1 CRIANÇAS E ADOLESCENTES TRABALHANDO? UMA ALTERNATIVA DE SOBREVIVÊNCIA QUE ATRAVESSA GERAÇÕES 2 Maria de Fátima Pereira Alberto Organizadora CRIANÇAS E ADOLESCENTES TRABALHANDO? UMA ALTERNATIVA DE SOBREVIVÊNCIA QUE ATRAVESSA GERAÇÕES Editora Universitária João Pessoa 2007 3 Coordenadora Maria de Fátima Pereira Alberto Técnicas Extensionistas Bernadete de Oliveira Nunes Maria Helena Serrano F. Lins Secretária Maria da Luz Alberto Mestrandos, Monitores, Estagiários, Bolsistas e Voluntários Ádria Melo Soares Daniele Cristine da Silva Cirino Gabriel Pereira de Souza Juliane de Sousa Fernandes Nozângela Maria Rolim Dantas Olívia Maria C. G. de Sousa Orlando Júnior Viana Macedo Taiana da Silva Nunes Revisão dos originais Francisco de Assis Dantas Digitação Daniele Cristine da Silva Cirino Desenho de Capa Anselmo de Oliveira Nunes Arte da Capa Anselmo de Oliveira Nunes Alunos do 2º Curso: Adalvaci de Medeiros Barreto Edilma Ferreira dos Santos Filomena Elisa de Sousa Pignata 4 Gabriel Pereira de Souza Hélder Oliveira da Silva Hosana Celi Oliveira e Santos Juliane de Sousa Fernandes Lijavan Lins Luciana de Souza Pereira Luzinete Victor de Barros Maria das Graças Santos Maria de Lourdes Alves Rodrigues Maria do Socorro Santos Neves Maria José Basílio de Oliveira Maria Patrícia Mendonça de Albuquerque Marinésio Pequeno da Silva Milane Rocha Oliveira Rita de Cássia Pereira Valdelice Oliveira de Souza Valquíria Lira Oliveira Zuleide Ferreira da Silva Coordenadora do Unicidadania Ronidalva de Andrade e Melo Ministério das Relações Exteriores da Itália Cooperação Italiana Movimento Leigo América Latina – MLAL Coordenador do MLAL no Brasil Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ Universidade Federal da Paraíba [email protected] 5 “É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz”. (Art. 60 do Estatuto da Criança e do Adolescente). “Já trabalhei com minha mãe e meu padrasto no lixão. Lá as pessoas brigam para catar o lixo. Uma vez um homem jogou um pedaço de ferro no outro e ele morreu”. (fala da criança de 12 anos). “Me sinto muito triste, quando a gente passa as pessoas dizem, ei, cata lixo, fica nos humilhando”. (fala da adolescente de 14 anos). 6 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO, 10 1. A FORMAÇÃO DE AGENTES DE DIREITOS HUMANOS PARA A ATUAÇÃO NA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL, 13 Maria de Fátima Pereira Alberto Daniele Cristine da Silva Cirino Nozângela Maria Rolim Dantas Taiana da Silva Nunes Ádria Melo Soares Maria Helena S. França Lins Bernadete de Oliveira Maria da Luz Alberto 2. MENINOS E MENINAS CATADORES E CATADORAS DE LIXO RESIDENCIAL NO BAIRRO DE TIBIRI II – Santa Rita/PB, 30 Zuleide Ferreira da Silva. Maria do Socorro Borges Barbosa 3. ADOLESCENTES FEIRANTES DE VÁRZEA NOVA: REALIDADE E PERSPECTIVAS, 39 Luciana de Souza Pereira Rita de Cássia Pereira Bernadete de Oliveira 4. TRABALHO PRECOCE E PRECARIZAÇÃO: UM ESTUDO DA ATIVIDADE FRETISTA EM BAYEUX, 46 Marinésio Pequeno da Silva Marinalva de Sousa Conserva 7 5. O VAI E VEM DA MARÉ: O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO ESTUÁRIO DO RIO PARAÍBA NA CIDADE DE BAYEUX, 58 Gabriel Pereira de Souza Hélder Oliveira da Silva Maria de Fátima Pereira Alberto 6. “VAI UM ‘CARREGO’ AÍ”? A DURA LIDA DOS FRETISTAS EM MANGABEIRA, 69 Maria José Basílio de Oliveira Maria das Graças Santos Edil Ferreira da Silva 7. MENINOS QUE FREQÜENTAM O CLUBE DO MENOR TRABALHADOR, 81 Edilma Ferreira Dos Santos Lijavan Lins Milane Rocha Oliveira Bernadete Oliveira Maria Helena S. França Lins 8. O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA: DANOS PSICOSSOCIAIS E NEGAÇÃO À INCLUSÃO SOCIAL, 93 Juliane de Sousa Fernandes Sandra Magda Araújo de Almeida Xavier 9. A VIOLÊNCIA DO TRABALHO INFANTO-JUVENIL DOMÉSTICO, 105 Valdelice Oliveira de Souza Anísio José da Silva Araújo Marlene de Melo B. Araújo 8 10. TRABALHO INFANTO-JUVENIL DOMÉSTICO: UMA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS, 115 Luzinete Victor de Barros Maria Lígia Malta de Farias 11. A REPRODUÇÃO FAMILIAR A PARTIR DA ATIVIDADE DE CATA DE LIXO: UMA ALTERNATIVA DE SOBREVIVÊNCIA QUE ATRAVESSA GERAÇÕES, 127 Maria Patrícia Mendonça de Albuquerque Valquíria Lira Oliveira Thereza Karla de Souza Melo 12. PAIS DESEMPREGADOS: CRIANÇAS TRABALHANDO? A RELAÇÃO ENTRE DESEMPREGO DOS PAIS E TRABALHO PRECOCE, 136 Maria do Socorro Santos Neves Maria de Lourdes Alves Rodrigues Anísio José da Silva Araújo 13. A VISÃO DOS PAIS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES INSERIDOS NO PETI, 148 Adalvaci de Medeiros Barreto Maria de Fátima Pereira Alberto 14. ATUAÇÃO DO PETI NA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL NO ASSENTAMENTO CAMPOS DE SEMENTES E MUDAS CRUZ DO ESPÍRITO SANTO/PB, 158 Hosana Celi Oliveira e Santos Maria do Socorro Borges Barbosa 9 15. O IMPACTO DO PROGRAMA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL – PETI – NA VIDA DAS CRIANÇAS TRABALHADORAS PRECOCES NO MUNICÍPIO DE JOÃO PESSOA: A AÇÃO DA JORNADA AMPLIADA, 169 Filomena Elisa de Sousa Pignata Maria de Fátima Pereira Alberto 16. TRABALHO PRECOCE E ESCOLARIZAÇÃO: UM COTIDIANO DE ADVERSIDADES, 182 Olívia Maria C. G. de Sousa Maria de Fátima Pereira Alberto 17. FORMAÇÃO E TRABALHO PARA AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES DAS CLASSES POPULARES, 188 Orlando Júnior Viana Macedo Maria de Fátima Pereira Alberto 10 APRESENTAÇÃO Uma sociedade em que os trabalhadores são explorados e têm seus direitos relativizados, flexibilizados conforme os interesses conjunturais do capital, em que crianças e jovens são violentados das mais variadas formas, em que os idosos são desqualificados como cidadãos, não é uma sociedade boa de viver. Pelo contrário, essa é uma sociedade construída através de mecanismos que produzem processos de desumanização. É uma sociedade doente e que produz doença. É uma sociedade que produz seres humanos desumanizados, porque os limites que impõe ao livre desenvolvimento das pessoas cerceiam a capacidade crítica e criativa delas. No entanto, há pessoas que vivem numa sociedade desse tipo e acreditam que a amizade e a generosidade devem ser os principais princípios reguladores da convivência social, pois é a forma pela qual o que há de melhor entre os humanos pode gerar dispositivos que combatam o que há de pior. Para essas pessoas, os processos sociais desumanizadores devem ser permanentemente denunciados e deve-se procurar criar mecanismos de combate e de transformação de tudo aquilo que produz e sustenta esses processos. A sociedade brasileira é uma dessas sociedades e, particularmente, a sociedade paraibana. Porém, as pessoas que participaram da produção dos artigos deste livro estão entre aquelas que se dispõem denunciar e combater os mecanismos de desumanização, entre eles, os mecanismos e práticas sociais de violência contra crianças e adolescentes, são produzidos através do trabalho infanto-juvenil. Os autores dos artigos que compõem este livro foram professores e alunos do II Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural. Esse Curso ocorreu nos anos de 2003 e 2004 e foi organizado pela Universidade Federal da Paraíba, envolvendo vários de seus segmentos acadêmicos como o Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares (SEAMPO) do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA), Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho, também do CCHLA, Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CERESAT) do Centro de Ciências da Saúde (CCS) e Laboratório de Geografia da Paraíba do Centro de Ciências Exatas e da Natureza (CCEN). O Curso ocorreu através de convênio 11 entre a UFPB e uma ONG italiana, o Movimento Leigo para a América Latina (MLAL), através de seu projeto Universidade e Cidadania (Unicidadania), e que viabilizou apoio financeiro do Ministério das Relações Exteriores do governo italiano para a realização do curso. O primeiro capítulo do livro descreve os objetivos e as concepções que nortearam a realização desse Curso, assim como sua forma de organização e operacionalização. Em outros capítulos, são apresentadas e discutidas, em alguns, de forma sumária, e, em outros, de forma mais aprofundada, várias situações de trabalho infanto-juvenil na Paraíba, tanto no meio urbano como no meio rural, onde crianças e adolescentes, meninos e meninas, vivem as mais variadas condições de exploração, sofrimento físico e mental, frustração e cerceamento de direitos. Essas situações foram verificadas in loco, através de observações e entrevistas realizadas pelos alunos e sob a supervisão de professores do Curso. Da mesma forma, são também apresentadas e discutidas, em outros capítulos, as visões dos pais sobre o tema do trabalho dos filhos menores, da relação entre desemprego dos pais e trabalho precoce. Também são analisadas práticas implementadas por políticas públicas decorrentes do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e por entidades civis que trabalham com esse tema. Os dois últimos capítulos tentam discutir o que tem sido chamado de trabalho precoce e sua relação com a escolarização, assim como a relação entre trabalho e formação profissional de adolescentes das classes populares. O Curso conseguiu articular a tão falada, mas pouco exercitada, integração entre ensino, pesquisa e extensão. Por isso, propiciou aos alunos, na grande maioria com experiências importantes de trabalho junto a famílias, crianças e jovens do meio popular, a oportunidade de aprofundar o debate sobre suas experiências, alargando o significado delas e discutindo as possibilidades concretas de consolidação e ampliação de seus trabalhos profissionais. Neste sentido, é importante destacar o elenco de resultados concretos que o trabalho de extensão universitária proporcionado pelo Curso produziu, através do envolvimento de seus professores e alunos e das parcerias exercitadas, apresentados no primeiro capítulo. Este livro, ao denunciar atrocidades, não é pessimista. É um convite à participação em um projeto de luta contra uma das maiores perversidades do capitalismo: transformar o 12 trabalho em formas de degradação humana, particularmente, quando isso significa transformar a fragilidade e o sonho de crianças e adolescentes em frustração, desencanto com a vida e sofrimento. Genaro Ieno Neto Professor do Depto de Psicologia UFPB 13 CAPÍTULO 01 A FORMAÇÃO DE AGENTES DE DIREITOS HUMANOS PARA A ATUAÇÃO NA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL Maria de Fátima Pereira Alberto1 Daniele Cristine da Silva Cirino2 Nozângela Maria Rolim Dantas3 Taiana da Silva Nunes4 Ádria Melo Soares5 Maria Helena S. França Lins6 Bernadete de Oliveira7 Maria da Luz Alberto8 INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é apresentar um modelo de formação de agentes de direitos humanos para atuarem na erradicação do trabalho infantil e defesa do adolescente trabalhador. Esta formação teve como cenário o 2º Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural. O curso deu-se como prática de extensão universitária na tentativa de se viabilizar os Direitos Humanos através da Educação Popular 1 Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pósgraduação em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho – GPST/UFPB e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB. 2 Licenciada em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba; Graduanda do Curso de Formação em Psicologia/UFPB. 3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Federal da Paraíba/UFPB; Licenciada em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba/UFPB. 4 Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba/UFPB. 5 Psicóloga. Educadora do Programa Sentinela. 6 Comunicóloga. Educadora do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO. 7 Psicóloga. Mestra em Saúde do Trabalhador pela EBSP/FIOCRUZ. Educadora do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO. 8 Secretária do Departamento de Comunicação-DECOM da Universidade Federal da Paraíba- UFPB. 14 Neste modelo, a extensão ocupa o primeiro lugar, o de pólo articulador, uma vez que foi a partir desta atividade que se constituiu a proposta de se formar agentes de direitos humanos para atuarem na erradicação do trabalho infantil e na defesa do adolescente trabalhador. No entanto, a extensão carecia da pesquisa e do ensino para que se pudesse concretizar esse modo de fazer intervenção que, ao mesmo tempo, produzisse conhecimento e o transmitisse, num processo de retroalimentação. Assim como a Educação Popular e os Direitos Humanos, as noções de Comunidade Ampliada de Pesquisa foram norteadores dessa experiência de formação. A TRAJETÓRIA DO CURSO DE FORMAÇÃO DE AGENTES Desde a década de 80, professores da Universidade Federal da Paraíba estudam, pesquisam e produzem sobre a temática do trabalho infantil. Nessa trajetória, em que havia o contato com a literatura sobre a infância, algumas questões nos chamavam a atenção: Quanto à primeira, a infância da criança das classes subalternas é representada, nos referenciais teóricos, como aqueles indivíduos à margem, excluídos, tanto nas instituições de atendimento quanto no Código do Menor de 1927. O trabalho é visto e pensado para esses sujeitos como um instrumento disciplinador. Até mesmo no discurso dos militantes, dos movimentos sociais, esta questão não está suficientemente resolvida. O trabalho aparece como uma saída para a vida dessas crianças. Embora todos se digam contrários, alguns concebem o trabalho como formador ou capacitador. Tais abordagens são formas que camuflam a exploração e que têm, na sua gênese, a precocização e a discriminação da criança, uma vez que o trabalho é pensado apenas para as crianças dessas classes. Quanto à segunda questão, já víamos com particular interesse que, mesmo discutindo e refletindo sobre a erradicação do trabalho precoce, os movimentos sociais com que trabalhávamos apresentavam dois problemas: a) havia pouco acesso a pesquisas que na Paraíba, tratavam desta temática; b) considerava-se como dano a inserção precoce no trabalho, mas não se tinha muita clareza sobre quais eram esses danos,9 principalmente para 9 Exceção seja feita à obra de Moreira (1995) que trata dos impactos sobre a saúde de crianças trabalhadoras na cana-de-açúcar, na zona da mata da Paraíba. 15 algumas categorias de trabalhadores infantis, aquelas inseridas nas chamadas atividades invisíveis, como o trabalho informal e o trabalho doméstico. Seguindo essa trajetória, interessamo-nos em estudar as vivências subjetivas dos trabalhadores e trabalhadoras precoces (meninos e meninas) nas várias formas de trabalho. Entendemos que a inserção precoce é danosa para crianças e adolescentes, mas nos interessa compreender especificamente em que aspectos do desenvolvimento psicossocial ele é danoso. Em 1997, constituiu-se na Universidade um grupo multidisciplinar no campus I, cujo objeto da parceria que integrou professores, técnicos e estudantes, foi a realização de um projeto integrado de extensão, pesquisa e ensino na temática do Trabalho InfantoJuvenil. Tendo como respaldo esta trajetória de trabalho, a UFPB, através da parceria de vários setores (Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares/CCHLA, Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho/CCHLA, Centro de Referência em Saúde do Trabalhador/CCS e Laboratório de Geografia da Paraíba/CCEN), juntamente com o Projeto Universidade e Cidadania – Unicidadania10, se propôs a realizar no Estado da Paraíba um projeto de formação de agentes de direitos humanos na área do “Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural”, visando, através de cursos, contribuir na melhoria da ação profissional desses agentes, bem como, através da pesquisa, produzir e disseminar conhecimento sobre a temática, além de, através do ensino, formar profissionais graduados para atuarem na área e ampliarem a luta no combate ao trabalho infantil e na defesa dos direitos do adolescente trabalhador. Em 2002, realizou-se o primeiro curso e, nos anos de 2003 e 2004, realizou-se o segundo, de que trataremos aqui. FUNDAMENTOS TEÓRICOS QUE NORTEARAM O 2º CURSO Dada a proposta do curso que, como parte do projeto UNICIDADANIA11, foi a de se construir um modelo de formação de agentes de direitos humanos, fez-se necessária a 10 Projeto que concretizou, em 2001, as parcerias internacionais com apoio financeiro do Ministério das Relações Exteriores da Itália, através de uma Organização Não Governamental - ONG, com sede naquele país, o Movimento Leigo América Latina - MLAL. 11 O modelo formativo do UNICIDADANIA tem como fim último melhorar as condições de vida das populações excluídas. 16 construção de um arcabouço teórico e metodológico que incorporasse todos os aspectos anteriormente delineados, de modo a se lançar mão de uma bricolagem. Por bricolagem referimo-nos a um trabalho intermitente de ir e vir. Foi o que fizemos, já que carecemos, tanto nos trabalhos com movimentos populares quanto com organizações governamentais, de um referencial que permita conhecer a criança na sua totalidade biopsicossocial, que a compreenda como sujeito da sua história e cidadã em processo de desenvolvimento, e que possibilite formas de intervir próprias, adequadas à realidade social. Como o curso incorporou a pluridisciplinaridade e a pluriprofissionalização, ele foi transversalizado, além dos referenciais citados, por outras referências teóricas abordadas livremente por cada professor, considerando-se a especificidade de cada especialidade12, no contexto de cada módulo. Os módulos, por sua vez, abordaram os seguintes aspectos: sociologia do trabalho (de classe, gênero, urbano e rural), legislação, políticas sociais, psicologia (do trabalho, desenvolvimento, subjetividade), saúde coletiva, geografia do trabalho, história, direitos da criança, direitos humanos, educação popular e movimentos sociais. Os professores e técnicos de extensão que integraram o curso tinham diferentes formações, havendo psicólogo, pedagogo, filósofo, médica, advogada, historiadora, economista, geógrafa, comunicóloga, assistente social e engenheiro de produção. Tudo isto não se constituiu empecilho, e sim, um desafio que precisou ser construído. Reconhecemos que fundamentar teoricamente uma temática como o trabalho infanto-juvenil, que ainda se encontra em construção, foi uma tarefa difícil, uma experiência pela qual e sobre a qual se constrói uma forma de SE FAZER. A reflexão crítica possibilitou que se percebesse a existência de uma lógica inerente ao processo de SE FAZER, e, ao mesmo tempo, qualificar, produzir conhecimentos, contribuir na reflexão da prática e produzir um espaço de formação de agentes multiplicadores nas suas instituições de origem. Durante toda a elaboração e planejamento do curso, foram pensados e repensados os referenciais e colaboradores que pudessem contribuir articulando sua experiência à proposta de formação no curso, no sentido de que as teorias e as metodologias pudessem 12 Vale ressaltar que dada a complexidade que envolve a temática do trabalho infanto-juvenil, o modelo de formação demandou no curso abordagens híbridas e abordagens especialistas. 17 ser articuladas de forma interdisciplinar. Neste sentido, foram utilizados os seguintes referenciais: Educação Popular Tendo a educação popular como pano de fundo da ação, no curso de formação esta fundamentação foi utilizada para ministrarmos os módulos e coletivizarmos as atividades de campo dos alunos do Curso. Usamos, assim, a metodologia: “do que sabiam”, que denominamos “teoria da vida”, uma vez que entendemos o conhecimento acumulado com a experiência dos agentes e representantes das instituições como fonte de fundamentação de nossos trabalhos (Brandão, 1985; Sales, 1999). Dessa forma, construímos a experiência desses agentes junto com o conhecimento de especialistas e docentes das ciências humanas, da saúde e tecnológicas. Construímos coletivamente, sendo a Universidade representada por núcleos e setores de estudos juntamente com as representações dos Movimentos Sociais. O curso de formação, enquanto prática extensionista, foi uma maneira de promover a reflexão crítica, entre os agentes, da sua prática de trabalho, de forma que o percebessem como um instrumento de indignação, adquirindo um papel de sujeito coletivo e de agente social. De acordo com Melo Neto (2004), ver a extensão como um trabalho conduz à sua compreensão provida da dimensão humana, da essência do homem. Afirma ainda que a realidade circundante do fazer extensão sempre mantém o convite à necessária conexão entre a crítica, que precisa permanecer no fazer extensionista, e o seu próprio meio material: É importante o pensamento a partir de indivíduos reais, de sua ação, bem como de suas condições materiais de vida, tanto aquelas já existentes como as produzidas por sua ação. (...) A ação extensionista terá importância à medida que tiver, de forma explícita, uma utilidade produtiva voltada à vida humana. (Melo Neto, 2004, p.70-71). Neste sentido, o 2º Curso de Formação, como prática extensionista, teve como um de seus objetivos o pensar criticamente a partir da realidade, das necessidades e dos anseios dos agentes participantes do curso. Partindo assim, da compreensão do papel social de cada 18 um deles enquanto cidadão e enquanto agente atuante na promoção da cidadania e da defesa de direitos humanos da criança e do adolescente. Dessa forma, entendemos a extensão universitária como uma atividade acadêmica que nos permite estabelecer parcerias com a sociedade; refletir e produzir conhecimento nas respectivas áreas de atuação; e, no âmbito do ensino, conjugar teoria e prática (UNIMEP, 2000). Dentro de uma perspectiva da educação problematizadora, todos os sujeitos estão ativamente envolvidos no ato de conhecimento (Silva, 1999). É a própria experiência dos educandos que se torna a fonte primária de busca dos “temas significativos” ou “temas geradores” que vão constituir o “conteúdo programático”. Afirma ainda que, na obra de Paulo Freire, este não nega o papel dos especialistas, que, interdisciplinamente, devem organizar esses temas em unidades programáticas, mas o conteúdo é sempre resultado de uma pesquisa no universo experiencial dos próprios educandos, os quais são também ativamente envolvidos na pesquisa. O conteúdo programático da educação não deve ser uma imposição e sim uma devolução organizada, sistematizada e acrescida de conteúdo, daqueles elementos que foram entregues de forma desestruturada. As práticas extensionistas permitem à universidade promover o diálogo com grupos sociais que necessitam do conhecimento científico/técnico, cultural e artístico para a sua organização social, econômica e política. Nesta relação dialógica, o discente e o docente têm acesso ao saber popular, entre outros saberes da sociedade, desenvolvido na formulação de estratégias de sobrevivência da população. É facilitado, também, o contato com soluções criativas, próprias de quem enfrenta as crises da sociedade – conjunturais e/ou estruturais – na perspectiva da transformação. Nessa relação de parceria, a população se qualifica para, autonomamente, fazer escolhas de diferentes naturezas e a Universidade, por sua vez, recebe elementos para repensar as suas funções. Dessa maneira, pode-se obter mais competência, tanto na produção/socialização do conhecimento quanto na formação de futuros profissionais (UNIMEP, 2000, 7374). Dentro do contexto do 2º Curso, a formação se deu a partir das necessidades do grupo de alunos agentes. Como afirma Teixeira (2003), na concepção dialética, este processo expressa estreita relação entre a teoria e a realidade: a teoria “comanda”, servindo de guia para a reflexão sobre a realidade, para sua superação e transformação, trazendo 19 luzes, suscitando indagações, indicando e delimitando questões importantes no estudo de um tema. Porém, a realidade concreta, sobre a qual nos debruçamos com o objetivo de transformar, é que de fato condiciona o “comandante”, sempre num movimento mais vivo, dinâmico e rico que a teoria, mas necessitando nutrir-se dela para que ela lhe indique os caminhos da transformação. Portanto, a relação entre a teoria e a prática expressa-se numa atitude indissociável, na qual existe uma co-dependência construtiva entre ambas. No interior desta relação, temos um terceiro elemento que serve de canal de mediação entre as duas, que é o método. O método se configura na própria objetivação da teoria sobre o objeto real. Esta objetivação se dá num movimento criador, que leva à construção e reconstrução permanentes tanto da teoria quanto do método e do objeto (Teixeira, 2003: 50). Através da Educação Popular nos é permitido o contato direto com os problemas sociais, econômicos e políticos da sociedade, aspectos estes imprescindíveis à formação de profissionais cidadãos, dotados de valores e competências para o enfrentamento da realidade social com uma postura crítica e ética bem articulada. Desenvolve-se, então, uma concepção de que o ato de conhecer não é um ato isolado, individual, pois, de acordo com Silva (1999), conhecer envolve intercomunicação, intersubjetividade. Essa intercomunicação é mediada pelos objetos a serem conhecidos e é essa intersubjetividade do conhecimento que permite a Freire conceber o ato pedagógico como um ato dialógico. Assim, a atividade de extensão, como a prática da Educação Popular, torna-se uma via de aquisição e de troca de conhecimentos, um momento em que o conhecer necessita do fazer/experienciar, uma vez que é na ação/reflexão que se formam as concepções e conceitos (UNIMEP, 2000). Direitos Humanos O trabalho precoce é uma forma de violação dos Direitos Humanos, uma vez que agride os direitos universais: o direito à vida, à integridade física e à dignidade de pessoa humana. Nesse sentido, a formação de agentes de Direitos Humanos junto à temática do trabalho infanto-juvenil implica necessariamente o preparo para a investigação, para a 20 denúncia e proteção, para a responsabilização do Estado, além do monitoramento da garantia dos direitos e da aplicação de políticas públicas. Dessa forma, para ser capaz de reivindicar e defender esses direitos, é importante se conhecer as normas nas quais se fundamentam. Além disso, para fazê-los valer, os representantes da sociedade civil devem ocupar espaços institucionais existentes, tais como os conselhos de direitos. O monitoramento de políticas públicas se faz importante, uma vez que permite a observação dos avanços e recuos das propostas elaboradas para a erradicação da exploração da mão-de-obra infantil; sendo igualmente importante a ocupação, pelos representantes da sociedade civil, dos espaços destinados à atuação e conscientização de luta pelos direitos, tal como enfatiza Bucci (2001). Pensando na perspectiva dos Direitos Humanos, entendemos que o Estatuto da Criança e do Adolescente é, sem dúvida, um avanço na legislação brasileira em termos de defesa da criança e do adolescente, mas, infelizmente, ele é pouco operante no que tange ao cumprimento da Lei, principalmente no que diz respeito ao combate do trabalho infantil e defesa do adolescente trabalhador. Carecendo, então, de ações mais contundentes por parte, principalmente, da Sociedade Civil, no controle das políticas públicas, o que demanda formação, educação em cidadania. De acordo com Tosi (2004), a educação em direitos humanos ou em cidadania vem se constituindo, nos últimos anos, num campo específico de pesquisa e de intervenção com objeto, método, bibliografia próprios e um amplo e articulado movimento nacional (e internacional) de educadores.13 Segundo o referido autor, pode-se afirmar que ela está progressivamente substituindo a “educação popular” ou “educação libertadora”14, apontando algumas semelhanças e diferenças entre os dois movimentos: Acredito que a continuidade entre os educadores populares ou da libertação dos anos 70/80 e os educadores aos direitos humanos da metade dos anos 80 e da década de 90 é profunda e se refere substancialmente à mesma preocupação com a “libertação” das 13 Para maior aprofundamento sobre o crescimento do movimento de educação em direitos humanos, ver TOSI, G. A universidade e a educação em direitos humanos. In: ALBERTO, M. F. P. Trabalho infantojuvenil e direitos humanos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. 14 De acordo com Tosi (2004), um livro “pioneiro” que mostra, já no título, a “transição” em ato entre a educação popular e a educação em direitos humanos é: Direitos Humanos. Pautas para uma educação libertadora, dos padres do Serviço “Justiça e Paz” do Uruguai, Juan José Mosca e Luis Pérez Aguirre, editado em 1985, com ampla difusão em toda a América Latina. 21 classes populares e oprimidas, dos excluídos e marginalizados da sociedade, propondo uma concepção educativa participativa e transformadora inspirada na “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire, e, em geral, numa proposta educativa que se coloca a serviço de um projeto mais amplo de transformação política da sociedade: em busca de uma sociedade mais justa, mais humana e mais fraterna. Tudo isso permanece como horizonte comum; o que significa que a maioria das questões, dos temas, das metodologias próprias da educação popular passa para o movimento de educação em direitos humanos (...) (Tosi, 2004, p.78). Dessa forma, tal como cita Zenaide (2004), a educação em direitos humanos gestouse, portanto, no âmbito da sociedade civil, como uma ação político-pedagógica alternativa da educação popular cujos objetivos estavam voltados para a formação de uma cultura democrática em contraposição às práticas autoritárias. Neste projeto, não consideramos, ainda, a substituição de uma por outra, ou seja, da Educação Popular pelos Direitos Humanos, mas utilizamo-nos das duas buscando na primeira a forma metodológica da formação e, na segunda, os referenciais teóricos para tal. Nesse sentido, a educação em direitos humanos implica saber lidar com os elementos de conservação e inovação na sociedade; compreender com clareza as formas de violações presentes em cada contexto histórico e cultural; saber construir a leitura crítica da realidade; entender todas as formas sutis e físicas de violência, para que os sujeitos possam ter a consciência da necessidade de se construírem enquanto sujeitos de direitos e atores de sua história, de modo a recuperar a capacidade de indignação e de reação necessária para a superação das situações de violações (Zenaide, 2004). Especificamente sobre o trabalho precoce, através do curso de formação, reforça-se a percepção dos agentes sobre as implicações que repercutem diretamente em danos à saúde física e mental da criança e do adolescente, qualificando-os, assim, através do exercício da capacidade de indignação, junto aos princípios de direito, igualdade, respeito pelas diferenças, além da garantia efetiva de direitos já legalmente reconhecidos. Comunidade Ampliada de Pesquisa Dentro do contexto do Curso de Formação, tomamos emprestadas de Schwartz (1996) e de Odonne (1986) algumas noções de como fazer pesquisa coletivamente. Dessa forma, utilizamo-nos da concepção de comunidade ampliada de pesquisa, que surge, a 22 partir do Movimento Operário Italiano (MOI), como forma de articulação crítica do conhecimento das disciplinas com o saber prático da experiência dos trabalhadores. No contexto do Curso, esta metodologia foi usada para preparar e desenvolver as atividades de campo com os alunos do curso de formação, tendo como proposta a criação de um espaço de troca de saberes entre o saber acadêmico, cientifico, e o saber prático originado na atuação direta dos agentes com crianças e adolescentes nas mais variadas condições de trabalho e de vida. Essa construção de conhecimento é feita conjuntamente por professores, agentes, técnicos e bolsistas PROBEX, e, conseqüentemente, os alunos do curso constroem conhecimento junto com as crianças e adolescentes com os quais trabalham em suas instituições de origem. A construção desse conceito possibilita a compreensão de que o estudo do trabalho deve incorporar a ação conjunta de profissionais médicos, especialistas da prevenção e trabalhadores. Como no nosso caso não são os trabalhadores precoces que protagonizam no curso suas experiências, os modelos de Schwartz (1996) e de Odonne (1986) serviram a fim de que reuníssemos os agentes sociais15 para a coletivização dos dados e das experiências. O CURSO DE FORMAÇÃO DE AGENTES COMO PRÁTICA DE EXTENSÃO UNIVERSITARIA QUE VIABILIZA OS DIREITOS HUMANOS E A EDUCAÇÃO POPULAR Desenvolvemos, no 2º curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural, uma metodologia participativa de construção coletiva de saberes, voltada para a capacitação de agentes sociais dos movimentos sociais e de instituições públicas de assistência e de defesa da criança e do adolescente e para a produção de conhecimento. O curso contemplou os seguintes aspectos: a transmissão de conhecimentos; a produção coletiva de conhecimentos; a coletivização; articulação entre teoria e prática; a pluridisciplinaridade; a formação de agentes multiplicadores. E, metodologicamente, funcionou da seguinte forma: 15 Alguns deles reproduziram a mesma experiência com os adolescentes cujas atividades eram objeto de suas pesquisas. 23 1. Primeiramente, houve o resgate dos nomes e referências das instituições que lidam direta ou indiretamente com o trabalho infantil. Esse resgate foi efetivado através de listagens junto a várias instituições detentoras dessas referências: a) obtenção junto ao Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares (SEAMPO) de uma lista de que constava o nome das instituições que participaram do I Seminário sobre Direitos Humanos e Trabalho Infanto-Juvenil, em 2001, promovido pelo Grupo Trabalho Precoce, Gênero e Subjetividade; b) uma segunda lista cedida pelo Fórum de Defesa da Criança e do Adolescente na qual constavam instituições, dele participantes, que lutam pela erradicação do trabalho infantil; c) uma terceira lista feita a partir de indicações dos alunos do 1° Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural; d) por fim uma lista repassada pelo Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil e Defesa do Adolescente Trabalhador – FEPETI. 2. Do conjunto de listas, emergiu um mapeamento contendo aproximadamente 80 (oitenta) instituições que atuam direta ou indiretamente com o trabalho infantil, entre conselhos, pastorais, sindicatos, OG’s e ONG’s e que não tinham feito o 1º curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do trabalho InfantoJuvenil. Essas instituições foram contatadas através de um convite por escrito. Além disso, no ato da inscrição, foi respondido pela instituição um questionário que versava tanto sobre objetivos, ações e interesse da instituição, como sobre os interesses e disponibilidades do representante da instituição no curso. Em conseqüência dessa triagem, resultou um grupo de 31(trinta e uma) instituições. 3. Essas instituições foram posteriormente contatadas para enviar seus representantes a fim de participarem da reunião de sensibilização16. Neste momento, cada uma das selecionadas indicou a pessoa que representaria a instituição, ou seja, faria o curso, uma vez que era uma vaga por instituição e o membro representante também se tornaria um agente multiplicador junto a sua instituição de origem. 4. Ainda nos momentos antecedentes ao curso, foi realizada uma reunião para nivelamento da equipe e definição do corpo docente responsável pela administração dos módulos (conteúdos) dados no curso, além de levantamento das atividades de trabalho em que há inserção precoce, utilizando como registro a fotografia, bem como, encontro de 16 Essa reunião teve como finalidade a apresentação das propostas do curso às instituições. 24 sensibilização, seleção e construção de um contrato de parceria com as instituições participantes. 5. Dentre as atividades preparatórias, houve o contato com os professores para a preparação do material necessário à realização dos módulos; solicitação de material bibliográfico e fotocópia do mesmo; contato com os alunos e professores que fizeram parte do curso; reserva de salas e do auditório, organização das salas para a atividade do curso; reserva e disponibilização de recursos técnicos audiovisuais (vídeo, tv, retroprojetor e tela, entre outros); e seleção de material didático para uso em sala de aula (papel madeira, cartolina, lápis piloto, fita crepe, etc). 6. O curso propriamente dito foi organizado em dez módulos que funcionaram relativamente integrados e aproximaram-se metodologicamente da educação popular através da utilização de dinâmicas, exposição, reflexão e coletivização. O procedimento utilizado incluiu o levantamento da experiência de cada aluno na temática, após o que se procedeu à transmissão de conteúdos teóricos; a troca de conhecimentos teóricos e práticos; a ida a campo, com a respectiva construção de conhecimento sob a orientação de técnicos e professores; além da coletivização das experiências de pesquisa. A ida a campo possibilitou que os alunos identificassem várias faces do trabalho precoce que se transformaram em fonte de pesquisa: a dos meninos e meninas catadores e catadoras de lixo residencial, a dos fretistas, a dos feirantes, a das crianças e adolescentes trabalhadores precoces portadores de deficiências, a das crianças e adolescentes trabalhadores no estuário do rio Paraíba, a dos meninos que freqüentam o clube do menor trabalhador, a do impacto do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI – na vida das crianças trabalhadoras precoces, a da visão dos pais de crianças e adolescentes inseridos no PETI, a das trabalhadoras domésticas, a da relação entre desemprego dos pais e o trabalho precoce. 7. O pós-curso incluiu o fortalecimento do Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil – FEPETI com a adesão de algumas instituições, além do trabalho de mapeamento do trabalho infanto-juvenil na Paraíba, bem como a contribuição para a vinda, criação, sistematização e realização do Projeto Catavento no Estado da Paraíba. O Projeto Catavento está sendo desenvolvido pela Organização Internacional do Trabalho – OIT em parceria com o Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil e Defesa do 25 Adolescente Trabalhador – FEPETI, a Casa Pequeno Davi, que é a instituição executora, a Delegacia Regional do Trabalho – DRT e a Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Os objetivos do Projeto Catavento são contribuir para a prevenção e erradicação do trabalho infantil em suas piores formas em cinco Municípios do Estado da Paraíba, João Pessoa, Santa Rita, Guarabira, Patos e Princeza Isabel. Além de produzir e disseminar conhecimentos, sensibilizar e conscientizar as comunidades locais, ampliando e fortalecendo a capacidade de gestão das instituições responsáveis pelas políticas. A proposta de criação de um espaço de troca de saberes entre o saber acadêmico cientifico e o saber prático foi o aspecto mais enfatizado no curso. O conhecimento desses saberes promoveu uma reflexão em ambos e, possivelmente, a construção de uma rede de saberes em contínua articulação. Enfatizando o que foi dito, construímos conhecimento juntamente com os agentes sociais (alunos do curso). Os agentes sociais construíram conhecimento junto com as crianças e os adolescentes com os quais trabalham e construímos conhecimento juntos: professores, agentes, técnicos e graduandas. Desse trabalho, partiu-se para outras ações, como: intervenções dos agentes nas suas bases; pesquisas realizadas pelos próprios agentes; atuação destes na execução de políticas públicas nos municípios; no Programa Sentinela; na Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura de João Pessoa; participação no Projeto Catavento; participação no fortalecimento das ações dos Conselhos na área do trabalho infanto-juvenil; atuação nas ONG’s, nos Conselhos dos Direitos do Homem e do Cidadão; além do gerenciamento de políticas sociais para a criança e para o adolescente. Buscamos também construir um saber instrumento, capacitando multiplicadores que reproduzam a formação dentro de suas instituições originárias e inter-instituição; capacitamos agentes para identificar a exploração no trabalho de crianças e adolescentes, produzir conhecimento, planejar ações de intervenção e monitorar políticas públicas de erradicação do trabalho infantil e de defesa dos direitos do adolescente. OS RESULTADOS OBTIDOS ATRAVÉS DESTA PRÁTICA DE FORMAÇÃO Através da realização do 2º Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que atuam na área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural, alcançaram-se algumas conquistas tais como: 26 1. Contribuição no processo de construção de uma metodologia de formação de formadores na temática do trabalho infanto-juvenil, já iniciada no 1º Curso; 2. Formação de uma grade curricular de formação do Agente de Direitos Humanos para Atuar na Área do Trabalho Infantil e na Defesa do Adolescente Trabalhador; 3. Qualificação de 24 agentes de direitos humanos para atuarem na erradicação do trabalho infantil e defesa do adolescente trabalhador; 4. Contribuição no mapeamento do trabalho infantil na Paraíba, iniciado no 1º Curso; 5. Aumento do acervo fotográfico (de aproximadamente 500 fotografias) sobre o trabalho infanto-juvenil na Paraíba, que já se encontrava em construção desde o 1º Curso; 6. Montagem de uma mostra itinerante sobre o trabalho infanto-juvenil; 7. Produção de 13 monografias (as quais compreendem parte dos artigos deste livro); 8. Produção de 02 livros com a produção dos vários parceiros, professores e alunos, sobre o trabalho infanto-juvenil; 9. Formação de um acervo bibliográfico sobre a questão; 10. Realização de um Balcão de Direitos Humanos cuja finalidade foi o trabalho com as famílias das crianças do PETI. Após ter sido diagnosticada a falta de conhecimento das comunidades em relação a essa área, buscou-se mobilizar a sociedade, conscientizando-a de sua responsabilidade e direitos através do esclarecimento e encaminhamentos de denúncias acerca do trabalho infantil, possibilitando a realização de atividades de formação e informação sobre cidadania e direitos junto às comunidades do Roger, Cristo e Mumbaba. 11. Construção de canais de articulação (Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil e Defesa do Adolescente Trabalhador, Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente, Organização Internacional do Trabalho - OIT, Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF; Save Children – ONG do Reino Unido com sucursal no Recife.) que viabilizam ações e o aperfeiçoamento do sistema de garantias visando à erradicação. 12. Contribuição com o Projeto Catavento, que tem como principal meta à retirada de crianças e adolescentes inseridas nas piores formas de trabalho infantil e sua inserção em programas sociais, como o Programa de Erradicação do Trabalho 27 Infantil – PETI, uma vez que, a nós, enquanto Grupo de Pesquisa Sobre o Trabalho Precoce Subjetividade e Gênero representando a UFPB, coube a pesquisa que também serviu como fonte de produção de conhecimento e cadastramento dos meninos e meninas para as ações sociais. 13. Produção de artigos e apresentação de trabalhos em Congressos e Encontros de caráter científico. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO 2º CURSO DE FORMAÇÃO A formação de agentes de Direitos Humanos para atuarem no trabalho infantil foi uma perspectiva que se mostrou viável e útil, visto que raramente essa questão é tratada como tal. Nas mais das vezes, há todo um discurso dos malefícios do trabalho infantil para o desenvolvimento psicossocial da criança e do adoleslescente e até mesmo a denúncia de violação dos direitos da criança e do adolescente, mas pouco se contextualiza como uma questão de Direitos Humanos, muito menos de formar agentes sociais para o enfrentamento da questão. Aliás a formação nessa temática é também algo de somenos valor. Quando muito fica-se apenas na formação de monitores do PETI. A nosso ver, essas são questões concernentes à visão que se tem do trabalho infantil e da forma de conceber e tratar a infância e adolescência dos filhos das classes subalternas no Brasil. O trabalho visto como antídoto à marginalidade e esses sujeitos como passíveis de controle social. Isto é de tal monta que o principal Programa de enfrentamento denomina o profissional da educação de monitor, e não de educador, numa nítida referência a um controlador. Logo o PETI não visa formar, educar, mas controlar, disciplinar. Todavia, no que pesem estes aspectos, o Curso mostrou-se como uma forma plenamente possível de formação de modo a contemplar no seu contexto a articulação da extensão, do ensino e da pesquisa como formas de viabilização dos Direitos Humanos e do papel da academia. Outrossim, foi possível conceber que, para se formar um agente de Direitos Humanos a fim de atuar frente ao trabalho infanto-juvenil, implicava-se a na preparação para investigação, denúncia e proteção, responsabilização do Estado e monitoramento da garantia dos direitos e da aplicação de políticas públicas. 28 A articulação extensão, ensino e pesquisa foi operacionalizada a partir das referências teóricas e metodológicas dos Direitos Humanos, da Educação Popular e das noções de Comunidade Ampliada de Pesquisa. REFERÊNCIAS ALBERTO, M. F. P. Trabalho infanto-juvenil e direitos humanos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. ALBERTO, M. de F. P. [et al]. Formação para agentes sociais que atuam na área do trabalho infanto-juvenil urbano e rural. Relatório PROBEX, Departamento de Psicologia, Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários - PRAC, Universidade Federal da Paraíba – UFPB, João Pessoa, 2005. BRANDÃO, C. R. Pesquisa Participante. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. BUCCI, M. P. D. Capacitação em Direitos Humanos. In: REDE BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS. Construindo a Cidadania: desafios para o século XXI. Recife: Comunigraf. 2001. MELO NETO, J. F. de. Extensão universitária, autogestão e educação popular. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. ODDONE, I. et al. Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo: Hucitec, 1986. SALES, I. da C. Educação Popular: uma perspectiva, um modo de atuar (alimentando um debate). In: SCOCUGLIA, A. C.; MELO NETO, J. F. de. Educação Popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999. SCHWARTZ, Y. Trabalho e valor. Tempo Social, São Paulo, v. 8, n. 2 , out. 1996. SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. SOUZA, G. P. de; ALBERTO, M. de F. P. Mapeamento do trabalho infanto-juvenil no estado da Paraíba: análise das inter-relações entre a situação de trabalho e as vivências subjetivas desses trabalhadores e trabalhadoras precoces. Relatório PIBIC/CNPQ, Departamento de Psicologia, Universidade Federal da Paraíba – UFPB, João Pessoa, 2005. TEIXEIRA, D. de M. Oficina temática: uma opção metodológica no curso de formação de agentes sociais na área do trabalho infanto-juvenil. In: ALBERTO, M. F. P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. 29 TOSI, G. A universidade e a educação em direitos humanos. In: ALBERTO, M. F. P. (Org.). Trabalho infanto-juvenil e direitos humanos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA – UNIMEP. Políticas de extensão. 3. ed. Piracicaba: Editora Unimep, 2000. ZENAIDE, M. de N. T. Educação em Direitos Humanos. In: ALBERTO, M. F. P. (Org.). Trabalho infanto-juvenil e direitos humanos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. 30 CAPÍTULO 02 MENINOS E MENINAS CATADORES E CATADORAS DE LIXO RESIDENCIAL NO BAIRRO DE TIBIRI II – Santa Rita/PB Zuleide Ferreira da Silva1 Maria do Socorro Borges Barbosa2 Dedico este trabalho a todas as pessoas que desenvolvem um trabalho social com crianças e adolescentes e suas famílias, mas, principalmente aos meus amigos e companheiros da Pastoral do Menor do Centro Educativo Comunitário Irmãos Fortuna. INTRODUÇÃO Neste artigo, abordamos dados de uma pesquisa sobre a realidade de vida de meninos e meninas catadores e catadoras de lixo residencial do bairro Tibiri II, no município de Santa Rita. Embora, a pesquisa tenha sido realizada a partir do acompanhamento do trabalho de uma família, é no trabalho das crianças que focamos nossa atenção e análises. Contudo, em alguns momentos, estaremos fazendo referência aos membros dessa família como parte integrante do núcleo familiar. Os dados e análises aqui contidos apoiaram-se na reflexão sobre “trabalho precoce”, desencadeada no II Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural na Universidade Federal da Paraíba-UFPB e no interesse pessoal de obter um maior conhecimento da temática para pensar em uma atuação nessa área, 1 Educadora Popular da Pastoral do Menor de Santa Rita/PB Mestre em Educação Popular, Sanitarista, Historiadora e Educadora do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva – NESC/UFPB e do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO/UFPB. 2 31 considerando também o trabalho social e educativo que vem sendo desenvolvido há mais de três anos pela Pastoral do Menor. Uma pesquisa realizada pela Pastoral do Menor, por meio de seus educadores e educadoras com famílias residentes no bairro de Marcos Moura, na cidade de Santa Rita, no ano de 2003, constatou que muitas crianças e adolescentes estão com baixa freqüência na escola. Essa pesquisa também identificou que a ausência das crianças e adolescentes na escola acontece pelo motivo de estarem fazendo algum tipo de atividade com o objetivo de ajudar na renda da família. Além de identificar as atividades de frentista, catação de lixo, trabalho na plantação de abacaxi e o trabalho doméstico, sendo essas que aparecem com maior freqüência. No nosso trabalho educativo com as crianças e adolescentes, um dos participantes apresentava uma grande dificuldade em se incluir nas atividades por está trabalhando na catação de lixo para ajudar na renda familiar. A partir dessa pesquisa e com a vivencia do trabalho educativo na nossa entidade, decidimos desenvolver um estudo sobre o trabalho de crianças e adolescentes, moradores no bairro de Tibiri II. Também se tinha como objetivo conhecer os motivos da inserção precoce no trabalho, a situação escolar, as condições de trabalho, o processo de trabalho, os riscos, o destino dos ganhos, os sonhos e as perspectivas de futuro, a relação com a família e a população de que catam lixo. Procurou-se ainda identificar o conhecimento dos adolescentes acerca do Estatuto da Criança e Adolescente. HISTORICO DA ENTIDADE A Pastoral do Menor atua em âmbito Nacional e está inserida no trabalho social na Igreja Católica. Criada em 1987, a partir da Campanha da Fraternidade, com o tema: “Quem acolhe o menor a mim acolhe”, ela ganha força e se organiza em todos os estados do Brasil, somando-se à outros segmentos sociais que atuam e se preocupam com a realidade de vida da população. Depois de criada, cada diocese foi organizando os grupos que já desenvolviam trabalhos voltados à criança e adolescentes e traçando uma metodologia apropriada. A Pastoral do Menor, a partir daí, se propõe a estimular um processo que visa à sensibilização, à reflexão critica e à mobilização da sociedade como um todo, na busca de 32 uma resposta transformadora, global e unitária à situação da criança e do adolescente, promovendo sua cidadania e o seu protagonismo político. A Pastoral do Menor, no município de Santa Rita, teve seu inicio no ano de 1996, quando da criação da paróquia São Pedro e São Paulo, inicialmente coordenada pelos missionários Combonianos, motivados pela necessidade de organizar as famílias mais empobrecidas, a principio, da comunidade de Tibiri II. O Núcleo de Aguiarlândia, que comporta os bairros de Tibiri II e Marcos Moura, teve inicio no ano 2000. Atualmente a Pastoral do Menor acompanha 53 crianças e 43 adolescentes dessas comunidades. OBJETIVOS DA ENTIDADE: CENTRO PASTORAL DO MENOR • Trabalhar a cidadania de crianças e adolescentes na promoção da vida e suas famílias; • Oferecer no Centro reforço alimentar, escolar e de formação humana; • Acompanhar as famílias dos educandos através de encontros mensais, visitas e oficinas; • Sensibilizar, conscientizar e organizar crianças, adolescentes e suas famílias para o exercício e conquista de sua cidadania. METODOLOGIA A pesquisa aqui apresentada foi desenvolvida de janeiro a março de 2004 através de um estudo qualitativo com crianças. A escolha desses sujeitos deu-se devido ao fato de que sua família tinha contato anterior com trabalhos desenvolvidos pela pastoral. Essa família é composta por mãe, padrasto, filhos e agregados. No desenvolvimento da pesquisa, utilizouse observação assistemática da atividade, visitas e entrevistas. Utilizou-se o gravador, a máquina fotográfica e o desenho livre. Foram realizadas visitas à família para comunicar-lhe os objetivos desse trabalho e se obter o consentimento para que realização. Nos primeiros contatos, utilizamos um roteiro aberto, previamente refletido e construído com o intuito de se construir um perfil da família. Foram realizados encontros com a mãe e as crianças, além do acompanhamento 33 dos meninos e meninas na catação do lixo, quando tivemos oportunidade de observar o processo e as condições de trabalho, os riscos e agravos à saúde a que estão expostos, como essas crianças são tratadas pelos pais e responsáveis e o comportamento delas em relação à população e vice-versa. Ocorreu ainda uma oficina estimulando as crianças ao desenho livre, tendo como processo instigador explicitação de sonhos e sentimentos em relação à atividade de catação de lixo. Foi feito um registro fotográfico das crianças na catação do lixo e na atividade da oficina. CATAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA Com as dificuldades de sobrevivência encontradas pela maioria da população do município de Santa Rita, nos deparamos constantemente com crianças e adolescentes tendo que exercer atividades na área do trabalho urbano e rural. A cata de lixo residencial é uma dessas funções. Relatos de moradores da área mostram que as famílias que moram na comunidade vieram de uma luta por habitação em João Pessoa-PB. PERFIL DA FAMÍLIA PESQUISADA: • NUMERO: dois adultos e seis menores; • SUJEITO: meninos e meninas; • IDADE: de nove a dezesseis anos; • ESCOLARIDADE: da 1ª à 5ª serie do ensino fundamental; • GÊNERO: duas meninas e quatro meninos; • MUNICIPIO: Santa Rita; • ATIVIDADE: catadores de lixo residencial; • JORNADA DE TRABALHO: de seis a oito horas, três vezes por semana; • DESCRIÇÃO DAS TAREFAS REALIZADAS PELAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES: vão de casa em casa catando o lixo que encontram nos depósitos postos em frente às casas. Catam garrafa descartável, cobre, alumínio, 34 plástico fino e grosso, vidro e ferro. Após a catação colocam em uma carroça que é puxada por um adulto. • NATUREZA DA ATIVIDADE: urbano; • RISCOS: rachaduras nos pés, frieiras, cortes nas mãos e nos pés, insolação, dores de cabeça, infecção intestinal, desvio na coluna (por se abaixarem varias vezes de maneira inadequada), psicológicos (preconceito, discriminação, indiferença) social (moradia insalubre, lixo depositado no local de moradia, casa de apenas um cômodo, desemprego e violência). DESCRIÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS E DA OBSERVAÇÃO: A entrevistada com a mãe revela que ela tem quarenta e dois anos, mora na comunidade de Aguiarlândia há sete anos, veio do município de Bayeux onde morava em um galpão. Hoje mora em apenas um cômodo, feito de barro e madeira trançada, conhecida como “casa de taipa” com um terreno amplo onde pode depositar o material que catam durante, de três a seis meses, a fim de para conseguir dinheiro suficiente para comprar roupas, material escolar e alimentos. Tem quatro filhos e mais dois filhos de vizinhos que vivem com ela. Mora com um rapaz que é padrasto de seus filhos. Cata lixo há sete anos. Não têm nenhuma outra forma de sobrevivência ou de apoio institucional ou de algum tipo de organização social. Segundo ela, existem muitos catadores de lixo residencial na comunidade, mas prefere trabalhar sozinha. O lixo é vendido para o comprador que pagar melhor. Os filhos só saem para catar lixo com ela, porém a menina e os meninos mais novos saem para mendigar. Já aconteceram alguns acidentes tipo: cortes nos pés e nas mãos. Quando o corte é considerado grave por ela, eles são levados para o posto do Programa Saúde da Família; se ao contrario, são cuidados em casa mesmo. Quando os meninos e as meninas estão de férias, saem para catar lixo às 7:00h; quando estão estudando, saem para catar lixo quando chegam da escola, às 11:00h, (todos estudam). Sempre saem sem almoçar. Nas casas onde catam o lixo, pedem comida e às vezes conseguem almoço ou apenas biscoitos ou pão para saciar a fome. A oficina com os meninos e as meninas foi realizada no Centro da Pastoral do Menor. A oficina consistiu num processo de construção de informações, momento no qual 35 eles falaram de si, do lugar onde moram e estudam, da realidade vivenciada por eles no cotidiano. Ao acompanhar as crianças na catação, observamos suas condições de trabalho. Todas as crianças e adolescentes trabalham descalços e a menina menor, sem camisa. Nenhuma proteção na cabeça (tipo chapéu ou pano), nenhuma proteção nas mãos e na pele, exceto os adultos, que estavam calçados e usavam proteção na cabeça. Observamos que têm nas pequenas mãos calos e marcas de cortes. Percorrem várias ruas da cidade, uma a uma. Gastam mais de meia hora, de sua casa às primeiras casas, onde começam a revirar o lixo posto em frente às casas. Para tal, o grupo se divide em dois, cada um com uma carroça, uma espécie de carro de mão feito por eles com sucata de geladeira. O que encontram vão colocando diretamente na carroça, selecionando o que pode ser vendido. Observamos também que a mãe, quando encontra comida, que, no entendimento dela, pode ser consumida, leva para casa. Enquanto vão catando o lixo, param nas casas para pedir comida, já que, na maioria das vezes, saem de casa sem nenhuma alimentação. Geralmente eles saem de casa por volta das 11:30 h, quando as crianças e adolescentes retornam da escola: “Quando chegamos da escola, jogamos os livros dentro de casa e logo saimo para trabalha com minha mãe” (fala da adolescente de 14 anos, filha da senhora que organiza o grupo). Também pude perceber como têm uma infância negada, pois nas falas relatam que gostam de trabalhar com a mãe não só porque ajudam, mas também pela possibilidade de encontrar brinquedos no lixo, já que não podem comprar: “Eu gosto, pois a gente tem chance de sair e ir vê outros lugares. A gente brinca com o que acha no lixo e às vezes encontra coisas que a gente pode usar” (fala da menina de 9 anos). Tendo seus direitos assegurados através de um importante marco legal, que é o Estatuto da Criança, a partir da responsabilidade de entes públicos, a realidade dessas crianças se apresenta bem diferente do que é preconizado. A efetivação desses direitos está distante de suas vidas cotidianas. Desprovidas das condições mínimas de dignidade, como o direito à alimentação, o ECA se apresenta como desafio à sua consolidação. 36 Art.4º- É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder publico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária.(ECA). Os trechos das suas falas, a seguir, revelam o sofrimento desses cidadãos de direito, não respeitados, cujas estratégias de vida residem na cata do lixo como forma de sobrevivência. “Fico triste quando os outros ficam apontando para a gente dizendo que somos catadores de lixo, quando pegamos os lixos na casa dos outros e as mulheres brigam e não entende pois temos que pegar o lixo e nos insulta e maltrata" (fala da adolescente de 14anos). “Me sinto muito triste, quando agente passa as pessoas dizem, ei, cata lixo, fica nos humilhando” (fala da adolescente de 14 anos). Pelas falas, podemos concluir que as crianças também desconhecem seus direitos. Porém, isso não as impede de experimentarem os sentimentos negativos decorrentes da percepção de estigmatização por parte dos outros São sentimentos motivados pela indiferença, pelo preconceito e pela discriminação. A condição de pedinte e catador de lixo, é degradante para a condição humana, principalmente para crianças e adolescentes. Condição essa tão contraditória com o estatuto da criança, conforme os depoimentos acima. Art.18- É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.ECA Para essa família, a cata de lixo nem sempre se restringe à cata domiciliar. Tal atividade pode se estender até os lixões, inclusive da cidade vizinha, a capital João Pessoa, conforme relato de um dos meninos que já trabalhou no lixão do Roger3 com a mãe: “Já trabalhei com minha mãe e meu padrasto no lixão. Lá as pessoas brigam para catar o lixo. Uma vez um homem jogou um pedaço de ferro no outro e ele morreu” (E.C.R.12 anos). 3 O lixão do Roger era um aterro sanitário, localizado a poucos quilômetros do centro da capital do estado da Paraíba, João Pessoa. Foi desativado em 2004. 37 As estratégias de vida para essa família, sujeitos dessa pesquisa – e certamente para outras famílias da comunidade onde residem – não se restringem à cata do lixo. Ela também utiliza a incorporação de outros membros que não os da família sanguínea. Essas outras estratégias dizem respeito a uma forma de sobrevivência e de solidariedade entre membros de vários grupos familiares, conforme o depoimento abaixo: “Eu moro com dona Nena porque não consigo viver com minha mãe e meu padrasto”. (E.C.R.12anos). O dinheiro da cata do conjunto dos membros da família fica todo com a mãe. Aos meninos que não são filhos, ela dá R$ 5, 00 (cinco reais). A mãe também recebe o repasse da bolsa-escola de um desses meninos agregados, que é repassada pela mãe dele, como forma de pagamento pela moradia e outros gastos. Nos dias iniciais em que estava fazendo a pesquisa, os filhos delas não recebiam faziam parte do Programa “bolsa escola”, mas, com o decorrer da pesquisa, ela informou que havia começado a receber bolsa para os três filhos. Estes dados levam à reflexão do significado dos Programas Sociais de Renda Mínima. Qual o papel deles, de que modo eles promovem mudanças? Como efetivamente se processa o controle dos mesmos? Pois, apesar de recebê-los, as famílias parecem continuar na situação de miséria, tendo que expor seus filhos à degradante atividade de catar lixo. Além do menino da vizinha agregado à família, também faz parte dela o padrasto. Ele não faz nenhuma outra atividade de trabalho para ajudar na renda familiar. Às vezes ele sai com os meninos e a menina menor para mendigar nas feiras de Santa Rita e João Pessoa. Observamos, embora não seja um dos objetivos do nosso trabalho, a dupla jornada de trabalho da mãe, tendo que arcar com as tarefas domésticas e também com a catação de lixo, marcando a divisão sexual do trabalho e a sobrecarga para a mulher na responsabilidade com os filhos. A pequena renda do trabalho na catação não é complementada por nenhum trabalho desenvolvido pelo seu companheiro, dependendo toda a família dessa renda e das bolsas das crianças oriundas dos programas sociais. 38 CONSIDERAÇOES FINAIS Esta pesquisa contribuiu para verificarmos in loco o trabalho precoce no Município de Santa Rita, em particular nos bairros de Tibiri II, Marcos Moura. Constatamos que, no município de Santa Rita, não está implantado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, o que colabora para que as crianças em situação vulnerável, de desemprego dos pais, não tenham apoio institucional frente a essa realidade, uma vez que não basta receber a bolsa de um programa social. Faz-se necessária também a participação na Jornada Ampliada como forma de evitar a inserção das crianças e adolescentes no trabalho . Os depoimentos da mãe e das crianças nos levam a concluir que, além do desconhecimento sobre o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA, que se expressa como marco legal dos direitos sociais dessa população e como conquista, os mesmos não participam de nenhuma forma de geração de renda ou organização que lhes oportunize o exercício de sua cidadania. O que mais nos sensibiliza é ainda a distancia entre o que preconiza o ECA e a realidade cotidiana dessa família, em especial dessas crianças. Esperamos que, com este trabalho, tenhamos contribuído com a nossa instituição no sentido de fortalecer sua missão e o desejo de construção de uma sociedade mais justa e igualitária e também nos fortalecer como educadoras populares no nosso trabalho com as crianças. REFERÊNCIAS ALBERTO, M de F.P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. ______. As dimensões subjetivas do trabalho precoce de meninos e meninas em condição de rua de João Pessoa (PB). 2002, 305 f. Tese (Doutorado em Sociologia) Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002. RENATO, G. Projeto de combate ao trabalho infantil: uma experiência que deu certo na Paraíba. João Pessoa: Editora UNICEF/Ministério Público, 2002. SILVA SEGUNDO, R. da. Trajetória de uma pesquisa: relatando a experiência dos catadores de lixo residencial nos bairros do Valentina, Geisel e Cristo. Monografia. 1º Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos na Área do Trabalho Infantil. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2003. 39 CAPÍTULO 03 ADOLESCENTES FEIRANTES DE VÁRZEA NOVA: REALIDADE E PERSPECTIVAS Luciana de Souza Pereira1 Rita de Cássia Pereira2 Bernadete de Oliveira3 A decisão de realizar essa pesquisa sobre o trabalho precoce em Várzea Nova, distrito do município de Santa Rita - PB, localizada a 20 Km de João Pessoa, surgiu da necessidade de registrar e chamar a atenção da comunidade e das autoridades para a existência de crianças trabalhando no município não só como feirantes, mas em várias atividades. Negada esta realidade, uma das conseqüências é a ausência de políticas sociais que assistam as crianças e adolescentes para que não ingressem precocemente no mercado de trabalho. No município de Santa Rita, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI não foi implantado com a alegação de que, nesta cidade, o problema da criança trabalhando não existe. Crianças e adolescentes trabalhando, seja qual for a atividade, é tolerado e incentivado principalmente pelas famílias que vêem no trabalho uma forma de proteção contra a marginalidade. A escolha do local para a realização do ensaio de pesquisa se deu por nossa participação em um trabalho de atendimento à criança e adolescente desenvolvido pela diocese da Paraíba, que mantém contato com adolescentes trabalhadores, bem como pelo trabalho como conselheira tutelar. O local foi escolhido também pela necessidade de conhecer as condições de trabalho, de vida e as perspectivas de futuro desses jovens trabalhadores, tendo em vista desenvolver, a partir das informações escolhidas, atividades de conscientização das famílias e da comunidade sobre as graves conseqüências do trabalho precoce, visando erradicá-lo. 1 Conselheira Tutelar de Santa Rita. Educadora Popular da Pastoral do Menor de Santa Rita no Núcleo de Várzea Nova. 3 Mestra em Saúde do Trabalhador pela EBSP/FIOCRUZ, Psicóloga, Educadora do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO. 2 40 HISTÓRIA DA FEIRA A Feira Livre de Várzea Nova , distrito do município de Santa Rita/PB situado a 1 km do centro da cidade, acontece, segundo seus comerciantes, há mais de 15 anos. Funciona nos finais de semana (sábados e domingos) e, parcialmente, em outros dias. No início, a lucratividade era significativa por conta dos preços acessíveis aos consumidores devido ao fácil acesso às mercadorias, que, na maioria dos casos, eram cultivadas pelos próprios comerciantes. Com a desapropriação das terras, eles passaram a comprar de atravessadores o que aumentou o custo e conseqüentemente, diminuiu os lucros. Hoje a feira funciona praticamente através de dois processos: A pedra (termo utilizado por eles) que consiste em comprar as mercadorias de • terceiros, ou seja, uma pessoa que tem várias bancas e compra dos atravessadores. Neste caso, a “pedra” é uma pessoa que compra mercadoria a agricultores e atravessadores, que vende mais caro aos demais feirantes que têm bancas na feira. Sendo, assim, esta pessoa “pedra” acaba por monopolizar em volta de si toda a situação da feira. Atravessadores: são comerciantes que moram na cidade e percorrem os pequenos • sítios, compram as mercadorias dos agricultores para revender aos donos de bancas nas feiras, com preços muito superiores ao pagos aos produtores. No processo de comercialização dos produtos agrícolas, é a figura do atravessador que leva toda a lucratividade O ENFOQUE METODOLÓGICO Este trabalho foi realizado com o objetivo de se conhecer o trabalho infanto-juvenil, na feira livre de Várzea Nova, no município de Santa Rita-PB; para identificar a realidade dos adolescentes trabalhadores suas condições de trabalho e perspectivas de vida, além de demonstrar a ausência de políticas públicas voltadas para que crianças e adolescentes não ingressem precocemente no mercado de trabalho. Para tanto realizamos as seguintes atividades: • Sondagem: reconhecimento do ambiente e dos adolescentes , conversas informais, abordagem, aproximação, apresentação, aceitação. Nesse momento, nos 41 apresentamos explicando o objetivo do nosso trabalho e fizemos a solicitação para que colaborassem conosco. Fomos aceitas por eles, que se prontificaram em participar da pesquisa. Foram marcadas as entrevistas, a maioria na casa dos adolescentes e algumas nos locais de trabalho. Não houve maiores problemas nem resistência por parte dos adolescentes. • Entrevistas semi-estruturadas, individuais, realizadas com os adolescentes feirantes nos locais de trabalho e gravadas em fita K7 com questões sobre identificação (nome, idade) família, trabalho, escolarização, salário etc. • Registro de Fotografias das atividades dos adolescentes na feira. • Conversas com os comerciantes da feira para sabermos um pouco sobre a origem desta como surgiu e como é seu funcionamento. • Observação in loco do trabalho dos adolescentes, como desenvolviam as suas atividades, relacionamento com os clientes e empregadores DADOS DA PESQUISA Na feira foram identificados 15 casos de trabalho precoce, sendo que desses foram entrevistados seis que trabalham com a venda de produtos agrícolas. • Sexo: Feminino (4) Masculino (2). • Faixa Etária: Entre 12 e 17 anos. • Escolaridade: Perguntados sobre a escolaridade, constatamos que variava da 5ª à 8ª série. Dentre eles identificamos 2 com déficit na aprendizagem. A grande dificuldade em acompanhar os estudos e melhorar o rendimento está diretamente relacionada ao trabalho como demonstra estudo realizado por (Silva, Silva e Araújo, 2002). Identificamos também que todos os adolescentes entrevistados demonstram interesse em continuarem freqüentando a escola. • • Origem: São todos do município de Santa Rita. Sonhos: Ao perguntarmos sobre seus sonhos, falam sobre mudar de vida (casa, profissão), ganhar dinheiro ou simplesmente do sonho de criança (o desejo de um brinquedo). “Meu sonho mesmo é. Eu tenho vergonha de falar. Assim, quando eu era pequena, eu tinha três sonhos, acho que eram três. O 1º era ganhar uma Barbie, 42 o 2º ser dançarina e o 3º ser cantora. Agora a Barbie eu já não quero, sendo cantora eu posso cantar e dançar”. • Lazer: Consideramos fundamental para o ser humano o lazer, o esporte, as brincadeiras. Não conseguimos identificar na pesquisa a prática sistemática dessas atividades. Eles não têm tempo para esta importante atividade ou é um assunto pouco valorizado. Dos seis, quatro afirmam que não brincam por falta de tempo. Um deles citou o jogo e outro falou da questão religiosa. “Eu não brinco porque eu sou evangélica. Eu brinco assim às vezes”. “Brincar?. Não tenho tempo pra isso não. Porque minha vida é corrida. A minha única diversão é ficar em casa, assistindo nem sempre, e dançar em casa”. • Tempo de Trabalho: Quem está há mais tempo trabalha há 4 anos, e quem tem menos tempo está há três meses. “(Trabalho) desde uns 11 anos. A dificuldade da família, precisando dos negócios e não tem. Mau pai é desempregado, minha mãe trabalha e ganha muito pouco. Só pra não ficar parada mesmo”. • Forma de Inserção no Trabalho: Dos seis, três foram levados pela própria família; os demais foram chamados pelos empregadores. • Necessidade de Trabalho: As respostas indicaram que a maioria trabalha pra família e pela família. Onde vemos a reprodução do ciclo da pobreza. Mas não podemos deixar de levar em consideração o aspecto cultural, a valorização do trabalho como forma de proteção. • Produtos Vendidos: De origem agrícola, frutas, verduras, tapioca e raízes em geral. • Atividades Desenvolvidas: Os homens participam da montagem e desmontagem das bancas, carregamento das mercadorias, tratamento das frutas e vendas. As mulheres se encarregam de arrumar as bancas, manter a limpeza e venda dos produtos. • Proteção: Um dado alarmante. Ao perguntarmos sobre o uso de proteção, diagnosticamos que nenhum deles utiliza qualquer instrumento para se proteger. Um dos adolescentes se encarrega de fazer o processo de amadurecimento das frutas, que consiste em colocar o carbureto nas frutas verdes e envolvê-las em lonas 43 para que amadureçam e posteriormente sejam colocadas à venda. Mas para tal não usa luvas ou outro material de proteção. • Carga Horária: A jornada de trabalho varia bastante, três (03) adolescentes trabalham apenas nos finais de semana, em média 8h diárias. Dois (02) trabalham apenas nos finais de semana com uma carga horária maior, 12h diárias, e um (01) trabalha todos os dias da semana com uma carga horária de 10h diárias. Nos fins de semana sua carga horária aumenta para 12h diárias. • Lucro de Venda: Sobre o lucro, eles afirmam que por dia conseguem vender e “apurar”, com a venda dos produtos, o mínimo de R$ 7,00 e o máximo de R$ 100,00. • Remuneração: Perguntados sobre o quanto recebem pelo trabalho que executam, pudemos constatar um alto grau de exploração, tendo em vista que 2 desses adolescentes não recebem nenhuma remuneração. Que um recebe 7 reais, por final de semana. Ela também me agrada, mim dá roupas, sapatos, coisas assim, diz a adolescente. Outros dois recebem entre 8 e 10 reais por final de semana. E um deles recebe R$ 15 por semana. • Outros Tipos de Trabalhos: Através da entrevista, foi possível perceber que, além desse trabalho, os adolescentes desenvolvem outras atividades como: trabalhos domésticos (cuidar da casa, tomar conta dos irmãos). • Riscos: Pudemos observar durante o trabalho que os adolescentes estão submetidos a vários riscos: os sociais, por estarem trabalhando em ambiente que os obriga a conviverem com os mais diversos tipos de pessoas que freqüentam o mercado e a feira livre; o manuseio de produtos químicos, podendo sofrer um processo de intoxicação pelo uso de carbureto; problemas de colunas, pelo excesso de peso; ferimentos com materiais cortantes (faca, ralador.) e queimaduras (chapa para assar beiju, tapioca). • Perspectivas: Perguntamos no final da entrevista se eles tinham algo a acrescentar. Eles falaram sobre terminar os estudos, e colocaram o trabalho na feira como fonte de renda para a realização de seus sonhos. E outros dois não conseguiram apresentar nenhuma perspectiva. 44 CONSIDERAÇÕES FINAIS Sabe-se que, no mundo de hoje e nos países economicamente mais desenvolvidos, as fases da infância e da adolescência são consagradas ao estudo, à brincadeira e ao lazer. No Brasil, sobretudo devido às condições sócio-econômicas precárias, milhares de famílias não permitem que os filhos menores desfrutem dos seus direitos, isto é, em princípio, a garantia de vida e, depois, dos estudos. A miséria e a pobreza são condições constantes em sua vida, obrigando-os a desenvolverem estratégias de sobrevivência e, dentre elas, a sua inserção precoce no mercado de trabalho. A partir da análise dos dados coletados na pesquisa e das leituras procedidas sobre o assunto, podemos constatar que a maioria das crianças/adolescentes trabalhadores da feira de Várzea Nova – Santa Rita – PB pertence às famílias inseridas no quadro de pobreza e apresenta baixo nível de escolaridade, posto que necessitam abandonar a escola precocemente e entrar no mundo do trabalho para gerar renda familiar. Dentre os dados analisados nesta pesquisa, no que diz respeito ao trabalho infanto-juvenil, pode-se verificar os seguintes resultados: • O grau de escolaridade dos adolescentes entrevistados: dos seis, um está fora do nível normal admitido (permitido pelo ECA); • Em relação ao sexo nesta atividade encontram-se mais meninas do que meninos; • 100% dos entrevistados recebem seu pagamento em dinheiro; no entanto a renda mensal adquirida não se aproxima de um salário mínimo, podendo ser considerada a retribuição pelo serviço apenas “um agrado”; • Todos os entrevistados vendem produtos de origem agrícola. A atividade agrícola na Paraíba estende-se ocupando essa mão-de-obra até a cidade; • Embora todos afirmem ter boa condição de trabalho, constatamos que não utilizam nenhum tipo de proteção contra acidentes; • Percebemos que a posição dos pais em relação ao trabalho dos seus filhos é de concordância e incentivo; 45 • Ficou comprovado também que os mesmos não conhecem o estatuto da criança e do adolescente, apenas alguns ouviram falar, mas não sabem do conteúdo do ECA. Realmente, sem nenhum conhecimento sobre seus direitos e vítimas da miséria familiar, a infância e a adolescência, ativa no Brasil de hoje, estão distantes do que normalmente lhes estaria por direito reservado: educação e Lazer garantidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, negando o direito de viverem a infância e comprometendo o direito de serem cidadãos. Enfim, estes foram alguns dos indicadores analisados durante esta pesquisa. Na verdade não se pretendeu esgotar o assunto, visto que esta problemática abrange muitos outros elementos. Tentou-se, porém, fazer uma análise que pudesse vir a contribuir com novos estudos a serem realizados sobre a questão em foco. REFERÊNCIAS ALBERTO, M de F.P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. ______. As dimensões subjetivas do trabalho precoce de meninos e meninas em condição de rua de João Pessoa (PB). 2002, 305 f. Tese (Doutorado em Sociologia) Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002. MOREIRA, E. de R. F.; TARGINO, I.; SILVA, R. M. Trabalho infanto-juvenil na agricultura nordestina (1985-1995). In: TARGINO, I.; LEITE FILHO, P. A. M. Nordeste: aspectos da estrutura produtiva e do mercado de trabalho. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. SAVIERI, L. H. Saúde no trabalho e Mapa de Risco. In: TODESCHINI, R. (Org.). Saúde, meio ambiente e condições de trabalho: conteúdos básicos para uma ação sindical. São Paulo: CUT/Fundacentro, 1996. 46 CAPÍTULO 04 TRABALHO PRECOCE E PRECARIZAÇÃO: UM ESTUDO DA ATIVIDADE FRETISTA EM BAYEUX Marinésio Pequeno da Silva1 Marinalva de Sousa Conserva2 INTRODUÇÃO O presente estudo tem como finalidade apresentar alguns dados referentes à inserção de crianças e adolescentes no mercado de trabalho informal, em particular os carregadores de fretes no mercado público na cidade de Bayeux. Este artigo é resultado de um ensaio de pesquisa realizado no curso de formação para agentes sociais que atuam na área do trabalho infanto-juvenil urbano e rural. Realizado pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, através do Setor de Estudos e Assessoria aos Movimentos Populares – SEAMPO, e do Grupo de Pesquisas Subjetividade e Trabalho GPST. Este curso conta com o apoio internacional do Movimento Leigo para América Latina - MLAL. Desse modo, este trabalho está inserido numa pesquisa que visa contribuir para o mapeamento do trabalho infanto-juvenil no estado da Paraíba, partindo da concepção de que o trabalho precoce é ilegítimo e, como tal, deve ser combatido, de acordo com a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do adolescente – ECA (Lei 8.069/90). Segundo a referida lei, deve ser proibido qualquer trabalho para menores de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz. A emenda Constitucional nº 20, de Dezembro de 1998, traz a seguinte modificação: proíbe qualquer trabalho para os menores de dezesseis anos, salvo 1 Aluno do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante do Instituto Comunitário da Cidade de Bayeux - ICCB. 2 Doutora em Serviço Social pela UFRJ, Profa. do Departamento Serviço Social e do Mestrado em Serviço Social, Pesquisadora do Grupo de Pesquisas Subjetividade e Trabalho da UFPB. 47 na condição de aprendiz a partir dos quatorze anos. Entretanto, na prática, a Criança e o Adolescente estão inseridos precocemente em várias atividades de trabalho, inclusive com idade inferior a quatorze anos. A escolha em estudar a atividade de fretistas está relacionada com estudos exploratórios realizados pelo Instituto Comunitário da Cidade de Bayeux (ICCB) junto aos carregadores de frete no mercado público desta cidade. Tal atividade não é nova, já é desenvolvida há muitos anos, tornando-se importante retratar algumas experiências, e, a partir destas, entender o processo de organização dessa atividade a partir do ponto de vista dos fretistas. Este processo nos fez compreender melhor como a desigualdade social transforma sonhos em pesadelo se crianças e adolescentes passam a ter responsabilidades de gente grande. Assim, a partir das observações dos arredores, ruas próximas e as mais distantes do mercado público da cidade de Bayeux, principalmente nos dias de feira livre, que é realizada nos finais de semanas (sábados e domingos), percebemos uma intensa movimentação de crianças, jovens, adolescentes e até adultos com os seus carrinhos de mão, carregando as feiras de seus “clientes”. Assim, como agente social e pesquisador, o caminho metodológico de uma abordagem qualitativa do fenômeno nos possibilitou uma reflexão a partir da seguinte indagação: o que conduz uma criança que está em pleno desenvolvimento escolar e lúdico estar inserida numa atividade como a dos carregadores de frete? Iniciamos as observações empíricas, nas quais enfrentamos algumas dificuldades, o que, por sua vez, nos despertou o desejo de prosseguir e superar tais dificuldades, o que muito valeu a pena, pois compreendemos melhor como a sociedade exclui e trata os setores populares. Com relação ao universo pesquisado, quando começamos a pesquisa, a princípio elaboramos a hipótese de que haveria um universo de aproximadamente 120 fretistas no mercado público. Porém, ao longo das observações, pudemos constatar que esse número era bem maior devido o grande fluxo de crianças, adolescentes e até de adultos com seus carros-de-mão procurando uma clientela para oferecer os seus serviços. No período de observação e coleta de dados, constatamos que, nos finais de semanas, há um aumento considerável do número de fretistas no mercado, constatando-se a existência de certa 48 variação de freqüência entre eles, ou seja: existem fretistas que estão todos os dias da semana trabalhando, como também existem aqueles que só trabalham nos finais de semana. Numa segunda etapa da pesquisa, procuramos utilizar o contato inicial que mantivemos com alguns comerciantes durante o processo de coleta de dados, quando obtivemos informações riquíssimas para chegar a uma aproximação mais conclusiva do número de fretistas trabalhando naquele mercado público. Tivemos, assim, acesso ao cadastramento dos fretistas, realizado no ano de 2001, que trabalham no mercado. Este cadastramento foi realizado pela administração do mercado público em parceria com um policial militar que faz parte da segurança de alguns estabelecimentos no mercado. O motivo do cadastro, conforme o policial, se deu em virtude de que estavam desaparecendo muitas feiras de clientes. Nesse período, foram cadastrados, entre crianças e adultos, 367 carregadores de feiras, além dos que não foram se cadastrar, segundo estimativa do órgão, aproximadamente 50 fretistas. Isto porque, segundo o policial (responsável direto pelo cadastramento), muitos fretistas não quiseram fazer parte do cadastro por motivos diversos, entre eles: não trazerem foto, não dizerem onde moravam, não terem o nome em nenhum documento, etc. O cadastro foi realizado de modo simplificado, contendo apenas o nome do fretista, a idade, o seu endereço, o nome dos pais e o número do seu carrinho. Quando tivemos acesso a esse arquivo, verificamos que não havia a presença do sexo feminino nessa atividade, o que a caracteriza como um trabalho exclusivamente do sexo masculino. A hipótese mais provável deve-se ao caráter da atividade: a carga pesada do transporte das feiras. Realizamos diversas entrevistas informais e duas semi-estruturadas, objetivando conhecer a trajetória de vida e trabalho destas crianças e adolescentes e, assim, compreender o processo de organização desta atividade, como também elucidar as condições de precarização da atividade fretista e os riscos a que estão expostos. Este artigo está estruturado em duas partes. A primeira consta de uma discussão sobre o trabalho precoce. Em seguida apresento uma caracterização da cidade de Bayeux, município onde foi realizada a pesquisa. Da segunda parte do trabalho constam a análise do material coletado em campo, a apresentação do perfil dos carregadores de frete do mercado público, a caracterização da atividade de fretista, sua organização de trabalho e condições 49 de trabalho. Finalizo com algumas considerações sobre a atividade, os sonhos e perspectivas dos pesquisados. O TRABALHO PRECOCE Neste artigo entendem-se por trabalho precoce as atividades formais ou informais exercidas por crianças e adolescentes principalmente até aos 16 anos. Segundo Alberto (2002), discussão dessa problemática aponta os seguintes aspectos fundamentais: • O trabalho precoce é uma estratégia de sobrevivência porque os pais não conseguem garantir a sobrevivência da família; • O caráter discriminatório do trabalho precoce e o uso deste como instrumento disciplinador. O caráter discriminatório ocorre porque as crianças trabalhadoras pertencem à classe baixa. São crianças pobres, filhas de trabalhadores, desempregados, proletários, os quais compõem os excluídos sociais. São crianças que se tornam trabalhadoras precoces porque os pais não conseguem garantir a sobrevivência da família. É um instrumento disciplinador ou “educativo” porque é pensado como uma alternativa para crianças e como forma de prevenir a marginalização e, assim, “educá-las” para o mundo do trabalho (Alberto, 2002). Dessa forma o trabalho precoce faz parte da cultura da nossa sociedade trazendo a inserção da criança no mundo do trabalho, delineado através de várias nuances tais como: trabalho explorador, trabalho formador/ profissionalizante, trabalho complementar à renda familiar. Há ainda a concepção de que a criança não deve trabalhar, mas o adolescente sim. Todavia, a persistência do trabalho precoce retrata uma sociedade desigual e contraditória, entre o legal e o real, o legítimo e o ilegítimo, porque retrata uma realidade social em que suas crianças e adolescentes estão submetidas a processos de violação dos seus direitos humanos básicos. 50 CARACTERIZAÇÃO DA CIDADE DE BAYEUX A cidade de Bayeux está ligada à história da colonização da capital João Pessoa e do município de Santa Rita devido à localização, ou seja: historicamente, serviu como centro de ligação entre as duas cidades. Durante muito tempo, a ponte Sanhauá era a única via de acesso para o interior do estado. O registro oral conta que, no período dos anos 1831 a 1836, cobrava-se pedágio de tudo que por ela transitava, pois, de um lado da ponte, estava a capital do estado e, do outro, existia uma estreita rua, estrada de barro mal cuidada cercada por manguezais e rios, que ligava a Capital ao interior, tendo como primeira cidade Santa Rita. Com o passar do tempo, na proximidade da ponte, a estreita rua começou a ficar habitada, pessoas de diversas localidades passaram a ocupar aquele espaço e, aos poucos, a população denominou a localidade de Boa Vista, depois Vila Barreiras. Em 02 de Junho de 1944, o Decreto-lei estadual nº 452 modifica seu nome para Bayeux em homenagem a uma cidade francesa, que foi dominada pelos Alemães e retomada pelos aliados nessa mesma data. Em 1959, ocorre sua elevação a município através da Lei 2.148 de 20 de Julho. Mas sua instalação oficial só ocorreu no dia 15 de Dezembro do referido ano. (Silva, 1993). Em relação ao espaço físico, Bayeux pertence à micro região do litoral Paraibano, tendo como municípios limítrofes João Pessoa (6Km) e Santa Rita (7Km), ocupando 27,5 Km, com grande predomínio da zona urbana. Com base na orientação proposta por Silva (1993) para divisão geomorfológica da Paraíba, verifica-se que Bayeux pertence ao setor oriental úmido e subúmido, caracterizado por um clima quente e úmido. O município de Bayeux é constituído de 50% de vegetação de manguezais. As matas, praticamente ausentes, são localizadas no estuário do rio Paraíba, margeando seus afluentes, o rio Paroeira e o Sanhauá. Os manguezais constituem uma formação florestal perenifólia com espécie amtamente adaptada ao tipo de ambiente fluvio-marinho (Oliveira, 1999). O processo de urbanização da cidade começa a expandir-se especialmente nos fins da década de 50. No início, existia um pequeno aglomerado, pertencente ao município de Santa Rita. Com seu desmembramento, em 15 de dezembro de 1959, sua estrutura urbana começou a ser identificada.(Oliveira, 1999). Atualmente, observa-se que o crescimento de Bayeux se deu de forma bastante acelerada. Com o surgimento da Br 101, apareceram novas formas de ocupação 51 acompanhando seus limites intermunicipais. A porção Sul sofre internas modificações, pois, nessa área, até 1970, ainda existia vegetação de Mata Atlântica. Caracterizava-se também como tipicamente rural, com a presença de cultura de subsistência e algumas casas. Com a intensificação do uso do solo e construções de habitações, esse quadro foi se modificando e hoje praticamente inexiste a zona rural na cidade. Tal fato confirma que esse aglomerado urbano tem sido foco de atração de população, ocasionando sérios problemas de ordens ambiental e social, devido ao forte desenvolvimento do setor administrativo que tem atraído grande número de imigrantes que não podem ser absorvidos pela máquina estatal marginalizando-se em bairros favelizados. A intensificação do processo de urbanização de Bayeux é marcada por um crescimento desordenado que gerou o empobrecimento da população nas últimas quatro décadas, tornando-se um espaço de contradição frente à degradação ambiental e à qualidade de vida (Oliveira, 1999). Em relação aos aspectos socioeconômicos, segundo Silva (1993), a vida econômica de Bayeux começa a se desenvolver a partir de 1950 incrementando-se a partir dos anos 60 com a implantação de estabelecimentos industriais subsidiados pela SUDENE. Assim como as demais cidades que sofreram o processo de urbanização, Bayeux também passa por transformações. Sua população urbana ultrapassou a rural e o fluxo migratório tomou impulso com o re-direcionamento das políticas para alcançar melhor integração econômica entre os estados brasileiros. Para o Nordeste, tal política governamental criou a SUDENE, tendo como uma das prioridades incentivar o parque industrial das pequenas e médias cidades. A estrutura urbana de Bayeux foi marcada pela implantação de fábricas e atividades comerciais na avenida Liberdade, a mais tradicional da cidade, que sempre funcionou como ponto de passagem entre a capital (João Pessoa) e o interior paraibano. Distribui-se em toda a extensão da avenida uma variedade de estabelecimentos com gêneros diversos, sendo mais representativo os de produtos alimentares e têxteis. Apesar de o número de industrias ser bastante significativo e seu crescimento demográfico enquadrar-se como um dos maiores do estado, Bayeux apresentase subordinado a João Pessoa, pelo forte grau de dependência do comércio e prestação de serviços. 52 Em termos da economia informal, segundo Silva (1993), verifica-se que a população tida como de baixa renda, em sua maioria, situa-se na informalidade com grande número de desempregados e sub-empregados. A cidade também apresenta como característica uma determinada tendência urbana a ser considerada como “cidade dormitório", pois um crescente número de sua população desloca-se diariamente para a capital onde vendem sua força de trabalho. Confirmando, assim, sua posição no aglomerado urbano da grande João Pessoa, como um exemplo típico da desigualdade do processo de urbanização brasileira, marcado por carência generalizada de infra-estrutura e equipamentos de urbanização. Bayeux conta atualmente com 90.663 habitantes, segundo estimativas do IBGE/ 2004. A cidade dispõe de várias atividades econômicas, além do comércio de gênero alimentício e da atividade industrial. O mercado informal também faz parte da vida econômica da população de Bayeux. Grande parte desses comerciantes encontra-se no mercado público da cidade, onde passamos a observar a presença de várias crianças e adolescentes inseridos nas atividades informais, dentre elas os carregadores de feiras em carinhos-de-mão, os fretistas. CARACTERIZAÇÃO DA ATIVIDADE FRETISTA a) Perfil dos fretistas do mercado público de Bayeux Os carregadores de fretes, ou fretistas do mercado público da cidade de Bayeux, são crianças, jovens, adolescentes, e até adultos, inseridos no mercado de trabalho informal. Em virtude da desigualdade social, as condições de vida, a falta de uma política social que atenda aos anseios dos familiares mais carentes, que acaba forçando a inserção destes no trabalho informal. As trajetórias de vida dos fretistas inseridos precocemente no mundo do trabalho assemelham-se: • Quanto à situação social: pertencem às classes menos favorecidas, os chamados excluídos da sociedade geralmente têm pessoas na família que trabalham, porém não ganham o suficiente para garantir a sobrevivência; 53 • Quanto à idade: os carregadores de frete do mercado são na sua maioria crianças e adolescentes com idade entre 10 e 18 anos; • Quanto à inserção na atividade: a maioria das crianças e adolescentes contatados na pesquisa é incentivada pelos próprios pais a participarem da atividade de frete. Muitas dessas crianças e adolescentes não têm perspectiva de uma vida melhor devido à real carência em que sobrevivem, conforme retrata a fala de alguns: “É melhor trabalhar do que ser vagabundo...também pra ajudar em casa. (A.N.R 17anos). “A gente precisa arrumar mais dinheiro pra ajudar em casa” (F.C.S.14 anos). • Quanto à renda: segundo os depoimentos, há uma variação. A depender do dia, a média é de R$ 15,00 a 20,00 reais por semana. Esses "trabalhadores" ficam na feira livre e em frente aos mercadinhos que estão situados no Mercado Público tentando conquistar clientes. • Quanto à escolaridade: há uma discrepância na relação idade e série, como retrata o caso de F.C.S. de 14 anos, que estuda numa escola pública, no bairro de Imaculada, e está cursando a 3ª série do fundamental primário. Já foi reprovado duas vezes, uma vez na 1ª série e outra na 3ª serie, com uma defasagem de 4 anos. Geralmente eles começam a estudar na idade certa, porem, devido ao trabalho precoce e às más condições de vida, não conseguem acompanhar o rendimento dos outros alunos, o que pode levá-los a reprovação e até à desistência. Conforme depoimento: “Desisti duas vezes, uma foi porque era supletivo, aí eu num se adaptei aí desisti, e da segunda foi porque quando fui buscar o histórico aí num deu tempo se matricular na outra escola”. (A.N.R, 17 anos). A.N.R. deveria estar no 3º ano do ensino médio. Os agravos sociais, tais como a desestruturação familiar, necessidades básicas e a inserção ao mundo do trabalho precoce, acabam desvirtuando as reais condições das vidas de famílias inteiras. 54 Outro caso que foi observado foi o de F.C.S., de 14 anos, que, além de começar tardiamente seus estudos, foi reprovado duas vezes, na 1ª e na 3ª serie. Hoje ele está repetindo a 3ª serie do ensino fundamental, conforme podemos observar na fala a seguir: “Fui reprovado duas vezes, na primeira e na terceira”. (F.C.S, 14 anos) b) Organização da atividade Existe entre os fretistas uma auto-organização para o desenvolvimento de trabalho. Eles colocam sempre seus carrinhos em fileiras enquanto esperam a clientela. Esse tipo de organização é realizado apenas em frente aos mercadinhos, local que permite os fretistas aguardarem os seus 'clientes', já que no meio dos corredores da feira eles saem perguntando às pessoas quem é que vai querer o carrinho. O processo de trabalho, ou seja, para começar a pegar frete no mercado, há alguns procedimentos fundamentais a serem observados: se a execução da atividade ocorrer no meio da feira, ou seja, nos corredores, então é só chegar com o carrinho de mão e sair oferecendo seus préstimos. Porém, se a tarefa for executada nos mercadinhos, então é preciso que alguém que já faz ponto no local lhe apresente para que ele possa começar a organizar o seu carrinho junto com os demais. Entretanto, foi observado um caso em que o funcionário do mercadinho apresentou o próprio filho para começar a trabalhar como fretista. Esse caso foi detectado em conversa informal que mantivemos com o fretista, e que, ao perceber que se tratava de uma pesquisa, negou-se a dizer o seu nome e o de seu pai. Com relação à abordagem da clientela, o fretista chega cedo ao ambiente de trabalho e tenta convencer a clientela das necessidades dos seus serviços, de sua habilidade e destreza para desenvolver um bom serviço. Em seguida, negocia-se o preço. c) A jornada de trabalho A jornada de trabalho dos fretistas, no mercado publico da cidade de Bayeux, é bastante variada devido à flexibilidade que há na execução da atividade. Durante os dias de observação, percebi que alguns dos fretistas estavam praticamente todos os dias no mercado. No entanto, a grande maioria realiza a atividade, no mercado, nos finais de semana, isso porque os dias em que há uma maior movimentação são exatamente os 55 sábados e domingos. Em conversas informais que mantive com alguns, fiquei sabendo que um dos motivos que levam muitos a não estarem todos os dias trabalhando é a freqüência á escola, como no caso de A. N. R. de 17 anos que está cursando a 5ª série. Para aqueles que estão todos os dias no mercado, a jornada de trabalho é realizada da seguinte forma: nas terças, quartas, quintas e sextas-feiras eles chegam por volta das 7:00h e ficam até 11:30h ou até 12:00h da manhã, quando saem para o almoço, e só retornam por volta das 14:30h em diante. Não existe o compromisso efetivo para que eles voltem à tarde. Nos finais de semana, tanto o horário de chegada ao local de trabalho como a sua permanência são diferenciadas, pois eles começam a chegar mais cedo. Geralmente a partir das 05:00h, é possível encontrar alguns fretistas com seus carrinhos-de-mão, e muitos só vão para casa por volta das 17:00h ou 18:00h. Se se for levar em consideração que, durante essas doze (12) ou treze (13) horas trabalhadas, alguns deles não fazem pausa, nem para almoçar, pois muitos deles comem no próprio local onde estão esperando os clientes, podemos concluir que eles trabalham nos finais de semanas aproximadamente 26 horas em dois dias, ou seja, 13 horas por dia. Mas isso não é uma regra, pois há oscilação na freqüência dos horários. Em virtude dessa variação, no que se refere ao horário de chegada e a permanência no local de trabalho, como também à hora de ir para casa, torna-se difícil fazer uma avaliação precisa da jornada de trabalho semanal dos carregadores de fretes. Segundo informações dos entrevistados, geralmente a jornada do turno da manhã inicia-se às 5:30 e vai até às 12:00h. O turno da tarde inicia-se às 13:30h ou 14:00h e termina ao anoitecer. d) As condições de trabalho A partir de algumas observações sobre as condições de trabalho dos fretistas, foi possível conhecer melhor alguns aspectos da realidade de vida do grupo, com relação: ao ambiente, ao comportamento, aos acessórios, à postura, aos efeitos do trabalho precoce. Os agravos mais visíveis são constatados na área da saúde, na baixa escolaridade e na desqualificação profissional, provocando, assim, uma baixa auto-estima e uma adultização precoce. No mercado público, faltam condições adequadas de higiene e trabalho. É sujo e, em termos espaciais, as ruas são enladeiradas, o transito é intenso, não existe um local adequado para eles se acomodarem enquanto “descansam”. Os que ficam em frente aos 56 mercadinhos estão expostos à poluição sonora que é provocada pelos carros de som. No mercado, não há uma fiscalização sobre as crianças e adolescentes o que facilita o acesso dos mesmos a bebidas alcoólicas. São visíveis às más condições do mercado público e, conseqüentemente, a situação de riscos sociais e ambientais em que se encontram os carregadores de fretes de Bayeux, como a exposição a sol, chuvas, ventos, poeira, trânsito, exploração, brincadeiras inadequadas, brigas, intrigas. Ainda ficam expostos aos riscos das drogas. Essas crianças e adolescentes desempenham atividades que demandam esforço físico, tais como: empurrar carrinho-de-mão, levantar, abaixar, transportar peso por longas distâncias. Geralmente expõem-se a uma extensa jornada de trabalho. Alguns passam até 12 horas trabalhando. Durante as horas de trabalho, trafegam em locais movimentados, correndo o risco de sofrer sérios acidentes, correndo riscos de seqüelas na vida adulta, ou, até mesmo, de morte precoce. Os fretistas se alimentam mal, comem apenas bobagens, tais como: bolo, refrigerante, salgadinhos, etc. O cansaço é visível, principalmente nas relações entre eles. Geralmente, xingam-se uns aos outros, ficam irritados quando não conseguem convencer o cliente, ou, então, quando o colega passa a frente e acerta o frete antes dele, já que há uma disputa pela clientela. Eles referiram-se a outros riscos, como assaltos, no que demonstram medo, conforme fala a seguir: “Eu não pego frete de muita gente desconhecida porque tenho medo de ser assaltado na hora de voltar para a feira” (A . N. R.17 anos) CONCLUSÃO A sociedade brasileira caracteriza-se por apresentar processos sociais excludentes da maioria da classe trabalhadora. A gravidade desse quadro tem relação direta com o trabalho precoce, devido à necessidade de sobrevivência pessoal e da família. Nesse quadro de desigualdade social, estão inseridas as atividades informais de crianças e adolescentes, dentre os quais se situam os carregadores de frete do mercado público da cidade de Bayeux, cujas condições de vida e trabalho são inadequadas, em lugares insalubres, sem higiene, com longas jornadas, expostos a variados riscos, dentre eles drogas e violência. 57 Podemos, concluir também que pelo fato de serem crianças, a relação com o mundo do trabalho é misturada com o lúdico. Sentem necessidade de brincadeiras, de lazer e diversão, e conseguem realizar ao mesmo tempo o trabalho e o lazer, principalmente entre um frete e outro, quando o tempo de descanso é reservado às brincadeiras. Todavia, apesar de conseguirem entremear a brincadeira com o trabalho, há aspectos negativos decorrentes da inserção precoce, dentre as quais identificamos as dificuldades escolares, as reprovações e a defasagem, aspectos que repercutirão na sua vida a médio e longo prazo. REFERÊNCIAS ALBERTO, M de F.P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. ______. As dimensões subjetivas do trabalho precoce de meninos e meninas em condição de rua de João Pessoa (PB). 2002, 305 f. Tese (Doutorado em Sociologia) Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002. ______. A situação da criança trabalhadora no mercado informal em João Pessoa - PB. Revista Política e Trabalho, João Pessoa, v.16, n.16, p.41-47, 2000. ARAUJO, A. J. da S.; ALBERTO, M. de F. P. O significado do trabalho precoce. João Pessoa, 2002. Mimeografado. OLIVEIRA, A.A. Bayeux - seu povo sua história. João Pessoa: União, 1999. SILVA, J. M. Bayeux, cidade de “outros caminhos”. Monografia. Departamento de Geociências, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 1993. TEIXEIRA, D. M. A experiência do trabalho de pesquisa. João Pessoa: UFPB/SEAMPO/GPST, 2002. Mimeografado. 58 CAPÍTULO 05 O VAI E VEM DA MARÉ: O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO ESTUÁRIO DO RIO PARAÍBA NA CIDADE DE BAYEUX Gabriel Pereira de Souza1 Hélder Oliveira da Silva2 Maria de Fátima Pereira Alberto3 INTRODUÇÃO Este artigo é resultado de um ensaio de pesquisa demandado pelo II Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural, realizado na Universidade Federal da Paraíba. Apresenta uma discussão acerca do trabalho precoce e suas implicações na vida de crianças e adolescentes que desempenham as atividades de catadores e processadores na pesca do marisco e catadores de siri-mole no município de Bayeux no estado da Paraíba. O marisco (Anomalocardia brasiliana) é um molusco bivalve, cuja concha é formada por duas partes simétricas, que fica enterrado nos bancos areno-lodosos dos estuários. Os estuários são grandes cursos d’água situados entre a região costeira e o continente, constituindo-se numa transição entre ambiente marinho e água doce. (Nishida, 2000). O interesse de conhecer o trabalho de crianças e adolescentes na pesca no mangue nasceu da descoberta, a partir dos trabalhos de Lopes et. al. (2003) e Silva (2003), da presença de adolescentes na pesca submarina. No entanto, optamos pelo mangue, em vez do mar, dada a possibilidade de contribuir com o Projeto de Mapeamento do Trabalho 1 Aluno do curso de Graduação em Psicologia da UFPB. Extensionista do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO. 2 Aluno do curso de História, da UFPB. Sindicato dos Trabalhadores do Comércio de João Pessoa. 3 Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Depto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho – GPST/UFPB e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB. 59 Precoce no Estado da Paraíba4, que ainda não contemplava as atividades executadas neste setor. O ensaio de pesquisa tinha como objetivo investigar a existência do trabalho precoce nas atividades de pesca no mangue. Uma vez detectada, pretendíamos identificar e descrever as tarefas nas quais se utilizava a mão-de-obra de crianças e adolescentes e os riscos inerentes à atividade. Os autores do presente trabalho foram indicados por suas respectivas entidades para participarem do referido curso de Direitos Humanos. São elas: o Setor de Estudos e Assessoria aos Movimentos Populares (SEAMPO) e o Sindicato dos Empregados no Comércio de João Pessoa (SINECOM). O SINECOM foi fundado no dia 1º de Julho de 1932, a partir da Associação dos Profissionais do Comércio. Em meados de 1990, o Sindicato teve participação relevante em parceria com a Delegacia Regional do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e outras instituições, no combate ao trabalho infanto-juvenil, sobretudo nos Supermercados de João Pessoa, onde havia a exploração dessa mão-de-obra, com o total apoio do Estado, através da Fundação de Desenvolvimento da Criança e do Adolescente – FUNDAC, que na prática funcionava como uma agência de locação da força de trabalho dos adolescentes. Desde então, a entidade tem participado de diversos eventos, bem como apoiado a organização e campanhas de Conselhos Tutelares, além de exercer vigilância quanto ao trabalho precoce no Comércio da Grande João Pessoa. Já o SEAMPO foi criado em 1983 por professores da UFPB que partilhavam a idéia de uma Universidade mais próxima dos movimentos sociais. Essa proximidade se dá através dos diversos projetos de extensão que funcionam neste setor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA. Devido à necessidade de qualificação dos estagiários que trabalham junto ao SEAMPO na temática do trabalho precoce, foi indicado um dos seus integrantes para que tivesse uma formação em Direitos Humanos, direcionada ao trabalho precoce. Dessa forma, a instituição poderia desenvolver ações mais precisas no que diz respeito ao trabalho de crianças e adolescentes. 4 Este mapeamento está sendo desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce, em parceria com o Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e de Proteção ao Trabalhador Adolescente na Paraíba e com a Delegacia Regional do Trabalho (DRT). 60 METODOLOGIA Inicialmente, foi realizado um levantamento bibliográfico e iconográfico. Encontramos vídeos sobre o mangue, que não tratavam, porém, diretamente do trabalho de crianças e adolescentes. Partimos, então, para a coleta dos dados, utilizando como instrumento uma entrevista semi-estruturada com questões em torno dos seguintes eixos: motivos da inserção precoce no trabalho; processo de trabalho; transmissão das formas de se realizarem as atividades ligadas ao marisco e siri-mole; sentimento da criança e adolescente em relação ao seu trabalho; remuneração; prejuízos à saúde; escolaridade; e perspectivas para o futuro. Sendo assim, o primeiro passo foi conseguir um contato que possibilitasse a chegada até os sujeitos da nossa pesquisa. Através de contatos pessoais, chegamos ao presidente da Associação dos Aqüicultores e Pescadores da Cidade de Bayeux, que por sua vez desenvolvia suas atividades junto aos pescadores da comunidade do Porto da Oficina, que veio a se constituir no espaço de realização desta pesquisa. O referido presidente apresentou-nos a um pescador de marisco - denominado por eles de marisqueiro – daquela comunidade que permitiu que seu filho fosse entrevistado. Esperávamos ser tarefa difícil encontrar e entrevistar crianças que trabalhassem naquele ambiente dado o desconhecimento por parte dos pesquisadores daquela realidade. O inesperado aconteceu no momento em que convidamos o menino, de onze anos, para se sentar fora da casa, no casco de um bote5, para que assim, afastado dos familiares, pudéssemos conversar sem interferências. Um grupo de crianças se aproximou, ficando ao redor do barco. Todos eram trabalhadores e trabalhadoras nas atividades ligadas à pesca do marisco ou catação do siri-mole. Neste dia, fizemos cinco entrevistas. Fomos embora, deixando um pedido às crianças entrevistadas de que voltaríamos e gostaríamos, se possível, de entrevistar outras crianças que aceitassem colaborar com a pesquisa. Voltamos mais uma vez àquela comunidade e realizamos mais dez entrevistas com crianças e adolescentes moradores da área. Neste sentido, a coleta de dados não foi uma tarefa difícil, uma vez que os meninos e meninas estavam ali. Todos moravam naquela área 5 Embarcação, propelida a remo ou a vela. O principal meio de transporte dos pescadores, catadores de caranguejo e moluscos, é um dos tipos de embarcação mais freqüentemente utilizada. (Nishida, 2000). 61 e desenvolviam atividades ligadas à pesca no estuário do Rio Paraíba. E aceitavam participar da pesquisa. Aliás, a maioria até pedia para ser entrevistada. Tínhamos programado fazer uma análise das atividades de trabalho6 dos sujeitos, mas não foi possível porque no período de realização da pesquisa, no mês de fevereiro de 2004, as chuvas que atingiram a Paraíba no início do mesmo ano causaram enchentes em diversos rios, o que diminuiu o nível de salinidade da água do estuário do Rio Paraíba, resultando na morte dos mariscos que precisam de um determinado nível mínimo de salinidade para sobreviver. Ou, como diziam os moradores da referida comunidade, “não havia marisco na croa”. As croas são bancos de areia lodosos que aparecem quando a maré está baixa. Entrevistamos crianças e adolescentes que desenvolviam as atividades de catação do marisco, do siri-mole e a descatemba do marisco. A catação do marisco e do siri-mole é o processo de coleta destes nas croas. A descatemba, por sua vez, é a atividade de retirada da “carne” do marisco, depois de cozido. Nishida (2000: 14) explica que a “catação” do marisco é um ramo específico da pesca artesanal (...) e a “descatemba” ou “despolpa”, consiste da retirada da parte mole (carne) das valvas dos moluscos. (op.cit: 22) A VIDA E O TRABALHO DOS PRECOCES MARISQUEIROS NO PORTO DA OFICINA Foram entrevistados quinze crianças e adolescentes, sendo 7 meninos e 8 meninas, com idade variando entre 8 e 16 anos. Houve uma predominância na idade de 12 anos. Apesar de não ter sido entrevistada, por suas limitações cognitivas, foi encontrada uma menina de 3 anos que participa do processo de trabalho. No que diz respeito à idade em que cada criança começou a trabalhar, há uma variação entre 3 e 10 anos. Quanto à idade ideal com que os entrevistados acreditavam que uma pessoa deveria começar a trabalhar, houve uma variabilidade de respostas que oscilou entre 5 e 19 anos. Apesar de muitos afirmarem que começar a trabalhar cedo foi bom, quando questionados sobre a idade ideal para uma pessoa começar a trabalhar, sempre indicavam 6 É um recurso metodológico da Ergonomia que consiste na observação e descrição sistemática das atividades de trabalho. 62 uma idade superior a que iniciaram, demonstrando o sentimento de inadequação com relação às idades em que foram inseridos precocemente nesta atividade de trabalho. Os sujeitos entrevistados trabalham entre 2 e 13 horas diárias, quando há uma produção diária do marisco e do siri-mole. Atividades Foram detectadas as seguintes atividades: catação do marisco, cozimento do marisco, descatemba do marisco e catação de siri-mole. A maioria trabalha com o marisco, pegando-os nas croas ou descatembando-os na caiçara; outros, pegando siri-mole. Caiçara é a Palhoça, junto à praia, para abrigar as embarcações ou apetrechos dos pescadores. No caso específico da comunidade objeto de estudo, uma casa que serve de apoio para todos. Dentro dela ficam materiais, como puçá, gadanho e caixa. Há mesas onde se coloca o marisco cozido para a descatemba e, do lado de fora, há uma espécie de fogão a lenha para o cozimento dos moluscos. Segundo depoimentos, a caiçara existe há alguns anos (não sabiam exatamente quanto) e foi construída com a ajuda de uma freira e da Igreja Católica. Catação do marisco O marisco fica enterrado na lama e nas croas. Para chegar até as croas, os catadores utilizam-se de botes movidos a remo. Usam alguns instrumentos para pegar o marisco: o gadanho, a puçá e a caixa. O gadanho serve para escavar a lama para encontrar os mariscos, que são colocados dentro do puçá, uma cesta feita de cipós trançados. Uma vez postos no puçá, são lavados e depois conduzidos até o bote e armazenados em uma caixa plástica no formato retangular, sem divisórias internas, com espaços laterais e aberturas para escoamento da água. Cozimento e Descatemba Os participantes desta pesquisa afirmaram que a atividade de descatembar é realizada geralmente no dia que se segue à catação do marisco. No caso dos entrevistados, 63 realizavam esta atividade na caiçara, onde o marisco é cozido, sempre por um adulto, até que se abra por conta do calor, para ser despolpado. O marisco cozido é colocado em cima de uma mesa, as pessoas vão retirando a “carne” e colocando numa vasilha separada. Identificamos que, após esse processo, o marisco é levado para comercialização. Os dados da pesquisa nos dão conta de que é nesse processo de beneficiamento do marisco que a maioria das crianças trabalha dada a demanda de maior número de mão-deobra para desenvolver essa tarefa. Segundo Nishida (2000: 100), o marisco é considerado pelos catadores como um dos moluscos de menor rendimento e mais trabalhosos para retirar a carne devido ao seu tamanho. Por ser pequeno, necessita de grande quantidade para se atingir um quilo. O trabalho desses meninos e meninas serve como complemento da empreitada familiar. Segundo depoimentos, a família só produz uma maior quantidade de marisco com a presença de crianças e adolescentes no processo de trabalho. Catação de siri-mole Segundo Carmo (1996, p. 08) (...) Os siris são aquáticos, vivendo em estuários e na zona costeira. A carapaça é achatada e o último par de pernas tem forma de remos. São onívoros, mas preferem alimentar-se de peixe (...). O siri mole é um crustáceo que está passando pelo processo de troca do seu exoesqueleto, chamado de ecdise, pois para crescerem precisam mudar de carapaça. A catação do siri-mole se dá nas poças d’água localizadas nas croas. Utiliza-se somente a mão para pegar o siri que é colocado em um balde e conduzido para o bote. Podemos verificar no depoimento a seguir como se dá o processo: “(...) nas arêa com um pouquim d’água. Aí o siri-mole fica descascano ali. Dá pra vê. Ele, ele anda. Quando ele discasca ele fica andano pelo mei da água. Aí a pessoa vai, vê ele e pega. A pessoa leva um balde, bota um pouquim d’água e vai butano (...)” (R, masculino, 11 anos). A atividade de catação do siri-mole, segundo os dados obtidos, é realizada por meninos. As meninas não gostam e acham difícil pegar siri-mole. Elas preferem descatembar, atividade esta tida como mais difícil pelos meninos. Percebe-se uma divisão 64 sexual do trabalho entre os trabalhadores precoces que não foi aprofundada aqui, mas pode ser objeto de estudo de trabalhos futuros. Atribuições à inserção precoce no trabalho As causas que levam à inserção precoce nas atividades abordadas estão diretamente ligadas à família, que, por suas condições de vida e trabalho, demandam a complementação dos filhos, por “ajuda” ou por “obrigação”. No entanto, foi possível observar nas falas de algumas crianças que as tarefas desempenhadas por elas são muitas vezes percebidas como brincadeiras. Para outros, entretanto, a inserção precoce é uma necessidade premente. O adolescente “V.”, dezesseis anos, ao ser questionado sobre o porquê de ter começado a trabalhar com nove anos de idade, responde: “(...) Porque tenho que ajudar a sustentar a família também. Tem que ajudar as mãe, os irmão que trabalha. Eu acho bom começar de logo cedo, porque quando tiver maior já sabe o que é trabalhá (...)” (V., masculino,16 anos) Como se pode perceber, esses meninos e meninas começaram a trabalhar principalmente pelas precárias condições econômicas em que se encontram suas famílias ribeirinhas7, vivendo à margem do mercado de trabalho e desassistidas pelo Estado. Atividade Familiar As atividades realizadas pelos trabalhadores precoces com o marisco funcionam no interior da estrutura familiar. Em sua maioria, os entrevistados afirmaram ter aprendido a fazer o que fazem hoje com a família e parentes. Foram citadas mães, pais, avós, irmãos e tios. Outros dizem ter aprendido por observação de pessoas trabalhando na caiçara. Esse modelo de trabalho parece ser reproduzido de geração para geração. Muitos afirmaram ter aprendido a trabalhar observando os familiares. As crianças vivem em contato constante com as atividades dos pais e vizinhos. Observamos, no momento das entrevistas, que crianças menores de três anos, por exemplo, vivem naquele 7 População que vive próximo dos rios. 65 espaço com as outras crianças mais velhas, e, mesmo que não realizem uma tarefa, observam desde cedo sua realização. Quanto à questão que trata das pessoas para as quais crianças e adolescentes trabalham, observa-se que, muitas vezes, desenvolvem tarefas para a família. Pais, tios e avós, mas, principalmente, para as mães. A família, neste sentido, é referida como membros de vários níveis de parentesco. Há ainda crianças que trabalham para terceiros. Riscos No caso da atividade em questão, como não foi feita a análise da atividade pelos motivos acima expostos, atemo-nos em apresentar apenas alguns riscos que apareceram nas falas ou que inferimos a partir de outros estudos sobre trabalho precoce. Das crianças que entrevistamos, as principais queixas referiam-se a dores nas costas e na cabeça, relacionadas à posição em que praticam seu trabalho. Os que catam siri-mole e marisco informaram que permanecem certo tempo8 agachados com uma má postura. Muitas vezes não usam nenhuma proteção contra o sol, a não ser a camisa e o boné. Com as costas e a cabeça diretamente expostas ao sol, sofrem danos, acarretando freqüentemente bolhas nas costas. São vulneráveis a doenças de pele e cervicalgias. Outro aspecto enfatizado pelos meninos diz respeito às longas distâncias que percorrem a pé. “(...) dói a cabeça, que a pessoa tá ali levano sol e ta andando ali naquela terra... dói, dói muito minha cabeça. O sol quando bate... o sol é quente. É bom quano tá choveno, mas também quano tá choveno é rim pra pessoa pegar siri-mole, porque fica aquele lamêro (...)” (R, Masculino, 11 anos). “(...) fico muito cansado, aí cansa muito porque, inda além de remar ainda fica mai de coca assim pra pegar o marisco. É muito cansativo... dói mai nas costa e nos braço... o sol afeta as costa somente que tem vez que eu vou de camisa e não dói muito não quando chega em casa. Tem gente que vai sem camisa, aí quando chega em casa fica aquelas bolhinhas, fica as costa aí dispela todinho(...)” (V, masculino, 16 anos). No caso dos que trabalham no beneficiamento dos mariscos, as queixas não fogem ao mesmo princípio, a má postura em que executam suas atividades. Segundo os 8 Não sabemos quanto porque não foi feita a análise da atividade de trabalho. 66 entrevistados, a descatemba é uma tarefa demorada e cansativa, pois muitas vezes é feita de cócoras ou em pé, resultando em queixas de dores nas costas. Alguns deles, além de trabalharem na coleta ou no beneficiamento, ainda vão vender os mariscos na rua e nos bares de Bayeux e comunidades vizinhas. As informações dão conta de que eles passam cerca de oito horas vendendo os produtos. Para tal, transportam em bacias colocadas na cabeça, ou carregadas pelos braços. Prejuízos à escolaridade O ambiente escolar é propício para a criança se socializar, ampliando seu mundo que, até então, se restringia à sua família, de conhecer seus limites de ação e aprender a viver com os outros. Todos os meninos e meninas entrevistados freqüentam a escola e cursam desde a 1ª até a 7ª série do ensino fundamental. Os sujeitos apresentam uma defasagem escolar que chega até quatro anos. No entanto 5 deles não apresentam defasagem. Uma das causas que contribuem para a defasagem é o horário de trabalho dos sujeitos. O ritmo de trabalho deles é ditado pela maré. A jornada de trabalho inicia-se quando a maré está baixa, pois as croas ficam expostas, permitindo a coleta do marisco e do siri-mole. O fato de a maré “baixar” em horários irregulares repercute na não padronização ou definição dos horários de trabalho, como se pode observar em algumas falas: “(...) Depende da maré, porque a maré tem horário, horário, cada dia ela ta num horário diferente, aí se ela sai aqui de oito hora, aí eu vou pra maré, de oito hora (...)” (D., masculino,12 anos). “(...) quando a maré tá de nove hora chegava era oito e mêa em casa. Perdia muitos assuntos da prova pra ir pra maré (...)” (V., masculino, 16 anos). Por esse motivo, muitas crianças e adolescentes vivenciam o processo de escolarização de acordo com a maré. Além do que quando vão às aulas, chegam tarde, não têm tempo de estudar em casa e até saem na hora do intervalo para dar conta do marisco pescado. 67 Expectativas de futuro No que diz respeito às expectativas de futuro, dos sete meninos entrevistados, quatro responderam que queriam ser jogadores de futebol. Ao serem perguntados como eles poderiam alcançar esse objetivo, todos responderam que teriam que estudar muito. Quando perguntados como o trabalho que realizam hoje os ajudaria a realizar esse sonho, a grande maioria não sabia como responder. Dentre as meninas entrevistadas, apenas uma demonstrou interesse em ser marisqueira. As demais citaram as profissões: médica; professora ou veterinária. Atribuíram à escolarização a possibilidade da realização desses desejos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados desse estudo são inovadores e revelam a presença de crianças e adolescentes inseridos em atividades de pesca artesanal e em todo o processo de trabalho, da “catação” até a venda. Estas atividades são realizadas por uma comunidade ribeirinha no estuário do rio Paraíba, localizada no município de Bayeux. Essas atividades de trabalho, até o momento, haviam sido pouco estudadas com o enfoque no trabalho precoce. Os dados colhidos através de entrevistas feitas com os meninos e meninas dão conta de que o trabalho precoce é de fundamental importância para os pais, pois os filhos estão presentes em todas as etapas de trabalho na pesca do marisco. A mão-de-obra precoce é necessária a essas famílias, pois sem o complemento das crianças e adolescentes não conseguem dar conta da produção do marisco necessária à subsistência. O trabalho desenvolvido pelas crianças e adolescentes acarreta prejuízos à saúde e ao processo de escolarização. No que diz respeito à saúde, a posição agachada e a exposição ao sol provocam, segundo eles, dores nas costas e na cabeça. A escolarização é afetada pelo movimento da maré que influencia no tempo dedicado ao estudo. Há ainda situações degradantes nas ruas onde se dá o processo de venda. O presente trabalho contribuiu também para o projeto de Mapeamento do Trabalho Precoce na Paraíba, ampliando-o às atividades de catadores de marisco e siri-mole, além da atividade de descatemba de moluscos. 68 REFERÊNCIAS CARMO, T. M. S. do. [et al] Conhecendo o manguezal: material didático. 2. ed. Vitória: FCAA, 1996. LOPES, M. do S. F.; DANTAS, A. P. de A.;ALBERTO, M. de F. P. A relação entre o trabalho precoce noturno e a vida escolar: o caso dos meninos engraxates da Escola Municipal de Meninos e Meninas de Rua. In: ALBERTO, M. de F. P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. p. 157-169. NISHIDA, A. K. Catadores de moluscos do litoral paraibano: estratégias de subsistência e algumas formas de percepção da natureza. 2000. Tese (Doutorado em Ciências) Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2000. SILVA, R. da; ALBERTO, M. de F. P . A face oculta do trabalho precoce e suas conseqüências no desenvolvimento escolar: um estudo de caso na casa menina mulher. In: ALBERTO, M. de F. P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. p.171-183. 69 CAPÍTULO 06 “VAI UM ‘CARREGO’ AÍ”? A DURA LIDA DOS FRETISTAS EM MANGABEIRA Maria José Basílio de Oliveira1 Maria das Graças Santos2 Edil Ferreira da Silva3 INTRODUÇÃO O combate ao trabalho precoce constitui uma temática e um problema que preocupam a sociedade brasileira. A prática do trabalho precoce não é coisa recente, mas persiste mesmo ante denúncias e políticas públicas em diferentes níveis nacional e internacional. Infelizmente, ainda, convivemos em uma sociedade que concorda e incentiva crianças a trabalharem acreditando que assim está livrando-as da marginalidade, das ruas, etc. O trabalho precoce no Brasil está ligado aos mais diversos ramos de atividade da economia. A produção de estudos sobre o trabalho precoce tem crescido evidenciando os diversos setores em que se verifica a sua ocorrência. No entanto, são parcos e pouco divulgados os estudos que procuram fazer a relação entre trabalho infantil e a questão do processo saúde-doença de crianças e adolescentes. Com o intuito de contribuir com a produção de conhecimento nessa área, este estudo busca evidenciar o trabalho como fretistas feito por crianças e adolescentes na feira livre e no mercado de Mangabeira, na cidade de João Pessoa – Paraíba. Este tipo de trabalho não aparece nas estatísticas oficiais, nem quando estas se referem ao trabalho informal. Apesar de ser aparente a todos, esta atividade não é percebida enquanto trabalho 1 Educadora da Pastoral do Menor de Mangabeira. Professora de Artes da Pastoral do Menor Boa Esperança. 3 Doutor em Saúde Pública EBSP/FIOCRUZ, Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba/UEPB, Educador do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares/SEAMPO/CCHLA/UFPB. 2 70 que ocupa crianças e adolescentes, nem é visibilizado em toda sua complexidade, inclusive a que envolve riscos e perigos para a saúde física, afetiva e mental dos envolvidos. A presente pesquisa pretende analisar a atividade dos fretistas da feira livre e do mercado público de Mangabeira procurando evidenciar os fatores de risco presentes e suas repercussões no processo saúde/doença de crianças e adolescentes. O Brasil vem, desde 1992, desenvolvendo progressivamente políticas sociais e criando leis para acabar com o trabalho precoce. A principal política adotada pelo governo brasileiro neste sentido é o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Este programa possui a proposta de retirar as crianças do ambiente de trabalho, inserindo-as na escola e garantindo às famílias o recebimento de uma bolsa – a bolsa-cidadã. Algumas análises sobre o programa brasileiro de erradicação do trabalho infantil colocam-no no rol das políticas emergenciais e compensatórias. De acordo com Rosemberg e Freitas (2002, 100), (...) a tematização de trabalho infantil no Brasil parece-nos, neste momento, mais uma destas iniciativas: recortar um problema associado à infância pobre e tratá-lo de modo focalizado através de políticas de emergência que têm mais impacto para uso externo – na mídia nacional e internacional, na imagem do país para fins de acordos comerciais internacionais – do que na diminuição das desigualdades sociais. Para além das críticas, acreditamos que a problemática do trabalho precoce tem que ser desvelada e mostrada em toda sua complexidade. As políticas sociais e as ações da sociedade civil no campo do trabalho precoce podem parecer fragmentadas e pontuais, mas significam uma postura afirmativa da sociedade brasileira na busca de sua solução. O nosso estudo pretende contribuir para adoção de políticas específicas para os meninos que trabalham como fretistas no bairro de Mangabeira, por necessidade familiar ou por interesse pessoal. A metodologia utilizada calcou-se na abordagem de pesquisa qualitativa e usou como técnicas a observação das situações de trabalho e entrevistas individuais. A escolha do bairro de Mangabeira como campo de pesquisa deveu-se ao seu tamanho, por ser um local de grande aglomeração humana, por possuir um comércio muito desenvolvido e por contar com vários pontos de afluência de fretistas. 71 A primeira fase da pesquisa consistiu de uma exploração do campo empírico com o objetivo de obter informações, detalhes do trabalho dos fretistas. Para tanto, foram feitas observações em dois locais de pesquisa (na Feirinha e no Mercado Público, ambos em Mangabeira), ainda sem um contato direto das pesquisadoras com os fretistas. Foram observados: como o fretista realiza o seu trabalho, quais as relações que estabelecem no horário de trabalho e como eles se organizam no local de trabalho. Após a abordagem mais geral do trabalho dos fretistas as pesquisadoras começaram a fazer contato com eles. Nesta conversa, as pesquisadoras explicaram o porquê da pesquisa e perguntaram se eles topavam conversar sobre a atividade que faziam. Foram contatados mais de 25 meninos. A segunda fase da pesquisa foi a análise da atividade dos fretistas, que consistiu da observação das situações de trabalho. Diferentemente da primeira observação, agora as pesquisadoras se detiveram sobre o curso da ação da atividade dos fretistas buscando captar as suas nuances, especificidades, singularidades. A análise da atividade serviu para mostrar como o trabalho dos fretistas realmente é desenvolvido: as condições de trabalho que eles têm, as dificuldades que enfrentam diariamente, os perigos que rondam a atividade, as variabilidades inerentes àqueles locais de trabalho e as negociações que têm que fazer para dar consecução à atividade. A terceira fase do estudo constou do planejamento para a efetivação das entrevistas. Neste sentido, fez-se uma discussão dos dados mais gerais do trabalho dos fretistas levantados na observação exploratória que subsidiou a elaboração de um roteiro para ser utilizado durante as entrevistas. A quarta fase da metodologia foi a realização das entrevistas do tipo semiestruturada. Foram cinco ao todo. Os entrevistados respondiam as questões formuladas, sem respostas pré-fixadas. Foram feitas no próprio local de trabalho dos fretistas e dela participaram crianças e adolescentes que concordaram em fornecer as informações. Apesar do contato inicial ter envolvido 25 meninos, somente cinco concordaram em conceder entrevista e permitir a análise da atividade. Durante a observação do trabalho dos fretistas, não se encontraram meninas pegando fretes. Dos meninos entrevistados, um tinha 12 anos e cursava a quarta série; dois tinham 13 anos, sendo que um cursava a terceira série e o outro, a quarta; e dois, de 16 anos, cursavam a quarta série. 72 A última parte constou da análise dos dados e da elaboração do relatório final. Para a análise dos dados, fizemos várias reuniões para leitura e discussão das entrevistas. Na ocasião, buscávamos obter dados sobre a situação sócio-econômica dos meninos e de suas famílias e sobre sua situação em relação à escola. As entrevistas forneceram ainda subsídios para entender como os fretistas viam seu trabalho, qual seu significado e importância para suas vidas. De acordo com os dados das entrevistas, podemos afirmar que os fretistas moram em casas doadas pelo governo. As casas onde moram só possuem um vão e nela residem aproximadamente 11 pessoas, ao todo são 9 irmãos, pai e mãe. Segundo os entrevistados, a renda familiar gira em torno de, mais ou menos, de R$ 150,00 por mês. Os meninos ganham em torno de R$ 20 reais por semana. O pai ou a mãe dos entrevistados trabalha no mercado informal, por exemplo, carpinteiro, empregada doméstica. Alguns são feirantes. ANÁLISE DA ATIVIDADE DOS FRETISTAS Estamos utilizando neste estudo os referenciais da ergonomia situada (Daniellou, 1983; Guérin et al, 2001), principalmente os conceitos de atividade e variabilidade. O conceito de atividade aqui utilizado está relacionado (...) ao que se faz, inclui o que o homem dispõe de seu corpo, sua personalidade e suas competências para realizar o trabalho. A atividade de um trabalhador é caracterizada pelas suas condutas, pelas suas performances realizadas e resultados obtidos (Ribeiro, 2004). Atividade é aquilo que o sujeito faz efetivamente no processo de consecução do seu trabalho, utilizando seus componentes físicos, cognitivos e psíquicos. De acordo com a ergonomia, as variabilidades (Guérin et al, 2001) estão sempre presentes nas situações de trabalho. Em todo ambiente de trabalho, é impossível se contar com um nível total de estabilidade das variabilidades. Se as variabilidades são algo que faz parte das situações de trabalho (Guérin et al, 2001), é factível conhecê-las, tentar prevê-las e considerar a possibilidade de que novas venham a existir. A variabilidade pode ser técnica ou humana. As variabilidades técnicas são responsáveis pelo fato de não existirem apenas situações de operações ditas normais. A ocorrência de disfuncionamentos e incidentes faz parte do dia a dia 73 do trabalho e, para atender aos objetivos da produção, é necessário que os trabalhadores empreguem atividade de regulação (Telles, 1995, p. 7). A variabilidade humana inter-individual diz respeito às variações existentes entre as pessoas; e a variabilidade intra-individual refere-se às variações internas de cada trabalhador. Levando-se em consideração estes conceitos da ergonomia situada, vamos proceder a seguir a uma descrição da atividade dos fretistas da feirinha e do mercado público de Mangabeira. O Trabalho Efetivamente Realizado O trabalho dos fretistas começa muito cedo. Chegam à feira por volta das cinco horas da manhã. Segundo os meninos, o motivo de chegar nesse horário é para disputar o “ponto” e o cliente. Os fretistas mantêm entre si, de modo informal, certa organização do seu trabalho. Ao chegar à feira livre, conhecida popularmente como feirinha de Mangabeira I, ficam em fileira à espera do cliente. Este tipo de organização permite que o cliente seja abordado pelo fretista que ocupa a primeira posição e assim sucessivamente. Apesar dessa aparente organização, os meninos que estão em uma posição mais atrás não deixam de abordar o cliente, de tentar convencê-lo dos seus serviços e fazer o cliente escolher qual deles prefere. Acontece, também, o caso de o fretista já ter sua clientela fixa, não importando, assim, a posição que ele está ocupando na fila. Já os meninos que trabalham no mercado público de Mangabeira têm outra forma de organização. Pelo fato de o mercado de mangabeira possuir várias entradas, por onde os clientes podem chegar, os meninos ficam circulando em seu entorno. Muito embora exista uma pequena aglomeração deles em frente ao sacolão de verduras e frutas que é muito freqüentado devido aos preços mais acessíveis. Enquanto os meninos estão à espera dos clientes, eles ficam conversando e brincando. Neste momento, eles mantêm uma relação mais próxima de amizade: riem, fazem chacota uns dos outros. No entanto, pudemos perceber que eles ficam ativos à chegada dos clientes. No caso do mercado público de Mangabeira, onde não existe uma fila pré-determinada, quando o cliente se aproxima eles correm em grupo, cada um oferecendo 74 seu serviço, seu preço. Existe a situação em que um ganha o frete porque oferece um preço mais baixo, sendo xingado pelos colegas. Este fato mostra, então, que eles saem de uma situação de companheirismo para uma de competição e quem ganha sai feliz. Porém, sendo xingado e às vezes ameaçado. Esta é uma situação de mal estar para estes meninos e, em certas ocasiões, pode ser perigosa, já que alguém pode sair ferido quando acontece briga entre eles. Após conseguir um cliente, a atividade do fretista consiste em acompanhá-lo na feira. Este processo de acompanhamento requer do fretista estar atento a tudo. Aos passos dinâmicos do cliente que vai de uma “banca” a outra; aos pacotes que vão se formando para colocar no carrinho; à forma de empurrar o carrinho por causa do grande número de pessoas na feira; ao cuidado com as compras para não serem roubadas; ao trânsito na rua e a tantos outros cuidados. Quando o fretista vai pegando os pacotes e colocando no carrinho, vai fazendo movimentos inadequados: curvam-se muitas vezes, pegam peso de forma errada, ficam muito próximo do movimento dos veículos na rua, etc. Na situação de acompanhar o cliente, o fretista encontra muitas variabilidades tendo que fazer constantes regulações para poder dar conta de sua atividade. O seu jeito de trabalhar se modifica a cada frete, já que cada cliente tem uma entrada diferente na feira. Um vai primeiro à feira de carne, outro vai pela parte das verduras e um terceiro pode adentrar um mercado para comprar legumes. Neste sentido, o fretista procura fazer o melhor possível para enfrentar as variabilidades, como, por exemplo, se livrar do trânsito de veículos quando não é possível botar o carrinho na calçada. Ter que enfrentar um conjunto vasto de variabilidades torna-se um incômodo para os fretistas, principalmente se eles naturalizam estas variabilidades deixando de considerá-las enquanto um evento importante. Quando o cliente termina sua feira, normalmente no carrinho se tem uma base de 10 a 20 quilos de alimentos, peso que pode ser considerado elevado à idade da criança de 12 a 16 anos. Devemos considerar que o fretista tem que levar o carrinho, com este peso, a uma distância de 5 a 6 km, e ás vezes até mais. O fretista não tem noção do peso que carrega em cada frete realizado. “(...) Não sei dizer quantos quilos carrego. Só sei que ficam calos na mão” (Fala de fretista entrevistado). 75 Um dos problemas enfrentados pelos fretistas em sua atividade é a questão do espaço para sua locomoção no trabalho. Na feirinha de Mangabeira I, por exemplo, não se tem espaço: as calçadas são estreitas, de mais ou menos dois metros de largura. Este espaço é dividido entre pedestre, barraquinhas de verduras e frutas, bicicletas, carros de mão. Só resta para o fretista andar com o carrinho na rua, disputando-a com carros e motos estacionados. Esta situação leva os fretistas a correrem o risco de acidentes. Além de terem que ficar com a atenção redobrada nos carros, têm que manobrar por entre carros, motos, carroças puxadas por burros, barracas e pedestres. Isto leva a que, em determinados momentos, a sua movimentação se torne lenta o que faz com que o cliente e donos de barraquinhas os xinguem de “lesos” e desatento. O espaço de trabalho do fretista, por ser a céu aberto, possui outros riscos como: poeira, excesso de sol, poluição sonora. Além do que, o tipo de atividade expõe a outros riscos como, por exemplo, pegar peso. Outro momento que pode provocar sofrimento para o fretista é a questão da negociação do preço do frete. Geralmente, o fretista discute com o cliente o valor do frete antes de iniciar a feira. No acordo do preço, sempre prevalece a oferta do cliente, já que, para não perder o “carrego”, o fretista aceita o oferecido. O valor de cada frete gira em torno de 1 e 2 reais. O valor do frete está vinculado à distância da residência do cliente. No entanto, em algumas situações, o cliente não cumpre o prometido e, apesar da distância, o valor pago é menor do que o acordado. Esta é uma situação em que as crianças se sentem impotentes e, mesmo reclamando que o cliente não cumpriu o acordo, não logram êxito. Algumas vezes recebem como resposta do cliente que o que está sendo lhe pago já é muito. Esta é uma situação que leva a sofrimento, já que a criança conta com o dinheiro para levar para casa, além de querer que sobre alguma coisa para seu usufruto. Estes são alguns elementos caracterizadores desta atividade, que, geralmente, não são percebidos como um trabalho que tem suas especificidades e um caráter complexo quanto à sua realização, podendo acarretar conseqüências danosas à vida dos seus executantes. MAPEAMENTO DOS RISCOS DA ATIVIDADE DE FRETISTA O trabalho é um dado fundamental na vida dos seres humanos. Ele pode ser positivo, levando à satisfação, ao prazer, à saúde, como pode também levar ao sofrimento, 76 a doença (Dejours, 1994). O que vai determinar este processo de saúde/doença é o modo como o trabalho é realizado e em que condição é exercido. As condições nocivas provocadoras de adoecimentos podem ser determinadas através dos riscos existentes nos ambientes de trabalho. Risco é toda e qualquer possibilidade de que algum elemento ou circunstância existente num dado processo e ambiente de trabalho possa causar dano à saúde, seja através de acidentes, doenças ou do sofrimento dos trabalhadores, ou ainda através da poluição ambiental (Porto, s/d, p. 2). No presente estudo, estaremos utilizando a categorização do modelo operário italiano relativo aos fatores de risco (Oddone, 1986) para classificar os elementos nocivos detectados nos locais de trabalho dos fretistas de Mangabeira, que podem afetar-lhes a saúde. A seguir apresentamos os fatores de risco constatados: • Fatores físicos – Fator de risco físico é aquele que tem sua origem em uma fonte ou fenômeno de natureza física ou de um sistema físico (umidade, ventilação, temperatura, a luz, o ruído, etc.). • Fatores químicos – Fatores de risco químico é aquele cuja origem é uma fonte química característica de um processo ou ambiente de trabalho (gás, poeiras, vapores, etc.). • Fatores biológicos – Fator de risco biológico é aquele que tem como fonte de origem organismos biológicos presentes em materiais orgânicos e nas precárias condições sanitárias nos locais de trabalho (fungos, vírus, parasitas, bactérias, insetos, etc.). • Fatores ergonômicos – Fatores ergonômicos são aqueles que dão origem à fadiga anátomo-fisiológica e cuja fonte é o esforço muscular esquelético empregado pelo ser humano na realização do seu trabalho (levantamento e transporte manual de peso, monotonia, repetitividade, responsabilidade, ritmo excessivo, posturas inadequadas de trabalho, etc.). • Fatores de acidentes – Fatores de acidentes são aqueles fatores de riscos que dão origem a um acontecimento fortuito causador de morte, lesão ou lesões, com conseqüente perda ou redução, temporária ou permanente, da capacidade física e mental do trabalhador cujas fontes são as condições dos meios de trabalho (arranjo físico inadequado, iluminação inadequada, incêndio e explosão, etc.). 77 Na seqüência, apresentamos um mapeamento de risco elaborado a partir da observação participante dos pesquisadores e das entrevistas com os fretistas. O mapeamento de risco é uma metodologia desenvolvida por técnicos e operários italianos (Oddone et al, 1986) para o conhecimento e a definição científica das condições de trabalho, permitindo um esquema de análise que busca enfrentar globalmente os problemas do ambiente e da prevenção do risco do trabalho. MAPEAMENTO DOS RISCOS DA ATIVIDADE DE FRETISTAS DE MANGABEIRA Fatores de riscos físicos Fatores de riscos químicos Fatores de riscos biológicos Fatores de riscos ergonômicos Fatores de riscos de acidentes Ruídos Sol Calor Chuva Poeiras Gases e fumaças (gasolina, álcool e diesel) Bactérias Insetos peçonhentos Lixo Instalações sanitárias sujas e infectas Levantamento e transporte de peso Repetitividade Ritmos excessivos Posturas inadequadas Longas distâncias Nível de atenção elevado Movimentos constantes de veículos (carros, motos e carroças) Vestuário inadequado (calçados) Como podemos observar, os fretistas estão submetidos a um conjunto vasto de riscos que podem levar a problemas de saúde, notadamente doenças e acidentes de trabalho. Chama atenção a exposição dos fretistas aos fatores de riscos químicos, como poeiras, gases e fumaças, que podem causar intoxicações e alergias. A questão da emissão destes gases pode ser minimizada pelo fato de o trabalho dos fretistas ser realizado a céu aberto, com ventilação constante. No entanto, a exposição diária pode levar ao surgimento de alguma patologia relacionada a estes riscos. Já os fatores de riscos biológicos estão diretamente relacionados à falta de higiene nas imediações da feirinha e do mercado público de Mangabeira. O acumulo de lixo leva ao aparecimento de insetos, pragas e bactérias que podem provocar doenças contagiosas e feridas pelo contato com urina de ratos ou mordidas de insetos. Os fretistas ainda se submetem às péssimas condições dos banheiros, podendo contrair doenças de pele. 78 Com relação aos fatores de riscos ergonômicos observados: levantamento e transporte de peso, repetitividade, ritmos excessivos, posturas inadequadas, longas distâncias, nível de atenção elevado, os efeitos estão mais diretamente relacionados a problemas de coluna e dores musculares. Os meninos se queixam de dores nas costas e cansaço. Os gestos de baixar, levantar, empurrar o carrinho são atos que podem justificar as queixas dos meninos fretistas. Geralmente eles percorrem grandes distâncias tendo que ficar atentos ao trânsito e não podem parar muito o carrinho para descansar, senão o cliente fica reclamando. Esta sinergia de fatores potencializa os efeitos em relação ao sofrimento que os meninos podem ter no desenvolvimento de sua atividade. A incerteza se o cliente vai ou não pagar o que combinou é um fator que afeta o componente psicológico das crianças. Como já foi referenciado, o local de trabalho dos fretistas é muito perigoso no que concerne à possibilidade da ocorrência de acidentes com os meninos. Por ser uma atividade realizada no meio da rua os meninos ficam disputando o espaço com os carros, motos, carroças e as pessoas em geral. Como a feirinha de Mangabeira tem uma parte significativa que fica na principal avenida do bairro, é constante o perigo de atropelamentos de carro e motos que os meninos correm. Como têm que acompanhar o cliente e não sobra espaço na calçada para o carrinho, o jeito é conduzi-lo pela rua, fazendo manobras para se livrar das pessoas e dos veículos que passam constantemente pelo local, inclusive ônibus. Os fretistas também podem sofrer cortes e ferimentos, já que suas vestimentas são inadequadas para o desenvolvimento da atividade. Eles fazem o seu serviço usando, geralmente, sandálias já desgastadas que não protegem adequadamente os pés. Como fazem percursos curtos e longos e passam por locais sujos, terrenos acidentados e com lixo, que podem conter vidros, ferros e outros materiais perfurocortantes, estão sempre sujeitos a perfurações nos pés e nas pernas. Os meninos ainda podem sofrer queimaduras, já que existem muitas motos estacionadas no local onde eles passam com o carrinho. As queimaduras podem acontecer também com os meninos que fazem o serviço sem usar nenhum tipo de calçado, o que é comum. Eles podem pisar em ponta de cigarro acesa e se queimar, como também queimar os pés no asfalto quente. 79 CONSIDERAÇÕES FINAIS Acompanhando todo esse percurso do trabalho dos fretistas, vimos que as histórias de vida desses meninos são tristes, sofridas, marcadas pela pobreza material, afetiva, e por situações de conflitos familiares. Isto nos instigou a superar as dificuldades e seguir em frente com o estudo. O modo como a atividade dos fretistas é realizada nos inquietou, mas suscitou depois um desejo de conhecer mais e de poder buscar uma transformação em sua situação de vida. O que nos chamou a atenção foi os semblantes dos fretistas entrevistados, sempre permeados de tristeza, cansaço e sofrimento. Eles tinham um rosto na maioria das vezes sem sorriso. Grande parte dos meninos que trabalham na feirinha e no mercado público de Mangabeira, pegando fretes, tiveram que abandonar os estudos e outros já foram reprovados alguma vez. Estudar ou trabalhar? Esta é uma questão que permeia a vida destas crianças e adolescentes. Mas, devido às dificuldades que enfrentam em termos sociais e econômicos, não lhes restam muitas opções. A maioria prefere trabalhar e ter o que comer, mais não perde a esperança de ser feliz e se tornar alguém na vida. Como foi exposto, os fretistas enfrentam muitos fatores de riscos durante sua jornada de trabalho. Este conjunto de riscos faz com que as crianças tenham que dar tudo de si para poder realizar sua atividade, o que quer dizer, muitas vezes, minimizar o risco, fazer de conta que ele não existe (Dejours, 1994). Esta operação mental inconsciente possibilita a eles se defenderem, ficar ativos (Muniz, 1993) e conseguir fazer sua atividade com sucesso, preservando a saúde. REFERÊNCIAS ALBERTO. M. F. 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Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Engenharia da Produção, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1995. 81 CAPÍTULO 07 MENINOS QUE FREQUENTAM O CLUBE DO MENOR TRABALHADOR Edilma Ferreira Dos Santos1 Lijavan Lins2 Milane Rocha Oliveira3 Bernadete Oliveira4 Maria Helena S. França Lins5 MENOR ABANDONADO De onde vens, criança? Que mensagem trazes de futuro? Por que tão cedo esse batismo impuro que mudou teu nome? Em que galpão, casebre, invasão, favela, ficou esquecida tua mãe?... E teu pai, em que selva escura se perdeu, perdendo o caminho do barraco humilde?... Criança periférica e rejeitada ... Teu mundo é um submundo. Mão nenhuma te valeu na derrapada ... CORALINA, C – Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. Este trabalho apresenta os resultados da pesquisa realizada no Mercado Central de João Pessoa com crianças e adolescentes que participam do Clube do Menor Trabalhador. 1 Aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante da Associação Santo Dias. 2 Aluno do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e presidente do Clube do Menor Trabalhador. 3 Aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante da Fundação Dom Helder Câmara da Cidade de Bayeux.(VEJA TAMBÉM SE TÁ CORRETO) 4 Mestra em Saúde do Trabalhador pela EBSP/FIOCRUZ, Psicóloga, Educadora do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO. 5 Especialista em Movimentos Sociais e Saúde do Trabalhador pela UFPB, Comunicóloga, Educadora do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO. 82 O objetivo principal dessa pesquisa, realizada no período de dezembro de 2003 a março de 2004, foi identificar as atividades exercidas pelos meninos que trabalham no Mercado Central e freqüentam o Clube do Menor trabalhador e, também, os riscos aos quais estão submetidos e quais as conseqüências do trabalho precoce. A partir da observação e do estudo realizado, pôde-se constatar o distanciamento entre o Direito da Criança e do Adolescente e a Realidade Social. Esse distanciamento gera conseqüências imediatas no que diz respeito à cidadania, à garantia de direitos e às condições de vida em geral. Os estudos e pesquisas, na temática do trabalho precoce, vêm aumentando. Isso nos mostra como esta temática tem gerado interesse tanto na academia como em diversos grupos sociais, sugerindo com isso que é possível provocar mudanças na sociedade de forma a favorecer as nossas crianças e adolescentes. Estas têm constantemente seus direitos violados, seja pela falta de políticas públicas, seja pela morosidade na efetivação dos direitos, seja pelas desigualdades econômicas como um dos principais fatores que levam as crianças e os adolescentes ao mercado de trabalho como forma de auferir dinheiro para ajudar no orçamento familiar. Temos muito que avançar neste sentido. Por isso é necessário nos organizarmos para contribuirmos na criação e aplicação de políticas públicas, mudando, assim, a cultura de que “é melhor estar trabalhando do que roubando”, porque nos deparamos freqüentemente com pessoas que possuem esse pensamento, sem perceberem que o lugar de criança é na escola. Este trabalho é dirigido a todas as pessoas, tanto do mundo acadêmico, como da vida militante nos movimentos sociais que atuam na defesa dos direitos da criança e do adolescente e dos direitos humanos, buscando um elo entre a vida acadêmica e militante. Compor uma parceria entre esses mundos, que muito tem a contribuir um com o outro, é de fundamental importância para o monitoramento e implementação das políticas públicas de combate ao trabalho infantil e defesa dos direitos do adolescente trabalhador. Esperamos que esse trabalho venha contribuir de alguma forma para essas transformações. 83 OS CAMINHOS DA PESQUISA A escolha do objeto de estudo devem-se à participação do Presidente do Clube no curso de extensão e pesquisa. Assim, foram elaboradas as visitas à instituição e ao Mercado Central, pesquisa documental, observação das atividades, entrevistas semi-estruturadas com roteiro aberto e registro fotográfico do clube e dos meninos em atividade. A primeira visita foi feita apenas para conhecer as instalações do clube, mas aproveitamos e tivemos uma conversa rápida e informal, pois eles estavam se preparando para almoçar. Alguns ficaram inibidos com a nossa presença, principalmente pela presença das meninas, mas logo depois se entrosaram, pois procuramos transmitir-lhes confiança e amizade. Falamos sobre o nosso trabalho e pedimos a colaboração deles. Dois demonstraram resistência às fotografias. Os demais concordaram de imediato. Um dos meninos falou :“(...) se são amigas do nosso amigo (referência a um dos membros que faz parte do Clube) são nossas amigas também e vamos ajudar vocês”. Na segunda visita, tivemos acesso ao material impresso sobre o clube. Encontramos algumas monografias, escrituras, registros em conselhos, termos de doação, recortes de jornal, relatórios, prestação de contas e projetos, inclusive com a Universidade Federal da Paraíba. Não foi possível estudar minuciosamente todo esse material, pois tínhamos pouco tempo para estarmos no arquivo. Encontramos também fotos, da fundação aos dias atuais. Os registros fotográficos encontrados eram, na maioria, de datas comemorativas como: inauguração, primeira comunhão, festas, gincanas e também dos meninos exercendo suas respectivas atividades. O terceiro passo foi visitar o Mercado para observamos o ambiente de trabalho desses meninos. Fomos apenas com o intuito de observar. Mas os meninos, quando nos viram, foram logo se aproximando para conversar. Aproveitamos o ensejo e fizemos algumas indagações. O gerente do estabelecimento comercial em frente do qual trabalham nos observou com um olhar desconfiado e alguns clientes nos perguntaram se era alguma escolinha de rua. Conversamos também com um adulto que pega frete e divide o espaço com os meninos. Ele também nos prestou algumas informações sobre o trabalho e o Mercado Central. 84 Decidimos voltar no sábado, quando é maior o fluxo de clientes. Nesse dia apenas observamos. Um dos meninos tentou se aproximar, mas explicamos que estávamos ali apenas para observá-lo e investigar melhor o local. O quinto passo foi fotografar os meninos no seu local de trabalho. Dirigimo-nos ao Mercado com um fotógrafo, também aluno do curso de extensão, e fizemos algumas fotos. Os meninos se comportaram de forma natural. O gerente da distribuidora ficou bastante desconfiado, mas não se manifestou verbalmente. Em seguida, fomos ao clube, mas não foi possível fotografá-lo, porque estava em reforma. O sexto e último contato foi para realizarmos as entrevistas semi-estruturadas com perguntas abertas. Tivemos uma boa receptividade por parte dos meninos, que se dividiram entre o exercício de suas atividades e a entrevista. O total de meninos são onze que trabalham no estacionamento do estabelecimento comercial. Mas entrevistamos apenas seis meninos, pois os outros cinco não apareceram até o momento da nossa saída. Assim, realizamos a nossa pesquisa pela qual conseguimos identificar outras atividades realizadas pelos meninos além de olheiros de carros. CONTEXTO HISTÓRICO DO CLUBE Tudo está melhorando... O clube começou com cinco meninos somente: Pedro, Luiz, Dedé, Manuel e José. A primeira reunião foi debaixo de uma árvore da Lagoa (Documento do Clube). O número está aumentando... Faz dois anos, em maio de 1957, já éramos vinte e foi então que começou o nosso almoço, na assistência social. O grupo continuou crescendo e hoje mais de cem ferreiros passaram por este clube (Documento do Clube). Foi em março de 1957 que uma Assistente Social, residente nas proximidades do Mercado Central, preocupada com a realidade dos meninos “balaieiros”6, resolveu ter uma conversa com eles. Com o passar do tempo, o número de meninos foi aumentando. Conseguiram fornecer almoço, com a colaboração dos meninos e outros sócios, na sede social. Tinham 6 Termo utilizado para se referir ao menino fretista que carregava as feiras na cabeça em um balaio. Uma espécie de cesto feito de cipós trançados. 85 uma equipe encarregada pela organização e funcionamento. Em 1958 foi elaborado e publicado o estatuto da Campanha Educacional do Menor que é a razão social da instituição. Alugaram a primeira casa em 06 de março de 1959 na rua 13 de maio, com o intuito de se executar melhor o trabalho educativo. Desde a fundação até os dias atuais, a assistente social que fundou o Clube do Menor Trabalhador – na época Campanha Educacional do Menor – continua à frente do mesmo. O Clube têm por finalidade, (...) a realização de um trabalho sócio-educativo, em meio aberto, com crianças e adolescentes que trabalham, preferencialmente as que desenvolvem suas atividades nas ruas e logradouros da cidade. Tem como objetivos específicos, oferecer oportunidade para que o menino que trabalha na rua se organize e tenha uma experiência de vida associativa; propiciar condições para que ele descubra suas necessidades básicas e as possibilidades de satisfazê-las; estimular a escolarização; oferecer meios para que descubra o valor e a importância da saúde e conheça os principais meios de preservá-la; oferecer oportunidade para a prática do esporte e lazer; contribuir para o desenvolvimento da consciência crítica; propiciar oportunidade para o desenvolvimento da expressão e da criatividade e das habilidades e oferecer oportunidade para que tome consciência de seus direitos e deveres (extraído de documentos encontrados no clube). Ou seja, o Clube pratica o tipo de política que há muito o Estado brasileiro vem desenvolvendo e que o ECA se propõe acabar. É constituído por sócios efetivos e contribuintes. Consideram-se sócios efetivos as pessoas que participam das assembléias gerais, que definem a política de atendimento e se comprometem com a sua execução direta e indiretamente, com o direito de votarem e serem votadas para os cargos eletivos. Já os sócios contribuintes apenas contribuem financeiramente de forma regular. Os critérios utilizados para selecionar o público alvo se dão através dos próprios meninos que já freqüentam o clube, uma espécie de rede que articula a entrada de novos membros. Para permanecer, o menino tem que freqüentar a escola regularmente. Desenvolvem diversas atividades tanto nas ruas como no clube tais como: olheiros de carro, engraxates, carregadores de mercadorias, vendedores, etc. 86 OS TRABALHADORES INTERNOS E EXTERNOS AO CLUBE Atualmente, 64 meninos participam do clube. Dentre eles, 15 desenvolvem atividades dentro do clube, geralmente os meninos que se destacam nas oficinas oferecidas tais como: mosaico, marcenaria, empalhamento, envernizamento e fabricação de brinquedos. Os meninos que desenvolvem as atividades nas dependências do Clube recebem remuneração que é calculada da seguinte forma: Remuneração = valor de venda do produto (menos) - R$ 2,00 que é uma taxa fixa destinada para a despesa da oficina e reposião da matéria prima. Por exemplo, se um brinquedo for vendido por R$ 5,00. É retirada uma taxa de dois reais e o restante pertence ao menino. Os meninos tomam café da manhã na cantina do clube, que é servido apenas de 2ª e 5ª feira. Já o almoço é servido até o sábado. O almoço custa R$ 1, 00. O café da manhã não é cobrado, pois é destinado apenas para os que trabalham dentro do clube. As atividades são desenvolvidas de segunda a sexta. Ao final de semana, eles trabalham na rua como forma de aumentar os seus rendimentos. Para realizar as atividades nas oficinas, os meninos usam Equipamentos de Proteção Individual (EPI): • Empalhamento – avental e aparelho auricular; • Envernizamento – óculos, avental, aparelho auricular, máscara e luvas; • Marcenaria - aparelho auricular, avental, óculos e tênis; • Mosaico – óculos e avental; O material utilizado na produção é: • Empalhamento – palha sintética e torninhos (pedacinhos de madeira); • Envernizamento – esmalte sintético, tiner, solvente, globo fixador (bisnagas de cores), anilina (pó utilizado para dar cor à madeira), seladora, removedor de tinta, madeira e lixa. • Mosaico – cola de cerâmica, madeira, peças de argila e argamassa. • Marcenaria – colas branca e de contato, madeira, verniz, seladora e lixa. 87 Para a produção também são utilizados: serra circular, torno, lixadeira manual, tico-tico, desempeno, bancadas, máquinas, serrotes, martelos, etc. Fora do clube, desenvolvem atividades de fretistas, vendedores de frutas e verduras, engraxates e olheiro de carro. A maioria trabalha no Mercado Central e na Lagoa. A limpeza do prédio é realizada pelos meninos e funciona em escala de revezamento OS MENINOS OLHEIROS DE CARRO E OS CARREGADORES Para melhor investigarmos a questão do trabalho precoce, escolhemos a atividade de olheiros de carro. O local escolhido para a realização da pesquisa de campo foi o estacionamento de um estabelecimento comercial, localizado no Mercado Central no município de João Pessoa, onde trabalham dez meninos. Conseguimos entrevistar apenas seis devido ao pouco tempo e à indisponibilidade dos meninos. Em seguida, tentamos entrevistá-los no Clube, mas também encontramos resistência por parte da coordenação, pois não permitiu que os meninos fossem entrevistados dentro do clube, alegando falta de tempo e reformas internas. O espaço físico do estabelecimento comercial é um galpão, com uma escadaria e uma rampa na frente; o estacionamento é pequeno e o espaço interno é totalmente preenchido por caixas e outros produtos expostos. As instalações do Mercado Central são precárias, com péssimas condições de higiene. Existe muito lixo no local. Por lá transitam muitas pessoas que vão fazer compras, pedintes, vendedores e usuários de drogas, prostitutas, travestis, etc. Na época da pesquisa, houve um protesto por parte dos comerciantes que lá trabalhavam tentando chamar a atenção da prefeitura para as precárias condições em que o mercado funcionava. Existe projeto para reforma do mercado, mas, até aquele momento, não havia sido implementado. Devido às condições do ambiente em que os meninos estão inseridos, eles estão expostos a vários riscos, tanto sociais como sanitários, dentre os quais a violência, a venda de furtos e o uso de drogas. A exposição aos riscos foi apresentada pelos meninos como decorrência da proximidade do local de trabalho com as drogas que circulam no Mercado e com a feira de produtos roubados. Os meninos revelaram ter conhecimento dos tipos de drogas mais comercializadas no Mercado, tais como: craque, prensado (maconha com roupinol), 88 cocaína e maconha e da referida feira que funciona no anel interno da Lagoa, onde são comercializados vários produtos, de cds, sons, relógios, motos, carros a armas. Como afirma Faleiros (1987), a criança e o adolescente no trabalho são considerados enquadrados e em segurança; na rua eles são considerados uma ameaça. No entanto, o trabalho da criança e do adolescente pobre realiza-se preferencialmente na rua. É aí que eles buscam o espaço para obter, através do pequeno comércio e serviços, os meios de subsistência, vendendo a produção caseira ou intermediando o comércio de pequenos produtos industrializados, como balas, chocolates e picolés, ou jornais, ou ainda oferecendo pequenos serviços como o de engraxate, vigia e lavador de carro. A rua constitui uma ocasião propícia para o relacionamento da criança sozinha, sem afeto, com alguém que aparentemente lhe oferece “proteção”, segurança, em troca de cobertura para furtos, tráfico de drogas e prostituição. São os chefes de gangues que estabelecem sobre elas sua dominação. Os menores de rua vêem-se assim como que obrigados pelas circunstâncias a colaborar com o crime organizado...A rua é, portanto, ao mesmo tempo um lugar de trabalho e de perigo. Os dados revelaram que faixa etária dos meninos pesquisados variou dos treze aos dezoito anos. São predominantemente do sexo masculino e com escolaridade que vai da 2ª à 8ª série. Estudam no turno da noite, motivo pelo qual alegam cansaço, o que dificulta o aprendizado e a participação na vida escolar. Mas como um dos critérios para continuar fazendo parte do clube é a freqüência escolar, os meninos procuram se esforçar participando do reforço escolar do clube, como forma de melhorar o desempenho na escola. Estes dados são relevantes porque demonstram que o clube contribuiu com a promoção do trabalho infantil para uma faixa etária proibida pela Legislação brasileira. A jornada de trabalho inicia-se a partir das 6:00 horas da manhã e se estende até as 18:00 horas, de segunda-feira a sábado, com intervalo para o almoço a partir das 12:00 até as 14:00 horas. Eles fazem suas refeições no Clube do Menor e pagam apenas R$ 1,00 pelo almoço. Dentre esses meninos, quatro almoçam no clube, um no mercado e um outro em casa e às vezes no clube. Essa jornada extensa é um dos principais fatores para que os meninos cheguem exaustos à escola. Podemos comprovar, a partir desses relatos, que o trabalho de olheiro que eles desenvolvem configura-se como um desrespeito total aos direitos da criança e do 89 adolescente defendidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA que determina, entre outras coisas, que: Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar com absoluta prioridade a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à dignidade, ao respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária. Art. 5º. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Art. 60º. É proibido qualquer trabalho a menores de quator{e anos, salvo na condição de aprendiz de 12 a 14 anos. A Emenda Constitucional nº 20 de 15/12/98 D.O.U., modificou o artigo nº 60 e alterou a proibição até os 16 anos e salvo na condição de aprendiz de 14 a 16 anos. Todavia, o trabalho que fazem, quer nas ruas, quer no clube, não se caracteriza como aprendizagem, porque, para ser aprendizagem, o adolescente deveria se inserir em um programa com começo, meio e fim, conjugando ensino teórico e prático, metódico, feito sob a orientação de um responsável em ambiente adequado. Em nenhuma das situações configura-se como tal. As pessoas que utilizam o trabalho dos meninos são os clientes da distribuidora de alimentos e a própria distribuidora para descarregar as mercadorias e arrumá-las dentro do galpão da empresa. Em relação à remuneração, os meninos chegam a receber por dia de R$ 5,00 a R$ 20,00. A renda mensal se dá pela soma das atividades desenvolvidas pelos meninos do decorrer dos dias. Os meninos dizem que trabalham porque precisam suprir suas necessidades, para ajudar na renda da família e até mesmo pela cobrança da família a fim de que procurem uma ocupação. 90 Para entendermos melhor a atividade de olheiro e as outras atividades, descreveremos a seguir cada uma delas. • Olhar carros: orientar o condutor do veículo para estacionar, zelar pelos objetos que estão no veículo evitando possíveis furtos. Nesta tarefa, o adolescente está exposto a diversos riscos para a sua saúde. Ele pode ser atropelado pelos carros que estão passando na rua enquanto indica o espaço para o cliente estacionar. Está exposto à poluição constante dos carros na rua, ao sol, à chuva, à poeira e à fuligem dos carros. • Carregar frete: colocar as mercadorias no carro de frete e transportar até o local de destino. • Descarregar caminhão, carregar veículos de pequeno porte, conduzir caixas e sacolas. As caixas são carregadas na cabeça e no ombro. Os meninos descreveram a atividade de descarregar o caminhão da seguinte forma: “Fica um batendo”. Significa colocar as caixas na cabeça dos outros colegas. “Três na linha”. Significa três levando as caixas para dentro da distribuidora e empilhando no depósito. O caminhão, denominado Romeu e Julieta, consiste em duas carrocerias unidas. É muito cobiçado por eles, o que ocasiona algumas vezes disputas acirradas por este cliente. Ele é mais vantajoso em termos financeiros porque contém mais mercadorias. Esta tarefa, apesar de significar mais trabalho, ao mesmo tempo significa a possibilidade de ganhar mais dinheiro. Esta atividade de carregar e descarregar caminhões tem sérias implicações no sistema ósseo-músculo-articular, cuja ossificação se completa aos 21 anos para o menino, idade em que o desenvolvimento muscular atinge cerca de 90%. O excesso de peso pode afetá-los de forma definitiva. O trabalho precoce, com largas horas de permanência em pé ou sentado inadequadamente, ou transportando peso além de sua capacidade, deforma a face anterior de 03 a 05 vértebras dorsais, podendo provocar deformidades ósseas (Kuleska, Medeiros, Nascimento, Ieno. 2002: 105). 91 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o presente estudo, constatamos que o trabalho infanto-juvenil apresenta diversos riscos à saúde e ao desenvolvimento dessas crianças e adolescentes. Quando são inseridas precocemente no trabalho, podem perder a motivação de sonhar, de realizar os seus desejos, como um dos adolescentes entrevistados disse: “sonho?... eu não tenho sonhos”. O Trabalho infanto-juvenil não é uma aprendizagem, mas sim uma violação aos direitos assegurados pelo estatuto da criança e do adolescente. O efeito que o trabalho precoce pode trazer na vida dessas crianças e adolescentes é uma baixa qualificação profissional, a defasagem escolar e os problemas de saúde causados pelo desgaste físico e mental. Com os resultados da pesquisa, é notório que os meninos trabalham para contribuir com a renda familiar e, até mesmo por imposição da família, para que se tenha uma ocupação. Também é possível constatar que o Clube tem, no mínimo, conhecimento da inserção precoce dos meninos no trabalho, o que é proibido por Lei e pode representar implicações psicossociais para o desenvolvimento desses sujeitos. Desse modo, os dados aqui coletados contribuem para a percepção de que as instituições que deveriam ser defensoras dos direitos da criança e dos adolescentes não agem como tais. REFERÊNCIAS ALBERTO, M. de F. P. As dimensões subjetivas do trabalho precoce de meninos e meninas em condição de rua de João Pessoa – PB. 2002, 305 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002. BRASIL. Ministério da Saúde. Ministério da Criança. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90. Brasília: Conanda, 2001. Documentos do Clube do Menor Trabalhador. 19??. Mimeografado. FALEIROS, V. A fabricação do menor. In: Revista Humanidades, n. 12, Unb,1987. FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA – UNICEF. A Infância no Brasil nos Anos 90. Brasília: Unicef, 2000. 92 MINAYO, C. S. (Org). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999. RIZZINI, I. Assistência à infância no Brasil. Rio de janeiro: Editora Univertária/ Santa Úrsula, 1993. ______. A criança e a lei no Brasil. Brasília: UNICEF/CESPI/USU, 2000. SIVIERI, L. H. Saúde no Trabalho e Mapa de Risco. In: TODESCHINI, R. (Org.). Saúde, meio ambiente e condições de trabalho: conteúdos básicos para uma ação sindical. São Paulo: CUT/ Fundacentro, 1996. 93 CAPÍTULO 08 O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA: DANOS PSICOSSOCIAIS E NEGAÇÃO À INCLUSÃO SOCIAL Juliane de Sousa Fernandes1 Sandra Magda Araújo de Almeida Xavier2 INTRODUÇÃO Este artigo apresenta-se como resultado do processo investigativo desenvolvido a partir do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural3, tendo por objetivo analisar a inserção de crianças e adolescentes deficientes no mercado de trabalho na Cidade de João Pessoa/PB. O interesse por este objeto de estudo emergiu da necessidade de relacionar as abordagens e objetivos propostos pelo curso, enquanto aluna do curso de psicologia e integrante do SEAMPO, com experiências pessoais no que se refere às problemáticas que perpassam a vida das pessoas com deficiências. Assim, de forma mais específica, objetivou-se: a identificação de trabalhadores infanto-juvenis com deficiência inseridos no mercado de trabalho; a verificação das atividades laborais em que essas crianças e adolescentes estão inseridos e quais danos estas podem ocasionar (psíquicos, físicos ou sociais); a identificação do nível de exploração que envolve a relação deficiência x trabalho precoce; e ainda verificar qual a representatividade dessas atividades na vida desses indivíduos. 1 Aluna do curso de graduação em Psicologia, na UFPB. Estagiária do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho - GPST e do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO. 2 Mestre em Serviço Social pela UFPB. Pesquisadora do Setor de Estudos e Pesquisas em Análises de Conjuntura e Políticas Sociais – SEPACOPS. 3 Promovido pelo Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO, Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho (GPST) e Grupo de Trabalho Precoce Subjetividade e Gênero, sendo estes parceiros do Projeto Unicidadania - Movimento Leigo para América Latina. 94 Em termos operacionais, inicialmente, realizou-se um levantamento bibliográfico buscando-se textos, artigos científicos, sobretudo na internet, acerca da temática abordada. Constatando-se que esta abordagem ainda se encontra pouco disseminada no meio acadêmico, tendo em vista a não identificação de material a respeito do trabalhador infantojuvenil com deficiência. No entanto, desenvolveram-se estudos sobre as categorias temáticas que perpassam tal objeto, como: trabalho precoce, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, trabalho, educação, inclusão social, entre outras, que vieram contribuir com a construção da fundamentação teórica, e com a análise e interpretações dos dados coletados, realizando a interlocução entre fontes primárias (pesquisador/pesquisados) e fontes secundárias (dados obtidos de outros estudos). Na fase de pesquisa de campo – durante os meses de março e abril de 2004 realizaram-se visitas aos shoppings “Terceirão”, “4400” e “Durval Ferreira”4, partindo-se da premissa de que o trabalho de crianças e adolescentes com deficiência na zona urbana seja mais disseminado no âmbito do mercado informal. Houve, ainda, contatos e visitas a algumas instituições para possível atendimento a estes sujeitos, como Fundação de Desenvolvimento do Adolescente e da Criança - FUNDAC e a Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência - FUNAD. Em ambas, não se obteveram dados e informações precisas que atendessem aos objetivos do estudo. Utilizaram-se como técnicas a observação assistemática e o roteiro de entrevistas. Recorreu-se à observação assistemática no Parque Sólon de Lucena, Feira do Mercado Central, Rua Barão do Triunfo, Praça do Bispo e Feira do Rangel. Sendo que, na maioria dos casos, porém, as idas a estes locais foram guiadas por informações coletadas através da indicação de terceiros. Utilizou-se a entrevista semi-estruturada, constituída de um roteiro de questões abertas e fechadas que contemplam cinco pontos de análise que se complementam: identificação, trabalho, renda, deficiência e perspectivas de vida. Utilizou-se, ainda, o diário de campo como instrumento de registro do contexto observado. 4 Espaços de comercialização criados pela administração municipal na tentativa de melhor distribuir o comércio informal da cidade. 95 TRABALHO PRECOCE E DEFICIÊNCIA - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES De acordo com a Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criança é a pessoa que tem até doze anos e adolescente é aquele que está entre doze e dezoito anos de idade. No Brasil, cerca de 43,3 milhões de pessoas encontram-se nesta faixa etária (IBGE, 2004). Tendo em vista a realidade sócio-econômica do país, que apresenta a perversa desigualdade social como sua marca registrada – configurada em suas múltiplas expressões de pobreza e de exclusão social a que está submetida grande parte da população – este segmento encontra-se no alvo das grandes questões sociais, dentre estas, a inserção precoce no mundo do trabalho. Embora o trabalho para menores de 16 anos seja ilegal, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos, sabe-se que a inserção de crianças e adolescentes nas mais variadas atividades de trabalho (de forma irregular) ainda é constante. Ressalte-se, ainda, que o Estatuto da Criança e do Adolescente admite o trabalho a partir dos 16 anos, desde que não seja em período noturno, perigoso, insalubre ou penoso, e seja vinculado a essa formação técnico-profissional o processo de escolarização regular. Apesar de todo aparato legal, existente no Brasil e no Mundo contra esta questão, assim como todo processo de tentativa de combate e erradicação liderado por ações do Estado e da Sociedade Civil, dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2004) apontam a existência no país de 5,4 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando, ou 12,6% dos 43,3 milhões de pessoas nessa faixa de idade, dos quais cerca de 42% vivem no Nordeste. Mundialmente, segundo estimativas da OIT, existem 246 milhões de crianças trabalhando, das quais 179 milhões estão expostas às piores condições, o que põe em risco sua integridade física, mental e moral. (Agência, 2004). Com relação ao estado da Paraíba, de acordo com o IBGE, 165 mil crianças e adolescentes, de 5 a 17 anos, estão trabalhando, sendo que cerca de 43 mil estão exercendo atividades perigosas. (Correio da Paraíba, 2004, p. B-2). De acordo com Alberto e Araújo (2003), a problemática do trabalho infanto-juvenil tem início na própria família. Corrobora a concepção desses autores os dados da Revista Educarede: 96 A principal causa que leva crianças e jovens de todo o mundo a serem obrigados a trabalhar é a pobreza. Famílias de baixa renda travam uma verdadeira luta diária pela sobrevivência em países cujos governos não dão prioridade a áreas como saúde, educação, moradia, saneamento básico, programas de geração de renda, entre outros. As crianças são forçadas a assumir responsabilidades em casa ou acabam indo elas mesmas buscar a complementação da renda familiar. (Trabalho, 2004). O trabalho precoce impede o acesso dessas crianças à educação, à profissionalização, que são mecanismos facilitadores de ascensão profissional e, conseqüentemente, a salários e melhores condições de vida, sobretudo na fase adulta. Assim, o trabalho precoce acaba repercutindo negativamente sobre o desenvolvimento psicossocial desses sujeitos. Retira da criança e do adolescente todas as condições consideradas – quer pela Psicologia, quer pela lei (ECA e outras) – imprescindíveis à formação e ao desenvolvimento integral do cidadão criança. O trabalho infantil é um grande comprometedor das condições de vida, da saúde, do nível de escolaridade e do acesso à cidadania entre a população infanto-juvenil. Essas crianças e adolescentes expõem-se precocemente a cargas e fatores de risco5 prejudiciais ao seu desenvolvimento bio-psíquico-sócial. Seu sistema ósteo-músculoarticular, cuja ossificação se completa aos 18 e 21 anos, respectivamente para o sexo feminino e masculino, fica afetado de forma definitiva. Já que o trabalho precoce exige quase sempre exercícios, esforços físicos, inadequados à capacidade de seu organismo. Quanto ao desenvolvimento psíquico, prejuízos decorrentes de experiências desagradáveis ou cargas mentais excessivas podem acarretar fadiga psíquica, medo, perda de auto-estima, além de somatizações digestivas, cardiovasculares, respiratórias, urinárias, dentre outras. Independente da forma de inserção, o trabalho precoce será um empecilho ao convívio com a família e com outras crianças em atividades lúdicas, podendo ter o seu desenvolvimento comprometido. Considera-se, ainda, que o trabalho precoce pode levar a conseqüências mais complexas, como a aquisição de uma deficiência permanente. Fato este decorrente do 5 É aquele que tem sua origem numa fonte ou fenômeno de natureza física ou de um sistema físico. (SIVIERI, 1996). 97 trabalho rural, em sisal, canaviais, olarias, etc, que expõem crianças e adolescentes a manusear máquinas e ferramentas que, a um simples descuido ou movimento impreciso, levam à mutilação de algum órgão. Tendo em vista este contexto é que se objetivou investigar a relação trabalho precoce x deficiência na cidade de João Pessoa/PB. De acordo com o Decreto 3.298/99, deficiência refere-se a toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gerem incapacidade para o desempenho da atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano. Dados do último Censo/IBGE indicaram a existência de cerca de 24,5 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, o que equivale a 14,5% da população. Segundo relatório do UNICEF, cerca de 2,9 milhões ou 4,7% das crianças e dos adolescentes de 0 a 17 anos apresentavam pelo menos uma das deficiências consideradas no Censo 2000, do IBGE (Fundação Abrinq, 2004). A Paraíba é o estado brasileiro que apresenta o maior número de portadores de deficiências (18,8%). Ao todo são 646 mil paraibanos que apresentam pelo menos um tipo de deficiência. Na faixa etária entre 0 e 14 anos de idade, estima-se cerca 5,2% de pessoas. Entretanto, entre os municípios com população superior a 100 mil habitantes, João Pessoa é o que apresenta o menor número de pessoas portadoras de deficiências (com 14,8%) (Correio da Paraíba, 2003, p. B-1 e B-3). Durante toda a história da humanidade, estas pessoas têm sido levadas à condição de exclusão. Tão somente no século XX, principalmente nas três últimas décadas, vem se consolidando um período de grandes avanços e de novas perspectivas para estas pessoas. Contudo, a discussão com relação ao termo correto para designar este segmento populacional ainda não se esgotou. Para cada época, houve um termo cuja significação esteve de acordo com os valores vigentes na sociedade. Segundo Sassaki (2003), existe, atualmente, uma discussão entre os movimentos mundiais de pessoas com deficiência com a finalidade de se padronizar mundialmente o termo em "pessoas com deficiência". 98 Durante muito tempo, sobretudo devido aos fundamentos do sistema capitalista, a pessoa com deficiência foi considerada um “peso” para a sociedade, diante da “impossibilidade” de produzir, ou seja, de não contribuir com o aumento do capital. A partir da última década, o paradigma da inclusão social tem sido amplamente discutido, tendo como objetivo viabilizar direitos à convivência não segregada e ao acesso a recursos disponíveis aos demais cidadãos. Para que se efetue a inclusão, a sociedade deve ser democrática a fim de que seja permitida a manifestação nas diferentes instâncias de debate e de tomada de decisão, de forma a possibilitar essa participação – tornando-se a denominada sociedade inclusiva, ou sociedade para todos. A sociedade para todos, consciente da diversidade da raça humana, estaria estruturada para atender às necessidades de cada cidadão, das maiorias às minorias, dos privilegiados aos marginalizados. (...) Na sociedade inclusiva ninguém é bonzinho. Ao contrário, somos apenas – e isto é o suficiente – cidadãos responsáveis pela qualidade de vida do nosso semelhante, por mais diferente que ele seja ou nos pareça ser. (...) Inclusão é, primordialmente uma questão de ética. (Werneck, apud Almeida, 2003, p.43). As áreas de atenção pública, tais como educação, saúde, esporte, turismo, lazer, cultura, têm suas atividades nem sempre planejadas para pessoas com deficiência. Resta a eles e a suas famílias a responsabilidade quase que exclusiva de seu acesso a esses serviços, segregando-se mais uma vez seu convívio em sociedade. A questão escolar é um dos problemas mais discutidos. Diante da “Educação Especial”, emerge o debate sobre “Educação Inclusiva”, segundo a qual os alunos com deficiência são incluídos em escolas regulares. Para que isto ocorra com êxito, algumas modificações devem ser feitas. Não sendo necessárias fórmulas mirabolantes, mas, a organização e o funcionamento do sistema escolar devem apenas ser modificados para que estes alunos usufruam dos recursos escolares de que necessitam afim de alcançarem seus objetivos educacionais e profissionais. Segundo Gugel (2003, p. 01), o Programa de Aprendizagem6, uma vez adequado e regularmente implementado contribuirá, não só para 6 A Lei 10.097, de 19/12/00, modificou a Consolidação das Leis do Trabalho, enfocando a aprendizagem, por meio do trabalho, como motriz para o futuro de jovens adolescentes. Se adequadamente implementada, dando ao adolescente formação técnico-profissional, será um passo adiante para a inclusão no trabalho.(GUGEL, 2003) 99 a almejada escolarização, como também para a qualificação profissional do portador de deficiência para o trabalho. CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA QUE TRABALHAM: OS RESULTADOS OBTIDOS Foram identificados 04 (quatro) adolescentes com deficiência trabalhando, dos quais segue abaixo uma caracterização através de indicadores eleitos de acordo com os objetivos do estudo: • Sexo: Um do sexo feminino e três do sexo masculino. • Deficiência: 1 com deficiência física e 3 com deficiência sensorial (mudos). Todos têm a deficiência de origem pré-natal. No caso desses últimos, o questionário foi aplicado junto aos pais ou responsáveis. • Idade: Dois dos entrevistados não se encontram mais na faixa etária que compreende a infância e adolescência, tendo eles 19 e 21 anos, porém um deles trabalha desde a infância (7 anos) e o outro desde a adolescência (17 anos), fato este que nos levou a não excluí-los desta investigação. Os outros dois têm 14 e 17 anos. • Composição familiar: Dentre os entrevistados, obtivemos uma média de 8,5 pessoas morando numa casa. Sendo que a mais numerosa é composta de 11 pessoas. • Atividade de trabalho: Uma é vendedora ambulante de adesivos, os demais são olheiros7 de carro. • Local de trabalho: Um deles foi encontrado trabalhando no Parque Solon de Lucena e os outros três na feira do Rangel. • Descrição das atividades e jornada de trabalho: A vendedora ambulante compra as cartelas de adesivo numa loja do Centro, vai para o parque Sólon de Lucena, onde realiza suas vendas. Chega às 9 horas e vai embora às 17 horas (trabalha cerca de 8 horas diárias) ou quando tiver vendido todas as cartelas, o que totaliza, em média, um total de 16 cartelas por dia, sendo R$ 0,50 cada uma delas. Quanto aos olheiros, um deles tem uma jornada de 8 horas, de 04 da manhã até às 12 horas da tarde, podendo se estender no período da tarde, sendo de quinta a domingo. Os 7 Aquele que vigia, olha carros. (Alberto, 2003). 100 outros trabalham aos sábados e domingos de 6:30 às 12 horas. Como não falam, gesticulam para os clientes na indicação de oferecer seus serviços, indicando um local para estacionar. Além de vigiar os carros, eles também ajudam os seus clientes a levar suas mercadorias até seus respectivos veículos. • Riscos8: os tipos de risco aos quais estão expostos os entrevistados são: Físicos: exposição ao sol e chuva, ruídos; Químicos: exposição à poeira e a fuligem dos carros; Psicológicos: longa jornada, competição, assiduidade, responsabilidade, repetição das tarefas, pouca possibilidade de criatividade, iniciativa ou autonomia, estado de alerta e defesa para agressões, e, no caso da vendedora ambulante, assédio, uso do corpo como propaganda; Ergonômicos: excessivo esforço físico ou muscular, risco de postura: prolongados períodos em pé, longas caminhadas; Sociais: dificuldade de inserção escolar, de lazer, de acesso à saúde, e ainda, especificamente com a vendedora ambulante, identificou-se alimentação inadequada, pois, nos dias em que não consegue arrecadar dinheiro suficiente para almoçar, pede em um bar. Entre os olheiros, riscos de segurança como o perigo de atropelamento, do roubo dos carros, agressões verbais. • Rendimento: Os olheiros recebem em média R$ 10 por dia. Estes recebem ainda o Benefício de Prestação Continuada9. Dentre estes, duas famílias têm uma outra renda totalizando um rendimento familiar mensal em torno de dois salários mínimos (R$ 480), mais a complementação oriunda do trabalho precoce. A vendedora de adesivos tem rendimento diário de cerca de R$ 8 o que totaliza R$ 32 por semana, não sabendo esta informar o salário de seu pai, que é o provedor da família. • Escolaridade: Dois dos entrevistados não estudam. Com relação aos demais: um está cursando a 7ª série do ensino fundamental e outro está na aceleração, pois apresenta deficiência mental. Ambos em escolas especiais. 8 Descrições dos tipos de riscos conforme Sivieri (1996). O Benefício de Prestação Continuada (BPC) configura-se como um dos maiores programas de renda mínima da América Latina, garantindo um salário mínimo mensal a idosos a partir de 67 anos de idade e a pessoa portadora de deficiência incapacitada para o trabalho e para a vida independente, desde que comprove a renda familiar per capita inferior a ¼ de salário mínimo. (ALMEIDA, 2003, p. 126). 9 101 Com relação à opinião dos entrevistados sobre Trabalho Precoce e suas Perspectivas de Vida, seguem-se os seguintes resultados: • A vendedora de adesivos afirma com relação ao trabalho precoce: “Tem que começar a trabalhar de cedo pra não virar vagabundo!”. Percebe-se na nossa sociedade uma mentalidade preconceituosa que atribui ao trabalho precoce um valor de formação e de prevenção da marginalidade, justificando que, ao se ocupar desde cedo, a criança ou adolescente serão impedidos de se envolverem com infrações. Seu maior sonho é “estudar e ser professora”. Apesar de nunca ter freqüentado a escola, aprendeu a ler com ajuda de uma prima. Justifica-se que, devido ao problema de fala dos demais entrevistados, não foi possível analisar os dados referentes às perspectivas e opiniões sobre o trabalho precoce, uma vez que os responsáveis deixaram perceptíveis seus desejos pessoais, como, por exemplo, em um dos casos, a mãe falou que “era desejo de seu menino comprar uma casa para a família”. • Entre os depoimentos não se constatou nenhum fator que levasse a se crer na existência da exploração da imagem (da criança deficiente) para se conseguir desenvolver sua atividade e ser gratificado diante da ‘compaixão’ das pessoas. CONSIDERAÇÕES FINAIS As condições de vida a que os meninos e meninas trabalhadores precoces estão submetidos impossibilitam seus projetos para o futuro, configurando-se como empecilho para a realização dos seus sonhos. É inegável a carga de conseqüências biopsicossociais que a condição de desenvolver atividades de trabalho precocemente, adicionadas às questões referentes à deficiência, vai determinar no nível de qualidade de vida dos sujeitos que vivenciam esta problemática. Sem dúvida, a temática aqui abordada perpassa o contexto dos Direitos Humanos em geral, além dos direitos relativos a um determinado grupo social, direcionando discussões para a necessidade de luta permanente contra os pensamentos e as práticas sociais que bloqueiam a concretização de uma cidadania. 102 Isto significa que se deve ir além da criação de meros projetos sociais através do compromisso político-ideológico e técnico-administrativo dos que estão por trás da execução de políticas de combate à questão social da criança e do adolescente e das pessoas com deficiência. No caso dos sujeitos aqui investigados, constatou-se que estes se encontram inseridos num contexto pleno de não efetivação de seus direitos: enquanto crianças e adolescentes, enquanto pessoas com deficiência, enquanto cidadãos, que, bem como tantos outros brasileiros, encontram-se excluídos de condições mínimas de sobrevida a partir do acesso a bens e serviços produzidos socialmente (educação, saúde, assistência social, cultura, lazer, entre outros) que venham a garantir-lhes uma vida digna. As dificuldades encontradas durante o percurso investigativo, o tempo destinado à execução da pesquisa, tendo em vista os objetivos propostos pelo curso, a burocratização existente nas instituições, dentre outras, apenas contribuíram para que a certeza de que este estudo não deve esgotar-se aqui. Ressalta-se a necessidade de se desvendar alternativas de reflexões que venham contribuir com outros estudos que conduzam a práticas sociais mais efetivas de que resultem melhores condições de desenvolvimento humano destes segmentos rumo à inclusão social. REFERÊNCIAS AGÊNCIA DE INFORMAÇÃO FREI TITO PARA AMÉRICA LATINA (ADITAL). Estudo da OIT diz que 246 milhões de crianças trabalham no mundo. Notícias – 19/02/2004. Disponível em: http://www.adital.org.br. Acesso: março, 2004. ALBERTO, M. de F. P. A situação da criança trabalhadora no mercado informal em João Pessoa. In: Política & Trabalho, Revista de Ciências Sociais, João Pessoa, 2003. ALBERTO, M. de F. P.; ARAÚJO, A. J. da S. O significado do trabalho precoce urbano. In: ALBERTO, M. de F. P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2003. ALMEIDA, S. M. A. de. Avaliação do PLANFOR na visão dos usuários portadores de deficiência: entre a inserção no mercado de trabalho e a inclusão social. 2003. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2003. 103 ARANHA, M. S. F. Paradigma da relação da sociedade com as pessoas com deficiências. In: Revista do Ministério Público do Trabalho, Ano XI, n. 21, março, 2001, p. 160-173. Disponível em: http://www.entreamigos.com.br. Acesso: setembro, 2001. BRASIL. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Política Nacional de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Lei nº 7.853/89 e o Decreto nº 3.298/99. Brasília: CORDE. Disponível em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/ corde/dpdh/corde/principal.asp. Acesso: fevereiro, 2004. FARIAS, M. L. M. Aspectos jurídicos e sociais do trabalho infantil. In: ALBERTO, M. de F. P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. 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Projeto “Catavento” será realizado na PB: Estado tem 165 mil menores trabalhando, segundo IBGE. Cidades, p. B.2, 15/ago/2004. NERI, M. (Coord.) Retratos da deficiência no Brasil. Rio de Janeiro: FGV/IBRE, CPS. Disponível em: http://www.fgv.br/cps/deficiencia_br?index2.htm. Acesso: outubro, 2003. NOVAES, J. R. Trabalho infantil: exclusão social. In: BURITY, J. Polifonia da miséria: uma construção de novos olhares. Recife: Massananga, 2002. SASSAKI, R. K. Como chamar os que têm deficiência? In: Rede Saci. Disponível em: http://www.saci.org.br. Acesso: maio, 2003. SIVIERI, L. H. Saúde no trabalho e mapa de risco. In: TODESCHINI, R. (Org.). Saúde, meio ambiente e condições de trabalho: conteúdos básicos para uma ação sindical. São Paulo: CUT/Fundacentro, 1996. 104 TRABALHO Infantil: lugar de criança é na escola. Revista Educarede. Disponível em: http://www.educarede.org.br. Acesso: agosto, 2004. CAPÍTULO 09 A VIOLÊNCIA DO TRABALHO INFANTO-JUVENIL DOMÉSTICO Valdelice Oliveira de Souza1 Anísio José da Silva Araújo2 Marlene de Melo B. Araújo3 INTRODUÇÃO Nesse artigo, apresentamos os resultados de uma investigação realizada no quadro do Curso de Formação para Agentes de Direitos Humanos na UFPB, atendendo a uma das exigências do seu processo de avaliação. Procuramos focalizar o trabalho doméstico realizado por crianças e adolescentes, uma grave questão social que vem ganhando visibilidade na esteira do movimento de erradicação do trabalho infantil. As dificuldades que cercam a abordagem dessa temática são sobejamente apontadas na literatura. A principal delas decorre do fato de este trabalho realizar-se no espaço privado, portanto protegido pelas redes familiares dos olhares e do julgamento exterior. Tal “muro de proteção” familiar coloca dificuldades à abordagem do trabalho infanto-juvenil doméstico enquanto objeto de pesquisa e, sobretudo, faz com que esse tipo de exploração permaneça invisibilizado. Não obstante, e por diferentes caminhos, não sem dificuldades, a realidade dessas crianças e adolescentes vai sendo desvelada, crescendo a consciência social e gerando iniciativas múltiplas no sentido de sua erradicação. A investigação que originou este artigo se coloca nessa perspectiva. Ela foi conduzida pela autora principal, aluna do curso, porém teve a colaboração dos co-autores no seu planejamento, análise e na elaboração do presente artigo. Ela se origina a partir da constatação, pela autora principal, de uma significativa presença de crianças e adolescentes, na área onde reside, que têm o trabalho doméstico 1 Aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante do Centro Boa Esperança (Pastoral do Menor/Núcleo Mangabeira). 2 2 Doutor em Ciências/ENSP/FIOCRUZ; Professor Adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFPB, Coordenador do Grupo de Pesquisas Subjetividade e Trabalho-GPST/UFPB. 3 Mestre em Serviço Social, Doutoranda da Escola de Serviço Social/UFRJ. 106 como atividade remunerada. Por outro lado, vem desenvolvendo, junto a Pastoral do Menor, um trabalho dirigido a essas populações de trabalhadores precoces. Por último, o envolvimento pessoal (desde os 13 anos) e de familiares com o trabalho doméstico foi, sem dúvida, um forte mobilizador para escolha dessa temática. A questão que norteou o processo de investigação foi a seguinte: qual o conteúdo do trabalho doméstico de crianças e adolescentes, em que condições é realizado e como interfere na saúde, na vida escolar e no projeto de vida de cada uma das trabalhadoras. Na base do presente trabalho, está a hipótese de que a grande freqüência de crianças e adolescentes do sexo feminino ao trabalho doméstico se deve, entre outras coisas, ao fato de as próprias mães, pressionadas por sua condição social empobrecida, encaminharem suas filhas para esse tipo de trabalho, cujo processo de “formação” tem início muito cedo no interior mesmo da família. Desde pequenas, portanto, essas crianças e adolescentes são “educadas” para esse tipo de trabalho, o que faz com que este seja caracterizado como um trabalho feminino. Na verdade, encontramos aí uma construção social, algo que foi forjado na história da discriminação e da violência em relação às mulheres e que é naturalizado socialmente. Essa é a razão pela qual não há como abordar o trabalho doméstico de crianças e adolescentes sem se mergulhar no acúmulo existente em torno das questões de gênero e da divisão sexual do trabalho. Como objetivo geral, estabelecemos o seguinte: analisar o conteúdo do trabalho doméstico de crianças e adolescentes, as condições em que se desenvolve e as implicações na saúde, na vida escolar e na construção do projeto de vida. Como objetivos específicos, definimos os seguintes: analisar o histórico profissional dos entrevistados; conhecer as motivações para o trabalho doméstico; identificar as atividades desenvolvidas pelas entrevistadas e se há diferenças em relação ao trabalho doméstico adulto; analisar as condições do trabalho doméstico em torno de itens como turnos, jornada, regime de trabalho, renda, folgas, entre outras; verificar o cumprimento de obrigações trabalhistas; investigar a relação com a patroa e outros membros da família; analisar as conseqüências do trabalho doméstico na saúde, na vida escolar e no projeto de vida e, por fim, verificar como são usufruídos os momentos de folga e de relaxamento. 107 A PERSPECTIVA TEÓRICA Uma perspectiva teórica que se revela fecunda para se compreender a realidade aqui analisada tem sua origem no grupo de pesquisadoras do GEDISST - Grupo de Estudos sobre a Divisão Social e Sexual do Trabalho do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França - entre as quais destacam-se Danièle Kergoat, Helena Hirata. Segundo Oliveira (1997), essa perspectiva enfatiza a divisão social do trabalho como aspecto central da desigualdade entre os sexos. Segundo Kergoat (1996, p. 19): (...) relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho são duas proposições indissociáveis que formam um sistema. A reflexão em termos de relações sociais de sexo é, ao mesmo tempo, anterior e posterior à reflexão em termos de divisão sexual do trabalho. Ela é preexistente como noção, mas posterior como problemática. É preexistente, pois foi uma aquisição do feminismo, por meio da emergência de categorias de sexo como categorias sociais, de mostrar que os papéis sociais de homens e mulheres não são produto de um destino biológico, mas que eles são, antes de tudo, construções sociais que têm uma base material. Kergoat (1996, p. 20) postula que falar em divisão sexual do trabalho é mais que constatar a diferenciação entre os sexos na sociedade, (...) é articular essa descrição do real com uma reflexão sobre os processos pelos quais a sociedade utiliza essa diferenciação para hierarquizar as atividades. A divisão sexual do trabalho está no centro (no coração) do poder que os homens exercem sobre as mulheres (p. 20). A concepção de relações sociais de sexo caracteriza-se segundo Kergoat (1996, p. 21), 1. por uma ruptura radical com as explicações biologizantes das diferenças entre as práticas sociais masculinas e femininas; 2. por uma ruptura radical com os modelos supostos universais; 3. por afirmações de que tais diferenças são construídas socialmente e que esta construção social tem uma base material (e não apenas ideológica); 4. que elas são, portanto, passíveis de ser apreendidas historicamente; 5. na afirmação de que estas relações sociais repousam em princípio e antes de tudo em uma relação hierárquica entre os sexos; 6.de que se trata, evidentemente, de uma relação de poder. 108 O conceito de relações sociais de sexo está conectado ao de práticas sociais, cuja utilidade é permitir transformar o que é abstrato em concreto, definindo os atores de outra forma do que como mero resultado das relações sociais. Além disso, permite poder pensar simultaneamente o material e o simbólico e restituir aos atores sociais o sentido de suas práticas. Ao mesmo tempo, falar em “relação social” significa falar em relação de poder. Segundo Kergoat (1996), as relações sociais de sexo permeiam todos os campos do social, do que se conclui que toda relação social é sexuada. Sendo assim, as relações de classe fornecem conteúdo e direção às relações sociais de sexo. A relação entre os sexos não está confinada na relação conjugal, mas permeia, por exemplo, o local de trabalho da mesma forma que a relação de classes escapa ao local de trabalho, e se manifesta na relação com o corpo, com as crianças, etc. Apesar disso, constata Kergoat, as relações sociais de sexo não se expressam homogeneamente em todos os setores e níveis sociais. Feita essa breve apresentação da perspectiva teórica que nos serviu de base, passemos agora a examinar o caminho e, em seguida, os resultados que encontramos nessa investigação. O MÉTODO A abordagem que privilegiamos no presente estudo é a qualitativa, porque nos interessava conhecer o fenômeno do trabalho doméstico pelo olhar das suas protagonistas: quatro trabalhadoras domésticas precoces. Fizemos uso de entrevista semi-estruturada, com questões abertas e fechadas, construída a partir da revisão da literatura. Recorremos, à gravação das entrevistas quando autorizadas pelas entrevistadas. Por último, as entrevistas foram transcritas subsidiando a elaboração do presente artigo. OS RESULTADOS a) Perfil Em relação ao perfil das entrevistadas, as quatro situam-se na faixa etária dos 14 aos aos 17 anos e trabalham, três delas pelo menos, há dois anos como domésticas 109 remuneradas. Para todas elas, essa foi a única atividade remunerada em que até então estiveram envolvidas. Uma delas trabalha manhã e tarde; outra, só a tarde; outra, a noite e madrugada e uma outra, na parte da manhã. Apenas uma dentre as quatro entrevistadas dorme na residência em que trabalha e, neste caso, em quarto reservado à doméstica. b) Jornada A jornada de trabalho é bastante discrepante entre as entrevistadas: duas delas trabalham 12 horas (uma das quais, no período noturno) e duas, 5 horas. Aspectos comuns que podemos destacar nessas situações: o trabalho doméstico é a única atividade remunerada que conheceram. Todas recebem por mês trabalhado, nenhuma possui carteira de trabalho assinada, dormem em geral nas suas casas. Por outro lado, no que tange à jornada e horários de trabalho, encontramos uma diversidade de situações. Esse perfil coaduna-se com a natureza do trabalho infanto-juvenil doméstico, cujo formato está em estreita ligação com as necessidades e o ritmo da família. Por outro lado, o fato de o trabalho doméstico ser considerado um atributo da “natureza feminina”, tem como efeito a sua desvalorização social e o não reconhecimento das competências que veicula. Por conta disso, as famílias que se utilizam do trabalho infanto-juvenil doméstico não o enxergam como trabalho, mas como um exercício de “responsabilidade social”, através do qual “ajudam” crianças e adolescentes a terem alguma renda e, portanto, a reforçarem o orçamento doméstico, ao mesmo tempo em que as vacinam, pelo trabalho, contra os perigos da ociosidade. Isso certamente explica a variedade dos “salários” pagos. Vejamos o que diz a respeito Dejours (1999, p.129). É natural atribuir às mulheres a competência para administrar os cuidados com a casa, com as crianças, com os adultos deficientes, com os idosos, com os doentes e impotentes. Além disso, elas devem saber costurar, cozinhar, etc. Essas não são consideradas qualificações, já que pertencem ao instinto maternal, é uma qualidade de base, como ser dona-de-casa. Todos esses estereótipos são muito conhecidos. Porém, essas competências são necessárias ao trabalho, embora sejam nele utilizadas sem que reconheça tratar-se de competências. Elas fazem parte da natureza feminina e, portanto, o fato de as mulheres utilizarem-na é totalmente normal. 110 A questão sobre como é um dia de trabalho normal e um dia intenso, houve unanimidade em apontar o sábado como um dia intenso de trabalho, pois é dia de faxina e dia em que os patrões fazem a feira, o que implica um importante desgaste físico tanto na limpeza da casa como na arrumação da feira. Os dias normais são aqueles imediatamente posteriores ao sábado, em que o “grosso” da limpeza e da arrumação já foi realizado. Em relação às atividades realizadas, foram mencionadas as seguintes: varrer a casa (interna e externamente), passar pano na casa, arrumar a casa, limpar banheiros, lavar e passar roupa, preparar almoço, lavar louça, dar banho nas crianças, levar e pegar as crianças na escola, trocar fraldas, administrar medicamentos. Como vemos, não há diferenças em relação ao que é prescrito para o trabalho doméstico adulto. Se considerarmos as condições físicas e psicológicas dessas trabalhadoras, ainda em processo de maturação, e os requerimentos do trabalho doméstico, teremos aí importantes conseqüências no plano da saúde. c) Remuneração Todas recebem por mês de trabalho (mensalistas) e nenhuma possui carteira de trabalho assinada. A renda obtida com o trabalho é bastante diferenciada: num caso, não foi declarada; em outro, foi de R$ 200,00; em outro foi de R$ 50,00 e, numa última, de R$ 85,00. Quanto à renda familiar, foram informadas as seguintes: R$ 250,00, R$ 200,00, R$ 300,00 e R$ 570,00. Reforçando o que foi apontado acima, os diferentes “pagamentos” pelo trabalho têm subjacente a idéia de que é um trabalho natural nas mulheres, como se fosse da ordem do instinto (assim como nos animais), e, portanto, não pode ser avaliado no mesmo plano que outras atividades. Em segundo lugar, empregar essas meninas é um exercício de filantropia e de higiene social, na medida em que elas ajudam suas famílias e são, ao mesmo tempo, poupadas de situações de risco (drogas, prostituição). d) Condições e organização do trabalho Quanto a folga, duas entrevistadas informaram que não têm folga. Uma outra tem folga semanal e outra, mensal. O trabalho infanto-juvenil doméstico tem algumas similaridades com o trabalho escravo. Pelas razões apontadas acima, as famílias que utilizam esse tipo de trabalho, consciente ou inconscientemente, se sentem proprietárias da vida das trabalhadoras, dispondo do seu tempo da maneira que lhes aprouver. Desse modo, 111 as folgas ocorrem em função da dinâmica da família, e não em função das necessidades das trabalhadoras. Essa impossibilidade de respeitar as necessidades do corpo (de descansar quando se sente cansado) tem um custo importante do ponto de vista da saúde, agravado pelas condições físicas e psicológicas em processo de maturação, como é o dessas trabalhadoras. As fontes de sofrimento no trabalho doméstico apontadas foram: não dispor de tempo para estudar, visitar uma amiga, ir ao médico. Estar aprisionado ao espaço doméstico de trabalho é, portanto, a fonte principal de sofrimento revelada pelas entrevistadas. Quanto aos direitos trabalhistas assegurados em lei (férias, 13º salário, valetransporte), apenas o direito a férias foi citado em três casos. Num deles, nenhum direito foi mencionado. Tal situação corrobora o que já afirmamos: o trabalho doméstico está no gene das mulheres, elas apenas seguem seus comandos, como um robô, não implicando aquisição de competências. Nesse sentido, ele deve ser avaliado sob parâmetros diversos daqueles de que usualmente o mercado de trabalho se utiliza. Por conta disso, tais abusos são perfeitamente justificáveis. Diante disso, o desrespeito à legislação trabalhista é apenas uma conseqüência. . As quatro entrevistadas informaram que fazem as refeições nos domicílios onde trabalham. Esse é mais um aspecto compartilhado com o trabalho escravo. Dispor do tempo e da vida das trabalhadoras implica, também, assegurar minimamente a sua reprodução, ainda que em espaços isolados, ainda que consumindo os restos, nunca, portanto, uma reprodução satisfatória face ao desgaste que o trabalho doméstico implica. e) Causas da inserção precoce Em relação à questão sobre o que as levou para o trabalho doméstico, as razões elencadas foram as seguintes: “porque não concluiu os estudos”, “porque a mãe não tem condições de atender as necessidades pessoais”, “única forma encontrada de ajudar a mãe”, “necessidade de ajudar a mãe que precisava de dinheiro”. Enfim, a necessidade de complementar a renda familiar se impõe com evidência na “opção” em trabalhar. O trabalho doméstico é a alternativa que se coloca porque é a única “qualificação” a que tiveram acesso como mulheres. As patroas, por sua vez, beneficiam-se dessas trabalhadoras “treinadas”, tendo apenas que promover algumas adaptações. 112 f) Relações de trabalho Quanto à relação com a patroa, as respostas foram: para um dos casos, ótima, pois é tratada como se fosse da família; para outras duas, a relação é boa e para uma outra foi considerada normal. Quanto à relação com os outros membros da família (especialmente homens), as respostas foram: boa, normal (em dois casos) e não muito boa, “pois às vezes olham de um jeito estranho”. Nesses casos, a relação com a patroa não figurou como elemento de sofrimento, embora saibamos que essa não constitui a regra geral. Chama atenção o “olhar de jeito estranho” dos membros da família de uma das entrevistadas. Subjacente a esse olhar, figura um largo espectro de atitudes: o da empregada doméstica como objeto de satisfação sexual, de “treinamento” para a vida sexual dos homens, como um ser inferior diante do qual excessos podem ser cometidos, entre outras. g) Escolaridade Quanto à questão se estão estudando atualmente, todas responderam afirmativamente: duas fazem 8ª série (uma no turno da noite e outra à tarde), uma faz 7ª série à noite e outra faz 6ª série também à noite. Como vemos, o trabalho doméstico só permite, como regra geral, o estudo à noite. Podemos, diante disso, antecipar as dificuldades de aprendizagem, sobretudo quando o dia impõe um trabalho desgastante e desinteressante. O que foi dito pode ser constatado nas respostas sobre as conseqüências do trabalho doméstico na vida escolar, ou seja: o trabalho doméstico é cansativo, não deixa tempo para estudar, nem para se preparar para as provas, muito menos para cuidar da saúde. As visões em relação à escola foram, em geral, positivas, especialmente pela possibilidade de adquirir conhecimentos, de aprender, de fazer amizades. A escola é portadora de vários significados: como quebra de uma rotina desgastante (um relaxamento), como meio de atender necessidades sociais (recuperando parte da humanidade perdida no trabalho), como promessa de um futuro melhor, ou seja, de um outro trabalho, remunerado conforme a lei, registrado. Os aspectos negativos levantados foram mais no tocante ao fato de ser noturno. Não obstante os limites que o ensino público impõe, com suas condições precárias, ainda assim ele goza de uma avaliação positiva entre as entrevistadas. 113 h) Aspectos positivos e negativos Em relação aos aspectos positivos e negativos no trabalho doméstico, foram levantados, no primeiro caso, a boa relação com as patroas e, no segundo caso, o fato de ser cansativo e ter que dormir na residência. Chamaria atenção para esse último aspecto: dormir na residência implica, certamente, “dormir no trabalho”, ou seja, não se estabelece, nesse caso, como em outros trabalhos, um corte entre vida no trabalho e via extra-trabalho. Tal distinção permitiria, no caso do trabalho doméstico, uma mudança de patamar e um alívio das pressões vivenciadas no cotidiano. Além do mais, dormir em casa é estar em prontidão para qualquer excepcionalidade: uma criança que não dorme, alguém doente precisando de cuidados. Portanto, o sono não é o mesmo no local de trabalho e em casa. i) Expectativas de futuro Em relação à questão se gostaria de trabalhar em outra atividade, em geral as respostas foram positivas, há uma esperança comum de melhorar de “emprego”. O estudo figura como um passaporte para essa realização. A exploração no trabalho doméstico é um elemento que aparece como combustível desse “sonho”. Quanto às expectativas em relação ao futuro, elas vão sempre na direção da conquista da “liberdade” do trabalho doméstico e de um trabalho melhor, mais valorizado e que ofereça um rendimento que permita ter as coisas de que se gosta. j) O lazer A questão sobre como fazem uso dos momentos de folga, obtivemos as seguintes respostas: assistir TV, dormir, passear com os amigos, escutar música, ler algum livro, escrever, fazer academia. As possibilidades de lazer são bastante restritas, em parte pela condição financeira, em parte pelos limites que o trabalho doméstico impõe. O lazer joga, certamente, um papel importante na saúde mental dos trabalhadores e trabalhadoras. Embora não possamos extrair conclusões em torno das respostas obtidas, as alternativas de que as trabalhadoras domésticas lançam mão para contrabalançar os efeitos negativos do trabalho, constituem um campo de pesquisa da maior importância. 114 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS Não obstante os modestos objetivos que tivemos ao realizar a presente investigação, ela nos revelou elementos importantes já apontados em várias pesquisas realizadas sobre a temática. O principal a destacar diz respeito ao fato de o trabalho doméstico ser considerado inerente à natureza feminina, como se fosse algo inscrito no seu código genético, cabendo à família apenas o papel de desenvolver o que já existe em potencial. Essa construção social tem sérias implicações na vida das trabalhadoras domésticas: o não reconhecimento das competências que mobilizam, a desvalorização social, rendimentos irrisórios, desrespeito à legislação trabalhista, entre outras. Se adicionarmos o fato de que esse trabalho, repetitivo, monótono, é realizado sem grandes diferenças por trabalhadoras precoces e adultas, estamos diante de uma violência sem precedentes. Ainda bem que é chegada a hora em que os muros do mundo privado estão sendo rompidos, não sem dificuldades, é claro, revelando a todos que essa realidade precisa mudar. REFERÊNCIAS DEJOURS, C. Homens, mulheres e suas relações de trabalho. In: Conferências Brasileiras: identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. São Paulo: Fundap: EAESP/FGV, 1999. KERGOAT, D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES, M. J. M.; MEYER, D. E.; WALDOW, V. R. (Orgs.). Gênero & Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. OLIVEIRA, E. M. Gênero, Saúde e Trabalho: um olhar transversal. In: OLIVEIRA, E. M.; SCAVONE, L. (Orgs.). Trabalho, saúde e gênero na era da globalização. Goiânia: AB, 1997. 115 CAPÍTULO 10 TRABALHO INFANTO-JUVENIL DOMÉSTICO: UMA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS Luzinete Victor de Barros1 Maria Lígia Malta de Farias2 Este trabalho tem por objeto o estudo da violência contra crianças e adolescentes, cometidas no âmbito doméstico. Produzida no seio familiar, adquire especial relevo tanto para a sociedade, como para o Estado, principalmente devido à crueldade. Um tipo de violência que acompanha o desenvolvimento humano é o trabalho infanto-juvenil, fato encontrado tanto em países desenvolvidos como em países em desenvolvimento. Não é uma tarefa simples conceituar esse tipo de trabalho, pois é distinto de uma sociedade para outra, levando-se em consideração a idade cronológica, os aspectos sociais e culturais, como também as legislações. De acordo com a legislação brasileira, trabalho infanto-juvenil é aquele em que crianças e adolescentes estão inseridas fora da idade mínima para trabalhar, que é a idade de 16 anos, salvo em condição de aprendiz com a idade de 14 anos. Porém, com referência as Piores Formas de Trabalho Infantil, a proibição se estende até os 18 anos incompletos. Verifica-se no Brasil que a utilização da mão-de-obra infanto-juvenil é necessária para o empregador por ser de baixo custo, além de utilizar a docilidade, agilidade e destreza desses pequenos trabalhadores, tornando-se responsável pela condução de crianças e adolescentes ao trabalho escravo, à prostituição e à criminalidade. 1 Advogada, Licenciada em Filosofia/UFPB, Maestría en Derechos Humanos pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha. Conselheira do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão – CEDDHC – da Paraiba. 2 Mestra em Ciências Jurídicas/UFPB, Professora do Departamento de Direito Privado da UFPB e Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba. 116 (...) o Brasil também é campeão num problema que, segundo diversos estudos, pode empurrar desempregados para o crime. O grande combustível da criminalidade é a desigualdade social”, afirma Daniel Cerqueira, da diretoria de estudos sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). A frustração de viver em privação enquanto vê pujança ao redor alimenta um ressentimento que pode se tornar a semente do crime (Cotes & França, 2004, p.78). Em relação ao fato de pessoas não encontrarem lugar no mundo para desenvolver suas habilidades, Hannah Arendt (1990, p. 488) discorre sobre as massas desarraigadas sob a ótica da experiência totalitária no cenário do mundo moderno, dizendo o seguinte: É quase impossível saber qual o número daqueles que, se continuarem expostos por mais tempo a uma constante ameaça de desemprego, aceitarão de bom grado uma ‘política populacional’ de eliminação regular do excesso de pessoas. No meio do universo dos excluídos, dados do Censo do IBGE – 2000 destacam o trabalho infantil doméstico, que abriga 1,2 milhão de crianças e adolescentes, sendo que mais da metade não possui vínculo empregatício. Este tipo de trabalho é considerado oculto, protegido pela inviolabilidade constitucional do lar. Mesmo assim, existe uma população expressiva de jovens trabalhadoras com atividades em residências alheias, exercendo um labor doméstico. De acordo com dados da OIT (2003), há mais de três milhões de crianças, entre 5 e 15 anos, trabalhando, em um total de 36 milhões no Brasil, o que representa 8,5%. Entretanto, somente 35,5% das crianças que trabalham recebem pagamentos por suas atividades. Os problemas pertinentes às desigualdades existentes no Brasil caracterizam, de maneira acentuada, a região Nordeste, marcada pela exploração e escravidão presentes nesse imenso continente. Isto é de tal monta que há grande porcentagem de crianças que não são pagas trabalhando para outros membros da família ou produzindo para próprio consumo ou na construção para próprio uso, principalmente no meio rural. Enquanto a maioria dos meninos é empregada na área urbana, a maioria das meninas é trabalhadora doméstica. 117 A escravidão e o trabalho infantil Com a deportação de negros da África para o Novo Mundo (OIT, 2003) e, conseqüentemente, para o Brasil, a escravidão fez a vida humana refém do comércio, levando ao extermínio milhares de vidas e de sua cultura. Os que conseguiram sobreviver foram transformados em res3 pelo ordenamento jurídico vigente na época, gerando preconceito e discriminação à pessoa humana. Sobre esse acontecimento histórico Wolkmer (1998, p. 200) mostra que (...) segundo alguns dados históricos, somente o Brasil foi responsável por 40% do total de nove milhões e quinhentos mil negros que foram trazidos para o Novo Mundo. Esse percentual equivale a quase nove vezes a quantidade de negros “importados” para os Estados Unidos (6%), é mais que o dobro de toda chamada América Hispânica (18%), do Caribe inglês (17%) ou ainda do Caribe francês (17%). A cultura brasileira se estrutura nessa forma de escravidão, concedendo aos poucos privilégios perante a Lei, patrocinando o aumento do abismo das desigualdades sociais. Na realidade, para se dar um sentido jurídico a essa violência necessitava-se de respaldo jurídico, um tratamento desigual aos desiguais. Posteriormente, o adágio “para os amigos os favores da lei, para os inimigos a lei”, estrutura essas diferenças, fazendo com que as legislações se multiplicassem e com elas a injustiça social e a impunidade. Assim, os preconceitos e as discriminações recebem muitas roupagens, como, por exemplo, quanto à cor, ao sexo, à educação e à idade, entre tantas, aumentando consideravelmente, levando famílias inteiras à miséria e as crianças condenadas ao trabalho infanto-juvenil. A Região Nordeste é onde se registram as maiores desigualdades, sendo que a Paraíba é o ente federativo detentor de alto índice de desigualdade social em relação à distribuição de renda mensal (Barros, 2003). Essa distribuição de renda é uma das causas do trabalho infantil doméstico. Os dados mencionados são preocupantes, primeiro por ser uma atividade que se encontra fora do sistema econômico e causa impacto sobre a socialização do trabalho em 3 Distinto do direito europeu, a liberdade individual e a vontade jurídica válida, no Direito Brasileiro o escravo era considerado apenas uma coisa, alienado da então visão antropocentrista de Direito, Wolkmer, 1998, p. 204-205. Em latim, “res” significa “coisa”. 118 relação ao exercido nas empresas, contribuindo menos para a sua inserção no mercado de trabalho. Em segundo lugar, por se tratar de um labor realizado numa residência, permite que determinados abusos e formas acentuadas de exploração possam acontecer. Conforme o Relatório da OIT (2003), em João Pessoa, todos os casos de trabalho perigoso encontrados referem-se a crianças e adolescentes residentes na área urbana. E as principais ocupações são o emprego doméstico (30%), cozinheiro/garçom (18%), construção civil (13%) e ambulantes (11%). Entre as pessoas de 10 a 13 anos, a proporção de cozinheiros e garçons é de (28%), de ambulantes (22%) é maior que a de empregados domésticos (17%). Considerando-se apenas as pessoas de 14 anos, o comércio ambulante (31%) e o trabalho doméstico (20%) empregam a maior parte dos adolescentes em atividades perigosas. Entre os indivíduos com 16 anos, cerca de 25% são cozinheiros e garçons e aproximadamente 18% são pedreiros. A maior proporção de domésticos ocorre entre as crianças de 15 e 17 anos de idade, 39% e 34% respectivamente. Relatos de experiências por jovens trabalhadoras O trabalho infanto-juvenil doméstico se caracteriza pela exclusão social e o preconceito, constituindo-se numa violação aos direitos humanos. Absorve crianças e adolescentes com idade inferior a 16 anos, situação que contraria a Lei Magna do país. Naturalizado como atividade feminina, o trabalho doméstico reforça a ideologia dos chamados papéis femininos, contribuindo para a escravidão, prática de abuso sexual e formas discriminatórias enfatizadas pelo racismo e pela pobreza. De acordo com os relatos que se seguem, podemos constatar uma tentativa de se incluir o trabalho infanto-juvenil doméstico entre as “Piores Formas”, acobertado pela inviolabilidade do lar, cujo preceito encontra-se no Diploma pátrio vigente4. Existe no Brasil, além da pobreza e da falta de instrução escolar, uma cultura que busca justificar o trabalho infantil como uma atividade necessária à criança e ao adolescente pobre. Mas, ao mesmo tempo, com esta postura, as exclui da responsabilidade da sociedade e do Estado, conforme podemos constatar através dos relatos a seguir, obtidos 4 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no art. 5º, XI, estabelece que: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. 119 a partir das denúncias que chegam até o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão da Paraíba: • Vitória5 é uma garotinha de dois anos e seis meses, vítima de violência perpetrada por sua própria genitora. Sua mãe começou a trabalhar quando criança nas casas alheias, pois sua família não tinha nem mesmo o que comer. Em troca de alimentação e vestimenta, se submeteu às piores humilhações, sendo uma delas a prostituição. Bem mais tarde conheceu o pai de Vitória, um homem dependente de álcool, e “montaram casa”. O relacionamento, com o passar do tempo, foi se tornando insuportável. As várias internações do pai da criança no Hospital para desintoxicação fizeram com que a mãe de Vitória voltasse aos bares, desta vez em companhia da própria filha6. O caso foi denunciado ao Ministério Público que, após fazer inspeções através de visitas in loco e colher provas documentais, juntamente com o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão – CEDDHC, prestaram assistência à criança através de audiências, além do acompanhamento de psicólogas e assistentes sociais. Como houve a omissão da família paterna, Vitória permaneceu com sua genitora. Atualmente, a mãe de Vitória está trabalhando em uma casa de família, sem carteira assinada e sua filha passa o dia em uma creche. À noite, Vitória fica com as pessoas da casa e sua mãe, segundo declaração de uma escola, freqüenta a sala de aula. Enquanto isso, a garotinha permanece sozinha, estando nas mãos de estranhos. Seu destino pode se assemelhar ao de sua progenitora. Na penúltima audiência, Vitória pronunciou a seguinte frase dirigida a sua mãe: Mamãe, minha lágrima está caindo!!! Outro caso aconteceu em uma residência de classe média no Bairro dos Estados: • Maria da Luz é o perfil de muitas garotas advindas de lares pobres e que começaram a trabalhar ainda criança. Com a idade de seis anos, foi levada para a casa de uma “madrinha” que se prontificou a cuidar dela, além de colocá-la na escola. Na 5 Os nomes das pessoas entrevistadas utilizados neste trabalho são fictícios, para a proteção de suas identidades. 6 O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão/CEDDHC investigou o caso durante um mês na comunidade onde Vitória residia, constatando a veracidade da denúncia recebida. As pessoas confirmavam os fatos, porém se negaram a testemunhar porque tinham medo. Mesmo assim, o mencionado Conselho ofereceu denúncia à Curadoria da Criança e Juventude/Ministério Público Estadual. Não podemos olvidar, que, anteriormente, o CEDDHC comunicou o ocorrido ao Conselho Tutelar Sul, mas a ação dos Conselheiros foi ínfima. 120 realidade, Daluizinha, como era chamada, permaneceu com sua “madrinha” durante toda a sua infância. Não recebia dinheiro, porém lhe davam vestimentas e alimentação. Muitas vezes sofreu espancamentos e era submetida aos trabalhos mais árduos para sua idade. Foi lá também que, aos onze anos, foi obrigada a manter relações sexuais com o garoto da casa. Com medo, resolveu silenciar. Da escola, lembra-se muito pouco, pois o desânimo sempre a acompanhou a ponto de fazê-la desistir. Aos onze anos, consegue fugir das pessoas que a escravizaram e atormentaram. Hoje, com 16 anos, Daluizinha encontra-se em situação de exploração sexual7. Há ainda o relato de um caso de uma criança explorada pela família. • Outro caso refere-se a uma garota de 11 anos, que, aos 5 anos, começou a pedir esmola na rua, forçada por sua mãe. Só podia voltar para casa se tivesse dinheiro e, nas muitas vezes que permanecia na rua, tinha que dormir de dia para não ser estuprada à noite por outros garotos. Aos nove anos, foi morar na casa de uma mulher que a submetia aos trabalhos mais penosos, fazendo com que retornasse à rua e ao início das drogas. Há casos de adultos dependentes químicos cuja infância no trabalho doméstico foi uma saída para fugir do abuso e violência da família: • Aos 9 anos, Vera Lúcia teve que fugir de casa, pois, constantemente, era abusada sexualmente por sua mãe e seu amante, sempre movidos pelo álcool. Com dez anos, foi morar com uma mulher que lhe ofereceu trabalho. Inicialmente os trabalhos eram leves, mas, com o tempo, fazia todo trabalho árduo na casa, exceto cozinhar. Quando cometia qualquer erro nas tarefas, era levada a seções intermináveis de palmatória e, não suportando, fugiu. Novamente nas ruas, aos 14 anos, começou a se envolver sexualmente com homens e mulheres, movida por álcool e outras drogas. Por ter começado a trabalhar quando criança e nessa fase da vida ser submetida a constantes torturas, Vera Lúcia sofre de problemas na sua estrutura óssea, incontinência urinária e insônia, além de sofrer de alcoolismo, droga em que foi iniciada por sua própria mãe. De sua infância e adolescência, só lembra de muita 7 O uso do termo “crianças e adolescentes em situação de exploração sexual” é para que seja evitada toda e qualquer forma de discriminação que as considerem eternamente exploradas, como se em sua vida a situação não pudesse ser jamais alterada. 121 dor e humilhação. No entanto, só fala em ajudar outras pessoas, que, como ela, precisam de ajuda. Segundo Vera, sua vida começou ao participar das reuniões do AA: “Moro sozinha e tenho meu trabalho. Estou aprendendo a ler e escrever. Agora sou gente. Sou feliz”. Outra forma de contato e conhecimento da situação da criança trabalhadora doméstica de que tivemos conhecimento como Conselheira foi através de entrevistas, no período de 2001 a 2003, com 15 mulheres que foram presidiárias. Dez trabalharam quando criança, sendo que oito exerceram trabalho doméstico e cinco delas sofreram estupro. A maioria era de cor negra e o crime que cometeram foi furto. Nove dessas mulheres disseram que não praticaram esse crime, mas, por trabalharem em casa de “gente rica” e por serem pobres, não tiveram condições de contratar os serviços de um advogado. Afirmaram, por fim, que seu grande aliado para o silêncio foi o medo. Hoje se encontram em liberdade. Dez delas se prostituíram porque, na condição de ex-presidiárias, ninguém lhes deu trabalho. E precisavam sobreviver8. Os relatos expressos acima tiveram como elemento causador a situação social de que são fruto, como a pobreza e a negligência do Estado. Estes aspectos podem ser compreendidos ao se analisar as publicações sobre as condições de vida e trabalho da população brasileira, em especial da paraibana. Segundo o Mapa de Indicativos do Trabalho da Criança e do Adolescente, em 1999 havia 124.989 crianças e adolescentes na faixa de 5 a 15 anos de idade trabalhando no Estado da Paraíba. Desse total, 36.287 (29,03%) trabalhavam na área urbana e 88.702 (70,97%) na rural. O Mapa aponta que esse grupo ocupava, com maior freqüência, os seguintes setores: Agropecuária (90.717) e Comércio (11.592). Ademais, 76.103 (61,13%) não recebiam remuneração, 12.600 (10,12%) eram empregados, 12.599 (10,12%) trabalhadores domiciliares e 10.583 (8,5%) trabalhavam para autoconsumo (Neto & Affonso, 2003). Conforme dados do IBGE e do Departamento Penitenciário-DEPEN (2000), o Estado da Paraíba possui 12 estabelecimentos penitenciários, num total de 1.908 vagas (1.788 para homens e 120 para mulheres). No entanto, conta com uma população carcerária 8 No início de 2004, tentamos reencontrar essas mulheres. Duas foram localizadas em pontos de prostituição e relataram que cinco delas voltaram a delinqüir. Uma foi assassinada pelo companheiro e duas morreram vitimadas pelo vírus HIV. As demais não foi possível localizar. 122 formada por 3.151 pessoas (3.043 homens e 108 mulheres), ou seja, há um déficit de 1.243 vagas. Assim, circula nos meios de comunicação que a Paraíba possui a segunda maior população carcerária do país (Jornal O Norte, 2003). O IBGE divulgou recente pesquisa em relação a Paraíba (Jornal Correio da Paraíba, 2004), na qual 43,2% da população ocupada ganha um salário mínimo por mês. O rendimento médio mensal no Estado é de R$ 401,10 (quatrocentos e um reais e dez centavos). Outra característica presente é a discriminação. Em 2002, as mulheres ocupadas tinham em média um ano a mais de estudo e recebiam cerca de 90% do rendimento dos homens. Quanto a população economicamente ativa, 7,4% estava desocupada em 2002. Os jovens e as mulheres mais uma vez foram os mais atingidos com a desocupação. A taxa para as mulheres foi de 9,4%, enquanto a relativa aos homens ficou em 6,4%. Os jovens de 18 a 24 anos de idade apresentaram a mais alta taxa de desocupação, correspondente a 16,4%. Por sua vez, os indicadores de trabalho e rendimento para 2002 não sofreram grandes mudanças, principalmente quanto à redução da desigualdade em relação ao ano anterior, constatando-se um ligeiro aumento da taxa de atividade em 57,2% em relação a 2001 para 52,8% em 2002. As mulheres e os jovens têm que conciliar o estudo com o trabalho. Quando não retardam a constituição da família para estudar e se tornarem mais competitivos no mercado de trabalho, tendem a se inserir em atividades informais para a complementação da renda familiar, dentre elas o trabalho doméstico. Relacionando esses dados aos relatos produzidos anteriormente, é necessário que a sociedade faça uma reflexão sobre as formas desumanas de trabalho em que crianças e adolescentes estão inseridas, pois as mulheres aqui mencionadas tiveram seu desenvolvimento psíquico-social construído às expensas de uma infância e juventude perdidas. Elas viveram grande parte de suas vidas oprimidas pelo excesso de deveres e responsabilidades. A obrigação de trabalhar lhes retirou o sentido da vida, sem oportunidades de terem exercido o direito de serem crianças embaladas no sonho de uma adolescência feliz. Então, a lágrima de Vitória, descrita no relato acima, pode ser tomada como uma expressão simbólica que nos faça relembrar os Movimentos pelos Direitos Humanos, de cujas ações resultaram documentos que refutam, condenam a exploração e a negligência em 123 relação às pessoas, principalmente crianças e adolescentes e que, sobretudo, recomendam formas de ações políticas dos Estados signatários. A lágrima de Vitória desce silenciosamente em busca de justiça, como as águas de um rio, que, de uma maneira voraz, arrasta das suas margens aquilo que teimamos não ver, como o sofrimento de milhares de crianças condenadas a terem os seus sonhos e suas vidas ceifadas por uma miséria crescente que a própria sociedade produz. De outras lágrimas como esta, como exemplo das atrocidades cometidas nos dois conflitos mundiais do século passado, surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e, com ela, outras Convenções no âmbito internacional, como a Declaração de Viena sobre Direitos Humanos9, em que se afirma que a dignidade é a base comum de todos os direitos Humanos. Estabelece também, como base para a Convenção sobre os Direitos da Criança, a promoção dos direitos infanto-juvenis, quando alude, no Capítulo I, item 21, (...) que o desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade dos meninos e das meninas exige que eles cresçam em um ambiente familiar que merece, por conseguinte, mais proteção. Esses preceitos são primordiais para o ser humano e, para tanto, a Organização das Nações Unidas elaborou a Convenção sobre os Direitos da Criança10, segundo a qual os signatários estariam obrigados a respeitar e assegurar à criança e ao adolescente, sob sua jurisdição, todos os direitos consubstanciados na mencionada Convenção. No seu preâmbulo, preceitua o seguinte: Convencidos de que a família, unidade fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros e, em particular das crianças, deve receber a proteção e assistências necessárias para que possa assumir plenamente suas responsabilidades na comunidade. Reiterando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica)11, reza que (...) só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas 9 Adotada consensualmente, em plenário, pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 25 de junho de 1993. 10 Adotada pela Resolução n. L. 44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990. 11 Adotada e aberta à assinatura na Conferência especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. 124 condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos. Como a Declaração Universal dos Direitos Humanos deixou em aberto o advento de novos direitos e garantias que foram estabelecidos com o aparecimento dos Pactos, nos deteremos em uma breve análise deles. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos12, além do direito à autodeterminação, preceitua, no artigo 24 – 1., que (...) toda criança terá direito, sem discriminação alguma por motivo de cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, situação econômica ou nascimento, às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte de sua família, da sociedade e do Estado. No âmbito do trabalho, foi criada, em 1919, a Organização Internacional do Trabalho – OIT com o objetivo de se efetivar a idéia de internacionalização da legislação social-trabalhista, para assegurar um mínimo de direitos irrenunciáveis aos trabalhadores e promover a justiça social na busca da paz e harmonia universais. A OIT atingirá seus fins de acordo com os meios dos quais dispõe, isto é, através de convenções e recomendações. As Convenções são tratados internacionais abertos à ratificação pelos países membros da Organização. Elas só geram obrigações àqueles países que as ratificarem, dentro do princípio pacta sunt servanda, mesmo que esses países não tenham participado de sua elaboração ou de sua aprovação. A aprovação se convenciona com a aceitação da maioria de dois terços dos membros presentes à Conferência. Por sua vez, as Recomendações não criam obrigações para os Estados participantes das conferências ou instituições que o adotam. De acordo com o art. 19, §6º da Constituição da OIT, os Estados membros têm a obrigação de submeter as recomendações ao órgão interno, que, de acordo com as leis nacionais, tenha competência para legislar ou tomar outras medidas referentes à matéria em pauta. Este órgão poderá transformar em lei todos os dispositivos, ou simplesmente alguns, ou apenas tomar conhecimento da recomendação sem praticar qualquer ato que lhe seja pertinente. 12 Adotado pela Resolução n. 2.200 – A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 e ratificado pelo Brasil em 24 de Janeiro de 1992. 125 Neste sentido, o trabalho infantil é tratado através da Convenção nº 138 e da Recomendação 146, ratificadas pelo Brasil em junho de 2001. Especificam a Idade Mínima para Admissão em Emprego. Entraram em vigor, no plano Internacional, em 19 de junho de 1976. Há, ainda, a Convenção 182, complementada pela Recomendação 190, relativa à Proibição das Piores Formas de Trabalho das Crianças e à Ação Imediata com Vista à sua Eliminação, em 17 de junho de 1999 e que passou a vigorar na ordem internacional a partir de 19 de novembro de 2000. Ambas foram aprovadas pelo Decreto Legislativo nº 178, de 14 de dezembro de 1999 e promulgadas pelo Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000, passando a vigorar no Brasil em 2 de fevereiro de 2001. Consideramos a Constituição de 1988 o esteio da legislação internacional para efetivação dos direitos humanos, pois representa a transição do conservadorismo que tinha como escopo o controle e a repressão das classes excluídas para a valorização e proteção da pessoa humana, inserindo o Brasil nos sistemas internacional e interamericano de proteção e promoção dos direitos humanos (Barros, 2003). No direcionamento da Carta Magna de 1988, foi aprovada a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, constituindo-se no principal instrumento legal referente à proteção integral da pessoa humana, da criança e do adolescente, ainda pouco conhecido em profundidade pela sociedade brasileira. A partir desses mecanismos internacionais e nacionais de direitos humanos elencados, a criança e o adolescente, como pessoas humanas, passaram a ter garantias de seus direitos fundamentais com a proteção assegurada em relação à vida, à honra, à liberdade, à igualdade, à integridade física e psíquica entre outros. É importante notar que o Brasil, além de possuir todo arcabouço jurídico para a proteção integral da criança e do adolescente, ratificou convenções internacionais com a mesma finalidade. Mas efetivá-las tem sido o maior problema, pois se vivencia neste país uma falsa realidade do Direito, não sendo considerado uma manifestação cultural de usos e costumes sociais, que vise à realização dos princípios da Justiça Social. Norberto Bobbio (1992) conceitua Direitos Humanos como aqueles que têm um caráter histórico e estão em constante mutação. Surgem como necessidades que buscam reconhecimento e proteção, representando a garantia de liberdades humanas contra poderes 126 instituídos com perfis autoritários. Neste sentido, falta à sociedade brasileira – que faz uso do trabalho infantil doméstico – e ao Estado fazerem valer as Leis e, com elas, os Direitos Humanos desses cidadãos, sujeitos em processo de desenvolvimento. REFERÊNCIAS ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. BARROS, L. V. de. O uso alternativo do direito como instrumento de defesa dos direitos humanos no Brasil: o caso da Paraíba. 2003. II Maestría en Derechos Humanos en el Mundo Contemporáneo, Universidad Internacional de Andalucía, Sede Iberoamericana Santa María de La Rábida, Palos de la Frontera, Huelva, España, 2003. BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2000. COTES, P.; FRANÇA, V. Crime e desemprego. Revista Época, n. 307, 5 de abril de 2004. JORNAL CORREIO DA PARAÍBA. 43,2% dos paraibanos ganham apenas o mínimo, diz IBGE. João Pessoa, 1 de maio de 2004. JORNAL O NORTE. Presídios – Paraíba tem a Segunda maior população carcerária do país. João Pessoa, 17 de agosto de 2003. NETO, P. M.; AFFONSO, B. S. A. Segundo relatório nacional sobre direitos humanos no Brasil. São Paulo: Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, 2002. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Preliminar/Grupo de Trabalho do Programa PETI. Piracicaba/SP, 2003. Relatório VIVARTA, V. (Coord.). Crianças invisíveis: o enfoque da imprensa sobre o trabalho infantil doméstico e outras formas de exploração. São Paulo: Cortez, 2003. WOLKMER, A. C. (Org.). Direito e justiça na América indígena. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. 127 CAPÍTULO 11 A REPRODUÇÃO FAMILIAR A PARTIR DA ATIVIDADE DE CATA DE LIXO: UMA ALTERNATIVA DE SOBREVIVÊNCIA QUE ATRAVESSA GERAÇÕES Maria Patrícia Mendonça de Albuquerque1 Valquíria Lira Oliveira2 Thereza Karla de Souza Melo3 INTRODUÇÃO A gradativa deterioração nas condições de vida da família brasileira tem impulsionado a atividade de cata de lixo enquanto estratégia de sobrevivência, transmitida por várias gerações, quase como se representasse uma “herança” de família. No presente estudo, buscamos nos aproximar da realidade das famílias que desenvolvem atividades de cata de lixo no lixão de Campina Grande-PB, que, em sua grande maioria, representam as famílias contempladas pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI no município. Tais famílias participam das atividades sócioeducativas oferecidas pelo Programa através de reuniões e oficinas. Foi através destas participações que constatamos o grau de parentesco entre os participantes e, com isso, sentimos a necessidade de aprofundar o estudo sobre a reprodução dessa atividade no contexto familiar através de gerações. Segundo Neto (1994, 51), o trabalho em campo se apresenta como uma possibilidade de conseguirmos não só uma aproximação com aquilo que desejamos conhecer e estudar, mas também de criar um conhecimento partindo da realidade presente no campo. Dessa forma, realizamos nosso trabalho de campo com metodologias específicas para buscarmos essa aproximação com o nosso objeto de estudo. 1 Assistente Social, Coordenadora do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil de Campina Grande-PB, no ano de 2004. 2 Contabilista, Educadora Social da Catedral de Nossa Senhora da Conceição em Campina Grande- PB. 3 Mestre em Serviço Social pela UFPB, Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba. 128 A pesquisa foi realizada no período de dezembro de 2003 a março de 2004, tendo como unidade de análise o lixão do Bairro do Mutirão, que está situado na alça sudoeste do município de Campina Grande – PB. Após a delimitação do objeto de estudo, iniciamos a fase de coleta de dados a partir de uma pesquisa bibliográfica na qual elegemos alguns autores para subsidiar nosso estudo. Nesta fase, recorremos também a dados estatísticos sobre o Bairro do Mutirão, onde se encontra localizado o referido lixão, para que pudéssemos construir o perfil da área. Realizamos, ainda, observações sistemáticas no local e apresentamos a nossa proposta de estudo às pessoas que ali se encontravam exercendo atividades de trabalho. Ainda na fase de coleta de dados, elaboramos um roteiro de entrevista semiestruturada que foi realizada junto a 10 (dez) pessoas catadoras de lixo no bairro do Mutirão, sendo cada uma delas de um grupo familiar. Na busca de consolidarmos nossas informações, utilizamos alguns instrumentos em nossa pesquisa, tais como: o gravador, durante a realização das entrevistas, e a máquina fotográfica para registro do nosso trabalho. Na análise dos dados, , procedemos a um estudo das falas dos sujeitos pesquisados, pois as entendemos como uma fonte rica de informações e significados que precisam ser aprofundados na medida em que revelam muito de suas próprias vidas. O COTIDIANO DAS FAMÍLIAS QUE SE REPRODUZEM ATRAVÉS DA ATIVIDADE DA CATA DE LIXO NO BAIRRO DO MUTIRÃO NO MUNICÍPIO DE CAMPINA GRANDE - PB A família representa um elemento de referência natural e fundamental para a formação de uma sociedade. Por isso, nosso estudo tomou como referência um grupo familiar alvo de exclusão: trata-se de pessoas que se vêem obrigadas pelas condições sociais e econômicas a se inserir em atividades de cata de lixo em áreas de lixão. Estas atividades aparecem como ação produtiva das famílias em situação de risco e vulnerabilidade social, sendo transformadas em meio de subsistência. Essas famílias vivenciam um processo de desqualificação profissional e percorrem uma trajetória, na maior parte dos casos, sem perspectiva de retorno, na qual são introduzidos gradativa, e, cada vez mais, precocemente, outros membros da família. 129 Nossa pesquisa não se deteve apenas ao Grupo Familiar tido como o ideal, ou seja, as famílias nucleares (formadas por mães, pais e filhos). Buscamos definir nosso estudo tendo como referência concepções mais amplas, adequadas ao que se verifica na contemporaneidade, como definem Guimarães e Calderón (1994): • Famílias com base em uniões livres, sem o casamento civil e religioso; • Famílias monoparentais com chefia feminina, decorrente de diversas situações como divórcio, separação e/ou abandono do componente masculino; • Mães/adolescentes solteiras que assumem seus filhos; • Mulheres que decidem ter filhos dentro do que é conhecido como “produção independente”, ou seja, sem o casamento e o convívio com o pai da criança; • Famílias formadas por casais homossexuais, entre os quais há os que, além de morarem juntos, assumem os cuidados ou a guarda de um filho de relacionamento anterior, sobrinho/parente ou uma criança em estado de abandono; • Famílias formadas por pessoas que convivem no mesmo espaço, sem vínculos de aliança ou consangüinidade, mas com ligações afetivas de mútua dependência e responsabilidade. A família vem passando por muitas alterações nestes últimos anos. Alguns fatores relevantes ocasionaram o que hoje é denominado como a crise da família moderna, como a revolução industrial, que exigiu um maior número de mão-de-obra nas fábricas, o movimento feminista, que veio alterar significativamente o mundo da mulher e o movimento da juventude, que consolidou novos valores. Na pesquisa que realizamos no lixão do Bairro do Mutirão em Campina Grande-PB, pudemos constatar a situação de miséria e exclusão social em que vivem as famílias que catam lixo para sobreviver. As pessoas que sobrevivem deste trabalho não o fazem por opção, e sim por uma imposição do sistema capitalista que, ao buscar acima de tudo o lucro e a acumulação, cria uma população que não encontra possibilidades de se inserir no mercado de trabalho, como bem o coloca Graciani (2001, p. 12): “é o sistema capitalista selvagem que cria lixões nas periferias das grandes cidades, onde se amontoam urubus, animais e seres humanos, disputando as mesmas sobras do lixo das elites. ” 130 Como já ressaltamos anteriormente, os sujeitos da pesquisa foram 10 (dez) pessoas que estavam realizando atividades de cata de lixo, sendo cada uma delas pertencente a um grupo familiar. Os sujeitos entrevistados nesta pesquisa se encontravam na faixa-etária dos 14 aos 74 anos, com grau de instrução em torno do ensino fundamental incompleto. Pudemos verificar que 70% dos entrevistados não estudam, e aqueles que já haviam estudado ou estavam estudando no momento não concluíram sequer a 4ª série do ensino fundamental. Devido ao trabalho pesado que realizam, ao cansaço e à fadiga, estas pessoas não têm condições de apresentar um bom desempenho nos estudos. Os mais prejudicados são as crianças e os adolescentes que acompanham os pais na atividade de cata de lixo, sobrando pouco ou nenhum tempo para irem à escola. Segundo Lira (2003, p. 59), (...) cresce assustadoramente o número de crianças e adolescentes que, forçados pela realidade econômica e social, buscam na inserção precoce no mundo do trabalho a fonte para sua sobrevivência e de suas famílias. O depoimento destacado a seguir comprova essa afirmação: “eu já estudei, fiz até a 4ª série primária, parei porque eu tinha que trabalhar. E, no final do dia, eu ficava muito cansada com o corpo todo doído” (M.14 anos). Para as crianças e adolescentes que têm o trabalho como a atividade central do seu cotidiano, em virtude da necessidade de garantir a sua subsistência e a de sua família, o processo de sociabilidade se altera profundamente. De acordo com Silva (2002, p. 170), a criança não é mais aprendiz de ofícios, mas é diretamente envolvida no mundo do trabalho de forma pervertida e precária, em prejuízo de outras instâncias de sociabilidade, como, por exemplo, da escola, da vizinhança, da comunidade, da praça, do parque, da cultura etc. Vai criando outros espaços e instâncias de sociabilidade, como a vivência na rua, no mundo das drogas, no mercado de trabalho informal e prematuro, no mundo da infração. Enfim, ela se instala no mundo social de violências, perdendo a possibilidade de viver o seu tempo da infância). Para a autora, a inserção precoce no trabalho compromete a identidade do ser criança, uma vez que as condições sócio-ambientais e históricas são responsáveis pela 131 diferenciação do adulto da criança. A “adultização” da infância, através do trabalho, ao eliminar o limite entre a vida infantil e a vida adulta, também compromete o futuro do ser adulto. Constata-se que todas as pessoas que estão no lixão foram indicadas pelos próprios parentes que já trabalhavam lá há mais tempo. Cerca de 90% das famílias moram em pequenos casebres próximos ao lixão no Bairro do Mutirão. Esses casebres, doados pela Prefeitura, não oferecem saneamento nem condições de comodidade devido ao número de pessoas ser desproporcional ao tamanho da casa. Há famílias com 8 pessoas dividindo 2 pequenos cômodos. Estes trabalhadores dedicam quase todo seu tempo à cata do lixo para conseguir apenas uma renda mensal de R$ 100,00 ou, quando muito, R$ 200,00, menos que um salário mínimo por mês. Eles remexem o lixo sem proteção de roupas ou calçados adequados para a atividade, ficando, assim, expostos a todo tipo de contaminação. Estes trabalhadores não recebem nenhuma orientação ao lidar com o lixo, contando apenas com a sua própria experiência e a de seus parentes adquirida ao longo dos anos. A maioria dos entrevistados está nesta tarefa desde a infância, não tendo conhecido outra oportunidade de trabalho como constata a fala a seguir: “Eu não sei fazer nenhuma outra atividade. A minha mãe é doente de tanto trabalhar no lixo para criar a gente tudinho. E eu tô na mesma regra dela. Aqui trabalha eu, meus primos e meus quatro filhos. Eu não tenho outro meio de sustento. O jeito é cair no lixo para não morrer de fome. Mas eu tô cansada, cansada mesmo de tanto trabalhar e não vê nada” (E.30 anos). De acordo com o depoimento, constata-se a falta de oportunidades a que estes trabalhadores são relegados dentro do sistema capitalista excludente, criando uma massa de pessoas que vivem das sobras e do lixo que esta sociedade produz. Os dados também mostram que os catadores de lixo são discriminados na hora de procurar emprego ou outra atividade para sobreviver. Isto fica evidente na fala de uma entrevistada: “a gente só arruma trabalho se tiver uma pessoa para indicar, porque, se a gente for procurar sem indicação, a pessoa diz que nós vamos para roubar” (M.47anos). Outro aspecto a destacar é que estes trabalhadores dedicam quase todo seu tempo ao lixão e, com isto, não resta tempo para diversão. Quando não estão no lixo, estão cuidando 132 dos afazeres de casa e da família, particularmente as mulheres. Como podemos constatar com a fala de uma catadora de lixo: “eu não tenho ‘divertição’. Minha ‘divertição’ dia de domingo é lavar roupa, passo a semana no trabalho e no domingo lavo roupa” (E.30anos). Uma das conseqüências deixadas pela atividade da cata do lixo são as doenças. 80% dos entrevistados dizem que no final do dia sentem dores nas costas, nas pernas e cansaço pelo corpo todo. Isto porque passam o dia expostos ao sol, aos riscos biológicos, aos riscos químicos e correndo atrás dos carros que despejam o lixo. Todos os sujeitos pesquisados sonham em deixar esta atividade. Mas são poucas as perspectivas de mudança para estas pessoas, como podemos observar na fala a seguir: “ (...) eu busco a sobrevivência no lixão por falta de oportunidade e também porque o desemprego é grande demais. E hoje para conseguir um emprego necessita de muito estudo” (J.26 anos). Observamos que a possibilidade de essas pessoas se inserirem no mercado de trabalho está cada vez mais difícil, não apenas pela falta de qualificação profissional, mas também pelo atual estágio do modo de produção capitalista que, com a denominada reestruturação produtiva, tem diminuído o número de postos de trabalho. Logo, se está difícil a inserção no mercado de trabalho daqueles que possuem qualificação profissional, o que será daqueles que não a possuem? Os próprios lixões já são, na atualidade, espaços muito disputados, visto que para lá converge um número cada vez maior de pessoas que vislumbram alguma possibilidade de garantir a subsistência através da cata de lixo. Os atuais catadores demonstram, inclusive, uma preocupação a esse respeito, como podemos observar a seguir: “ (...) até aqui no lixão tá ruim para ganhar dinheiro. Aqui tem gente demais, vai chegar o tempo de não se poder pegar uma lata para vender. E nós vamos passar necessidade do jeito que tá ” (E.30anos). Ainda segundo a entrevistada, existe uma Cooperativa dos Catadores de Lixo que só serve para comprar o material coletado. De acordo com a definição do Dicionário Aurélio, Cooperativa é uma sociedade ou empresa constituída por membros de determinado grupo econômico e social, que objetiva desempenhar em benefício comum uma determinada atividade econômica. Partindo deste princípio, as Cooperativas devem buscar, em primeiro lugar, os interesses e o bem-estar do indivíduo e da família, acima dos interesses econômicos, 133 tecendo uma rede de solidariedade entre seus membros associados para lhes garantir melhores condições de vida. Isto, de acordo com os entrevistados, não corresponde à realidade da cooperativa existente no lixão do Bairro do Mutirão, como afirma um exassociado: “ (...) aqui nós não temos garantia nenhuma, se adoecer ou se machucar eles não ajudam não, a gente tem que se virar ” ( J.26 anos). As pessoas se associam às cooperativas com a expectativa de obter melhorias nas condições de vida e de trabalho. No entanto, a experiência destes catadores não tem sido satisfatória, haja vista que os mesmos continuam vivendo e trabalhando sem garantias e sem saber direito como funciona o sistema, como se observa a seguir: “(...) eu sou sócia da cooperativa porque falaram que tudo ia melhorar, mas faz dois anos que eu sou associada e até agora nada melhorou. Piorou tudo! Que eu saiba quem é sócio de uma cooperativa tem direito de saber o que se passa lá, mas aqui só quem sabe é quem tá lá na balança (local onde é pesado o material catado no lixo). A gente mesmo não sabe de nada” (M. 47anos). A partir destes últimos depoimentos, percebemos as precárias condições de trabalho daqueles que atuam no lixão do Bairro do Mutirão. Essa precariedade no âmbito do trabalho repercute na vida de crianças, adolescentes, jovens, adultos e, até mesmo, de idosos que sobrevivem a partir da atividade de cata de lixo, que se consolida para gerações de famílias como o único meio de garantir sua sobrevivência. CONSIDERAÇÕES FINAIS Historicamente, o modelo de desenvolvimento implantado no país tem privilegiado os interesses do grande capital em detrimento de uma distribuição da riqueza nacional de forma mais igualitária. Ao longo dos anos, esta opção tem contribuído para a construção de uma sociedade marcada por grandes disparidades sociais. Neste contexto, as classes menos favorecidas sofrem pela ausência de políticas públicas que lhes proporcionem melhores condições de vida e de trabalho. Este quadro se agravou nos últimos anos em que o sistema capitalista, para tentar reverter suas crises internas, tem reorganizado as relações de trabalho e a própria produção com a chamada reestruturação produtiva, que tem diminuído as oportunidades de trabalho em todo o mundo capitalista. No Brasil, com suas desigualdades sociais históricas, a situação se torna ainda 134 mais preocupante para as classes menos favorecidas que, além de não disporem de uma qualificação profissional adequada às exigências atuais da acumulação capitalista, vêem agora diminuir os postos de trabalho. A partir da pesquisa por nós realizada, identificamos vários tipos de constituições familiares, compostas por pais, filhos, enteados, cunhados, sobrinhos e amigos. E, de fato, podemos inferir que a reprodução das várias gerações de famílias, através da cata de lixo, se dá por falta de oportunidade de trabalho ou de uma outra atividade que garanta uma renda familiar. Conforme o que nos foi transmitido pelos grupos familiares estudados, que, em sua maioria, constituem arranjos familiares, pudemos identificar que as famílias vivem no seu cotidiano o tipo de família que foi possível construir no seu processo de vida, levando em consideração seus valores, suas carências sociais e econômicas. Os mesmos não demonstraram frustrações em estar desenvolvendo e reproduzindo esta forma excludente de atividade, mas mostram claramente as insatisfações e o sentimento de culpa de estarem passando para seus filhos estas condições sub-humanas de trabalho. No entanto, cabe ressaltar que, mesmo diante de uma realidade adversa, os mesmos não perdem o direito de sonhar com melhores condições de vida, que possam ser vivenciadas por todos aqueles que constituem o grupo familiar. Podemos observar que, mesmo sendo os indivíduos sendo sujeitos de direitos, os meios que garantem o exercício da sua cidadania continuam, na sua essência, negados, uma vez que não estão sendo viabilizados os direitos ao trabalho e salário justo, à moradia, à saúde, à educação, ao lazer, entre outros. Enfim, enquanto a sociedade não tiver garantidos e assegurados os direitos sociais, teremos sempre a presença de famílias inteiras trabalhando na cata de lixo, garantindo a reprodução familiar a partir deste tipo de trabalho. Como afirma Paulo Freire, citado por Lodi (2004), (...) a sociedade é aquilo em que acreditamos. Se acreditamos numa sociedade mais igual, onde as desigualdades sejam motivo de crescimento mútuo e não de exclusão e seleção, com certeza podemos, através de nossa responsabilidade como cidadãos e principalmente como educador, viver em um mundo melhor e mais humano (p. 10). 135 REFERÊNCIAS ARIES, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. BLOCH, D.; ATANASSLO, F.; MAZZOLI, M. Criança, catador, cidadão: experiências de gestão participativa do lixo urbano. Recife: Unicef, 1999. CALDERÓN, A . I.; GUIMARÃES, R.F. Família: a crise de um modelo hegemônico. In: Revista Serviço Social e Sociedade, Ano 15, n. 46, dez., p. 21-34, São Paulo: Cortez, 1994. DICIONÁRIO AURÉLIO - Século XXI. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. GRACIANI, M. S. S. Pedagogia social de rua: 4. ed. São Paulo: Cortez,2001. LIRA, I. C. D. Adultização da Infância: o cotidiano das crianças trabalhadoras no mercado Ver-o-Peso em Belém do Pará. In: Serviço Social e Sociedade, n. 69. São Paulo: Cortez, 2002. LIRA, T. S. V. .Exclusão social e trabalho precoce: o cotidiano dos adolescentes trabalhadores na cata do lixo.João Pessoa: UFPB, Ed.Universitária, 2003. LODI, Ivana G. Tornar possível o ainda impossível. Revista Mundo Jovem: um jornal de idéias. 2004. NETO, O. C. O Trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, M. C. De S (Org.). Pesquisa social: teoria método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994. Coleção Temas Sociais. 136 CAPÍTULO 12 PAIS DESEMPREGADOS: CRIANÇAS TRABALHANDO? A RELAÇÃO ENTRE DESEMPREGO DOS PAIS E TRABALHO PRECOCE Maria do Socorro Santos Neves1 Maria de Lourdes Alves Rodrigues2 Anísio José da Silva Araújo3 INTRODUÇÃO O presente trabalho procurou apreender uma dupla realidade precarizada, em suas similaridades e diferenças: primeiramente, a situação de pais, crianças e adolescentes, catadores de lixo reciclável do acampamento Jorge Luiz situado no complexo habitacional do Valentina de Figueiredo, em João Pessoa/PB. Uma situação, portanto, de extrema precarização, de instabilidade, porque sem um “chão” estável para viver e com uma ligação muito periférica com o mercado capitalista. O segundo caso abrange beneficiários do Programa de Geração de Emprego e Renda do Núcleo de Defesa da Vida - NDV, localizado igualmente no Valentina de Figueiredo, nesse caso um público de pessoas que buscam uma organização coletiva em face da situação de desemprego em que se encontram. Nos dois casos, o nosso interesse foi investigar os vínculos entre desemprego e trabalho precoce. Esta pesquisa foi realizada como parte das exigências do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural, promovido pela Universidade Federal da Paraíba, através do Grupo 1 Aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante do Núcleo de Defesa da Vida Dom Hélder Câmara. 2 Aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho InfantoJuvenil Urbano e Rural e representante da Associação Comunitária Planalto Boa Esperança. 3 Doutor em Ciências/ENSP/FIOCRUZ; Professor Adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFPB, Coodenador do Grupo de Pesquisas Subjetividade e TrabalhoGPST/UFPB. 137 de Pesquisas Subjetividade e Trabalho (GPST) e do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares (SEAMPO). Como objetivo geral, estabelecemos o seguinte: verificar se existe relação entre desemprego dos pais e a inserção precoce no mundo do trabalho. E como objetivos específicos: • Verificar as condições em que vivem as famílias entrevistadas; • Verificar a existência de trabalho precoce e em que medida o desemprego contribui nesse sentido; • Identificar as atividades e as condições em que o trabalho precoce é desenvolvido; • Verificar a existência de apoio governamental/institucional para retirar as crianças do trabalho precoce; • Analisar em que medida o trabalho precoce interfere na saúde, na vida escolar e em outras dimensões da vida das crianças; • Contribuir com subsídios para elaboração de políticas públicas voltadas à problemática do trabalho precoce. O grupo pesquisado foi constituído de pais desempregados, crianças e adolescentes do Acampamento Jorge Luís e de integrantes do Núcleo de Defesa da Vida no Valentina de Figueiredo. O tipo de abordagem que privilegiamos na pesquisa foi a qualitativa, porque nos interessava entender a relação entre desemprego e trabalho precoce a partir do ponto de vista dos pais e das crianças e adolescentes trabalhadores precoces. Fizemos uso da entrevista semi-estruturada a partir de roteiros adequados aos pais e às crianças e adolescentes trabalhadoras. No tópico a seguir, apresentamos os resultados segundo os dois campos de pesquisa escolhidos. Embora o conteúdo das entrevistas levante temas comuns, achamos por bem apresentá-las em separado haja vista representarem realidades com características peculiares. 138 O ACAMPAMENTO JORGE LUIZ Em julho de 2002, cerca de 360 famílias, que envolviam aproximadamente 1.500 pessoas, ocuparam um terreno público municipal situado no Planalto Boa Esperança, em João Pessoa, Essas famílias, integrantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), são, na sua quase totalidade, compostas de desempregados. Foi assim que, usando madeira e lona, começaram a levantar seus barracos para não ficarem ao relento, sujeitos a sol e chuva. Instalados dessa forma, procuraram descobrir meios de sobrevivência e encontraram na cata do lixo reciclável essa alternativa. Tal atividade, como constatamos em nossa pesquisa, envolve todo o núcleo familiar, incluindo, obviamente, as crianças e os adolescentes. Como os rendimentos são reduzidos, há a necessidade de que a família como um todo participe do trabalho. É, portanto, a soma desses pequenos rendimentos que assegura uma existência precária, cheia de privações. Entretanto, sem o concurso da família, a situação seria ainda mais grave. Entrevistamos cinco famílias, mais especificamente três mulheres, dois homens, cinco crianças (dois garotos e três garotas) e três adolescentes (duas jovens e um rapaz). Todas essas famílias moram em situação precária. Como é previsível numa situação de acampamento, não se alimentam corretamente, o que explica um alto nível de desnutrição, que se enxerga a olho nu. Em média, cada família tem de quatro a cinco filhos e todos trabalham precocemente para ajudar nas despesas da casa. Algumas dessas crianças estudam, outras não. O cansaço e a falta de ânimo, efeitos de um trabalho extenuante, são as justificativas apresentadas para não freqüentarem a escola. Trabalhando aproximadamente cerca de nove horas por dia, essas crianças e adolescentes juntam garrafas, papelão, latinhas, entre outros materiais, e ganham em torno de 15 a 20 reais por semana, contribuição que destinam aos pais para ajudar na manutenção da casa. Nessa situação, encontramos R.D.C, de 11 anos, natural de João Pessoa PB, e que trabalha desde os sete anos para ajudar os pais, desempregados há bastante tempo. Abaixo um trecho de seu depoimento: “(...) comecei a trabalhar na feira com minha mãe, debulhando feijão verde, para ajudar no sustento da família, pela necessidade que se encontra os meus pais. Também vendo cocada, durante a semana, cato 139 lixo e só nos finais de semana que vou para feira. Juntando, ganho de 15 a 20 reais por semana, já dá para comprar alguma coisa, exemplo. comida. Não estudo porque estou com um problema na justiça, o meu pai me registrou só em nome dele, e minha mãe agora está resolvendo isso. Quem já viu a pessoa não ter mãe?. De não ter pai é até mais fácil, mas de não ter mãe? Ah! isso não. Eu quero estudar para aprender a ser um homem de bem. Quando eu crescer serei um homem de bem e respeito. Sei que a vida é dura, não é fácil, mas temos que enfrentar”. Nesse depoimento, percebemos com evidência a inserção precoce no trabalho que, por sua vez, envolve todo o núcleo familiar e lança mão de uma variedade de meios de sobrevivência. A justificativa para não estudar, além do obstáculo real apresentado, é reveladora de uma outra situação: a ascendência da mulher à posição de principal provedora e de chefe de família, situação cada vez mais freqüente na atualidade. Admite-se a possibilidade de que, no registro civil, possa não constar o nome do pai que, mais frequentemente que as mulheres, abandona o núcleo familiar. Em geral, é sobre os ombros das mulheres que recai a gestão familiar. E esse caso apenas confirma o que as estatísticas constatam. Afinal, “onde já se viu não ter mãe?”. “É assim que a gente vive aqui. Um dia Deus olha para nós, sou evangélico, e acredito em Deus, ele vai mudar a nossa história. Cato lixo porque preciso, é o nosso meio de sobreviver, não recebo ajuda dos governantes, gostaria de receber bolsa escola ou bolsa família, minha mãe já foi várias vezes, mas não conseguiu”. No depoimento acima, uma outra face do problema é revelada: o abandono por parte do poder público. Não obstante toda a campanha e as políticas governamentais no sentido da erradicação do trabalho precoce, não se consegue atingir a todos e essa população é testemunha disso. À parte as opções religiosas de cada um, que não nos cabe aqui questionar, o fato é que a ausência de suportes sociais conduz as pessoas a depositar na religião a única esperança de melhoria das condições de vida. A trajetória de vida de E.C.T., descrita abaixo, traduz a vida de dificuldades de uma família pobre de um acampamento urbano, infelizmente uma história compartilhada por muitos brasileiros e brasileiras pobres. “Moro no acampamento Jorge Luiz no Valentina... . No ano de 1985 saí da casa de minha mãe, para viver minha vida, eu tinha 15 anos e queria ser independente. Fui trabalhar em casas de famílias, sem receber salário, 140 mas precisava trabalhar, pois só minha mãe pra sustentar minha irmã e eu, não dava, sofri muito nas casas dos outros. Aos 17 anos engravidei, tive uma linda filha e tive que ficar desempregada, porque muitas casas não aceitaram empregadas com os filhos. Então comecei a fazer panos de prato de sacos de farinha. Aos 19 anos tive meu filho que hoje está com quase 12 anos. Agora os governantes não dão maiores oportunidades para pessoas com 30 anos ou mais. Então vivi de aluguel. No ano de 2002 houve uma ocupação como essa que vivo até hoje aqui no Valentina. Nós somos bastante discriminados porque vivemos em um acampamento. Não conseguimos nem uma faxina. Eu vejo tantos galpões desativados ali no bairro das indústrias, eu acho que os senhores governantes deveriam investigar os galpões e abrir mais portas de emprego, tenho certeza que iria diminuir a fome e a marginalidade do nosso Estado A Paraíba iria aumentar a produtividade e todos ou muitos iriam viver bem melhor sem ter que botar seus filhos pra trabalhar. Infelizmente hoje meu filho tem que separar uma hora do dia para trabalhar comigo procurando reciclagem, apesar de que eu acho um absurdo, mas é que tem dias que não temos o que comer. E nas ruas passamos pela padaria e muitas vezes ganhamos pão, leite. Nas feiras livres nós também ganhamos verdura, frutas, ossos que trazemos pra casa e nos alimentamos. Pois é só isso que estamos precisando depois do desejo de ter nossas casas, pois se tivermos trabalho com certeza nossos filhos não estariam correndo risco de saúde. Pelo menos ele andando um pouco comigo e estudando não vai ter tempo para ver a coisa que mais assombra (drogas), que parece não ter mais jeito de parar ou pelo menos controlar, pois estamos rodeados de pessoas que não tem do que viver e terminam se envolvendo no submundo do crime, tendo de vender drogas e isso eu não quero pro meu filho”. O drama de E.C.T. mereceria um longo comentário. Entretanto, vamos nos deter em alguns aspectos que têm íntima relação com a nossa temática. Em primeiro lugar, a condição de empregado, com carteira assinada é uma experiência muito distante na vida dessas pessoas e, em muitos casos, nunca existiu verdadeiramente. A concepção de emprego para essas pessoas, portanto, não é jamais aquela do emprego regular, com salário fixo, batendo na conta mensalmente, nos moldes daquilo que Castel (1997) denominou de sociedade salarial, ou seja, uma condição social em que se associava o direito ao trabalho e a proteção social (o chamado Estado de Bem Estar Social). Em verdade, o Brasil nunca experimentou tal situação. Em segundo lugar, o trabalho doméstico é a alternativa que geralmente se apresenta às mulheres. A qualificação para tal atividade profissional é conquistada ao longo da vida, no lar, assumindo as tarefas “naturalmente” destinadas às mulheres. Também nesse tipo de trabalho, os rendimentos são baixos e a carteira assinada é 141 uma condição rara, especialmente se levarmos em conta que os patrões e as patroas dessa população se situam numa classe social pouco acima da dela. Um fator agravante desse quadro é o fato de morar num acampamento, razão de discriminação e, portanto, de restrição no leque já bastante restrito de possibilidades de trabalho. Um outro aspecto apontado nesse depoimento: a recessão, a diminuição nos postos de trabalho é uma realidade próxima, da qual os barracões fechados dão testemunho. A esperança da reativação do parque industrial e, portanto, da possibilidade da reabertura de postos de trabalho e, junto com isso, da dignidade de que o trabalho é portador, é um horizonte sempre presente, embora os sinais de que isso possa ocorrer sejam tímidos ou quase inexistentes. A condição de vida que decorre disso constrange a incorporar os filhos na busca de um rendimento que, pelo menos, os poupe da morte precoce. Uma vida, portanto, focada no presente, sem grandes horizontes. Aliás, esse “apego” ao presente é um dos traços do mundo do trabalho hoje. A instabilidade, a insegurança, a impossibilidade de se projetar um futuro, tem conduzido as pessoas a desenvolver esta estratégia: fixar-se no presente, “garantir o pão de cada dia”. O futuro é algo que perde o sentido não apenas para as populações que estão fora do mercado, vivendo uma radical situação de instabilidade (como é o caso aqui), mas também para aqueles que estão inseridos no mercado, vivendo sob a ameaça constante da perda do emprego. A consciência das perdas que a criança tem ao participar do trabalho familiar é evidente, especialmente na saúde. O medo das drogas também é uma constante. O estudo, a proximidade dos pais, ainda que seja no trabalho, parecem ser o antídoto contra essa possibilidade. “Por aqui não há emprego, não recebo ajuda de nenhum dos governantes, essa bolsa família e bolsa escola, PETI etc. como se faz para conseguir isso? Será que não somos filhos de Deus? O governo não olha para nós, somos discriminados por sermos tão pobres e miseráveis”. “R, meu filho de 9 anos, me ajuda muito catando lixo, é muito pequeno, não sabe fazer outra coisa, é triste e já com uma responsabilidade tão grande, de me ajudar na responsabilidade da casa, para não passar fome. Ele estuda à tarde, porém não quer mais ir à escola pelo cansaço e a fadiga quando chega em casa; isso é horrível não ter ânimo pra nada”. 142 Nas falas acima, se repete a queixa pela inexistência de ajuda governamental que, embora não resolvesse, minoraria os problemas enfrentados e, talvez, permitisse a retirada da criança do trabalho precoce. A dor dos pais ao acompanhar o roubo da vida dessas crianças que trabalham precocemente é uma tônica nos depoimentos. Constatar o peso que o trabalho representa para as crianças, com graves conseqüências físicas e psicológicas, causa tristeza ao mesmo tempo em que fazem emergir a impotência frente à realidade. A fadiga, a falta de ânimo são as resultantes de uma vida onde pouco se sabe fazer além de catar lixo, uma pobreza material e afetiva escandalosa. Não obstante essas constatações, encontramos crianças e adolescentes que, apesar das condições em que vivem, ainda projetam um futuro e envidam esforços no sentido de alcançá-lo. A mãe jura que as filhas não trabalham catando lixo, com medo de o Conselho Tutelar não levar as filhas, disse ela na entrevista. “Depois de muita conversa falou sobre a dificuldade da vida que levam para não passar fome. Dona Maria das Dores não recebe nenhuma ajuda do governo; a única renda é do marido que faz biscate, consertando eletroeletrônicos, ganhando de 20 à 25 reais por semana para sustentar a família de sete. As filhas ajudam com o lixo de reciclagem. Nos dias que o caminhão passa elas vão às ruas logo cedo para fazer a cata”. Em outra entrevista, uma das mães reluta em dizer que as filhas trabalham, temendo uma medida extrema do Conselho Tutelar. No decorrer da conversa, entretanto, acaba revelando a situação de trabalho precoce em sua própria casa. Mais uma vez, não há ajuda governamental, fato que, juntamente com os baixos rendimentos, explicam o apelo ao trabalho dos filhos na cata do lixo. “Desempregado, cato lixo de reciclagem, nas ruas e nas residências, com mulher e filho de 4 anos. Agente sai nas ruas fazendo esse trabalho pra sobreviver...pois a vida é muito sacrificada para ganhar o pão. Há muito tempo eu não sei o que é trabalhar com carteira assinada, pois não tem emprego e o trabalho que tem é esse, catar lixo”. Mais uma vez, a experiência de um emprego regular é longínqua e catar lixo é o que resta dentre as alternativas de sobrevivência. Esse aspecto é de tal modo relevante que poderíamos alterar a questão que nos mobiliza nessa pesquisa para as relações entre ausência de trabalho e renda e trabalho precoce. O foco é, portanto, a falta de trabalho ou os 143 parcos rendimentos que os poucos trabalhos existentes facultam, fatores que estabelecem uma clara ligação com o crescimento do trabalho precoce, não obstante toda a campanha governamental. De fato, as condições sociais trabalham no sentido contrário ao dos programas governamentais de erradicação do trabalho precoce, já que cotidianamente são despejadas do mercado de trabalho levas de trabalhadores que, por sua vez, engrossam as populações das favelas e são constrangidos a fazer toda a espécie de malabarismos para sobreviver. A política econômica e os rumos que o capitalismo vem tomando são os fatores que estão na raiz do drama social do trabalho precoce e, sem uma atuação nesse sentido, teremos indefinidamente que multiplicar os esforços para conter o avanço do trabalho precoce. Ao colocar as questões nesse plano, não queremos desconsiderar todas as conquistas no plano jurídico-institucional até o presente obtidas no tocante aos direitos das crianças e adolescentes, porém, sem atacar o foco da questão, estaremos, talvez, diante de um drama social que se agiganta muito além de nossas possibilidades de enfrentamento. O NÚCLEO DE DEFESA DA VIDA DOM HÉLDER CÂMARA O Núcleo de Defesa da Vida Dom Hélder Câmara é uma entidade civil sem fins lucrativos e foi criada em 1997, sendo uma pessoa jurídica de direito privado, de duração indeterminada, com sede e foro na cidade de João Pessoa. Tem como objetivo lutar pelo resgate dos direitos humanos, o que compreende a busca por condições básicas de cidadania, de uma vida digna para a população periférica, através de convênios junto aos órgãos governamentais para implementação de programas sociais, além de reivindicar direitos garantidos na legislação Municipal, Estadual, Federal e nos pactos internacionais de proteção aos direitos humanos. Na caminhada de sete anos, o N.D.V. tem travado uma luta contra o desemprego e os baixos salários, criando grupos de geração de emprego e renda, pois acredita que é por conta desses fatores que cresce o número de crianças e adolescentes trabalhando precocemente. Tal compreensão, antes de ser teórica, nasce da própria realidade dos entrevistados, pessoas atingidas pelo desemprego e sobrevivendo de parcos rendimentos a partir de atividades informais. A maior parte dos entrevistados são mulheres, em sua maioria chefes de família, com uma média de 2 a 5 filhos. Realizam diferentes atividades, tais como manicure, 144 vendedoras, garçonetes, entre outras, numa jornada de trabalho em tempo integral. Dos entrevistados, nenhum recebe ajuda governamental e a renda familiar varia de R$ 80,00 a R$ 120,00 por mês. Das adolescentes que trabalham, todas se sentem prejudicadas nos estudos e apresentam problemas de saúde. As mães, por sua vez, revelaram que, se tivessem condições, não deixariam seus filhos trabalharem para ajudar no sustento da casa. As famílias engajadas no Grupo de Geração de Emprego e Renda esperam uma oportunidade de melhorar sua renda familiar e assim ter uma vida mais digna. O presidente do N.D.V. afirma que o trabalho infanto-juvenil tem aumentado devido ao crescimento do desemprego. Os pais usam os filhos em pequenos bicos ou permitem que os mesmos perambulem pelas ruas fazendo outras atividades (serviços) para não morrerem de fome. Existem também casos de pais alcoólatras que obrigam seus filhos a trazerem para casa dinheiro ou alimentos, sob pena de receberem punições. Uma outra constatação: os programas do governo não cobrem a demanda das famílias desempregadas e essa ausência do Estado tem aumentado o número de crianças em situação de risco. Num dos depoimentos, G.V.F. fala a respeito de seu filho, que trabalha numa lanchonete numa jornada diária de 5 horas e vem apresentando problemas de saúde (no punho da mão direita) que, conforme avaliação médica, decorre do trabalho. Apesar disso, continua trabalhando, pois necessita complementar a renda familiar. E não obstante as queixas de cansaço e estresse, a mãe prefere vê-lo trabalhando, pois assim ele se vê imunizado contra os perigos da rua. Aliás, em várias falas, vemos essa idéia presente: a de que o trabalho (ainda que precoce) é um antídoto contra más companhias, drogas, entre outros perigos a que crianças e jovens estão expostos, sobretudo em ambientes sociais de extrema carência. “Graças a Deus trabalho com a minha mãe em uma lanchonete das 7:00 da manhã às 12:00 e já fazem cinco anos que ele trabalha. Ele sai do trabalho direto para o colégio, chegando em casa só à noite e ainda tem trabalhado na igreja. Ele é muito católico, graças a Deus. Apresentou um problema no punho da mão direita e o médico diz ser proveniente do trabalho. Mesmo assim ele continua trabalhando, pois o que eu ganho sozinha não dá para vivermos, a renda de nós dois é apenas 280,00 reais por mês. Ele diz estar se sentindo muito cansado e anda muito estressado. 145 Mesmo com esses problemas, prefiro ele trabalhando para me ajudar do que estar na rua aprendendo o que não deve”. Em outra entrevista, identificamos P.S.F., 15 anos, natural de João pessoa, trabalhando como office boy e garçom na lanchonete da avó, sem carteira assinada, há pelo menos cinco anos, com uma jornada de 5 horas diárias, o que o obriga a sair bastante cedo de casa. Também nesse caso, verificamos efeitos negativos sobre a saúde em função do tipo de trabalho. Assim se expressa esse jovem: “É muito cansativo, pois saio do trabalho direto para o colégio. Acho bom porque trabalho com minha avó, mas acho ruim porque é muito estressante. Às vezes durmo na sala de aula, chegando a levar faltas porque não escuto a chamada mesmo estando na sala de aula. Trabalho porque preciso ajudar minha mãe, pois a mesma não pode dar o que preciso. Se minha mãe tivesse condições eu só fazia estudar, pois gosto muito. Na saúde existe um problema no osso da minha mão por conta da profissão de garçom, pois faço lanches, carrego bandejas, lavo louça, etc”. A respeito da situação de desemprego e dos baixos salários, comuns a maioria dos que residem nas áreas investigadas, P.S.F. assim se coloca: “Quanto ao desemprego e ao baixo salário, eu entendo. É porque a tecnologia vem tomando o nosso lugar de trabalho, também a falta de qualificação das pessoas e também a falta de compromisso dos governantes que não mudam essa situação, se elegem só para roubar nosso dinheiro. Por isso o nosso salário é tão baixo e o desemprego é tão grande, é o que eu entendo”. O depoimento acima mostra uma clara consciência de alguns determinantes dos altos índices de desemprego que atingem não apenas o Brasil, mas todo o mundo, embora com matizes diferenciados. Em primeiro lugar, a inovação tecnológica é apontada como a primeira das razões da reduzida oferta de empregos. De fato, o desemprego tecnológico é uma realidade inescapável no mundo hoje, embora outras razões figurem no complexo diagnóstico do desemprego hoje. A qualificação é outro aspecto apontado. Obviamente, numa conjuntura de desequilíbrio entre a oferta e a procura, os critérios seletivos tornam-se cada vez mais rigorosos e, embora a qualificação não assegure uma inserção automática no mercado de trabalho, é sem dúvida um fator de exclusão. As classes pobres, privadas da educação formal e profissional, encontram-se, desse modo, em desvantagem flagrante frente a outros extratos populacionais. Por último, a responsabilidade é depositada sobre o 146 Estado que se omite na promoção de políticas de geração de emprego e renda, o que reduziria o drama dessas populações. Ao invés disso, prefere seguir os preceitos de organismos internacionais que impõem um determinado tipo de política econômica que ignora os dramas sociais da população. A realidade que encontramos nas famílias dessas duas localidades apresenta situações muito semelhantes: pais há tempo excluídos do mercado formal de trabalho, sobrevivendo na informalidade e que, para garantir uma renda familiar mínima, são forçados a incorporar seus filhos no trabalho. Embora conscientes dos prejuízos que essa convocação precoce acarreta em vários aspectos da vida de seus filhos, não enxergam outra alternativa frente a um mercado que oferece cada vez menos vagas e com um grau de exigência cada vez maior. Por outro lado e apesar de enxergarem os males que a inserção precoce acarreta, preferem ver seus filhos trabalhando, porque assim eles são poupados dos perigos presentes nas ruas. A ausência do Estado com os seus programas governamentais é uma constante nas falas. Poucos são os que fazem referência a algum tipo de ajuda recebida, o que, sem dúvida, torna mais inglória a luta pela erradicação do trabalho precoce. Com certeza, nesse ponto, localizamos um aspecto imediato sobre o qual se pode desenvolver uma ação reivindicatória dirigida às instâncias do poder público responsáveis. CONSIDERAÇÕES FINAIS O intenso processo migratório rural encontrou, durante um certo tempo, espaços de inserção econômica nos grandes centros urbanos. Primeiro na construção civil, depois na indústria e nos serviços. No entanto, os anos 80 e 90 produzem uma brusca modificação nesse contexto. As empresas, na fome por maiores lucros, passam a intensificar a introdução de inovações tecnológicas e organizacionais, poupando inúmeros postos de trabalho, o que conhecemos na literatura pelo nome de reestruturação produtiva. A globalização econômica, através da presença de grandes conglomerados internacionais, desestrutura a indústria nacional, agravando ainda mais o historicamente irregular mercado de trabalho brasileiro. As políticas neoliberais, de redução do papel do Estado, por sua vez, induzem a um refluxo nos dispêndios em políticas sociais e despeja, como fruto das privatizações, levas de trabalhadores nas ruas. Esse quadro de transformações eleva o desemprego à posição de problema mundial, com matizes mais negros no caso brasileiro, 147 que, de longa data, já convive com o desemprego estrutural e um mercado informal importante. Em paralelo, cresce a consciência social dos males que envolvem o trabalho precoce, o trabalho escravo e outras chagas contemporâneas. Fruto disso, todo um aparato jurídico-institucional, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, é construído com vistas à garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Não obstante, como já dissemos, a conjuntura social trabalha no sentido contrário, exigindo, por parte dos movimentos sociais, muito mais vigor na luta contra o trabalho precoce e a favor de uma vida digna para crianças e adolescentes. Apesar dos resultados alcançados e que nos impulsionam adiante na luta, ainda são enormes os desafios a serem transpostos e, certamente, isso não poderá ocorrer sem uma profunda reavaliação das políticas econômicas que geram o desemprego e lançam no desespero um grande número de famílias. REFERÊNCIAS ALBERTO, M. de F. .P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. CASTEL, R. A dinâmica dos processos de marginalização: da vulnerabilidade à “desfiliação”. Caderno CRH, número 26/27, p. 19-40, 1997. MATTOSO, J. O Brasil desempregado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1996. 148 CAPÍTULO 13 A VISÃO DOS PAIS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES INSERIDOS NO PETI Adalvaci de Medeiros Barreto1 Maria de Fátima Pereira Alberto2 INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo apresentar a percepção dos pais e responsáveis pelas crianças e adolescentes inseridos no PETI, na Organização Não Governamental Casa do Pequeno Davi, no Setor Casa Menina Mulher, sobre o trabalho precoce e a ação sócioeducativa proposta pelo programa em referência. Esta investigação é resultante do II curso de extensão - “Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho Infanto-juvenil Urbano e Rural”, realizado no período de agosto de 2003 a fevereiro de 2004, na Universidade Federal da Paraíba, através do Setor de Estudos e Assessoria aos Movimentos Populares – SEAMPO e do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho – GPST, em parceria com o Projeto Unicidadania do Movimento Leigo América Latina – MLAL. Como requisito para avaliação de final de curso, os educandos foram incumbidos de empreender em uma investigação sobre o trabalho precoce, contemplando as diferentes faces em que este se materializa e, de conformidade com as ações das instituições de origem. Neste sentido, o presente trabalho surgiu da minha experiência, como assistente social da Casa do Pequeno Davi - Setor Casa Menina Mulher, no período compreendido entre outubro de 2002 a setembro de 2003, no decorrer do qual atuei junto ao público da ONG. Assim, privilegiei como objeto de minha investigação a compreensão das famílias 1 Bacharel em Serviço Social; ex- assistente social da Casa Menina Mulher, atualmente da Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura Municipal de João Pessoa disponibilizada para o Projeto Catavento. 2 Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Depto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho – GPST/UFPB e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB. 149 sobre o trabalho precoce, tendo por eixo de análise suas expressões de entendimento sobre o PETI bem como sobre as ações socioeducativas realizadas por esse programa. Na construção da proposta deste estudo, foi relevante minha experiência de trabalho na ONG - Casa Menina Mulher e posterior ingresso no PETI, através da SETRAPSSecretaria de Trabalho e Promoção Social3, onde atuei como assistente social do PETI, no período compreendido entre setembro de 2003 a julho de 2004, realizando, entre outras atividades, acompanhamento às famílias aí cadastradas. A essa trajetória de atuação profissional e capacitação na temática em foco, somou-se o fato de ter sido, em agosto do ano em referencia, disponibilizada pelo município para atuar no Projeto Catavento “Programa de Combate às Piores Formas de Trabalho Infantil na Paraíba”; fato que, acrescido aos demais me instigou a escrever este artigo. Para a realização deste ensaio de pesquisa, foram entrevistadas 10 mães, com filhos participantes das atividades da Casa Menina Mulher, que neste trabalho terá a denominação de “casa”, e que recebem a Bolsa Cidadã do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Para o universo da pesquisa, delimitamos uma amostra intencional, tomando como referência o tempo de participação das famílias nas atividades da “casa”, priorizando mães ou responsáveis por crianças e adolescestes inseridas no PETI e que aceitaram ser entrevistadas. CARACTERIZAÇÃO E PROPOSTA SÓCIO-PEDAGÓGICA DA CASA MENINA MULHER A Casa Menina Mulher é uma Organização Não-Governamental e desenvolve suas atividades desde 1998 com crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, nas áreas de inclusão escolar, combate ao trabalho infantil e exploração sexual. O objetivo de seu trabalho é “contribuir para a promoção dos direitos da criança e do adolescente, através de ações de educação integral e de intervenção nos espaços políticos paraibanos”. A “casa”, cujas instalações ficam na Rua da República-Centro, recebe recursos do Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência – UNICEF, financiamento de instituições internacionais, além de ser parceira da Prefeitura Municipal de João Pessoa nas ações da Jornada Ampliada do PETI. 3 Atualmente Secretaria de Desenvolvimento Social - SEDES 150 No ano de 2003, a “casa” desenvolveu atividades com 86 crianças e adolescentes, correspondendo a um total de 65 famílias atendidas. Do total de crianças e adolescentes desenvolvendo atividades, 45 estavam incluídas no PETI, perfazendo um número de 33 famílias com cadastro no programa (dados da casa referentes ao ano de 2003). Para executar seus objetivos, a “casa” conta com uma equipe multiprofissional, entre educadores sociais e técnicos; neste trabalho de pesquisa, destacamos aspectos da intervenção da Assistente Social. Na abordagem ao trabalho precoce, atuei em duas perspectivas: a) identificar, entre seu público alvo, a existência de crianças e adolescentes inseridas precocemente no trabalho e fazer os devidos encaminhamentos para sua inserção no PETI; b) incluir na “casa” crianças e adolescentes encaminhados pela coordenação do PETI e pelos Conselhos Tutelares, observando sua capacidade de atendimento. No primeiro caso, o profissional de serviço social identifica as crianças e adolescentes trabalhadores precoces através da visita domiciliar e a partir dos seus relatos de vida. Constatada a existência do trabalho precoce, realiza o encaminhamento do caso para a Coordenação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) com solicitação de inclusão da família no referido programa. No exercício da minha profissão na “casa”, realizei, entre outras atividades, visitas domiciliares e encontros temáticos com as famílias. Nesses encontros, foi abordado, entre outros, o trabalho precoce. Nas discussões fomentadas através dessas e outras atividades, era comum as famílias ressaltarem o valor dos trabalhos desenvolvidos pela ONG. Valorizavam os momentos de reflexão e discussão, favorecidos principalmente pelos encontros mensais, justificando que, na época em que foram crianças e adolescentes não tiveram semelhante oportunidade, tendo que, forçadamente, esquecer, deixar a escola e as brincadeiras de crianças para acompanhar os pais no trabalho ou trabalhar sozinhas para manter a si e, em alguns casos, suas famílias. Ainda segundo os depoimentos, consideravam os filhos privilegiados por terem a oportunidade de aprender, brincar, enfim, de ter a “casa” para acolhê-los. Contrapondo-se à avaliação ora apresentada, essas mesmas mães questionavam muitos dos direitos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, afirmando que tais direitos deixaram as crianças vulneráveis à marginalidade, exemplificando que – “criança não pode mais apanhar, não pode mais trabalhar...”.O discurso apresentado pelas 151 mães adquiria sempre um viés contraditório, passando a inquietar-me enquanto profissional, haja vista o papel de acompanhar, encaminhar e promover a formação crítica das famílias. Apreender o discurso das famílias, ao tratarem do trabalho precoce, foi uma necessidade que senti no decorrer do meu exercício profissional, e que não pôde ser investigado por diferentes motivos: pelo tempo de duração dos encontros de formação (uma hora e meia); pelo calendário de atividades da “casa” a ser cumprido e, posteriormente pela minha desvinculação da referida entidade. A oportunidade veio a se concretizar com a realização do II curso de extensão de “Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural”, cuja vaga foi conquistada a partir do encaminhamento realizado pela “casa”. TRAJETÓRIA DA CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA Este estudo teve por eixos norteadores de reflexão e referência os conteúdos programáticos, teóricos e metodológicos abordados nos módulos ministrados pelo curso, além de recorrer à concepção de criança e adolescente construída no nível do aparato legal pela Lei 8.068/90; a concepção de família, enquanto instância primeira de amparo e proteção integral a esse segmento, e, por fim, o trabalho socioeducativo, enquanto via de inclusão social, e que teve como referência o manual do Programa de Erradicação do Trabalho Precoce. A pesquisa foi realizada utilizando a abordagem qualitativa descritiva e, como instrumento de trabalho, a entrevista semi-estruturada. A técnica de amostragem utilizada foi de caráter intencional, privilegiando famílias com maior tempo de inclusão na “casa”. A abordagem foi realizada na residência das entrevistadas, uma vez que o espaço doméstico se constitui no lócus que propicia expressões concretas da realidade vivida pelos sujeitos e por considerar que não teríamos dificuldades no processo de localização das residências; haja vista, ainda, a prática de visitação às mesmas adquirida na minha trajetória de trabalho. Por outro lado, realizá-la nos espaços da ONG implicaria agendar dia e hora de entrevista com cada família, articulando com o funcionamento dessa e de forma que correspondesse à minha disponibilidade de tempo. De forma a não chocar-se com minhas atividades profissionais não mais ligadas à “casa”. 152 Por outro lado, a abordagem na própria residência propiciaria o contato com a figura masculina responsável pela criança e adolescente. No caso das famílias entrevistadas, identificamos o modelo de famílias matrifocais (...) “formadas por uma mulher, seus filhos, resultado de uma ou mais uniões, e um companheiro permanente ou ocasional” (Romanelli, 1997: 137). Logo, um dos objetivos da estratégia de visita para tentar contatar o pai não funcionou, mas não inviabilizou a pesquisa. Não se fazendo presente a figura masculina no momento da entrevista, todas as entrevistas foram realizadas com as mães; não só pelo fato de terem sido elas as pessoas adultas presentes na casa, mas porque 08 das entrevistadas assumem sozinhas as responsabilidades com os filhos. Para realização das entrevistas, usamos a entrevista com questões semi-estruturadas abordando os seguintes aspectos: O PETI (Qual a importância do PETI para seu filho? O fato de estar no PETI mudou alguma coisa na sua família? Quais as atividades desenvolvidas pelo PETI de que sua família participa? De qual atividade você sente falta?) Trabalho Precoce (Você trabalhou quando criança? Qual a sua opinião sobre o trabalho realizado por crianças? O que seu filho fazia antes de entrar para o PETI? O trabalho trouxe benefícios para ele? E prejuízos?). APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS a) O olhar das famílias entrevistadas sobre o PETI Quando indagadas sobre o que é o PETI, as famílias revelaram nas suas falas que viam o PETI como um projeto que retira menores da rua e oferece educação. Dentre mães entrevistadas, nenhuma decifrou a sigla PETI; demonstrando, assim, desconhecimento de que esse é um programa governamental e que tem como principal objetivo erradicar o trabalho infantil. Também desconheciam que o principal eixo de suas ações é a realização de atividades educacionais (jornada ampliada) e a oferta de programas de geração de trabalho e renda para a família cadastrada. A falta de clareza sobre o programa leva-nos a inferir que esse tipo de benefício chegou até elas sem que tenham sido explicitados seus objetivos, as ações que desenvolvem e os portadores de direito de acesso a ele. As famílias reconhecem o PETI em função da bolsa, sendo que para elas a bolsa é resultante da “benesse de governantes”. 153 É notório que rever junto a essas famílias as diretrizes, normas e procedimentos do programa implica prepará-las para assumir em sua responsabilidade como co-responsáveis pela mudança em favor da proibição do trabalho precoce e mobilizá-las em favor do direito, já garantido em Lei, de a criança viver sua condição de infante. Ação que a “casa” vem desenvolvendo ao exercitar com o seu público alvo o protagonismo, enquanto pilastra para a intervenção no contexto social e político. Sobre a importância do PETI para os filhos, as 10 entrevistas apresentaram o seguinte resultado: 10% dos filhos não gostam ou vêem as oficinas como obrigação; 40% consideram que é um espaço de aprendizagem, por isso muito importante; 50% afirmam que ajuda a comprar as coisas de que precisam. A partir da fala das famílias, tornou-se perceptível a relevância do benefício da bolsa cidadã. Mesmo as mães cujos filhos não desenvolviam trabalho foram cadastradas adotando-se como “critério” o fato de terem filhos crianças ou adolescentes em situação de riscos, em suas diferentes formas, e não exclusivamente exercendo atividade de trabalho. Assim, muitas famílias não se “enquadram” no perfil da clientela do PETI, fato evidenciado na fala de algumas mães ao afirmarem que o filho (a) não trabalhava; estudava e desenvolvia oficinas na “casa”. b) Quanto ao trabalho com as famílias Quando indagadas sobre a contribuição dada pelo programa para a família, as respostas fizeram referência à contribuição da bolsa para as despesas domésticas, sendo, para muitas, a única renda certa com a qual podem contar. Nas entrevistas, os discursos das mães não fizeram referência, por exemplo, à saída do filho do trabalho desenvolvido ou ao acesso, permanência e sucesso da criança ou adolescente na escola, principal mecanismo na luta pela prevenção e erradicação do trabalho infantil. À ação educativa da jornada ampliada, estratégia de trabalho do programa, também não foi feita referência. Das atividades propostas pelo PETI para as famílias, que as mães reconhecem ou de que participam, foram identificadas por todas elas apenas as reuniões. As demais atividades que a “casa” desenvolve, tais como apoio socioeducativo, complementação de renda, programa de geração de trabalho e renda, programas de socialização e lazer, programas de 154 ampliação do universo informacional e cultural, serviços de apoio psicossocial, programas culturais, não foram citadas nem referidas pelas mães. Nesse sentido evidencia-se que as atividades desenvolvidas, quer com os filhos, quer com as mães, não são reconhecidas pelas famílias como ações do PETI. Ao mesmo tempo em que elas não fazem distinção entre as ações do PETI e as atividades promovidas pela “casa” (oficina ludopedagógica, capoeira, esporte, formação humana e ciclo de formação e reuniões com as famílias, entre outras). c) Um olhar sobre o passado para negar cenas do presente Questionadas se trabalharam quando crianças, 40% das entrevistadas afirmaram que sim e 60%, que não; sendo que a maioria havia cursado até a 1º série do ensino fundamental (antigo primário) e outras estavam reiniciando o processo de alfabetização. Nesse sentido, um outro discurso, que não é objeto dessa investigação, ganha evidência: quando criança e adolescente, qual o motivo pelo qual as mães entrevistadas não freqüentaram a escola? Estiveram elas fora da escola por motivos que podem estar relacionados ao trabalho? Os discursos apreendidos revelam que o trabalho foi uma realidade vivida por algumas. “É bom para as crianças poder brincar. Tem muita gente analfabeta porque não pôde estudar” (mãe que trabalhou quando criança) “A partir de 07 ou 08 anos já pode trabalhar, ajudar a família, senão chega aos 18 e não vai querer trabalhar. Agora, os estudos é necessário mesmo” (mãe que afirma não ter trabalhado quando criança). “Só uma mãe muito doida bota uma criança pra trabalhar, agora esse aí (fazendo referência a um filho de 15 anos), já era pra ta trabalhando, pra comprar as coisas que precisa, mas é muito difícil”... (mãe que afirma não ter trabalhado quando criança) Há por parte das famílias um entendimento confuso acerca do que seja trabalho precoce; não considerando algumas atividades que realizaram quando crianças como trabalho. Fica, no entanto, claro em suas falas que elas não brincaram, e a escola foi suprimida em detrimento da necessidade de ajudarem os pais. 155 d) Inserção precoce no trabalho: danos e perdas Quanto aos benefícios e prejuízos advindos do trabalho realizado pela criança e adolescente, obtivemos, entre outras, as seguintes respostas: “Pelo cansaço do trabalho meus filhos não tinham muito tempo pra brincar; mas também não se envolviam com coisa errada. Logo no início achava que o cansaço era ruim pra eles, mas hoje acho que aquele era o tempo bom. Todo tempo estavam comigo. Sabia onde estavam”. (Fala de uma mãe com três filhos e renda fixa no valor de R$ 80.00, proveniente da bolsa cidadã). “Ajudava a comprar suas coisas. Elas se cansavam, depois tinha que ir para a escola”. (mãe falando da época em que suas filhas, ainda crianças, ajudavam no trabalho que ela realizava na feira livre). “Sei que ela (fazendo referência à filha mais velha) se atrasou nos estudos porque tinha que ficar tomando conta dos irmãos pra eu poder trabalhar. Hoje, fico com sua filha pra ela poder fazer o supletivo, recuperar o tempo que perdeu” (fala de uma mãe com duas filhas no PETI). “Eles não reclamavam do que faziam (catavam latinha, papelão), mas hoje, depois que estão na “casa”, diz que não podem trabalhar”(Fala de uma mãe, com três filhos no PETI, cujo benefício é a única renda da família). De acordo com as falas das entrevistadas, a maior parte das crianças e adolescentes que exerciam atividades de trabalho faziam-nas em companhia dos pais. Esse dado é relevante quando os mesmos vão avaliar, principalmente, prejuízos do trabalho. Os pais afirmam que, estando sob seu olhar, os filhos estavam sendo protegidos e educados para o trabalho e para a vida; desconsiderando que a atividade assume característica de trabalho precoce, danoso e prejudicial à condição da criança enquanto pessoa em desenvolvimento. Ao responder se trabalharam quando crianças, as 5 respostas afirmativas não diferem das justificativas por elas próprias apresentadas pelo fato de seus filhos terem realizado trabalho precoce: a condição de pobreza da família e o trabalho enquanto meio de disciplinamento. Nesse aspecto, as mães consideram que o mesmo trouxe benefícios para suas vidas, não relacionando o baixo nível de escolaridade de que são portadoras, apresentada por 9 das 10 entrevistadas. Elas afirmaram que não gostariam de ter trabalho, 156 no entanto não se arrependem de terem ajudado, através do seu trabalho, a garantir contribuição, mesmo que pequena, para o sustento da família. Este discurso das mães permite identificar em todas as classes sociais um discurso de naturalização e de defesa do trabalho precoce como instrumento de disciplinarização e de formação. Tal discurso é a expressão de uma questão cultural maior, enraizada no imaginário social brasileiro, cujas raízes emanam do processo de colonização do povo brasileiro – o trabalho para o escravo e o homem pobre branco como elementos de formação da sociedade e a escola e o ócio para as classes abastadas (Alberto, 2003). CONSIDERAÇÕES FINAIS As mães entrevistadas expressaram, através da linguagem, a concepção de trabalho enquanto condição de disciplinamento, associado ainda ao imediato suprimento das necessidades materiais da criança e do adolescente e da sua família. A maioria das entrevistadas assume o discurso culturalmente estabelecido sobre o trabalho precoce, demonstrando desconhecimento do que preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente sobre a questão em pauta. Reproduzem o discurso socialmente estabelecido sobre o trabalho precoce mostrando ainda falta de clareza quanto ao propósito maior do PETI, que é, paulatinamente, erradicar o trabalho infantil. Do que pudemos desvelar com este ensaio de pesquisa, surge como indicativo a criação de estratégias de ação e cooperação mútua, entre os setores públicos governamentais e não governamentais, visibilizando e executando programas e políticas de atendimento e proteção ás crianças e adolescentes, de forma que todos, Estado e sociedade civil, façam valer o que neles está preconizado; isto é, cumprir os direitos legalmente adquiridos pelo segmento da população infanto-juvenil. REFERÊNCIAS ALBERTO, M. de F. P.(Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Secretaria de Estado e Assistência Social. Programa de erradicação do trabalho infantil. Manual de Orientações do PETI. Brasília, 2002. 157 BRASIL. Ministério da Saúde. Ministério da Criança. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90. Brasília, 1991. IAMAMOTO, M.V.; CARVALHO. R. de. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez; 1993. RAICHELIS, R.. Esfera pública e conselhos de assistência social: caminhos da construção democrática. São Paulo: Cortez, 1998. ROMANELLI, G. Autoridade e poder na família. In: NASCIMENTO, S. I. do. (Org.). E se fosse nossos filhos? João Pessoa: Idéia, 1997. SPOSATI, A. O. de. [et.al]. A assistência na trajetória das políticas sociais brasileiras. São Paulo: Cortez, 1992. ______. A assistência social brasileira: descentralização e municipalização. São Paulo: EDUC, 1990. 158 CAPÍTULO 14 ATUAÇÃO DO PETI NA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL, NO ASSENTAMENTO CAMPOS DE SEMENTES E MUDAS, CRUZ DO ESPÍRITO SANTO/PB Hosana Celi Oliveira e Santos1 Maria do Socorro Borges Barbosa2 APRESENTAÇÃO O objetivo deste estudo é analisar a atuação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil - PETI na erradicação do Trabalho Infantil no Assentamento Campos, Sementes e Mudas, do Município de Cruz do Espírito Santo, a fim de se conhecer a realidade desse programa e obter dados e informações sistematizadas. Este artigo é resultado da análise de alguns dados produzidos por uma pesquisa mais ampla, realizada pelo Centro Rural de Formação - CRF, realizada em janeiro de 2004, em suas áreas de atuação, objetivando conhecer a realidade das comunidades nas quais desenvolve trabalho educativo. Como educadora do CRF, participei da referida pesquisa. Na condição de aluna do Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na Área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural na Universidade Federal da ParaíbaUFPB, desenvolvi, em paralelo ao trabalho como educadora e pesquisadora do CRF, nosso estudo, utilizando como fonte dados provenientes da pesquisa do CRF. Além dos dados da pesquisa do CRF, também utilizamos como fonte informações oriundas da Coordenação do Programa de Erradicação do trabalho Infantil – PETI. O CRF apresenta e desenvolve uma proposta educativa visando qualificar os jovens, filhos e filhas de agricultores, de 16 a 21 anos, da região de Cruz do Espírito Santo, bem como conscientizá-los dos seus deveres e direitos como cidadãos brasileiros. 1 Educadora do Centro Rural de Formação do Município de Cruz do Espírito Santo/PB. Mestre em Educação Popular, Sanitarista, Historiadora e Educadora do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva – NESC e do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO. 2 159 O contato com os jovens, através do trabalho no CRF, nos proporcionou uma relação não só educadora-educando, mas uma relação de amizade e afeto entre nós, o que facilitou o acesso às informações sobre o PETI. Observei que alguns jovens participantes do Projeto desenvolvido pelo CRF faziam parte do Programa PETI, o que despertou a curiosidade pertinente a este estudo, que servirá para contribuir na verificação dos impactos que o PETI trouxe para essa comunidade e na reflexão dos seguintes aspectos: O que é o PETI? O PETI tem conseguido atingir seus objetivos? E quais objetivos são esses? E o PETI tem de fato contribuído para erradicação do trabalho infantil? Nestas comunidades, o CRF, através de um projeto educativo, acompanha os jovens de 11 comunidades rurais: Dona Helena, Massangana I, Engenho São Paulo, Jaques, Campos de Sementes e Mudas, Santa Helena III, Boa Vista, Ribeiro de Maraú, Canudos, São Felipe e Santana. Assim, defini-me por analisar a atuação do PETI na comunidade Sementes Campos e Mudas por ser a área de atuação enquanto educadora do CRF. Com o intuito de melhorar a qualidade de vida dos jovens e propondo conhecimento básico para o desenvolvimento da agricultura familiar sustentável, este Projeto segue o regime de alternância desenvolvendo atividades de Formação Técnica e de Formação Cidadã em momentos residenciais, assim como visitas às comunidades buscando realizar uma formação integral dos jovens dessa região. METODOLOGIA Para levantar a realidade da comunidade Campo de Sementes e Mudas do município de Cruz do Espírito Santo, Paraíba, realizei visitas para conversas informais com o presidente da associação, com os jovens e moradores. Também utilizamos os questionários aplicados aos moradores através da pesquisa anteriormente citada, que nos serviu de fonte para este estudo. Ainda trabalhamos com estudos e relatórios sobre assentamentos na Paraíba, que nos lançaram luz sobre a realidade da reforma agrária em nosso Estado. TRABALHO DE CAMPO E LEVANTAMENTO DOS DADOS Primeiramente, fizemos leitura bibliográfica sobre trabalho precoce e sobre assentamentos na Paraíba. 160 Posteriormente, procurei marcar reunião com o coordenador do PETI e com os jovens que participam do Programa para obter informações. Foram realizadas cerca de 15 visitas ao PETI, mas somente na última é que consegui falar com a coordenadora do Programa. Em cada visita realizada, apresentava-me como educadora do projeto CRF e aluna do Curso de Extensão sobre Trabalho Precoce que pretendia verificar a atuação do PETI na comunidade de Campo de Sementes e Mudas. O trabalho de campo foi penoso, pois, no mês de janeiro e fevereiro, estavam em recesso. Em março, na primeira semana, tentei várias vezes falar com o coordenador do PETI, sem obter êxito. Depois de idas e vindas, devido à troca de coordenadores e à recusa de dar informações, consegui com a coordenadora anterior, que me recebeu muito bem em sua casa e me deu todas as informações solicitadas. Foram marcadas reuniões com alguns jovens do assentamento Campo de Sementes e Mudas que participam do PETI, onde tivemos um “bate-papo” sobre a atuação do programa na sua comunidade e marcamos para tirar fotos. Com os dados coletados pela pesquisa do CRF e esses oriundos da conversa com a coordenadora e jovens participantes do PETI, procedemos à análise dos dados, à elaboração do relatório e à organização desse artigo. ONDE E COM QUEM TRABALHAMOS/ DADOS E IDENTIFICAÇÃO Assentamento de Campo de Sementes e Mudas A comunidade rural de Campo de Sementes e Mudas é situada no município de Cruz do Espírito Santo, na Região “Várzea” da Paraíba, a 45Km da capital do Estado da Paraíba. A comunidade se chamava Campo de Fruticulturas Tropicais. Tempos depois passou a chamar-se Campo de Sementes e Mudas, pois ali funcionava um campo de experimentação de enxerto de mudas de frutas. Ali faziam-se mudas vendidas para o resto do Estado e da Região. Além do campo de experimentação, funcionava também como centro de treinamento de tratoristas, onde eram oferecidos diversos cursos para os tratoristas. 161 A comunidade Campo de Sementes e Mudas pertencia ao Ministério da Agricultura até 1972 quando foi desativada e teve as casas fechadas, pois o Ministério da Agricultura não estava enviando recursos para os funcionários poderem trabalhar. Com a situação, os funcionários foram saindo e, ao final, ficaram apenas 9 funcionários aposentados. A área do Campo de Sementes e Mudas abrangia além da área que é hoje o Campo de Sementes e Mudas, o Assentamento Jaques. Em 1964, houve vários conflitos entre o Administrador do Campo e os moradores da região do Jaques. Em 1984 ,os moradores do Jaques, já separados, receberam a posse das terras. O Jaques é um dos poucos assentamentos do município de Cruz do Espírito Santo emancipado. Voltando para o Campo de Sementes e Mudas, os outros moradores vieram do município de Cruz do Espírito Santo em 1985 quando houve uma enchente que inundou a cidade causando muito transtorno e mortes. Como as casas estavam fechadas e vazias, os moradores do município começaram a ocupar e plantar, já que não tinham para onde ir. A Comunidade então é formada por moradores assentados na reforma agrária, em sua maioria originaria da região de Cruz do Espírito Santo. A homologação das terras saiu em 17 de maio de 1996. Em 1987, foi fundada a Associação. Não tiveram problemas, do jeito que estava entregaram. Os pedidos de reintegração de posse foram feitos junto com EMBRAPA, EMATER, UFPB, além do apoio que tiveram do próprio Diretor-Geral do Ministério da Agricultura. Não houve conflito, pois o movimento pela reforma agrária se intensificou no município fortalecendo também os moradores desse assentamento que se organizaram para reivindicar a posse da terra. O assentamento Campo de Sementes e Mudas tem 207 ha. Quando os moradores pediram a reintegração de posse ao Ministério da Agricultura, queriam que as terras fossem divididas em partes iguais. Hoje cada família possui mais ou menos 3 hectares de terra, com exceção da moradora Antonia Victor que é a assentada que tem mais terra, pois tinha cana plantada e beneficiada e queria a indenização. Então os moradores entraram em comum acordo com ela e repassaram alguns hectares a mais para ela, resolvendo a situação. Nesta comunidade existe uma vila onde residem 45 famílias cadastradas pelo INCRA. Com os 33 agregados, residem ao todo cerca de 78 famílias em casas de alvenaria com abastecimento de água e energia elétrica de qualidade razoável, como mostra depoimento a seguir: 162 “Nossa terra é fértil, cercada de água, a profundidade do poço é de mais ou menos 35 m, é uma média de 16 poços artesianos, sendo um comunitário, que abastece 21 casas.” (Presidente da Associação). A comunidade dispõe de poços para abastecimento das casas. Aparentemente a água é de boa qualidade. Dispõem de água em pequenos lagos que se formam nos períodos chuvosos e que demoram a secar e há um pequeno rio que, no período da seca, usam para irrigação. O clima é o da zona da mata, com boa pluviosidade (1000 a 1500 mm/ano) e com temperaturas ótimas para cultivo de fruteiras tropicais, hortaliças e criação de animais de todas as espécies. O relevo é plano. Por ser uma área plana favorece o uso da terra para exploração agropecuária. Durante as chuvas, a água traz transtornos, pois alaga uma área chamada de lagoa, que os agricultores usam para o cultivo irrigado. O tipo de relevo favorece o plantio de diversos tipos de culturas, desde que se adaptem ao tipo de solo e às condições do clima. O solo é de boa qualidade e de textura argilo-arenoso a argilosa com profundidade boa (terra profunda). É uma área de solo fértil, de clima bom e relevo favorável. Essa área de terra apresenta quatro tipos de solo: O “tabuleiro”, a “encosta” a várzea” e o “paul” no rio que é uma terra comunitária com Jaques, mas alagada quando chove. Os assentados exploram a mandioca, o milho, o feijão e batata doce. A batata doce é grande responsável pela produção agrícola do Assentamento. Os moradores produzem agricultura o ano todo, já que dispõem de todas as condições favoráveis. A exploração pecuária, apesar de presente, é tímida e precária, já que a maioria dos criadores não produz alimentos para os seus animais, confiando apenas no pasto nativo que se desenvolve nas parcelas e não realizam controle sanitário do rebanho. Vendem seus produtos em Cruz do Espírito Santo, nas feiras livres de Sapé, Santa Rita, João Pessoa ou a atravessadores na própria área. Há também os que trabalham nas plantações de cana-de-açúcar ou fazem “um vira beco” para poder sobreviver (CRF, 2003). A comunidade dispõe de transporte escolar (precário), estradas de qualidade razoável. Dispõem de duas Igrejas, uma Católica, a Igreja Sagrado Coração de Jesus, e uma protestante, a Igreja Evangélica Assembléia de Deus. E estão construindo a sede da Associação. O sindicato dos trabalhadores rurais tem sede em Cruz do Espírito Santo. Há uma escola, a Escola Estadual de Educação Infantil de Cruz do Espírito Santo, tendo até a 4ª série. A partir da 5ª série os estudantes têm que se dirigir a Cruz do Espírito Santo. Não 163 há posto de saúde, os postos de saúde mais próximos são no Jaques ou em Cruz do Espírito Santo. Possui uma agente de saúde. O PETI Na zona rural, concentram-se as regiões de maiores desigualdades sociais. O grau de desigualdade nessas áreas atinge os níveis mais elevados, além da instabilidade econômica devido aos trabalhos temporários, à crise canavieira e às dificuldades do próprio campo. A precarização da mão-de-obra obriga às famílias a inserirem precocemente as crianças e adolescentes no trabalho e a abandonarem seus estudos (CRF, 2003). Segundo Piaget (Biaggio, 1998), ocorre até os doze anos o processo de desenvolvimento cognitivo e a formação das categorias operacionais. O individuo adquire, nesta etapa, habilidades que são imprescindíveis ao desempenho de aptidões de sua formação intelectual. Nesta fase, é indispensável a escolaridade às crianças, principalmente às crianças trabalhadoras, para quem a não-escolarização é danosa (Alberto e Araújo, 2003). No Brasil, vêm sendo implantadas políticas para a diminuição do trabalho precoce desde 1996, como é o caso do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil –PETI – proposto pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tem como objetivo retirar crianças e adolescentes de 7 a 16 anos do trabalho considerado perigoso, penoso, insalubre ou degradante, ou seja, daquele trabalho que coloca em risco a saúde e a segurança de crianças e adolescentes. Outro objetivo é incentivar a permanência da criança na escola e estimular um segundo turno de atividades em unidades de apoio, assegurando a alimentação; orientação nos estudos; atividades culturais; de lazer e esportivas; Apoio e orientação das famílias. A família inserida no PETI recebe, por cada criança ou adolescente, uma bolsa no valor de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) para quem reside na zona rural ou nas cidades com menos de 250.000 habitantes. Para isso, a criança ou o adolescente têm que obter freqüência mínima de 75% na escola e na jornada ampliada do programa. Segundo a coordenadora do PETI, que é assistente social, o objetivo maior é retirar as crianças do trabalho infantil. Ela acredita que o PETI vem cumprindo seus objetivos. 164 “Eu acredito que a gente tenha conseguido. As crianças gostam do programa, mesmo com toda defasagem de material ... conseguimos que a criança seja retirada do trabalho, pois para as famílias é uma renda mensal mesmo que mínima, pois cada criança recebe R$ 25,00 e há famílias com 4 crianças, já são R$ 100,00”. (Coordenadora do PETI) Observando-se os dados levantados pelo CRF, 45 famílias das 78 existentes na comunidade de Campo de Sementes e Mudas, 53 % encontra-se num nível de renda entre 1 e 2 salários mínimos (24 famílias), 33% possuem menos de um salário mínimo,(15 famílias) e apenas 3 % encontra-se entre 3 e 4 salários mínimos (6 famílias), percebendo-se uma renda muito baixa entre as famílias desta comunidade. O que significa que, para a maioria, a bolsa do PETI serve como complemento da renda familiar. O programa atua em Cruz do Espírito Santo desde 1999. Ainda segundo a coordenadora, quando se iniciou a coordenação do PETI em 2003, o trabalho desenvolvido junto às famílias buscava inseri-las no mercado de trabalho, pois o município não dispunha de estrutura de capacitação para o emprego. Ela informa que há também famílias que não quiseram participar das reuniões e cursos realizados pelo PETI. O que causa preocupação, pois há mães que não sabem ler nem escrever. Quanto ao nível de escolaridade da comunidade, essa observação também se revela na pesquisa realizada pelo CRF, de que 79% dos entrevistados sequer chegaram a concluir o ensino fundamental. Apenas 6% concluíram o fundamental e 6% não quiseram responder. A coordenadora atual do PETI comenta que “(....) na época que o PETI foi implantado existia o trabalho infantil na comunidade do Campo de Sementes e Mudas e que até hoje há mães que me dizem que a filha não vai para o PETI porque vai ajudá-la na plantação; plantar e cortar cana. Até na zona rural, ... têm o pensamento de que: será que isso é mesmo trabalho infantil? Antes as crianças eram desocupadas e hoje elas tem uma obrigação, de estarem no ginásio na jornada ampliada e não cortar lenha, cana. E hoje melhorou muito pois não estão sujeitas ao trabalho pesado”. (Coordenadora do PETI) Nos domicílios, constatamos que, em 62%, existem de 2 a 3 pessoas freqüentando a escola, 24% não responderam; de 9% destes, existe apenas uma pessoa freqüentando a escola; em 2%, freqüentam a escola 4 a 5 pessoas; em 2%, a resposta não cabe. Mesmo com a baixa escolaridade dos pais, percebe-se um incentivo destes com relação aos filhos para que estudem. 165 Com relação à idade em que os filhos começaram a estudar, 44% dos entrevistados responderam que entre 2 a 4 anos de idade; 22% responderam que os filhos começaram a estudar entre 5 a 7 anos; 2% do entrevistados que os filhos ainda não estudam, enquanto 13% não responderam. O aumento do número de crianças que começaram a estudar mais cedo provavelmente deva-se ao fato de a comunidade possuir uma escola estadual com cursos de 1ª a 4ª série, bem localizada na comunidade, que se organiza em sistema de agrovila, além de participar do programa PETI. Mesmo assim, percebe-se que nas famílias há um grande percentual de filhos trabalhando. Apesar da presença do PETI, ainda há trabalho infantil na comunidade, embora seja em menor quantidade, pois, dos 45 entrevistados, 22% responderam que têm filhos menores trabalhando. Ainda segundo a coordenadora, “A maioria das crianças vem por conta da bolsa para a família. Tem uma freqüência que é controlada para que eles não percam as bolsas. Mesmo com as atividades precárias, eles vêm, só por conta da bolsa.” Além da precariedade do espaço de que o PETI dispõe, observa-se que as atividades determinadas pelo programa não estão sendo cumpridas na íntegra. As crianças só estão tendo atividades de futebol e mais nada. As que não jogam vão só assistir. Outra grande dificuldade é que não têm a presença de profissionais qualificados, como observa a coordenadora do PETI: “As pessoas que trabalham não têm qualificação para estarem ali. Como lidar com crianças e fazer um trabalho que surta efeito se não se tem qualificação? Já solicitei capacitação para os monitores, algumas até eu mesma dei para tentar melhorar. Ah! E se você perguntar para qualquer criança o que fazem lá agora, elas vão responder que não fazem nada, só jogam bola. Pra você ver tem o conselho do PETI, que não funciona. As pessoas querem que eu coordene esse conselho que serve para fiscalizar o trabalho do PETI, e eu falo que não posso coordenar um conselho que serve para fiscalizar o trabalho que estou desenvolvendo”. (Coordenadora do PETI) AS CRIANÇAS Em conversa com as crianças da Comunidade de Campos de Sementes e Mudas, constatamos que 17 crianças fazem parte do PETI. Destas, 9 são meninas e 8, meninos. Todos estudam, seja no colégio da comunidade, seja no colégio de Cruz do Espírito Santo. 166 O que as crianças fazem? Segundo as crianças elas só brincam: “No começo a gente fazia bordado, crochê, jogava voley, futsal, tinha aula de artes e teatro, ensaio de quadrilha, dança, mas agora acabou o material, os meninos brincam de bola e as meninas ficam olhando. Para as crianças menores tinha aula de reforço, agora também elas só olham os meninos jogar bola”.(jovem do PETI) Pode-se observar, pelo exposto, que, além de não se realizar as atividades educativas, culturais e de lazer, determinadas pelo Programa, quando elas são realizadas ferem a proibição de se desenvolver atividades que ponham em risco a criança, ou que sejam profissionalizantes. É o caso do crochê, proibido pelos dois aspectos, o uso de agulhas, objetos perfurantes, que podem provocar riscos de acidentes, além do que, pode servir como profisssionalização. O que expõe a contradição entre o permitido e o efetivamente realizado. Ao perguntarmos se havia trabalho precoce na comunidade, a resposta foi positiva, afirmando que havia e ainda há: “algumas crianças cuidam de outras crianças em casa, cuidam da casa, ajudam no roçado, mas também têm outras que só brincam, ficam o dia todo só brincando” (Jovem do PETI). Segundo as crianças, a jornada de trabalho contabilizada por elas é geralmente de 5 horas por dia, geralmente sem remuneração. Percebemos que há uma insatisfação tanto da parte das crianças, como da coordenação do PETI sobre a atuação do Programa. È o que a coordenadora dá a entender: “O Programa PETI é perfeito na teoria, essa cartilha (mostra a cartilha do PETI) é perfeita, mas tirar do papel e ir para prática é outra coisa. Quando entrei no PETI estava toda empolgada, com todo gás para fazer varias coisas e vários projetos, mas depois que eu entrei os empecilhos foram tantos e ainda são tantos que a gente desanima.” CONSIDERAÇÕES FINAIS Enquanto educadora e pesquisadora, esta pesquisa demonstrou que a atuação do PETI no Assentamento Campos, Sementes e Mudas, do Município de Cruz do Espírito Santo deixa a desejar, tanto para as crianças como para a própria coordenação, seja porque não dispõem de condições infra-estruturais, como local e material, bem como pela falta de 167 profissionais capacitados para tal. Percebe-se, ainda, que há muitas crianças trabalhando, até mesmo entre as que estão inseridas no referido Programa. Outrossim, o PETI resume-se ao repasse da bolsa, sem o desenvolvimento adequado da jornada ampliada e sem o trabalho socioeducativo ou de geração de renda com as famílias. Embora no mesmo espaço seja desenvolvido um projeto pelo Centro Rural de Formação, não há articulação com o PETI. Este fato é relevante, até porque há jovens que participam das duas instâncias, sem se contar o conhecimento que o CRF tem sobre a referida comunidade e que poderia ser utilizado no trabalho que o PETI precisa realizar e não tem condições. Essa desarticulação fica ainda mais patente quando da tentativa de realizar a pesquisa, que quase foi inviabilizada dadas as dificuldades operacionais do gestor municipal do Programa que se evidenciaram na indefinição de uma coordenação. Estes são alguns dos aspectos denotadores da forma de atuação do PETI nos municípios e das dificuldades para se erradicar o trabalho infantil. O trabalho instigou-me à reflexão sobre o trabalho precoce e o desejo de contribuir com ações que possam promover a cidadania das crianças que enfrentam essa realidade. Instigou-me, ainda, a contribuir com reflexões quanto a possíveis alternativas de atuação do PETI naquele município e, quiçá, no estado da Paraíba. REFERÊNCIAS ALBERTO, M. de F. P.; ARAÚJO, A. J. da S. In: O significado do trabalho precoce urbano. In: ALBERTO, M. de F. P.(Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. BIAGGIO, A. M. B. Psicologia do desenvolvimento. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. BRANDÃO, C. R. (Org.). Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1999. BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI: Manual de Orientações do PETI. 1. ed. Secretaria de Estado de Assistência Social: Brasília,. 2002. CRF. Relatório da atuação do Projeto CRF maio a setembro de 2003. Cruz do Espírito Santo, 2003. (dig.) CRF. Relatório da pesquisa do Projeto CRF janeiro de 2004. Cruz do Espírito Santo, 2004. (dig.) 168 IENO NETO, G. (Org.). Qualidade de vida e reforma agrária na Paraíba. João Pessoa: Unitrabalho/UFPB, 1998. LEITE, M. de L. S. A precarização do trabalho e as estratégias de sobrevivência dos moradores da comunidade Pe. Hildon Bandeira. Monografia. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2003. 169 CAPÍTULO 15 O IMPACTO DO PROGRAMA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL – PETI – NA VIDA DAS CRIANÇAS TRABALHADORAS PRECOCE NO MUNICÍPIO DE JOÃO PESSOA: A AÇÃO DA JORNADA AMPLIADA Filomena Elisa de Sousa Pignata1 Maria de Fátima Pereira Alberto2 INTRODUÇÃO Este artigo versa sobre uma análise do impacto do PETI na vida das crianças e adolescentes do município de João Pessoa. Trata-se de uma experiência de produção de conhecimento que tenta analisar os impactos do PETI, mais especificamente da Jornada Ampliada, a partir do olhar dos educandos e dos monitores. Este artigo é um fragmento da produção de conhecimento desenvolvida como uma exigência do 2º Curso de Formação de Agentes de Direitos Humanos que Atuam na área do Trabalho Infanto-Juvenil Urbano e Rural, oferecido pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, através do Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO e do Projeto UNICIDADANA em parceria com o Movimento Leigo América Latina – MLAL. Com o propósito de qualificar os serviços prestados às crianças e adolescentes integrantes do PETI em João Pessoa e capacitar profissionais que atuam no Programa para melhor desenvolver seus trabalhos nesta área de atuação, a Secretaria de Trabalho e Promoção Social – SETRAPS viabilizou minha participação enquanto coordenadora do Programa no Município de João Pessoa. João Pessoa foi contemplada com o PETI em junho de 2000. Inicialmente, contava com 1.000 metas. Até 2004, atendia 1500 meninos e meninas, de modo a atingir 3.112 1 Arte Educadora, Estudante de Pedagogia. Coordenadora do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil no Município de João Pessoa – Pb até 2004. 2 Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Depto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho – GPST/UFPB e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB. 170 metas. As crianças são egressas das atividades de catadores de lixo, flanelinhas, engraxates, fretistas e trabalhadoras domésticas. Para desenvolver este trabalho, realizamos pesquisa com uma amostra composta de monitores, crianças e adolescentes que integram o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil no Município de João Pessoa, no total de 18 entrevistados, assim compreendidos: 12 crianças e adolescentes e 06 monitores e monitoras da jornada ampliada dos núcleos localizados nos bairros de Mandacaru e Roger, cuja escolha se deu considerando-se a diversidade de atividades desenvolvidas. Dentre os educandos entrevistados, 08 freqüentavam a jornada que funciona no Campo do Onze, 02 freqüentam a escola Piollin e 02 o Centro de Cidadania de Mandacaru. Quanto aos educadores, 02 trabalham na Escola Piollin, 03 no Campo do Onze e 01 no Centro de Cidadania de Mandacaru. Os entrevistados foram escolhidos de forma intencional, incluindo tanto educadores quanto crianças e adolescentes encontrados no local da oficina, quando da nossa visita, feita sem comunicação anterior e em horários diferenciados. Os dados foram obtidos através de entrevistas semi-estruturadas, gravadas e posteriormente transcritas e organizadas em quadros, o que deu melhor visibilidade e facilitou sua interpretação. As questões da entrevista realizada com os monitores (as) versavam sobre: formação, escolaridade, experiência profissional na área, método usado, percepção do PETI, avaliação da jornada e capacitação. Com os educandos, as questões abordavam os seguintes aspectos: escolaridade, motivos da inserção no PETI, o que pensam sobre trabalho, avaliação da jornada, relação com a escola após ingresso no PETI: UM OLHAR SOBRE O DISCURSO DOS MONITORES Os monitores entrevistados ministram oficinas de reforço escolar, dança, capoeira e informática. O nível de escolaridade varia do ensino médio ao universitário, com predominância deste último. 03 deles estão no Programa desde sua implantação, apenas um está há menos de um ano. Todos os pesquisados usam como metodologia de trabalho aulas teóricas e práticas no desenvolvimento das atividades da Jornada Ampliada. Alguns utilizam, além disto, artes, jogos e ginástica, conforme depoimentos abaixo: 171 “(...) aplico teoria na sala de aula, no quadro, passando todo o conteúdo. Tento desenvolver o lado teórico para que a criança desenvolva tanto o lado pratico, aprenda dança, quanto culturalmente...” (educador). “(...) dou aulas práticas, e na teoria uso o quadro, ensino a história do computador, como foi que surgiu, como era o computador, porque hoje em dia existe microcomputadores e não computadores. Sempre dou aulas teóricas antes de ir para a parte pratica...” (educador). “Trabalho com jogos educativos, com artes como teatro, plástica e temática, levo o aluno a entender, enxergar e conhecer os seus direitos e deveres através destas temáticas. Atualmente estão trabalhando cidadania.” (educadora). Percebe-se que não há utilização de uma metodologia específica, aplicada a cada área, nem aprendida em capacitação apropriada. Os monitores afirmaram ainda que aprenderam com a vida, através de professores, pais, e mestres ou organizações não governamentais e movimentos sociais a que pertencem. Apenas um monitor fez referência as capacitações que recebeu do programa. Quando perguntados como avaliam as capacitações recebidas, no contexto do PETI, quase todos responderam que aprenderam muito e reconhecem que elas são muito valiosas para o aperfeiçoamento das oficinas que desempenham com os educandos. Todavia, acham que elas são esparsas e pouco sistemáticas: “(...) as capacitações me abriram os olhos, porque não utilizava a oficina para a criança. Tento enxergar a informática como também abrir os olhos para outras culturas. Aprendi a tirar proveito da informática como de outras culturas...” (educador). “(...) Avalio as capacitações como riquíssimas. Estas não são as primeiras. Mas a que o PETI está oferecendo é riquíssima. Cada unidade tem um método diferente, e a do PETI é riquíssimo o conteúdo...” (educador). “(...) Agente que vem de movimento social vem com uma formação muito boa para a sala de aula... mas consegui pegar várias coisas positivas...” (educador). Vale ressaltar alguns aspectos que podem ter implicações nas respostas dadas pelos monitores: primeiro, a pesquisadora aqui é a própria coordenadora municipal do PETI de João Pessoa, o que dificilmente contribuiria para que os educadores fizessem avaliações negativas; segundo, a capacitação dos monitores não é feita a priori, ou seja, antes do 172 ingresso do monitor no referido programa, o que significa que ele é demandado a criar e desenvolver algo para o qual, só no decorrer das suas atividades, é que ele está capacitado. Quanto às sugestões para conteúdo das capacitações, não há associações. O que sugeriram o fizeram dentro de sua área, propondo conhecimento de artes, informática e questões importantes da adolescência como: conhecimento do corpo, sexualidade e drogas. Alguns citaram que estão buscando sempre atualização e capacitação através de outras fontes e entidades. Este tipo de sugestão só vem confirmar que, em suas áreas de atuação, não são preparados para o tipo de demanda e proposta do PETI. Assim como, também, percebem, no contexto do projeto, a necessidade de serem capacitados por áreas. Infelizmente, porém, o PETI não dispõe de recursos, que talvez pudessem ser conseguidos através de parcerias. O conhecimento que o monitor ou a monitora trazem consigo depende da experiência e de sua inserção profissional anterior ao seu ingresso no PETI. Ou seja, se ele vem do serviço público, ou dos movimentos sociais. No tocante a experiência anterior com o trabalho com crianças, a maioria refere-se a trabalhos em ONG´s, em entidades e em movimentos ligados a crianças e adolescentes, seja como educador ou como militante. “(...) a primeira experiência foi como interna em orfanato, na Casa da Menina, era um abrigo. Fiquei lá cinco anos. O primeiro emprego foi de balconista na Panificadora do Menor, fui escolhida entre 10, através do convênio com LBA. Depois, fui para DATAPREV, onde aprendi muita coisa e depois fui para o Hotel Tambau. Depois fui para o trabalho com meninos de rua, como educadora de rua, fiquei um ano e seis meses, fui para o Recanto da Meninada, que é um abrigo só de meninos...” (educador). As razões que motivaram o ingresso no programa como monitor (a), são várias: o interesse pela área da criança, a necessidade de sobrevivência ou convite para substituir o instrutor anterior. É evidente, nas respostas, que não há uma motivação pela causa da erradicação do trabalho infantil. Todos, na sua maioria, não conheciam as questões ligadas ao trabalho infantil antes e tomaram conhecimento delas após ingressarem no PETI. Só depois do contato direto com as crianças, do conhecimento da problemática através das capacitações, tomaram conhecimento e aos poucos começaram a assumir a identidade de educadores (as). A partir desse contato, constroem outra concepção do trabalho infantil e do seu papel, que 173 vai além de ministrar aula. Tomam consciência de que o seu papel como monitor é o de um educador, é também o de combater o trabalho infantil e a exclusão social e garantir o direito da criança e do adolescente. “(...) hoje, lidando com as crianças na sala de aula, vendo como formular o PETI, tenho uma noção básica, que a dança aplicada no PETI não é somente dança, e sim um trabalho social, tirar a criança da exclusão social (...) tirá-los da realidade do trabalho infantil” (educador). “(...) tem que se trabalhar com as crianças para elas terem uma vida melhor com a família, deixar de trabalhar na rua (educador). “(...) são as crianças que estão no meio da rua, ao invés de estarem nos colégios ou em alguma atividade cultural, dança, reforço, música. Estão no meio da rua, podendo estar em uma escola. Porque o que faz hoje em dia alguém ter uma certa dignidade e cidadania é a nossa cultura. Isto se aprende na escola, e no caso eles não estão fazendo isso, estão no meio da rua trabalhando...” (educador). “(...) mudou o conhecimento porque tive a experiência direta. Algo é você ler, conhecer e saber. Outra coisa é você trabalhar direto com crianças, que está em situação de risco (...) tinha um aluno que às vezes chegava com o os olhos super vermelhos, achei que era questão de drogas. Conforme fui tendo proximidade com ele e pelo vínculo como educadora ele colocou que quando a bolsa atrasava, ele voltava para o lixo e ficava lá a noite toda, passava em casa, tomava banho e vinha para a oficina, e por isto aqueles olhos vermelhos, aquele cansaço ...” (educadora). Segundo eles, o contato com as crianças e adolescentes egressos do trabalho ou trabalhadores precoces em atividade mudou suas percepções. Hoje consideram e trabalho infantil um dano ao desenvolvimento da criança. “(...) crianças que fazem trabalho físico (...) vê como ela amadurece rápido, envelhece rápido (...) perde a inocência das brincadeiras (...) criança é criança tem direito ao lazer...” (educador). “(...) eu acredito que o adolescente só deve trabalhar depois que terminar os estudos” (educadora). “(...) o estudo abre a mente, transforma o individuo ...” (educador) A jornada ampliada é para os monitores uma atividade extra-classe que incentiva a criança a deixar a rua e desperta o interesse por uma profissão para o futuro, além de 174 contribuir para a melhoria da qualidade de vida da criança através da alimentação e da freqüência escolar e da família através da bolsa auxílio. “É uma atividade extra classe”.(educador). “É o horário que a criança vem para a oficina e se faz um trabalho, para tirá-las realmente da rua...” (educadora). “É o passo inicial, como na minha oficina de informática, ensino os meninos a prática da informática para que futuramente possam ter conhecimento em algumas coisas, despertam o interesse...”(educador). “(...) a gente luta, paga esta bolsa para que as crianças não estejam na rua trabalhando e estejam recebendo uma bolsa para estarem aprendendo, buscando e sendo educados”. (educador). “(...) e o primeiro passo, ela tira a criança de uma realidade de exploração e abre para ela uma perspectiva melhor de vida”. (educadora). Dentre os aspectos positivos apontados pelos monitores, sobressai a avaliação dos aspectos mais pertinentes. As relações sociais interindividuais meninos (as)-monitores (as), monitores-coordenação, além da formação, do contrato e descoberta da temática, da aprendizagem e da forma do educador lidar com a criança ou adolescente, e a relação família comunidade, são percepções que trazem à tona muito mais a dimensão do controle do que do processo de educativo em si. “(...) as crianças dão a motivação que preciso” (educadora). “(...) o relacionamento é que está sendo nota 10, a integração entre coordenação e monitores, com as crianças...” (educador). “(...) a gente conseguiu atrair mais crianças, fazendo com que ela tivessem quase 100% de presença em sala se aula, os meninos estão se interessando cada vez mais em ir para as oficinas”. (educador). “As oficinas funcionam, mesmo dentro das dificuldades que têm, há uma equipe e uma coordenação que sempre está ajudando, as formações, as capacitações, isto também funciona...” (educadora). “Os profissionais, os métodos que são usados, o dialogo, a orientação, a informática que atrai...” (educador). 175 “(...) ajuda no processo da sala de aula e até dentro da própria família, pois trabalha alguns valores (...) que dá retorno para a comunidade (...) a criança aprende o respeito desinibe e pergunta muito mais...” (educadora). Os aspectos apontados pelos monitores como negativos são aqueles inerentes ao funcionamento do PETI, tais como: a falta de recursos materiais, a falta de uma formação específica para o trabalho que executam, atraso de salários, as limitações de vales transportes, computadores ultrapassados, as limitações de material didático e o interesse da família apenas pela bolsa. A indicação dos monitores desses aspectos como negativos aponta para a necessidade de se investir mais na capacitação, na formação e valorização profissional dos mesmos, na aquisição de recursos, materiais didáticos e em trabalhos sócioeducativos, de apoio psicossocial e de geração de renda com as famílias – o que, por sua vez, demanda maiores investimentos financeiros por parte das administrações locais, já que parcela significativa desses recursos vem da esfera federal. Segundo o Manual de Orientações do PETI (2002), os recursos para manutenção da jornada ampliada são repassados para a administração municipal na rubrica custeio e vão diretamente para o Fundo Municipal de Assistência Social3. Na área urbana, o valor é de R$ 10,00 por criança ou adolescente e só pode ser utilizado para material de consumo (gêneros alimentícios, materiais escolares, esportivos, artísticos, pedagógicos e uoiformes) e ainda é permitido que 30% desses recursos sejam utilizados para pagamento de monitores desde que não se prejudiquem as ações essenciais. UM OLHAR SOBRE O DISCURSO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES DO PETI EM JOÃO PESSOA Das 12 crianças, 08 são meninos e 04 meninas, dos quais 05 estão na fase de préadolescência – 09 a 11 anos e 07 são adolescentes com idade entre 13 a 15 anos. A grande maioria apresenta defasagem entre a idade e a série escolar que cursa, com incidência elevada de reprovação e repetência. De todos, apenas um tem idade compatível com a escolaridade. Os demais têm defasagem escolar até 5 anos. Alguns só entraram na escola depois do PETI. 3 Segundo o Manual de Orientações, a jornada ampliada fica em gestão estadual somente quando o município não estiver habilitado para a gestão municipal. 176 O grupo familiar predominante é constituído de mais de 05 pessoas, que de 50% não contam com a figura paterna, e a mãe, na sua maioria, não trabalha, havendo inclusive alguns que são criados e mantidos pelos avós. Aproximadamente 70% das famílias têm como rendimento fixo apenas os recursos provenientes das bolsas do PETI. Para a maioria das crianças e adolescentes, há uma valorização do PETI por parte da família com ênfase significativa para as bolsas, compreendidas como ajuda financeira, ou, até, como única fonte de recursos da família. Outro aspecto enfatizado é do PETI como local de aprendizagem, ou simplesmente, como meio de ocupação da criança ou do adolescente. No que se refere ao nível de satisfação dessas crianças e adolescentes em relação ao PETI, observa-se que quase todos afirmam estar satisfeito com o Programa. Percebe-se que esse nível de satisfação supera algumas vezes o interesse da própria família, cuja motivação se dá basicamente pelo interesse na “bolsa cidadã. Existem alguns que dizem vir independentemente da bolsa, que estão ali porque gostam. Diante da constatação de que 70% dos entrevistados sobrevivem com bolsa do PETI, é compreensível que a bolsa ou, mais especificamente, o dinheiro seja o aspecto mais enfatizado. Ou seja, a família enfatiza a bolsa, os educandos o espaço escolar, cuja possibilidade de freqüência havia sido solapada pelo trabalho. “Ajudou mais minha família, eu não tinha muita roupa, e agora dá para comprar mais roupas, calçados e sapatos e botar comer em casa. E ai ajuda mais, não fica só minha tia e meu primo trabalhando. Se eu não tiver mais a bolsa eu vou continuar vindo, eu nunca falto, o meu irmão eu acho que vem também, mas pela minha mãe eu acho que não”. (Educando). “Fala que o PETI é bom, por causa dos estudos, ele fala: Estuda que você vai receber o dinheiro da bolsa e quando você crescer vai ser um advogado, delegado, eu quero ser delegado para prender os bandidos”. (Educando). “Minha mãe precisava do dinheiro, e eu quero aprender informática...” (Educando). Embora a maioria tenha ingressado no PETI através da mãe, há alguns que foram arregimentados em sinais de trânsito ou mesmo em atividades laborativas na rua. Há alguns que não trabalhavam, mas moravam nas proximidades do lixão do Roger, área de grande 177 vulnerabilidade a todo risco social, inclusive às piores formas do trabalho precoce – no lixão, por isso foram inseridas no PETI. As crianças e adolescentes confirmam isso. Quando perguntados que, se não estivessem no PETI, o que estariam fazendo, a grande maioria afirma que estaria trabalhando em serviço doméstico, ou em atividades na rua, trabalhos esses exercidos antes de ingressarem no Programa e que nem sempre eram exercidos com satisfação. “Estaria em casa varrendo, lavando os pratos e lavando roupas”. (Educanda). “Estaria no sinal”. (Educando). “Estaria na barraca lá do espaço cultural vendendo doces, balas, antes também eu olhava carro”. (Educando). “Eu estava cuidando de um bebezinho...” (Educanda). Assumem por unanimidade que muita coisa mudou com o ingresso no PETI: tiveram oportunidade de ampliar conhecimentos, sair da rua, comprar alguns utensílios domésticos e pessoais, ingressar na escola, já que antes não havia interesses dos pais. As falas dos educandos também enfatizam a bolsa, seu aspecto financeiro em detrimento da saída do trabalho e do ingresso no processo educativo composto pelo complexo escola e jornada ampliada. “Mudou muitas coisas, agora eu não tô indo para o sinal e estou estudando, ainda ganho dinheiro e ajudo minha avó”. (Educando) Todos dizem gostar das atividades executadas nas oficinas, demonstrando certo entusiasmo pela informática, esporte e lazer. “Bom, eu gosto muito da informática”. (Educanda) “Estou aprendendo a mexer no computador e aprendendo a escrever muito, eu não sabia escrever muito e agora tô aprendendo já. O professor do computador me ensina”. (Educando) “Gosto muito da sexta – feira que tem lazer, brinco, pulo corda, tem bambolê e futebol”. (Educanda) 178 Quanto aos que não gostam, as maiores incidências referem-se ao reforço escolar. Mas apesar de não gostarem do reforço, apresentam sugestões para melhorar as oficinas. Destacam os mesmos aspectos dos educadores, alegam a falta ou a insuficiência de materiais de consumo e didáticos, tais como computadores, cadernos e lápis. “(...) mais tem que ter computador novo, tem um estragado, tem que ter um pra cada um e não pode faltar mais nada”. (Educando) “Mais computadores”. (Educando) “Só os materiais”. (Educanda) “Só os materiais que agora estão faltando, caderno, lápis, lapiseira, folhas, e também tem que ajeitar um computador quebrado e ter mais computadores”. (Educando) Os educandos apresentam a Jornada Ampliada como apoio e reforço às tarefas escolares, contribuindo para a aprendizagem. Percebe-se que este é um fator que contribui muito para as crianças e os adolescentes valorizarem o Programa. “Melhorou em matemática, porque tinha conta que eu não sabia fazer, de dividir, e a professora me ensinou. E também em ciências e inglês”. (Educando). “Tudo, ler, escrever, quando cheguei aqui eu não sabia fazer meu nome todo, a professora me ensinou, agora eu sei fazer”. (Educando). “Assim, quando eu não era do PETI eu fazia alfabetização ainda, ai quando a professora passava tarefa eu ficava com medo e começava a chorar, porque não tinha ninguém para me ajudar, ai depois que começou o PETI eu trazia minhas tarefas, eu ainda estava na alfabetização estudando de tarde aqui”. (Educanda) A maioria conhece outras crianças que trabalham, mas, quando indagados sobre os motivos pelos quais não estão no PETI, nenhum deles soube informar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Podemos concluir que o PETI tem significativa importância para o público entrevistado. No que tange a equipe de monitores, podemos dizer que foi a inclusão no 179 Programa que possibilitou a todos a compreensão da questão do trabalho infantil. É nítida a falta de formação específica para a intervenção na questão. Tornando-se necessária a definição de um plano político-pedagógico para o trabalho com estas crianças e o fortalecimento do processo de capacitação dos monitores. Para as crianças e adolescentes, o PETI, em determinada circunstância, aparece como redenção econômica de grande parte das famílias, visto que a bolsa conferida constitui a única renda fixa destas. É possível constatar que ainda há um fosso entre o processo de escolarização formal e a jornada, fato que demandaria articulação para que se pudesse reverter o processo de defasagem, repetência e evasão desses meninos e meninas. O que implicaria também a qualificação tanto de professores como de monitores para contribuírem nesse processo. É notória a defasagem do valor destas bolsas, mas, para alguns, principalmente na figura da mãe, que é quem recebe a bolsa, não há interesse na participação do filho na jornada. O atraso da bolsa é utilizado como um instrumento de ameaça para a retomada do trabalho pelo educando. Além do que, nas mais das vezes, o valor obtido desse auxílio quase sempre é inferior aos rendimentos obtidos pela criança na atividade laborativa. O grande desafio do PETI no município de João Pessoa consta na limitação dos recursos, na ausência de um plano político-pedagógico, estrategicamente definido para o trabalho com as crianças e as famílias, algo que trace os objetivos do trabalho educativo desenvolvido nestas oficinas, não só do ponto de vista do reforço da aprendizagem escolar, mas de resgate da fase lúdica de vida usurpada dessas crianças. Necessário seria chegar-se às famílias dessas crianças com efetiva parceria, participação e promoção humana. O trabalho com as famílias demanda apoio psicossocial e um programa efetivo de geração de renda e de formação profissional, particularmente porque há arraigada uma cultura da naturalização do trabalho dos filhos que também é visto como tábua de salvação para as necessidades do grupo familiar. O trabalho precoce dos filhos, na maioria dos casos, é uma forma de compensar o desemprego dos pais que estão à margem do mercado de trabalho, porque não têm profissão nem qualificação, vivendo de “biscates” e de trabalhos eventuais, de baixíssima remuneração. Incluir essas famílias no processo permanente de capacitação para ocupação e renda parece tão vital quanto atender uma criança no tempo integral. Este constitui o meio 180 indispensável para as famílias. A Prefeitura, ao longo desses anos, tem realizado alguns cursos de qualificação profissional e artesanato para as mães e pais do PETI. A administração municipal não dispõe de avaliação sobre a contribuição desses cursos na melhoria das condições de vida dessa população. Assim como também não há uma sistematicidade na continuidade das mesmas. Deste modo, às vezes, os recursos utilizados são desperdiçados, porque há descontinuidade das ações e falta de acompanhamento. Na verdade apenas uma vez foram repassados recursos pelo Governo Federal para este tipo de atividade, não havendo incentivo para implementação de ações decorrentes desses cursos. Na parceria entre Município e Governo Federal, é inegável a sobrecarga municipal, a quem compete a execução, controle, acompanhamento e maior investimento financeiro na manutenção da Jornada Ampliada. Cada criança atendida custa para a Prefeitura Municipal R$ 45,00 (quarenta e cinco reais); desses, R$ 10,00 (dez reais) são repassados pelo Governo Federal. O Programa de Erradicação do trabalho Infantil precisa de ênfase na inclusão social de famílias, e não apenas na ajuda econômica e na atenção à criança. Além disso, também carece de articulação da jornada ampliada com a escola. REFERÊNCIAS ARREGUI, C. C. (org.). Erradicação do trabalho infantil: dimensionando as experiências de Pernambuco, Mato Grosso do Sul e Bahia. São Paulo: EDUC; IEE/PUCSP:FINEP, 2000. BRASIL. Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Diretrizes para formulação de uma política nacional de combate ao trabalho infantil. 3 ed. Brasília, 2000. ______. Trabalho infantil não é brincadeira. 1994 – 2002. Brasília, 2003. ______. Ministério da Previdência e Assistência Social. Diretrizes e normas para implementação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Brasília, 1997. ______. Ministério da Previdência e Assistência Social. Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI: Manual de Orientações do PETI. 1. ed. Secretaria de Estado de Assistência Social: Brasília,. 2002. 181 CAMPOS, M. S. [et al]. Trabalho infantil, desafio à sociedade. Análise do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – 1996-97. Brasília, 1999. PARAÍBA. Secretaria do Trabalho e Ação Social. Fundação de Ação Comunitária.–FAC. Aglomerados subnormais. Diagnósticos e sugestões. Versão 2002. João Pessoa, 2002. PREFEITURA MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA. Censo meninada. João Pessoa, 2003. ______. Censo meninada. João Pessoa, 2000. ______. Censo meninada. João Pessoa, 1997. ______. Centro de Referência da Assistência Social. Casa da família. João Pessoa, 2003. ______. Projeto Multisetorial Integrado – PMI. Projeto de urbanização dos vales do Jaguaribe e Sanhauá – URBVALE. João Pessoa, 199?. 182 CAPÍTULO 16 TRABALHO PRECOCE E ESCOLARIZAÇÃO: UM COTIDIANO DE ADVERSIDADES Olívia Maria C. G. de Sousa4 Maria de Fátima Pereira Alberto5 Este artigo enfoca uma questão que nas últimas três décadas tem sido alvo de discussão e preocupação no âmbito nacional e internacional: o trabalho de crianças e adolescentes, cuja prática caracteriza o que se considera como trabalho precoce (Alberto, 2002). O trabalho precoce constitui uma temática ampla, que vem suscitando debates tanto em relação às questões dos Direitos Humanos, especialmente na linha dos direitos sociais determinados pela legislação em vigor; quanto em termos das implicações biopsicossociais, as quais abrangem aspectos como: desenvolvimento físico e psicológico, saúde, lazer e escolaridade. Este último, o principal foco do nosso estudo, tem como objetivo abordar as conseqüências negativas que o trabalho precoce traz para o processo de escolarização das crianças e adolescentes que desenvolvem atividades de trabalho. Para além das implicações no processo de escolarização, os indivíduos que se inserem precocemente no mundo do trabalho também se encontram mais predispostos a uma série de riscos. Riscos estes que os tornam suscetíveis a situações de perigo e exploração, tais como: abuso por parte do cliente; roubo ou extorsão de mercadorias e ganhos; acidentes de trânsito; perseguição da polícia e negociantes; vulnerabilidade aos traficantes de drogas e ao uso de substâncias tóxicas, como a cola de sapateiro; aquisição de doenças, provocadas pela coleta do lixo; danos psicológicos pelo isolamento em trabalhos realizados em casa; lesões musculares e vertebrais por carregar cargas pesadas (Marcus & Harper, 1998). 4 Psicóloga, Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba. Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pósgraduação em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho – GPST/UFPB e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB. 5 183 Retomando os aspectos relacionados à escola, convém colocar que as pesquisas e os estudos que versam sobre a escolarização de crianças e adolescentes, trabalhadores precoces, apontam os efeitos negativos que a necessidade de trabalhar exerce na escolaridade desses indivíduos. De acordo com tais estudos, não é raro, entre os alunos trabalhadores precoces, haver registrado, em seu histórico escolar, de experiências como: repetir de série, ser reprovado no final do ano letivo, abandonar os estudos, ou, ainda, apresentar nível de escolaridade aquém da idade, ou seja, estar em defasagem idade-série (Fausto & Cervini, 1991; Rizzini e cols. 1996; Kassouf, 2002). No Brasil, a pesquisa sobre trabalho infantil, realizada pelo IBGE como suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílio (PNAD,2001) e em convênio com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mostrou que crianças e adolescentes, na faixa etária de 5 a 17 anos, que trabalham apresentam um nível de escolarização menor do que aqueles que não trabalham, fato que ocorre em todas as regiões e Unidades da Federação Brasileira. Na Paraíba, vários estudos realizados sobre o trabalho de crianças, nas cidades de João Pessoa, Bayeux, Santa Rita e Sapé, identificaram as implicações do trabalho precoce na escolarização de crianças e adolescentes, conforme mostram os relatos abaixo: • “(...) a grande dificuldade em acompanhar os estudos e melhorar o rendimento está diretamente relacionado ao trabalho” (Silva, Silva & Araújo, 2003, p.194); • “(...) diante das tarefas do trabalho, eles acabam afastando-se da escola” (Silva, Estrela & Kulesza,2003, p.139); • “(...) se ressentem mais ainda pelo fato de que o trabalho, aliado à vida nas ruas, dificulta a escolaridade” (Lopes, Alberto & Dantas, 2003, p. 169); • “(...) o cansaço físico e mental provocado pelo trabalho precoce dificulta a execução das tarefas escolares e não permite concentração no momento da explicação em sala de aula” (Silva & Alberto, 2003, p. 182). Assim, tem-se constatado que as implicações que interferem no processo de aprendizagem propriamente dito, em sala de aula, são reflexos do tempo dedicado ao trabalho, em detrimento do estudo, o que contribui para constantes faltas às aulas, tempo 184 restrito para estudar e se dedicar às tarefas de casa, dificuldades de concentração nas aulas e de compreensão dos conteúdos, e, conseqüentemente, desinteresse pelos estudos (Alberto, 2002; Estrela 2004). Por outro lado, a despeito das adversidades em conciliar trabalho e estudo, este último tem uma dimensão simbólica muito significativa para os trabalhadores precoces, uma vez que representa o meio, por excelência, de mudar de vida e conseguir algo (trabalho, emprego) melhor no futuro. Diante do exposto, urge ressaltar que, além das implicações adversas que o trabalho imprime à escolaridade dos trabalhadores precoces, devem-se considerar, ainda, aquelas que exercem repercussão a longo prazo, ou seja, que refletem na futura inserção no mercado de trabalho, tendo em vista que a criança e o adolescente que trabalham, em detrimento do estudo, têm mais possibilidade de tornar-se um adulto com baixa qualificação profissional, e, conseqüentemente, com maiores dificuldades de desenvolver uma atividade socialmente mais valorizada e de maior remuneração. Nesse sentido, as expectativas de futuro dos trabalhadores precoces, que vêem no estudo uma forma de melhoria de vida (se formar, conseguir um emprego bem remunerado), são gradativamente suplantadas pelas próprias condições materiais a que estão submetidos. Destarte, em que pesem os diferentes contextos sócio-culturais, os estudos indicam que indivíduos de baixa escolaridade levam, como grupo, as maiores desvantagens (Patto, 1973; Cervini & Burger, 1991; Bourdieu & Passeron, 1992; Rizzini e cols., 1996; Kassouf, 2002; Alberto, 2002). A luta desigual que crianças e adolescentes, trabalhadores precoces, travam na rotina cansativa de trabalho e escola, esta última pode oferecer importantes contribuições na tarefa de erradicar essa situação. A escola, além de constituir um espaço privilegiado de formação e socialização básicas, de transmissão dos conceitos científicos, favorece o desenvolvimento intelectual e cognitivo do indivíduo, assim como sua inserção social. De acordo com Vygotsky (1989), o ensino escolar desempenha um papel importante na formação dos conceitos de uma forma geral e, principalmente, dos conceitos científicos, pois viabiliza o conhecimento sistemático sobre aspectos que ainda não se encontram na vivência direta do indivíduo, como o conhecimento científico construído e o conhecimento acumulado pela humanidade. Além disso, o processo de ensino escolar proporciona o 185 desenvolvimento das funções psicológicas superiores – aquelas que se referem ao modo de funcionamento psicológico tipicamente humano, como: capacidade de pensamento, linguagem, planejamento, memória voluntária, imaginação – através de um aprendizado que é mediado pelos professores e pelos companheiros. Ao explicar a relevância do ensino transmitido na escola para o processo de desenvolvimento do indivíduo, Vygotsky (1989), faz uma importante distinção entre os conhecimentos apreendidos na experiência pessoal, concreta e cotidiana, os quais constituem os conceitos espontâneos, e os conhecimentos científicos ou elaborados, que são construídos no contexto escolar. Os conceitos aprendidos na escola, assim como as atividades desenvolvidas nesta, introduzem novos modos de operação intelectual, abstrações e generalizações sobre a realidade. Desse modo, o acesso ao conhecimento sistemático possibilita que o ser humano se transforme. E essa transformação lhe permite aprender a ler e a escrever, obter o domínio de formas complexas de cálculos, construir significados a partir das informações descontextualizadas, ampliar seus conhecimentos, lidar com conceitos científicos hierarquicamente relacionados, lhe tornando possíveis novas formas de pensamento, de inserção e de atuação em seu meio (Rego, 1995). Posto que o aprendizado escolar potencializa o desenvolvimento intelectual do indivíduo, e que o trabalho precoce tem implicações na escolaridade das crianças e adolescentes trabalhadores precoces, pode-se considerar que a não-ida à escola, em detrimento do trabalho, em que não há a realização de atividades educativas, limita os meios pelos quais estes indivíduos podem desenvolver funções psicológicas cada vez mais complexas, bem como condições para a construção de novos conhecimentos e, conseqüentemente, de atuação e transformação de seu meio social. Destarte, a importância da formação escolar também se insere no caráter de centralidade da Educação no tocante à erradicação do trabalho infanto-juvenil. De acordo com a OIT (2001), o estabelecimento de programas sócioeducativos consiste num mecanismo não só de preparação para o conhecimento científico, cultural e político, mas, principalmente, necessário para o desenvolvimento integral do indivíduo. Em se tratando da educação escolar, propõe-se o desenvolvimento de políticas públicas que propiciem o ingresso ou o reingresso da criança e do adolescente na escola e, 186 principalmente, que garantam seu sucesso escola. Sob essa perspectiva, a escola, e não o trabalho, passa a ser o palco de negociações na construção do conhecimento do indivíduo, preparando-o para exercer sua cidadania de forma crítica e participativa, bem como sua futura colocação no mercado de trabalho. REFERÊNCIAS ALBERTO, M. P de. As dimensões subjetivas do trabalho precoce de meninos e meninas em condição de rua de João Pessoa – PB. 2002, 300 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. 2002. BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. CERVINI, R.; BURGER, F. O menino trabalhador no Brasil urbano dos anos 80. In: FAUSTO, A.; CERVINI, R. (Orgs.). O trabalho e a rua: crianças e adolescentes no Brasil urbano dos anos 80. São Paulo: Unicef, Flacso: Cortez, 1991. p. 17-46. ESTRELA, M. E. Trabalho infanto-juvenil enquanto violência aos Direitos Humano: O caso dos meninos trabalhadores na cultura do abacaxi. Monografia de Especialização nãopublicada, Curso de Especialização em Direitos Humanos, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2004. FAUSTO, A.; CERVINI, R. (Orgs.). O trabalho e a rua: crianças e adolescentes no Brasil urbano dos anos 80. 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Intistuto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Departamento de Emprego e Rendimento. Trabalho infantil - 2001. Rio de Janeiro: IBGE, 2003. REGO, T. C. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis: Vozes, 1995. RIZZINI, I e cols. A criança e o adolescente no mundo do trabalho. Rio de janeiro: Editora Univertaria/ Santa Úrsula, 1996. RIZZINI, I. Pequenos trabalhadores do Brasil. In: DEL PRIORE, M. (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2002. p. 376- 406. SILVA, G. F.; SILVA, R. R. G.; ARAÚJO, A. J. S. O trabalho precoce nos mercadinhos do Mutirão em Bayeux e as conseqüências da vida escolar dos trabalhadores. In: ALBERTO, M. de F. P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. SILVA, J. M. N.; ESTRELA, M. S.; KULESZA, T. M. Percepção dos adolescentes e crianças trabalhadores no cultivo do abacaxi sobre a repercussão do trabalho no processo de aprendizagem. In: ALBERTO, M. de F. P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. SILVA, J. R.; ALBERTO, M. de F. P. A face oculta do trabalho precoce e suas conseqüências no desenvolvimento escolar: um estudo de caso na Casa Menina Mulher. In: ALBERTO, M. de F. P. (Org.). Crianças e adolescentes que trabalham: cenas de uma realidade negada. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 188 CAPÍTULO 17 FORMAÇÃO E TRABALHO PARA AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES DAS CLASSES POPULARES Orlando Júnior Viana Macedo1 Maria de Fátima Pereira Alberto2 No presente artigo, pretende-se discutir o trabalho e a formação profissional de adolescentes das classes populares. O que se justifica pelo fato de tal aspecto ser bastante elucidativo na tentativa de se compreender a concepção de infância e adolescência, sobretudo das classes populares, que vêm se fazendo presentes em nossa sociedade. Para tal, será traçado um breve histórico das propostas de formação destinadas aos adolescentes das classes populares para então se problematizar tais iniciativas, na tentativa da desconstrução de concepções excludentes e exploratórias. Os primeiros sinais de preocupação com a formação do indivíduo, de acordo com Pillotti e Rizzini (1995), fizeram-se presentes através dos Asilos da Infância dos Menores Desvalidos de 1854, sendo que esta se deu no sentido de torná-lo útil para a sociedade e para o Governo. Como assinala Shueler (1999), havia um consenso entre os dirigentes do Estado Imperial, no que se refere à visão de que a educação era capaz de produzir riquezas, uma vez que incutiria nas crianças e nos jovens o amor ao trabalho. Vale salientar que os ofícios aprendidos por estas crianças, através desse processo de formação, não traziam nenhuma possibilidade de inserção em postos de trabalhos bem remunerados, não possibilitavam ascensão social, mantendo, assim, o perverso ciclo vicioso da pobreza. Em 1909, foram criadas as Escolas de Aprendizes Artífices, eram destinadas tanto aos “menores viciosos”, em conflito com a lei, quanto aos que fossem encontrados sós em 1 Psicólogo, Mestrando em Psicologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFPB. Doutora em Sociologia/UFPE, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pósgraduação em Psicologia Social da UFPB, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho – GPST/UFPB e Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Precoce/UFPB. 2 189 via pública, por falta ou omissão dos pais. Essas crianças eram institucionalizadas e encaminhadas ao trabalho, pela própria instituição que os abrigava, a troco do seu sustento. Pillotti e Rizzini (1995) chamam atenção para o fato de essa intervenção do Estado não se realizar como uma forma de universalização de direitos, mas de categorização e de exclusão, sem modificar a estratégia de manutenção da criança no trabalho, sem deixar de lado a articulação com o setor privado e sem combater o clientelismo e autoritarismo. No plano internacional, o direito do trabalhador ganha espaço nas discussões humanísticas, sendo criada, em 1919, a Organização Internacional do Trabalho – OIT, que, neste mesmo ano, expediu a Convenção nº 5, que proibia o trabalho de menores de 14 anos em estabelecimentos industriais. Além da OIT, na década de 20 do século passado, foi fundada a Associação Brasileira de Educação – ABE e o Conselho Nacional de Educação em 1927, sendo que, nesse ano, foi realizada, também, reforma educacional que organizou o ensino profissional. Em 1927, foi promulgado, sob forma de decreto, o Código de Menores, que incorporava tanto uma visão higienista de proteção do meio e do indivíduo como a visão jurídica repressiva e moralista. De acordo com Pillotti e Rizzini (1995), nesse Código, a orientação prevalecente da política para as crianças e adolescentes se coloca como um “problema de menor”, tendo-se dois encaminhamentos, o abrigo e a disciplina, a assistência e a repressão, havendo emergência de novas obrigações do Estado em cuidar da infância pobre com educação, formação profissional, encaminhamento e pessoal competente. Ou seja, surgiu uma preocupação com a infância e a juventude, mas pelo fato de estes, em um futuro próximo, poderem vir a compor as “classes perigosas”, devendo, assim, as crianças “em perigo” ter suas virtualidades sob controle permanente. Dez anos mais tarde, a Constituição Outorgada de 1937 dispôs que era dever do Estado propiciar educação à infância e à juventude pobres. Como fomento à profissionalização dos filhos dos operários, estabeleceu a obrigação de as indústrias e os sindicatos econômicos criarem, na esfera de suas especificidades, escolas de aprendizes destinadas especificamente aos filhos de seus operários ou associados. Passa, então, a educação profissional a receber colaboração das classes produtoras. 190 Essa constituição destinou a formação profissional para as classes menos favorecidas (art. 129), respaldando a dualidade intrínseca à formação social brasileira, ou seja, trabalho manual para uns e trabalho intelectual para outros. De acordo com o Centro Internacional de Investigação e Documentação sobre Formação Profissional – CINTERFOR (1998), a discussão sobre formação e qualificação profissional só veio a se iniciar no Brasil, de maneira mais consistente, nos anos cinqüenta. De acordo com tal documento, a educação pública não tinha capacidade de resposta, com a rapidez requerida, às necessidades do mercado de trabalho emergente e especifica de cada setor industrial. Nesse contexto, o governo promoveu a expansão das entidades setoriais: o Serviço de Aprendizagem Industrial (SENAI) e Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), onde tais entidades tinham como função proporcionar capacitação à força de trabalho, na quantidade requerida. O que veio a reforçar a segmentação da educação brasileira em duas partes: uma educação formal, pela qual se possibilita acesso a um conjunto básico de conhecimentos, cada vez mais amplo, à medida que se avança nos estudos; e uma educação para o trabalho, pela qual os alunos recebem um conjunto de informações relevantes para o domínio do seu ofício, sem uma educação aprofundada que possibilite condições a alunos de prosseguirem seus estudos ou qualificarem-se em outros domínios. Ou seja, passou-se a proporcionar uma formação geral ou intelectual para as elites e apenas um ensino primário e profissional para as classes populares, seguindo a lógica de formar os filhos das classes dominantes para continuarem dominando e os filhos das classes dominadas para continuarem se deixando dominar. Vale lembrar que, já em 1967, a Constituição havia reduzido a idade da proibição para o trabalho, que passou a ser 12 anos, visando incorporar mais cedo mão-de-obra ao mercado de trabalho, reforçando a estratégia de utilização precoce da mão-de-obra infantil, que, na sua totalidade, era composta pelos filhos das classes trabalhadoras. No período da Nova República, mais especificamente no governo Sarney (1986), foi desenvolvido um programa intitulado “Bom Menino”, cuja essência era encaminhamento de crianças e adolescentes das classes populares para o trabalho, mas que, na prática, de acordo com Guareshi (1988), tal programa se justificava como uma 191 prevenção à marginalidade, ou seja, novamente a concepção de que é melhor as crianças e adolescentes trabalharem para se evitar a criminalidade. Atualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, no que se refere ao trabalho, em seu capítulo V, trata do direito à profissionalização e à proteção no trabalho. No Art. 60º, proíbe qualquer trabalho a menores de catorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz. E, no Art 63º, garante formação técnico-profissional que respeite o acesso e freqüência obrigatória ao ensino regular, a compatibilidade com o desenvolvimento do adolescente e horário especial para o exercício das atividades. A condição de aprendizagem é aquela em que o adolescente3 se profissionaliza trabalhando, através do Programa Adolescente Aprendiz, ou seja, dentro de um processo educacional previsto em lei, em que lhe são ministrados, pelos órgãos competentes (Senai, Senac e Senar ou Escolas Técnicas de Educação e organizações não-governamental), cursos que têm por objetivo levar-lhe o conhecimento teórico-prático de um determinado ofício, cujo exercício exige uma pré-qualificação. No que se refere aos aspectos legais, através do Programa Adolescente Aprendiz, percebe-se uma preocupação em relação ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social dos adolescentes, bem como a compatibilidade do trabalho que lhe é ofertado com as especificidades desta fase de desenvolvimento. Teoricamente, essa nova proposta de formação vai de encontro com todas as políticas desenvolvidas para os adolescentes das classes populares, uma vez que, historicamente, sempre se fez presente uma concepção excludente e exploratória. No entanto, estudos que abordam o sentido atribuído pelos adolescentes à formação4 sinalizam para o caráter disciplinador e para o fato de tal programa corresponder pouco às demandas dos adolescentes das classes populares, parecendo preocupar-se mais com as demandas do mercado. Percebe-se, pois, que a exploração da mão-de-obra infanto-juvenil, ocultada sob o discurso da filantropia, sempre foi importante elemento de contenção dos custos do trabalho, bem como o fato de as propostas de formação, sobretudo para as crianças e 3 Recentemente, Emenda Constitucional alterou a idade de 14 a 18 anos para 14 a 24 anos. Pesquisa de mestrado em andamento, desenvolvida pelo autor do artigo, intitulada o Sentido da Formação para o Trabalho e as Expectativas em Relação ao Futuro por parte dos Adolescentes Aprendizes. 4 192 adolescentes das classes populares, sempre aparecerem como resposta às necessidades do mercado, ou seja, seguindo os ditames do capital. Fazem-se assim necessárias reflexões mais cuidadosas acerca da formação profissional, pois, como coloca Franco (1998), esta pode ser vista como uma resposta estratégica, porém polêmica, aos problemas postos pela globalização, pela reestruturação produtiva, pela busca da qualidade e competitividade, pelas transformações do mundo do trabalho e pelo desemprego estrutural. Este autor considera que Do ponto de vista dos empresários, a formação profissional tem um endereço claro, aumentar a produtividade do trabalho, a qualidade e a competitividade dos produtos, gerar riqueza. Há ainda uma questão de poder, da visão de quem vê e não é visto, de quem decide quais devem ser as mudanças, em que tempo e espaço, com que objetivo, com que meios, em que condições, com que trabalhadores. (Franco, 1998, p.102). Esse mesmo autor coloca que, em relação aos trabalhadores e às suas necessidades de sobrevivência, parece haver menor clareza quanto às opções concretas de formação profissional para a aquisição de novas habilidades e conhecimentos, para valorização da sua força de trabalho. Portanto, a problemática da formação profissional permanece na ordem do dia e traduz as diferentes visões e estratégias de instrumentalização do saber, do trabalho, e suas repercussões sobre a qualidade das relações das pessoas. Nesse sentido, Frigotto considera que: (...) é crucial mostrar que as propostas dominantes de políticas educacionais e de formação técnico-profissional de qualificação, requalificação e reconversão centrada nas perspectivas de habilidades básicas e das competências para a empregabilidade ignoram ou desprezam as relações de poder profundamente assimétricas, os limites do desenvolvimento industrial capitalista...Ou seja, propostas educacionais, tais como estão afirmadas hoje no Brasil, desvinculada de uma proposta democrática e pública de desenvolvimento, geração de emprego e renda e de uma alternativa de relações sociais de novo tipo, reduzem-se, dominantemente, a um invólucro de caráter ideológico. (Frigotto, 2001, p.29). 193 Como questiona o autor supracitado, não seria interessante pensarmos a educação e a formação profissional de adolescentes desatreladas de objetivos interesseiros, estreitos e imediatistas, conseqüentes do mundo capitalista, que atendem aos modelos pedagógicos das competências, habilidades e valores subordinados ao capital? Não seria interessante buscarmos, assim, uma educação e formação centradas no desenvolvimento das múltiplas dimensões da vida humana, que levem em consideração os trabalhadores do setor formal, informal, bem como os desempregados, procurando-se educar não só para o trabalho, mas, principalmente, para a vida, para a cidadania. Pois, como bem coloca Paiva (2001), (...) não se trata apenas de qualificar para o trabalho em si, mas para a vida na qual se insere o trabalho, com uma flexibilidade e um alcance suficiente para enfrentar o emprego, o desemprego e o auto-emprego e para circular com desenvoltura em meio a muitas “idades” de tecnologia, com a possibilidade de entender e usar máquinas mais modernas e de fazer face a suas inúmeras conseqüências na vida social e pessoal. (p. 56). Faz-se mister, portanto, pensarmos uma aprendizagem capaz de realmente articular teoria e prática, possibilitando ao aluno conhecimento do trabalho produtivo, de forma a extinguir a indesejável ruptura entre trabalho manual e intelectual. Ou seja, uma educação que se funde no pressuposto de uma forma educativa que faça emergir um novo homem, um indivíduo plenamente desenvolvido, em oposição àquele qualificado unilateralmente para o mercado de trabalho. REFERÊNCIAS CINTERFOR. Formacion y trabajo. Rio de Janeiro: SENAI/DN, 1998. FRANCO, M. C. Formação profissional para o trabalho incerto: um estudo comparativo Brasil, México e Itália. In: FRIGOTTO, G. (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final do século. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. FRIGOTTO, G. (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final do século. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. ______. Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática. In: FRIGOTTO, G. Neoliberalismo, qualidade total e educação: visões críticas. Petrópolis: Vozes, 1995b. 194 GUARESHI, P. A. O “programa bom menino” ou de como preparar mão-de-obra barata para o capital. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 27, 1988. PAIVA, V. Qualificação, crise do trabalho assalariado e exclusão social. In: GENTILI, P.; FRIGOTTO, G. (Org.). A cidadania negada: políticas de exclusão na educação e no trabalho. São Paulo: Cortez, 2001. PILLOTTI, F.; RIZZINI, I. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Universitária/Santa Úrsula, 1995. SHUELER, A. F. M. Crianças e escolas na passagem do Império para República. Revista Brasileira de História, Ano 19, n. 37, p.59-84. São Paulo, 1999.