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OS JOGOS, AS BRINCADEIRAS E AS CRIANÇAS
Elizabeth Lannes Bernardes
Faculdade de Educação/UFU
Doutoranda da Faculdade de Educação/UNICAMP
[email protected]
A finalidade desse estudo é compreender o significado dos jogos e das
brincadeiras para as crianças. Para tanto, será necessário entrecruzar passado,
presente e futuro numa perspectiva interdisciplinar e dialogar com a psicanálise, a
sociologia, a antropologia, a literatura, psicologia, a filosofia, e a história. Para Sonia
Kramer (1996) a infância é um campo de investigação teórico - metodológico de
natureza interdisciplinar:
Estudar a infância exige, como, vimos, consciência interdisciplinar,
mas exige, também o entendimento que a interdisciplinaridade,
longe de significar justaposição de perspectivas teóricas diversas, só
pode se gerada se as ciências humanas e sociais se tornarem
dialéticas, tomando o sujeito social – neste caso, a criança – no
âmago da vida social e da pesquisa. (1996, p.28).
A visibilidade das crianças nas investigações acadêmicas, nos meios de
comunicação, nas políticas públicas demonstra a relevância social da infância nas
décadas finais século XX e anos inicias do XXI (Sarmento & Pinto, 1997).
Entretanto, essas visibilidades sobre a infância nem sempre existiram. A infância
como construção social e histórica surge e desenvolve-se entre os séculos XVI e
XVIII, como demonstra Philippe Ariès, em sua pesquisa pioneira, anunciada em
1960, A História social da criança e da família. Para esse autor, o mundo medieval
ignorava a infância, porque a partir do momento em que a criança conseguia
sobreviver sem os cuidados da mãe ou da ama, ela era integrada ao mundo dos
adultos, com os quais aprendia a brincar, a jogar e a arte de um ofício. A sociedade
medieval representava a crianças como adultos em miniatura.
Nesta época, as atividades lúdicas dos adultos não apresentavam distinção
em relação às desenvolvidas pela criança, compartilhavam dos mesmos jogos e
brinquedos, inclusive, com a presença ativa dos pequenos nas festas tradicionais e
sazonais, como o Natal, das quais participavam junto a comunidade, fato registrado
no diário de Héroard, médico de Luis XIII, que aos três anos, “viu a acha de Natal
ser acesa, e dançou e cantou pela chegada do Natal” (ARIÈS, p.97); na
comemoração no dia de Reis, era uma criança que distribuía o bolo de Reis a todos
os participantes e, segundo o médico do futuro rei da França , a 5 de janeiro de
1697, o infante Luis XIII , foi “Rei pela primeira vez”; na festa de São João, cabia às
crianças pequenas acenderem a fogueira; na festa da Terça-feira Gorda , as
crianças e a juventude traziam seus galos de briga.
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Homens, mulheres e crianças brincavam de cabra-cega, guerra de bolas de
neve, jogos de salão, como os de rima e de mímica, ouviam os contos de fantasmas,
lobisomens e do Barba Azul, diante dos quais as crianças ficavam apavoradas.
Assim, observa Ariès (1981):
Numa tapeçaria do início do século XVI, alguns camponeses e
fidalgos, estes últimos vestidos de pastores, brincam de uma
espécie de cabra-cega: não aparecem crianças. Vários quadros
holandeses da segunda metade do século XVII representam
também pessoas brincando dessa espécie de cabra-cega. Num
deles aparecem algumas crianças, mas elas estão misturadas
com os adultos de todas as idades: uma mulher, com a cabeça
escondida no avental, estende a mão aberta nas costas. Luiz XIII
e sua mãe brincavam de esconde-esconde. Brincava-se de cabracega na casa de Grande Mademoiselle, no Hotel de Rambouillet.
Uma gravura de Lepeautre mostra que os camponeses adultos
também gostavam dessa brincadeira (p.50).
Ao se comparar as imagens descritas por Philippe Ariès
no jogo de cabra-cega com o quadro de Orlando Teruz,
que retrata a mesma brincadeira nos anos iniciais de
1930, constata-se que na pintura do artista brasileiro
aparecem somente meninas-adolescentes brincando de
cabra-cega. Homens, mulheres e crianças não
compartilham mais dos mesmos jogos e divertimentos,
e a brincadeira de cabra-cega passa a ser um reduto do
sexo feminino infanto-juvenil.
Acompanhando os estudos históricos, observa-se que a diferença de gênero
no lúdico é uma construção cultural que se consolida na sociedade
capitalista,porque, em torno dos anos de 1600, (...) a boneca não se destinava
apenas às meninas. Os meninos também brincavam com elas. Dentro dos limites da
primeira infância, a discriminação moderna entre meninos e meninas era menos
nítida: ambos os sexos usavam o mesmo traje, o mesmo vestido. (ARIÈS, ibid. p.
91-92).
O historiador Michel Manson (2002) compartilha da mesma reflexão de
Philippe Ariès (1981), apontando que Luis XIII brincava com bonecas e de fazer
comidinhas com utensílios em miniatura, de prata, chumbo, cobre ou barro verde.
Héroard constata que o delfim:
(...) brinca com uma pequena marmita de cobre que a ama lhe
dera, quer cozinhar uma sopa com carneiro, toucinho e couves;
coloca-se aos pés do seu leito. [...] [Em outro dia] mostrou desejo
de preparar uma papa no seu tachinho de prata. Tínhamos
dificuldade em obter leite: pede-me que envie alguém à cozinha,
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onde diz haver grande quantidade. Pergunto-lhe de quanto
precisa. “Six plene chaudiere” [seis tachos cheios]. (MANSON,
2002, p. 129)
Entretanto, em torno dos sete anos, acontecia uma mudança na vida dessas
crianças, particularmente para o menino. Este abandonava o vestido comprido
usado na infância e passava a usar calças curtas e gibão; era proibido brincar com
bonecas e de carreteiro. Além disso, sua educação ficava sob a responsabilidade
dos adultos do sexo masculino. O menino nobre aprendia a atirar, a caçar, a montar
a cavalo e a jogar jogos de azar. As meninas, em contrapartida, continuavam, por
muito tempo, a ser tratadas como pequenas mulheres. As diferenças de gênero,
tênues durante a primeira infância, tornaram-se mais aprofundadas. Para Philippe
Ariès (1981.p.81):
O sentimento da infância beneficiou primeiro meninos, enquanto
as meninas persistiram mais tempo no modo de vida tradicional
que as confundia com os adultos: seremos levados a observar
mais uma vez esse atraso das mulheres em adotar as formas
visíveis da civilização moderna, essencialmente masculina.
Em relação aos divertimentos, jogos e brincadeiras constata-se que a partir do
século XIV, moralistas e pregadores, por um lado, condenavam todas as práticas de
entretenimento, ou seja, a dança, a música, o teatro, os jogos de azar; a população,
por outro lado, era indiferente a essas críticas. Entretanto, entre os séculos XVII e
XVIII, surge uma atitude moderna em relação aos jogos, às brincadeiras e às
crianças, ou seja, há preocupação em preservar o aspecto moral e psicológico da
infância, proibindo os jogos de azar para as crianças.Também instrutores de tênis e
bilhar foram proibidos de ministrarem aulas durante o período escolar, pois esses
jogos eram acompanhados de apostas.Assim, distingue-se o universo da criança e o
do adulto.
As paulatinas mudanças em relação aos jogos e também à exclusão das
crianças dos cafés, clubes e pubs, fizeram com que o comportamento cosmopolita
fosse considerado apropriado somente para os adultos.Para Richard Sennett (1988)
“/.../a gradativa preocupação com o estatuto especial da infância demarcou certos
limites para a expressão pública. Pode-se dizer que tais limites consideram /sic/ em
que o domínio público era o lugar reservado na sociedade para o jogo
adulto”.(p.123).
O trabalho de Philippe Ariès teve grande impacto nos meios acadêmicos e foi
fonte de inspiração para um grande número de pesquisas, entretanto, recebeu
várias críticas. Entre elas, o fato de ter fundamentado suas teses em evidências
iconográficas e que essas expressavam os valores e atitudes de um período
histórico. Porém, esse historiador tem o mérito de mostrar que a infância é uma
construção social e histórica e não um fenômeno natural e universal.
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Seguindo essa trilha, Tizuko Kishimoto (1999), no texto Jogos Tradicionais
Infantis, analisa a imagem da criança, nos tempos do engenho de açúcar, e o seu
brincar,mostrando paralelamente as origens étnicas das brincadeiras infantis.
Fundamentando-se nos estudos de Câmara Cascudo, essa autora evidencia que
grande parte das práticas lúdicas da infância brasileira,tais como adivinhas,
parlendas, cantigas de roda, histórias de príncipes, rainhas, assombrações, bruxas e
brinquedos, como a pipa, o pião, o bodoque e os jogos de pedrinhas, a amarelinha,
entre outros, foram trazidos pelos primeiros portugueses, e que a miscigenação
índio-branco-negro e a falta de documentação sobre os jogos dos meninos negros,
no período colonial, dificultam a especificação da influência africana no folclore
infantil. Sabe-se, porém, que pela linguagem oral, a mãe-preta transmitiu às crianças
os contos, as lendas, os mitos, as histórias de sua terra natal.
Cabe destacar que as mães africanas, as amas de leite modificaram as
canções de ninar de origem portuguesa e, em vez do papão, surgem o saci-pererê,
a mula-sem-cabeça, as almas penadas, a cuca, o boitatá, o lobisomem. Essas
superstições, lendas e histórias eram contadas pelas amas negras às crianças
choronas e malcriadas das casas grandes e senzalas. A linguagem infantil também
foi enternecida pela ação da ama negra, que reduplicou a sílaba tônica, dando às
palavras um especial encanto: cacá, pipi, bumbum dindinho, mimi, neném, dodói,
tatá.
Kishimoto (1999) constata que nas casas-grandes era costume do menino
branco receber um ou mais moleques negros como companheiros de brincadeira
que lhe serviam como cavalo de montaria, burros de liteira, de carro de cavalo, em
que um barbante serve de rédea, um galho de goiabeira de chicote. Os meninos
brancos reproduziam, nas brincadeiras, as relações de dominação da escravidão.
Os moleques eram os “manés-gostosos”, os “leva-pancadas” no dizer de Gilberto
Freyre. Porém, longe da vigilância dos adultos e sob as regras infantis, essa relação
se invertia, principalmente nos jogos de pião, papagaio, matar passarinho com
bodoque, subir em árvores, durante os quais a liderança era dos moleques negros,
prevalecendo às habilidades do jogador, como narra José Lins do Rego (1969, p.
56) em Menino de Engenho:
O interessante era que nós, os da Casa-Grande, andávamos
atrás dos moleques. Eles nos dirigiam, mandavam mesmo em
todas as nossas brincadeiras, porque sabiam nadar como peixes,
andavam a cavalo de todo jeito, matavam pássaros de bodoque,
tomavam banho a todas as horas e não pediam ordem para sair
para onde quisessem. Tudo eles sabiam fazer melhor do que a
gente; soltar papagaio, brincar de pião, jogar castanha. Só não
sabiam ler. Mas isto, para nós, também não parecia grande coisa.
Queríamos viver soltos, com o pé no chão e a cabeça no tempo,
senhores da liberdade que os moleques gozavam a todas as
horas. E eles às vezes abusavam desse poderio, da fascinação
que exerciam. Pediam para furtar coisas da casa-grande para
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eles: laranjas, sapotis, pedaços de queijo. Trocavam conosco os
seus bodoques e os seus piões pelos gêneros que roubávamos
da despensa.
Esse relato revela que no brincar, as diferenças de classes sociais eram
atenuadas, e as relações existentes entre os dominados e dominantes, vigentes
durante a escravidão, eram substituídas pela liberdade da atividade lúdica, pois essa
é uma condição para que a brincadeira exista.Essa questão foi tratada por Johan
Huizinga (2001), em Homo Ludens, ao estudar o jogo como elemento da cultura:
/.../o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida
dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço,
segundo regras livremente convertidas, mas absolutamente
obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de
um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de
ser diferente da vida quotidiana (p. 33).
A partir dessa definição, pode-se evidenciar que a primeira característica do
jogo é a de ser uma atividade livre e, quando sujeito a ordens externas ele deixa de
ser jogo; a segunda é de ser uma atividade que permite à criança, sobretudo,
distanciar-se da vida cotidiana e entrar no mundo da fantasia, do faz-de-conta.
Johan Huizinga narra uma história demonstrando que a criança tem plena
consciência de quando está só no faz-de-conta e quando está apenas brincando: “O
pai foi encontrar seu filhinho de quatro anos brincando de “trenzinho”na frente de
uma fila de cadeiras. Quando foi beijá-lo, disse-lhe o menino:”Não(sic) de beijo na
máquina,Papai, senão os carros não vai acreditar que é verdade”(p.11).A terceira
característica é a existência de regras em todos os jogos e, quando estas são
desrespeitadas, estraga-se o jogo, privando-o de todo e qualquer valor. O jogador
que desobedece às regras é chamado de “desmancha-prazeres”, pois destrói o
mundo mágico, e esta figura é mais nítida nas brincadeiras infantis. Ressalta ainda
que o jogo promove a formação de grupos sociais, a vivência comunitária e a
capacidade que o indivíduo tem de colocar-se no papel do outro.
Essas características, apontadas por Johan Huizinga, são fundamentais para
o desenvolvimento infantil, particularmente ao se compreender que a cultura possui
um caráter lúdico. Brincando e jogando, a criança estabelece vínculos sociais,
ajustando-se ao grupo, e aceita a participação de outras crianças com os mesmos
direitos. Obedece às regras traçadas pelo grupo, como também propõe suas
modificações. Aprende a ganhar, e também a perder.Oliveira (2001), mostra que na
experiência lúdica, a criança, assim como o adulto, cultiva a fantasia, vivencia a
amizade e a solidariedade, traços fundamentais para se desenvolver uma “cultura
solidária” na sociedade brasileira atual.
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Em 1990, os sociólogos Alan Prout e Allison James apontaram para a
construção de um novo paradigma da sociologia da infância, baseado em seis
aspectos fundamentais:
“1. A infância é uma construção social.
2. A infância é variável e não pode ser inteiramente separada de outras
variáveis como a classe social, o sexo ou o pertencimento étnico.
3. As relações sociais das crianças e suas culturas devem ser estudadas em
si.
4. As crianças são e devem ser estudadas como atores na construção de sua
vida social e da vida daqueles que as rodeiam.
5. Os métodos etnográficos são particularmente úteis para o estudo da
infância.
6. A infância é um fenômeno no qual se encontra a “dupla hermenêutica” das
ciências sociais evidenciada por Giddens, ou seja, proclamar um novo
paradigma no estudo sociológico da infância é se engajar num processo de
“reconstrução”da criança e da sociedade” (JAMES e PROUT, apud,
MONTANDON,2001,p.51).
Portanto, o desafio teórico-metodológico apontado pelos autores citados
acima é considerar as crianças como atores sociais plenos, construtores de suas
próprias culturas.A esse respeito Sarmento & Pinto (1997) mostram que:
A consideração das crianças como actores sociais de pleno
direito, e não como menores ou como componentes acessórios ou
meios da sociedade dos adultos, implica o reconhecimento da
capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a
constituição das suas representações e crenças em sistemas
organizados, isto é, em culturas (p.20).
Em trabalho pioneiro, Florestan Fernandes (1979), na década de 1940,
estudou o processo de socialização das crianças residentes em bairros operários
que, após a escola, reuniam-se nas ruas para brincar. Ele afirma que a criança
participa ativamente da construção da cultura infantil, e que esta é proveniente da
cultura do adulto, cujos elementos são incorporados por um processo de aceitação e
nela mantidos e transformados com o passar do tempo. Para esse autor,
Um único folguedo pode pôr a criança em contato com quase
todos os valores e instituições da comunidade de modo simbólico,
em seus grupos (p. 388).
E ainda:
O desejo comum de brincar, o contínuo trato com as mesmas
crianças, a preferência por certos tipos de jogos, sua livre
escolha, a liberdade de que goza nesses momentos e o interesse
que lhe desperta o brinquedo em bando conduzem a criança à
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formação das primeiras amizades, dando-lhes a noção de posição
social. (p. 378)
Nesses grupos infantis, formados com finalidades lúdicas, a criança adquire
espírito de solidariedade e disciplina, experimenta com seus pares diversas funções,
obedece e elabora regras traçadas pelo próprio grupo, formando as primeiras
amizades, construindo suas relações sócias.
Roger Bastide, ao prefaciar esse estudo, enfatiza a necessidade de se
multiplicar as pesquisas dessa natureza, captando as vozes das crianças e os seus
significados sobre os brinquedos, as brincadeiras e os jogos e declara: “para poder
estudar a criança é preciso tornar-se criança. Quero com isso dizer que não basta
observar a criança, de fora, como também não basta prestar-se a seus brinquedos;
é preciso penetrar, além do círculo mágico que dela nos separa, em suas
preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo” (idem, p.154).
Nesse sentido, acredito que as reflexões de Walter Benjamin são
fundamentais para se compreender o significado da infância e suas culturas na
modernidade, pois revela como a própria criança sente, imagina, participa, cria e age
sobre o mundo, criando suas culturas e histórias. Esse autor não compreende a
criança como um adulto em miniatura, incompleto, uma tabula rasa, cera moldável,
na qual o adulto determina todo o seu aprendizado e desenvolvimento. Por outro
lado, também não acredita na bondade natural e na ingenuidade da criança.
Dialogando com Freud, mostra que as crianças constroem os seus próprios
universos, constituídos de pureza, beleza, mas também de agressividade,
perversidade, resistência e disciplina, entrecruzando presente, passado e futuro,
“experiências vividas” no individual e no coletivo.Para esse autor, “Se a criança não
é nenhum Robinson Crusoe, assim também as crianças não constituem nenhuma
comunidade isolada, mas sim uma parte do povo e da classe que provém’’
(Benjamin, 1984, p.70).
Ao apresentar o livro Reflexões: a criança, o brinquedo, e a educação, Wille
Bolle levanta questões essenciais que foram desenvolvidas por Walter Benjamin:
Por que o brincar é tão importante para as crianças e por que a repetição as fascina
tanto? Ao comentar a obra Brinquedos Infantis dos velhos tempos.Uma história do
brinquedo, de Karl Gröber, publicada na Alemanha, em 1928, Walter Benjamin
analisa a substituição dos brinquedos artesanais pelos industriais, nos anos iniciais
do século XIX, constatando que, nessa passagem, criança e família perdem o
controle da criação e construção, e estes se tornam estranhos para ambos;
demonstra também que o brinquedo é determinado pelo meio cultural e pelo
desenvolvimento da técnica:
“/.../esse condicionamento do brinquedo pela cultura econômica e
principalmente pela cultura técnica das coletividades. Se até hoje
o brinquedo tem sido visto demasiadamente como produção para
a criança, se não da criança, o erro oposto é ver na brincadeira
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excessivamente na perspectiva do adulto, do ponto de vista da
imitação” (Benjamin, 1987, p.252).
Ao tecer suas considerações sobre o lúdico, Walter Benjamin aponta que o
brincar não pode ser considerado apenas como uma imitação da vida do adulto, e
que a repetição constitui o fundamento do brincar, à medida que o “brincar outra
vez” produz uma grande satisfação para a criança. Esse prazer remete à busca da
primeira experiência que pode ter sido um terror ou a primeira felicidade. Assim, a
repetição não é somente um caminho das “terríveis experiências primordiais”, mas
também o“saborear, sempre com renovada intensidade, os trunfos e vitórias”
(Benjamin, 1984, p.74).
Roland Barthes (2006), ao analisar o brinquedo, mostra que o adulto
considera a criança como uma imagem de si mesmo, pois a trata como reproduções
do universo adulto e, desta forma, introjeta-lhe valores, atitudes e comportamentos
inerentes à sociedade burguesa; apresentado-os como naturais. Ao falar sobres os
diversos modelos existentes de bonecas na sociedade atual, ou seja, bonecas que
andam, falam, trocam fraldas, tomam mamadeira, constata que sua função é
preparar as meninas para o ambiente doméstico e condicioná-las para a função
maternal, cristalizando as relações sociais do sexo.Assim, perante esse universo, “a
criança só pode assumir o papel de proprietário, do utente, e nunca o do criador; ela
não inventa o mundo utiliza-o: os adultos preparam-lhe gestos sem aventura, sem
espanto e sem alegria (Barthes, p.60).
Na sociedade contemporânea, grande parte dos jogos tradicionais infantis,
tais como ciranda cirandinha, cabra-cega, barra manteiga, queimada, jogo de pião,
pedrinhas, amarelinha, entre outros - que encantam e fazem parte do cotidiano de
várias gerações de crianças, estão desaparecendo devido às transformações do
ambiente urbano, ou seja, as ruas e as calçadas deixaram de ser os espaços para a
criança brincar, a influência da televisão, e o advento de novas tecnologias da
comunicação e da informação, particularmente, os jogos eletrônicos.
Objeto de minha pesquisa os jogos eletrônicos fascinam as novas gerações
desde a década de 1980, com o surgimento do Atari e seus jogos Pong, Pac-Man e
Space Invaders. Esse fascínio exercido pelos games geraram inúmeras críticas, a
mais comum é que esse tipo de entretenimento ao enfatizar a cultura da violência,
estimula nos jogadores comportamentos agressivos e violentos. Nesse sentido,
Fátima Cabral (2000), afirma:
“
as
tragédias
ocorridas
entre
jovens
americanos,
comprovadamente adeptos de jogos que enfatizam a violência, e
a experiência frustrada de um jovem japonês de 28 anos, fanático
por simuladores de vôo, ao tentar seqüestrar um avião com 517
pessoas em Tóquio, podem ser indicativos sombrios da perda do
senso de realidade e da tomada de experiências virtuais como
referentes para a vida real. (p.64e 65)
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A autora mostra que o jogo eletrônico, ao extinguir as fronteiras entre o real
e o imaginário, oferece aos jogadores a sensação de ser, concomitantemente, o
mesmo e o outro, isto é, sujeito e personagem.
Eugene Provenço Jr (2001) afirma que os novos jogos de videogames têm
como tema principal a violência, o sexismo e o racismo, e que utilizando novas
tecnologias, os CD-ROM, tornam-se cada vez mais interativos e realistas, pois
seus criadores utilizam atores digitalizados para desenvolver a ação, sendo o
alicerce de uma nova indústria da televisão interativa, na qual pais e educadores
devem ficar alarmados devido às mensagens divulgadas. No jogo Night Trap,por
exemplo, cinco alunas de uma escola estão sendo perseguidas por figuras
encapuzadas, e a missão do jogador é salvá-las. Para isso é necessário seguir as
ordens do comandante Simms.Quando algum personagem torna-se prisioneiro,
fica imobilizado e perfuram-lhe o pescoço com uma furadeira motorizada. Depois
de morto, seu sangue é drenado em garrafas de vinho. Segundo a educadora
canadense de mídia infantil, Sandra Campell, o personagem Simms possui
características “militarista e fascista”, pois leva as crianças e adolescentes a
seguirem suas ordens de maneira cega, trazendo- lhes conseqüências violentas.
Contrapondo-se a essas críticas, Patrícia Marks Greenfield (1998)
constata que videogames violentos, jogados em dupla, ao exigir tanto a
cooperação quanto a competição entre os jogadores, podem diminuir o nível de
agressividade nas brincadeiras. Além disso, demonstra que os videogames
contribuem para o desenvolvimento cognitivo de seus jogadores, refutando a idéia
que sua prática desenvolve somente a coordenação sensório-motora.
Comparando os jogos tradicionais como xadrez, dama, monopólio, com os
videogames, essa autora aponta que nos primeiros as regras são preestabelecidas
e no segundo, as regras são apreendidas através da observação, exigindo mais
raciocínio indutivo.
Arlindo Machado (1996) ao escrever sobre as relações entre a máquina e o
imaginário, observa que entre as reflexões apocalípticas difundidas por Jean
Baudrillard ou Frederic Jameson e as idéias apologéticas por McLuhan, Alvin Tofler
não produz avanços qualitativos, pois ambos polarizam em pontos extremos e não
contribuem para entendermos a arte de nosso tempo. Esse autor observa que“ muito
do que escreveram hoje esses pensadores se afina mais propriamente com a ficção
científica do que com a experiência real e com as dificuldades que ocorrem no nível
pratico”(p.24).
Acredito que possamos utilizar o mesmo raciocínio que Walter Benjamin
(1987) usou para analisar a fotografia e o cinema para os jogos eletrônicos.Trata-se
de perceber que as transformações das técnicas alteram de forma significativa a
percepção, a cultura, as vivências e sensibilidades individuais e coletivas. Para esse
autor, “o filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações
exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida
cotidiana” (p.174). As mudanças nas condições de produção alteram os espaços da
cultura; ou seja, as transformações do modo de produção e da técnica determinam
as transformações dos modos de percepção e, portanto, da experiência social e das
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formas de expressão. Por essa razão pretendo analisar os jogos eletrônicos vendoos como imagens ambivalentes, provocando apaziguamento e catarse, ao mesmo
tempo.
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