urbana de Bayeux foi marcada pela
implantação de fábricas e atividades comerciais na avenida Liberdade, a mais tradicional da
cidade, que sempre funcionou como ponto de passagem entre a capital (João Pessoa) e o
interior paraibano. Distribui-se em toda a extensão da avenida uma variedade de
estabelecimentos com gêneros diversos, sendo mais representativo os de produtos
alimentares e têxteis. Apesar de o número de industrias ser bastante significativo e seu
crescimento demográfico enquadrar-se como um dos maiores do estado, Bayeux apresentase subordinado a João Pessoa, pelo forte grau de dependência do comércio e prestação de
serviços.
52
Em termos da economia informal, segundo Silva (1993), verifica-se que a
população tida como de baixa renda, em sua maioria, situa-se na informalidade com grande
número de desempregados e sub-empregados. A cidade também apresenta como
característica uma determinada tendência urbana a ser considerada como “cidade
dormitório", pois um crescente número de sua população desloca-se diariamente para a
capital onde vendem sua força de trabalho. Confirmando, assim, sua posição no
aglomerado urbano da grande João Pessoa, como um exemplo típico da desigualdade do
processo de urbanização brasileira, marcado por carência generalizada de infra-estrutura e
equipamentos de urbanização.
Bayeux conta atualmente com 90.663 habitantes, segundo estimativas do IBGE/
2004. A cidade dispõe de várias atividades econômicas, além do comércio de gênero
alimentício e da atividade industrial. O mercado informal também faz parte da vida
econômica da população de Bayeux. Grande parte desses comerciantes encontra-se no
mercado público da cidade, onde passamos a observar a presença de várias crianças e
adolescentes inseridos nas atividades informais, dentre elas os carregadores de feiras em
carinhos-de-mão, os fretistas.
CARACTERIZAÇÃO DA ATIVIDADE FRETISTA
a) Perfil dos fretistas do mercado público de Bayeux
Os carregadores de fretes, ou fretistas do mercado público da cidade de Bayeux, são
crianças, jovens, adolescentes, e até adultos, inseridos no mercado de trabalho informal. Em
virtude da desigualdade social, as condições de vida, a falta de uma política social que
atenda aos anseios dos familiares mais carentes, que acaba forçando a inserção destes no
trabalho informal.
As trajetórias de vida dos fretistas inseridos precocemente no mundo do trabalho
assemelham-se:
•
Quanto à situação social: pertencem às classes menos favorecidas, os chamados
excluídos da sociedade geralmente têm pessoas na família que trabalham, porém
não ganham o suficiente para garantir a sobrevivência;
53
•
Quanto à idade: os carregadores de frete do mercado são na sua maioria crianças e
adolescentes com idade entre 10 e 18 anos;
•
Quanto à inserção na atividade: a maioria das crianças e adolescentes contatados
na pesquisa é incentivada pelos próprios pais a participarem da atividade de frete.
Muitas dessas crianças e adolescentes não têm perspectiva de uma vida melhor
devido à real carência em que sobrevivem, conforme retrata a fala de alguns:
“É melhor trabalhar do que ser vagabundo...também pra ajudar em casa.
(A.N.R 17anos).
“A gente precisa arrumar mais dinheiro pra ajudar em casa” (F.C.S.14
anos).
•
Quanto à renda: segundo os depoimentos, há uma variação. A depender do dia, a
média é de R$ 15,00 a 20,00 reais por semana. Esses "trabalhadores" ficam na feira
livre e em frente aos mercadinhos que estão situados no Mercado Público tentando
conquistar clientes.
•
Quanto à escolaridade: há uma discrepância na relação idade e série, como retrata
o caso de F.C.S. de 14 anos, que estuda numa escola pública, no bairro de
Imaculada, e está cursando a 3ª série do fundamental primário. Já foi reprovado
duas vezes, uma vez na 1ª série e outra na 3ª serie, com uma defasagem de 4 anos.
Geralmente eles começam a estudar na idade certa, porem, devido ao trabalho
precoce e às más condições de vida, não conseguem acompanhar o rendimento dos
outros alunos, o que pode levá-los a reprovação e até à desistência. Conforme
depoimento:
“Desisti duas vezes, uma foi porque era supletivo, aí eu num se
adaptei aí desisti, e da segunda foi porque quando fui buscar o
histórico aí num deu tempo se matricular na outra escola”. (A.N.R,
17 anos).
A.N.R. deveria estar no 3º ano do ensino médio. Os agravos sociais, tais como a
desestruturação familiar, necessidades básicas e a inserção ao mundo do trabalho precoce,
acabam desvirtuando as reais condições das vidas de famílias inteiras.
54
Outro caso que foi observado foi o de F.C.S., de 14 anos, que, além de começar
tardiamente seus estudos, foi reprovado duas vezes, na 1ª e na 3ª serie. Hoje ele está
repetindo a 3ª serie do ensino fundamental, conforme podemos observar na fala a seguir:
“Fui reprovado duas vezes, na primeira e na terceira”. (F.C.S, 14 anos)
b) Organização da atividade
Existe entre os fretistas uma auto-organização para o desenvolvimento de trabalho.
Eles colocam sempre seus carrinhos em fileiras enquanto esperam a clientela. Esse tipo de
organização é realizado apenas em frente aos mercadinhos, local que permite os fretistas
aguardarem os seus 'clientes', já que no meio dos corredores da feira eles saem perguntando
às pessoas quem é que vai querer o carrinho.
O processo de trabalho, ou seja, para começar a pegar frete no mercado, há alguns
procedimentos fundamentais a serem observados: se a execução da atividade ocorrer no
meio da feira, ou seja, nos corredores, então é só chegar com o carrinho de mão e sair
oferecendo seus préstimos. Porém, se a tarefa for executada nos mercadinhos, então é
preciso que alguém que já faz ponto no local lhe apresente para que ele possa começar a
organizar o seu carrinho junto com os demais. Entretanto, foi observado um caso em que o
funcionário do mercadinho apresentou o próprio filho para começar a trabalhar como
fretista. Esse caso foi detectado em conversa informal que mantivemos com o fretista, e
que, ao perceber que se tratava de uma pesquisa, negou-se a dizer o seu nome e o de seu
pai.
Com relação à abordagem da clientela, o fretista chega cedo ao ambiente de trabalho
e tenta convencer a clientela das necessidades dos seus serviços, de sua habilidade e
destreza para desenvolver um bom serviço. Em seguida, negocia-se o preço.
c) A jornada de trabalho
A jornada de trabalho dos fretistas, no mercado publico da cidade de Bayeux, é
bastante variada devido à flexibilidade que há na execução da atividade. Durante os dias de
observação, percebi que alguns dos fretistas estavam praticamente todos os dias no
mercado. No entanto, a grande maioria realiza a atividade, no mercado, nos finais de
semana, isso porque os dias em que há uma maior movimentação são exatamente os
55
sábados e domingos. Em conversas informais que mantive com alguns, fiquei sabendo que
um dos motivos que levam muitos a não estarem todos os dias trabalhando é a freqüência á
escola, como no caso de A. N. R. de 17 anos que está cursando a 5ª série. Para aqueles que
estão todos os dias no mercado, a jornada de trabalho é realizada da seguinte forma: nas
terças, quartas, quintas e sextas-feiras eles chegam por volta das 7:00h e ficam até 11:30h
ou até 12:00h da manhã, quando saem para o almoço, e só retornam por volta das 14:30h
em diante. Não existe o compromisso efetivo para que eles voltem à tarde. Nos finais de
semana, tanto o horário de chegada ao local de trabalho como a sua permanência são
diferenciadas, pois eles começam a chegar mais cedo. Geralmente a partir das 05:00h, é
possível encontrar alguns fretistas com seus carrinhos-de-mão, e muitos só vão para casa
por volta das 17:00h ou 18:00h. Se se for levar em consideração que, durante essas doze
(12) ou treze (13) horas trabalhadas, alguns deles não fazem pausa, nem para almoçar, pois
muitos deles comem no próprio local onde estão esperando os clientes, podemos concluir
que eles trabalham nos finais de semanas aproximadamente 26 horas em dois dias, ou seja,
13 horas por dia. Mas isso não é uma regra, pois há oscilação na freqüência dos horários.
Em virtude dessa variação, no que se refere ao horário de chegada e a permanência
no local de trabalho, como também à hora de ir para casa, torna-se difícil fazer uma
avaliação precisa da jornada de trabalho semanal dos carregadores de fretes. Segundo
informações dos entrevistados, geralmente a jornada do turno da manhã inicia-se às 5:30 e
vai até às 12:00h. O turno da tarde inicia-se às 13:30h ou 14:00h e termina ao anoitecer.
d) As condições de trabalho
A partir de algumas observações sobre as condições de trabalho dos fretistas, foi
possível conhecer melhor alguns aspectos da realidade de vida do grupo, com relação: ao
ambiente, ao comportamento, aos acessórios, à postura, aos efeitos do trabalho precoce. Os
agravos mais visíveis são constatados na área da saúde, na baixa escolaridade e na
desqualificação profissional, provocando, assim, uma baixa auto-estima e uma adultização
precoce.
No mercado público, faltam condições adequadas de higiene e trabalho. É sujo e,
em termos espaciais, as ruas são enladeiradas, o transito é intenso, não existe um local
adequado para eles se acomodarem enquanto “descansam”. Os que ficam em frente aos
56
mercadinhos estão expostos à poluição sonora que é provocada pelos carros de som. No
mercado, não há uma fiscalização sobre as crianças e adolescentes o que facilita o acesso
dos mesmos a bebidas alcoólicas.
São visíveis às más condições do mercado público e, conseqüentemente, a situação
de riscos sociais e ambientais em que se encontram os carregadores de fretes de Bayeux,
como a exposição a sol, chuvas, ventos, poeira, trânsito, exploração, brincadeiras
inadequadas, brigas, intrigas. Ainda ficam expostos aos riscos das drogas. Essas crianças e
adolescentes desempenham atividades que demandam esforço físico, tais como: empurrar
carrinho-de-mão, levantar, abaixar, transportar peso por longas distâncias. Geralmente
expõem-se a uma extensa jornada de trabalho. Alguns passam até 12 horas trabalhando.
Durante as horas de trabalho, trafegam em locais movimentados, correndo o risco de sofrer
sérios acidentes, correndo riscos de seqüelas na vida adulta, ou, até mesmo, de morte
precoce.
Os fretistas se alimentam mal, comem apenas bobagens, tais como: bolo,
refrigerante, salgadinhos, etc. O cansaço é visível, principalmente nas relações entre eles.
Geralmente, xingam-se uns aos outros, ficam irritados quando não conseguem convencer o
cliente, ou, então, quando o colega passa a frente e acerta o frete antes dele, já que há uma
disputa pela clientela. Eles referiram-se a outros riscos, como assaltos, no que demonstram
medo, conforme fala a seguir:
“Eu não pego frete de muita gente desconhecida porque tenho medo
de ser assaltado na hora de voltar para a feira” (A . N. R.17 anos)
CONCLUSÃO
A sociedade brasileira caracteriza-se por apresentar processos sociais excludentes da
maioria da classe trabalhadora. A gravidade desse quadro tem relação direta com o trabalho
precoce, devido à necessidade de sobrevivência pessoal e da família.
Nesse quadro de desigualdade social, estão inseridas as atividades informais de
crianças e adolescentes, dentre os quais se situam os carregadores de frete do mercado
público da cidade de Bayeux, cujas condições de vida e trabalho são inadequadas, em
lugares insalubres, sem higiene, com longas jornadas, expostos a variados riscos, dentre
eles drogas e violência.
57
Podemos, concluir também que pelo fato de serem crianças, a relação com o mundo
do trabalho é misturada com o lúdico. Sentem necessidade de brincadeiras, de lazer e
diversão, e conseguem realizar ao mesmo tempo o trabalho e o lazer, principalmente entre
um frete e outro, quando o tempo de descanso é reservado às brincadeiras.
Todavia, apesar de conseguirem entremear a brincadeira com o trabalho, há
aspectos negativos decorrentes da inserção precoce, dentre as quais identificamos as
dificuldades escolares, as reprovações e a defasagem, aspectos que repercutirão na sua vida
a médio e longo prazo.
REFERÊNCIAS
ALBERTO, M de F.P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma
realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003.
______. As dimensões subjetivas do trabalho precoce de meninos e meninas em
condição de rua de João Pessoa (PB). 2002, 305 f. Tese (Doutorado em Sociologia)
Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2002.
______. A situação da criança trabalhadora no mercado informal em João Pessoa - PB.
Revista Política e Trabalho, João Pessoa, v.16, n.16, p.41-47, 2000.
ARAUJO, A. J. da S.; ALBERTO, M. de F. P. O significado do trabalho precoce. João
Pessoa, 2002. Mimeografado.
OLIVEIRA, A.A. Bayeux - seu povo sua história. João Pessoa: União, 1999.
SILVA, J. M. Bayeux, cidade de “outros caminhos”. Monografia. Departamento de
Geociências, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 1993.
TEIXEIRA, D. M. A experiência do trabalho de pesquisa. João Pessoa:
UFPB/SEAMPO/GPST, 2002. Mimeografado.
58
CAPÍTULO 05
O VAI E VEM DA MARÉ: O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
NO ESTUÁRIO DO RIO PARAÍBA NA CIDADE DE BAYEUX
Gabriel Pereira de Souza1
Hélder Oliveira da Silva2
Maria de Fátima Pereira Alberto3
INTRODUÇÃO
Este artigo é resultado de um ensaio de pesquisa demandado pelo II Curso de
Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural, realizado na Universidade Federal da Paraíba. Apresenta uma
discussão acerca do trabalho precoce e suas implicações na vida de crianças e adolescentes
que desempenham as atividades de catadores e processadores na pesca do marisco e
catadores de siri-mole no município de Bayeux no estado da Paraíba.
O marisco (Anomalocardia brasiliana) é um molusco bivalve, cuja concha é
formada por duas partes simétricas, que fica enterrado nos bancos areno-lodosos dos
estuários. Os estuários são grandes cursos d’água situados entre a região costeira e o
continente, constituindo-se numa transição entre ambiente marinho e água doce. (Nishida,
2000).
O interesse de conhecer o trabalho de crianças e adolescentes na pesca no mangue
nasceu da descoberta, a partir dos trabalhos de Lopes et. al. (2003) e Silva (2003), da
presença de adolescentes na pesca submarina. No entanto, optamos pelo mangue, em vez
do mar, dada a possibilidade de contribuir com o Projeto de Mapeamento do Trabalho
1
Aluno do curso de Graduação em Psicologia da UFPB. Extensionista do Setor de Estudos e Assessoria a
Movimentos Populares – SEAMPO.
2
Aluno do curso de História, da UFPB. Sindicato dos Trabalhadores do Comércio de João Pessoa.
3
Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Depto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação
em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho –
GPST/UFPB e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB.
59
Precoce no Estado da Paraíba4, que ainda não contemplava as atividades executadas neste
setor.
O ensaio de pesquisa tinha como objetivo investigar a existência do trabalho
precoce nas atividades de pesca no mangue. Uma vez detectada, pretendíamos identificar e
descrever as tarefas nas quais se utilizava a mão-de-obra de crianças e adolescentes e os
riscos inerentes à atividade.
Os autores do presente trabalho foram indicados por suas respectivas entidades para
participarem do referido curso de Direitos Humanos. São elas: o Setor de Estudos e
Assessoria aos Movimentos Populares (SEAMPO) e o Sindicato dos Empregados no
Comércio de João Pessoa (SINECOM).
O SINECOM foi fundado no dia 1º de Julho de 1932, a partir da Associação dos
Profissionais do Comércio. Em meados de 1990, o Sindicato teve participação relevante em
parceria com a Delegacia Regional do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e outras
instituições, no combate ao trabalho infanto-juvenil, sobretudo nos Supermercados de João
Pessoa, onde havia a exploração dessa mão-de-obra, com o total apoio do Estado, através
da Fundação de Desenvolvimento da Criança e do Adolescente – FUNDAC, que na prática
funcionava como uma agência de locação da força de trabalho dos adolescentes.
Desde então, a entidade tem participado de diversos eventos, bem como apoiado a
organização e campanhas de Conselhos Tutelares, além de exercer vigilância quanto ao
trabalho precoce no Comércio da Grande João Pessoa.
Já o SEAMPO foi criado em 1983 por professores da UFPB que partilhavam a idéia
de uma Universidade mais próxima dos movimentos sociais. Essa proximidade se dá
através dos diversos projetos de extensão que funcionam neste setor do Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes – CCHLA.
Devido à necessidade de qualificação dos estagiários que trabalham junto ao
SEAMPO na temática do trabalho precoce, foi indicado um dos seus integrantes para que
tivesse uma formação em Direitos Humanos, direcionada ao trabalho precoce. Dessa forma,
a instituição poderia desenvolver ações mais precisas no que diz respeito ao trabalho de
crianças e adolescentes.
4
Este mapeamento está sendo desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce, em parceria
com o Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e de Proteção ao Trabalhador
Adolescente na Paraíba e com a Delegacia Regional do Trabalho (DRT).
60
METODOLOGIA
Inicialmente, foi realizado um levantamento bibliográfico e iconográfico.
Encontramos vídeos sobre o mangue, que não tratavam, porém, diretamente do trabalho de
crianças e adolescentes.
Partimos, então, para a coleta dos dados, utilizando como instrumento uma
entrevista semi-estruturada com questões em torno dos seguintes eixos: motivos da inserção
precoce no trabalho; processo de trabalho; transmissão das formas de se realizarem as
atividades ligadas ao marisco e siri-mole; sentimento da criança e adolescente em relação
ao seu trabalho; remuneração; prejuízos à saúde; escolaridade; e perspectivas para o futuro.
Sendo assim, o primeiro passo foi conseguir um contato que possibilitasse a
chegada até os sujeitos da nossa pesquisa. Através de contatos pessoais, chegamos ao
presidente da Associação dos Aqüicultores e Pescadores da Cidade de Bayeux, que por sua
vez desenvolvia suas atividades junto aos pescadores da comunidade do Porto da Oficina,
que veio a se constituir no espaço de realização desta pesquisa. O referido presidente
apresentou-nos a um pescador de marisco - denominado por eles de marisqueiro – daquela
comunidade que permitiu que seu filho fosse entrevistado.
Esperávamos ser tarefa difícil encontrar e entrevistar crianças que trabalhassem
naquele ambiente dado o desconhecimento por parte dos pesquisadores daquela realidade.
O inesperado aconteceu no momento em que convidamos o menino, de onze anos, para se
sentar fora da casa, no casco de um bote5, para que assim, afastado dos familiares,
pudéssemos conversar sem interferências. Um grupo de crianças se aproximou, ficando ao
redor do barco. Todos eram trabalhadores e trabalhadoras nas atividades ligadas à pesca do
marisco ou catação do siri-mole.
Neste dia, fizemos cinco entrevistas. Fomos embora, deixando um pedido às
crianças entrevistadas de que voltaríamos e gostaríamos, se possível, de entrevistar outras
crianças que aceitassem colaborar com a pesquisa.
Voltamos mais uma vez àquela comunidade e realizamos mais dez entrevistas com
crianças e adolescentes moradores da área. Neste sentido, a coleta de dados não foi uma
tarefa difícil, uma vez que os meninos e meninas estavam ali. Todos moravam naquela área
5
Embarcação, propelida a remo ou a vela. O principal meio de transporte dos pescadores, catadores de
caranguejo e moluscos, é um dos tipos de embarcação mais freqüentemente utilizada. (Nishida, 2000).
61
e desenvolviam atividades ligadas à pesca no estuário do Rio Paraíba. E aceitavam
participar da pesquisa. Aliás, a maioria até pedia para ser entrevistada.
Tínhamos programado fazer uma análise das atividades de trabalho6 dos sujeitos,
mas não foi possível porque no período de realização da pesquisa, no mês de fevereiro de
2004, as chuvas que atingiram a Paraíba no início do mesmo ano causaram enchentes em
diversos rios, o que diminuiu o nível de salinidade da água do estuário do Rio Paraíba,
resultando na morte dos mariscos que precisam de um determinado nível mínimo de
salinidade para sobreviver. Ou, como diziam os moradores da referida comunidade, “não
havia marisco na croa”. As croas são bancos de areia lodosos que aparecem quando a maré
está baixa.
Entrevistamos crianças e adolescentes que desenvolviam as atividades de catação do
marisco, do siri-mole e a descatemba do marisco. A catação do marisco e do siri-mole é o
processo de coleta destes nas croas. A descatemba, por sua vez, é a atividade de retirada da
“carne” do marisco, depois de cozido. Nishida (2000: 14) explica que a “catação” do
marisco é um ramo específico da pesca artesanal (...) e a “descatemba” ou “despolpa”,
consiste da retirada da parte mole (carne) das valvas dos moluscos. (op.cit: 22)
A VIDA E O TRABALHO DOS PRECOCES MARISQUEIROS NO PORTO DA
OFICINA
Foram entrevistados quinze crianças e adolescentes, sendo 7 meninos e 8 meninas,
com idade variando entre 8 e 16 anos. Houve uma predominância na idade de 12 anos.
Apesar de não ter sido entrevistada, por suas limitações cognitivas, foi encontrada uma
menina de 3 anos que participa do processo de trabalho.
No que diz respeito à idade em que cada criança começou a trabalhar, há uma
variação entre 3 e 10 anos. Quanto à idade ideal com que os entrevistados acreditavam que
uma pessoa deveria começar a trabalhar, houve uma variabilidade de respostas que oscilou
entre 5 e 19 anos.
Apesar de muitos afirmarem que começar a trabalhar cedo foi bom, quando
questionados sobre a idade ideal para uma pessoa começar a trabalhar, sempre indicavam
6
É um recurso metodológico da Ergonomia que consiste na observação e descrição sistemática das atividades
de trabalho.
62
uma idade superior a que iniciaram, demonstrando o sentimento de inadequação com
relação às idades em que foram inseridos precocemente nesta atividade de trabalho.
Os sujeitos entrevistados trabalham entre 2 e 13 horas diárias, quando há uma
produção diária do marisco e do siri-mole.
Atividades
Foram detectadas as seguintes atividades: catação do marisco, cozimento do
marisco, descatemba do marisco e catação de siri-mole. A maioria trabalha com o marisco,
pegando-os nas croas ou descatembando-os na caiçara; outros, pegando siri-mole.
Caiçara é a Palhoça, junto à praia, para abrigar as embarcações ou apetrechos dos
pescadores. No caso específico da comunidade objeto de estudo, uma casa que serve de
apoio para todos. Dentro dela ficam materiais, como puçá, gadanho e caixa. Há mesas onde
se coloca o marisco cozido para a descatemba e, do lado de fora, há uma espécie de fogão a
lenha para o cozimento dos moluscos. Segundo depoimentos, a caiçara existe há alguns
anos (não sabiam exatamente quanto) e foi construída com a ajuda de uma freira e da Igreja
Católica.
Catação do marisco
O marisco fica enterrado na lama e nas croas. Para chegar até as croas, os catadores
utilizam-se de botes movidos a remo. Usam alguns instrumentos para pegar o marisco: o
gadanho, a puçá e a caixa. O gadanho serve para escavar a lama para encontrar os mariscos,
que são colocados dentro do puçá, uma cesta feita de cipós trançados. Uma vez postos no
puçá, são lavados e depois conduzidos até o bote e armazenados em uma caixa plástica no
formato retangular, sem divisórias internas, com espaços laterais e aberturas para
escoamento da água.
Cozimento e Descatemba
Os participantes desta pesquisa afirmaram que a atividade de descatembar é
realizada geralmente no dia que se segue à catação do marisco. No caso dos entrevistados,
63
realizavam esta atividade na caiçara, onde o marisco é cozido, sempre por um adulto, até
que se abra por conta do calor, para ser despolpado.
O marisco cozido é colocado em cima de uma mesa, as pessoas vão retirando a
“carne” e colocando numa vasilha separada. Identificamos que, após esse processo, o
marisco é levado para comercialização.
Os dados da pesquisa nos dão conta de que é nesse processo de beneficiamento do
marisco que a maioria das crianças trabalha dada a demanda de maior número de mão-deobra para desenvolver essa tarefa. Segundo Nishida (2000: 100), o marisco é considerado
pelos catadores como um dos moluscos de menor rendimento e mais trabalhosos para
retirar a carne devido ao seu tamanho. Por ser pequeno, necessita de grande quantidade
para se atingir um quilo.
O trabalho desses meninos e meninas serve como complemento da empreitada
familiar. Segundo depoimentos, a família só produz uma maior quantidade de marisco com
a presença de crianças e adolescentes no processo de trabalho.
Catação de siri-mole
Segundo Carmo (1996, p. 08) (...) Os siris são aquáticos, vivendo em estuários e na
zona costeira. A carapaça é achatada e o último par de pernas tem forma de remos. São
onívoros, mas preferem alimentar-se de peixe (...). O siri mole é um crustáceo que está
passando pelo processo de troca do seu exoesqueleto, chamado de ecdise, pois para
crescerem precisam mudar de carapaça.
A catação do siri-mole se dá nas poças d’água localizadas nas croas. Utiliza-se
somente a mão para pegar o siri que é colocado em um balde e conduzido para o bote.
Podemos verificar no depoimento a seguir como se dá o processo:
“(...) nas arêa com um pouquim d’água. Aí o siri-mole fica descascano ali. Dá
pra vê. Ele, ele anda. Quando ele discasca ele fica andano pelo mei da água.
Aí a pessoa vai, vê ele e pega. A pessoa leva um balde, bota um pouquim
d’água e vai butano (...)” (R, masculino, 11 anos).
A atividade de catação do siri-mole, segundo os dados obtidos, é realizada por
meninos. As meninas não gostam e acham difícil pegar siri-mole. Elas preferem
descatembar, atividade esta tida como mais difícil pelos meninos. Percebe-se uma divisão
64
sexual do trabalho entre os trabalhadores precoces que não foi aprofundada aqui, mas pode
ser objeto de estudo de trabalhos futuros.
Atribuições à inserção precoce no trabalho
As causas que levam à inserção precoce nas atividades abordadas estão diretamente
ligadas à família, que, por suas condições de vida e trabalho, demandam a complementação
dos filhos, por “ajuda” ou por “obrigação”. No entanto, foi possível observar nas falas de
algumas crianças que as tarefas desempenhadas por elas são muitas vezes percebidas como
brincadeiras.
Para outros, entretanto, a inserção precoce é uma necessidade premente. O
adolescente “V.”, dezesseis anos, ao ser questionado sobre o porquê de ter começado a
trabalhar com nove anos de idade, responde:
“(...) Porque tenho que ajudar a sustentar a família também. Tem que ajudar as
mãe, os irmão que trabalha. Eu acho bom começar de logo cedo, porque
quando tiver maior já sabe o que é trabalhá (...)” (V., masculino,16 anos)
Como se pode perceber, esses meninos e meninas começaram a trabalhar
principalmente pelas precárias condições econômicas em que se encontram suas famílias
ribeirinhas7, vivendo à margem do mercado de trabalho e desassistidas pelo Estado.
Atividade Familiar
As atividades realizadas pelos trabalhadores precoces com o marisco funcionam no
interior da estrutura familiar. Em sua maioria, os entrevistados afirmaram ter aprendido a
fazer o que fazem hoje com a família e parentes. Foram citadas mães, pais, avós, irmãos e
tios. Outros dizem ter aprendido por observação de pessoas trabalhando na caiçara. Esse
modelo de trabalho parece ser reproduzido de geração para geração.
Muitos afirmaram ter aprendido a trabalhar observando os familiares. As crianças
vivem em contato constante com as atividades dos pais e vizinhos. Observamos, no
momento das entrevistas, que crianças menores de três anos, por exemplo, vivem naquele
7
População que vive próximo dos rios.
65
espaço com as outras crianças mais velhas, e, mesmo que não realizem uma tarefa,
observam desde cedo sua realização.
Quanto à questão que trata das pessoas para as quais crianças e adolescentes
trabalham, observa-se que, muitas vezes, desenvolvem tarefas para a família. Pais, tios e
avós, mas, principalmente, para as mães. A família, neste sentido, é referida como membros
de vários níveis de parentesco. Há ainda crianças que trabalham para terceiros.
Riscos
No caso da atividade em questão, como não foi feita a análise da atividade pelos
motivos acima expostos, atemo-nos em apresentar apenas alguns riscos que apareceram nas
falas ou que inferimos a partir de outros estudos sobre trabalho precoce.
Das crianças que entrevistamos, as principais queixas referiam-se a dores nas costas
e na cabeça, relacionadas à posição em que praticam seu trabalho.
Os que catam siri-mole e marisco informaram que permanecem certo tempo8
agachados com uma má postura. Muitas vezes não usam nenhuma proteção contra o sol, a
não ser a camisa e o boné. Com as costas e a cabeça diretamente expostas ao sol, sofrem
danos, acarretando freqüentemente bolhas nas costas. São vulneráveis a doenças de pele e
cervicalgias. Outro aspecto enfatizado pelos meninos diz respeito às longas distâncias que
percorrem a pé.
“(...) dói a cabeça, que a pessoa tá ali levano sol e ta andando ali naquela terra...
dói, dói muito minha cabeça. O sol quando bate... o sol é quente. É bom quano
tá choveno, mas também quano tá choveno é rim pra pessoa pegar siri-mole,
porque fica aquele lamêro (...)” (R, Masculino, 11 anos).
“(...) fico muito cansado, aí cansa muito porque, inda além de remar ainda fica
mai de coca assim pra pegar o marisco. É muito cansativo... dói mai nas costa e
nos braço... o sol afeta as costa somente que tem vez que eu vou de camisa e
não dói muito não quando chega em casa. Tem gente que vai sem camisa, aí
quando chega em casa fica aquelas bolhinhas, fica as costa aí dispela
todinho(...)” (V, masculino, 16 anos).
No caso dos que trabalham no beneficiamento dos mariscos, as queixas não fogem
ao mesmo princípio, a má postura em que executam suas atividades. Segundo os
8
Não sabemos quanto porque não foi feita a análise da atividade de trabalho.
66
entrevistados, a descatemba é uma tarefa demorada e cansativa, pois muitas vezes é feita de
cócoras ou em pé, resultando em queixas de dores nas costas.
Alguns deles, além de trabalharem na coleta ou no beneficiamento, ainda vão
vender os mariscos na rua e nos bares de Bayeux e comunidades vizinhas. As informações
dão conta de que eles passam cerca de oito horas vendendo os produtos. Para tal,
transportam em bacias colocadas na cabeça, ou carregadas pelos braços.
Prejuízos à escolaridade
O ambiente escolar é propício para a criança se socializar, ampliando seu mundo
que, até então, se restringia à sua família, de conhecer seus limites de ação e aprender a
viver com os outros.
Todos os meninos e meninas entrevistados freqüentam a escola e cursam desde a 1ª
até a 7ª série do ensino fundamental. Os sujeitos apresentam uma defasagem escolar que
chega até quatro anos. No entanto 5 deles não apresentam defasagem.
Uma das causas que contribuem para a defasagem é o horário de trabalho dos
sujeitos. O ritmo de trabalho deles é ditado pela maré. A jornada de trabalho inicia-se
quando a maré está baixa, pois as croas ficam expostas, permitindo a coleta do marisco e do
siri-mole.
O fato de a maré “baixar” em horários irregulares repercute na não padronização ou
definição dos horários de trabalho, como se pode observar em algumas falas:
“(...) Depende da maré, porque a maré tem horário, horário, cada dia ela ta num
horário diferente, aí se ela sai aqui de oito hora, aí eu vou pra maré, de oito hora
(...)” (D., masculino,12 anos).
“(...) quando a maré tá de nove hora chegava era oito e mêa em casa. Perdia
muitos assuntos da prova pra ir pra maré (...)” (V., masculino, 16 anos).
Por esse motivo, muitas crianças e adolescentes vivenciam o processo de
escolarização de acordo com a maré. Além do que quando vão às aulas, chegam tarde, não
têm tempo de estudar em casa e até saem na hora do intervalo para dar conta do marisco
pescado.
67
Expectativas de futuro
No que diz respeito às expectativas de futuro, dos sete meninos entrevistados,
quatro responderam que queriam ser jogadores de futebol. Ao serem perguntados como eles
poderiam alcançar esse objetivo, todos responderam que teriam que estudar muito. Quando
perguntados como o trabalho que realizam hoje os ajudaria a realizar esse sonho, a grande
maioria não sabia como responder.
Dentre as meninas entrevistadas, apenas uma demonstrou interesse em ser
marisqueira. As demais citaram as profissões: médica; professora ou veterinária.
Atribuíram à escolarização a possibilidade da realização desses desejos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados desse estudo são inovadores e revelam a presença de crianças e
adolescentes inseridos em atividades de pesca artesanal e em todo o processo de trabalho,
da “catação” até a venda.
Estas atividades são realizadas por uma comunidade ribeirinha no estuário do rio
Paraíba, localizada no município de Bayeux.
Essas atividades de trabalho, até o momento, haviam sido pouco estudadas com o
enfoque no trabalho precoce. Os dados colhidos através de entrevistas feitas com os
meninos e meninas dão conta de que o trabalho precoce é de fundamental importância para
os pais, pois os filhos estão presentes em todas as etapas de trabalho na pesca do marisco. A
mão-de-obra precoce é necessária a essas famílias, pois sem o complemento das crianças e
adolescentes não conseguem dar conta da produção do marisco necessária à subsistência.
O trabalho desenvolvido pelas crianças e adolescentes acarreta prejuízos à saúde e
ao processo de escolarização. No que diz respeito à saúde, a posição agachada e a
exposição ao sol provocam, segundo eles, dores nas costas e na cabeça. A escolarização é
afetada pelo movimento da maré que influencia no tempo dedicado ao estudo. Há ainda
situações degradantes nas ruas onde se dá o processo de venda.
O presente trabalho contribuiu também para o projeto de Mapeamento do Trabalho
Precoce na Paraíba, ampliando-o às atividades de catadores de marisco e siri-mole, além da
atividade de descatemba de moluscos.
68
REFERÊNCIAS
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realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. p.171-183.
69
CAPÍTULO 06
“VAI UM ‘CARREGO’ AÍ”? A DURA LIDA DOS FRETISTAS EM MANGABEIRA
Maria José Basílio de Oliveira1
Maria das Graças Santos2
Edil Ferreira da Silva3
INTRODUÇÃO
O combate ao trabalho precoce constitui uma temática e um problema que
preocupam a sociedade brasileira. A prática do trabalho precoce não é coisa recente, mas
persiste mesmo ante denúncias e políticas públicas em diferentes níveis nacional e
internacional. Infelizmente, ainda, convivemos em uma sociedade que concorda e incentiva
crianças a trabalharem acreditando que assim está livrando-as da marginalidade, das ruas,
etc.
O trabalho precoce no Brasil está ligado aos mais diversos ramos de atividade da
economia. A produção de estudos sobre o trabalho precoce tem crescido evidenciando os
diversos setores em que se verifica a sua ocorrência. No entanto, são parcos e pouco
divulgados os estudos que procuram fazer a relação entre trabalho infantil e a questão do
processo saúde-doença de crianças e adolescentes.
Com o intuito de contribuir com a produção de conhecimento nessa área, este
estudo busca evidenciar o trabalho como fretistas feito por crianças e adolescentes na feira
livre e no mercado de Mangabeira, na cidade de João Pessoa – Paraíba. Este tipo de
trabalho não aparece nas estatísticas oficiais, nem quando estas se referem ao trabalho
informal. Apesar de ser aparente a todos, esta atividade não é percebida enquanto trabalho
1
Educadora da Pastoral do Menor de Mangabeira.
Professora de Artes da Pastoral do Menor Boa Esperança.
3
Doutor em Saúde Pública EBSP/FIOCRUZ, Professor do Departamento de Psicologia da Universidade
Estadual da Paraíba/UEPB, Educador do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos
Populares/SEAMPO/CCHLA/UFPB.
2
70
que ocupa crianças e adolescentes, nem é visibilizado em toda sua complexidade, inclusive
a que envolve riscos e perigos para a saúde física, afetiva e mental dos envolvidos.
A presente pesquisa pretende analisar a atividade dos fretistas da feira livre e do
mercado público de Mangabeira procurando evidenciar os fatores de risco presentes e suas
repercussões no processo saúde/doença de crianças e adolescentes.
O Brasil vem, desde 1992, desenvolvendo progressivamente políticas sociais e
criando leis para acabar com o trabalho precoce. A principal política adotada pelo governo
brasileiro neste sentido é o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Este
programa possui a proposta de retirar as crianças do ambiente de trabalho, inserindo-as na
escola e garantindo às famílias o recebimento de uma bolsa – a bolsa-cidadã. Algumas
análises sobre o programa brasileiro de erradicação do trabalho infantil colocam-no no rol
das políticas emergenciais e compensatórias. De acordo com Rosemberg e Freitas (2002,
100),
(...) a tematização de trabalho infantil no Brasil parece-nos, neste
momento, mais uma destas iniciativas: recortar um problema
associado à infância pobre e tratá-lo de modo focalizado através
de políticas de emergência que têm mais impacto para uso
externo – na mídia nacional e internacional, na imagem do país
para fins de acordos comerciais internacionais – do que na
diminuição das desigualdades sociais.
Para além das críticas, acreditamos que a problemática do trabalho precoce tem que
ser desvelada e mostrada em toda sua complexidade. As políticas sociais e as ações da
sociedade civil no campo do trabalho precoce podem parecer fragmentadas e pontuais, mas
significam uma postura afirmativa da sociedade brasileira na busca de sua solução. O nosso
estudo pretende contribuir para adoção de políticas específicas para os meninos que
trabalham como fretistas no bairro de Mangabeira, por necessidade familiar ou por
interesse pessoal.
A metodologia utilizada calcou-se na abordagem de pesquisa qualitativa e usou
como técnicas a observação das situações de trabalho e entrevistas individuais. A escolha
do bairro de Mangabeira como campo de pesquisa deveu-se ao seu tamanho, por ser um
local de grande aglomeração humana, por possuir um comércio muito desenvolvido e por
contar com vários pontos de afluência de fretistas.
71
A primeira fase da pesquisa consistiu de uma exploração do campo empírico com o
objetivo de obter informações, detalhes do trabalho dos fretistas. Para tanto, foram feitas
observações em dois locais de pesquisa (na Feirinha e no Mercado Público, ambos em
Mangabeira), ainda sem um contato direto das pesquisadoras com os fretistas. Foram
observados: como o fretista realiza o seu trabalho, quais as relações que estabelecem no
horário de trabalho e como eles se organizam no local de trabalho. Após a abordagem mais
geral do trabalho dos fretistas as pesquisadoras começaram a fazer contato com eles. Nesta
conversa, as pesquisadoras explicaram o porquê da pesquisa e perguntaram se eles topavam
conversar sobre a atividade que faziam. Foram contatados mais de 25 meninos.
A segunda fase da pesquisa foi a análise da atividade dos fretistas, que consistiu da
observação das situações de trabalho. Diferentemente da primeira observação, agora as
pesquisadoras se detiveram sobre o curso da ação da atividade dos fretistas buscando captar
as suas nuances, especificidades, singularidades. A análise da atividade serviu para mostrar
como o trabalho dos fretistas realmente é desenvolvido: as condições de trabalho que eles
têm, as dificuldades que enfrentam diariamente, os perigos que rondam a atividade, as
variabilidades inerentes àqueles locais de trabalho e as negociações que têm que fazer para
dar consecução à atividade.
A terceira fase do estudo constou do planejamento para a efetivação das entrevistas.
Neste sentido, fez-se uma discussão dos dados mais gerais do trabalho dos fretistas
levantados na observação exploratória que subsidiou a elaboração de um roteiro para ser
utilizado durante as entrevistas.
A quarta fase da metodologia foi a realização das entrevistas do tipo semiestruturada. Foram cinco ao todo. Os entrevistados respondiam as questões formuladas,
sem respostas pré-fixadas. Foram feitas no próprio local de trabalho dos fretistas e dela
participaram crianças e adolescentes que concordaram em fornecer as informações. Apesar
do contato inicial ter envolvido 25 meninos, somente cinco concordaram em conceder
entrevista e permitir a análise da atividade. Durante a observação do trabalho dos fretistas,
não se encontraram meninas pegando fretes. Dos meninos entrevistados, um tinha 12 anos e
cursava a quarta série; dois tinham 13 anos, sendo que um cursava a terceira série e o outro,
a quarta; e dois, de 16 anos, cursavam a quarta série.
72
A última parte constou da análise dos dados e da elaboração do relatório final. Para
a análise dos dados, fizemos várias reuniões para leitura e discussão das entrevistas. Na
ocasião, buscávamos obter dados sobre a situação sócio-econômica dos meninos e de suas
famílias e sobre sua situação em relação à escola. As entrevistas forneceram ainda subsídios
para entender como os fretistas viam seu trabalho, qual seu significado e importância para
suas vidas.
De acordo com os dados das entrevistas, podemos afirmar que os fretistas moram
em casas doadas pelo governo. As casas onde moram só possuem um vão e nela residem
aproximadamente 11 pessoas, ao todo são 9 irmãos, pai e mãe.
Segundo os entrevistados, a renda familiar gira em torno de, mais ou menos, de R$
150,00 por mês. Os meninos ganham em torno de R$ 20 reais por semana. O pai ou a mãe
dos entrevistados trabalha no mercado informal, por exemplo, carpinteiro, empregada
doméstica. Alguns são feirantes.
ANÁLISE DA ATIVIDADE DOS FRETISTAS
Estamos
utilizando
neste
estudo
os
referenciais
da
ergonomia
situada
(Daniellou, 1983; Guérin et al, 2001), principalmente os conceitos de atividade e
variabilidade. O conceito de atividade aqui utilizado está relacionado (...) ao que se faz,
inclui o que o homem dispõe de seu corpo, sua personalidade e suas competências para
realizar o trabalho. A atividade de um trabalhador é caracterizada pelas suas condutas,
pelas suas performances realizadas e resultados obtidos (Ribeiro, 2004). Atividade é
aquilo que o sujeito faz efetivamente no processo de consecução do seu trabalho, utilizando
seus componentes físicos, cognitivos e psíquicos.
De acordo com a ergonomia, as variabilidades (Guérin et al, 2001) estão sempre
presentes nas situações de trabalho. Em todo ambiente de trabalho, é impossível se contar
com um nível total de estabilidade das variabilidades. Se as variabilidades são algo que faz
parte das situações de trabalho (Guérin et al, 2001), é factível conhecê-las, tentar prevê-las
e considerar a possibilidade de que novas venham a existir. A variabilidade pode ser técnica
ou humana.
As variabilidades técnicas são responsáveis pelo fato de não
existirem apenas situações de operações ditas normais. A
ocorrência de disfuncionamentos e incidentes faz parte do dia a dia
73
do trabalho e, para atender aos objetivos da produção, é necessário
que os trabalhadores empreguem atividade de regulação
(Telles, 1995, p. 7).
A variabilidade humana inter-individual diz respeito às variações existentes entre as
pessoas; e a variabilidade intra-individual refere-se às variações internas de cada
trabalhador.
Levando-se em consideração estes conceitos da ergonomia situada, vamos proceder
a seguir a uma descrição da atividade dos fretistas da feirinha e do mercado público de
Mangabeira.
O Trabalho Efetivamente Realizado
O trabalho dos fretistas começa muito cedo. Chegam à feira por volta das cinco
horas da manhã. Segundo os meninos, o motivo de chegar nesse horário é para disputar o
“ponto” e o cliente. Os fretistas mantêm entre si, de modo informal, certa organização do
seu trabalho. Ao chegar à feira livre, conhecida popularmente como feirinha de Mangabeira
I, ficam em fileira à espera do cliente. Este tipo de organização permite que o cliente seja
abordado pelo fretista que ocupa a primeira posição e assim sucessivamente. Apesar dessa
aparente organização, os meninos que estão em uma posição mais atrás não deixam de
abordar o cliente, de tentar convencê-lo dos seus serviços e fazer o cliente escolher qual
deles prefere. Acontece, também, o caso de o fretista já ter sua clientela fixa, não
importando, assim, a posição que ele está ocupando na fila.
Já os meninos que trabalham no mercado público de Mangabeira têm outra forma de
organização. Pelo fato de o mercado de mangabeira possuir várias entradas, por onde os
clientes podem chegar, os meninos ficam circulando em seu entorno. Muito embora exista
uma pequena aglomeração deles em frente ao sacolão de verduras e frutas que é muito
freqüentado devido aos preços mais acessíveis.
Enquanto os meninos estão à espera dos clientes, eles ficam conversando e
brincando. Neste momento, eles mantêm uma relação mais próxima de amizade: riem,
fazem chacota uns dos outros. No entanto, pudemos perceber que eles ficam ativos à
chegada dos clientes. No caso do mercado público de Mangabeira, onde não existe uma fila
pré-determinada, quando o cliente se aproxima eles correm em grupo, cada um oferecendo
74
seu serviço, seu preço. Existe a situação em que um ganha o frete porque oferece um preço
mais baixo, sendo xingado pelos colegas. Este fato mostra, então, que eles saem de uma
situação de companheirismo para uma de competição e quem ganha sai feliz. Porém, sendo
xingado e às vezes ameaçado. Esta é uma situação de mal estar para estes meninos e, em
certas ocasiões, pode ser perigosa, já que alguém pode sair ferido quando acontece briga
entre eles.
Após conseguir um cliente, a atividade do fretista consiste em acompanhá-lo na
feira. Este processo de acompanhamento requer do fretista estar atento a tudo. Aos passos
dinâmicos do cliente que vai de uma “banca” a outra; aos pacotes que vão se formando para
colocar no carrinho; à forma de empurrar o carrinho por causa do grande número de
pessoas na feira; ao cuidado com as compras para não serem roubadas; ao trânsito na rua e
a tantos outros cuidados. Quando o fretista vai pegando os pacotes e colocando no carrinho,
vai fazendo movimentos inadequados: curvam-se muitas vezes, pegam peso de forma
errada, ficam muito próximo do movimento dos veículos na rua, etc. Na situação de
acompanhar o cliente, o fretista encontra muitas variabilidades tendo que fazer constantes
regulações para poder dar conta de sua atividade. O seu jeito de trabalhar se modifica a
cada frete, já que cada cliente tem uma entrada diferente na feira. Um vai primeiro à feira
de carne, outro vai pela parte das verduras e um terceiro pode adentrar um mercado para
comprar legumes. Neste sentido, o fretista procura fazer o melhor possível para enfrentar as
variabilidades, como, por exemplo, se livrar do trânsito de veículos quando não é possível
botar o carrinho na calçada. Ter que enfrentar um conjunto vasto de variabilidades torna-se
um incômodo para os fretistas, principalmente se eles naturalizam estas variabilidades
deixando de considerá-las enquanto um evento importante.
Quando o cliente termina sua feira, normalmente no carrinho se tem uma base de 10
a 20 quilos de alimentos, peso que pode ser considerado elevado à idade da criança de 12 a
16 anos. Devemos considerar que o fretista tem que levar o carrinho, com este peso, a uma
distância de 5 a 6 km, e ás vezes até mais. O fretista não tem noção do peso que carrega em
cada frete realizado.
“(...) Não sei dizer quantos quilos carrego. Só sei que ficam calos na mão”
(Fala de fretista entrevistado).
75
Um dos problemas enfrentados pelos fretistas em sua atividade é a questão do
espaço para sua locomoção no trabalho. Na feirinha de Mangabeira I, por exemplo, não se
tem espaço: as calçadas são estreitas, de mais ou menos dois metros de largura. Este espaço
é dividido entre pedestre, barraquinhas de verduras e frutas, bicicletas, carros de mão. Só
resta para o fretista andar com o carrinho na rua, disputando-a com carros e motos
estacionados. Esta situação leva os fretistas a correrem o risco de acidentes. Além de terem
que ficar com a atenção redobrada nos carros, têm que manobrar por entre carros, motos,
carroças puxadas por burros, barracas e pedestres. Isto leva a que, em determinados
momentos, a sua movimentação se torne lenta o que faz com que o cliente e donos de
barraquinhas os xinguem de “lesos” e desatento.
O espaço de trabalho do fretista, por ser a céu aberto, possui outros riscos como:
poeira, excesso de sol, poluição sonora. Além do que, o tipo de atividade expõe a outros
riscos como, por exemplo, pegar peso. Outro momento que pode provocar sofrimento para
o fretista é a questão da negociação do preço do frete. Geralmente, o fretista discute com o
cliente o valor do frete antes de iniciar a feira. No acordo do preço, sempre prevalece a
oferta do cliente, já que, para não perder o “carrego”, o fretista aceita o oferecido. O valor
de cada frete gira em torno de 1 e 2 reais. O valor do frete está vinculado à distância da
residência do cliente. No entanto, em algumas situações, o cliente não cumpre o prometido
e, apesar da distância, o valor pago é menor do que o acordado. Esta é uma situação em que
as crianças se sentem impotentes e, mesmo reclamando que o cliente não cumpriu o acordo,
não logram êxito. Algumas vezes recebem como resposta do cliente que o que está sendo
lhe pago já é muito. Esta é uma situação que leva a sofrimento, já que a criança conta com
o dinheiro para levar para casa, além de querer que sobre alguma coisa para seu usufruto.
Estes são alguns elementos caracterizadores desta atividade, que, geralmente, não
são percebidos como um trabalho que tem suas especificidades e um caráter complexo
quanto à sua realização, podendo acarretar conseqüências danosas à vida dos seus
executantes.
MAPEAMENTO DOS RISCOS DA ATIVIDADE DE FRETISTA
O trabalho é um dado fundamental na vida dos seres humanos. Ele pode ser
positivo, levando à satisfação, ao prazer, à saúde, como pode também levar ao sofrimento,
76
a doença (Dejours, 1994). O que vai determinar este processo de saúde/doença é o modo
como o trabalho é realizado e em que condição é exercido. As condições nocivas
provocadoras de adoecimentos podem ser determinadas através dos riscos existentes nos
ambientes de trabalho. Risco é toda e qualquer possibilidade de que algum elemento ou
circunstância existente num dado processo e ambiente de trabalho possa causar dano à
saúde, seja através de acidentes, doenças ou do sofrimento dos trabalhadores, ou ainda
através da poluição ambiental (Porto, s/d, p. 2).
No presente estudo, estaremos utilizando a categorização do modelo operário
italiano relativo aos fatores de risco (Oddone, 1986) para classificar os elementos nocivos
detectados nos locais de trabalho dos fretistas de Mangabeira, que podem afetar-lhes a
saúde. A seguir apresentamos os fatores de risco constatados:
•
Fatores físicos – Fator de risco físico é aquele que tem sua origem em uma fonte
ou fenômeno de natureza física ou de um sistema físico (umidade, ventilação,
temperatura, a luz, o ruído, etc.).
•
Fatores químicos – Fatores de risco químico é aquele cuja origem é uma fonte
química característica de um processo ou ambiente de trabalho (gás, poeiras,
vapores, etc.).
•
Fatores biológicos – Fator de risco biológico é aquele que tem como fonte de
origem organismos biológicos presentes em materiais orgânicos e nas precárias
condições sanitárias nos locais de trabalho (fungos, vírus, parasitas, bactérias,
insetos, etc.).
•
Fatores ergonômicos – Fatores ergonômicos são aqueles que dão origem à fadiga
anátomo-fisiológica e cuja fonte é o esforço muscular esquelético empregado pelo
ser humano na realização do seu trabalho (levantamento e transporte manual de
peso, monotonia, repetitividade, responsabilidade, ritmo excessivo, posturas
inadequadas de trabalho, etc.).
•
Fatores de acidentes – Fatores de acidentes são aqueles fatores de riscos que dão
origem a um acontecimento fortuito causador de morte, lesão ou lesões, com
conseqüente perda ou redução, temporária ou permanente, da capacidade física e
mental do trabalhador cujas fontes são as condições dos meios de trabalho (arranjo
físico inadequado, iluminação inadequada, incêndio e explosão, etc.).
77
Na seqüência, apresentamos um mapeamento de risco elaborado a partir da
observação participante dos pesquisadores e das entrevistas com os fretistas. O
mapeamento de risco é uma metodologia desenvolvida por técnicos e operários italianos
(Oddone et al, 1986) para o conhecimento e a definição científica das condições de
trabalho, permitindo um esquema de análise que busca enfrentar globalmente os problemas
do ambiente e da prevenção do risco do trabalho.
MAPEAMENTO DOS RISCOS DA ATIVIDADE DE FRETISTAS
DE MANGABEIRA
Fatores de
riscos
físicos
Fatores de
riscos
químicos
Fatores de
riscos
biológicos
Fatores de
riscos
ergonômicos
Fatores de
riscos de
acidentes
Ruídos
Sol
Calor
Chuva
Poeiras
Gases e
fumaças
(gasolina,
álcool e
diesel)
Bactérias
Insetos
peçonhentos
Lixo
Instalações
sanitárias
sujas e
infectas
Levantamento e
transporte de
peso
Repetitividade
Ritmos
excessivos
Posturas
inadequadas
Longas
distâncias
Nível de atenção
elevado
Movimentos
constantes
de veículos
(carros,
motos e
carroças)
Vestuário
inadequado
(calçados)
Como podemos observar, os fretistas estão submetidos a um conjunto vasto de
riscos que podem levar a problemas de saúde, notadamente doenças e acidentes de
trabalho. Chama atenção a exposição dos fretistas aos fatores de riscos químicos, como
poeiras, gases e fumaças, que podem causar intoxicações e alergias. A questão da emissão
destes gases pode ser minimizada pelo fato de o trabalho dos fretistas ser realizado a céu
aberto, com ventilação constante. No entanto, a exposição diária pode levar ao surgimento
de alguma patologia relacionada a estes riscos.
Já os fatores de riscos biológicos estão diretamente relacionados à falta de higiene
nas imediações da feirinha e do mercado público de Mangabeira. O acumulo de lixo leva
ao aparecimento de insetos, pragas e bactérias que podem provocar doenças contagiosas e
feridas pelo contato com urina de ratos ou mordidas de insetos. Os fretistas ainda se
submetem às péssimas condições dos banheiros, podendo contrair doenças de pele.
78
Com relação aos fatores de riscos ergonômicos observados: levantamento e
transporte de peso, repetitividade, ritmos excessivos, posturas inadequadas, longas
distâncias, nível de atenção elevado, os efeitos estão mais diretamente relacionados a
problemas de coluna e dores musculares. Os meninos se queixam de dores nas costas e
cansaço. Os gestos de baixar, levantar, empurrar o carrinho são atos que podem justificar
as queixas dos meninos fretistas. Geralmente eles percorrem grandes distâncias tendo que
ficar atentos ao trânsito e não podem parar muito o carrinho para descansar, senão o cliente
fica reclamando. Esta sinergia de fatores potencializa os efeitos em relação ao sofrimento
que os meninos podem ter no desenvolvimento de sua atividade. A incerteza se o cliente
vai ou não pagar o que combinou é um fator que afeta o componente psicológico das
crianças.
Como já foi referenciado, o local de trabalho dos fretistas é muito perigoso no que
concerne à possibilidade da ocorrência de acidentes com os meninos. Por ser uma atividade
realizada no meio da rua os meninos ficam disputando o espaço com os carros, motos,
carroças e as pessoas em geral. Como a feirinha de Mangabeira tem uma parte significativa
que fica na principal avenida do bairro, é constante o perigo de atropelamentos de carro e
motos que os meninos correm. Como têm que acompanhar o cliente e não sobra espaço na
calçada para o carrinho, o jeito é conduzi-lo pela rua, fazendo manobras para se livrar das
pessoas e dos veículos que passam constantemente pelo local, inclusive ônibus.
Os fretistas também podem sofrer cortes e ferimentos, já que suas vestimentas são
inadequadas para o desenvolvimento da atividade. Eles fazem o seu serviço usando,
geralmente, sandálias já desgastadas que não protegem adequadamente os pés. Como
fazem percursos curtos e longos e passam por locais sujos, terrenos acidentados e com lixo,
que podem conter vidros, ferros e outros materiais perfurocortantes, estão sempre sujeitos a
perfurações nos pés e nas pernas. Os meninos ainda podem sofrer queimaduras, já que
existem muitas motos estacionadas no local onde eles passam com o carrinho. As
queimaduras podem acontecer também com os meninos que fazem o serviço sem usar
nenhum tipo de calçado, o que é comum. Eles podem pisar em ponta de cigarro acesa e se
queimar, como também queimar os pés no asfalto quente.
79
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acompanhando todo esse percurso do trabalho dos fretistas, vimos que as histórias
de vida desses meninos são tristes, sofridas, marcadas pela pobreza material, afetiva, e por
situações de conflitos familiares. Isto nos instigou a superar as dificuldades e seguir em
frente com o estudo. O modo como a atividade dos fretistas é realizada nos inquietou, mas
suscitou depois um desejo de conhecer mais e de poder buscar uma transformação em sua
situação de vida.
O que nos chamou a atenção foi os semblantes dos fretistas entrevistados, sempre
permeados de tristeza, cansaço e sofrimento. Eles tinham um rosto na maioria das vezes
sem sorriso.
Grande parte dos meninos que trabalham na feirinha e no mercado público de
Mangabeira, pegando fretes, tiveram que abandonar os estudos e outros já foram
reprovados alguma vez. Estudar ou trabalhar? Esta é uma questão que permeia a vida
destas crianças e adolescentes. Mas, devido às dificuldades que enfrentam em termos
sociais e econômicos, não lhes restam muitas opções. A maioria prefere trabalhar e ter o
que comer, mais não perde a esperança de ser feliz e se tornar alguém na vida.
Como foi exposto, os fretistas enfrentam muitos fatores de riscos durante sua
jornada de trabalho. Este conjunto de riscos faz com que as crianças tenham que dar tudo
de si para poder realizar sua atividade, o que quer dizer, muitas vezes, minimizar o risco,
fazer de conta que ele não existe (Dejours, 1994). Esta operação mental inconsciente
possibilita a eles se defenderem, ficar ativos (Muniz, 1993) e conseguir fazer sua atividade
com sucesso, preservando a saúde.
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81
CAPÍTULO 07
MENINOS QUE FREQUENTAM O CLUBE DO MENOR TRABALHADOR
Edilma Ferreira Dos Santos1
Lijavan Lins2
Milane Rocha Oliveira3
Bernadete Oliveira4
Maria Helena S. França Lins5
MENOR ABANDONADO
De onde vens, criança?
Que mensagem trazes de futuro?
Por que tão cedo esse batismo impuro
que mudou teu nome?
Em que galpão, casebre, invasão, favela,
ficou esquecida tua mãe?...
E teu pai, em que selva escura
se perdeu, perdendo o caminho
do barraco humilde?...
Criança periférica e rejeitada ...
Teu mundo é um submundo.
Mão nenhuma te valeu na derrapada ...
CORALINA, C – Poemas dos becos de Goiás e estórias mais.
Este trabalho apresenta os resultados da pesquisa realizada no Mercado Central de
João Pessoa com crianças e adolescentes que participam do Clube do Menor Trabalhador.
1
Aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante da Associação Santo Dias.
2
Aluno do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e presidente do Clube do Menor Trabalhador.
3
Aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante da Fundação Dom Helder Câmara da Cidade de Bayeux.(VEJA
TAMBÉM SE TÁ CORRETO)
4
Mestra em Saúde do Trabalhador pela EBSP/FIOCRUZ, Psicóloga, Educadora do Setor de Estudos e
Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO.
5
Especialista em Movimentos Sociais e Saúde do Trabalhador pela UFPB, Comunicóloga, Educadora do
Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO.
82
O objetivo principal dessa pesquisa, realizada no período de dezembro de 2003 a
março de 2004, foi identificar as atividades exercidas pelos meninos que trabalham no
Mercado Central e freqüentam o Clube do Menor trabalhador e, também, os riscos aos
quais estão submetidos e quais as conseqüências do trabalho precoce.
A partir da observação e do estudo realizado, pôde-se constatar o distanciamento
entre o Direito da Criança e do Adolescente e a Realidade Social. Esse distanciamento gera
conseqüências imediatas no que diz respeito à cidadania, à garantia de direitos e às
condições de vida em geral.
Os estudos e pesquisas, na temática do trabalho precoce, vêm aumentando. Isso nos
mostra como esta temática tem gerado interesse tanto na academia como em diversos
grupos sociais, sugerindo com isso que é possível provocar mudanças na sociedade de
forma a favorecer as nossas crianças e adolescentes. Estas têm constantemente seus direitos
violados, seja pela falta de políticas públicas, seja pela morosidade na efetivação dos
direitos, seja pelas desigualdades econômicas como um dos principais fatores que levam as
crianças e os adolescentes ao mercado de trabalho como forma de auferir dinheiro para
ajudar no orçamento familiar.
Temos muito que avançar neste sentido. Por isso é necessário nos organizarmos
para contribuirmos na criação e aplicação de políticas públicas, mudando, assim, a cultura
de que “é melhor estar trabalhando do que roubando”, porque nos deparamos
freqüentemente com pessoas que possuem esse pensamento, sem perceberem que o lugar
de criança é na escola.
Este trabalho é dirigido a todas as pessoas, tanto do mundo acadêmico, como da
vida militante nos movimentos sociais que atuam na defesa dos direitos da criança e do
adolescente e dos direitos humanos, buscando um elo entre a vida acadêmica e militante.
Compor uma parceria entre esses mundos, que muito tem a contribuir um com o
outro, é de fundamental importância para o monitoramento e implementação das políticas
públicas de combate ao trabalho infantil e defesa dos direitos do adolescente trabalhador.
Esperamos que esse trabalho venha contribuir de alguma forma para essas transformações.
83
OS CAMINHOS DA PESQUISA
A escolha do objeto de estudo devem-se à participação do Presidente do Clube no
curso de extensão e pesquisa. Assim, foram elaboradas as visitas à instituição e ao Mercado
Central, pesquisa documental, observação das atividades, entrevistas semi-estruturadas com
roteiro aberto e registro fotográfico do clube e dos meninos em atividade.
A primeira visita foi feita apenas para conhecer as instalações do clube, mas
aproveitamos e tivemos uma conversa rápida e informal, pois eles estavam se preparando
para almoçar. Alguns ficaram inibidos com a nossa presença, principalmente pela presença
das meninas, mas logo depois se entrosaram, pois procuramos transmitir-lhes confiança e
amizade. Falamos sobre o nosso trabalho e pedimos a colaboração deles. Dois
demonstraram resistência às fotografias. Os demais concordaram de imediato. Um dos
meninos falou :“(...) se são amigas do nosso amigo (referência a um dos membros que faz
parte do Clube) são nossas amigas também e vamos ajudar vocês”.
Na segunda visita, tivemos acesso ao material impresso sobre o clube. Encontramos
algumas monografias, escrituras, registros em conselhos, termos de doação, recortes de
jornal, relatórios, prestação de contas e projetos, inclusive com a Universidade Federal da
Paraíba. Não foi possível estudar minuciosamente todo esse material, pois tínhamos pouco
tempo para estarmos no arquivo.
Encontramos também fotos, da fundação aos dias atuais. Os registros fotográficos
encontrados eram, na maioria, de datas comemorativas como: inauguração, primeira
comunhão, festas, gincanas e também dos meninos exercendo suas respectivas atividades.
O terceiro passo foi visitar o Mercado para observamos o ambiente de trabalho
desses meninos. Fomos apenas com o intuito de observar. Mas os meninos, quando nos
viram, foram logo se aproximando para conversar. Aproveitamos o ensejo e fizemos
algumas indagações. O gerente do estabelecimento comercial em frente do qual trabalham
nos observou com um olhar desconfiado e alguns clientes nos perguntaram se era alguma
escolinha de rua. Conversamos também com um adulto que pega frete e divide o espaço
com os meninos. Ele também nos prestou algumas informações sobre o trabalho e o
Mercado Central.
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Decidimos voltar no sábado, quando é maior o fluxo de clientes. Nesse dia apenas
observamos. Um dos meninos tentou se aproximar, mas explicamos que estávamos ali
apenas para observá-lo e investigar melhor o local.
O quinto passo foi fotografar os meninos no seu local de trabalho. Dirigimo-nos ao
Mercado com um fotógrafo, também aluno do curso de extensão, e fizemos algumas fotos.
Os meninos se comportaram de forma natural. O gerente da distribuidora ficou bastante
desconfiado, mas não se manifestou verbalmente. Em seguida, fomos ao clube, mas não foi
possível fotografá-lo, porque estava em reforma.
O sexto e último contato foi para realizarmos as entrevistas semi-estruturadas com
perguntas abertas. Tivemos uma boa receptividade por parte dos meninos, que se dividiram
entre o exercício de suas atividades e a entrevista.
O total de meninos são onze que trabalham no estacionamento do estabelecimento
comercial. Mas entrevistamos apenas seis meninos, pois os outros cinco não apareceram até
o momento da nossa saída.
Assim, realizamos a nossa pesquisa pela qual conseguimos identificar outras
atividades realizadas pelos meninos além de olheiros de carros.
CONTEXTO HISTÓRICO DO CLUBE
Tudo está melhorando... O clube começou com cinco meninos
somente: Pedro, Luiz, Dedé, Manuel e José. A primeira reunião foi
debaixo de uma árvore da Lagoa (Documento do Clube).
O número está aumentando... Faz dois anos, em maio de 1957, já
éramos vinte e foi então que começou o nosso almoço, na
assistência social. O grupo continuou crescendo e hoje mais de cem
ferreiros passaram por este clube (Documento do Clube).
Foi em março de 1957 que uma Assistente Social, residente nas proximidades do
Mercado Central, preocupada com a realidade dos meninos “balaieiros”6, resolveu ter uma
conversa com eles.
Com o passar do tempo, o número de meninos foi aumentando. Conseguiram
fornecer almoço, com a colaboração dos meninos e outros sócios, na sede social. Tinham
6
Termo utilizado para se referir ao menino fretista que carregava as feiras na cabeça em um balaio. Uma
espécie de cesto feito de cipós trançados.
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uma equipe encarregada pela organização e funcionamento. Em 1958 foi elaborado e
publicado o estatuto da Campanha Educacional do Menor que é a razão social da
instituição. Alugaram a primeira casa em 06 de março de 1959 na rua 13 de maio, com o
intuito de se executar melhor o trabalho educativo.
Desde a fundação até os dias atuais, a assistente social que fundou o Clube do
Menor Trabalhador – na época Campanha Educacional do Menor – continua à frente do
mesmo.
O Clube têm por finalidade,
(...) a realização de um trabalho sócio-educativo, em meio aberto,
com crianças e adolescentes que trabalham, preferencialmente as
que desenvolvem suas atividades nas ruas e logradouros da cidade.
Tem como objetivos específicos, oferecer oportunidade para que o
menino que trabalha na rua se organize e tenha uma experiência de
vida associativa; propiciar condições para que ele descubra suas
necessidades básicas e as possibilidades de satisfazê-las; estimular
a escolarização; oferecer meios para que descubra o valor e a
importância da saúde e conheça os principais meios de preservá-la;
oferecer oportunidade para a prática do esporte e lazer; contribuir
para o desenvolvimento da consciência crítica; propiciar
oportunidade para o desenvolvimento da expressão e da
criatividade e das habilidades e oferecer oportunidade para que
tome consciência de seus direitos e deveres (extraído de
documentos encontrados no clube).
Ou seja, o Clube pratica o tipo de política que há muito o Estado brasileiro vem
desenvolvendo e que o ECA se propõe acabar.
É constituído por sócios efetivos e contribuintes. Consideram-se sócios efetivos as
pessoas que participam das assembléias gerais, que definem a política de atendimento e se
comprometem com a sua execução direta e indiretamente, com o direito de votarem e
serem votadas para os cargos eletivos. Já os sócios contribuintes apenas contribuem
financeiramente de forma regular.
Os critérios utilizados para selecionar o público alvo se dão através dos próprios
meninos que já freqüentam o clube, uma espécie de rede que articula a entrada de novos
membros. Para permanecer, o menino tem que freqüentar a escola regularmente.
Desenvolvem diversas atividades tanto nas ruas como no clube tais como: olheiros de carro,
engraxates, carregadores de mercadorias, vendedores, etc.
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OS TRABALHADORES INTERNOS E EXTERNOS AO CLUBE
Atualmente, 64 meninos participam do clube. Dentre eles, 15 desenvolvem
atividades dentro do clube, geralmente os meninos que se destacam nas oficinas oferecidas
tais como: mosaico, marcenaria, empalhamento, envernizamento e fabricação de
brinquedos.
Os meninos que desenvolvem as atividades nas dependências do Clube recebem
remuneração que é calculada da seguinte forma:
Remuneração = valor de venda do produto (menos) - R$ 2,00 que é uma taxa fixa
destinada para a despesa da oficina e reposião da matéria prima. Por exemplo, se um
brinquedo for vendido por R$ 5,00. É retirada uma taxa de dois reais e o restante pertence
ao menino.
Os meninos tomam café da manhã na cantina do clube, que é servido apenas de 2ª e
5ª feira. Já o almoço é servido até o sábado. O almoço custa R$ 1, 00. O café da manhã não
é cobrado, pois é destinado apenas para os que trabalham dentro do clube. As atividades
são desenvolvidas de segunda a sexta. Ao final de semana, eles trabalham na rua como
forma de aumentar os seus rendimentos.
Para realizar as atividades nas oficinas, os meninos usam Equipamentos de Proteção
Individual (EPI):
•
Empalhamento – avental e aparelho auricular;
•
Envernizamento – óculos, avental, aparelho auricular, máscara e luvas;
•
Marcenaria - aparelho auricular, avental, óculos e tênis;
•
Mosaico – óculos e avental;
O material utilizado na produção é:
•
Empalhamento – palha sintética e torninhos (pedacinhos de madeira);
•
Envernizamento – esmalte sintético, tiner, solvente, globo fixador (bisnagas de
cores), anilina (pó utilizado para dar cor à madeira), seladora, removedor de tinta,
madeira e lixa.
•
Mosaico – cola de cerâmica, madeira, peças de argila e argamassa.
•
Marcenaria – colas branca e de contato, madeira, verniz, seladora e lixa.
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Para a produção também são utilizados: serra circular, torno, lixadeira manual, tico-tico,
desempeno, bancadas, máquinas, serrotes, martelos, etc.
Fora do clube, desenvolvem atividades de fretistas, vendedores de frutas e verduras,
engraxates e olheiro de carro. A maioria trabalha no Mercado Central e na Lagoa. A
limpeza do prédio é realizada pelos meninos e funciona em escala de revezamento
OS MENINOS OLHEIROS DE CARRO E OS CARREGADORES
Para melhor investigarmos a questão do trabalho precoce, escolhemos a atividade de
olheiros de carro. O local escolhido para a realização da pesquisa de campo foi o
estacionamento de um estabelecimento comercial, localizado no Mercado Central no
município de João Pessoa, onde trabalham dez meninos. Conseguimos entrevistar apenas
seis devido ao pouco tempo e à indisponibilidade dos meninos. Em seguida, tentamos
entrevistá-los no Clube, mas também encontramos resistência por parte da coordenação,
pois não permitiu que os meninos fossem entrevistados dentro do clube, alegando falta de
tempo e reformas internas.
O espaço físico do estabelecimento comercial é um galpão, com uma escadaria e
uma rampa na frente; o estacionamento é pequeno e o espaço interno é totalmente
preenchido por caixas e outros produtos expostos.
As instalações do Mercado Central são precárias, com péssimas condições de
higiene. Existe muito lixo no local. Por lá transitam muitas pessoas que vão fazer compras,
pedintes, vendedores e usuários de drogas, prostitutas, travestis, etc. Na época da pesquisa,
houve um protesto por parte dos comerciantes que lá trabalhavam tentando chamar a
atenção da prefeitura para as precárias condições em que o mercado funcionava. Existe
projeto para reforma do mercado, mas, até aquele momento, não havia sido implementado.
Devido às condições do ambiente em que os meninos estão inseridos, eles estão
expostos a vários riscos, tanto sociais como sanitários, dentre os quais a violência, a venda
de furtos e o uso de drogas.
A exposição aos riscos foi apresentada pelos meninos como decorrência da
proximidade do local de trabalho com as drogas que circulam no Mercado e com a feira de
produtos roubados. Os meninos revelaram ter conhecimento dos tipos de drogas mais
comercializadas no Mercado, tais como: craque, prensado (maconha com roupinol),
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cocaína e maconha e da referida feira que funciona no anel interno da Lagoa, onde são
comercializados vários produtos, de cds, sons, relógios, motos, carros a armas.
Como afirma Faleiros (1987), a criança e o adolescente no trabalho são
considerados enquadrados e em segurança; na rua eles são considerados uma ameaça.
No entanto, o trabalho da criança e do adolescente pobre realiza-se
preferencialmente na rua. É aí que eles buscam o espaço para
obter, através do pequeno comércio e serviços, os meios de
subsistência, vendendo a produção caseira ou intermediando o
comércio de pequenos produtos industrializados, como balas,
chocolates e picolés, ou jornais, ou ainda oferecendo pequenos
serviços como o de engraxate, vigia e lavador de carro. A rua
constitui uma ocasião propícia para o relacionamento da criança
sozinha, sem afeto, com alguém que aparentemente lhe oferece
“proteção”, segurança, em troca de cobertura para furtos, tráfico
de drogas e prostituição. São os chefes de gangues que estabelecem
sobre elas sua dominação. Os menores de rua vêem-se assim como
que obrigados pelas circunstâncias a colaborar com o crime
organizado...A rua é, portanto, ao mesmo tempo um lugar de
trabalho e de perigo.
Os dados revelaram que faixa etária dos meninos pesquisados variou dos treze aos
dezoito anos. São predominantemente do sexo masculino e com escolaridade que vai da 2ª
à 8ª série. Estudam no turno da noite, motivo pelo qual alegam cansaço, o que dificulta o
aprendizado e a participação na vida escolar. Mas como um dos critérios para continuar
fazendo parte do clube é a freqüência escolar, os meninos procuram se esforçar
participando do reforço escolar do clube, como forma de melhorar o desempenho na escola.
Estes dados são relevantes porque demonstram que o clube contribuiu com a promoção do
trabalho infantil para uma faixa etária proibida pela Legislação brasileira.
A jornada de trabalho inicia-se a partir das 6:00 horas da manhã e se estende até as
18:00 horas, de segunda-feira a sábado, com intervalo para o almoço a partir das 12:00 até
as 14:00 horas. Eles fazem suas refeições no Clube do Menor e pagam apenas R$ 1,00 pelo
almoço. Dentre esses meninos, quatro almoçam no clube, um no mercado e um outro em
casa e às vezes no clube. Essa jornada extensa é um dos principais fatores para que os
meninos cheguem exaustos à escola.
Podemos comprovar, a partir desses relatos, que o trabalho de olheiro que eles
desenvolvem configura-se como um desrespeito total aos direitos da criança e do
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adolescente defendidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA que determina,
entre outras coisas, que:
Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da
sociedade em geral e do poder público assegurar com
absoluta prioridade a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao esporte, ao lazer, à dignidade, ao respeito,
liberdade e convivência familiar e comunitária.
Art. 5º. Nenhuma criança ou adolescente será objeto
de qualquer forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão, punindo
na forma da lei qualquer atentado, por ação ou
omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 60º. É proibido qualquer trabalho a menores de
quator{e anos, salvo na condição de aprendiz de 12 a
14 anos. A Emenda Constitucional nº 20 de 15/12/98
D.O.U., modificou o artigo nº 60 e alterou a proibição
até os 16 anos e salvo na condição de aprendiz de 14
a 16 anos.
Todavia, o trabalho que fazem, quer nas ruas, quer no clube, não se caracteriza
como aprendizagem, porque, para ser aprendizagem, o adolescente deveria se inserir em
um programa com começo, meio e fim, conjugando ensino teórico e prático, metódico,
feito sob a orientação de um responsável em ambiente adequado. Em nenhuma das
situações configura-se como tal.
As pessoas que utilizam o trabalho dos meninos são os clientes da distribuidora de
alimentos e a própria distribuidora para descarregar as mercadorias e arrumá-las dentro do
galpão da empresa.
Em relação à remuneração, os meninos chegam a receber por dia de R$ 5,00 a R$
20,00. A renda mensal se dá pela soma das atividades desenvolvidas pelos meninos do
decorrer dos dias.
Os meninos dizem que trabalham porque precisam suprir suas necessidades, para
ajudar na renda da família e até mesmo pela cobrança da família a fim de que procurem
uma ocupação.
90
Para entendermos melhor a atividade de olheiro e as outras atividades,
descreveremos a seguir cada uma delas.
•
Olhar carros: orientar o condutor do veículo para estacionar, zelar pelos objetos que
estão no veículo evitando possíveis furtos. Nesta tarefa, o adolescente está exposto a
diversos riscos para a sua saúde. Ele pode ser atropelado pelos carros que estão
passando na rua enquanto indica o espaço para o cliente estacionar. Está exposto à
poluição constante dos carros na rua, ao sol, à chuva, à poeira e à fuligem dos
carros.
•
Carregar frete: colocar as mercadorias no carro de frete e transportar até o local de
destino.
•
Descarregar caminhão, carregar veículos de pequeno porte, conduzir caixas e
sacolas. As caixas são carregadas na cabeça e no ombro. Os meninos descreveram a
atividade de descarregar o caminhão da seguinte forma:
“Fica um batendo”. Significa colocar as caixas na cabeça dos outros
colegas.
“Três na linha”. Significa três levando as caixas para dentro da
distribuidora e empilhando no depósito.
O caminhão, denominado Romeu e Julieta, consiste em duas carrocerias unidas. É
muito cobiçado por eles, o que ocasiona algumas vezes disputas acirradas por este cliente.
Ele é mais vantajoso em termos financeiros porque contém mais mercadorias. Esta tarefa,
apesar de significar mais trabalho, ao mesmo tempo significa a possibilidade de ganhar
mais dinheiro.
Esta atividade de carregar e descarregar caminhões tem sérias implicações no
sistema ósseo-músculo-articular, cuja ossificação se completa aos 21 anos para o menino,
idade em que o desenvolvimento muscular atinge cerca de 90%. O excesso de peso pode
afetá-los de forma definitiva. O trabalho precoce, com largas horas de permanência em pé
ou sentado inadequadamente, ou transportando peso além de sua capacidade, deforma a
face anterior de 03 a 05 vértebras dorsais, podendo provocar deformidades ósseas (Kuleska,
Medeiros, Nascimento, Ieno. 2002: 105).
91
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o presente estudo, constatamos que o trabalho infanto-juvenil apresenta
diversos riscos à saúde e ao desenvolvimento dessas crianças e adolescentes. Quando são
inseridas precocemente no trabalho, podem perder a motivação de sonhar, de realizar os
seus desejos, como um dos adolescentes entrevistados disse: “sonho?... eu não tenho
sonhos”.
O Trabalho infanto-juvenil não é uma aprendizagem, mas sim uma violação aos
direitos assegurados pelo estatuto da criança e do adolescente.
O efeito que o trabalho precoce pode trazer na vida dessas crianças e adolescentes é
uma baixa qualificação profissional, a defasagem escolar e os problemas de saúde causados
pelo desgaste físico e mental.
Com os resultados da pesquisa, é notório que os meninos trabalham para contribuir
com a renda familiar e, até mesmo por imposição da família, para que se tenha uma
ocupação. Também é possível constatar que o Clube tem, no mínimo, conhecimento da
inserção precoce dos meninos no trabalho, o que é proibido por Lei e pode representar
implicações psicossociais para o desenvolvimento desses sujeitos. Desse modo, os dados
aqui coletados contribuem para a percepção de que as instituições que deveriam ser
defensoras dos direitos da criança e dos adolescentes não agem como tais.
REFERÊNCIAS
ALBERTO, M. de F. P. As dimensões subjetivas do trabalho precoce de meninos e
meninas em condição de rua de João Pessoa – PB. 2002, 305 f. Tese (Doutorado em
Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2002.
BRASIL. Ministério da Saúde. Ministério da Criança. Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei 8.069/90. Brasília: Conanda, 2001.
Documentos do Clube do Menor Trabalhador. 19??. Mimeografado.
FALEIROS, V. A fabricação do menor. In: Revista Humanidades, n. 12, Unb,1987.
FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA – UNICEF. A Infância no Brasil
nos Anos 90. Brasília: Unicef, 2000.
92
MINAYO, C. S. (Org). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis/RJ:
Vozes, 1999.
RIZZINI, I. Assistência à infância no Brasil. Rio de janeiro: Editora Univertária/ Santa
Úrsula, 1993.
______. A criança e a lei no Brasil. Brasília: UNICEF/CESPI/USU, 2000.
SIVIERI, L. H. Saúde no Trabalho e Mapa de Risco. In: TODESCHINI, R. (Org.). Saúde,
meio ambiente e condições de trabalho: conteúdos básicos para uma ação sindical. São
Paulo: CUT/ Fundacentro, 1996.
93
CAPÍTULO 08
O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA: DANOS
PSICOSSOCIAIS E NEGAÇÃO À INCLUSÃO SOCIAL
Juliane de Sousa Fernandes1
Sandra Magda Araújo de Almeida Xavier2
INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta-se como resultado do processo investigativo desenvolvido a
partir do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do
Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural3, tendo por objetivo analisar a inserção de
crianças e adolescentes deficientes no mercado de trabalho na Cidade de João Pessoa/PB.
O interesse por este objeto de estudo emergiu da necessidade de relacionar as
abordagens e objetivos propostos pelo curso, enquanto aluna do curso de psicologia e
integrante do SEAMPO, com experiências pessoais no que se refere às problemáticas que
perpassam a vida das pessoas com deficiências.
Assim, de forma mais específica, objetivou-se: a identificação de trabalhadores
infanto-juvenis com deficiência inseridos no mercado de trabalho; a verificação das
atividades laborais em que essas crianças e adolescentes estão inseridos e quais danos estas
podem ocasionar (psíquicos, físicos ou sociais); a identificação do nível de exploração que
envolve a relação deficiência x trabalho precoce; e ainda verificar qual a representatividade
dessas atividades na vida desses indivíduos.
1
Aluna do curso de graduação em Psicologia, na UFPB. Estagiária do Grupo de Pesquisa Subjetividade e
Trabalho - GPST e do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO.
2
Mestre em Serviço Social pela UFPB. Pesquisadora do Setor de Estudos e Pesquisas em Análises de
Conjuntura e Políticas Sociais – SEPACOPS.
3
Promovido pelo Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO, Grupo de Pesquisa
Subjetividade e Trabalho (GPST) e Grupo de Trabalho Precoce Subjetividade e Gênero, sendo estes parceiros
do Projeto Unicidadania - Movimento Leigo para América Latina.
94
Em termos operacionais, inicialmente, realizou-se um levantamento bibliográfico
buscando-se textos, artigos científicos, sobretudo na internet, acerca da temática abordada.
Constatando-se que esta abordagem ainda se encontra pouco disseminada no meio
acadêmico, tendo em vista a não identificação de material a respeito do trabalhador infantojuvenil com deficiência. No entanto, desenvolveram-se estudos sobre as categorias
temáticas que perpassam tal objeto, como: trabalho precoce, crianças e adolescentes,
pessoas com deficiência, trabalho, educação, inclusão social, entre outras, que vieram
contribuir com a construção da fundamentação teórica, e com a análise e interpretações dos
dados coletados, realizando a interlocução entre fontes primárias (pesquisador/pesquisados)
e fontes secundárias (dados obtidos de outros estudos).
Na fase de pesquisa de campo – durante os meses de março e abril de 2004 realizaram-se visitas aos shoppings “Terceirão”, “4400” e “Durval Ferreira”4, partindo-se
da premissa de que o trabalho de crianças e adolescentes com deficiência na zona urbana
seja mais disseminado no âmbito do mercado informal. Houve, ainda, contatos e visitas a
algumas instituições para possível atendimento a estes sujeitos, como Fundação de
Desenvolvimento do Adolescente e da Criança - FUNDAC e a Fundação Centro Integrado
de Apoio ao Portador de Deficiência - FUNAD. Em ambas, não se obteveram dados e
informações precisas que atendessem aos objetivos do estudo.
Utilizaram-se como técnicas a observação assistemática e o roteiro de entrevistas.
Recorreu-se à observação assistemática no Parque Sólon de Lucena, Feira do Mercado
Central, Rua Barão do Triunfo, Praça do Bispo e Feira do Rangel. Sendo que, na maioria
dos casos, porém, as idas a estes locais foram guiadas por informações coletadas através da
indicação de terceiros.
Utilizou-se a entrevista semi-estruturada, constituída de um roteiro de questões
abertas e fechadas que contemplam cinco pontos de análise que se complementam:
identificação, trabalho, renda, deficiência e perspectivas de vida. Utilizou-se, ainda, o diário
de campo como instrumento de registro do contexto observado.
4
Espaços de comercialização criados pela administração municipal na tentativa de melhor distribuir o
comércio informal da cidade.
95
TRABALHO PRECOCE E DEFICIÊNCIA - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
De acordo com a Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
criança é a pessoa que tem até doze anos e adolescente é aquele que está entre doze e
dezoito anos de idade. No Brasil, cerca de 43,3 milhões de pessoas encontram-se nesta
faixa etária (IBGE, 2004).
Tendo em vista a realidade sócio-econômica do país, que apresenta a perversa
desigualdade social como sua marca registrada – configurada em suas múltiplas expressões
de pobreza e de exclusão social a que está submetida grande parte da população – este
segmento encontra-se no alvo das grandes questões sociais, dentre estas, a inserção precoce
no mundo do trabalho.
Embora o trabalho para menores de 16 anos seja ilegal, salvo na condição de
aprendiz, a partir dos 14 anos, sabe-se que a inserção de crianças e adolescentes nas mais
variadas atividades de trabalho (de forma irregular) ainda é constante. Ressalte-se, ainda,
que o Estatuto da Criança e do Adolescente admite o trabalho a partir dos 16 anos, desde
que não seja em período noturno, perigoso, insalubre ou penoso, e seja vinculado a essa
formação técnico-profissional o processo de escolarização regular.
Apesar de todo aparato legal, existente no Brasil e no Mundo contra esta questão,
assim como todo processo de tentativa de combate e erradicação liderado por ações do
Estado e da Sociedade Civil, dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas (IBGE, 2004) apontam a existência no país de 5,4 milhões de crianças e
adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando, ou 12,6% dos 43,3 milhões de pessoas nessa faixa
de idade, dos quais cerca de 42% vivem no Nordeste.
Mundialmente, segundo estimativas da OIT, existem 246 milhões de crianças
trabalhando, das quais 179 milhões estão expostas às piores condições, o que põe em risco
sua integridade física, mental e moral. (Agência, 2004).
Com relação ao estado da Paraíba, de acordo com o IBGE, 165 mil crianças e
adolescentes, de 5 a 17 anos, estão trabalhando, sendo que cerca de 43 mil estão exercendo
atividades perigosas. (Correio da Paraíba, 2004, p. B-2).
De acordo com Alberto e Araújo (2003), a problemática do trabalho infanto-juvenil
tem início na própria família. Corrobora a concepção desses autores os dados da Revista
Educarede:
96
A principal causa que leva crianças e jovens de todo o mundo a
serem obrigados a trabalhar é a pobreza. Famílias de baixa renda
travam uma verdadeira luta diária pela sobrevivência em países
cujos governos não dão prioridade a áreas como saúde, educação,
moradia, saneamento básico, programas de geração de renda,
entre outros. As crianças são forçadas a assumir responsabilidades
em casa ou acabam indo elas mesmas buscar a complementação da
renda familiar. (Trabalho, 2004).
O
trabalho precoce
impede
o
acesso
dessas
crianças
à educação,
à
profissionalização, que são mecanismos facilitadores de ascensão profissional e,
conseqüentemente, a salários e melhores condições de vida, sobretudo na fase adulta.
Assim, o trabalho precoce acaba repercutindo negativamente sobre o desenvolvimento
psicossocial desses sujeitos. Retira da criança e do adolescente todas as condições
consideradas – quer pela Psicologia, quer pela lei (ECA e outras) – imprescindíveis à
formação e ao desenvolvimento integral do cidadão criança. O trabalho infantil é um
grande comprometedor das condições de vida, da saúde, do nível de escolaridade e do
acesso à cidadania entre a população infanto-juvenil.
Essas crianças e adolescentes expõem-se precocemente a cargas e fatores de risco5
prejudiciais ao seu desenvolvimento bio-psíquico-sócial. Seu sistema ósteo-músculoarticular, cuja ossificação se completa aos 18 e 21 anos, respectivamente para o sexo
feminino e masculino, fica afetado de forma definitiva. Já que o trabalho precoce exige
quase sempre exercícios, esforços físicos, inadequados à capacidade de seu organismo.
Quanto ao desenvolvimento psíquico, prejuízos decorrentes de experiências
desagradáveis ou cargas mentais excessivas podem acarretar fadiga psíquica, medo, perda
de auto-estima, além de somatizações digestivas, cardiovasculares, respiratórias, urinárias,
dentre outras.
Independente da forma de inserção, o trabalho precoce será um empecilho ao
convívio com a família e com outras crianças em atividades lúdicas, podendo ter o seu
desenvolvimento comprometido.
Considera-se, ainda, que o trabalho precoce pode levar a conseqüências mais
complexas, como a aquisição de uma deficiência permanente. Fato este decorrente do
5
É aquele que tem sua origem numa fonte ou fenômeno de natureza física ou de um sistema físico. (SIVIERI,
1996).
97
trabalho rural, em sisal, canaviais, olarias, etc, que expõem crianças e adolescentes a
manusear máquinas e ferramentas que, a um simples descuido ou movimento impreciso,
levam à mutilação de algum órgão.
Tendo em vista este contexto é que se objetivou investigar a relação trabalho
precoce x deficiência na cidade de João Pessoa/PB.
De acordo com o Decreto 3.298/99, deficiência refere-se a toda perda ou
anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gerem
incapacidade para o desempenho da atividade, dentro do padrão considerado normal para o
ser humano.
Dados do último Censo/IBGE indicaram a existência de cerca de 24,5 milhões de
pessoas com deficiência no Brasil, o que equivale a 14,5% da população.
Segundo relatório do UNICEF, cerca de 2,9 milhões ou 4,7% das crianças e dos
adolescentes de 0 a 17 anos apresentavam pelo menos uma das deficiências consideradas
no Censo 2000, do IBGE (Fundação Abrinq, 2004).
A Paraíba é o estado brasileiro que apresenta o maior número de portadores de
deficiências (18,8%). Ao todo são 646 mil paraibanos que apresentam pelo menos um tipo
de deficiência. Na faixa etária entre 0 e 14 anos de idade, estima-se cerca 5,2% de pessoas.
Entretanto, entre os municípios com população superior a 100 mil habitantes, João Pessoa é
o que apresenta o menor número de pessoas portadoras de deficiências (com 14,8%)
(Correio da Paraíba, 2003, p. B-1 e B-3).
Durante toda a história da humanidade, estas pessoas têm sido levadas à condição
de exclusão. Tão somente no século XX, principalmente nas três últimas décadas, vem se
consolidando um período de grandes avanços e de novas perspectivas para estas pessoas.
Contudo, a discussão com relação ao termo correto para designar este segmento
populacional ainda não se esgotou. Para cada época, houve um termo cuja significação
esteve de acordo com os valores vigentes na sociedade.
Segundo Sassaki (2003), existe, atualmente, uma discussão entre os movimentos
mundiais de pessoas com deficiência com a finalidade de se padronizar mundialmente o
termo em "pessoas com deficiência".
98
Durante muito tempo, sobretudo devido aos fundamentos do sistema capitalista, a
pessoa com deficiência foi considerada um “peso” para a sociedade, diante da
“impossibilidade” de produzir, ou seja, de não contribuir com o aumento do capital.
A partir da última década, o paradigma da inclusão social tem sido amplamente
discutido, tendo como objetivo viabilizar direitos à convivência não segregada e ao acesso a
recursos disponíveis aos demais cidadãos. Para que se efetue a inclusão, a sociedade deve
ser democrática a fim de que seja permitida a manifestação nas diferentes instâncias de
debate e de tomada de decisão, de forma a possibilitar essa participação – tornando-se a
denominada sociedade inclusiva, ou sociedade para todos.
A sociedade para todos, consciente da diversidade da raça humana,
estaria estruturada para atender às necessidades de cada cidadão,
das maiorias às minorias, dos privilegiados aos marginalizados.
(...) Na sociedade inclusiva ninguém é bonzinho. Ao contrário,
somos apenas – e isto é o suficiente – cidadãos responsáveis pela
qualidade de vida do nosso semelhante, por mais diferente que ele
seja ou nos pareça ser. (...) Inclusão é, primordialmente uma
questão de ética. (Werneck, apud Almeida, 2003, p.43).
As áreas de atenção pública, tais como educação, saúde, esporte, turismo, lazer,
cultura, têm suas atividades nem sempre planejadas para pessoas com deficiência. Resta a
eles e a suas famílias a responsabilidade quase que exclusiva de seu acesso a esses serviços,
segregando-se mais uma vez seu convívio em sociedade.
A questão escolar é um dos problemas mais discutidos. Diante da “Educação
Especial”, emerge o debate sobre “Educação Inclusiva”, segundo a qual os alunos com
deficiência são incluídos em escolas regulares. Para que isto ocorra com êxito, algumas
modificações devem ser feitas. Não sendo necessárias fórmulas mirabolantes, mas, a
organização e o funcionamento do sistema escolar devem apenas ser modificados para que
estes alunos usufruam dos recursos escolares de que necessitam afim de alcançarem seus
objetivos educacionais e profissionais. Segundo Gugel (2003, p. 01), o Programa de
Aprendizagem6, uma vez adequado e regularmente implementado contribuirá, não só para
6
A Lei 10.097, de 19/12/00, modificou a Consolidação das Leis do Trabalho, enfocando a aprendizagem, por
meio do trabalho, como motriz para o futuro de jovens adolescentes. Se adequadamente implementada, dando
ao adolescente formação técnico-profissional, será um passo adiante para a inclusão no trabalho.(GUGEL,
2003)
99
a almejada escolarização, como também para a qualificação profissional do portador de
deficiência para o trabalho.
CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA QUE TRABALHAM: OS
RESULTADOS OBTIDOS
Foram identificados 04 (quatro) adolescentes com deficiência trabalhando, dos
quais segue abaixo uma caracterização através de indicadores eleitos de acordo com os
objetivos do estudo:
•
Sexo: Um do sexo feminino e três do sexo masculino.
•
Deficiência: 1 com deficiência física e 3 com deficiência sensorial (mudos). Todos
têm a deficiência de origem pré-natal. No caso desses últimos, o questionário foi
aplicado junto aos pais ou responsáveis.
•
Idade: Dois dos entrevistados não se encontram mais na faixa etária que
compreende a infância e adolescência, tendo eles 19 e 21 anos, porém um deles
trabalha desde a infância (7 anos) e o outro desde a adolescência (17 anos), fato este
que nos levou a não excluí-los desta investigação. Os outros dois têm 14 e 17 anos.
•
Composição familiar: Dentre os entrevistados, obtivemos uma média de 8,5
pessoas morando numa casa. Sendo que a mais numerosa é composta de 11 pessoas.
• Atividade de trabalho: Uma é vendedora ambulante de adesivos, os demais são
olheiros7 de carro.
• Local de trabalho: Um deles foi encontrado trabalhando no Parque Solon de Lucena
e os outros três na feira do Rangel.
• Descrição das atividades e jornada de trabalho: A vendedora ambulante compra
as cartelas de adesivo numa loja do Centro, vai para o parque Sólon de Lucena,
onde realiza suas vendas. Chega às 9 horas e vai embora às 17 horas (trabalha cerca
de 8 horas diárias) ou quando tiver vendido todas as cartelas, o que totaliza, em
média, um total de 16 cartelas por dia, sendo R$ 0,50 cada uma delas. Quanto aos
olheiros, um deles tem uma jornada de 8 horas, de 04 da manhã até às 12 horas da
tarde, podendo se estender no período da tarde, sendo de quinta a domingo. Os
7
Aquele que vigia, olha carros. (Alberto, 2003).
100
outros trabalham aos sábados e domingos de 6:30 às 12 horas. Como não falam,
gesticulam para os clientes na indicação de oferecer seus serviços, indicando um
local para estacionar. Além de vigiar os carros, eles também ajudam os seus clientes
a levar suas mercadorias até seus respectivos veículos.
• Riscos8: os tipos de risco aos quais estão expostos os entrevistados são:
Físicos: exposição ao sol e chuva, ruídos;
Químicos: exposição à poeira e a fuligem dos carros;
Psicológicos: longa jornada, competição, assiduidade, responsabilidade,
repetição das tarefas, pouca possibilidade de criatividade, iniciativa ou
autonomia, estado de alerta e defesa para agressões, e, no caso da vendedora
ambulante, assédio, uso do corpo como propaganda;
Ergonômicos: excessivo esforço físico ou muscular, risco de postura:
prolongados períodos em pé, longas caminhadas;
Sociais: dificuldade de inserção escolar, de lazer, de acesso à saúde, e ainda,
especificamente com a vendedora ambulante, identificou-se alimentação
inadequada, pois, nos dias em que não consegue arrecadar dinheiro suficiente
para almoçar, pede em um bar. Entre os olheiros, riscos de segurança como o
perigo de atropelamento, do roubo dos carros, agressões verbais.
•
Rendimento: Os olheiros recebem em média R$ 10 por dia. Estes recebem ainda o
Benefício de Prestação Continuada9. Dentre estes, duas famílias têm uma outra
renda totalizando um rendimento familiar mensal em torno de dois salários
mínimos (R$ 480), mais a complementação oriunda do trabalho precoce. A
vendedora de adesivos tem rendimento diário de cerca de R$ 8 o que totaliza R$
32 por semana, não sabendo esta informar o salário de seu pai, que é o provedor da
família.
•
Escolaridade: Dois dos entrevistados não estudam. Com relação aos demais: um
está cursando a 7ª série do ensino fundamental e outro está na aceleração, pois
apresenta deficiência mental. Ambos em escolas especiais.
8
Descrições dos tipos de riscos conforme Sivieri (1996).
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) configura-se como um dos maiores programas de renda mínima
da América Latina, garantindo um salário mínimo mensal a idosos a partir de 67 anos de idade e a pessoa
portadora de deficiência incapacitada para o trabalho e para a vida independente, desde que comprove a renda
familiar per capita inferior a ¼ de salário mínimo. (ALMEIDA, 2003, p. 126).
9
101
Com relação à opinião dos entrevistados sobre Trabalho Precoce e suas Perspectivas
de Vida, seguem-se os seguintes resultados:
•
A vendedora de adesivos afirma com relação ao trabalho precoce: “Tem que
começar a trabalhar de cedo pra não virar vagabundo!”.
Percebe-se na nossa sociedade uma mentalidade preconceituosa que atribui ao
trabalho precoce um valor de formação e de prevenção da marginalidade, justificando que,
ao se ocupar desde cedo, a criança ou adolescente serão impedidos de se envolverem com
infrações.
Seu maior sonho é “estudar e ser professora”. Apesar de nunca ter freqüentado a
escola, aprendeu a ler com ajuda de uma prima.
Justifica-se que, devido ao problema de fala dos demais entrevistados, não foi
possível analisar os dados referentes às perspectivas e opiniões sobre o trabalho precoce,
uma vez que os responsáveis deixaram perceptíveis seus desejos pessoais, como, por
exemplo, em um dos casos, a mãe falou que “era desejo de seu menino comprar uma casa
para a família”.
•
Entre os depoimentos não se constatou nenhum fator que levasse a se crer na
existência da exploração da imagem (da criança deficiente) para se conseguir
desenvolver sua atividade e ser gratificado diante da ‘compaixão’ das pessoas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As condições de vida a que os meninos e meninas trabalhadores precoces estão
submetidos impossibilitam seus projetos para o futuro, configurando-se como empecilho
para a realização dos seus sonhos.
É inegável a carga de conseqüências biopsicossociais que a condição de desenvolver
atividades de trabalho precocemente, adicionadas às questões referentes à deficiência, vai
determinar no nível de qualidade de vida dos sujeitos que vivenciam esta problemática.
Sem dúvida, a temática aqui abordada perpassa o contexto dos Direitos Humanos
em geral, além dos direitos relativos a um determinado grupo social, direcionando
discussões para a necessidade de luta permanente contra os pensamentos e as práticas
sociais que bloqueiam a concretização de uma cidadania.
102
Isto significa que se deve ir além da criação de meros projetos sociais através do
compromisso político-ideológico e técnico-administrativo dos que estão por trás da
execução de políticas de combate à questão social da criança e do adolescente e das pessoas
com deficiência.
No caso dos sujeitos aqui investigados, constatou-se que estes se encontram
inseridos num contexto pleno de não efetivação de seus direitos: enquanto crianças e
adolescentes, enquanto pessoas com deficiência, enquanto cidadãos, que, bem como tantos
outros brasileiros, encontram-se excluídos de condições mínimas de sobrevida a partir do
acesso a bens e serviços produzidos socialmente (educação, saúde, assistência social,
cultura, lazer, entre outros) que venham a garantir-lhes uma vida digna.
As dificuldades encontradas durante o percurso investigativo, o tempo destinado à
execução da pesquisa, tendo em vista os objetivos propostos pelo curso, a burocratização
existente nas instituições, dentre outras, apenas contribuíram para que a certeza de que este
estudo não deve esgotar-se aqui. Ressalta-se a necessidade de se desvendar alternativas de
reflexões que venham contribuir com outros estudos que conduzam a práticas sociais mais
efetivas de que resultem melhores condições de desenvolvimento humano destes segmentos
rumo à inclusão social.
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CAPÍTULO 09
A VIOLÊNCIA DO TRABALHO INFANTO-JUVENIL DOMÉSTICO
Valdelice Oliveira de Souza1
Anísio José da Silva Araújo2
Marlene de Melo B. Araújo3
INTRODUÇÃO
Nesse artigo, apresentamos os resultados de uma investigação realizada no quadro
do Curso de Formação para Agentes de Direitos Humanos na UFPB, atendendo a uma das
exigências do seu processo de avaliação. Procuramos focalizar o trabalho doméstico
realizado por crianças e adolescentes, uma grave questão social que vem ganhando
visibilidade na esteira do movimento de erradicação do trabalho infantil. As dificuldades
que cercam a abordagem dessa temática são sobejamente apontadas na literatura. A
principal delas decorre do fato de este trabalho realizar-se no espaço privado, portanto
protegido pelas redes familiares dos olhares e do julgamento exterior. Tal “muro de
proteção” familiar coloca dificuldades à abordagem do trabalho infanto-juvenil doméstico
enquanto objeto de pesquisa e, sobretudo, faz com que esse tipo de exploração permaneça
invisibilizado.
Não obstante, e por diferentes caminhos, não sem dificuldades, a realidade dessas
crianças e adolescentes vai sendo desvelada, crescendo a consciência social e gerando
iniciativas múltiplas no sentido de sua erradicação. A investigação que originou este artigo
se coloca nessa perspectiva. Ela foi conduzida pela autora principal, aluna do curso, porém
teve a colaboração dos co-autores no seu planejamento, análise e na elaboração do presente
artigo. Ela se origina a partir da constatação, pela autora principal, de uma significativa
presença de crianças e adolescentes, na área onde reside, que têm o trabalho doméstico
1
Aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante do Centro Boa Esperança (Pastoral do Menor/Núcleo Mangabeira).
2 2
Doutor em Ciências/ENSP/FIOCRUZ; Professor Adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFPB, Coordenador do Grupo de Pesquisas Subjetividade e
Trabalho-GPST/UFPB.
3
Mestre em Serviço Social, Doutoranda da Escola de Serviço Social/UFRJ.
106
como atividade remunerada. Por outro lado, vem desenvolvendo, junto a Pastoral do
Menor, um trabalho dirigido a essas populações de trabalhadores precoces. Por último, o
envolvimento pessoal (desde os 13 anos) e de familiares com o trabalho doméstico foi, sem
dúvida, um forte mobilizador para escolha dessa temática.
A questão que norteou o processo de investigação foi a seguinte: qual o conteúdo do
trabalho doméstico de crianças e adolescentes, em que condições é realizado e como
interfere na saúde, na vida escolar e no projeto de vida de cada uma das trabalhadoras.
Na base do presente trabalho, está a hipótese de que a grande freqüência de crianças
e adolescentes do sexo feminino ao trabalho doméstico se deve, entre outras coisas, ao fato
de as próprias mães, pressionadas por sua condição social empobrecida, encaminharem
suas filhas para esse tipo de trabalho, cujo processo de “formação” tem início muito cedo
no interior mesmo da família. Desde pequenas, portanto, essas crianças e adolescentes são
“educadas” para esse tipo de trabalho, o que faz com que este seja caracterizado como um
trabalho feminino. Na verdade, encontramos aí uma construção social, algo que foi forjado
na história da discriminação e da violência em relação às mulheres e que é naturalizado
socialmente. Essa é a razão pela qual não há como abordar o trabalho doméstico de crianças
e adolescentes sem se mergulhar no acúmulo existente em torno das questões de gênero e
da divisão sexual do trabalho.
Como objetivo geral, estabelecemos o seguinte: analisar o conteúdo do trabalho
doméstico de crianças e adolescentes, as condições em que se desenvolve e as implicações
na saúde, na vida escolar e na construção do projeto de vida. Como objetivos específicos,
definimos os seguintes: analisar o histórico profissional dos entrevistados; conhecer as
motivações para o trabalho doméstico; identificar as atividades desenvolvidas pelas
entrevistadas e se há diferenças em relação ao trabalho doméstico adulto; analisar as
condições do trabalho doméstico em torno de itens como turnos, jornada, regime de
trabalho, renda, folgas, entre outras; verificar o cumprimento de obrigações trabalhistas;
investigar a relação com a patroa e outros membros da família; analisar as conseqüências
do trabalho doméstico na saúde, na vida escolar e no projeto de vida e, por fim, verificar
como são usufruídos os momentos de folga e de relaxamento.
107
A PERSPECTIVA TEÓRICA
Uma perspectiva teórica que se revela fecunda para se compreender a realidade
aqui analisada tem sua origem no grupo de pesquisadoras do GEDISST - Grupo de Estudos
sobre a Divisão Social e Sexual do Trabalho do Centro Nacional de Pesquisa Científica da
França - entre as quais destacam-se Danièle Kergoat, Helena Hirata. Segundo Oliveira
(1997), essa perspectiva enfatiza a divisão social do trabalho como aspecto central da
desigualdade entre os sexos. Segundo Kergoat (1996, p. 19):
(...) relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho são
duas proposições indissociáveis que formam um sistema. A
reflexão em termos de relações sociais de sexo é, ao mesmo
tempo, anterior e posterior à reflexão em termos de divisão
sexual do trabalho. Ela é preexistente como noção, mas posterior
como problemática. É preexistente, pois foi uma aquisição do
feminismo, por meio da emergência de categorias de sexo como
categorias sociais, de mostrar que os papéis sociais de homens e
mulheres não são produto de um destino biológico, mas que eles
são, antes de tudo, construções sociais que têm uma base
material.
Kergoat (1996, p. 20) postula que falar em divisão sexual do trabalho é mais que
constatar a diferenciação entre os sexos na sociedade,
(...) é articular essa descrição do real com uma reflexão sobre os
processos pelos quais a sociedade utiliza essa diferenciação para
hierarquizar as atividades. A divisão sexual do trabalho está no
centro (no coração) do poder que os homens exercem sobre as
mulheres (p. 20).
A concepção de relações sociais de sexo caracteriza-se segundo Kergoat (1996, p.
21),
1. por uma ruptura radical com as explicações biologizantes das
diferenças entre as práticas sociais masculinas e femininas; 2. por
uma ruptura radical com os modelos supostos universais; 3. por
afirmações de que tais diferenças são construídas socialmente e
que esta construção social tem uma base material (e não apenas
ideológica); 4. que elas são, portanto, passíveis de ser apreendidas
historicamente; 5. na afirmação de que estas relações sociais
repousam em princípio e antes de tudo em uma relação hierárquica
entre os sexos; 6.de que se trata, evidentemente, de uma relação de
poder.
108
O conceito de relações sociais de sexo está conectado ao de práticas sociais, cuja
utilidade é permitir transformar o que é abstrato em concreto, definindo os atores de outra
forma do que como mero resultado das relações sociais. Além disso, permite poder pensar
simultaneamente o material e o simbólico e restituir aos atores sociais o sentido de suas
práticas.
Ao mesmo tempo, falar em “relação social” significa falar em relação de poder.
Segundo Kergoat (1996), as relações sociais de sexo permeiam todos os campos do social,
do que se conclui que toda relação social é sexuada. Sendo assim, as relações de classe
fornecem conteúdo e direção às relações sociais de sexo. A relação entre os sexos não está
confinada na relação conjugal, mas permeia, por exemplo, o local de trabalho da mesma
forma que a relação de classes escapa ao local de trabalho, e se manifesta na relação com o
corpo, com as crianças, etc. Apesar disso, constata Kergoat, as relações sociais de sexo não
se expressam homogeneamente em todos os setores e níveis sociais.
Feita essa breve apresentação da perspectiva teórica que nos serviu de base,
passemos agora a examinar o caminho e, em seguida, os resultados que encontramos nessa
investigação.
O MÉTODO
A abordagem que privilegiamos no presente estudo é a qualitativa, porque nos
interessava conhecer o fenômeno do trabalho doméstico pelo olhar das suas protagonistas:
quatro trabalhadoras domésticas precoces. Fizemos uso de entrevista semi-estruturada, com
questões abertas e fechadas, construída a partir da revisão da literatura. Recorremos, à
gravação das entrevistas quando autorizadas pelas entrevistadas. Por último, as entrevistas
foram transcritas subsidiando a elaboração do presente artigo.
OS RESULTADOS
a) Perfil
Em relação ao perfil das entrevistadas, as quatro situam-se na faixa etária dos 14 aos
aos 17 anos e trabalham, três delas pelo menos, há dois anos como domésticas
109
remuneradas. Para todas elas, essa foi a única atividade remunerada em que até então
estiveram envolvidas. Uma delas trabalha manhã e tarde; outra, só a tarde; outra, a noite e
madrugada e uma outra, na parte da manhã. Apenas uma dentre as quatro entrevistadas
dorme na residência em que trabalha e, neste caso, em quarto reservado à doméstica.
b) Jornada
A jornada de trabalho é bastante discrepante entre as entrevistadas: duas delas
trabalham 12 horas (uma das quais, no período noturno) e duas, 5 horas. Aspectos comuns
que podemos destacar nessas situações: o trabalho doméstico é a única atividade
remunerada que conheceram. Todas recebem por mês trabalhado, nenhuma possui carteira
de trabalho assinada, dormem em geral nas suas casas. Por outro lado, no que tange à
jornada e horários de trabalho, encontramos uma diversidade de situações. Esse perfil
coaduna-se com a natureza do trabalho infanto-juvenil doméstico, cujo formato está em
estreita ligação com as necessidades e o ritmo da família. Por outro lado, o fato de o
trabalho doméstico ser considerado um atributo da “natureza feminina”, tem como efeito a
sua desvalorização social e o não reconhecimento das competências que veicula. Por conta
disso, as famílias que se utilizam do trabalho infanto-juvenil doméstico não o enxergam
como trabalho, mas como um exercício de “responsabilidade social”, através do qual
“ajudam” crianças e adolescentes a terem alguma renda e, portanto, a reforçarem o
orçamento doméstico, ao mesmo tempo em que as vacinam, pelo trabalho, contra os
perigos da ociosidade. Isso certamente explica a variedade dos “salários” pagos. Vejamos o
que diz a respeito Dejours (1999, p.129).
É natural atribuir às mulheres a competência para administrar os
cuidados com a casa, com as crianças, com os adultos deficientes,
com os idosos, com os doentes e impotentes. Além disso, elas devem
saber costurar, cozinhar, etc. Essas não são consideradas
qualificações, já que pertencem ao instinto maternal, é uma
qualidade de base, como ser dona-de-casa. Todos esses estereótipos
são muito conhecidos. Porém, essas competências são necessárias
ao trabalho, embora sejam nele utilizadas sem que reconheça
tratar-se de competências. Elas fazem parte da natureza feminina e,
portanto, o fato de as mulheres utilizarem-na é totalmente normal.
110
A questão sobre como é um dia de trabalho normal e um dia intenso, houve
unanimidade em apontar o sábado como um dia intenso de trabalho, pois é dia de faxina e
dia em que os patrões fazem a feira, o que implica um importante desgaste físico tanto na
limpeza da casa como na arrumação da feira. Os dias normais são aqueles imediatamente
posteriores ao sábado, em que o “grosso” da limpeza e da arrumação já foi realizado. Em
relação às atividades realizadas, foram mencionadas as seguintes: varrer a casa (interna e
externamente), passar pano na casa, arrumar a casa, limpar banheiros, lavar e passar roupa,
preparar almoço, lavar louça, dar banho nas crianças, levar e pegar as crianças na escola,
trocar fraldas, administrar medicamentos. Como vemos, não há diferenças em relação ao
que é prescrito para o trabalho doméstico adulto. Se considerarmos as condições físicas e
psicológicas dessas trabalhadoras, ainda em processo de maturação, e os requerimentos do
trabalho doméstico, teremos aí importantes conseqüências no plano da saúde.
c) Remuneração
Todas recebem por mês de trabalho (mensalistas) e nenhuma possui carteira de
trabalho assinada. A renda obtida com o trabalho é bastante diferenciada: num caso, não foi
declarada; em outro, foi de R$ 200,00; em outro foi de R$ 50,00 e, numa última, de R$
85,00. Quanto à renda familiar, foram informadas as seguintes: R$ 250,00, R$ 200,00, R$
300,00 e R$ 570,00. Reforçando o que foi apontado acima, os diferentes “pagamentos”
pelo trabalho têm subjacente a idéia de que é um trabalho natural nas mulheres, como se
fosse da ordem do instinto (assim como nos animais), e, portanto, não pode ser avaliado no
mesmo plano que outras atividades. Em segundo lugar, empregar essas meninas é um
exercício de filantropia e de higiene social, na medida em que elas ajudam suas famílias e
são, ao mesmo tempo, poupadas de situações de risco (drogas, prostituição).
d) Condições e organização do trabalho
Quanto a folga, duas entrevistadas informaram que não têm folga. Uma outra tem
folga semanal e outra, mensal. O trabalho infanto-juvenil doméstico tem algumas
similaridades com o trabalho escravo. Pelas razões apontadas acima, as famílias que
utilizam esse tipo de trabalho, consciente ou inconscientemente, se sentem proprietárias da
vida das trabalhadoras, dispondo do seu tempo da maneira que lhes aprouver. Desse modo,
111
as folgas ocorrem em função da dinâmica da família, e não em função das necessidades das
trabalhadoras. Essa impossibilidade de respeitar as necessidades do corpo (de descansar
quando se sente cansado) tem um custo importante do ponto de vista da saúde, agravado
pelas condições físicas e psicológicas em processo de maturação, como é o dessas
trabalhadoras. As fontes de sofrimento no trabalho doméstico apontadas foram: não dispor
de tempo para estudar, visitar uma amiga, ir ao médico. Estar aprisionado ao espaço
doméstico de trabalho é, portanto, a fonte principal de sofrimento revelada pelas
entrevistadas.
Quanto aos direitos trabalhistas assegurados em lei (férias, 13º salário, valetransporte), apenas o direito a férias foi citado em três casos. Num deles, nenhum direito foi
mencionado. Tal situação corrobora o que já afirmamos: o trabalho doméstico está no gene
das mulheres, elas apenas seguem seus comandos, como um robô, não implicando
aquisição de competências. Nesse sentido, ele deve ser avaliado sob parâmetros diversos
daqueles de que usualmente o mercado de trabalho se utiliza. Por conta disso, tais abusos
são perfeitamente justificáveis. Diante disso, o desrespeito à legislação trabalhista é apenas
uma conseqüência. .
As quatro entrevistadas informaram que fazem as refeições nos domicílios onde
trabalham. Esse é mais um aspecto compartilhado com o trabalho escravo. Dispor do tempo
e da vida das trabalhadoras implica, também, assegurar minimamente a sua reprodução,
ainda que em espaços isolados, ainda que consumindo os restos, nunca, portanto, uma
reprodução satisfatória face ao desgaste que o trabalho doméstico implica.
e) Causas da inserção precoce
Em relação à questão sobre o que as levou para o trabalho doméstico, as razões
elencadas foram as seguintes: “porque não concluiu os estudos”, “porque a mãe não tem
condições de atender as necessidades pessoais”, “única forma encontrada de ajudar a mãe”,
“necessidade de ajudar a mãe que precisava de dinheiro”. Enfim, a necessidade de
complementar a renda familiar se impõe com evidência na “opção” em trabalhar. O
trabalho doméstico é a alternativa que se coloca porque é a única “qualificação” a que
tiveram acesso como mulheres. As patroas, por sua vez, beneficiam-se dessas trabalhadoras
“treinadas”, tendo apenas que promover algumas adaptações.
112
f) Relações de trabalho
Quanto à relação com a patroa, as respostas foram: para um dos casos, ótima, pois é
tratada como se fosse da família; para outras duas, a relação é boa e para uma outra foi
considerada normal. Quanto à relação com os outros membros da família (especialmente
homens), as respostas foram: boa, normal (em dois casos) e não muito boa, “pois às vezes
olham de um jeito estranho”. Nesses casos, a relação com a patroa não figurou como
elemento de sofrimento, embora saibamos que essa não constitui a regra geral. Chama
atenção o “olhar de jeito estranho” dos membros da família de uma das entrevistadas.
Subjacente a esse olhar, figura um largo espectro de atitudes: o da empregada doméstica
como objeto de satisfação sexual, de “treinamento” para a vida sexual dos homens, como
um ser inferior diante do qual excessos podem ser cometidos, entre outras.
g) Escolaridade
Quanto
à
questão
se
estão
estudando
atualmente,
todas
responderam
afirmativamente: duas fazem 8ª série (uma no turno da noite e outra à tarde), uma faz 7ª
série à noite e outra faz 6ª série também à noite. Como vemos, o trabalho doméstico só
permite, como regra geral, o estudo à noite. Podemos, diante disso, antecipar as
dificuldades de aprendizagem, sobretudo quando o dia impõe um trabalho desgastante e
desinteressante. O que foi dito pode ser constatado nas respostas sobre as conseqüências do
trabalho doméstico na vida escolar, ou seja: o trabalho doméstico é cansativo, não deixa
tempo para estudar, nem para se preparar para as provas, muito menos para cuidar da saúde.
As visões em relação à escola foram, em geral, positivas, especialmente pela
possibilidade de adquirir conhecimentos, de aprender, de fazer amizades. A escola é
portadora de vários significados: como quebra de uma rotina desgastante (um relaxamento),
como meio de atender necessidades sociais (recuperando parte da humanidade perdida no
trabalho), como promessa de um futuro melhor, ou seja, de um outro trabalho, remunerado
conforme a lei, registrado. Os aspectos negativos levantados foram mais no tocante ao fato
de ser noturno. Não obstante os limites que o ensino público impõe, com suas condições
precárias, ainda assim ele goza de uma avaliação positiva entre as entrevistadas.
113
h) Aspectos positivos e negativos
Em relação aos aspectos positivos e negativos no trabalho doméstico, foram
levantados, no primeiro caso, a boa relação com as patroas e, no segundo caso, o fato de ser
cansativo e ter que dormir na residência. Chamaria atenção para esse último aspecto:
dormir na residência implica, certamente, “dormir no trabalho”, ou seja, não se estabelece,
nesse caso, como em outros trabalhos, um corte entre vida no trabalho e via extra-trabalho.
Tal distinção permitiria, no caso do trabalho doméstico, uma mudança de patamar e um
alívio das pressões vivenciadas no cotidiano. Além do mais, dormir em casa é estar em
prontidão para qualquer excepcionalidade: uma criança que não dorme, alguém doente
precisando de cuidados. Portanto, o sono não é o mesmo no local de trabalho e em casa.
i) Expectativas de futuro
Em relação à questão se gostaria de trabalhar em outra atividade, em geral as
respostas foram positivas, há uma esperança comum de melhorar de “emprego”. O estudo
figura como um passaporte para essa realização. A exploração no trabalho doméstico é um
elemento que aparece como combustível desse “sonho”.
Quanto às expectativas em relação ao futuro, elas vão sempre na direção da
conquista da “liberdade” do trabalho doméstico e de um trabalho melhor, mais valorizado e
que ofereça um rendimento que permita ter as coisas de que se gosta.
j) O lazer
A questão sobre como fazem uso dos momentos de folga, obtivemos as seguintes
respostas: assistir TV, dormir, passear com os amigos, escutar música, ler algum livro,
escrever, fazer academia. As possibilidades de lazer são bastante restritas, em parte pela
condição financeira, em parte pelos limites que o trabalho doméstico impõe. O lazer joga,
certamente, um papel importante na saúde mental dos trabalhadores e trabalhadoras.
Embora não possamos extrair conclusões em torno das respostas obtidas, as alternativas de
que as trabalhadoras domésticas lançam mão para contrabalançar os efeitos negativos do
trabalho, constituem um campo de pesquisa da maior importância.
114
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não obstante os modestos objetivos que tivemos ao realizar a presente investigação,
ela nos revelou elementos importantes já apontados em várias pesquisas realizadas sobre a
temática. O principal a destacar diz respeito ao fato de o trabalho doméstico ser
considerado inerente à natureza feminina, como se fosse algo inscrito no seu código
genético, cabendo à família apenas o papel de desenvolver o que já existe em potencial.
Essa construção social tem sérias implicações na vida das trabalhadoras domésticas: o não
reconhecimento das competências que mobilizam, a desvalorização social, rendimentos
irrisórios, desrespeito à legislação trabalhista, entre outras. Se adicionarmos o fato de que
esse trabalho, repetitivo, monótono, é realizado sem grandes diferenças por trabalhadoras
precoces e adultas, estamos diante de uma violência sem precedentes. Ainda bem que é
chegada a hora em que os muros do mundo privado estão sendo rompidos, não sem
dificuldades, é claro, revelando a todos que essa realidade precisa mudar.
REFERÊNCIAS
DEJOURS, C. Homens, mulheres e suas relações de trabalho. In: Conferências
Brasileiras: identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. São Paulo:
Fundap: EAESP/FGV, 1999.
KERGOAT, D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES, M. J.
M.; MEYER, D. E.; WALDOW, V. R. (Orgs.). Gênero & Saúde. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1996.
OLIVEIRA, E. M. Gênero, Saúde e Trabalho: um olhar transversal. In: OLIVEIRA, E. M.;
SCAVONE, L. (Orgs.). Trabalho, saúde e gênero na era da globalização. Goiânia: AB,
1997.
115
CAPÍTULO 10
TRABALHO
INFANTO-JUVENIL
DOMÉSTICO:
UMA
VIOLAÇÃO
AOS
DIREITOS HUMANOS
Luzinete Victor de Barros1
Maria Lígia Malta de Farias2
Este trabalho tem por objeto o estudo da violência contra crianças e adolescentes,
cometidas no âmbito doméstico. Produzida no seio familiar, adquire especial relevo tanto
para a sociedade, como para o Estado, principalmente devido à crueldade.
Um tipo de violência que acompanha o desenvolvimento humano é o trabalho
infanto-juvenil, fato encontrado tanto em países desenvolvidos como em países em
desenvolvimento.
Não é uma tarefa simples conceituar esse tipo de trabalho, pois é distinto de uma
sociedade para outra, levando-se em consideração a idade cronológica, os aspectos sociais e
culturais, como também as legislações.
De acordo com a legislação brasileira, trabalho infanto-juvenil é aquele em que
crianças e adolescentes estão inseridas fora da idade mínima para trabalhar, que é a idade
de 16 anos, salvo em condição de aprendiz com a idade de 14 anos. Porém, com referência
as Piores Formas de Trabalho Infantil, a proibição se estende até os 18 anos incompletos.
Verifica-se no Brasil que a utilização da mão-de-obra infanto-juvenil é necessária
para o empregador por ser de baixo custo, além de utilizar a docilidade, agilidade e destreza
desses pequenos trabalhadores, tornando-se responsável pela condução de crianças e
adolescentes ao trabalho escravo, à prostituição e à criminalidade.
1
Advogada, Licenciada em Filosofia/UFPB, Maestría en Derechos Humanos pela Universidad Internacional
de Andalucía, Espanha. Conselheira do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão –
CEDDHC – da Paraiba.
2
Mestra em Ciências Jurídicas/UFPB, Professora do Departamento de Direito Privado da UFPB e Presidente
da Comissão de Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba.
116
(...) o Brasil também é campeão num problema que, segundo
diversos estudos, pode empurrar desempregados para o crime. O
grande combustível da criminalidade é a desigualdade social”,
afirma Daniel Cerqueira, da diretoria de estudos sociais do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). A frustração de
viver em privação enquanto vê pujança ao redor alimenta um
ressentimento que pode se tornar a semente do crime (Cotes &
França, 2004, p.78).
Em relação ao fato de pessoas não encontrarem lugar no mundo para desenvolver
suas habilidades, Hannah Arendt (1990, p. 488) discorre sobre as massas desarraigadas
sob a ótica da experiência totalitária no cenário do mundo moderno, dizendo o seguinte:
É quase impossível saber qual o número daqueles que, se
continuarem expostos por mais tempo a uma constante ameaça de
desemprego, aceitarão de bom grado uma ‘política populacional’
de eliminação regular do excesso de pessoas.
No meio do universo dos excluídos, dados do Censo do IBGE – 2000 destacam o
trabalho infantil doméstico, que abriga 1,2 milhão de crianças e adolescentes, sendo que
mais da metade não possui vínculo empregatício. Este tipo de trabalho é considerado
oculto, protegido pela inviolabilidade constitucional do lar. Mesmo assim, existe uma
população expressiva de jovens trabalhadoras com atividades em residências alheias,
exercendo um labor doméstico.
De acordo com dados da OIT (2003), há mais de três milhões de crianças, entre 5 e
15 anos, trabalhando, em um total de 36 milhões no Brasil, o que representa 8,5%.
Entretanto, somente 35,5% das crianças que trabalham recebem pagamentos por suas
atividades.
Os problemas pertinentes às desigualdades existentes no Brasil caracterizam, de
maneira acentuada, a região Nordeste, marcada pela exploração e escravidão presentes
nesse imenso continente. Isto é de tal monta que há grande porcentagem de crianças que
não são pagas trabalhando para outros membros da família ou produzindo para próprio
consumo ou na construção para próprio uso, principalmente no meio rural. Enquanto a
maioria dos meninos é empregada na área urbana, a maioria das meninas é trabalhadora
doméstica.
117
A escravidão e o trabalho infantil
Com a deportação de negros da África para o Novo Mundo (OIT, 2003) e,
conseqüentemente, para o Brasil, a escravidão fez a vida humana refém do comércio,
levando ao extermínio milhares de vidas e de sua cultura. Os que conseguiram sobreviver
foram transformados em res3 pelo ordenamento jurídico vigente na época, gerando
preconceito e discriminação à pessoa humana.
Sobre esse acontecimento histórico Wolkmer (1998, p. 200) mostra que
(...) segundo alguns dados históricos, somente o Brasil foi
responsável por 40% do total de nove milhões e quinhentos mil
negros que foram trazidos para o Novo Mundo. Esse percentual
equivale a quase nove vezes a quantidade de negros “importados”
para os Estados Unidos (6%), é mais que o dobro de toda chamada
América Hispânica (18%), do Caribe inglês (17%) ou ainda do
Caribe francês (17%).
A cultura brasileira se estrutura nessa forma de escravidão, concedendo aos poucos
privilégios perante a Lei, patrocinando o aumento do abismo das desigualdades sociais. Na
realidade, para se dar um sentido jurídico a essa violência necessitava-se de respaldo
jurídico, um tratamento desigual aos desiguais. Posteriormente, o adágio “para os amigos
os favores da lei, para os inimigos a lei”, estrutura essas diferenças, fazendo com que as
legislações se multiplicassem e com elas a injustiça social e a impunidade.
Assim, os preconceitos e as discriminações recebem muitas roupagens, como, por
exemplo, quanto à cor, ao sexo, à educação e à idade, entre tantas, aumentando
consideravelmente, levando famílias inteiras à miséria e as crianças condenadas ao trabalho
infanto-juvenil.
A Região Nordeste é onde se registram as maiores desigualdades, sendo que a
Paraíba é o ente federativo detentor de alto índice de desigualdade social em relação à
distribuição de renda mensal (Barros, 2003). Essa distribuição de renda é uma das causas
do trabalho infantil doméstico.
Os dados mencionados são preocupantes, primeiro por ser uma atividade que se
encontra fora do sistema econômico e causa impacto sobre a socialização do trabalho em
3
Distinto do direito europeu, a liberdade individual e a vontade jurídica válida, no Direito Brasileiro o
escravo era considerado apenas uma coisa, alienado da então visão antropocentrista de Direito, Wolkmer,
1998, p. 204-205. Em latim, “res” significa “coisa”.
118
relação ao exercido nas empresas, contribuindo menos para a sua inserção no mercado de
trabalho. Em segundo lugar, por se tratar de um labor realizado numa residência, permite
que determinados abusos e formas acentuadas de exploração possam acontecer.
Conforme o Relatório da OIT (2003), em João Pessoa, todos os casos de trabalho
perigoso encontrados referem-se a crianças e adolescentes residentes na área urbana. E as
principais ocupações são o emprego doméstico (30%), cozinheiro/garçom (18%),
construção civil (13%) e ambulantes (11%). Entre as pessoas de 10 a 13 anos, a proporção
de cozinheiros e garçons é de (28%), de ambulantes (22%) é maior que a de empregados
domésticos (17%). Considerando-se apenas as pessoas de 14 anos, o comércio ambulante
(31%) e o trabalho doméstico (20%) empregam a maior parte dos adolescentes em
atividades perigosas. Entre os indivíduos com 16 anos, cerca de 25% são cozinheiros e
garçons e aproximadamente 18% são pedreiros. A maior proporção de domésticos ocorre
entre as crianças de 15 e 17 anos de idade, 39% e 34% respectivamente.
Relatos de experiências por jovens trabalhadoras
O trabalho infanto-juvenil doméstico se caracteriza pela exclusão social e o
preconceito, constituindo-se numa violação aos direitos humanos. Absorve crianças e
adolescentes com idade inferior a 16 anos, situação que contraria a Lei Magna do país.
Naturalizado como atividade feminina, o trabalho doméstico reforça a ideologia dos
chamados papéis femininos, contribuindo para a escravidão, prática de abuso sexual e
formas discriminatórias enfatizadas pelo racismo e pela pobreza.
De acordo com os relatos que se seguem, podemos constatar uma tentativa de se
incluir o trabalho infanto-juvenil doméstico entre as “Piores Formas”, acobertado pela
inviolabilidade do lar, cujo preceito encontra-se no Diploma pátrio vigente4.
Existe no Brasil, além da pobreza e da falta de instrução escolar, uma cultura que
busca justificar o trabalho infantil como uma atividade necessária à criança e ao
adolescente pobre. Mas, ao mesmo tempo, com esta postura, as exclui da responsabilidade
da sociedade e do Estado, conforme podemos constatar através dos relatos a seguir, obtidos
4
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no art. 5º, XI, estabelece que: “a casa é asilo
inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de
flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
119
a partir das denúncias que chegam até o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do
Homem e do Cidadão da Paraíba:
•
Vitória5 é uma garotinha de dois anos e seis meses, vítima de violência perpetrada
por sua própria genitora. Sua mãe começou a trabalhar quando criança nas casas
alheias, pois sua família não tinha nem mesmo o que comer. Em troca de
alimentação e vestimenta, se submeteu às piores humilhações, sendo uma delas a
prostituição. Bem mais tarde conheceu o pai de Vitória, um homem dependente de
álcool, e “montaram casa”. O relacionamento, com o passar do tempo, foi se
tornando insuportável. As várias internações do pai da criança no Hospital para
desintoxicação fizeram com que a mãe de Vitória voltasse aos bares, desta vez em
companhia da própria filha6. O caso foi denunciado ao Ministério Público que, após
fazer inspeções através de visitas in loco e colher provas documentais, juntamente
com o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão –
CEDDHC, prestaram assistência à criança através de audiências, além do
acompanhamento de psicólogas e assistentes sociais. Como houve a omissão da
família paterna, Vitória permaneceu com sua genitora. Atualmente, a mãe de Vitória
está trabalhando em uma casa de família, sem carteira assinada e sua filha passa o
dia em uma creche. À noite, Vitória fica com as pessoas da casa e sua mãe, segundo
declaração de uma escola, freqüenta a sala de aula. Enquanto isso, a garotinha
permanece sozinha, estando nas mãos de estranhos. Seu destino pode se assemelhar
ao de sua progenitora. Na penúltima audiência, Vitória pronunciou a seguinte frase
dirigida a sua mãe: Mamãe, minha lágrima está caindo!!!
Outro caso aconteceu em uma residência de classe média no Bairro dos Estados:
•
Maria da Luz é o perfil de muitas garotas advindas de lares pobres e que começaram
a trabalhar ainda criança. Com a idade de seis anos, foi levada para a casa de uma
“madrinha” que se prontificou a cuidar dela, além de colocá-la na escola. Na
5
Os nomes das pessoas entrevistadas utilizados neste trabalho são fictícios, para a proteção de suas
identidades.
6
O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão/CEDDHC investigou o caso durante
um mês na comunidade onde Vitória residia, constatando a veracidade da denúncia recebida. As pessoas
confirmavam os fatos, porém se negaram a testemunhar porque tinham medo. Mesmo assim, o mencionado
Conselho ofereceu denúncia à Curadoria da Criança e Juventude/Ministério Público Estadual. Não podemos
olvidar, que, anteriormente, o CEDDHC comunicou o ocorrido ao Conselho Tutelar Sul, mas a ação dos
Conselheiros foi ínfima.
120
realidade, Daluizinha, como era chamada, permaneceu com sua “madrinha” durante
toda a sua infância. Não recebia dinheiro, porém lhe davam vestimentas e
alimentação. Muitas vezes sofreu espancamentos e era submetida aos trabalhos mais
árduos para sua idade. Foi lá também que, aos onze anos, foi obrigada a manter
relações sexuais com o garoto da casa. Com medo, resolveu silenciar. Da escola,
lembra-se muito pouco, pois o desânimo sempre a acompanhou a ponto de fazê-la
desistir. Aos onze anos, consegue fugir das pessoas que a escravizaram e
atormentaram. Hoje, com 16 anos, Daluizinha encontra-se em situação de
exploração sexual7.
Há ainda o relato de um caso de uma criança explorada pela família.
•
Outro caso refere-se a uma garota de 11 anos, que, aos 5 anos, começou a pedir
esmola na rua, forçada por sua mãe. Só podia voltar para casa se tivesse dinheiro e,
nas muitas vezes que permanecia na rua, tinha que dormir de dia para não ser
estuprada à noite por outros garotos. Aos nove anos, foi morar na casa de uma
mulher que a submetia aos trabalhos mais penosos, fazendo com que retornasse à
rua e ao início das drogas.
Há casos de adultos dependentes químicos cuja infância no trabalho doméstico foi uma
saída para fugir do abuso e violência da família:
•
Aos 9 anos, Vera Lúcia teve que fugir de casa, pois, constantemente, era abusada
sexualmente por sua mãe e seu amante, sempre movidos pelo álcool. Com dez anos,
foi morar com uma mulher que lhe ofereceu trabalho. Inicialmente os trabalhos
eram leves, mas, com o tempo, fazia todo trabalho árduo na casa, exceto cozinhar.
Quando cometia qualquer erro nas tarefas, era levada a seções intermináveis de
palmatória e, não suportando, fugiu. Novamente nas ruas, aos 14 anos, começou a
se envolver sexualmente com homens e mulheres, movida por álcool e outras
drogas. Por ter começado a trabalhar quando criança e nessa fase da vida ser
submetida a constantes torturas, Vera Lúcia sofre de problemas na sua estrutura
óssea, incontinência urinária e insônia, além de sofrer de alcoolismo, droga em que
foi iniciada por sua própria mãe. De sua infância e adolescência, só lembra de muita
7
O uso do termo “crianças e adolescentes em situação de exploração sexual” é para que seja evitada toda e
qualquer forma de discriminação que as considerem eternamente exploradas, como se em sua vida a situação
não pudesse ser jamais alterada.
121
dor e humilhação. No entanto, só fala em ajudar outras pessoas, que, como ela,
precisam de ajuda. Segundo Vera, sua vida começou ao participar das reuniões do
AA: “Moro sozinha e tenho meu trabalho. Estou aprendendo a ler e escrever. Agora
sou gente. Sou feliz”.
Outra forma de contato e conhecimento da situação da criança trabalhadora doméstica
de que tivemos conhecimento como Conselheira foi através de entrevistas, no período de
2001 a 2003, com 15 mulheres que foram presidiárias. Dez trabalharam quando criança,
sendo que oito exerceram trabalho doméstico e cinco delas sofreram estupro. A maioria era
de cor negra e o crime que cometeram foi furto. Nove dessas mulheres disseram que não
praticaram esse crime, mas, por trabalharem em casa de “gente rica” e por serem pobres,
não tiveram condições de contratar os serviços de um advogado. Afirmaram, por fim, que
seu grande aliado para o silêncio foi o medo. Hoje se encontram em liberdade. Dez delas se
prostituíram porque, na condição de ex-presidiárias, ninguém lhes deu trabalho. E
precisavam sobreviver8.
Os relatos expressos acima tiveram como elemento causador a situação social de que
são fruto, como a pobreza e a negligência do Estado. Estes aspectos podem ser
compreendidos ao se analisar as publicações sobre as condições de vida e trabalho da
população brasileira, em especial da paraibana.
Segundo o Mapa de Indicativos do Trabalho da Criança e do Adolescente, em 1999
havia 124.989 crianças e adolescentes na faixa de 5 a 15 anos de idade trabalhando no
Estado da Paraíba. Desse total, 36.287 (29,03%) trabalhavam na área urbana e 88.702
(70,97%) na rural. O Mapa aponta que esse grupo ocupava, com maior freqüência, os
seguintes setores: Agropecuária (90.717) e Comércio (11.592). Ademais, 76.103 (61,13%)
não recebiam remuneração, 12.600 (10,12%) eram empregados, 12.599 (10,12%)
trabalhadores domiciliares e 10.583 (8,5%) trabalhavam para autoconsumo (Neto &
Affonso, 2003).
Conforme dados do IBGE e do Departamento Penitenciário-DEPEN (2000), o
Estado da Paraíba possui 12 estabelecimentos penitenciários, num total de 1.908 vagas
(1.788 para homens e 120 para mulheres). No entanto, conta com uma população carcerária
8
No início de 2004, tentamos reencontrar essas mulheres. Duas foram localizadas em pontos de prostituição e
relataram que cinco delas voltaram a delinqüir. Uma foi assassinada pelo companheiro e duas morreram
vitimadas pelo vírus HIV. As demais não foi possível localizar.
122
formada por 3.151 pessoas (3.043 homens e 108 mulheres), ou seja, há um déficit de 1.243
vagas. Assim, circula nos meios de comunicação que a Paraíba possui a segunda maior
população carcerária do país (Jornal O Norte, 2003).
O IBGE divulgou recente pesquisa em relação a Paraíba (Jornal Correio da Paraíba,
2004), na qual 43,2% da população ocupada ganha um salário mínimo por mês. O
rendimento médio mensal no Estado é de R$ 401,10 (quatrocentos e um reais e dez
centavos). Outra característica presente é a discriminação. Em 2002, as mulheres ocupadas
tinham em média um ano a mais de estudo e recebiam cerca de 90% do rendimento dos
homens. Quanto a população economicamente ativa, 7,4% estava desocupada em 2002.
Os jovens e as mulheres mais uma vez foram os mais atingidos com a desocupação.
A taxa para as mulheres foi de 9,4%, enquanto a relativa aos homens ficou em 6,4%. Os
jovens de 18 a 24 anos de idade apresentaram a mais alta taxa de desocupação,
correspondente a 16,4%. Por sua vez, os indicadores de trabalho e rendimento para 2002
não sofreram grandes mudanças, principalmente quanto à redução da desigualdade em
relação ao ano anterior, constatando-se um ligeiro aumento da taxa de atividade em 57,2%
em relação a 2001 para 52,8% em 2002.
As mulheres e os jovens têm que conciliar o estudo com o trabalho. Quando não
retardam a constituição da família para estudar e se tornarem mais competitivos no
mercado de trabalho, tendem a se inserir em atividades informais para a complementação
da renda familiar, dentre elas o trabalho doméstico.
Relacionando esses dados aos relatos produzidos anteriormente, é necessário que a
sociedade faça uma reflexão sobre as formas desumanas de trabalho em que crianças e
adolescentes estão inseridas, pois as mulheres aqui mencionadas tiveram seu
desenvolvimento psíquico-social construído às expensas de uma infância e juventude
perdidas. Elas viveram grande parte de suas vidas oprimidas pelo excesso de deveres e
responsabilidades. A obrigação de trabalhar lhes retirou o sentido da vida, sem
oportunidades de terem exercido o direito de serem crianças embaladas no sonho de uma
adolescência feliz.
Então, a lágrima de Vitória, descrita no relato acima, pode ser tomada como uma
expressão simbólica que nos faça relembrar os Movimentos pelos Direitos Humanos, de
cujas ações resultaram documentos que refutam, condenam a exploração e a negligência em
123
relação às pessoas, principalmente crianças e adolescentes e que, sobretudo, recomendam
formas de ações políticas dos Estados signatários.
A lágrima de Vitória desce silenciosamente em busca de justiça, como as águas de
um rio, que, de uma maneira voraz, arrasta das suas margens aquilo que teimamos não ver,
como o sofrimento de milhares de crianças condenadas a terem os seus sonhos e suas vidas
ceifadas por uma miséria crescente que a própria sociedade produz.
De outras lágrimas como esta, como exemplo das atrocidades cometidas nos dois
conflitos mundiais do século passado, surge a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, e, com ela, outras Convenções no âmbito internacional, como a Declaração de
Viena sobre Direitos Humanos9, em que se afirma que a dignidade é a base comum de
todos os direitos Humanos. Estabelece também, como base para a Convenção sobre os
Direitos da Criança, a promoção dos direitos infanto-juvenis, quando alude, no Capítulo I,
item 21, (...) que o desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade dos meninos e
das meninas exige que eles cresçam em um ambiente familiar que merece, por conseguinte,
mais proteção.
Esses preceitos são primordiais para o ser humano e, para tanto, a Organização das
Nações Unidas elaborou a Convenção sobre os Direitos da Criança10, segundo a qual os
signatários estariam obrigados a respeitar e assegurar à criança e ao adolescente, sob sua
jurisdição, todos os direitos consubstanciados na mencionada Convenção.
No seu preâmbulo, preceitua o seguinte:
Convencidos de que a família, unidade fundamental da sociedade e
meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus
membros e, em particular das crianças, deve receber a proteção e
assistências necessárias para que possa assumir plenamente suas
responsabilidades na comunidade.
Reiterando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana
de Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica)11, reza que (...) só pode ser
realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas
9
Adotada consensualmente, em plenário, pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 25 de junho
de 1993.
10
Adotada pela Resolução n. L. 44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de
1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990.
11
Adotada e aberta à assinatura na Conferência especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em
San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992.
124
condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e
culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos.
Como a Declaração Universal dos Direitos Humanos deixou em aberto o advento de
novos direitos e garantias que foram estabelecidos com o aparecimento dos Pactos, nos
deteremos em uma breve análise deles.
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos12, além do direito à
autodeterminação, preceitua, no artigo 24 – 1., que
(...) toda criança terá direito, sem discriminação alguma por motivo
de cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, situação
econômica ou nascimento, às medidas de proteção que a sua
condição de menor requer por parte de sua família, da sociedade e
do Estado.
No âmbito do trabalho, foi criada, em 1919, a Organização Internacional do
Trabalho – OIT com o objetivo de se efetivar a idéia de internacionalização da legislação
social-trabalhista, para assegurar um mínimo de direitos irrenunciáveis aos trabalhadores e
promover a justiça social na busca da paz e harmonia universais. A OIT atingirá seus fins
de acordo com os meios dos quais dispõe, isto é, através de convenções e recomendações.
As Convenções são tratados internacionais abertos à ratificação pelos países
membros da Organização. Elas só geram obrigações àqueles países que as ratificarem,
dentro do princípio pacta sunt servanda, mesmo que esses países não tenham participado
de sua elaboração ou de sua aprovação. A aprovação se convenciona com a aceitação da
maioria de dois terços dos membros presentes à Conferência. Por sua vez, as
Recomendações não criam obrigações para os Estados participantes das conferências ou
instituições que o adotam. De acordo com o art. 19, §6º da Constituição da OIT, os Estados
membros têm a obrigação de submeter as recomendações ao órgão interno, que, de acordo
com as leis nacionais, tenha competência para legislar ou tomar outras medidas referentes à
matéria em pauta. Este órgão poderá transformar em lei todos os dispositivos, ou
simplesmente alguns, ou apenas tomar conhecimento da recomendação sem praticar
qualquer ato que lhe seja pertinente.
12
Adotado pela Resolução n. 2.200 – A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro
de 1966 e ratificado pelo Brasil em 24 de Janeiro de 1992.
125
Neste sentido, o trabalho infantil é tratado através da Convenção nº 138 e da
Recomendação 146, ratificadas pelo Brasil em junho de 2001. Especificam a Idade Mínima
para Admissão em Emprego. Entraram em vigor, no plano Internacional, em 19 de junho de
1976.
Há, ainda, a Convenção 182, complementada pela Recomendação 190, relativa à
Proibição das Piores Formas de Trabalho das Crianças e à Ação Imediata com Vista à sua
Eliminação, em 17 de junho de 1999 e que passou a vigorar na ordem internacional a partir
de 19 de novembro de 2000. Ambas foram aprovadas pelo Decreto Legislativo nº 178, de
14 de dezembro de 1999 e promulgadas pelo Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000,
passando a vigorar no Brasil em 2 de fevereiro de 2001.
Consideramos a Constituição de 1988 o esteio da legislação internacional para
efetivação dos direitos humanos, pois representa a transição do conservadorismo que tinha
como escopo o controle e a repressão das classes excluídas para a valorização e proteção da
pessoa humana, inserindo o Brasil nos sistemas internacional e interamericano de proteção
e promoção dos direitos humanos (Barros, 2003).
No direcionamento da Carta Magna de 1988, foi aprovada a Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, constituindo-se
no principal instrumento legal referente à proteção integral da pessoa humana, da criança e
do adolescente, ainda pouco conhecido em profundidade pela sociedade brasileira.
A partir desses mecanismos internacionais e nacionais de direitos humanos
elencados, a criança e o adolescente, como pessoas humanas, passaram a ter garantias de
seus direitos fundamentais com a proteção assegurada em relação à vida, à honra, à
liberdade, à igualdade, à integridade física e psíquica entre outros.
É importante notar que o Brasil, além de possuir todo arcabouço jurídico para a
proteção integral da criança e do adolescente, ratificou convenções internacionais com a
mesma finalidade. Mas efetivá-las tem sido o maior problema, pois se vivencia neste país
uma falsa realidade do Direito, não sendo considerado uma manifestação cultural de usos e
costumes sociais, que vise à realização dos princípios da Justiça Social.
Norberto Bobbio (1992) conceitua Direitos Humanos como aqueles que têm um
caráter histórico e estão em constante mutação. Surgem como necessidades que buscam
reconhecimento e proteção, representando a garantia de liberdades humanas contra poderes
126
instituídos com perfis autoritários. Neste sentido, falta à sociedade brasileira – que faz uso
do trabalho infantil doméstico – e ao Estado fazerem valer as Leis e, com elas, os Direitos
Humanos desses cidadãos, sujeitos em processo de desenvolvimento.
REFERÊNCIAS
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BARROS, L. V. de. O uso alternativo do direito como instrumento de defesa dos
direitos humanos no Brasil: o caso da Paraíba. 2003. II Maestría en Derechos Humanos
en el Mundo Contemporáneo, Universidad Internacional de Andalucía, Sede
Iberoamericana Santa María de La Rábida, Palos de la Frontera, Huelva, España, 2003.
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
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2000.
COTES, P.; FRANÇA, V. Crime e desemprego. Revista Época, n. 307, 5 de abril de
2004.
JORNAL CORREIO DA PARAÍBA. 43,2% dos paraibanos ganham apenas o mínimo,
diz IBGE. João Pessoa, 1 de maio de 2004.
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carcerária do país. João Pessoa, 17 de agosto de 2003.
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infantil doméstico e outras formas de exploração. São Paulo: Cortez, 2003.
WOLKMER, A. C. (Org.). Direito e justiça na América indígena. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1998.
127
CAPÍTULO 11
A REPRODUÇÃO FAMILIAR A PARTIR DA ATIVIDADE DE CATA DE LIXO:
UMA ALTERNATIVA DE SOBREVIVÊNCIA QUE ATRAVESSA GERAÇÕES
Maria Patrícia Mendonça de Albuquerque1
Valquíria Lira Oliveira2
Thereza Karla de Souza Melo3
INTRODUÇÃO
A gradativa deterioração nas condições de vida da família brasileira tem
impulsionado a atividade de cata de lixo enquanto estratégia de sobrevivência, transmitida
por várias gerações, quase como se representasse uma “herança” de família.
No presente estudo, buscamos nos aproximar da realidade das famílias que
desenvolvem atividades de cata de lixo no lixão de Campina Grande-PB, que, em sua
grande maioria, representam as famílias contempladas pelo Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil – PETI no município. Tais famílias participam das atividades sócioeducativas oferecidas pelo Programa através de reuniões e oficinas. Foi através destas
participações que constatamos o grau de parentesco entre os participantes e, com isso,
sentimos a necessidade de aprofundar o estudo sobre a reprodução dessa atividade no
contexto familiar através de gerações.
Segundo Neto (1994, 51), o trabalho em campo se apresenta como uma
possibilidade de conseguirmos não só uma aproximação com aquilo que desejamos
conhecer e estudar, mas também de criar um conhecimento partindo da realidade presente
no campo. Dessa forma, realizamos nosso trabalho de campo com metodologias específicas
para buscarmos essa aproximação com o nosso objeto de estudo.
1
Assistente Social, Coordenadora do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil de Campina Grande-PB,
no ano de 2004.
2
Contabilista, Educadora Social da Catedral de Nossa Senhora da Conceição em Campina Grande- PB.
3
Mestre em Serviço Social pela UFPB, Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade
Estadual da Paraíba.
128
A pesquisa foi realizada no período de dezembro de 2003 a março de 2004, tendo
como unidade de análise o lixão do Bairro do Mutirão, que está situado na alça sudoeste do
município de Campina Grande – PB. Após a delimitação do objeto de estudo, iniciamos a
fase de coleta de dados a partir de uma pesquisa bibliográfica na qual elegemos alguns
autores para subsidiar nosso estudo. Nesta fase, recorremos também a dados estatísticos
sobre o Bairro do Mutirão, onde se encontra localizado o referido lixão, para que
pudéssemos construir o perfil da área. Realizamos, ainda, observações sistemáticas no local
e apresentamos a nossa proposta de estudo às pessoas que ali se encontravam exercendo
atividades de trabalho.
Ainda na fase de coleta de dados, elaboramos um roteiro de entrevista semiestruturada que foi realizada junto a 10 (dez) pessoas catadoras de lixo no bairro do
Mutirão, sendo cada uma delas de um grupo familiar.
Na busca de consolidarmos nossas informações, utilizamos alguns instrumentos em
nossa pesquisa, tais como: o gravador, durante a realização das entrevistas, e a máquina
fotográfica para registro do nosso trabalho.
Na análise dos dados, , procedemos a um estudo das falas dos sujeitos pesquisados,
pois as entendemos como uma fonte rica de informações e significados que precisam ser
aprofundados na medida em que revelam muito de suas próprias vidas.
O COTIDIANO DAS FAMÍLIAS QUE SE REPRODUZEM ATRAVÉS DA
ATIVIDADE DA CATA DE LIXO NO BAIRRO DO MUTIRÃO NO MUNICÍPIO
DE CAMPINA GRANDE - PB
A família representa um elemento de referência natural e fundamental para a
formação de uma sociedade. Por isso, nosso estudo tomou como referência um grupo
familiar alvo de exclusão: trata-se de pessoas que se vêem obrigadas pelas condições
sociais e econômicas a se inserir em atividades de cata de lixo em áreas de lixão. Estas
atividades aparecem como ação produtiva das famílias em situação de risco e
vulnerabilidade social, sendo transformadas em meio de subsistência. Essas famílias
vivenciam um processo de desqualificação profissional e percorrem uma trajetória, na
maior parte dos casos, sem perspectiva de retorno, na qual são introduzidos gradativa, e,
cada vez mais, precocemente, outros membros da família.
129
Nossa pesquisa não se deteve apenas ao Grupo Familiar tido como o ideal, ou seja,
as famílias nucleares (formadas por mães, pais e filhos). Buscamos definir nosso estudo
tendo como referência concepções mais amplas, adequadas ao que se verifica na
contemporaneidade, como definem Guimarães e Calderón (1994):
•
Famílias com base em uniões livres, sem o casamento civil e religioso;
•
Famílias monoparentais com chefia feminina, decorrente de diversas situações
como divórcio, separação e/ou abandono do componente masculino;
•
Mães/adolescentes solteiras que assumem seus filhos;
•
Mulheres que decidem ter filhos dentro do que é conhecido como “produção
independente”, ou seja, sem o casamento e o convívio com o pai da criança;
•
Famílias formadas por casais homossexuais, entre os quais há os que, além de
morarem juntos, assumem os cuidados ou a guarda de um filho de relacionamento
anterior, sobrinho/parente ou uma criança em estado de abandono;
•
Famílias formadas por pessoas que convivem no mesmo espaço, sem vínculos de
aliança ou consangüinidade, mas com ligações afetivas de mútua dependência e
responsabilidade.
A família vem passando por muitas alterações nestes últimos anos. Alguns fatores
relevantes ocasionaram o que hoje é denominado como a crise da família moderna, como a
revolução industrial, que exigiu um maior número de mão-de-obra nas fábricas, o
movimento feminista, que veio alterar significativamente o mundo da mulher e o
movimento da juventude, que consolidou novos valores.
Na pesquisa que realizamos no lixão do Bairro do Mutirão em Campina Grande-PB,
pudemos constatar a situação de miséria e exclusão social em que vivem as famílias que
catam lixo para sobreviver. As pessoas que sobrevivem deste trabalho não o fazem por
opção, e sim por uma imposição do sistema capitalista que, ao buscar acima de tudo o lucro
e a acumulação, cria uma população que não encontra possibilidades de se inserir no
mercado de trabalho, como bem o coloca Graciani (2001, p. 12): “é o sistema capitalista
selvagem que cria lixões nas periferias das grandes cidades, onde se amontoam urubus,
animais e seres humanos, disputando as mesmas sobras do lixo das elites. ”
130
Como já ressaltamos anteriormente, os sujeitos da pesquisa foram 10 (dez) pessoas
que estavam realizando atividades de cata de lixo, sendo cada uma delas pertencente a um
grupo familiar.
Os sujeitos entrevistados nesta pesquisa se encontravam na faixa-etária dos 14 aos
74 anos, com grau de instrução em torno do ensino fundamental incompleto. Pudemos
verificar que 70% dos entrevistados não estudam, e aqueles que já haviam estudado ou
estavam estudando no momento não concluíram sequer a 4ª série do ensino fundamental.
Devido ao trabalho pesado que realizam, ao cansaço e à fadiga, estas pessoas não têm
condições de apresentar um bom desempenho nos estudos.
Os mais prejudicados são as crianças e os adolescentes que acompanham os pais na
atividade de cata de lixo, sobrando pouco ou nenhum tempo para irem à escola. Segundo
Lira (2003, p. 59),
(...) cresce assustadoramente o número de crianças e adolescentes
que, forçados pela realidade econômica e social, buscam na
inserção precoce no mundo do trabalho a fonte para sua
sobrevivência e de suas famílias.
O depoimento destacado a seguir comprova essa afirmação: “eu já estudei, fiz até a
4ª série primária, parei porque eu tinha que trabalhar. E, no final do dia, eu ficava muito
cansada com o corpo todo doído” (M.14 anos).
Para as crianças e adolescentes que têm o trabalho como a atividade central do seu
cotidiano, em virtude da necessidade de garantir a sua subsistência e a de sua família, o
processo de sociabilidade se altera profundamente.
De acordo com Silva (2002, p. 170),
a criança não é mais aprendiz de ofícios, mas é diretamente
envolvida no mundo do trabalho de forma pervertida e precária, em
prejuízo de outras instâncias de sociabilidade, como, por exemplo,
da escola, da vizinhança, da comunidade, da praça, do parque, da
cultura etc. Vai criando outros espaços e instâncias de
sociabilidade, como a vivência na rua, no mundo das drogas, no
mercado de trabalho informal e prematuro, no mundo da infração.
Enfim, ela se instala no mundo social de violências, perdendo a
possibilidade de viver o seu tempo da infância).
Para a autora, a inserção precoce no trabalho compromete a identidade do ser
criança, uma vez que as condições sócio-ambientais e históricas são responsáveis pela
131
diferenciação do adulto da criança. A “adultização” da infância, através do trabalho, ao
eliminar o limite entre a vida infantil e a vida adulta, também compromete o futuro do ser
adulto.
Constata-se que todas as pessoas que estão no lixão foram indicadas pelos próprios
parentes que já trabalhavam lá há mais tempo. Cerca de 90% das famílias moram em
pequenos casebres próximos ao lixão no Bairro do Mutirão. Esses casebres, doados pela
Prefeitura, não oferecem saneamento nem condições de comodidade devido ao número de
pessoas ser desproporcional ao tamanho da casa. Há famílias com 8 pessoas dividindo 2
pequenos cômodos.
Estes trabalhadores dedicam quase todo seu tempo à cata do lixo para conseguir
apenas uma renda mensal de R$ 100,00 ou, quando muito, R$ 200,00, menos que um
salário mínimo por mês. Eles remexem o lixo sem proteção de roupas ou calçados
adequados para a atividade, ficando, assim, expostos a todo tipo de contaminação.
Estes trabalhadores não recebem nenhuma orientação ao lidar com o lixo, contando apenas
com a sua própria experiência e a de seus parentes adquirida ao longo dos anos. A maioria
dos entrevistados está nesta tarefa desde a infância, não tendo conhecido outra
oportunidade de trabalho como constata a fala a seguir:
“Eu não sei fazer nenhuma outra atividade. A minha mãe é doente de
tanto trabalhar no lixo para criar a gente tudinho. E eu tô na mesma regra
dela. Aqui trabalha eu, meus primos e meus quatro filhos. Eu não tenho
outro meio de sustento. O jeito é cair no lixo para não morrer de fome.
Mas eu tô cansada, cansada mesmo de tanto trabalhar e não vê nada”
(E.30 anos).
De acordo com o depoimento, constata-se a falta de oportunidades a que estes
trabalhadores são relegados dentro do sistema capitalista excludente, criando uma massa de
pessoas que vivem das sobras e do lixo que esta sociedade produz.
Os dados também mostram que os catadores de lixo são discriminados na hora de
procurar emprego ou outra atividade para sobreviver. Isto fica evidente na fala de uma
entrevistada: “a gente só arruma trabalho se tiver uma pessoa para indicar, porque, se a
gente for procurar sem indicação, a pessoa diz que nós vamos para roubar” (M.47anos).
Outro aspecto a destacar é que estes trabalhadores dedicam quase todo seu tempo ao
lixão e, com isto, não resta tempo para diversão. Quando não estão no lixo, estão cuidando
132
dos afazeres de casa e da família, particularmente as mulheres. Como podemos constatar
com a fala de uma catadora de lixo: “eu não tenho ‘divertição’. Minha ‘divertição’ dia de
domingo é lavar roupa, passo a semana no trabalho e no domingo lavo roupa” (E.30anos).
Uma das conseqüências deixadas pela atividade da cata do lixo são as doenças. 80%
dos entrevistados dizem que no final do dia sentem dores nas costas, nas pernas e cansaço
pelo corpo todo. Isto porque passam o dia expostos ao sol, aos riscos biológicos, aos riscos
químicos e correndo atrás dos carros que despejam o lixo.
Todos os sujeitos pesquisados sonham em deixar esta atividade. Mas são poucas as
perspectivas de mudança para estas pessoas, como podemos observar na fala a seguir: “ (...)
eu busco a sobrevivência no lixão por falta de oportunidade e também porque o
desemprego é grande demais. E hoje para conseguir um emprego necessita de muito
estudo” (J.26 anos).
Observamos que a possibilidade de essas pessoas se inserirem no mercado de
trabalho está cada vez mais difícil, não apenas pela falta de qualificação profissional, mas
também pelo atual estágio do modo de produção capitalista que, com a denominada
reestruturação produtiva, tem diminuído o número de postos de trabalho. Logo, se está
difícil a inserção no mercado de trabalho daqueles que possuem qualificação profissional, o
que será daqueles que não a possuem?
Os próprios lixões já são, na atualidade, espaços muito disputados, visto que para lá
converge um número cada vez maior de pessoas que vislumbram alguma possibilidade de
garantir a subsistência através da cata de lixo. Os atuais catadores demonstram, inclusive,
uma preocupação a esse respeito, como podemos observar a seguir: “ (...) até aqui no lixão
tá ruim para ganhar dinheiro. Aqui tem gente demais, vai chegar o tempo de não se poder
pegar uma lata para vender. E nós vamos passar necessidade do jeito que tá ” (E.30anos).
Ainda segundo a entrevistada, existe uma Cooperativa dos Catadores de Lixo que só
serve para comprar o material coletado. De acordo com a definição do Dicionário Aurélio,
Cooperativa é uma sociedade ou empresa constituída por membros de determinado grupo
econômico e social, que objetiva desempenhar em benefício comum uma determinada
atividade econômica.
Partindo deste princípio, as Cooperativas devem buscar, em primeiro lugar, os
interesses e o bem-estar do indivíduo e da família, acima dos interesses econômicos,
133
tecendo uma rede de solidariedade entre seus membros associados para lhes garantir
melhores condições de vida. Isto, de acordo com os entrevistados, não corresponde à
realidade da cooperativa existente no lixão do Bairro do Mutirão, como afirma um exassociado: “ (...) aqui nós não temos garantia nenhuma, se adoecer ou se machucar eles não
ajudam não, a gente tem que se virar ” ( J.26 anos).
As pessoas se associam às cooperativas com a expectativa de obter melhorias nas
condições de vida e de trabalho. No entanto, a experiência destes catadores não tem sido
satisfatória, haja vista que os mesmos continuam vivendo e trabalhando sem garantias e
sem saber direito como funciona o sistema, como se observa a seguir:
“(...) eu sou sócia da cooperativa porque falaram que tudo ia melhorar, mas faz
dois anos que eu sou associada e até agora nada melhorou. Piorou tudo! Que eu
saiba quem é sócio de uma cooperativa tem direito de saber o que se passa lá,
mas aqui só quem sabe é quem tá lá na balança (local onde é pesado o material
catado no lixo). A gente mesmo não sabe de nada” (M. 47anos).
A partir destes últimos depoimentos, percebemos as precárias condições de trabalho
daqueles que atuam no lixão do Bairro do Mutirão. Essa precariedade no âmbito do
trabalho repercute na vida de crianças, adolescentes, jovens, adultos e, até mesmo, de
idosos que sobrevivem a partir da atividade de cata de lixo, que se consolida para gerações
de famílias como o único meio de garantir sua sobrevivência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Historicamente, o modelo de desenvolvimento implantado no país tem privilegiado
os interesses do grande capital em detrimento de uma distribuição da riqueza nacional de
forma mais igualitária. Ao longo dos anos, esta opção tem contribuído para a construção de
uma sociedade marcada por grandes disparidades sociais.
Neste contexto, as classes menos favorecidas sofrem pela ausência de políticas
públicas que lhes proporcionem melhores condições de vida e de trabalho. Este quadro se
agravou nos últimos anos em que o sistema capitalista, para tentar reverter suas crises
internas, tem reorganizado as relações de trabalho e a própria produção com a chamada
reestruturação produtiva, que tem diminuído as oportunidades de trabalho em todo o mundo
capitalista. No Brasil, com suas desigualdades sociais históricas, a situação se torna ainda
134
mais preocupante para as classes menos favorecidas que, além de não disporem de uma
qualificação profissional adequada às exigências atuais da acumulação capitalista, vêem
agora diminuir os postos de trabalho.
A partir da pesquisa por nós realizada, identificamos vários tipos de constituições
familiares, compostas por pais, filhos, enteados, cunhados, sobrinhos e amigos. E, de fato,
podemos inferir que a reprodução das várias gerações de famílias, através da cata de lixo,
se dá por falta de oportunidade de trabalho ou de uma outra atividade que garanta uma
renda familiar.
Conforme o que nos foi transmitido pelos grupos familiares estudados, que, em sua
maioria, constituem arranjos familiares, pudemos identificar que as famílias vivem no seu
cotidiano o tipo de família que foi possível construir no seu processo de vida, levando em
consideração seus valores, suas carências sociais e econômicas. Os mesmos não
demonstraram frustrações em estar desenvolvendo e reproduzindo esta forma excludente de
atividade, mas mostram claramente as insatisfações e o sentimento de culpa de estarem
passando para seus filhos estas condições sub-humanas de trabalho.
No entanto, cabe ressaltar que, mesmo diante de uma realidade adversa, os mesmos
não perdem o direito de sonhar com melhores condições de vida, que possam ser
vivenciadas por todos aqueles que constituem o grupo familiar.
Podemos observar que, mesmo sendo os indivíduos sendo sujeitos de direitos, os
meios que garantem o exercício da sua cidadania continuam, na sua essência, negados, uma
vez que não estão sendo viabilizados os direitos ao trabalho e salário justo, à moradia, à
saúde, à educação, ao lazer, entre outros.
Enfim, enquanto a sociedade não tiver garantidos e assegurados os direitos sociais,
teremos sempre a presença de famílias inteiras trabalhando na cata de lixo, garantindo a
reprodução familiar a partir deste tipo de trabalho.
Como afirma Paulo Freire, citado por Lodi (2004),
(...) a sociedade é aquilo em que acreditamos. Se acreditamos numa
sociedade mais igual, onde as desigualdades sejam motivo de
crescimento mútuo e não de exclusão e seleção, com certeza
podemos, através de nossa responsabilidade como cidadãos e
principalmente como educador, viver em um mundo melhor e mais
humano (p. 10).
135
REFERÊNCIAS
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BLOCH, D.; ATANASSLO, F.; MAZZOLI, M. Criança, catador, cidadão: experiências
de gestão participativa do lixo urbano. Recife: Unicef, 1999.
CALDERÓN, A . I.; GUIMARÃES, R.F. Família: a crise de um modelo hegemônico. In:
Revista Serviço Social e Sociedade, Ano 15, n. 46, dez., p. 21-34, São Paulo: Cortez,
1994.
DICIONÁRIO AURÉLIO - Século XXI. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
GRACIANI, M. S. S. Pedagogia social de rua: 4. ed. São Paulo: Cortez,2001.
LIRA, I. C. D. Adultização da Infância: o cotidiano das crianças trabalhadoras no mercado
Ver-o-Peso em Belém do Pará. In: Serviço Social e Sociedade, n. 69. São Paulo: Cortez,
2002.
LIRA, T. S. V. .Exclusão social e trabalho precoce: o cotidiano dos adolescentes
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LODI, Ivana G. Tornar possível o ainda impossível. Revista Mundo Jovem: um jornal de
idéias. 2004.
NETO, O. C. O Trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, M. C. De S
(Org.). Pesquisa social: teoria método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994. Coleção
Temas Sociais.
136
CAPÍTULO 12
PAIS DESEMPREGADOS: CRIANÇAS TRABALHANDO? A RELAÇÃO ENTRE
DESEMPREGO DOS PAIS E TRABALHO PRECOCE
Maria do Socorro Santos Neves1
Maria de Lourdes Alves Rodrigues2
Anísio José da Silva Araújo3
INTRODUÇÃO
O presente trabalho procurou apreender uma dupla realidade precarizada, em suas
similaridades e diferenças: primeiramente, a situação de pais, crianças e adolescentes,
catadores de lixo reciclável do acampamento Jorge Luiz situado no complexo habitacional
do Valentina de Figueiredo, em João Pessoa/PB. Uma situação, portanto, de extrema
precarização, de instabilidade, porque sem um “chão” estável para viver e com uma ligação
muito periférica com o mercado capitalista. O segundo caso abrange beneficiários do
Programa de Geração de Emprego e Renda do Núcleo de Defesa da Vida - NDV,
localizado igualmente no Valentina de Figueiredo, nesse caso um público de pessoas que
buscam uma organização coletiva em face da situação de desemprego em que se
encontram.
Nos dois casos, o nosso interesse foi investigar os vínculos entre desemprego e
trabalho precoce. Esta pesquisa foi realizada como parte das exigências do Curso de
Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural, promovido pela Universidade Federal da Paraíba, através do Grupo
1
Aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante do Núcleo de Defesa da Vida Dom Hélder Câmara.
2
Aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante da Associação Comunitária Planalto Boa Esperança.
3
Doutor em Ciências/ENSP/FIOCRUZ; Professor Adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Social da UFPB, Coodenador do Grupo de Pesquisas Subjetividade e TrabalhoGPST/UFPB.
137
de Pesquisas Subjetividade e Trabalho (GPST) e do Setor de Estudos e Assessoria a
Movimentos Populares (SEAMPO).
Como objetivo geral, estabelecemos o seguinte: verificar se existe relação entre
desemprego dos pais e a inserção precoce no mundo do trabalho. E como objetivos
específicos:
•
Verificar as condições em que vivem as famílias entrevistadas;
•
Verificar a existência de trabalho precoce e em que medida o desemprego
contribui nesse sentido;
•
Identificar as atividades e as condições em que o trabalho precoce é
desenvolvido;
•
Verificar a existência de apoio governamental/institucional para retirar as
crianças do trabalho precoce;
•
Analisar em que medida o trabalho precoce interfere na saúde, na vida escolar e
em outras dimensões da vida das crianças;
•
Contribuir com subsídios para elaboração de políticas públicas voltadas à
problemática do trabalho precoce.
O grupo pesquisado foi constituído de pais desempregados, crianças e adolescentes
do Acampamento Jorge Luís e de integrantes do Núcleo de Defesa da Vida no Valentina de
Figueiredo. O tipo de abordagem que privilegiamos na pesquisa foi a qualitativa, porque
nos interessava entender a relação entre desemprego e trabalho precoce a partir do ponto de
vista dos pais e das crianças e adolescentes trabalhadores precoces. Fizemos uso da
entrevista semi-estruturada a partir de roteiros adequados aos pais e às crianças e
adolescentes trabalhadoras.
No tópico a seguir, apresentamos os resultados segundo os dois campos de pesquisa
escolhidos. Embora o conteúdo das entrevistas levante temas comuns, achamos por bem
apresentá-las em separado haja vista representarem realidades com características
peculiares.
138
O ACAMPAMENTO JORGE LUIZ
Em julho de 2002, cerca de 360 famílias, que envolviam aproximadamente 1.500
pessoas, ocuparam um terreno público municipal situado no Planalto Boa Esperança, em
João Pessoa, Essas famílias, integrantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia
(MNLM), são, na sua quase totalidade, compostas de desempregados. Foi assim que,
usando madeira e lona, começaram a levantar seus barracos para não ficarem ao relento,
sujeitos a sol e chuva. Instalados dessa forma, procuraram descobrir meios de sobrevivência
e encontraram na cata do lixo reciclável essa alternativa. Tal atividade, como constatamos
em nossa pesquisa, envolve todo o núcleo familiar, incluindo, obviamente, as crianças e os
adolescentes. Como os rendimentos são reduzidos, há a necessidade de que a família como
um todo participe do trabalho. É, portanto, a soma desses pequenos rendimentos que
assegura uma existência precária, cheia de privações. Entretanto, sem o concurso da
família, a situação seria ainda mais grave.
Entrevistamos cinco famílias, mais especificamente três mulheres, dois homens,
cinco crianças (dois garotos e três garotas) e três adolescentes (duas jovens e um rapaz).
Todas essas famílias moram em situação precária. Como é previsível numa situação de
acampamento, não se alimentam corretamente, o que explica um alto nível de desnutrição,
que se enxerga a olho nu. Em média, cada família tem de quatro a cinco filhos e todos
trabalham precocemente para ajudar nas despesas da casa. Algumas dessas crianças
estudam, outras não. O cansaço e a falta de ânimo, efeitos de um trabalho extenuante, são
as justificativas apresentadas para não freqüentarem a escola.
Trabalhando aproximadamente cerca de nove horas por dia, essas crianças e
adolescentes juntam garrafas, papelão, latinhas, entre outros materiais, e ganham em torno
de 15 a 20 reais por semana, contribuição que destinam aos pais para ajudar na manutenção
da casa.
Nessa situação, encontramos R.D.C, de 11 anos, natural de João Pessoa PB, e que
trabalha desde os sete anos para ajudar os pais, desempregados há bastante tempo. Abaixo
um trecho de seu depoimento:
“(...) comecei a trabalhar na feira com minha mãe, debulhando feijão
verde, para ajudar no sustento da família, pela necessidade que se
encontra os meus pais. Também vendo cocada, durante a semana, cato
139
lixo e só nos finais de semana que vou para feira. Juntando, ganho de 15 a
20 reais por semana, já dá para comprar alguma coisa, exemplo. comida.
Não estudo porque estou com um problema na justiça, o meu pai me
registrou só em nome dele, e minha mãe agora está resolvendo isso.
Quem já viu a pessoa não ter mãe?. De não ter pai é até mais fácil, mas de
não ter mãe? Ah! isso não. Eu quero estudar para aprender a ser um
homem de bem. Quando eu crescer serei um homem de bem e respeito.
Sei que a vida é dura, não é fácil, mas temos que enfrentar”.
Nesse depoimento, percebemos com evidência a inserção precoce no trabalho que,
por sua vez, envolve todo o núcleo familiar e lança mão de uma variedade de meios de
sobrevivência. A justificativa para não estudar, além do obstáculo real apresentado, é
reveladora de uma outra situação: a ascendência da mulher à posição de principal
provedora e de chefe de família, situação cada vez mais freqüente na atualidade. Admite-se
a possibilidade de que, no registro civil, possa não constar o nome do pai que, mais
frequentemente que as mulheres, abandona o núcleo familiar. Em geral, é sobre os ombros
das mulheres que recai a gestão familiar. E esse caso apenas confirma o que as estatísticas
constatam. Afinal, “onde já se viu não ter mãe?”.
“É assim que a gente vive aqui. Um dia Deus olha para nós, sou
evangélico, e acredito em Deus, ele vai mudar a nossa história. Cato lixo
porque preciso, é o nosso meio de sobreviver, não recebo ajuda dos
governantes, gostaria de receber bolsa escola ou bolsa família, minha mãe
já foi várias vezes, mas não conseguiu”.
No depoimento acima, uma outra face do problema é revelada: o abandono por parte
do poder público. Não obstante toda a campanha e as políticas governamentais no sentido
da erradicação do trabalho precoce, não se consegue atingir a todos e essa população é
testemunha disso. À parte as opções religiosas de cada um, que não nos cabe aqui
questionar, o fato é que a ausência de suportes sociais conduz as pessoas a depositar na
religião a única esperança de melhoria das condições de vida.
A trajetória de vida de E.C.T., descrita abaixo, traduz a vida de dificuldades de uma
família pobre de um acampamento urbano, infelizmente uma história compartilhada por
muitos brasileiros e brasileiras pobres.
“Moro no acampamento Jorge Luiz no Valentina... . No ano de 1985 saí
da casa de minha mãe, para viver minha vida, eu tinha 15 anos e queria
ser independente. Fui trabalhar em casas de famílias, sem receber salário,
140
mas precisava trabalhar, pois só minha mãe pra sustentar minha irmã e eu,
não dava, sofri muito nas casas dos outros. Aos 17 anos engravidei, tive
uma linda filha e tive que ficar desempregada, porque muitas casas não
aceitaram empregadas com os filhos. Então comecei a fazer panos de
prato de sacos de farinha. Aos 19 anos tive meu filho que hoje está com
quase 12 anos. Agora os governantes não dão maiores oportunidades para
pessoas com 30 anos ou mais. Então vivi de aluguel. No ano de 2002
houve uma ocupação como essa que vivo até hoje aqui no Valentina. Nós
somos bastante discriminados porque vivemos em um acampamento. Não
conseguimos nem uma faxina. Eu vejo tantos galpões desativados ali no
bairro das indústrias, eu acho que os senhores governantes deveriam
investigar os galpões e abrir mais portas de emprego, tenho certeza que
iria diminuir a fome e a marginalidade do nosso Estado A Paraíba iria
aumentar a produtividade e todos ou muitos iriam viver bem melhor sem
ter que botar seus filhos pra trabalhar. Infelizmente hoje meu filho tem
que separar uma hora do dia para trabalhar comigo procurando
reciclagem, apesar de que eu acho um absurdo, mas é que tem dias que
não temos o que comer. E nas ruas passamos pela padaria e muitas vezes
ganhamos pão, leite. Nas feiras livres nós também ganhamos verdura,
frutas, ossos que trazemos pra casa e nos alimentamos. Pois é só isso que
estamos precisando depois do desejo de ter nossas casas, pois se tivermos
trabalho com certeza nossos filhos não estariam correndo risco de saúde.
Pelo menos ele andando um pouco comigo e estudando não vai ter tempo
para ver a coisa que mais assombra (drogas), que parece não ter mais jeito
de parar ou pelo menos controlar, pois estamos rodeados de pessoas que
não tem do que viver e terminam se envolvendo no submundo do crime,
tendo de vender drogas e isso eu não quero pro meu filho”.
O drama de E.C.T. mereceria um longo comentário. Entretanto, vamos nos deter em
alguns aspectos que têm íntima relação com a nossa temática. Em primeiro lugar, a
condição de empregado, com carteira assinada é uma experiência muito distante na vida
dessas pessoas e, em muitos casos, nunca existiu verdadeiramente. A concepção de
emprego para essas pessoas, portanto, não é jamais aquela do emprego regular, com salário
fixo, batendo na conta mensalmente, nos moldes daquilo que Castel (1997) denominou de
sociedade salarial, ou seja, uma condição social em que se associava o direito ao trabalho e
a proteção social (o chamado Estado de Bem Estar Social). Em verdade, o Brasil nunca
experimentou tal situação. Em segundo lugar, o trabalho doméstico é a alternativa que
geralmente se apresenta às mulheres. A qualificação para tal atividade profissional é
conquistada ao longo da vida, no lar, assumindo as tarefas “naturalmente” destinadas às
mulheres. Também nesse tipo de trabalho, os rendimentos são baixos e a carteira assinada é
141
uma condição rara, especialmente se levarmos em conta que os patrões e as patroas dessa
população se situam numa classe social pouco acima da dela.
Um fator agravante desse quadro é o fato de morar num acampamento, razão de
discriminação e, portanto, de restrição no leque já bastante restrito de possibilidades de
trabalho. Um outro aspecto apontado nesse depoimento: a recessão, a diminuição nos
postos de trabalho é uma realidade próxima, da qual os barracões fechados dão testemunho.
A esperança da reativação do parque industrial e, portanto, da possibilidade da reabertura
de postos de trabalho e, junto com isso, da dignidade de que o trabalho é portador, é um
horizonte sempre presente, embora os sinais de que isso possa ocorrer sejam tímidos ou
quase inexistentes. A condição de vida que decorre disso constrange a incorporar os filhos
na busca de um rendimento que, pelo menos, os poupe da morte precoce. Uma vida,
portanto, focada no presente, sem grandes horizontes. Aliás, esse “apego” ao presente é um
dos traços do mundo do trabalho hoje. A instabilidade, a insegurança, a impossibilidade de
se projetar um futuro, tem conduzido as pessoas a desenvolver esta estratégia: fixar-se no
presente, “garantir o pão de cada dia”. O futuro é algo que perde o sentido não apenas para
as populações que estão fora do mercado, vivendo uma radical situação de instabilidade
(como é o caso aqui), mas também para aqueles que estão inseridos no mercado, vivendo
sob a ameaça constante da perda do emprego.
A consciência das perdas que a criança tem ao participar do trabalho familiar é
evidente, especialmente na saúde. O medo das drogas também é uma constante. O estudo, a
proximidade dos pais, ainda que seja no trabalho, parecem ser o antídoto contra essa
possibilidade.
“Por aqui não há emprego, não recebo ajuda de nenhum dos governantes,
essa bolsa família e bolsa escola, PETI etc. como se faz para conseguir
isso? Será que não somos filhos de Deus? O governo não olha para nós,
somos discriminados por sermos tão pobres e miseráveis”.
“R, meu filho de 9 anos, me ajuda muito catando lixo, é muito pequeno,
não sabe fazer outra coisa, é triste e já com uma responsabilidade tão
grande, de me ajudar na responsabilidade da casa, para não passar fome.
Ele estuda à tarde, porém não quer mais ir à escola pelo cansaço e a
fadiga quando chega em casa; isso é horrível não ter ânimo pra nada”.
142
Nas falas acima, se repete a queixa pela inexistência de ajuda governamental que,
embora não resolvesse, minoraria os problemas enfrentados e, talvez, permitisse a retirada
da criança do trabalho precoce. A dor dos pais ao acompanhar o roubo da vida dessas
crianças que trabalham precocemente é uma tônica nos depoimentos. Constatar o peso que
o trabalho representa para as crianças, com graves conseqüências físicas e psicológicas,
causa tristeza ao mesmo tempo em que fazem emergir a impotência frente à realidade. A
fadiga, a falta de ânimo são as resultantes de uma vida onde pouco se sabe fazer além de
catar lixo, uma pobreza material e afetiva escandalosa. Não obstante essas constatações,
encontramos crianças e adolescentes que, apesar das condições em que vivem, ainda
projetam um futuro e envidam esforços no sentido de alcançá-lo. A mãe jura que as filhas
não trabalham catando lixo, com medo de o Conselho Tutelar não levar as filhas, disse ela
na entrevista.
“Depois de muita conversa falou sobre a dificuldade da vida que levam
para não passar fome. Dona Maria das Dores não recebe nenhuma ajuda
do governo; a única renda é do marido que faz biscate, consertando
eletroeletrônicos, ganhando de 20 à 25 reais por semana para sustentar a
família de sete. As filhas ajudam com o lixo de reciclagem. Nos dias que
o caminhão passa elas vão às ruas logo cedo para fazer a cata”.
Em outra entrevista, uma das mães reluta em dizer que as filhas trabalham, temendo
uma medida extrema do Conselho Tutelar. No decorrer da conversa, entretanto, acaba
revelando a situação de trabalho precoce em sua própria casa. Mais uma vez, não há ajuda
governamental, fato que, juntamente com os baixos rendimentos, explicam o apelo ao
trabalho dos filhos na cata do lixo.
“Desempregado, cato lixo de reciclagem, nas ruas e nas residências, com
mulher e filho de 4 anos. Agente sai nas ruas fazendo esse trabalho pra
sobreviver...pois a vida é muito sacrificada para ganhar o pão. Há muito
tempo eu não sei o que é trabalhar com carteira assinada, pois não tem
emprego e o trabalho que tem é esse, catar lixo”.
Mais uma vez, a experiência de um emprego regular é longínqua e catar lixo é o que
resta dentre as alternativas de sobrevivência. Esse aspecto é de tal modo relevante que
poderíamos alterar a questão que nos mobiliza nessa pesquisa para as relações entre
ausência de trabalho e renda e trabalho precoce. O foco é, portanto, a falta de trabalho ou os
143
parcos rendimentos que os poucos trabalhos existentes facultam, fatores que estabelecem
uma clara ligação com o crescimento do trabalho precoce, não obstante toda a campanha
governamental. De fato, as condições sociais trabalham no sentido contrário ao dos
programas governamentais de erradicação do trabalho precoce, já que cotidianamente são
despejadas do mercado de trabalho levas de trabalhadores que, por sua vez, engrossam as
populações das favelas e são constrangidos a fazer toda a espécie de malabarismos para
sobreviver. A política econômica e os rumos que o capitalismo vem tomando são os fatores
que estão na raiz do drama social do trabalho precoce e, sem uma atuação nesse sentido,
teremos indefinidamente que multiplicar os esforços para conter o avanço do trabalho
precoce. Ao colocar as questões nesse plano, não queremos desconsiderar todas as
conquistas no plano jurídico-institucional até o presente obtidas no tocante aos direitos das
crianças e adolescentes, porém, sem atacar o foco da questão, estaremos, talvez, diante de
um drama social que se agiganta muito além de nossas possibilidades de enfrentamento.
O NÚCLEO DE DEFESA DA VIDA DOM HÉLDER CÂMARA
O Núcleo de Defesa da Vida Dom Hélder Câmara é uma entidade civil sem fins
lucrativos e foi criada em 1997, sendo uma pessoa jurídica de direito privado, de duração
indeterminada, com sede e foro na cidade de João Pessoa. Tem como objetivo lutar pelo
resgate dos direitos humanos, o que compreende a busca por condições básicas de
cidadania, de uma vida digna para a população periférica, através de convênios junto aos
órgãos governamentais para implementação de programas sociais, além de reivindicar
direitos garantidos na legislação Municipal, Estadual, Federal e nos pactos internacionais
de proteção aos direitos humanos.
Na caminhada de sete anos, o N.D.V. tem travado uma luta contra o desemprego e
os baixos salários, criando grupos de geração de emprego e renda, pois acredita que é por
conta desses fatores que cresce o número de crianças e adolescentes trabalhando
precocemente. Tal compreensão, antes de ser teórica, nasce da própria realidade dos
entrevistados, pessoas atingidas pelo desemprego e sobrevivendo de parcos rendimentos a
partir de atividades informais.
A maior parte dos entrevistados são mulheres, em sua maioria chefes de família,
com uma média de 2 a 5 filhos. Realizam diferentes atividades, tais como manicure,
144
vendedoras, garçonetes, entre outras, numa jornada de trabalho em tempo integral. Dos
entrevistados, nenhum recebe ajuda governamental e a renda familiar varia de R$ 80,00 a
R$ 120,00 por mês.
Das adolescentes que trabalham, todas se sentem prejudicadas nos estudos e
apresentam problemas de saúde. As mães, por sua vez, revelaram que, se tivessem
condições, não deixariam seus filhos trabalharem para ajudar no sustento da casa. As
famílias engajadas no Grupo de Geração de Emprego e Renda esperam uma oportunidade
de melhorar sua renda familiar e assim ter uma vida mais digna.
O presidente do N.D.V. afirma que o trabalho infanto-juvenil tem aumentado
devido ao crescimento do desemprego. Os pais usam os filhos em pequenos bicos ou
permitem que os mesmos perambulem pelas ruas fazendo outras atividades (serviços) para
não morrerem de fome. Existem também casos de pais alcoólatras que obrigam seus filhos
a trazerem para casa dinheiro ou alimentos, sob pena de receberem punições.
Uma outra constatação: os programas do governo não cobrem a demanda das
famílias desempregadas e essa ausência do Estado tem aumentado o número de crianças em
situação de risco.
Num dos depoimentos, G.V.F. fala a respeito de seu filho, que trabalha numa
lanchonete numa jornada diária de 5 horas e vem apresentando problemas de saúde (no
punho da mão direita) que, conforme avaliação médica, decorre do trabalho. Apesar disso,
continua trabalhando, pois necessita complementar a renda familiar. E não obstante as
queixas de cansaço e estresse, a mãe prefere vê-lo trabalhando, pois assim ele se vê
imunizado contra os perigos da rua. Aliás, em várias falas, vemos essa idéia presente: a de
que o trabalho (ainda que precoce) é um antídoto contra más companhias, drogas, entre
outros perigos a que crianças e jovens estão expostos, sobretudo em ambientes sociais de
extrema carência.
“Graças a Deus trabalho com a minha mãe em uma lanchonete das 7:00
da manhã às 12:00 e já fazem cinco anos que ele trabalha. Ele sai do
trabalho direto para o colégio, chegando em casa só à noite e ainda tem
trabalhado na igreja. Ele é muito católico, graças a Deus. Apresentou um
problema no punho da mão direita e o médico diz ser proveniente do
trabalho. Mesmo assim ele continua trabalhando, pois o que eu ganho
sozinha não dá para vivermos, a renda de nós dois é apenas 280,00 reais
por mês. Ele diz estar se sentindo muito cansado e anda muito estressado.
145
Mesmo com esses problemas, prefiro ele trabalhando para me ajudar do
que estar na rua aprendendo o que não deve”.
Em outra entrevista, identificamos P.S.F., 15 anos, natural de João pessoa,
trabalhando como office boy e garçom na lanchonete da avó, sem carteira assinada, há pelo
menos cinco anos, com uma jornada de 5 horas diárias, o que o obriga a sair bastante cedo
de casa. Também nesse caso, verificamos efeitos negativos sobre a saúde em função do tipo
de trabalho. Assim se expressa esse jovem:
“É muito cansativo, pois saio do trabalho direto para o colégio. Acho bom
porque trabalho com minha avó, mas acho ruim porque é muito
estressante. Às vezes durmo na sala de aula, chegando a levar faltas
porque não escuto a chamada mesmo estando na sala de aula. Trabalho
porque preciso ajudar minha mãe, pois a mesma não pode dar o que
preciso. Se minha mãe tivesse condições eu só fazia estudar, pois gosto
muito. Na saúde existe um problema no osso da minha mão por conta da
profissão de garçom, pois faço lanches, carrego bandejas, lavo louça, etc”.
A respeito da situação de desemprego e dos baixos salários, comuns a maioria dos
que residem nas áreas investigadas, P.S.F. assim se coloca:
“Quanto ao desemprego e ao baixo salário, eu entendo. É porque a
tecnologia vem tomando o nosso lugar de trabalho, também a falta de
qualificação das pessoas e também a falta de compromisso dos
governantes que não mudam essa situação, se elegem só para roubar
nosso dinheiro. Por isso o nosso salário é tão baixo e o desemprego é tão
grande, é o que eu entendo”.
O depoimento acima mostra uma clara consciência de alguns determinantes dos
altos índices de desemprego que atingem não apenas o Brasil, mas todo o mundo, embora
com matizes diferenciados. Em primeiro lugar, a inovação tecnológica é apontada como a
primeira das razões da reduzida oferta de empregos. De fato, o desemprego tecnológico é
uma realidade inescapável no mundo hoje, embora outras razões figurem no complexo
diagnóstico do desemprego hoje. A qualificação é outro aspecto apontado. Obviamente,
numa conjuntura de desequilíbrio entre a oferta e a procura, os critérios seletivos tornam-se
cada vez mais rigorosos e, embora a qualificação não assegure uma inserção automática no
mercado de trabalho, é sem dúvida um fator de exclusão. As classes pobres, privadas da
educação formal e profissional, encontram-se, desse modo, em desvantagem flagrante
frente a outros extratos populacionais. Por último, a responsabilidade é depositada sobre o
146
Estado que se omite na promoção de políticas de geração de emprego e renda, o que
reduziria o drama dessas populações. Ao invés disso, prefere seguir os preceitos de
organismos internacionais que impõem um determinado tipo de política econômica que
ignora os dramas sociais da população.
A realidade que encontramos nas famílias dessas duas localidades apresenta
situações muito semelhantes: pais há tempo excluídos do mercado formal de trabalho,
sobrevivendo na informalidade e que, para garantir uma renda familiar mínima, são
forçados a incorporar seus filhos no trabalho. Embora conscientes dos prejuízos que essa
convocação precoce acarreta em vários aspectos da vida de seus filhos, não enxergam outra
alternativa frente a um mercado que oferece cada vez menos vagas e com um grau de
exigência cada vez maior. Por outro lado e apesar de enxergarem os males que a inserção
precoce acarreta, preferem ver seus filhos trabalhando, porque assim eles são poupados dos
perigos presentes nas ruas. A ausência do Estado com os seus programas governamentais é
uma constante nas falas. Poucos são os que fazem referência a algum tipo de ajuda
recebida, o que, sem dúvida, torna mais inglória a luta pela erradicação do trabalho precoce.
Com certeza, nesse ponto, localizamos um aspecto imediato sobre o qual se pode
desenvolver uma ação reivindicatória dirigida às instâncias do poder público responsáveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intenso processo migratório rural encontrou, durante um certo tempo, espaços de
inserção econômica nos grandes centros urbanos. Primeiro na construção civil, depois na
indústria e nos serviços. No entanto, os anos 80 e 90 produzem uma brusca modificação
nesse contexto. As empresas, na fome por maiores lucros, passam a intensificar a
introdução de inovações tecnológicas e organizacionais, poupando inúmeros postos de
trabalho, o que conhecemos na literatura pelo nome de reestruturação produtiva. A
globalização econômica, através da presença de grandes conglomerados internacionais,
desestrutura a indústria nacional, agravando ainda mais o historicamente irregular mercado
de trabalho brasileiro. As políticas neoliberais, de redução do papel do Estado, por sua vez,
induzem a um refluxo nos dispêndios em políticas sociais e despeja, como fruto das
privatizações, levas de trabalhadores nas ruas. Esse quadro de transformações eleva o
desemprego à posição de problema mundial, com matizes mais negros no caso brasileiro,
147
que, de longa data, já convive com o desemprego estrutural e um mercado informal
importante.
Em paralelo, cresce a consciência social dos males que envolvem o trabalho
precoce, o trabalho escravo e outras chagas contemporâneas. Fruto disso, todo um aparato
jurídico-institucional, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, é construído
com vistas à garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Não obstante, como já
dissemos, a conjuntura social trabalha no sentido contrário, exigindo, por parte dos
movimentos sociais, muito mais vigor na luta contra o trabalho precoce e a favor de uma
vida digna para crianças e adolescentes. Apesar dos resultados alcançados e que nos
impulsionam adiante na luta, ainda são enormes os desafios a serem transpostos e,
certamente, isso não poderá ocorrer sem uma profunda reavaliação das políticas
econômicas que geram o desemprego e lançam no desespero um grande número de
famílias.
REFERÊNCIAS
ALBERTO, M. de F. .P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma
realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003.
CASTEL, R. A dinâmica dos processos de marginalização: da vulnerabilidade à
“desfiliação”. Caderno CRH, número 26/27, p. 19-40, 1997.
MATTOSO, J. O Brasil desempregado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1996.
148
CAPÍTULO 13
A VISÃO DOS PAIS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES INSERIDOS NO PETI
Adalvaci de Medeiros Barreto1
Maria de Fátima Pereira Alberto2
INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo apresentar a percepção dos pais e responsáveis pelas
crianças e adolescentes inseridos no PETI, na Organização Não Governamental Casa do
Pequeno Davi, no Setor Casa Menina Mulher, sobre o trabalho precoce e a ação sócioeducativa proposta pelo programa em referência.
Esta investigação é resultante do II curso de extensão - “Formação de Agentes de
Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho Infanto-juvenil Urbano e Rural”,
realizado no período de agosto de 2003 a fevereiro de 2004, na Universidade Federal da
Paraíba, através do Setor de Estudos e Assessoria aos Movimentos Populares – SEAMPO e
do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho – GPST, em parceria com o Projeto
Unicidadania do Movimento Leigo América Latina – MLAL.
Como requisito para avaliação de final de curso, os educandos foram incumbidos de
empreender em uma investigação sobre o trabalho precoce, contemplando as diferentes
faces em que este se materializa e, de conformidade com as ações das instituições de
origem. Neste sentido, o presente trabalho surgiu da minha experiência, como assistente
social da Casa do Pequeno Davi - Setor Casa Menina Mulher, no período compreendido
entre outubro de 2002 a setembro de 2003, no decorrer do qual atuei junto ao público da
ONG. Assim, privilegiei como objeto de minha investigação a compreensão das famílias
1
Bacharel em Serviço Social; ex- assistente social da Casa Menina Mulher, atualmente da Secretaria de
Desenvolvimento Social da Prefeitura Municipal de João Pessoa disponibilizada para o Projeto Catavento.
2
Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Depto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação
em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho – GPST/UFPB
e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB.
149
sobre o trabalho precoce, tendo por eixo de análise suas expressões de entendimento sobre
o PETI bem como sobre as ações socioeducativas realizadas por esse programa.
Na construção da proposta deste estudo, foi relevante minha experiência de trabalho
na ONG - Casa Menina Mulher e posterior ingresso no PETI, através da SETRAPSSecretaria de Trabalho e Promoção Social3, onde atuei como assistente social do PETI, no
período compreendido entre setembro de 2003 a julho de 2004, realizando, entre outras
atividades, acompanhamento às famílias aí cadastradas. A essa trajetória de atuação
profissional e capacitação na temática em foco, somou-se o fato de ter sido, em agosto do
ano em referencia, disponibilizada pelo município para atuar no Projeto Catavento “Programa de Combate às Piores Formas de Trabalho Infantil na Paraíba”; fato que,
acrescido aos demais me instigou a escrever este artigo.
Para a realização deste ensaio de pesquisa, foram entrevistadas 10 mães, com filhos
participantes das atividades da Casa Menina Mulher, que neste trabalho terá a denominação
de “casa”, e que recebem a Bolsa Cidadã do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil.
Para o universo da pesquisa, delimitamos uma amostra intencional, tomando como
referência o tempo de participação das famílias nas atividades da “casa”, priorizando mães
ou responsáveis por crianças e adolescestes inseridas no PETI e que aceitaram ser
entrevistadas.
CARACTERIZAÇÃO E PROPOSTA SÓCIO-PEDAGÓGICA DA CASA MENINA
MULHER
A Casa Menina Mulher é uma Organização Não-Governamental e desenvolve suas
atividades desde 1998 com crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social,
nas áreas de inclusão escolar, combate ao trabalho infantil e exploração sexual. O objetivo
de seu trabalho é “contribuir para a promoção dos direitos da criança e do adolescente,
através de ações de educação integral e de intervenção nos espaços políticos paraibanos”.
A “casa”, cujas instalações ficam na Rua da República-Centro, recebe recursos do
Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência – UNICEF, financiamento de
instituições internacionais, além de ser parceira da Prefeitura Municipal de João Pessoa nas
ações da Jornada Ampliada do PETI.
3
Atualmente Secretaria de Desenvolvimento Social - SEDES
150
No ano de 2003, a “casa” desenvolveu atividades com 86 crianças e adolescentes,
correspondendo a um total de 65 famílias atendidas. Do total de crianças e adolescentes
desenvolvendo atividades, 45 estavam incluídas no PETI, perfazendo um número de 33
famílias com cadastro no programa (dados da casa referentes ao ano de 2003).
Para executar seus objetivos, a “casa” conta com uma equipe multiprofissional,
entre educadores sociais e técnicos; neste trabalho de pesquisa, destacamos aspectos da
intervenção da Assistente Social. Na abordagem ao trabalho precoce, atuei em duas
perspectivas: a) identificar, entre seu público alvo, a existência de crianças e adolescentes
inseridas precocemente no trabalho e fazer os devidos encaminhamentos para sua inserção
no PETI; b) incluir na “casa” crianças e adolescentes encaminhados pela coordenação do
PETI e pelos Conselhos Tutelares, observando sua capacidade de atendimento.
No primeiro caso, o profissional de serviço social identifica as crianças e
adolescentes trabalhadores precoces através da visita domiciliar e a partir dos seus relatos
de vida. Constatada a existência do trabalho precoce, realiza o encaminhamento do caso
para a Coordenação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) com
solicitação de inclusão da família no referido programa.
No exercício da minha profissão na “casa”, realizei, entre outras atividades, visitas
domiciliares e encontros temáticos com as famílias. Nesses encontros, foi abordado, entre
outros, o trabalho precoce. Nas discussões fomentadas através dessas e outras atividades,
era comum as famílias ressaltarem o valor dos trabalhos desenvolvidos pela ONG.
Valorizavam os momentos de reflexão e discussão, favorecidos principalmente pelos
encontros mensais, justificando que, na época em que foram crianças e adolescentes não
tiveram semelhante oportunidade, tendo que, forçadamente, esquecer, deixar a escola e as
brincadeiras de crianças para acompanhar os pais no trabalho ou trabalhar sozinhas para
manter a si e, em alguns casos, suas famílias. Ainda segundo os depoimentos,
consideravam os filhos privilegiados por terem a oportunidade de aprender, brincar, enfim,
de ter a “casa” para acolhê-los.
Contrapondo-se à avaliação ora apresentada, essas mesmas mães questionavam
muitos dos direitos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, afirmando que
tais direitos deixaram as crianças vulneráveis à marginalidade, exemplificando que –
“criança não pode mais apanhar, não pode mais trabalhar...”.O discurso apresentado pelas
151
mães adquiria sempre um viés contraditório, passando a inquietar-me enquanto
profissional, haja vista o papel de acompanhar, encaminhar e promover a formação crítica
das famílias.
Apreender o discurso das famílias, ao tratarem do trabalho precoce, foi uma
necessidade que senti no decorrer do meu exercício profissional, e que não pôde ser
investigado por diferentes motivos: pelo tempo de duração dos encontros de formação (uma
hora e meia); pelo calendário de atividades da “casa” a ser cumprido e, posteriormente pela
minha desvinculação da referida entidade. A oportunidade veio a se concretizar com a
realização do II curso de extensão de “Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do
Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural”, cuja vaga foi conquistada a partir do
encaminhamento realizado pela “casa”.
TRAJETÓRIA DA CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA
Este estudo teve por eixos norteadores de reflexão e referência os conteúdos
programáticos, teóricos e metodológicos abordados nos módulos ministrados pelo curso,
além de recorrer à concepção de criança e adolescente construída no nível do aparato legal
pela Lei 8.068/90; a concepção de família, enquanto instância primeira de amparo e
proteção integral a esse segmento, e, por fim, o trabalho socioeducativo, enquanto via de
inclusão social, e que teve como referência o manual do Programa de Erradicação do
Trabalho Precoce.
A pesquisa foi realizada utilizando a abordagem qualitativa descritiva e, como
instrumento de trabalho, a entrevista semi-estruturada. A técnica de amostragem utilizada
foi de caráter intencional, privilegiando famílias com maior tempo de inclusão na “casa”.
A abordagem foi realizada na residência das entrevistadas, uma vez que o espaço
doméstico se constitui no lócus que propicia expressões concretas da realidade vivida pelos
sujeitos e por considerar que não teríamos dificuldades no processo de localização das
residências; haja vista, ainda, a prática de visitação às mesmas adquirida na minha trajetória
de trabalho. Por outro lado, realizá-la nos espaços da ONG implicaria agendar dia e hora de
entrevista com cada família, articulando com o funcionamento dessa e de forma que
correspondesse à minha disponibilidade de tempo. De forma a não chocar-se com minhas
atividades profissionais não mais ligadas à “casa”.
152
Por outro lado, a abordagem na própria residência propiciaria o contato com a figura
masculina responsável pela criança e adolescente. No caso das famílias entrevistadas,
identificamos o modelo de famílias matrifocais (...) “formadas por uma mulher, seus filhos,
resultado de uma ou mais uniões, e um companheiro permanente ou ocasional” (Romanelli,
1997: 137). Logo, um dos objetivos da estratégia de visita para tentar contatar o pai não
funcionou, mas não inviabilizou a pesquisa. Não se fazendo presente a figura masculina no
momento da entrevista, todas as entrevistas foram realizadas com as mães; não só pelo fato
de terem sido elas as pessoas adultas presentes na casa, mas porque 08 das entrevistadas
assumem sozinhas as responsabilidades com os filhos.
Para realização das entrevistas, usamos a entrevista com questões semi-estruturadas
abordando os seguintes aspectos: O PETI (Qual a importância do PETI para seu filho? O
fato de estar no PETI mudou alguma coisa na sua família? Quais as atividades
desenvolvidas pelo PETI de que sua família participa? De qual atividade você sente falta?)
Trabalho Precoce (Você trabalhou quando criança? Qual a sua opinião sobre o trabalho
realizado por crianças? O que seu filho fazia antes de entrar para o PETI? O trabalho trouxe
benefícios para ele? E prejuízos?).
APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS
a) O olhar das famílias entrevistadas sobre o PETI
Quando indagadas sobre o que é o PETI, as famílias revelaram nas suas falas que
viam o PETI como um projeto que retira menores da rua e oferece educação. Dentre mães
entrevistadas, nenhuma decifrou a sigla PETI; demonstrando, assim, desconhecimento de
que esse é um programa governamental e que tem como principal objetivo erradicar o
trabalho infantil. Também desconheciam que o principal eixo de suas ações é a realização
de atividades educacionais (jornada ampliada) e a oferta de programas de geração de
trabalho e renda para a família cadastrada.
A falta de clareza sobre o programa leva-nos a inferir que esse tipo de benefício
chegou até elas sem que tenham sido explicitados seus objetivos, as ações que desenvolvem
e os portadores de direito de acesso a ele. As famílias reconhecem o PETI em função da
bolsa, sendo que para elas a bolsa é resultante da “benesse de governantes”.
153
É notório que rever junto a essas famílias as diretrizes, normas e procedimentos do
programa implica prepará-las para assumir em sua responsabilidade como co-responsáveis
pela mudança em favor da proibição do trabalho precoce e mobilizá-las em favor do direito,
já garantido em Lei, de a criança viver sua condição de infante. Ação que a “casa” vem
desenvolvendo ao exercitar com o seu público alvo o protagonismo, enquanto pilastra para
a intervenção no contexto social e político.
Sobre a importância do PETI para os filhos, as 10 entrevistas apresentaram o
seguinte resultado: 10% dos filhos não gostam ou vêem as oficinas como obrigação; 40%
consideram que é um espaço de aprendizagem, por isso muito importante; 50% afirmam
que ajuda a comprar as coisas de que precisam.
A partir da fala das famílias, tornou-se perceptível a relevância do benefício da
bolsa cidadã. Mesmo as mães cujos filhos não desenvolviam trabalho foram cadastradas
adotando-se como “critério” o fato de terem filhos crianças ou adolescentes em situação de
riscos, em suas diferentes formas, e não exclusivamente exercendo atividade de trabalho.
Assim, muitas famílias não se “enquadram” no perfil da clientela do PETI, fato evidenciado
na fala de algumas mães ao afirmarem que o filho (a) não trabalhava; estudava e
desenvolvia oficinas na “casa”.
b) Quanto ao trabalho com as famílias
Quando indagadas sobre a contribuição dada pelo programa para a família, as
respostas fizeram referência à contribuição da bolsa para as despesas domésticas, sendo,
para muitas, a única renda certa com a qual podem contar. Nas entrevistas, os discursos das
mães não fizeram referência, por exemplo, à saída do filho do trabalho desenvolvido ou ao
acesso, permanência e sucesso da criança ou adolescente na escola, principal mecanismo na
luta pela prevenção e erradicação do trabalho infantil. À ação educativa da jornada
ampliada, estratégia de trabalho do programa, também não foi feita referência.
Das atividades propostas pelo PETI para as famílias, que as mães reconhecem ou de
que participam, foram identificadas por todas elas apenas as reuniões. As demais atividades
que a “casa” desenvolve, tais como apoio socioeducativo, complementação de renda,
programa de geração de trabalho e renda, programas de socialização e lazer, programas de
154
ampliação do universo informacional e cultural, serviços de apoio psicossocial, programas
culturais, não foram citadas nem referidas pelas mães.
Nesse sentido evidencia-se que as atividades desenvolvidas, quer com os filhos,
quer com as mães, não são reconhecidas pelas famílias como ações do PETI. Ao mesmo
tempo em que elas não fazem distinção entre as ações do PETI e as atividades promovidas
pela “casa” (oficina ludopedagógica, capoeira, esporte, formação humana e ciclo de
formação e reuniões com as famílias, entre outras).
c) Um olhar sobre o passado para negar cenas do presente
Questionadas se trabalharam quando crianças, 40% das entrevistadas afirmaram que
sim e 60%, que não; sendo que a maioria havia cursado até a 1º série do ensino
fundamental (antigo primário) e outras estavam reiniciando o processo de alfabetização.
Nesse sentido, um outro discurso, que não é objeto dessa investigação, ganha
evidência: quando criança e adolescente, qual o motivo pelo qual as mães entrevistadas não
freqüentaram a escola? Estiveram elas fora da escola por motivos que podem estar
relacionados ao trabalho? Os discursos apreendidos revelam que o trabalho foi uma
realidade vivida por algumas.
“É bom para as crianças poder brincar. Tem muita gente analfabeta
porque não pôde estudar” (mãe que trabalhou quando criança)
“A partir de 07 ou 08 anos já pode trabalhar, ajudar a família, senão chega
aos 18 e não vai querer trabalhar. Agora, os estudos é necessário mesmo”
(mãe que afirma não ter trabalhado quando criança).
“Só uma mãe muito doida bota uma criança pra trabalhar, agora esse aí
(fazendo referência a um filho de 15 anos), já era pra ta trabalhando, pra
comprar as coisas que precisa, mas é muito difícil”... (mãe que afirma não
ter trabalhado quando criança)
Há por parte das famílias um entendimento confuso acerca do que seja trabalho
precoce; não considerando algumas atividades que realizaram quando crianças como
trabalho. Fica, no entanto, claro em suas falas que elas não brincaram, e a escola foi
suprimida em detrimento da necessidade de ajudarem os pais.
155
d) Inserção precoce no trabalho: danos e perdas
Quanto aos benefícios e prejuízos advindos do trabalho realizado pela criança e
adolescente, obtivemos, entre outras, as seguintes respostas:
“Pelo cansaço do trabalho meus filhos não tinham muito tempo pra
brincar; mas também não se envolviam com coisa errada. Logo no início
achava que o cansaço era ruim pra eles, mas hoje acho que aquele era o
tempo bom. Todo tempo estavam comigo. Sabia onde estavam”. (Fala de
uma mãe com três filhos e renda fixa no valor de R$ 80.00, proveniente
da bolsa cidadã).
“Ajudava a comprar suas coisas. Elas se cansavam, depois tinha que ir
para a escola”. (mãe falando da época em que suas filhas, ainda crianças,
ajudavam no trabalho que ela realizava na feira livre).
“Sei que ela (fazendo referência à filha mais velha) se atrasou nos estudos
porque tinha que ficar tomando conta dos irmãos pra eu poder trabalhar.
Hoje, fico com sua filha pra ela poder fazer o supletivo, recuperar o
tempo que perdeu” (fala de uma mãe com duas filhas no PETI).
“Eles não reclamavam do que faziam (catavam latinha, papelão), mas
hoje, depois que estão na “casa”, diz que não podem trabalhar”(Fala de
uma mãe, com três filhos no PETI, cujo benefício é a única renda da
família).
De acordo com as falas das entrevistadas, a maior parte das crianças e adolescentes
que exerciam atividades de trabalho faziam-nas em companhia dos pais. Esse dado é
relevante quando os mesmos vão avaliar, principalmente, prejuízos do trabalho. Os pais
afirmam que, estando sob seu olhar, os filhos estavam sendo protegidos e educados para o
trabalho e para a vida; desconsiderando que a atividade assume característica de trabalho
precoce, danoso e prejudicial à condição da criança enquanto pessoa em desenvolvimento.
Ao responder se trabalharam quando crianças, as 5 respostas afirmativas não
diferem das justificativas por elas próprias apresentadas pelo fato de seus filhos terem
realizado trabalho precoce: a condição de pobreza da família e o trabalho enquanto meio de
disciplinamento. Nesse aspecto, as mães consideram que o mesmo trouxe benefícios para
suas vidas, não relacionando o baixo nível de escolaridade de que são portadoras,
apresentada por 9 das 10 entrevistadas. Elas afirmaram que não gostariam de ter trabalho,
156
no entanto não se arrependem de terem ajudado, através do seu trabalho, a garantir
contribuição, mesmo que pequena, para o sustento da família.
Este discurso das mães permite identificar em todas as classes sociais um discurso
de naturalização e de defesa do trabalho precoce como instrumento de disciplinarização e
de formação. Tal discurso é a expressão de uma questão cultural maior, enraizada no
imaginário social brasileiro, cujas raízes emanam do processo de colonização do povo
brasileiro – o trabalho para o escravo e o homem pobre branco como elementos de
formação da sociedade e a escola e o ócio para as classes abastadas (Alberto, 2003).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mães entrevistadas expressaram, através da linguagem, a concepção de trabalho
enquanto condição de disciplinamento, associado ainda ao imediato suprimento das
necessidades materiais da criança e do adolescente e da sua família. A maioria das
entrevistadas assume o discurso culturalmente estabelecido sobre o trabalho precoce,
demonstrando desconhecimento do que preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente
sobre a questão em pauta. Reproduzem o discurso socialmente estabelecido sobre o
trabalho precoce mostrando ainda falta de clareza quanto ao propósito maior do PETI, que
é, paulatinamente, erradicar o trabalho infantil.
Do que pudemos desvelar com este ensaio de pesquisa, surge como indicativo a
criação de estratégias de ação e cooperação mútua, entre os setores públicos
governamentais e não governamentais, visibilizando e executando programas e políticas de
atendimento e proteção ás crianças e adolescentes, de forma que todos, Estado e sociedade
civil, façam valer o que neles está preconizado; isto é, cumprir os direitos legalmente
adquiridos pelo segmento da população infanto-juvenil.
REFERÊNCIAS
ALBERTO, M. de F. P.(Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma
realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003.
BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Secretaria de Estado e Assistência
Social. Programa de erradicação do trabalho infantil. Manual de Orientações do PETI.
Brasília, 2002.
157
BRASIL. Ministério da Saúde. Ministério da Criança. Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei 8.069/90. Brasília, 1991.
IAMAMOTO, M.V.; CARVALHO. R. de. Relações sociais e serviço social no Brasil:
esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez; 1993.
RAICHELIS, R.. Esfera pública e conselhos de assistência social: caminhos da
construção democrática. São Paulo: Cortez, 1998.
ROMANELLI, G. Autoridade e poder na família. In: NASCIMENTO, S. I. do. (Org.). E
se fosse nossos filhos? João Pessoa: Idéia, 1997.
SPOSATI, A. O. de. [et.al]. A assistência na trajetória das políticas sociais brasileiras.
São Paulo: Cortez, 1992.
______. A assistência social brasileira: descentralização e municipalização. São Paulo:
EDUC, 1990.
158
CAPÍTULO 14
ATUAÇÃO DO PETI NA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL, NO
ASSENTAMENTO CAMPOS DE SEMENTES E MUDAS, CRUZ DO ESPÍRITO
SANTO/PB
Hosana Celi Oliveira e Santos1
Maria do Socorro Borges Barbosa2
APRESENTAÇÃO
O objetivo deste estudo é analisar a atuação do Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil - PETI na erradicação do Trabalho Infantil no Assentamento Campos,
Sementes e Mudas, do Município de Cruz do Espírito Santo, a fim de se conhecer a
realidade desse programa e obter dados e informações sistematizadas.
Este artigo é resultado da análise de alguns dados produzidos por uma pesquisa mais
ampla, realizada pelo Centro Rural de Formação - CRF, realizada em janeiro de 2004, em
suas áreas de atuação, objetivando conhecer a realidade das comunidades nas quais
desenvolve trabalho educativo. Como educadora do CRF, participei da referida pesquisa.
Na condição de aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam
na Área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural na Universidade Federal da ParaíbaUFPB, desenvolvi, em paralelo ao trabalho como educadora e pesquisadora do CRF, nosso
estudo, utilizando como fonte dados provenientes da pesquisa do CRF. Além dos dados da
pesquisa do CRF, também utilizamos como fonte informações oriundas da Coordenação do
Programa de Erradicação do trabalho Infantil – PETI.
O CRF apresenta e desenvolve uma proposta educativa visando qualificar os jovens,
filhos e filhas de agricultores, de 16 a 21 anos, da região de Cruz do Espírito Santo, bem
como conscientizá-los dos seus deveres e direitos como cidadãos brasileiros.
1
Educadora do Centro Rural de Formação do Município de Cruz do Espírito Santo/PB.
Mestre em Educação Popular, Sanitarista, Historiadora e Educadora do Núcleo de Estudos em Saúde
Coletiva – NESC e do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO.
2
159
O contato com os jovens, através do trabalho no CRF, nos proporcionou uma
relação não só educadora-educando, mas uma relação de amizade e afeto entre nós, o que
facilitou o acesso às informações sobre o PETI. Observei que alguns jovens participantes
do Projeto desenvolvido pelo CRF faziam parte do Programa PETI, o que despertou a
curiosidade pertinente a este estudo, que servirá para contribuir na verificação dos impactos
que o PETI trouxe para essa comunidade e na reflexão dos seguintes aspectos: O que é o
PETI? O PETI tem conseguido atingir seus objetivos? E quais objetivos são esses? E o
PETI tem de fato contribuído para erradicação do trabalho infantil?
Nestas comunidades, o CRF, através de um projeto educativo, acompanha os jovens
de 11 comunidades rurais: Dona Helena, Massangana I, Engenho São Paulo, Jaques,
Campos de Sementes e Mudas, Santa Helena III, Boa Vista, Ribeiro de Maraú, Canudos,
São Felipe e Santana. Assim, defini-me por analisar a atuação do PETI na comunidade
Sementes Campos e Mudas por ser a área de atuação enquanto educadora do CRF.
Com o intuito de melhorar a qualidade de vida dos jovens e propondo conhecimento
básico para o desenvolvimento da agricultura familiar sustentável, este Projeto segue o
regime de alternância desenvolvendo atividades de Formação Técnica e de Formação
Cidadã em momentos residenciais, assim como visitas às comunidades buscando realizar
uma formação integral dos jovens dessa região.
METODOLOGIA
Para levantar a realidade da comunidade Campo de Sementes e Mudas do município
de Cruz do Espírito Santo, Paraíba, realizei visitas para conversas informais com o
presidente da associação, com os jovens e moradores. Também utilizamos os questionários
aplicados aos moradores através da pesquisa anteriormente citada, que nos serviu de fonte
para este estudo. Ainda trabalhamos com estudos e relatórios sobre assentamentos na
Paraíba, que nos lançaram luz sobre a realidade da reforma agrária em nosso Estado.
TRABALHO DE CAMPO E LEVANTAMENTO DOS DADOS
Primeiramente, fizemos leitura bibliográfica sobre trabalho precoce e sobre
assentamentos na Paraíba.
160
Posteriormente, procurei marcar reunião com o coordenador do PETI e com os
jovens que participam do Programa para obter informações.
Foram realizadas cerca de 15 visitas ao PETI, mas somente na última é que
consegui falar com a coordenadora do Programa. Em cada visita realizada, apresentava-me
como educadora do projeto CRF e aluna do Curso de Extensão sobre Trabalho Precoce que
pretendia verificar a atuação do PETI na comunidade de Campo de Sementes e Mudas.
O trabalho de campo foi penoso, pois, no mês de janeiro e fevereiro, estavam em
recesso. Em março, na primeira semana, tentei várias vezes falar com o coordenador do
PETI, sem obter êxito. Depois de idas e vindas, devido à troca de coordenadores e à recusa
de dar informações, consegui com a coordenadora anterior, que me recebeu muito bem em
sua casa e me deu todas as informações solicitadas.
Foram marcadas reuniões com alguns jovens do assentamento Campo de Sementes
e Mudas que participam do PETI, onde tivemos um “bate-papo” sobre a atuação do
programa na sua comunidade e marcamos para tirar fotos.
Com os dados coletados pela pesquisa do CRF e esses oriundos da conversa com a
coordenadora e jovens participantes do PETI, procedemos à análise dos dados, à elaboração
do relatório e à organização desse artigo.
ONDE E COM QUEM TRABALHAMOS/ DADOS E IDENTIFICAÇÃO
Assentamento de Campo de Sementes e Mudas
A comunidade rural de Campo de Sementes e Mudas é situada no município de
Cruz do Espírito Santo, na Região “Várzea” da Paraíba, a 45Km da capital do Estado da
Paraíba.
A comunidade se chamava Campo de Fruticulturas Tropicais. Tempos depois
passou a chamar-se Campo de Sementes e Mudas, pois ali funcionava um campo de
experimentação de enxerto de mudas de frutas. Ali faziam-se mudas vendidas para o resto
do Estado e da Região. Além do campo de experimentação, funcionava também como
centro de treinamento de tratoristas, onde eram oferecidos diversos cursos para os
tratoristas.
161
A comunidade Campo de Sementes e Mudas pertencia ao Ministério da Agricultura
até 1972 quando foi desativada e teve as casas fechadas, pois o Ministério da Agricultura
não estava enviando recursos para os funcionários poderem trabalhar. Com a situação, os
funcionários foram saindo e, ao final, ficaram apenas 9 funcionários aposentados.
A área do Campo de Sementes e Mudas abrangia além da área que é hoje o Campo
de Sementes e Mudas, o Assentamento Jaques. Em 1964, houve vários conflitos entre o
Administrador do Campo e os moradores da região do Jaques. Em 1984 ,os moradores do
Jaques, já separados, receberam a posse das terras. O Jaques é um dos poucos
assentamentos do município de Cruz do Espírito Santo emancipado.
Voltando para o Campo de Sementes e Mudas, os outros moradores vieram do
município de Cruz do Espírito Santo em 1985 quando houve uma enchente que inundou a
cidade causando muito transtorno e mortes. Como as casas estavam fechadas e vazias, os
moradores do município começaram a ocupar e plantar, já que não tinham para onde ir.
A Comunidade então é formada por moradores assentados na reforma agrária, em
sua maioria originaria da região de Cruz do Espírito Santo. A homologação das terras saiu
em 17 de maio de 1996. Em 1987, foi fundada a Associação. Não tiveram problemas, do
jeito que estava entregaram. Os pedidos de reintegração de posse foram feitos junto com
EMBRAPA, EMATER, UFPB, além do apoio que tiveram do próprio Diretor-Geral do
Ministério da Agricultura. Não houve conflito, pois o movimento pela reforma agrária se
intensificou no município fortalecendo também os moradores desse assentamento que se
organizaram para reivindicar a posse da terra.
O assentamento Campo de Sementes e Mudas tem 207 ha. Quando os moradores
pediram a reintegração de posse ao Ministério da Agricultura, queriam que as terras fossem
divididas em partes iguais. Hoje cada família possui mais ou menos 3 hectares de terra,
com exceção da moradora Antonia Victor que é a assentada que tem mais terra, pois tinha
cana plantada e beneficiada e queria a indenização. Então os moradores entraram em
comum acordo com ela e repassaram alguns hectares a mais para ela, resolvendo a situação.
Nesta comunidade existe uma vila onde residem 45 famílias cadastradas pelo
INCRA. Com os 33 agregados, residem ao todo cerca de 78 famílias em casas de alvenaria
com abastecimento de água e energia elétrica de qualidade razoável, como mostra
depoimento a seguir:
162
“Nossa terra é fértil, cercada de água, a profundidade do poço é de mais
ou menos 35 m, é uma média de 16 poços artesianos, sendo um
comunitário, que abastece 21 casas.” (Presidente da Associação).
A comunidade dispõe de poços para abastecimento das casas. Aparentemente a água
é de boa qualidade. Dispõem de água em pequenos lagos que se formam nos períodos
chuvosos e que demoram a secar e há um pequeno rio que, no período da seca, usam para
irrigação. O clima é o da zona da mata, com boa pluviosidade (1000 a 1500 mm/ano) e com
temperaturas ótimas para cultivo de fruteiras tropicais, hortaliças e criação de animais de
todas as espécies.
O relevo é plano. Por ser uma área plana favorece o uso da terra para exploração
agropecuária. Durante as chuvas, a água traz transtornos, pois alaga uma área chamada de
lagoa, que os agricultores usam para o cultivo irrigado. O tipo de relevo favorece o plantio
de diversos tipos de culturas, desde que se adaptem ao tipo de solo e às condições do clima.
O solo é de boa qualidade e de textura argilo-arenoso a argilosa com profundidade
boa (terra profunda). É uma área de solo fértil, de clima bom e relevo favorável. Essa área
de terra apresenta quatro tipos de solo: O “tabuleiro”, a “encosta” a várzea” e o “paul” no
rio que é uma terra comunitária com Jaques, mas alagada quando chove.
Os assentados exploram a mandioca, o milho, o feijão e batata doce. A batata doce é
grande responsável pela produção agrícola do Assentamento. Os moradores produzem
agricultura o ano todo, já que dispõem de todas as condições favoráveis. A exploração
pecuária, apesar de presente, é tímida e precária, já que a maioria dos criadores não produz
alimentos para os seus animais, confiando apenas no pasto nativo que se desenvolve nas
parcelas e não realizam controle sanitário do rebanho. Vendem seus produtos em Cruz do
Espírito Santo, nas feiras livres de Sapé, Santa Rita, João Pessoa ou a atravessadores na
própria área. Há também os que trabalham nas plantações de cana-de-açúcar ou fazem “um
vira beco” para poder sobreviver (CRF, 2003).
A comunidade dispõe de transporte escolar (precário), estradas de qualidade
razoável. Dispõem de duas Igrejas, uma Católica, a Igreja Sagrado Coração de Jesus, e uma
protestante, a Igreja Evangélica Assembléia de Deus. E estão construindo a sede da
Associação. O sindicato dos trabalhadores rurais tem sede em Cruz do Espírito Santo. Há
uma escola, a Escola Estadual de Educação Infantil de Cruz do Espírito Santo, tendo até a
4ª série. A partir da 5ª série os estudantes têm que se dirigir a Cruz do Espírito Santo. Não
163
há posto de saúde, os postos de saúde mais próximos são no Jaques ou em Cruz do Espírito
Santo. Possui uma agente de saúde.
O PETI
Na zona rural, concentram-se as regiões de maiores desigualdades sociais. O grau
de desigualdade nessas áreas atinge os níveis mais elevados, além da instabilidade
econômica devido aos trabalhos temporários, à crise canavieira e às dificuldades do próprio
campo. A precarização da mão-de-obra obriga às famílias a inserirem precocemente as
crianças e adolescentes no trabalho e a abandonarem seus estudos (CRF, 2003).
Segundo Piaget (Biaggio, 1998), ocorre até os doze anos o processo de
desenvolvimento cognitivo e a formação das categorias operacionais. O individuo adquire,
nesta etapa, habilidades que são imprescindíveis ao desempenho de aptidões de sua
formação intelectual. Nesta fase, é indispensável a escolaridade às crianças, principalmente
às crianças trabalhadoras, para quem a não-escolarização é danosa (Alberto e Araújo,
2003).
No Brasil, vêm sendo implantadas políticas para a diminuição do trabalho precoce
desde 1996, como é o caso do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil –PETI –
proposto pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tem como objetivo retirar
crianças e adolescentes de 7 a 16 anos do trabalho considerado perigoso, penoso, insalubre
ou degradante, ou seja, daquele trabalho que coloca em risco a saúde e a segurança de
crianças e adolescentes. Outro objetivo é incentivar a permanência da criança na escola e
estimular um segundo turno de atividades em unidades de apoio, assegurando a
alimentação; orientação nos estudos; atividades culturais; de lazer e esportivas; Apoio e
orientação das famílias.
A família inserida no PETI recebe, por cada criança ou adolescente, uma bolsa no
valor de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) para quem reside na zona rural ou nas cidades com
menos de 250.000 habitantes. Para isso, a criança ou o adolescente têm que obter
freqüência mínima de 75% na escola e na jornada ampliada do programa.
Segundo a coordenadora do PETI, que é assistente social, o objetivo maior é retirar
as crianças do trabalho infantil. Ela acredita que o PETI vem cumprindo seus objetivos.
164
“Eu acredito que a gente tenha conseguido. As crianças gostam do
programa, mesmo com toda defasagem de material ... conseguimos que a
criança seja retirada do trabalho, pois para as famílias é uma renda mensal
mesmo que mínima, pois cada criança recebe R$ 25,00 e há famílias com
4 crianças, já são R$ 100,00”. (Coordenadora do PETI)
Observando-se os dados levantados pelo CRF, 45 famílias das 78 existentes na
comunidade de Campo de Sementes e Mudas, 53 % encontra-se num nível de renda entre 1
e 2 salários mínimos (24 famílias), 33% possuem menos de um salário mínimo,(15
famílias) e apenas 3 % encontra-se entre 3 e 4 salários mínimos (6 famílias), percebendo-se
uma renda muito baixa entre as famílias desta comunidade. O que significa que, para a
maioria, a bolsa do PETI serve como complemento da renda familiar.
O programa atua em Cruz do Espírito Santo desde 1999. Ainda segundo a
coordenadora, quando se iniciou a coordenação do PETI em 2003, o trabalho desenvolvido
junto às famílias buscava inseri-las no mercado de trabalho, pois o município não dispunha
de estrutura de capacitação para o emprego. Ela informa que há também famílias que não
quiseram participar das reuniões e cursos realizados pelo PETI. O que causa preocupação,
pois há mães que não sabem ler nem escrever. Quanto ao nível de escolaridade da
comunidade, essa observação também se revela na pesquisa realizada pelo CRF, de que
79% dos entrevistados sequer chegaram a concluir o ensino fundamental. Apenas 6%
concluíram o fundamental e 6% não quiseram responder.
A coordenadora atual do PETI comenta que
“(....) na época que o PETI foi implantado existia o trabalho infantil na
comunidade do Campo de Sementes e Mudas e que até hoje há mães que
me dizem que a filha não vai para o PETI porque vai ajudá-la na
plantação; plantar e cortar cana. Até na zona rural, ... têm o pensamento
de que: será que isso é mesmo trabalho infantil? Antes as crianças eram
desocupadas e hoje elas tem uma obrigação, de estarem no ginásio na
jornada ampliada e não cortar lenha, cana. E hoje melhorou muito pois
não estão sujeitas ao trabalho pesado”. (Coordenadora do PETI)
Nos domicílios, constatamos que, em 62%, existem de 2 a 3 pessoas freqüentando a
escola, 24% não responderam; de 9% destes, existe apenas uma pessoa freqüentando a
escola; em 2%, freqüentam a escola 4 a 5 pessoas; em 2%, a resposta não cabe. Mesmo
com a baixa escolaridade dos pais, percebe-se um incentivo destes com relação aos filhos
para que estudem.
165
Com relação à idade em que os filhos começaram a estudar, 44% dos entrevistados
responderam que entre 2 a 4 anos de idade; 22% responderam que os filhos começaram a
estudar entre 5 a 7 anos; 2% do entrevistados que os filhos ainda não estudam, enquanto
13% não responderam. O aumento do número de crianças que começaram a estudar mais
cedo provavelmente deva-se ao fato de a comunidade possuir uma escola estadual com
cursos de 1ª a 4ª série, bem localizada na comunidade, que se organiza em sistema de
agrovila, além de participar do programa PETI.
Mesmo assim, percebe-se que nas famílias há um grande percentual de filhos
trabalhando. Apesar da presença do PETI, ainda há trabalho infantil na comunidade,
embora seja em menor quantidade, pois, dos 45 entrevistados, 22% responderam que têm
filhos menores trabalhando.
Ainda segundo a coordenadora, “A maioria das crianças vem por conta da bolsa
para a família. Tem uma freqüência que é controlada para que eles não percam as bolsas.
Mesmo com as atividades precárias, eles vêm, só por conta da bolsa.”
Além da precariedade do espaço de que o PETI dispõe, observa-se que as atividades
determinadas pelo programa não estão sendo cumpridas na íntegra. As crianças só estão
tendo atividades de futebol e mais nada. As que não jogam vão só assistir. Outra grande
dificuldade é que não têm a presença de profissionais qualificados, como observa a
coordenadora do PETI:
“As pessoas que trabalham não têm qualificação para estarem ali. Como
lidar com crianças e fazer um trabalho que surta efeito se não se tem
qualificação? Já solicitei capacitação para os monitores, algumas até eu
mesma dei para tentar melhorar. Ah! E se você perguntar para qualquer
criança o que fazem lá agora, elas vão responder que não fazem nada, só
jogam bola. Pra você ver tem o conselho do PETI, que não funciona. As
pessoas querem que eu coordene esse conselho que serve para fiscalizar
o trabalho do PETI, e eu falo que não posso coordenar um conselho que
serve para fiscalizar o trabalho que estou desenvolvendo”.
(Coordenadora do PETI)
AS CRIANÇAS
Em conversa com as crianças da Comunidade de Campos de Sementes e Mudas,
constatamos que 17 crianças fazem parte do PETI. Destas, 9 são meninas e 8, meninos.
Todos estudam, seja no colégio da comunidade, seja no colégio de Cruz do Espírito Santo.
166
O que as crianças fazem? Segundo as crianças elas só brincam:
“No começo a gente fazia bordado, crochê, jogava voley, futsal, tinha
aula de artes e teatro, ensaio de quadrilha, dança, mas agora acabou o
material, os meninos brincam de bola e as meninas ficam olhando. Para
as crianças menores tinha aula de reforço, agora também elas só olham
os meninos jogar bola”.(jovem do PETI)
Pode-se observar, pelo exposto, que, além de não se realizar as atividades
educativas, culturais e de lazer, determinadas pelo Programa, quando elas são realizadas
ferem a proibição de se desenvolver atividades que ponham em risco a criança, ou que
sejam profissionalizantes. É o caso do crochê, proibido pelos dois aspectos, o uso de
agulhas, objetos perfurantes, que podem provocar riscos de acidentes, além do que, pode
servir como profisssionalização. O que expõe a contradição entre o permitido e o
efetivamente realizado.
Ao perguntarmos se havia trabalho precoce na comunidade, a resposta foi positiva,
afirmando que havia e ainda há: “algumas crianças cuidam de outras crianças em casa,
cuidam da casa, ajudam no roçado, mas também têm outras que só brincam, ficam o dia
todo só brincando” (Jovem do PETI).
Segundo as crianças, a jornada de trabalho contabilizada por elas é geralmente de 5
horas por dia, geralmente sem remuneração.
Percebemos que há uma insatisfação tanto da parte das crianças, como da
coordenação do PETI sobre a atuação do Programa. È o que a coordenadora dá a entender:
“O Programa PETI é perfeito na teoria, essa cartilha (mostra a cartilha
do PETI) é perfeita, mas tirar do papel e ir para prática é outra coisa.
Quando entrei no PETI estava toda empolgada, com todo gás para fazer
varias coisas e vários projetos, mas depois que eu entrei os empecilhos
foram tantos e ainda são tantos que a gente desanima.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enquanto educadora e pesquisadora, esta pesquisa demonstrou que a atuação do
PETI no Assentamento Campos, Sementes e Mudas, do Município de Cruz do Espírito
Santo deixa a desejar, tanto para as crianças como para a própria coordenação, seja porque
não dispõem de condições infra-estruturais, como local e material, bem como pela falta de
167
profissionais capacitados para tal. Percebe-se, ainda, que há muitas crianças trabalhando,
até mesmo entre as que estão inseridas no referido Programa. Outrossim, o PETI resume-se
ao repasse da bolsa, sem o desenvolvimento adequado da jornada ampliada e sem o
trabalho socioeducativo ou de geração de renda com as famílias.
Embora no mesmo espaço seja desenvolvido um projeto pelo Centro Rural de
Formação, não há articulação com o PETI. Este fato é relevante, até porque há jovens que
participam das duas instâncias, sem se contar o conhecimento que o CRF tem sobre a
referida comunidade e que poderia ser utilizado no trabalho que o PETI precisa realizar e
não tem condições. Essa desarticulação fica ainda mais patente quando da tentativa de
realizar a pesquisa, que quase foi inviabilizada dadas as dificuldades operacionais do gestor
municipal do Programa que se evidenciaram na indefinição de uma coordenação. Estes são
alguns dos aspectos denotadores da forma de atuação do PETI nos municípios e das
dificuldades para se erradicar o trabalho infantil.
O trabalho instigou-me à reflexão sobre o trabalho precoce e o desejo de contribuir
com ações que possam promover a cidadania das crianças que enfrentam essa realidade.
Instigou-me, ainda, a contribuir com reflexões quanto a possíveis alternativas de atuação do
PETI naquele município e, quiçá, no estado da Paraíba.
REFERÊNCIAS
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urbano. In: ALBERTO, M. de F. P.(Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas
de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003.
BIAGGIO, A. M. B. Psicologia do desenvolvimento. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
BRANDÃO, C. R. (Org.). Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1999.
BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil – PETI: Manual de Orientações do PETI. 1. ed. Secretaria de Estado de
Assistência Social: Brasília,. 2002.
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Santo, 2003. (dig.)
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2004. (dig.)
168
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Unitrabalho/UFPB, 1998.
LEITE, M. de L. S. A precarização do trabalho e as estratégias de sobrevivência dos
moradores da comunidade Pe. Hildon Bandeira. Monografia. Universidade Federal da
Paraíba, João Pessoa, 2003.
169
CAPÍTULO 15
O IMPACTO DO PROGRAMA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
– PETI – NA VIDA DAS CRIANÇAS TRABALHADORAS PRECOCE NO
MUNICÍPIO DE JOÃO PESSOA: A AÇÃO DA JORNADA AMPLIADA
Filomena Elisa de Sousa Pignata1
Maria de Fátima Pereira Alberto2
INTRODUÇÃO
Este artigo versa sobre uma análise do impacto do PETI na vida das crianças e
adolescentes do município de João Pessoa. Trata-se de uma experiência de produção de
conhecimento que tenta analisar os impactos do PETI, mais especificamente da Jornada
Ampliada, a partir do olhar dos educandos e dos monitores.
Este artigo é um fragmento da produção de conhecimento desenvolvida como uma
exigência do 2º Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do
Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural, oferecido pela Universidade Federal da Paraíba –
UFPB, através do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO e do
Projeto UNICIDADANA em parceria com o Movimento Leigo América Latina – MLAL.
Com o propósito de qualificar os serviços prestados às crianças e adolescentes
integrantes do PETI em João Pessoa e capacitar profissionais que atuam no Programa para
melhor desenvolver seus trabalhos nesta área de atuação, a Secretaria de Trabalho e
Promoção Social – SETRAPS viabilizou minha participação enquanto coordenadora do
Programa no Município de João Pessoa.
João Pessoa foi contemplada com o PETI em junho de 2000. Inicialmente, contava
com 1.000 metas. Até 2004, atendia 1500 meninos e meninas, de modo a atingir 3.112
1
Arte Educadora, Estudante de Pedagogia. Coordenadora do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
no Município de João Pessoa – Pb até 2004.
2
Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Depto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação
em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho – GPST/UFPB
e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB.
170
metas. As crianças são egressas das atividades de catadores de lixo, flanelinhas, engraxates,
fretistas e trabalhadoras domésticas.
Para desenvolver este trabalho, realizamos pesquisa com uma amostra composta de
monitores, crianças e adolescentes que integram o Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil no Município de João Pessoa, no total de 18 entrevistados, assim compreendidos:
12 crianças e adolescentes e 06 monitores e monitoras da jornada ampliada dos núcleos
localizados nos bairros de Mandacaru e Roger, cuja escolha se deu considerando-se a
diversidade de atividades desenvolvidas.
Dentre os educandos entrevistados, 08 freqüentavam a jornada que funciona no
Campo do Onze, 02 freqüentam a escola Piollin e 02 o Centro de Cidadania de Mandacaru.
Quanto aos educadores, 02 trabalham na Escola Piollin, 03 no Campo do Onze e 01 no
Centro de Cidadania de Mandacaru.
Os entrevistados foram escolhidos de forma intencional, incluindo tanto educadores
quanto crianças e adolescentes encontrados no local da oficina, quando da nossa visita, feita
sem comunicação anterior e em horários diferenciados.
Os dados foram obtidos através de entrevistas semi-estruturadas, gravadas e
posteriormente transcritas e organizadas em quadros, o que deu melhor visibilidade e
facilitou sua interpretação. As questões da entrevista realizada com os monitores (as)
versavam sobre: formação, escolaridade, experiência profissional na área, método usado,
percepção do PETI, avaliação da jornada e capacitação. Com os educandos, as questões
abordavam os seguintes aspectos: escolaridade, motivos da inserção no PETI, o que pensam
sobre trabalho, avaliação da jornada, relação com a escola após ingresso no PETI:
UM OLHAR SOBRE O DISCURSO DOS MONITORES
Os monitores entrevistados ministram oficinas de reforço escolar, dança, capoeira e
informática. O nível de escolaridade varia do ensino médio ao universitário, com
predominância deste último. 03 deles estão no Programa desde sua implantação, apenas um
está há menos de um ano. Todos os pesquisados usam como metodologia de trabalho aulas
teóricas e práticas no desenvolvimento das atividades da Jornada Ampliada. Alguns
utilizam, além disto, artes, jogos e ginástica, conforme depoimentos abaixo:
171
“(...) aplico teoria na sala de aula, no quadro, passando todo o conteúdo.
Tento desenvolver o lado teórico para que a criança desenvolva tanto o
lado pratico, aprenda dança, quanto culturalmente...” (educador).
“(...) dou aulas práticas, e na teoria uso o quadro, ensino a história do
computador, como foi que surgiu, como era o computador, porque hoje
em dia existe microcomputadores e não computadores. Sempre dou aulas
teóricas antes de ir para a parte pratica...” (educador).
“Trabalho com jogos educativos, com artes como teatro, plástica e
temática, levo o aluno a entender, enxergar e conhecer os seus direitos e
deveres através destas temáticas. Atualmente estão trabalhando
cidadania.” (educadora).
Percebe-se que não há utilização de uma metodologia específica, aplicada a cada
área, nem aprendida em capacitação apropriada. Os monitores afirmaram ainda que
aprenderam com a vida, através de professores, pais, e mestres ou organizações não
governamentais e movimentos sociais a que pertencem. Apenas um monitor fez referência
as capacitações que recebeu do programa. Quando perguntados como avaliam as
capacitações recebidas, no contexto do PETI, quase todos responderam que aprenderam
muito e reconhecem que elas são muito valiosas para o aperfeiçoamento das oficinas que
desempenham com os educandos. Todavia, acham que elas são esparsas e pouco
sistemáticas:
“(...) as capacitações me abriram os olhos, porque não utilizava a oficina
para a criança. Tento enxergar a informática como também abrir os olhos
para outras culturas. Aprendi a tirar proveito da informática como de
outras culturas...” (educador).
“(...) Avalio as capacitações como riquíssimas. Estas não são as primeiras.
Mas a que o PETI está oferecendo é riquíssima. Cada unidade tem um
método diferente, e a do PETI é riquíssimo o conteúdo...” (educador).
“(...) Agente que vem de movimento social vem com uma formação muito
boa para a sala de aula... mas consegui pegar várias coisas positivas...”
(educador).
Vale ressaltar alguns aspectos que podem ter implicações nas respostas dadas pelos
monitores: primeiro, a pesquisadora aqui é a própria coordenadora municipal do PETI de
João Pessoa, o que dificilmente contribuiria para que os educadores fizessem avaliações
negativas; segundo, a capacitação dos monitores não é feita a priori, ou seja, antes do
172
ingresso do monitor no referido programa, o que significa que ele é demandado a criar e
desenvolver algo para o qual, só no decorrer das suas atividades, é que ele está capacitado.
Quanto às sugestões para conteúdo das capacitações, não há associações. O que
sugeriram o fizeram dentro de sua área, propondo conhecimento de artes, informática e
questões importantes da adolescência como: conhecimento do corpo, sexualidade e drogas.
Alguns citaram que estão buscando sempre atualização e capacitação através de outras
fontes e entidades.
Este tipo de sugestão só vem confirmar que, em suas áreas de atuação, não são
preparados para o tipo de demanda e proposta do PETI. Assim como, também, percebem,
no contexto do projeto, a necessidade de serem capacitados por áreas. Infelizmente, porém,
o PETI não dispõe de recursos, que talvez pudessem ser conseguidos através de parcerias.
O conhecimento que o monitor ou a monitora trazem consigo depende da
experiência e de sua inserção profissional anterior ao seu ingresso no PETI. Ou seja, se ele
vem do serviço público, ou dos movimentos sociais. No tocante a experiência anterior com
o trabalho com crianças, a maioria refere-se a trabalhos em ONG´s, em entidades e em
movimentos ligados a crianças e adolescentes, seja como educador ou como militante.
“(...) a primeira experiência foi como interna em orfanato, na Casa da
Menina, era um abrigo. Fiquei lá cinco anos. O primeiro emprego foi de
balconista na Panificadora do Menor, fui escolhida entre 10, através do
convênio com LBA. Depois, fui para DATAPREV, onde aprendi muita
coisa e depois fui para o Hotel Tambau. Depois fui para o trabalho com
meninos de rua, como educadora de rua, fiquei um ano e seis meses, fui
para o Recanto da Meninada, que é um abrigo só de meninos...”
(educador).
As razões que motivaram o ingresso no programa como monitor (a), são várias: o
interesse pela área da criança, a necessidade de sobrevivência ou convite para substituir o
instrutor anterior.
É evidente, nas respostas, que não há uma motivação pela causa da erradicação do
trabalho infantil. Todos, na sua maioria, não conheciam as questões ligadas ao trabalho
infantil antes e tomaram conhecimento delas após ingressarem no PETI. Só depois do
contato direto com as crianças, do conhecimento da problemática através das capacitações,
tomaram conhecimento e aos poucos começaram a assumir a identidade de educadores (as).
A partir desse contato, constroem outra concepção do trabalho infantil e do seu papel, que
173
vai além de ministrar aula. Tomam consciência de que o seu papel como monitor é o de um
educador, é também o de combater o trabalho infantil e a exclusão social e garantir o direito
da criança e do adolescente.
“(...) hoje, lidando com as crianças na sala de aula, vendo como formular
o PETI, tenho uma noção básica, que a dança aplicada no PETI não é
somente dança, e sim um trabalho social, tirar a criança da exclusão social
(...) tirá-los da realidade do trabalho infantil” (educador).
“(...) tem que se trabalhar com as crianças para elas terem uma vida
melhor com a família, deixar de trabalhar na rua (educador).
“(...) são as crianças que estão no meio da rua, ao invés de estarem nos
colégios ou em alguma atividade cultural, dança, reforço, música. Estão
no meio da rua, podendo estar em uma escola. Porque o que faz hoje em
dia alguém ter uma certa dignidade e cidadania é a nossa cultura. Isto se
aprende na escola, e no caso eles não estão fazendo isso, estão no meio da
rua trabalhando...” (educador).
“(...) mudou o conhecimento porque tive a experiência direta. Algo é você
ler, conhecer e saber. Outra coisa é você trabalhar direto com crianças,
que está em situação de risco (...) tinha um aluno que às vezes chegava
com o os olhos super vermelhos, achei que era questão de drogas.
Conforme fui tendo proximidade com ele e pelo vínculo como educadora
ele colocou que quando a bolsa atrasava, ele voltava para o lixo e ficava lá
a noite toda, passava em casa, tomava banho e vinha para a oficina, e por
isto aqueles olhos vermelhos, aquele cansaço ...” (educadora).
Segundo eles, o contato com as crianças e adolescentes egressos do trabalho ou
trabalhadores precoces em atividade mudou suas percepções. Hoje consideram e trabalho
infantil um dano ao desenvolvimento da criança.
“(...) crianças que fazem trabalho físico (...) vê como ela amadurece
rápido, envelhece rápido (...) perde a inocência das brincadeiras (...)
criança é criança tem direito ao lazer...” (educador).
“(...) eu acredito que o adolescente só deve trabalhar depois que terminar
os estudos” (educadora).
“(...) o estudo abre a mente, transforma o individuo ...” (educador)
A jornada ampliada é para os monitores uma atividade extra-classe que incentiva a
criança a deixar a rua e desperta o interesse por uma profissão para o futuro, além de
174
contribuir para a melhoria da qualidade de vida da criança através da alimentação e da
freqüência escolar e da família através da bolsa auxílio.
“É uma atividade extra classe”.(educador).
“É o horário que a criança vem para a oficina e se faz um trabalho, para
tirá-las realmente da rua...” (educadora).
“É o passo inicial, como na minha oficina de informática, ensino os
meninos a prática da informática para que futuramente possam ter
conhecimento em algumas coisas, despertam o interesse...”(educador).
“(...) a gente luta, paga esta bolsa para que as crianças não estejam na rua
trabalhando e estejam recebendo uma bolsa para estarem aprendendo,
buscando e sendo educados”. (educador).
“(...) e o primeiro passo, ela tira a criança de uma realidade de exploração
e abre para ela uma perspectiva melhor de vida”. (educadora).
Dentre os aspectos positivos apontados pelos monitores, sobressai a avaliação dos
aspectos mais pertinentes. As relações sociais interindividuais meninos (as)-monitores (as),
monitores-coordenação, além da formação, do contrato e descoberta da temática, da
aprendizagem e da forma do educador lidar com a criança ou adolescente, e a relação
família comunidade, são percepções que trazem à tona muito mais a dimensão do controle
do que do processo de educativo em si.
“(...) as crianças dão a motivação que preciso” (educadora).
“(...) o relacionamento é que está sendo nota 10, a integração entre
coordenação e monitores, com as crianças...” (educador).
“(...) a gente conseguiu atrair mais crianças, fazendo com que ela tivessem
quase 100% de presença em sala se aula, os meninos estão se interessando
cada vez mais em ir para as oficinas”. (educador).
“As oficinas funcionam, mesmo dentro das dificuldades que têm, há uma
equipe e uma coordenação que sempre está ajudando, as formações, as
capacitações, isto também funciona...” (educadora).
“Os profissionais, os métodos que são usados, o dialogo, a orientação, a
informática que atrai...” (educador).
175
“(...) ajuda no processo da sala de aula e até dentro da própria família,
pois trabalha alguns valores (...) que dá retorno para a comunidade (...) a
criança aprende o respeito desinibe e pergunta muito mais...” (educadora).
Os aspectos apontados pelos monitores como negativos são aqueles inerentes ao
funcionamento do PETI, tais como: a falta de recursos materiais, a falta de uma formação
específica para o trabalho que executam, atraso de salários, as limitações de vales
transportes, computadores ultrapassados, as limitações de material didático e o interesse da
família apenas pela bolsa. A indicação dos monitores desses aspectos como negativos
aponta para a necessidade de se investir mais na capacitação, na formação e valorização
profissional dos mesmos, na aquisição de recursos, materiais didáticos e em trabalhos
sócioeducativos, de apoio psicossocial e de geração de renda com as famílias – o que, por
sua vez, demanda maiores investimentos financeiros por parte das administrações locais, já
que parcela significativa desses recursos vem da esfera federal. Segundo o Manual de
Orientações do PETI (2002), os recursos para manutenção da jornada ampliada são
repassados para a administração municipal na rubrica custeio e vão diretamente para o
Fundo Municipal de Assistência Social3. Na área urbana, o valor é de R$ 10,00 por criança
ou adolescente e só pode ser utilizado para material de consumo (gêneros alimentícios,
materiais escolares, esportivos, artísticos, pedagógicos e uoiformes) e ainda é permitido que
30% desses recursos sejam utilizados para pagamento de monitores desde que não se
prejudiquem as ações essenciais.
UM OLHAR SOBRE O DISCURSO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES DO
PETI EM JOÃO PESSOA
Das 12 crianças, 08 são meninos e 04 meninas, dos quais 05 estão na fase de préadolescência – 09 a 11 anos e 07 são adolescentes com idade entre 13 a 15 anos. A grande
maioria apresenta defasagem entre a idade e a série escolar que cursa, com incidência
elevada de reprovação e repetência. De todos, apenas um tem idade compatível com a
escolaridade. Os demais têm defasagem escolar até 5 anos. Alguns só entraram na escola
depois do PETI.
3
Segundo o Manual de Orientações, a jornada ampliada fica em gestão estadual somente quando o município
não estiver habilitado para a gestão municipal.
176
O grupo familiar predominante é constituído de mais de 05 pessoas, que de 50% não
contam com a figura paterna, e a mãe, na sua maioria, não trabalha, havendo inclusive
alguns que são criados e mantidos pelos avós. Aproximadamente 70% das famílias têm
como rendimento fixo apenas os recursos provenientes das bolsas do PETI.
Para a maioria das crianças e adolescentes, há uma valorização do PETI por parte da
família com ênfase significativa para as bolsas, compreendidas como ajuda financeira, ou,
até, como única fonte de recursos da família. Outro aspecto enfatizado é do PETI como
local de aprendizagem, ou simplesmente, como meio de ocupação da criança ou do
adolescente.
No que se refere ao nível de satisfação dessas crianças e adolescentes em relação ao
PETI, observa-se que quase todos afirmam estar satisfeito com o Programa. Percebe-se que
esse nível de satisfação supera algumas vezes o interesse da própria família, cuja motivação
se dá basicamente pelo interesse na “bolsa cidadã. Existem alguns que dizem vir
independentemente da bolsa, que estão ali porque gostam.
Diante da constatação de que 70% dos entrevistados sobrevivem com bolsa do
PETI, é compreensível que a bolsa ou, mais especificamente, o dinheiro seja o aspecto mais
enfatizado. Ou seja, a família enfatiza a bolsa, os educandos o espaço escolar, cuja
possibilidade de freqüência havia sido solapada pelo trabalho.
“Ajudou mais minha família, eu não tinha muita roupa, e agora dá para
comprar mais roupas, calçados e sapatos e botar comer em casa. E ai
ajuda mais, não fica só minha tia e meu primo trabalhando. Se eu não
tiver mais a bolsa eu vou continuar vindo, eu nunca falto, o meu irmão eu
acho que vem também, mas pela minha mãe eu acho que não”.
(Educando).
“Fala que o PETI é bom, por causa dos estudos, ele fala: Estuda que você
vai receber o dinheiro da bolsa e quando você crescer vai ser um
advogado, delegado, eu quero ser delegado para prender os bandidos”.
(Educando).
“Minha mãe precisava do dinheiro, e eu quero aprender informática...”
(Educando).
Embora a maioria tenha ingressado no PETI através da mãe, há alguns que foram
arregimentados em sinais de trânsito ou mesmo em atividades laborativas na rua. Há alguns
que não trabalhavam, mas moravam nas proximidades do lixão do Roger, área de grande
177
vulnerabilidade a todo risco social, inclusive às piores formas do trabalho precoce – no
lixão, por isso foram inseridas no PETI. As crianças e adolescentes confirmam isso.
Quando perguntados que, se não estivessem no PETI, o que estariam fazendo, a grande
maioria afirma que estaria trabalhando em serviço doméstico, ou em atividades na rua,
trabalhos esses exercidos antes de ingressarem no Programa e que nem sempre eram
exercidos com satisfação.
“Estaria em casa varrendo, lavando os pratos e lavando roupas”.
(Educanda).
“Estaria no sinal”. (Educando).
“Estaria na barraca lá do espaço cultural vendendo doces, balas, antes
também eu olhava carro”. (Educando).
“Eu estava cuidando de um bebezinho...” (Educanda).
Assumem por unanimidade que muita coisa mudou com o ingresso no PETI:
tiveram oportunidade de ampliar conhecimentos, sair da rua, comprar alguns utensílios
domésticos e pessoais, ingressar na escola, já que antes não havia interesses dos pais. As
falas dos educandos também enfatizam a bolsa, seu aspecto financeiro em detrimento da
saída do trabalho e do ingresso no processo educativo composto pelo complexo escola e
jornada ampliada.
“Mudou muitas coisas, agora eu não tô indo para o sinal e estou
estudando, ainda ganho dinheiro e ajudo minha avó”. (Educando)
Todos dizem gostar das atividades executadas nas oficinas, demonstrando certo
entusiasmo pela informática, esporte e lazer.
“Bom, eu gosto muito da informática”. (Educanda)
“Estou aprendendo a mexer no computador e aprendendo a escrever
muito, eu não sabia escrever muito e agora tô aprendendo já. O professor
do computador me ensina”. (Educando)
“Gosto muito da sexta – feira que tem lazer, brinco, pulo corda, tem
bambolê e futebol”. (Educanda)
178
Quanto aos que não gostam, as maiores incidências referem-se ao reforço escolar.
Mas apesar de não gostarem do reforço, apresentam sugestões para melhorar as oficinas.
Destacam os mesmos aspectos dos educadores, alegam a falta ou a insuficiência de
materiais de consumo e didáticos, tais como computadores, cadernos e lápis.
“(...) mais tem que ter computador novo, tem um estragado, tem que ter
um pra cada um e não pode faltar mais nada”. (Educando)
“Mais computadores”. (Educando)
“Só os materiais”. (Educanda)
“Só os materiais que agora estão faltando, caderno, lápis, lapiseira, folhas,
e também tem que ajeitar um computador quebrado e ter mais
computadores”. (Educando)
Os educandos apresentam a Jornada Ampliada como apoio e reforço às tarefas
escolares, contribuindo para a aprendizagem. Percebe-se que este é um fator que contribui
muito para as crianças e os adolescentes valorizarem o Programa.
“Melhorou em matemática, porque tinha conta que eu não sabia fazer, de
dividir, e a professora me ensinou. E também em ciências e inglês”.
(Educando).
“Tudo, ler, escrever, quando cheguei aqui eu não sabia fazer meu nome
todo, a professora me ensinou, agora eu sei fazer”. (Educando).
“Assim, quando eu não era do PETI eu fazia alfabetização ainda, ai
quando a professora passava tarefa eu ficava com medo e começava a
chorar, porque não tinha ninguém para me ajudar, ai depois que começou
o PETI eu trazia minhas tarefas, eu ainda estava na alfabetização
estudando de tarde aqui”. (Educanda)
A maioria conhece outras crianças que trabalham, mas, quando indagados sobre os
motivos pelos quais não estão no PETI, nenhum deles soube informar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos concluir que o PETI tem significativa importância para o público
entrevistado. No que tange a equipe de monitores, podemos dizer que foi a inclusão no
179
Programa que possibilitou a todos a compreensão da questão do trabalho infantil. É nítida a
falta de formação específica para a intervenção na questão. Tornando-se necessária a
definição de um plano político-pedagógico para o trabalho com estas crianças e o
fortalecimento do processo de capacitação dos monitores. Para as crianças e adolescentes, o
PETI, em determinada circunstância, aparece como redenção econômica de grande parte
das famílias, visto que a bolsa conferida constitui a única renda fixa destas.
É possível constatar que ainda há um fosso entre o processo de escolarização formal
e a jornada, fato que demandaria articulação para que se pudesse reverter o processo de
defasagem, repetência e evasão desses meninos e meninas. O que implicaria também a
qualificação tanto de professores como de monitores para contribuírem nesse processo.
É notória a defasagem do valor destas bolsas, mas, para alguns, principalmente na
figura da mãe, que é quem recebe a bolsa, não há interesse na participação do filho na
jornada. O atraso da bolsa é utilizado como um instrumento de ameaça para a retomada do
trabalho pelo educando. Além do que, nas mais das vezes, o valor obtido desse auxílio
quase sempre é inferior aos rendimentos obtidos pela criança na atividade laborativa.
O grande desafio do PETI no município de João Pessoa consta na limitação dos
recursos, na ausência de um plano político-pedagógico, estrategicamente definido para o
trabalho com as crianças e as famílias, algo que trace os objetivos do trabalho educativo
desenvolvido nestas oficinas, não só do ponto de vista do reforço da aprendizagem escolar,
mas de resgate da fase lúdica de vida usurpada dessas crianças. Necessário seria chegar-se
às famílias dessas crianças com efetiva parceria, participação e promoção humana.
O trabalho com as famílias demanda apoio psicossocial e um programa efetivo de
geração de renda e de formação profissional, particularmente porque há arraigada uma
cultura da naturalização do trabalho dos filhos que também é visto como tábua de salvação
para as necessidades do grupo familiar.
O trabalho precoce dos filhos, na maioria dos casos, é uma forma de compensar o
desemprego dos pais que estão à margem do mercado de trabalho, porque não têm
profissão nem qualificação, vivendo de “biscates” e de trabalhos eventuais, de baixíssima
remuneração.
Incluir essas famílias no processo permanente de capacitação para ocupação e renda
parece tão vital quanto atender uma criança no tempo integral. Este constitui o meio
180
indispensável para as famílias. A Prefeitura, ao longo desses anos, tem realizado alguns
cursos de qualificação profissional e artesanato para as mães e pais do PETI. A
administração municipal não dispõe de avaliação sobre a contribuição desses cursos na
melhoria das condições de vida dessa população. Assim como também não há uma
sistematicidade na continuidade das mesmas. Deste modo, às vezes, os recursos utilizados
são desperdiçados, porque há descontinuidade das ações e falta de acompanhamento.
Na verdade apenas uma vez foram repassados recursos pelo Governo Federal para
este tipo de atividade, não havendo incentivo para implementação de ações decorrentes
desses cursos.
Na parceria entre Município e Governo Federal, é inegável a sobrecarga municipal,
a quem compete a execução, controle, acompanhamento e maior investimento financeiro na
manutenção da Jornada Ampliada. Cada criança atendida custa para a Prefeitura Municipal
R$ 45,00 (quarenta e cinco reais); desses, R$ 10,00 (dez reais) são repassados pelo
Governo Federal.
O Programa de Erradicação do trabalho Infantil precisa de ênfase na inclusão social
de famílias, e não apenas na ajuda econômica e na atenção à criança. Além disso, também
carece de articulação da jornada ampliada com a escola.
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experiências de Pernambuco, Mato Grosso do Sul e Bahia. São Paulo: EDUC; IEE/PUCSP:FINEP, 2000.
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Brasília, 2000.
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______. Ministério da Previdência e Assistência Social. Diretrizes e normas para
implementação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Brasília, 1997.
______. Ministério da Previdência e Assistência Social. Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil – PETI: Manual de Orientações do PETI. 1. ed. Secretaria de Estado de
Assistência Social: Brasília,. 2002.
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Jaguaribe e Sanhauá – URBVALE. João Pessoa, 199?.
182
CAPÍTULO 16
TRABALHO
PRECOCE
E
ESCOLARIZAÇÃO:
UM
COTIDIANO
DE
ADVERSIDADES
Olívia Maria C. G. de Sousa4
Maria de Fátima Pereira Alberto5
Este artigo enfoca uma questão que nas últimas três décadas tem sido alvo de
discussão e preocupação no âmbito nacional e internacional: o trabalho de crianças e
adolescentes, cuja prática caracteriza o que se considera como trabalho precoce (Alberto,
2002).
O trabalho precoce constitui uma temática ampla, que vem suscitando debates tanto
em relação às questões dos Direitos Humanos, especialmente na linha dos direitos sociais
determinados pela legislação em vigor; quanto em termos das implicações biopsicossociais,
as quais abrangem aspectos como: desenvolvimento físico e psicológico, saúde, lazer e
escolaridade. Este último, o principal foco do nosso estudo, tem como objetivo abordar as
conseqüências negativas que o trabalho precoce traz para o processo de escolarização das
crianças e adolescentes que desenvolvem atividades de trabalho.
Para além das implicações no processo de escolarização, os indivíduos
que se inserem precocemente no mundo do trabalho também se
encontram mais predispostos a uma série de riscos. Riscos estes que os
tornam suscetíveis a situações de perigo e exploração, tais como: abuso
por parte do cliente; roubo ou extorsão de mercadorias e ganhos;
acidentes de trânsito; perseguição da polícia e negociantes;
vulnerabilidade aos traficantes de drogas e ao uso de substâncias tóxicas,
como a cola de sapateiro; aquisição de doenças, provocadas pela coleta
do lixo; danos psicológicos pelo isolamento em trabalhos realizados em
casa; lesões musculares e vertebrais por carregar cargas pesadas
(Marcus & Harper, 1998).
4
Psicóloga, Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba.
Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pósgraduação em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho –
GPST/UFPB e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB.
5
183
Retomando os aspectos relacionados à escola, convém colocar que as pesquisas e os
estudos que versam sobre a escolarização de crianças e adolescentes, trabalhadores
precoces, apontam os efeitos negativos que a necessidade de trabalhar exerce na
escolaridade desses indivíduos. De acordo com tais estudos, não é raro, entre os alunos
trabalhadores precoces, haver registrado, em seu histórico escolar, de experiências como:
repetir de série, ser reprovado no final do ano letivo, abandonar os estudos, ou, ainda,
apresentar nível de escolaridade aquém da idade, ou seja, estar em defasagem idade-série
(Fausto & Cervini, 1991; Rizzini e cols. 1996; Kassouf, 2002).
No Brasil, a pesquisa sobre trabalho infantil, realizada pelo IBGE como suplemento
da Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílio (PNAD,2001) e em convênio com a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), mostrou que crianças e adolescentes, na
faixa etária de 5 a 17 anos, que trabalham apresentam um nível de escolarização menor do
que aqueles que não trabalham, fato que ocorre em todas as regiões e Unidades da
Federação Brasileira.
Na Paraíba, vários estudos realizados sobre o trabalho de crianças, nas cidades de
João Pessoa, Bayeux, Santa Rita e Sapé, identificaram as implicações do trabalho precoce
na escolarização de crianças e adolescentes, conforme mostram os relatos abaixo:
•
“(...) a grande dificuldade em acompanhar os estudos e melhorar o
rendimento está diretamente relacionado ao trabalho” (Silva, Silva &
Araújo, 2003, p.194);
•
“(...) diante das tarefas do trabalho, eles acabam afastando-se da escola”
(Silva, Estrela & Kulesza,2003, p.139);
•
“(...) se ressentem mais ainda pelo fato de que o trabalho, aliado à vida nas
ruas, dificulta a escolaridade” (Lopes, Alberto & Dantas, 2003, p. 169);
•
“(...) o cansaço físico e mental provocado pelo trabalho precoce dificulta a
execução das tarefas escolares e não permite concentração no momento da
explicação em sala de aula” (Silva & Alberto, 2003, p. 182).
Assim, tem-se constatado que as implicações que interferem no processo de
aprendizagem propriamente dito, em sala de aula, são reflexos do tempo dedicado ao
trabalho, em detrimento do estudo, o que contribui para constantes faltas às aulas, tempo
184
restrito para estudar e se dedicar às tarefas de casa, dificuldades de concentração nas aulas e
de compreensão dos conteúdos, e, conseqüentemente, desinteresse pelos estudos (Alberto,
2002; Estrela 2004).
Por outro lado, a despeito das adversidades em conciliar trabalho e estudo, este
último tem uma dimensão simbólica muito significativa para os trabalhadores precoces,
uma vez que representa o meio, por excelência, de mudar de vida e conseguir algo
(trabalho, emprego) melhor no futuro.
Diante do exposto, urge ressaltar que, além das implicações adversas que o trabalho
imprime à escolaridade dos trabalhadores precoces, devem-se considerar, ainda, aquelas
que exercem repercussão a longo prazo, ou seja, que refletem na futura inserção no
mercado de trabalho, tendo em vista que a criança e o adolescente que trabalham, em
detrimento do estudo, têm mais possibilidade de tornar-se um adulto com baixa
qualificação profissional, e, conseqüentemente, com maiores dificuldades de desenvolver
uma atividade socialmente mais valorizada e de maior remuneração. Nesse sentido, as
expectativas de futuro dos trabalhadores precoces, que vêem no estudo uma forma de
melhoria de vida (se formar, conseguir um emprego bem remunerado), são gradativamente
suplantadas pelas próprias condições materiais a que estão submetidos.
Destarte, em que pesem os diferentes contextos sócio-culturais, os estudos indicam
que indivíduos de baixa escolaridade levam, como grupo, as maiores desvantagens (Patto,
1973; Cervini & Burger, 1991; Bourdieu & Passeron, 1992; Rizzini e cols., 1996; Kassouf,
2002; Alberto, 2002).
A luta desigual que crianças e adolescentes, trabalhadores precoces, travam na
rotina cansativa de trabalho e escola, esta última pode oferecer importantes contribuições
na tarefa de erradicar essa situação. A escola, além de constituir um espaço privilegiado de
formação e socialização básicas, de transmissão dos conceitos científicos, favorece o
desenvolvimento intelectual e cognitivo do indivíduo, assim como sua inserção social.
De acordo com Vygotsky (1989), o ensino escolar desempenha um papel importante
na formação dos conceitos de uma forma geral e, principalmente, dos conceitos científicos,
pois viabiliza o conhecimento sistemático sobre aspectos que ainda não se encontram na
vivência direta do indivíduo, como o conhecimento científico construído e o conhecimento
acumulado pela humanidade. Além disso, o processo de ensino escolar proporciona o
185
desenvolvimento das funções psicológicas superiores – aquelas que se referem ao modo de
funcionamento psicológico tipicamente humano, como: capacidade de pensamento,
linguagem, planejamento, memória voluntária, imaginação – através de um aprendizado
que é mediado pelos professores e pelos companheiros.
Ao explicar a relevância do ensino transmitido na escola para o processo de
desenvolvimento do indivíduo, Vygotsky (1989), faz uma importante distinção entre os
conhecimentos apreendidos na experiência pessoal, concreta e cotidiana, os quais
constituem os conceitos espontâneos, e os conhecimentos científicos ou elaborados, que são
construídos no contexto escolar.
Os conceitos aprendidos na escola, assim como as atividades desenvolvidas nesta,
introduzem novos modos de operação intelectual, abstrações e generalizações sobre a
realidade. Desse modo, o acesso ao conhecimento sistemático possibilita que o ser humano
se transforme. E essa transformação lhe permite aprender a ler e a escrever, obter o domínio
de formas complexas de cálculos, construir significados a partir das informações
descontextualizadas, ampliar seus conhecimentos, lidar com conceitos científicos
hierarquicamente relacionados, lhe tornando possíveis novas formas de pensamento, de
inserção e de atuação em seu meio (Rego, 1995).
Posto que o aprendizado escolar potencializa o desenvolvimento intelectual do
indivíduo, e que o trabalho precoce tem implicações na escolaridade das crianças e
adolescentes trabalhadores precoces, pode-se considerar que a não-ida à escola, em
detrimento do trabalho, em que não há a realização de atividades educativas, limita os
meios pelos quais estes indivíduos podem desenvolver funções psicológicas cada vez mais
complexas, bem como condições para a construção de novos conhecimentos e,
conseqüentemente, de atuação e transformação de seu meio social.
Destarte, a importância da formação escolar também se insere no caráter de
centralidade da Educação no tocante à erradicação do trabalho infanto-juvenil. De acordo
com a OIT (2001), o estabelecimento de programas sócioeducativos consiste num
mecanismo não só de preparação para o conhecimento científico, cultural e político, mas,
principalmente, necessário para o desenvolvimento integral do indivíduo.
Em se tratando da educação escolar, propõe-se o desenvolvimento de políticas
públicas que propiciem o ingresso ou o reingresso da criança e do adolescente na escola e,
186
principalmente, que garantam seu sucesso escola. Sob essa perspectiva, a escola, e não o
trabalho, passa a ser o palco de negociações na construção do conhecimento do indivíduo,
preparando-o para exercer sua cidadania de forma crítica e participativa, bem como sua
futura colocação no mercado de trabalho.
REFERÊNCIAS
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meninas em condição de rua de João Pessoa – PB. 2002, 300 f. Tese (Doutorado em
Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife. 2002.
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de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
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caso dos meninos trabalhadores na cultura do abacaxi. Monografia de Especialização nãopublicada, Curso de Especialização em Direitos Humanos, Universidade Federal da
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FAUSTO, A.; CERVINI, R. (Orgs.). O trabalho e a rua: crianças e adolescentes no Brasil
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187
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VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
188
CAPÍTULO 17
FORMAÇÃO E TRABALHO PARA AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES DAS
CLASSES POPULARES
Orlando Júnior Viana Macedo1
Maria de Fátima Pereira Alberto2
No presente artigo, pretende-se discutir o trabalho e a formação profissional de
adolescentes das classes populares. O que se justifica pelo fato de tal aspecto ser bastante
elucidativo na tentativa de se compreender a concepção de infância e adolescência,
sobretudo das classes populares, que vêm se fazendo presentes em nossa sociedade.
Para tal, será traçado um breve histórico das propostas de formação destinadas aos
adolescentes das classes populares para então se problematizar tais iniciativas, na tentativa
da desconstrução de concepções excludentes e exploratórias.
Os primeiros sinais de preocupação com a formação do indivíduo, de acordo com
Pillotti e Rizzini (1995), fizeram-se presentes através dos Asilos da Infância dos Menores
Desvalidos de 1854, sendo que esta se deu no sentido de torná-lo útil para a sociedade e
para o Governo. Como assinala Shueler (1999), havia um consenso entre os dirigentes do
Estado Imperial, no que se refere à visão de que a educação era capaz de produzir riquezas,
uma vez que incutiria nas crianças e nos jovens o amor ao trabalho.
Vale salientar que os ofícios aprendidos por estas crianças, através desse processo
de formação, não traziam nenhuma possibilidade de inserção em postos de trabalhos bem
remunerados, não possibilitavam ascensão social, mantendo, assim, o perverso ciclo vicioso
da pobreza.
Em 1909, foram criadas as Escolas de Aprendizes Artífices, eram destinadas tanto
aos “menores viciosos”, em conflito com a lei, quanto aos que fossem encontrados sós em
1
Psicólogo, Mestrando em Psicologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFPB.
Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pósgraduação em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho –
GPST/UFPB e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB.
2
189
via pública, por falta ou omissão dos pais. Essas crianças eram institucionalizadas e
encaminhadas ao trabalho, pela própria instituição que os abrigava, a troco do seu sustento.
Pillotti e Rizzini (1995) chamam atenção para o fato de essa intervenção do Estado
não se realizar como uma forma de universalização de direitos, mas de categorização e de
exclusão, sem modificar a estratégia de manutenção da criança no trabalho, sem deixar de
lado a articulação com o setor privado e sem combater o clientelismo e autoritarismo.
No plano internacional, o direito do trabalhador ganha espaço nas discussões
humanísticas, sendo criada, em 1919, a Organização Internacional do Trabalho – OIT, que,
neste mesmo ano, expediu a Convenção nº 5, que proibia o trabalho de menores de 14 anos
em estabelecimentos industriais.
Além da OIT, na década de 20 do século passado, foi fundada a Associação
Brasileira de Educação – ABE e o Conselho Nacional de Educação em 1927, sendo que,
nesse ano, foi realizada, também, reforma educacional que organizou o ensino profissional.
Em 1927, foi promulgado, sob forma de decreto, o Código de Menores, que
incorporava tanto uma visão higienista de proteção do meio e do indivíduo como a visão
jurídica repressiva e moralista. De acordo com Pillotti e Rizzini (1995), nesse Código, a
orientação prevalecente da política para as crianças e adolescentes se coloca como um
“problema de menor”, tendo-se dois encaminhamentos, o abrigo e a disciplina, a assistência
e a repressão, havendo emergência de novas obrigações do Estado em cuidar da infância
pobre com educação, formação profissional, encaminhamento e pessoal competente. Ou
seja, surgiu uma preocupação com a infância e a juventude, mas pelo fato de estes, em um
futuro próximo, poderem vir a compor as “classes perigosas”, devendo, assim, as crianças
“em perigo” ter suas virtualidades sob controle permanente.
Dez anos mais tarde, a Constituição Outorgada de 1937 dispôs que era dever do
Estado propiciar educação à infância e à juventude pobres. Como fomento à
profissionalização dos filhos dos operários, estabeleceu a obrigação de as indústrias e os
sindicatos econômicos criarem, na esfera de suas especificidades, escolas de aprendizes
destinadas especificamente aos filhos de seus operários ou associados. Passa, então, a
educação profissional a receber colaboração das classes produtoras.
190
Essa constituição destinou a formação profissional para as classes menos
favorecidas (art. 129), respaldando a dualidade intrínseca à formação social brasileira, ou
seja, trabalho manual para uns e trabalho intelectual para outros.
De acordo com o Centro Internacional de Investigação e Documentação sobre
Formação Profissional – CINTERFOR (1998), a discussão sobre formação e qualificação
profissional só veio a se iniciar no Brasil, de maneira mais consistente, nos anos cinqüenta.
De acordo com tal documento, a educação pública não tinha capacidade de resposta,
com a rapidez requerida, às necessidades do mercado de trabalho emergente e especifica de
cada setor industrial. Nesse contexto, o governo promoveu a expansão das entidades
setoriais: o Serviço de Aprendizagem Industrial (SENAI) e Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial (SENAC), onde tais entidades tinham como função proporcionar
capacitação à força de trabalho, na quantidade requerida.
O que veio a reforçar a segmentação da educação brasileira em duas partes: uma
educação formal, pela qual se possibilita acesso a um conjunto básico de conhecimentos,
cada vez mais amplo, à medida que se avança nos estudos; e uma educação para o trabalho,
pela qual os alunos recebem um conjunto de informações relevantes para o domínio do seu
ofício, sem uma educação aprofundada que possibilite condições a alunos de prosseguirem
seus estudos ou qualificarem-se em outros domínios.
Ou seja, passou-se a proporcionar uma formação geral ou intelectual para as elites e
apenas um ensino primário e profissional para as classes populares, seguindo a lógica de
formar os filhos das classes dominantes para continuarem dominando e os filhos das classes
dominadas para continuarem se deixando dominar.
Vale lembrar que, já em 1967, a Constituição havia reduzido a idade da proibição
para o trabalho, que passou a ser 12 anos, visando incorporar mais cedo mão-de-obra ao
mercado de trabalho, reforçando a estratégia de utilização precoce da mão-de-obra infantil,
que, na sua totalidade, era composta pelos filhos das classes trabalhadoras.
No período da Nova República, mais especificamente no governo Sarney (1986),
foi desenvolvido
um programa
intitulado
“Bom
Menino”,
cuja essência era
encaminhamento de crianças e adolescentes das classes populares para o trabalho, mas que,
na prática, de acordo com Guareshi (1988), tal programa se justificava como uma
191
prevenção à marginalidade, ou seja, novamente a concepção de que é melhor as crianças e
adolescentes trabalharem para se evitar a criminalidade.
Atualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, no que se refere ao
trabalho, em seu capítulo V, trata do direito à profissionalização e à proteção no trabalho.
No Art. 60º, proíbe qualquer trabalho a menores de catorze anos de idade, salvo na
condição de aprendiz. E, no Art 63º, garante formação técnico-profissional que respeite o
acesso e freqüência obrigatória ao ensino regular, a compatibilidade com o
desenvolvimento do adolescente e horário especial para o exercício das atividades.
A condição de aprendizagem é aquela em que o adolescente3 se profissionaliza
trabalhando, através do Programa Adolescente Aprendiz, ou seja, dentro de um processo
educacional previsto em lei, em que lhe são ministrados, pelos órgãos competentes (Senai,
Senac e Senar ou Escolas Técnicas de Educação e organizações não-governamental), cursos
que têm por objetivo levar-lhe o conhecimento teórico-prático de um determinado ofício,
cujo exercício exige uma pré-qualificação.
No que se refere aos aspectos legais, através do Programa Adolescente Aprendiz,
percebe-se uma preocupação em relação ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e
social dos adolescentes, bem como a compatibilidade do trabalho que lhe é ofertado com as
especificidades desta fase de desenvolvimento.
Teoricamente, essa nova proposta de formação vai de encontro com todas as
políticas desenvolvidas para os adolescentes das classes populares, uma vez que,
historicamente, sempre se fez presente uma concepção excludente e exploratória. No
entanto, estudos que abordam o sentido atribuído pelos adolescentes à formação4 sinalizam
para o caráter disciplinador e para o fato de tal programa corresponder pouco às demandas
dos adolescentes das classes populares, parecendo preocupar-se mais com as demandas do
mercado.
Percebe-se, pois, que a exploração da mão-de-obra infanto-juvenil, ocultada sob o
discurso da filantropia, sempre foi importante elemento de contenção dos custos do
trabalho, bem como o fato de as propostas de formação, sobretudo para as crianças e
3
Recentemente, Emenda Constitucional alterou a idade de 14 a 18 anos para 14 a 24 anos.
Pesquisa de mestrado em andamento, desenvolvida pelo autor do artigo, intitulada o Sentido da Formação
para o Trabalho e as Expectativas em Relação ao Futuro por parte dos Adolescentes Aprendizes.
4
192
adolescentes das classes populares, sempre aparecerem como resposta às necessidades do
mercado, ou seja, seguindo os ditames do capital.
Fazem-se assim necessárias reflexões mais cuidadosas acerca da formação
profissional, pois, como coloca Franco (1998), esta pode ser vista como uma resposta
estratégica, porém polêmica, aos problemas postos pela globalização, pela reestruturação
produtiva, pela busca da qualidade e competitividade, pelas transformações do mundo do
trabalho e pelo desemprego estrutural. Este autor considera que
Do ponto de vista dos empresários, a formação profissional tem um
endereço claro, aumentar a produtividade do trabalho, a qualidade
e a competitividade dos produtos, gerar riqueza. Há ainda uma
questão de poder, da visão de quem vê e não é visto, de quem
decide quais devem ser as mudanças, em que tempo e espaço, com
que objetivo, com que meios, em que condições, com que
trabalhadores. (Franco, 1998, p.102).
Esse mesmo autor coloca que, em relação aos trabalhadores e às suas necessidades
de sobrevivência, parece haver menor clareza quanto às opções concretas de formação
profissional para a aquisição de novas habilidades e conhecimentos, para valorização da sua
força de trabalho.
Portanto, a problemática da formação profissional permanece na ordem do dia e
traduz as diferentes visões e estratégias de instrumentalização do saber, do trabalho, e suas
repercussões sobre a qualidade das relações das pessoas.
Nesse sentido, Frigotto considera que:
(...) é crucial mostrar que as propostas dominantes de políticas
educacionais e de formação técnico-profissional de qualificação,
requalificação e reconversão centrada nas perspectivas de
habilidades básicas e das competências para a empregabilidade
ignoram ou desprezam as relações de poder profundamente
assimétricas, os limites do desenvolvimento industrial
capitalista...Ou seja, propostas educacionais, tais como estão
afirmadas hoje no Brasil, desvinculada de uma proposta
democrática e pública de desenvolvimento, geração de emprego e
renda e de uma alternativa de relações sociais de novo tipo,
reduzem-se, dominantemente, a um invólucro de caráter ideológico.
(Frigotto, 2001, p.29).
193
Como questiona o autor supracitado, não seria interessante pensarmos a educação e
a formação profissional de adolescentes desatreladas de objetivos interesseiros, estreitos e
imediatistas, conseqüentes do mundo capitalista, que atendem aos modelos pedagógicos das
competências, habilidades e valores subordinados ao capital? Não seria interessante
buscarmos, assim, uma educação e formação centradas no desenvolvimento das múltiplas
dimensões da vida humana, que levem em consideração os trabalhadores do setor formal,
informal, bem como os desempregados, procurando-se educar não só para o trabalho, mas,
principalmente, para a vida, para a cidadania.
Pois, como bem coloca Paiva (2001),
(...) não se trata apenas de qualificar para o trabalho em si, mas
para a vida na qual se insere o trabalho, com uma flexibilidade e
um alcance suficiente para enfrentar o emprego, o desemprego e o
auto-emprego e para circular com desenvoltura em meio a muitas
“idades” de tecnologia, com a possibilidade de entender e usar
máquinas mais modernas e de fazer face a suas inúmeras
conseqüências na vida social e pessoal. (p. 56).
Faz-se mister, portanto, pensarmos uma aprendizagem capaz de realmente articular
teoria e prática, possibilitando ao aluno conhecimento do trabalho produtivo, de forma a
extinguir a indesejável ruptura entre trabalho manual e intelectual. Ou seja, uma educação
que se funde no pressuposto de uma forma educativa que faça emergir um novo homem,
um indivíduo plenamente desenvolvido, em oposição àquele qualificado unilateralmente
para o mercado de trabalho.
REFERÊNCIAS
CINTERFOR. Formacion y trabajo. Rio de Janeiro: SENAI/DN, 1998.
FRANCO, M. C. Formação profissional para o trabalho incerto: um estudo comparativo
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perspectivas de final do século. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
FRIGOTTO, G. (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final do século. Rio
de Janeiro: Vozes, 1998.
______. Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática.
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Petrópolis: Vozes, 1995b.
194
GUARESHI, P. A. O “programa bom menino” ou de como preparar mão-de-obra barata
para o capital. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 27, 1988.
PAIVA, V. Qualificação, crise do trabalho assalariado e exclusão social. In: GENTILI, P.;
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Universitária/Santa Úrsula, 1995.
SHUELER, A. F. M. Crianças e escolas na passagem do Império para República. Revista
Brasileira de História, Ano 19, n. 37, p.59-84. São Paulo, 1999.
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livro Criancas e adolescentes trabalhando?Uma